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 UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE EDUCAÇÃO FÍSICA Educação Física: A vertente pedagógica da cultura corporal do movimento humano OU 100 Parágrafos em defesa da formação única: Subsídios para o debate sobre a reformulação curricular na EsEF-UFRGS Adroaldo Gaya PORTO ALEGRE, AGOSTO de 2009

Texto Adroaldo Gaya

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL ESCOLA DE EDUCAO FSICA

Educao Fsica: A vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humanoOU

100 Pargrafos em defesa da formao nica: Subsdios para o debate sobre a reformulao curricular na EsEF-UFRGS

Adroaldo Gaya

PORTO ALEGRE, AGOSTO de 2009

SUMRIO

Introduo 1Educao Fsica e a Corporalidade 1.1- As correntes dualistas 1.2- As correntes no-dualistas 2A Cultura Corporal do Movimento Humano 2.1- Sobre o significado de cultura 2.2- Sobre o significado da Cultura Corporal do Movimento Humano 3Educao Fsica como vertente pedaggica da Cultura Corporal do Movimento Humano 3.1- Educao Fsica como profisso 3.2- Educao Fsica como uma disciplina escolar 3.3- Educao Fsica como uma rea acadmica 45Licenciatura e Bacharelado. As idiossincrasias na formao do profissional de educao fsica no Brasil Em defesa de uma formao unificada do professor de educao fsica em torno da licenciatura (ou em defesa de uma licenciatura ampliada 6Em concluso. Palavras de otimismo

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Educao Fsica: A vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humano Ou 100 Pargrafos em defesa da formao nica Subsdios para o debate sobre a reformulao curricular na EsEF-UFRGS Adroaldo Gaya

IntroduoO passado histrico, o presente catico e o futuro utpico. Ordem, caos e utopia so assim os vrtices do tringulo Sobre o qual se desenvolve a espiral do tempo Jos Saramago1

Ler significa reler, compreender, interpretar. Cada um l com os olhos que tem e interpreta a partir de onde os ps pisam. Leonardo Boff2

Todavia, no desejaramos esquecer-nos de que escrever, mesmo quando feito de cabea fria e com a melhor predisposio objetividade, sempre literatura e que a terceira dimenso da literaturas a fico. Hermann Hesse3

1(4) .As palavras de Jos Saramago embora ditas em outro contexto serviram-me de motivao para refletir sobre a Educao Fsica. Sou professor de Educao Fsica, e disso tenho muito orgulho. A Educao Fsica o solo onde piso e o horizonte para onde dirijo meu olhar. Mas, no entanto, no esqueo que escrever sempre literatura e que a sua terceira dimenso a fico. Por isso, quando escrevo tenho sempre presente os riscos de estar

Jos Saramago em discurso na ocasio de seu doutoramento Honoris causa pela Universidade de vora. Citado por ZORRINHO, C. Ordem, caos e utopia. Lisboa: Presena, 2001. 2 Boff, Leonardo. A guia e a Galinha. 46ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p.15. 3 Hesse, Hermann. O Jogo das Contas de Vidro. Lisboa: Dom Quixote, 1993, p.43. 4 Vou publicar este texto em forma de pargrafos numerados com o intuito de facilitar a localizao dos contedos que, eventualmente, sejam objeto de debate.

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alm do real possvel. Escrever me remete ao mundo dos desejos, dos sonhos. Ao escrever revelo tambm a minha utopias. 2 Por amor a minha profisso e por t-la em alta considerao, por v-la digna, edificante e nobre, no obstante, to pouco valorizada pela sociedade dita do conhecimento e da informao que me entrego tarefa de escrever esta monografia. Por um lado, para revelar minhas tristezas e, por outro lado, para compartilhar meus sonhos. As minhas tristezas advm do reconhecimento ignorncia de tantos atores sociais quando se referem Educao Fsica. A Educao Fsica to pouco valorizada! 3 A Educao Fsica pouco valorizada, em primeiro lugar, pelo desconhecimento e incompreenso de grande parte do senso comum. Para muitos somos apenas (apenas?) os professores que ensinam as crianas a jogar bola, os que treinam os jovens para desenvolver uma boa condio fsica, os que exercitam os adultos para diminuir o peso corporal e os idosos para aumentar sua expectativa de vida. Embora no haja dvida, que tais propsitos so socialmente relevantes e em boa parte, so mesmo fundamentais vida humana, todavia para parte significativa desse mesmo senso comum, essas tarefas no vo alm da reproduo mecnica de um conjunto de tcnicas corporais. Por suposto, tarefas com baixa exigncia de contedo intelectual, cultural e pedaggico. Nada que no possa ser retirado de uma coletnea de exerccios e ser reproduzido por um instrutor, um ex-atleta, um amigo da escola ou at mesmo um programa de computador. Ainda h quem se espante ao se deparar com um estudante de educao fsica estudando e pesquisando sobre fisiologia, psicologia, antropologia, filosofia, etc. Para esses distrados, basta, para ser professor de educao fsica, jogar bola, fazer ginstica, ser forte, veloz e flexvel. 4 Educao Fsica, pouco valorizada por teologias, filosofias e pedagogias dualistas que vem o corpo e a alma como substncias separadas e distintas. 4

Dualismo que define o corpo como moradia ou priso da alma, ou como um relgio composto por rodas e contrapesos. Educao Fsica que, enfim, ao ter suas razes plantadas no campo frtil da corporalidade desfruta dos mesmos preconceitos que tais teologias, filosofias e pedagogias compartilham em relao ao corpo. Um corpo que para alguns idelogos do trans-humanismo obsoleto e deve ser substitudo por uma mquina sofisticada. Um corpo que para determinadas correntes religiosas deve ser mortificado para expiar provveis descaminhos da alma ou do esprito. Um corpo que aps a morte dever apodrecer na terra aps dar liberdade alma que voltar ao reino dos cus ou ao mundo das idias. Corpo que, para outros tantos telogos, filsofos e pedagogos mais condescendentes com a sua incmoda presena entendem que ele deva ser cuidado e treinado para tornar-se belo, forte e saudvel pela simples razo de estar a servio da mente. Pois, afinal! Uma mente s deve exigir um corpo sadio. 5 Educao Fsica pouco valorizada por cientistas reducionistas que a restringem aos limites estreitos de suas disciplinas. Nossas faculdades esto cheias de fisiologistas, biomecnicos, psiclogos, antroplogos, socilogos que isolados no espao restrito de suas especialidades pretendem pretensiosamente atravs de suas estreitas janelas visualizarem o mundo complexo e transdisciplinar da Educao Fsica. Assim, como produto desta hiper-especializao, se por um lado, alguns de nossos alunos so capazes de publicar artigos em revistas cientficas nas diversas reas do conhecimento, por outro lado, muitos deles no adquirem a mesma competncia para dar aulas de Educao Fsica para uma turma da quinta srie. 6 Educao Fsica pouco valorizada por pedagogos racionalistas e intelectualistas para quem o ato de educar se resume exclusivamente s necessidades da razo o inteligvel -. Educao que deveria ser integral o inteligvel e o sensvel -, mas que, no entanto se resume ao ensino do escrever; do fazer contas; do decorar nomes de continentes, pases e suas capitais, personalidades importantes da histria universal. Educao onde o corpo e o 5

sensvel no tm relevncia j que apenas percebido como uma mquina a servio do raciocnio lgico. 7 Educao Fsica pouco valorizada em escolas onde o corpo no tem voz. Escolas onde o corpo permanece sentado, disciplinado no silncio e passividade de uma esttua de mrmore. Ou, quem sabe, tal como umas marionetes. Move-se por mecanismos articulados a partir de um conjunto de fios que se mantm sobre o controle dos mestres. Educao Fsica desvalorizada pela cultura do silncio corporal. Corpo esttua de mrmore que sequer, como imaginava Condilacc5 tem, atravs da educao, seus sentidos despertados um a um. Corpo aprisionado e de costas para o mundo, vendo sombras na parede e tomando-as pela realidade, tal como na alegoria da caverna de Plato6. 8 Educao Fsica desvalorizada, tambm por muitos professores de Educao Fsica. Sim! Professores de Educao Fsica que se mantendo presos entre as fronteiras rgidas de concepes racionalistas e intelectualistas se sentem menos importantes ao ter de lidar com corpos sensveis. Corpos que correm, saltam, jogam, danam e fazem esportes. Corpos que suam nas quadras, campo e estdios. Corpos que necessitam das aprendizagens de habilidades motoras e tcnicas esportivas, do treinamento das capacidades fsicas, dos cuidados de higiene e sade. Corpos que, para alm da razo, expressam desejos e sentimentos. Corpos que no se deixam apreender em sua complexidade pelos discursos sofisticados que, na maioria das vezes sendo importados de outras cincias, se multiplicam nos cursos de formao, nas conferncias, nos livros e discursos de professores de Educao Fsica investidos de filsofos, telogos, psiclogos, socilogos, antroplogos, etc. Professores de Educao Fsica que imaginam que ao propor ou partilhar de discursos eloquentes contra as competies esportivas, o ensino do esporte na5

Condilacc E. Tratado das Sensaes. Campinas: Ed da Unicamp, 1993. Plato. In. Os Pensadores. Civita, V. (ed.), Trad. Jorge Paleika e Joo Cruz Costa. So Paulo: Abril Ed., 1972.6

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escola, as prticas que envolvem a formao corporal e a busca da excelncia esto construindo (ou desconstruindo) um referencial terico capaz de fornecer fundamentos consistentes para a Educao Fsica. Professores que em minha opinio, infelizmente fazem muitos gols contra. 9 Educao Fsica desvalorizada por professores de Educao Fsica nas escolas. Professores que engajados em fundamentalismos ou por pura preguia abdicaram do compromisso da formao de seus alunos. Professores que se limitam a transformar suas aulas num lugar divertido, num espao exclusivamente ldico, num parque de diverses onde o prazer individual e imediato o nico bem possvel, princpio e fim da vida moral. Professores que se convertem em animadores culturais ou expectadores de uma pelada de futebol entre seus alunos, mas sem qualquer compromisso pedaggico, apenas entregam a bola no incio das aulas e a recolhem ao final. Portanto, Educao Fsica que ao abdicar da tica do esforo, do trabalho e da disciplina abdica tambm de sua tarefa de formao e educao. Esqueceram que nada do que realmente vale se alcana sem esforo e sem fatigante trabalho7. 10 Mas, por que a mensagem de Jos Saramago me fez refletir sobre a Educao Fsica e inspirou esta monografia? 1. Porque eu tenho conscincia de que a Educao Fsica tem passado, tem histria e esta histria tem sentido e ordem. A Educao Fsica realizou-se num processo histrico que tende a dar corpo ao sonho e construir passo a passo os mil passos que o caminho exige. Sua histria exigiu tempo, pacincia, esperana, superao de obstculos e trabalho de construo8. Certamente se torna necessrio ler nossa histria luz dos condicionamentos objetivos do presente e de novos sonhos de um futuro promissor possvel, mas isso, evidentemente, no significa esquec-la e7 8

Boff, Leonardo. A guia e a Galinha. 46ed. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 81 Texto adaptado a partir de Leonardo Boff. Saber cuidar. tica do humano compaixo pela terra. (14 Ed). Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p.82.

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desconsiderar sua relevncia para a construo presente e para as expectativas futuras. 2. Porque a Educao Fsica tem um presente, que como tentei sugerir nas linhas anteriores catico. Hoje no sabemos bem onde estamos nem para onde vamos. Provavelmente vivemos uma crise de identidade. bacharelado, licenciatura, esporte, atividade fsica, sade, lazer, cincia... 3. Mas, sobretudo porque acredito e tenho f que a Educao Fsica tenha um futuro e, principalmente porque para este futuro eu tenho sonhos e desejos. Tenho a minha utopia.O ser humano e a sociedade no podem viver sem utopia. No podem deixar de projetar seus melhores sonhos nem desistir de busc-los dia aps dia. Se no houvesse utopias, imperariam os interesses menores. Todos chafurdariam 9 no pntano de uma histria sem esperana .

Por isso, eu me inspiro nas palavras de Saramago e creio que a ordem, o caos e a utopia so os vrtices do tringulo sobre o qual se desenvolve a espiral do tempo. 11 Neste ensaio, alm das tristezas, revelo minhas utopias. As idias que apresento decorrem de muitos anos de estudos, de leituras, observaes e reflexes. Foi principalmente em 1994 que plantei as sementes que deram os frutos que agora amadurecem e podem ser colhidos para a apreciao de suas eventuais qualidades. Em 1994 publiquei um artigo na Revista Movimento da UFRGS10. Nele eu buscava encontrar respostas para a pergunta: Mas afinal! O que Educao Fsica? Este texto polmico gerou um debate apaixonado com a participao de uma dezena de importantes intelectuais da rea. No obstante, muitos anos se passaram e a questo permanece em aberto com muitas propostas e quase nenhuma sntese. Ainda hoje, ao iniciar minhas aulas nos cursos de graduao e ps-graduao reponho a questo: O que Educao Fsica? E aps um silencio constrangedor vamos encontrar tantas

Boff, L; idem, p.81. Gaya, A. Mas afinal! O que Educao Fsica. Revista Movimento. Vol.1, N1, 1994/ Temas Polmicos.10

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respostas quanto o nmero de alunos que se manifestaram. Mas, afinal! O que Educao Fsica? Este o desafio que pretendo novamente enfrentar. 12 Est evidente no ttulo deste ensaio. Defino a Educao Fsica como a vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humano. Mas esta definio por si nada esclarece, portanto exige uma devida contextualizao. Exige um referencial terico que lhe d suporte. Exige uma justificativa epistemolgica coerente. Para tanto, ser necessrio definir operacionalmente o significado e as relaes entre os construtos que constituem a definio. Por exemplo: qual o significado de cultura corporal do movimento humano? O que representa a expresso vertente pedaggica? Por outro lado, como se articulam as vrias manifestaes do conhecimento (a cincia, a filosofia, o senso comum e as crenas) no conceito de cultura corporal e por consequncia na definio da Educao Fsica? Essas so as questes que pretendo dar conta ao longo deste ensaio com o intuito de fundamentar as idias que subsidiam minha tese: A defesa incondicional da formao nica para professores de educao fsica em torno de uma licenciatura ampliada. 1. Educao Fsica e a corporalidadeCorpo! Saudemos o corpo. Corpo dito / Corpo interdito; Corpo curso / Corpo discurso; Corpo festejado / Corpo flagelado. Corpo que existe/ Corpo que pensa. Corpo que sente e fala. Corpo que anuncia, denuncia, renuncia. Corpo que insinua. Corpo lugar/ polissmico e polimorfo Corpo! Nossa existncia. Corpo! Nossa referncia. Corpo onde tatuamos o sentido de nossas vidas. Corpo humano / Corpo cultura. Corpo movimento/ Corpo vida. Corpo. Adroaldo Gaya.

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A Educao Fsica encontra seu sentido e significado ao relacionar-se com o corpo humano. Mas, relacionar-se com o corpo humano exige que tenhamos uma forma de interpret-lo, enfim, exige uma concepo sobre sua representao. Neste sentido, se recorrermos filosofia, grosso modo, identificaremos duas principais correntes de interpretao sobre o corpo humano: as correntes dualistas e as correntes no-dualistas. 1.1- As correntes dualistas 14 As correntes dualistas so hegemnicas em nossa cultura ocidental. As influncias do dualismo ontolgico e axiolgico platnico, do racionalismo cartesiano, da teologia judaico-crist, entre outros, so esteios vigorosos que sustentam a crena num corpo material, finito e imanente que se contrape a uma alma ou esprito imaterial, infinito e transcendente. Na mesma perspectiva dualista algumas correntes do pensamento contemporneo, principalmente ligadas inteligncia artificial reforam esta viso hierarquizada entre corpo e alma. bem verdade que Plato em Fdon11 deu ao corpo o significado de priso da alma. Descartes em Meditaes12 de um relgio. Lock no Ensaio Acerca do Entendimento Humano13 de uma tbua rasa. Hoje, entretanto, em nossa contemporaneidade, filsofos, cientistas e artistas como Raymond Kurzweil, Garry Sussman e Stelios Arcadiou (Stelarc), entre outros, reunidos nas correntes denominadas de trans-humanistas14, anunciam para breve a obsolescncia do corpo humano. Para Breton15, esses so filsofos e cientistas para quem (...) a obsolescncia do corpo humano um fato consumado. Para quem o corpo a runa de muito dos esforos do esprito. G.J. Sussman, professor do Massachusetts Institute of Technology, sonha em desvencilhar-se de seu corpo: Se voc for capaz de fazer uma mquina que contenha seuPlato. Fdon. In. Os Pensadores. Civita, V. (ed.), Trad. Jorge Paleika e Joo Cruz Costa. So Paulo: Abril Ed., 1972. 12 Descartes, R. Meditaes. In Os Pensadores. Civita, V. (ed.) Trad. J. Guinsburg e Bento Prado Jnior. So Paulo: Abril Ed, 1973. 13 Lock, J Ensaio Acerca do Entendimento Humano. In. Os Pensadores. Civita, V. (ed.) Trad. Anoar Aiex. So Paulo:Abril Ed., 1973. 14 In. Glen Yeffeth. A Plula Vermelha: questes de cincia, filosofia e religio em Matrix. So Paulo: Publifolha, 2003. 15 Breton, D. Adeus ao Corpo. In. Novaes, A. O Homem- Mquina. A cincia manipula o corpo. So Paulo: Companhia das Letras. 2003.11

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esprito, ento esta mquina voc mesmo. Que o diabo carregue o corpo fsico, no interessa16. Um corpo binico sugere o artista plstico Stelarc, Um computador. Um lugar propcio para abrigar o esprito, ele igualmente promovido condio de corpo glorioso, de libertao do mundo biologicamente impuro17. 15 Ora! Em tal contexto filosfico no resta ao corpo humano muito do que se envaidecer. Ele a priso da alma, a ela subalterno. Ou simplesmente um mecanismo sofisticado a servio da razo. do corpo humano de carne e osso que devemos nos livrar para voltarmos ao mundo das idias, ao paraso celeste ou nos transformarmos em seres binicos. 16 Sendo assim, considerando a hegemonia das concepes dualistas sobre a relao corpo e alma, bem como sua fora normativa sob as crenas, costumes e ideologias da cultura ocidental creio que, em parte, se explica o descrdito profissional, epistemolgico e pedaggico da Educao Fsica. Em minha opinio a pouca relevncia social que atribuda Educao Fsica, decorre de sua ntima relao com o corpo humano. Decorre da relao que as crenas, as filosofias, as teologias e as pedagogias dualistas tm com o corpo humano. Ora! Se o corpo o lado menos edificante do humano; se em algumas vises mais fundamentalistas o corpo representa um obstculo para realizao espiritual ou mental ou se o corpo uma mquina obsoleta, como, neste contexto, poderemos valorizar uma disciplina que est intimamente ligada aos cuidados do corpo? Enfim! Se o corpo humano no digno de nossa humanidade, de nossa racionalidade, de nossa espiritualidade e de nosso processo civilizatrio como exigir status e relevncia Educao Fsica?

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BRETON, id.ibid. Stelarc, apud Breton, D. In. Novaes, 2003, p.126.

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1.2- As correntes no-dualistas 17 As correntes no-dualistas tm menor visibilidade em nossa cultura filosfica, teolgica, pedaggica, cientfica e popular. Nos fundamentos de nossa tradio filosfica e por consequncia nos cursos de formao em Educao Fsica encontraremos facilmente referncias a Plato, So Toms de Aquino, Descartes, Lock. Por outro lado, esto menos presentes filsofos como Espinosa, Schopenhauer, Kant18, Nietzsche, Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e contemporneos como Michel Serres, Edgar Morin, Henri Atlan e David de La Breton onde encontramos referncias slidas para a reinterpretao dos corpos humanos, inclusive e, principalmente, reinterpretao dos corpos humanos nos discursos e prticas pedaggicas. Em minhas aulas na Universidade pergunto aos alunos se teriam sido apresentados a alguns desses filsofos e, se nas cincias biolgicas, foram estimulados a ler Prigogine, Maturana, Varella, Atlan e Damsio; se em biomecnica, para alm de Newton, encontraram Einstein, Bohr, Heisenberg, Capra. Infelizmente, a grande maioria de nossos alunos desconhece as obras desses e de outros filsofos, antroplogos, bilogos e fsicos no dualistas. 18 Do meu ponto de vista, valorizar a Educao Fsica passa, necessariamente, e em primeiro plano pela valorizao do corpo humano. Valorizar a Educao Fsica requer atribuir outro sentido a corporalidade. Exige que faamos uma releitura da representao e do significado das relaes entre corpo e alma (corpo-esprito ou corpo-mente...). Trata-se, na minha tica, de superar as filosofias dualistas que atribuem, por um lado, alma o sentido do sagrado, do imaterial, do infinito e do transcendente e, por outro lado, ao corpo o sentido do profano, da matria, do finito e do imanente. A alma retorna ao cu o corpo retorna a terra... Faz-se premente substituir o dualismo corpo e alma por uma dualidade corpo e alma19. O dualismo impe contradio entre corpo e alma. Coloca-os em confronto e acaba por hierarquiz-los. A dualidade18 19

Principalmente em Crtica Da Razo Pura, tica Transcendental Ver SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representao. So Paulo: UNESP. 2005.

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sugere uma relao dialtica, e como tal sugere complementaridade, impe uma configurao de unidade. Corpo e alma constituem os dois lados de uma mesma moeda, no podem ser separados20.A rejeio do dualismo permite-nos comear da posio de um observador da corporeidade e sugere uma integrao destes aspectos que so objetivamente acessveis 21 com aqueles que so subjetivamente experimentados .

19 preciso reabilitar o corpo humano. Isto porque, nos ensina Donaldo Schiller: H um saber corpo. O corpo sabe o mundo, convive com ele. Sabe as coisas ao toc-las. Conhece e reconhece. Os corpos comunicam-se, interpenetram-se22. Nas palavras de Merleau-Ponty23: (...) porque sou esse animal de percepes e de movimentos que se chama corpo. Em Nietzsche, Eu sou corpo e alma 24. Porque, como afirma Antnio Damsio, sem corpo no h mente25, ou como expressa Henry Atlan26 Porque somos nosso corpo. 20 Em minha utopia eu vejo o corpo humano liberto dos dualismos ontolgicos e axiolgicos mutilantes e, como tal, acredito que nesta perspectiva encontramos o princpio fundador de um sentido radicalmente novo para a Educao Fsica. Perceb-la como a vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humano.

Espinosa, B. Pensamentos metafsicos. In. Os Pensadores. Civita, V. (ed.) Trad. Marilena Chau. So Paulo: Abril Ed., 1973. 21 Rintala, J. The mind-body revisited. Quest. Champaign, Human Kinetics, 3(3), 1991, p. 261. 22 Cf. Schuller. D. Herclito e seu (dis)curso. Porto Alegre, L&PM, 2001, p. 223 23 Merlau-Ponty, M. In. Civita, V. (ed.) Os Pensadores. Edmundo Husserl; Maurice MerlauPonty. Rio de Janeiro, Abril Cultural, 1975. 24 Nietzsche, F. Assim falava Zaratustra. Trad. Mrio Ferreira dos Santos (3Ed). Petrpolis: Vozes, 2009, p.51. 25 Damsio, A. O Sentimento de si. 5 Ed. MiraSintra: Europa-Amrica, 2000. 26 Atlan, H. Com Razo e Sem Ela. Lisboa: Piaget, 2000, p. 96.

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2- A Cultura Corporal do Movimento Humano 21 Defino a Educao Fsica como a vertente pedaggica da Cultura Corporal do Movimento Humano. Mas objetivamente, o que quero afirmar com a expresso Cultura Corporal do Movimento Humano? 22 Inicialmente devo esclarecer que diferentemente do que sugerem alguns de meus crticos, no tenho a pretenso de propor novidades ou a vaidade de criar um novo conceito. Incluo-me entre colegas com quem, em tempos diversos, partilhei um caminho percorrido e ainda por percorrer. importante que tenhamos a clareza de que nada na vida est definitivamente pronto, somos gnese, somos seres em construo, somos at a morte, caminhantes a desvendar novas paisagens. A Cultura Corporal do Movimento Humano, tal como percebo, tem suas razes no Coletivo de Autores que publicou o livro Metodologia da Educao Fsica em 1992. Compartilho a Idia que a Cultura Corporal do Movimento Humano configura-se como um acervo:Acervo de formas de representao do mundo que o homem tem produzido no decorrer da histria, exteriorizadas pela expresso corporal: jogos, danas, lutas, exerccios ginsticos, esportes (...) que podem ser identificados como formas de representao simblica de realidades vividas pelo homem, 27 historicamente criadas e culturalmente desenvolvidas .

23 evidente que h entre ns diferenas. Percorremos nossos caminhos por estradas diversas, criamos as nossas subjetividades, todavia, tenho a convico, que tais diferenas no so assim to significativas como imaginam nossos leitores. Creio que Cultura Corporal (Coletivo de Autores), Cultura Corporal do Movimento (Bracht e Betti) e Cultura Corporal do Movimento Humano (Gaya) esto muito mais prximas do que alguns percebem. Justifico minha opo por Cultura Corporal do Movimento Humano por um conjunto de argumentos muito simples que passo a relatar.

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Soares, C. L. et al. Metodologia do Ensino de Educao Fsica. So Paulo: Cortez, 1992, p.38.

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1. Parece que no h divergncia significativa quanto ao uso do termo cultura corporal. Est presente em todas as propostas, 2. Acompanho Bracht28 e Betti29 e utilizo cultura corporal do movimento. Minha justificativa muito simples. Entendo que cultura corporal um conceito muito mais abrangente do que cultura corporal do movimento. Os estudos, por exemplo, de Marcel Mauss30 e David Le Breton31 indicam claramente esta diferena. A forma como nos vestimos, nos maquiamos, nos expressamos, nos apresentamos publicamente uma manifestao da cultura, da mesma forma as tatuagens expressam cultura. Reconheo sem qualquer dificuldade esta conjectura. Faz parte da cultura o que se manifesta em nosso corpo o que, por outro lado, no significa que todas essas manifestaes relacionem-se no rol de objetos e objetivos da Educao Fsica. No so de todas essas manifestaes que eu trato quando penso a Educao Fsica. Eu trato isto sim, das manifestaes corporais que se expressam atravs dos movimentos codificados, ritualizados. ritualizados Um sistema de movimentos Betti, formas intencionalmente Como sugere

culturalmente codificadas32. Dito de outra forma, minha idia sobre a cultura corporal do movimento, no inclui pura e simplesmente todas as manifestaes do corpo. So as manifestaes do corpo em movimentos codificados e ritualizados. So: o esporte, a dana, a ginstica, o teatro, as lutas, as manifestaes musicais, o circo, etc. 3. Por fim, apenas pretendi demarcar melhor meu objeto de estudo quando acrescentei cultura corporal do movimento humano. A razo singela. Meus crticos dizem que sou redundante, pois se cultura, por consequncia, ser sempre uma atividade humana. Eles podem ter razo. Todavia, eu no tenho certeza. No sofro de antropomorfismo. No tenho a convico de que alguns de nossosBRACHT,V. Educao Fsica no 1 Grau: Conhecimento e especificidade. In. Revista Paulista de Educao Fsica. So Paulo, supl.2, p. 23 28, 1996. 29 BETTI, M. Educao Fsica, cultura e sociedade http://www2.fct.unesp.br/pefes/mauro_betti_artigo.pdf 30 MAUSS, M. Sociologia e antropologia. So Paulo: EPU/EDUSP, 1974. 31 BRETON, D. As paixes ordinrias. Traduo de Luis Alberto Salton Peretti. Petrpolis: Vozes, 2009. 32 BETTI, M. id.ibid.28

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irmos no-humanos no manifestem de alguma forma cultura. Por isso, mantenho a expresso cultura corporal do movimento humano. Mas, para definir como clareza Cultura Corporal do Movimento Humano se faz necessrio primeiramente definir cultura. 2.1- Sobre o significado de cultura 24 Ao longo da histria homens e mulheres tm produzido conhecimentos e tcnicas visando atender seus interesses e necessidades. Como produtos de sua criao fabricaram ferramentas para atender s exigncias de sua produo material; armas para a defesa e para a caa. Cultivaram a agricultura e desenvolveram a pecuria. Homens e mulheres dominaram o fogo, inventaram crenas e mitos que deram significados aos fenmenos da natureza, fundaram religies que os protegem num mundo desconhecido. Atravs das artes fizeram dos sentimentos expresses visveis nas rochas, nos utenslios, nas telas e na prpria pele tatuada e prolongada por adornos que lhe atribuem identidade33

. A linguagem instaurou-se como forma de expresso

e comunicao e, homens e mulheres tornaram-se filsofos, polticos, cientistas, literatos, poetas, trovadores... 25 Assim sendo, compartilho a definio de Claude Lvi-Strauss: cultura tudo o que, pelo menos, os homens e as mulheres acrescentaram natureza. 26 Atravs da cultura a humanidade rompeu os grilhes dos imperativos da natureza. Enfim, homens e mulheres puderam superar os instintos naturais a ponto de ultrapassarem os determinismos fsicos e biolgicos. No universo da cultura se configuram construes de sentidos humanos da vida, com33

Gaya, A.; Torres, L. O Esporte na infncia e adolescncia. Alguns pontos polmicos. In. Gaya, A; Marques, A.: Tani, G. Desporto para Crianas e Jovens. Razes e Finalidades. Porto Alegre. EDITORA UFRGS, 2004, p. 57 74.

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modificaes da sua forma de expresso em concordncia com o contexto histrico-social e na dependncia da fora criativa de pessoas e grupos34. 2.2- Sobre o significado da Cultura Corporal do Movimento Humano 27 Formaram-se distintos domnios culturais. Sim! Tambm no domnio da corporalidade, da mesma forma, homens e mulheres criaram e desenvolveram um conjunto de prticas com diversas formas e sentidos. As danas, os jogos, as lutas, as ginsticas, os esportes, o teatro, o circo, as diversas e inmeras tcnicas de terapias corporais, etc. Enfim, para alm de manifestaes de sentimentos, motivaes, desejos e crenas, homens e mulheres, constituram um espao de representao, de comunicao e de expresso corporal. Criaram uma complexa e variada tecnologia corporal que constituem manifestaes evidentes de sua Hominescncia35. O esporte, a dana, a ginstica, as artes cnicas,... so manifestaes culturais diretamente relacionadas s diversas possibilidades de expresso do movimento corporal humano. Enfim, se pode afirmar que homens e mulheres deram sentido e criaram o universo da Cultura Corporal do Movimento Humano. 28 A Cultura Corporal do Movimento Humano representa a possibilidade teoricamente justificada de demarcar um espao prprio para as manifestaes culturais inerentes ao movimento corporal humano. Um campo de estudos prprio para investigao, a expresso, o ensino-aprendizagem, a promoo de conhecimentos e de discursos sobre as mltiplas manifestaes e expresses da corporalidade humana. 29 Cultura Corporal do Movimento Humano, um campo de estudo, onde o movimento corporal percebido como local de encontro, ponto de interaes34

Bento, J. O. Contexto e Perspectivas. In. BENTO, J. O.; GARCIA, R. & GRAA, A. Contextos da Pedagogia do desporto. Lisboa: Horizonte, 1999. 35 SERRES, M. Hominescncia. Lisboa: Instituto Piaget. 2004.

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permanentes entre o cultural, social e o biolgico, tanto no plano das prticas como no das representaes. 30 No obstante, para demarcar com clareza o significado da Cultura Corporal do Movimento Humano como objeto particular de estudo torna-se necessrio identificar que manifestaes do movimento corporal podem ser percebidas para alm dos determinismos da natureza. Portanto, como definimos nas linhas anteriores que a cultura pressupe tudo aquilo que homens e mulheres do acrescentam a corporal natureza, humano cabe interrogar: que como manifestaes movimento configuram-se

expresses culturais? Ser que todas as manifestaes de movimento humano podem ser percebidas como cultura? 31 No! evidente que no. Por exemplo: os movimentos desordenados em uma convulso epilptica no se configuram para alm de determinismos biolgicos. No traz em sua manifestao exterior qualquer sentido existencial ou simblico. Pode-se afirmar que os movimentos do corpo fsico esto apartados de qualquer inteno simblica do sujeito. Sim, h ausncia de significados, da mesma forma como ocorre nos movimentos reflexos que independem de nosso controle e em situaes extremas em algumas doenas neurolgicas graves como o mal de Parkinson36. Por outro lado elefantes no danam e ces no jogam futebol. Como? J os vi no circo a dar espetculos e fazerem muitos gols. No eles no danam e nem jogam futebol. O elefante, coitado, se move mecanicamente adestrado por estmulo e resposta ao som de uma msica. Os ces, por sua vez, correm e saltam atrs dos bales por que foram, da mesma forma, adestrados pelo seu treinadores e eventualmente tais bales entram nas goleiras para a alegria das crianas. Mas elefantes no danam e ces no jogam futebol por que lhe falta o significado existencial de danar por prazer, por f ou por esttica. Os elefantes no diferenciam um36

A doena de Parkinson uma afeco do sistema nervoso central que acomete principalmente o sistema motor. uma das condies neurolgicas mais freqentes e sua causa permanece desconhecida. Os sintomas motores mais comuns so: tremor, rigidez muscular, acinesia e alteraes posturais.

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samba de um tango ou bolero. J os ces sequer sabem a alegria e o significado de fazer um belo gol de bicicleta e, tampouco, a tristeza de ver este gol anulado por estar em posio de impedimento. 32 Portanto, conclui-se, e importante salientar, que a Cultura Corporal do Movimento Humano trata de determinadas manifestaes dos movimentos que revelam significado simblico. So tcnicas e tecnologias corporais codificadas com significados e intencionalidades que acrescentamos aos determinismos da natureza. So as formas e os modelos de utilizao do corpo humano criadas com o fim de acrescentar funcionalidade natural e determinista algum sentido existencial e simblico. So manifestaes da Cultura Corporal do Movimento Humano, entre outras, os esportes, as danas, as ginsticas, os jogos, as lutas, o teatro, as manifestaes musicais, o circo... 3. A Educao Fsica como vertente pedaggica da Cultura Corporal do Movimento Humano 33 O que Educao Fsica? Bem! Creio que inicialmente ela possa ser definida operacionalmente, pelo menos, por trs distintas formas de manifestao: (a) Uma profisso; (b) uma disciplina escolar e, (c) uma rea acadmica. 3.1- Educao Fsica uma profisso 34 Profisso um trabalho ou atividade especializada dentro da sociedade, geralmente exercida por um profissional. Tais trabalhos e atividades geralmente requerem estudos extensivos e a formalizao de um dado conhecimento37. 35

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Http// pt.wikipedia.org/wiki/Profisso

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Mas a Educao Fsica vai um pouco alm. uma profisso regulamentada. As profisses regulamentadas so aquelas definidas por Lei e com uma normatizao prpria, de direitos e garantias38. 36 Bem! Mas como se deu o processo de regulamentao da Educao Fsica? Nas pginas do CONFEF39 podemos encontrar uma descrio histrica e os textos legais que regulamentam a profisso. Vou me deter aos aspectos legais especificamente do item Do Campo e da Atividade Profissional Vejamos:Art. 9 - O Profissional de Educao Fsica especialista em atividades fsicas, nas suas diversas manifestaes - ginsticas, exerccios fsicos, desportos, jogos, lutas, capoeira, artes marciais, danas, atividades rtmicas, expressivas e acrobticas, musculao, lazer, recreao, reabilitao, ergonomia, relaxamento corporal, ioga, exerccios compensatrios atividade laboral e do cotidiano e outras prticas corporais -, tendo como propsito prestar servios que favoream o desenvolvimento da educao e da sade, contribuindo para a capacitao e/ou restabelecimento de nveis adequados de desempenho e condicionamento fisiocorporal dos seus beneficirios, visando consecuo do bem-estar e da qualidade de vida, da conscincia, da expresso e esttica do movimento, da preveno de doenas, de acidentes, de problemas posturais, da compensao de distrbios funcionais, contribuindo ainda, para consecuo da autonomia, da autoestima, da cooperao, da solidariedade, da integrao, da cidadania, das relaes sociais e a preservao do meio ambiente, observados os preceitos de responsabilidade, segurana, qualidade tcnica e tica no atendimento individual e coletivo.

37 A partir da leitura do artigo 9, por mais boa vontade que eu possa ter, apenas consigo chegar outra pergunta: como definir Educao Fsica neste contexto? 38 Podemos facilmente concluir ao ler o artigo 9 que estamos efetivamente perante um saco sem fundo. Tenho a impresso que a inteno dos legisladores era de colocar como inerente ao papel do professor de Educao38 39

Home / Direito do trabalho http://www.confef.org.br

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Fsica tudo o que nesse mundo se move. Ora! Tamanha pretenso acaba na realidade por implodir o prprio significado da Educao Fsica. O artigo 9 carente de uma perspectiva terica ou epistemolgica consistente. No h uma base conceitual lgica. Por isso tambm, no possvel se visualizar uma definio clara de Educao Fsica. 39 No de estranhar, dessa forma, os freqentes embates que o sistema CREF/CONFEF mantm com inmeras categorias profissionais40. Pois a ambio demasiada de supor a possibilidade de enquadrar todas as manifestaes corporais como sendo Educao Fsica sofre de evidente megalomania e, por suposto, est muito alm do razovel para delimitar uma rea profissional. 40 Mas, o artigo 9 ainda traz outra dificuldade conceitual. O Profissional de Educao Fsica especialista em atividades fsicas (...). Ora! Convenhamos, atividades fsicas? Embora sendo uma expresso muito usada em nossa rea, uma terminologia desajustada e desajeitada para definir nossa profisso. O que so atividades fsicas? Bem! Disso trata o pargrafo 1 do artigo 9.Atividade fsica todo movimento corporal voluntrio humano, que resulta num gasto energtico acima dos nveis de repouso, caracterizado pela atividade do cotidiano e pelos exerccios fsicos. Trata-se de comportamento inerente ao ser humano com caractersticas biolgicas e scio-culturais. No mbito da Interveno do Profissional de Educao Fsica, a atividade fsica compreende a totalidade de movimentos corporais, executados no contexto de diversas prticas: ginsticas, exerccios fsicos, desportos, jogos, lutas, capoeira, artes marciais, danas, atividades rtmicas, expressivas e acrobticas, musculao, lazer, recreao, reabilitao, ergonomia, relaxamento corporal, ioga, exerccios compensatrios 41 atividade laboral e do cotidiano e outras prticas corporais .

Conclui-se da definio que, sendo assim, tudo o que no ser humano se move voluntariamente de responsabilidade do professor de Educao Fsica.40

Quando j havia escrito este texto recebi um e-mail com a seguinte notcia: A Comisso de Educao e Cultura aprovou nesta quarta o Projeto de Lei 1371/07, da deputada Alice Portugal (PCdoB-BA), que determina que os conselhos regionais e federal de Educao Fsica no podem fiscalizar e nem exigir o registro de profissionais de dana, capoeira, ioga, artes marciais e pilates. (Em 20 de junho de 2009). 41 O texto foi por mim sublinhado para destacar a algumas impropriedades conceituais.

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Ora! Atividade fsica pode ser tudo, inclusive estar sentado a digitar essas pginas ou roer as unhas. 41 Absolutamente no concordo com essa tamanha pretenso. Tenho a convico que atividade fsica um termo genrico que pode estar carente de qualquer significado simblico se no for adequadamente caracterizado. Ressalte-se que atividade fsica, como expressa o pargrafo 1 do artigo 9 em sua primeira frase, um conceito retirado de Caspersen e colaboradores (1985)42 no contexto das cincias biolgicas (gasto calrico). Portanto, no se pode atribuir ao profissional da Educao Fsica a tarefa de responsabilizar-se por toda a atividade fsica. Esta exigncia, repito, genrica e no delimita com consistncia o espao de atuao do profissional de Educao Fsica. 42 Por outro lado, um reducionismo lamentvel tratar o esporte, a dana, a ginstica, o jogo (...) simplesmente como atividades fsicas. Essas prticas corporais tm histrias distantes no tempo, tem sentido existencial e significado simblico. So praticas culturais. Vo muito alm das exigncias biolgicas. Elas representam construes de sentidos e manifestam emoes. Danar, praticar esporte ou ginstica, praticar capoeira no igual a lavar roupas ou fugir de um co bravo. 43 Ora! Uma profisso exige uma delimitao precisa. uma atividade especializada. Tem algo que lhe inerente. Da a pergunta que devemos tentar responder: qual o trabalho ou atividade especializada dentro da sociedade, que deve ser exercida pelo profissional da Educao Fsica? 44

Caspersen. C.J., Powell K.E., Christenson, G.M. Physical Activity, Exercise and Physical Fitness. public heath reports,1985.100,2,126-131.

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Minha resposta inicialmente ser breve. Polmica certamente, mas eu espero mais adiante, quando discorrer sobre a formao do professor de Educao Fsica, justificar com maiores detalhes minha conjectura. 45 Advogo a tese de que o trabalho ou atividade especializada do professor de Educao Fsica na sociedade concretiza-se como uma prtica pedaggica. o ensino e/ou o treinamento das diversas manifestaes da cultura corporal do movimento humano. Em outras palavras , em todas as etapas do desenvolvimento humano, uma tarefa de ensino e/ou de treinamento das habilidades motoras, dos esportes, das ginsticas, do fitness, dos jogos populares, das danas folclricas (...) seja na perspectiva da educao, do lazer, da sade, da performance. 46 Enfim! A Educao Fsica a vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humano. 47 Porm, quero ressaltar que nessa perspectiva, como tal, seremos sempre professores. Professores de Educao Fsica. Na escola, no clube, na academia, nos parques, nos postos de sade somos professores. Somos (ou deveramos ser) licenciados43 em Educao Fsica. Outro tipo de formao ou caracterizao profissional , na minha viso, indesejvel. 48 Todavia, importante ressaltar que a Educao Fsica definida como a vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humano no se exime dos compromissos inerentes educao global dos cidados. Ela no se limita a educao motora. Abrange a educao intelectual, moral, tica, cultural, poltica, da sade, do lazer. No obstante seu meio de interveno ser

Considerando que os cursos de licenciatura em nossa pas so aqueles que habilitam para o exerccio da docncia.

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predominantemente as manifestaes da cultura corporal do movimento humano. 3.2. Educao Fsica uma disciplina escolarLei n 10.793, de 1 de dezembro de 2003 Altera a redao do art. 26, 3, e do art. 92 da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que "estabelece as diretrizes e bases da educao nacional", e d outras providncias. O PRESIDENTE DA REPBLICA. Fao saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1 - O 3 do art. 26 da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redao: "Art.26[...] 3 - A Educao Fsica, integrada proposta pedaggica da escola, componente curricular obrigatrio da educao bsica (...). LUIZ INCIO LULA DA SILVA

49 lei. A Educao Fsica uma disciplina escolar. Mas, se por um lado a lei importante na medida em que garante sua presena nas escolas, por outro lado, se exige de ns professores que tenhamos claro qual realmente o papel da Educao Fsica no currculo escolar. 50 Em primeiro lugar, importante ressaltar, que a incluso de qualquer disciplina ou atividade no espao pedaggico da escola justifica-se pelo reconhecimento de seu valor educativo e pela expectativa que ela capaz de proporcionar melhoria da vida das pessoas e da sociedade.Cada disciplina assume a incumbncia pedaggica prpria de contribuir para a formao da pessoa e para a melhoria da sociedade, e f-lo tanto atravs daquilo que lhe nico, que s ela pode oferecer ou visar, como atravs daquilo que partilha com o esforo educativo 44 geral da escola .

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GRAA, A. O Desporto na Escola: Enquadramento da prtica. In. Gaya, A; Marques, A. &Tani,G. Desportos para Crianas e Jovens. Razes e finalidades. Porto Alegre: UFRGS, 2004. p.100.

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Das afirmaes de Amndio Graa acima referidas, decorrem duas questes evidentes: 1. Qual a especificidade de contedos com valor educativo que a Educao Fsica pode oferecer a escola? 2. O que a Educao Fsica em seus contedos pode partilhar com o esforo educativo geral da escola? 52 Em primeiro lugar preciso afirmar a relevncia da Educao Fsica como disciplina curricular. A Educao Fsica escolar, no meu entender, constitui-se na disciplina que no interior da escola trata da Cultura Corporal do Movimento Humano. Como tal cabe a Educao Fsica no espao escolar intervir na criao, configurao e modelao de sentidos para as diversas manifestaes da Cultura Corporal do Movimento Humano. 53 A Educao Fsica por essncia educao e, como tal, atravs do ensino e do treino das manifestaes da Cultura Corporal do Movimento Humano (esporte, dana, ginstica, jogos...) se constitui como uma disciplina normativa e formativa de valores, de conhecimentos, de atitudes e habilidades. Portanto, a Educao Fsica se distingue dos outros contedos escolares, no que concerne sua tarefa educativa primordial, pelo fato de educar, formar, socializar e possibilitar experincias a partir das distintas manifestaes da corporalidade. A partir do trato especfico com as prticas corporais inerentes a Cultura Corporal do Movimento Humano. 54 Compartilho com Forquin45 e Bracht a idia de que o que justifica fundamentalmente o empreendimento educativo a responsabilidade de ter que transmitir e perpetuar a experincia humana considerada como cultura. As manifestaes da cultura constituem-se no contedo substancial da educao sua fonte e sua justificao ltima46. Como tal, eu mantenho a convico que45 46

Citado por Bracht op. cit., p.25 Soares. C. L. et al. Op. Cit, p. 50.

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no mbito da educao fsica sero as manifestaes da Cultura Corporal do Movimento Humano sua fonte e sua justificao ltima. 55 No entanto, como o fez com pertinncia Mauro Betti47, nunca demais ressaltar uma observao relevante cuja devida incompreenso motivo de interpretaes equivocadas. Quando se afirma que a Educao Fsica uma disciplina escolar cujos contedos so as manifestao da cultura corporal do movimento no se quer afirmar absolutamente que os conhecimentos provenientes das reas das cincias fsicas e biolgicas no esto presentes ou no so relevantes. Apenas, afirma-se que eles, tais como os contedos das cincias humanas, no so suficientes a partir de suas ticas especializadas para a compreenso, por exemplo, da complexidade dos fenmenos que envolvem o esporte, a dana, as lutas, etc. 56 Enfim, o que pretendo afirmar que o esporte, a dana, a ginstica, os jogos so os contedos da Educao Fsica Escolar. Por suposto, eles devem ser dimensionados pedagogicamente. O que significa objetivamente que, para alm de necessariamente exercitar os corpos e lhe proporcionar bons nveis de aptido fsica e habilidades motoras, deve desenvolver valores, conhecimentos, atitudes e habilidades pessoais e sociais. 3.3. Educao Fsica uma rea acadmica (As Cincias do Movimento Humano) 57 A Educao Fsica tem sido ao longo dessa monografia definida como a vertente pedaggica da Cultura Corporal do Movimento Humano. Sublinhei em muitas passagens que a Educao Fsica uma prtica pedaggica. Educao Fsica educao. Em todos os espaos: nas escolas, nos estdios, nos campos, nos estdios, nas academias, nas piscinas, nos parques. Em todas as

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Betti, Op. Cit., p.1.

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formas de expresso educao: para o lazer, para a sade, para a performance. 58 Destarte, embora haja tantas reivindicaes para que a Educao Fsica seja reconhecida como uma disciplina cientfica, eu tenho claro: a Educao Fsica no uma cincia. Digo mais: tentar transformar a educao fsica numa cincia um esforo de muitos que, influenciados por um positivismo arcaico, imaginam que s o conhecimento cientfico detentor da verdade e, como tal, imaginam que valorizar a educao fsica passa por necessariamente torn-la uma disciplina cientfica. 59 Ledo engano. Como adiante pretendo argumentar, a tentativa de tornar a Educao Fsica uma cincia esfarelou seu sentido. Desfez sua identidade. Se por um lado, fez avanar o conhecimento nas disciplinas cientficas tradicionais, a fisiologia, a biomecnica, a psicologia, a antropologia, a sociologia, a filosofia aplicadas s manifestaes da cultura corporal do movimento humano, o que muito positivo, por outro lado, ergueu fronteiras to pouco porosas entre estas disciplinas que deixou de haver dilogo sobre a prpria educao fsica. Fez-se uma nova Torre de Babel. 60 A disciplina uma categoria organizada dentro do conhecimento cientfico; ela instituiu a diviso e a especializao do trabalho e responde diversidade das reas que as cincias abrangem. Embora inserida em um conjunto mais amplo, uma disciplina tende naturalmente autonomia pela delimitao das fronteiras, da linguagem em que ela se constitui, das tcnicas que levada a elaborar e a utilizar e, eventualmente, pelas teorias que lhe so prprias. MORIN48

48

Morin, E. Uma Cabea Bem-Feita. Traduo de Elo Jacobina (5 Ed.). Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001, p. 105.

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61 Nossas faculdades esto repletas de cientistas disciplinares. So professores de educao fsica que se especializaram. Estudaram e se transformaram em doutores em fisiologia, biomecnica, psicologia, antropologia, sociologia, filosofia do esporte, da atividade fsica, do exerccio,..., mas que, no entanto, raramente conversam sobre educao fsica em sua viso mais ampla. 62 Nada obstante. Reconhecer que a educao fsica no uma disciplina cientfica, no me leva a afirmar que devemos expulsar nossos cientistas das faculdades de educao fsica ou rejeitar a relevncia do conhecimento cientfico para o desenvolvimento da prpria Educao Fsica. Isto seria uma insanidade. Trata-se, isto sim, de planejar de forma epistemologicamente justificada como essas vrias disciplinas cientficas podem se organizar de modo a oferecer subsdios para a configurao de conhecimentos cientficos eficazes e capazes de assegurar uma formao consistente para que os professores de educao fsica possam exercer sua prtica pedaggica com qualidade. Em outras palavras, trata-se de conceber um campo de pesquisa cientfica aplicada educao fsica. Um campo para investigaes cientficas transdisciplinares sobre as diversas manifestaes da cultura corporal do movimento humano. 63 Um campo cientfico, uma rea acadmica onde o objetivo obter de modo sistemtico, uma compreenso racional e empiricamente fundamentada dos fenmenos da cultura corporal do movimento humano. Compreenso que inclui relatos do que so os fenmenos da corporalidade humana; de por que so como so; das possibilidades que esses fenmenos permitem em virtude de suas propriedades subjacentes e das interaes em que podem se envolver, e de como tentar realizar tantas possibilidades49.

49

Adaptado de LACEY, 2003. In. SANTOS, B.S. Conhecimento Prudente para uma Vida Decente. Um Discurso sobre as Cincias revisitado. Afrontamento, Santa Maria da Feira. 2003, p. 453

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64 Necessariamente, um campo transdisciplinar de conhecimentos, onde se possa cercar a corporalidade humana com todas as ferramentas intelectuais e experimentais em simultneo e, em seguida, com base em seus resultados, elucidar seus mecanismos, interpretar suas emoes e traduzir sua significao bio-psico-socio-cultural50. Uma bioantropologia51. Um dilogo entre o biolgico e o cultural, entre o quantitativo e o qualitativo, entre o objetivo e o subjetivo.Assim, o corpo vivido por mim e para mim aparece como um intermedirio, entre o sentir e o representado, entre o mundo e eu. Desenha-se uma dupla experincia: a da objetividade, o para c do corpo, da epiderme, revelao de que ele existe no exterior, e a da subjetividade, o dentro do corpo, a das 52 emoes .

65 Enfim! As Cincias responder do aos Movimento problemas Humano. Um campo de conhecimentos. Saberes oriundos de diversas reas cientficas que se preocupam em provenientes das diversas expresses corporais da cultura (os esportes, as danas, os jogos, as lutas, as terapias corporais...). Um campo de pesquisa cujo compromisso o de analisar, interpretar, propor teorias cientficas relacionadas com o ensino, o treino, a sade, o lazer e, compreend-las luz dos sentidos e valores, das condies e possibilidades, das normas e razes da educao e formao. 4- Licenciatura e Bacharelado. As idiossincrasias53 na formao do profissional de educao fsica no Brasil 66

50

Adaptado de BERTHOZ, A. 2001. In. PESSIS-PASTERNAK, G. A Cincia: Deus ou o Diabo. So Paulo, UNESP, 2001, p.91. 51 VARELA, F. Prefcio de Francisco Varela Segunda Edio. In. Maturana, A; Varela, F. De Mquinas e seres Vivos. Porto Alegre: Artes Mdicas 1997. 52 Braunstein, F.; Ppin, J. F. O Lugar do Corpo na Cultura Ocidental. Lisboa: Instituto Piaget, 2001, p.138. 53 Idiossincrasias: maneira de ver, sentir, reagir, prpria de cada pessoa. . Cf. Dicionrio Eletrnico Aurlio Sculo XXI.

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As regras esto confusas. Os conceitos pouco claros. H um enorme vcuo de conhecimentos. H interesses corporativos em disputa. Misturam-se ideologias, fundamentalismos e muita desinformao. Tudo se confunde. Bacharelado, graduao plena, licenciatura, licenciatura ampliada, licenciatura plena (...). Mas, afinal! O que Educao Fsica? Ora! No sabemos bem o que , mas, j temos dois cursos de formao. Licenciatura e bacharelado. So dois cursos que, como refere Jorge Steinhilber, Oferecem conhecimentos e habilidades distintas54.

67 Todavia! Nada to distante realidade. Vejamos o que ocorre na UFRGS. Temos dois cursos (na realidade trs, pois h um terceiro currculo ainda em extino). Bem, mas, vamos considerar pelo menos dois cursos. Tais cursos tm entradas distintas (inscrio no vestibular que se excluem mutuamente). Mas, bastam os alunos adentrarem aos trios da universidade, que iro compartilhar da imensa maioria das aulas e dos professores. Seguem juntos por um longo percurso. Separam-se nos estgios, nas disciplinas ministradas pela faculdade de educao e em trs ou quatro disciplinas ministradas na prpria esef55. Convenhamos uma situao esdrxula56. Duas entradas distintas, praticamente o mesmo curso, e dois ttulos incompatveis. Sim! Incompatveis j que, como refere Steinhilber, os graduados em educao fsica oriundos do bacharelado e da licenciatura devem assumir intervenes profissionais distintas57. uma esdrxula diplopia58. Parece que andamos todos embriagados a ver imagens desfocadas e em dobro. Bem! No consigo

Steinhilber, J. Licenciatura e/ou Bacharelado. Opes de graduao para interveno profissional. Educao Fsica. Ano VI, n 19, Maro de 2006. 55 Fato semelhante ocorre com os cursos de licenciatura e bacharelado em cincias biolgicas em nossa Universidade. No entanto, l prevaleceu o bom senso. A entrada no curso nica e, praticamente o licenciado um bilogo (tal como o bacharel) que, no entanto ao cumprir as exigncias da Regulamentao das Licenciaturas est tambm apto para lecionar na educao bsica. Nada to simples, claro e pertinente. 56 Esquisito, extravagante, excntrico. Cf. Dicionrio Eletrnico Aurlio Sculo XXI 57 Idibid. 58 Viso dupla de um objeto; ambliopia. . Cf. Dicionrio Eletrnico Aurlio Sculo XXI.

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ver este filme de outra forma. Ns estamos mergulhados num mar de contradies cujas ondas vo acabar por nos afogar a todos. 68 Mas, vou tentar navegar neste mar revolto em busca de bons ventos. Ventos que me dem algum rumo. Uma direo que, pelo menos, seja fruto de algum instrumento de orientao. Um astrolbio59, uma bssola, um mapa. Em outras palavras, procuro estruturar minhas idias a partir de uma justificativa terica. Um quadro de referncias. Um conjunto de princpios com a pretenso de constituir uma doutrina60 orientadora (seria pretenso demasiada afirmar um conjunto de princpios filosficos). Um discurso que tenha coerncia lgica e consistncia emprica capaz de fundamentar minhas posies e, como tal, sugerir subsdios para o debate sobre a formao em educao fsica em nossa UFRGS e, se for possvel, desculpem a pretenso, colaborar com o debate ao nvel nacional. Realmente, eu estou convicto de que essa dupla formao do profissional de educao fsica, do jeito que se pretende justificla, um estrupcio61. 69 Minha doutrina orientadora, tal como referi repetidamente ao longo deste ensaio, conceber a educao fsica como vertente pedaggica da cultura corporal do movimento humano. Educao fsica como uma prtica pedaggica. Em todas as suas manifestaes uma prtica pedaggica... Educao fsica unificada sob o propsito maior da educao e formao de homens e mulheres. Educao Fsica como meio de educao atravs das manifestaes da cultura corporal do movimento humano. Educao para a promoo da sade, do lazer, da performance. Educao Fsica indispensvel na formao integral de cidados e cidads. Educao Fsica um curso de graduao em licenciatura. Mas, uma licenciatura muito alm desta que nos pretendem59

impor.

Muito

alm

dessa

infeliz

inteno

de

reduzi-la

O astrolbio era um antigo instrumento utilizado na Idade Mdia para medir a altura dos astros e auxiliar a navegao. 60 Conjunto de princpios que servem de base a um sistema de idias. 61 Estrupcio: despropsito, despotismo, coisa esquisita, fora do comum (...). Cf. Dicionrio Aurlio Sculo XXI.

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exclusivamente formao de professores da educao bsica. Defendo a tese de uma licenciatura ampla62 que, como sugere o termo, nos prepare para a competente atuao em todos os espaos onde se manifestam preocupaes com a educao e formao de crianas, jovens e adultos atravs da cultura corporal do movimento humano. definitivamente importante sublinhar que o campo de atuao do professor de educao fsica, embora possa encontrar prioridade na instituio escolar, mais especificamente no contexto da educao bsica, porm, no se restringe a esta especificidade. A educao fsica como prtica pedaggica e fenmeno educativo transcendem o espao da escola inserindo-se em outros espaos sociais no fomento da formao da cultura corporal do movimento humano. 70 Como mera ilustrao ao debate sobre as definies de licenciatura e bacharelado, descrevo o significado da licenciatura e do bacharelado em Portugal e Moambique que, como veremos completamente diferente das nossas interpretaes. Nestes pases a licenciatura corresponde ao diploma de nvel universitrio. Para todo curso universitrio atribudo o ttulo de Licenciado. Licenciado em engenharia, em arquitetura, em medicina, em desporto. J o bacharel um diplomado em curso superior. Todavia, o curso superior no tem o status de curso universitrio. O bacharel no est no mesmo nvel acadmico que o licenciado. O bacharel, por exemplo, no tem acesso aos cursos de doutorado. Enfim, a licenciatura e o bacharelado so nveis de formao distintos63. 71 No Brasil, diferentemente de Portugal e Moambique, licenciatura e bacharelado tem o mesmo nvel acadmico. Ambos so reconhecidos como cursos de graduao. A graduao, nos sistemas de educao superior inspirados no modelo francs se refere ao primeiro ttulo de formao superior62

Licenciatura ampla termo adotado a partir das Propostas Encaminhadas Assemblia Geral de Estudante da Escola de Educao Fsica da UFRGS durante sua V Semana Acadmica. 2009. 63 Essa diferena cultural na interpretao dos conceitos de bacharelado durante algum tempo trouxe srios problemas a estudantes brasileiros, pois ao apresentarem seus diplomas de bacharel no eram aceitos em programas de doutorado na Europa (Portugal e Espanha...).

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recebido por um indivduo64. Ambos, bacharelado e licenciatura do acesso aos cursos de ps-graduao senso-estrito (mestrado e doutorado). Todavia, no Brasil os cursos de licenciatura habilitam para o exerccio da docncia; para a formao de profissionais da educao. Formao de professores65. Todavia, a partir da Resoluo CNE/CP 1 de 18 de fevereiro de 2002 que Institui as Diretrizes Curriculares para a Formao de Professores da Educao Bsica, em nvel superior, curso de licenciatura, de graduao plena, instaurou-se uma nova interpretao sobre a licenciatura. Foi possvel a criao de cursos de licenciatura exclusivamente para atender a formao de professores da educao bsica. Muitos cursos de licenciatura assim se constituram, por exemplo, na rea da histria, da fsica, da biologia, da matemtica. Evidentemente nada impede que se criem licenciaturas para atender esta estrita finalidade. 72 No obstante, o que eu no aceito, e disto tenho plena convico, que todo o curso de licenciatura deva, necessariamente, tornar-se um curso exclusivamente de formao de professores da educao bsica. Convenhamos pretender impor esta idia como verdade absoluta subestimar o nosso bom senso. Para contestar essa idia reducionista basta imaginarmos as diversas expresses da educao artstica como, por exemplo, a msica, a dana. A educao artstica, assim como a educao fsica, no pode limitar seus cursos de licenciatura a essa estreita viso de formao de professores exclusivamente para a educao bsica sem descaracterizar parte significativa de sua tarefa educacional na sociedade. Quem vai dar aulas em escolinhas de artes, em conservatrios de msica, em centros comunitrios, em programas sociais, em ONGs? No sero professores? Que diferena essencial se manifesta nas habilidades especficas de um professor de msica, artes plsticas ou esportes na educao bsica e num curso de iniciao s artes ou esportes da prpria escola no turno oposto s aulas? Ora! Nesta perspectiva absurda seria necessrio contratar licenciados para ensinar msica ou esportes nas aulas de educao artstica e educao fsica no currculo escolar e64 65

Cf. Wikipdia. http://pt.wikipedia.org. Consultado em 05/08/2009. E, nestes casos, os conceitos no limitam a docncia ao mbito do educao bsica.

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contratar bacharis para ensinar msica ou esportes nesta mesma escola no turno oposto s aulas numa atividade extracurricular. um despropsito! Seria de se esperar, pelo menos, que os argumentos mantivessem coerncia lgica e consistncia emprica. Mas, isto no ocorre absolutamente em nosso pas, principalmente na rea da educao fsica onde interesses corporativos se imiscuem no debate acadmico. - Como pretendo demonstrar. 73 O que pretendo demonstrar que no caso dos cursos de formao em Educao Fsica no Brasil estamos navegando sem bssola. Creio que, a partir de algumas interpretaes impertinentes da Resoluo CNE/CP 1, 1 de fevereiro de 2004; da Resoluo N7, de 31 de maro de 2004 e da Resoluo CNE/CES, de 6 de abril de 2009, a meu ver, interpretaes comprometidas ideologicamente com o corporativismo de classe, formularam-se diretrizes que carecem de fundamentao epistemolgica, de respeito tradio histrica e cultural da educao fsica brasileira. E mais, neste caminho, onde os interesses corporativos suplantaram interesses acadmicos, foram realizadas aes que resultaram em graves prejuzos prpria identidade da educao fsica como rea acadmica. Vejamos! Por orientao principalmente do Sistema CREF/CONFEF foram criados dois cursos de educao fsica de formao universitria. Isto, no contexto da minha doutrina lamentvel. Lamentvel sobre todos os aspectos. Traz prejuzo aos estudantes, primeiro por que vem extremamente reduzido seu campo de atuao profissional; segundo porque os estudantes so submetidos obrigatoriamente a decidir seu rumo profissional precocemente (antes do vestibular quando sequer tem informaes concretas sobre a carreira futura). Alm de trazer prejuzos s faculdades que tem que ajeitar dois cursos, que na essncia so idnticos; e aos professores que j no sabem quem so seus alunos em sala de aula. Isto sem contar, volto a ressaltar, que a prpria identidade da profisso ficou dividida entre professores (licenciatura) e profissionais (bacharelado) em educao fsica. 74

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Para demonstrar o pouco rigor terico na concepo das diretrizes que envolvem os debates sobre formao dos profissionais da educao fsica, principalmente sob a orientao do Sistema CREF/CONFEF, eu vou me valer de um texto do meu amigo Jorge Steinhilber - presidente do CONFEF. Quero, com isso, sugerir que nossos colegas, a partir da leitura dos documentos legais sugerem concluses que esto muito alm do logicamente prudente. Vejamos alguns exemplos:De modo geral so duas as opes de sada para todo o ensino superior: a licenciatura e o bacharelado. Cada um deles com perfil de formao e interveno profissional prprios. As licenciaturas visam preparar o profissional para atuar como docente na educao bsica, j os bacharelados excluem de sua 66 formao a possibilidade de atuar na educao bsica .

Mesmo sem considerar que tal afirmao no plenamente correta, tendo em vista que o ensino superior tambm prev cursos seqenciais e de extenso (ver quadro da estrutura do ensino superior em anexo), devo considerar que a atual estrutura dos cursos de formao em educao fsica segue este modelo. Licenciatura e bacharelado. o caso de nossa UFRGS. As diretrizes sugeridas por Steinhilber, por sua vez, so provenientes da Resoluo CNE/CP 1 de 18 de fevereiro de 2002 que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Formao de Professores da Educao Bsica, em nvel superior, curso de licenciatura, de graduao plena. , da mesma forma, relevante assinalar que esta mesma resoluo em seu Art. 7 prev no item I, que a organizao institucional da formao dos professores, a servio do desenvolvimento de competncias dever ser realizada em processo autnomo, em curso de licenciatura plena67, numa estrutura com identidade prpria. Dessas regulamentaes deve-se concluir, e isto parece claro, que a formao de professores para a educao bsica em todos os nveis restrita aos cursos de licenciatura68. - Estamos de acordo.

Steinhilber, J. Op. cit. p.19. Licenciatura plena outro conceito que foi subvertido pela lgica do sistema CREF/CONFEF, e curiosamente assumido pela comunidade discente. Que fique claro, na estrutura do sistema educacional brasileiro a terminologia licenciatura plena para diferenciar-se da licenciatura curta. Uma licenciatura de curta durao. Em educao fsica a licenciatura curta ocorreu, por exemplo, nos anos 70 para atender o Programa de Expanso e Melhoria do Ensino Mdio (PREMEM). Portanto, licenciatura plena no tem o significado de um licenciado que pode atuar tanto na escola como fora dela. 68 Todavia, no podemos deixar de referir a existncia dos cursos sequencias que fazem parte da estrutura do ensino brasileiro. So os institutos superiores que licenciam professores para atuar nas sries iniciais da educao bsica (algo semelhante ao antigo curso de Magistrio Normal).67

66

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75 Mas, no entanto, ao reconhecer que a formao de professores para a educao bsica restrita aos cursos de licenciatura, no se deve concluir, por outro lado, que a licenciatura deva limitar-se exclusivamente formao de professores para atuar na educao bsica, como sugere Steinhilber. Eis uma questo da maior relevncia.Em resumo, so duas formaes distintas com intervenes profissionais separadas. Para o LICENCIADO exclusivamente atuar especificamente na componente curricular Educao Fsica 69 na educao bsica (...) .

76

.

Porque dividir a educao fsica em bacharelado e licenciatura se, historicamente, ns sempre pudemos atender s exigncias do trabalho na escola e fora dela com uma formao unificada? Mas, o mais relevante, em minha opinio, o fato que a Resoluo das licenciaturas no foi criada para regulamentar educao fsica. Ela foi criada para valorizar as licenciaturas e dar um ordenamento mais eficaz a educao bsica. Mas, minha opinio, tal Resoluo foi rpida e estrategicamente incorporada s prerrogativas do sistema CREF/CONFEF que vinha, na poca, enfrentando problemas com os sindicatos e conselhos de professores alm, evidente, do Colgio Brasileiro de Cincias do Esporte que no aceitavam a prerrogativa do sistema em exigir a regulamentao profissional dos professores em atuao no ensino escolar. Eis, um exemplo:A afirmao do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), que no concorda com a interpretao dada pelo Conselho Federal de Educao Fsica de que, independente da funo exercida pelo profissional de educao fsica, o registro obrigatria. Tal interpretao no a do Ministrio da Educao, nem tampouco, de vrios sindicatos que representam professores, em todo o pas (...). O Sinpro/RS lembra que o Ministrio da Educao, atravs de sua Consultoria Jurdica, expediu parecer (de n 278/2000/CONJUR/MEC), baseado em pareceres anteriores (tais como: PJ n 004/2000, 75/99/CONJUR/MEC), posicionando-se contrrio obrigatoriedade de registro nos Conselhos Profissionais, quando o exerccio da atividade for de 70 magistrio .

69 70

Id. Ibid., p. 20 (o sublinhado de minha responsabilidade) file:///C:/Documents%20and%20Settings/admin/Desktop/simpro.asp

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Na minha avaliao, a Resoluo das licenciaturas, interpretada por interesses corporativos, abriu uma brecha e deu argumentos que permitiu a criao de um profissional de educao fsica, o bacharel, este sim, submetido s obrigaes e deveres necessariamente regulamentados pelo sistema CREF/CONFEF. Legitimou-se, dessa forma, a criao do sistema CREF/CONFEF para regulamentar as atividades do profissional (no professor) de educao fsica. Ou ser que a terminologia de interesse do sistema CREF/CONFEF, denominada e insistentemente repetida, de profissional de educao fsica, que substituiu a histrica denominao de professor de educao fsica, assim to imparcial? Na realidade se implodiu com a formao unificada do professor de educao fsica por interesses corporativos. Na essncia inventou-se um profissional professor e outro profissional no professor71, o que um disparate. Isto lamentvel, e pagaremos um alto preo num futuro prximo se no retornarmos ao bom senso. Destitumos a educao fsica de uma identidade profissional para atender interesses corporativos. De minha parte, continuo cheio de orgulho me apresentando como professor de educao fsica. 77 H um tipo de homem, permitam-me dizer, que no gosta de profisso, justamente porque ele sabe que tem vocao NIETZSCHE72 78 Afirmei em pargrafo anterior que essa dicotomia entre licenciado e bacharel um instrumento de legitimao do sistema CREF/CONFEF. Ora! Esta hiptese faz sentido. Principalmente quando se percebe os critrios (melhor seria dizer a falta de critrios) que definem a licenciatura e o bacharelado. Vejamos o texto do Prof. Steihilber.

E em verdade, esta uma ao sem consistncia, posto que, salvo melhor juzo, a funo de regulamentao da profisso se efetiva, no pelo ttulo do profissional, se licenciado ou bacharel (muito menos pela cor da carteira profissional), mas sim pela funo que exerce. Em outras palavras, independente de ser licenciado, sempre que o professor de educao fsica atuar fora do sistema escolar ele dever necessariamente submeter-se regulamentao da profisso que, como sabemos fiscalizada pelo sistema CREF/CONFEF. 72 Nietzsche, F. Crepsculo dos dolos, ou, Como se filosofa com o martelo Traduo de Paulo Cesar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.59.

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Licenciatura exclusivamente atuar na componente curricular Educao Fsica na educao bsica e ao bacharelado impossibilitada a atuao docente na educao bsica.

Define-se, por um lado, a licenciatura por expressa incluso no sistema da educao bsica e, por outro lado define-se o bacharelado por excluso, ou seja, tudo que no educao bsica. gritante e, para mim, irritante a falta de uma lgica coerente e teoricamente fundamentada. 79 Mas o mais lamentvel, no meu ponto de vista, a publicao de um novo documento legal que d fortes argumentos em favor da tese da fragmentao de nossa formao. Trata-se da Resoluo CNE/CES, DE 6 DE ABRIL DE 2009 que dispe sobre carga horria mnima e procedimentos relativos integralizao e durao dos cursos de graduao em Biomedicina, Cincias Biolgicas, Educao Fsica, Enfermagem, Farmcia, Fisioterapia, Fonoaudiologia, Nutrio e Terapia Ocupacional, bacharelados, na modalidade presencial. Nesta nova regulamentao o curso de bacharelado em educao fsica deve ter uma carga mnima de 3200 horas (horas relgio) e completar-se em quatro anos. 80 Esta regulamentao , na minha tica, lamentvel porque definitivamente cria de direito dois profissionais de Educao Fsica. O professor e o profissional. Mas lamentvel, principalmente, por que esse famigerado bacharelado descaracteriza plenamente nossa identidade. importante salientar que nossa formao no somente tcnica e cientfica. Diferentemente da biomedicina, da biologia, da fisioterapia, da fonoaudiologia, da enfermagem, da nutrio, da farmcia e da terapia ocupacional que podem ser exercidas profissionalmente sem a necessidade de formao pedaggica, na educao fsica esta possibilidade inexiste. Ns somos professores em todas as nossas intervenes. No reconhecer isto implodir com o prprio conceito de EDUCAO FSICA. 81

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Isto tudo muito grave e resultam em conseqncias srias para todos ns professores de educao fsica. Vou dar um exemplo muito preciso. Com essa nova regulamentao caracteriza-se o bacharel em educao fsica como um profissional claramente localizado na rea da sade. Podemos, portanto, inferir que enquanto o bacharel mantm-se na rea da sade ele tem prerrogativas distintas do licenciado em educao fsica que dever, por suposto, manter-se na rea da educao. Bem, mas se formos observar com seriedade as atividades de pesquisa cientfica em nosso pas, a educao fsica como um todo, bacharis e licenciados, est na rea de cincias da sade. Isto ocorre tanto no CNPq, na CAPES e FAPERGS. Sendo assim, legitima-se um problema que nos vem atormentado a todos os professores que fazem pesquisa e lecionam nos programas de ps-graduao. Qual seja: os pesquisadores das cincias humanas sero irremediavelmente excludos do acesso a financiamento de pesquisa. Ou ainda. O que mais grave serem excludos dos prprios programas de ps-graduao por impossibilidade de se adequarem as exigncias dos comits da rea da sade. Em outras palavras, os professores que pesquisam com preocupaes na formao pedaggica, ou nas cincias sociais e humanas no tero espaos para reivindicar apoio na rea das cincias da sade e tampouco para publicao de seus estudos. L ser o espao dos bacharis. E, por outro lado, o bacharel por necessidade de ofcio, ficar cada vez mais longe da educao fsica, tornando-se um pesquisador cada vez mais restrito fisiologia, bioqumica, biomecnica, etc., e, provavelmente, esquecendo-se do real papel social da educao fsica. , mais uma vez, lamentvel. 82 incrvel! um desatino! Estamos fora de nosso prprio tempo. Quando o paradigma do saber em nossa contemporaneidade pretende educar educadores de modo mais sistmico, isso , gerar intelectuais polivalentes, abertos, capazes de refletir sobre a cultura em sentido amplo. Quando se torna urgente encorajar professores de todos os nveis a religarem suas disciplinas, assim como investir em reformas curriculares que propiciem uma reflexo sobre metas, pontos de vista que rejuntem a natureza e a cultura, homem e cosmos e edifiquem uma aprendizagem cidad capaz de repor a dignidade da 39

condio humana73, a educao fsica no Brasil segue na contramo emitindo regras e normas que levam disjuno e fragmentao do conhecimento. 83 Mas porque o sistema CREF/CONFEF jamais teve a explcita preocupao de propor a unificao da profisso em torno da licenciatura, respeitando a tradio histrica da educao fsica?74 Eu insisto, no foi a Regulamentao das Licenciaturas que imps a fragmentao da educao fsica em dois cursos distintos. Ela no impede que se tenha uma licenciatura ampliada. Onde so satisfeitas as exigncias do CNE para a educao bsica e se contemple, sem qualquer prejuzo formao unificada. Minha tese a de que interesses corporativos e mtodos pragmticos atropelaram o debate acadmico, a realidade concreta, o devir histrico e, desta forma, impuseram a fragmentao unidade de nossa profisso. Esta minha conjectura, assim, como foi possvel demonstrar. 84 Tenho uma curiosidade! Sendo to iluminada a idia de fragmentar a educao fsica em licenciatura e bacharelado, em profissional e professor, etc., porque s ns no Brasil discutimos essa alternativa? Seremos ns brasileiros to geniais? Ou andaro os demais povos do mundo distrados? 5- Em defesa de uma formao unificada do Professor de Educao Fsica em torno da Licenciatura (ou, em defesa de uma Licenciatura Ampliada) 85 Esclarecimento. No quero propor um novo curso. No ofereo uma nova alternativa para juntarem-se s demais. Utilizo a expresso Licenciatura Ampliada - que adotei a partir da leitura do documento dos discentes apenas para assinalar que a licenciatura que defendo no se reduz, de modo algum,

73

Edgard Assis Carvalho. In. Morin, E. A Cabea Bem-Feita. Rio de Janeiro: Bertand Brasil. 2001, orelha da segunda capa. 74 Porque a proposta do graduado em educao fsica que chegou a ser formulada e discutida ficou pelo caminho esquecida, quem sabe, em alguma gaveta fechada a sete chaves?

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formao de professores para o ensino mdio. Defendo radicalmente uma formao nica: Licenciatura em Educao Fsica. 86 Formar professores de educao fsica este deve ser o objetivo de nossa ESEF-UFRGS. Mas, professores de educao fsica numa viso ampla. Professores que sejam capazes de perceber, interpretar e atuar no largo campo de viso que a educao fsica permite ver. Formar um licenciado. Mas, um licenciado que ultrapasse solenemente as fronteiras impostas por esta viso estreita que o limita formao de professores de educao bsica. Um licenciado de viso ampliada. Um professor competente para atuar em todas as etapas do desenvolvimento humano infncia, adolescncia, idade adulta; nas diversas reas de atuao - na escola, no clube, na academia, na piscina, no estdio, no ginsio, nas ruas e parques -; nas diversas expresses da cultura corporal do movimento humano - esporte, dana, ginstica, lutas, jogos -; com intencionalidades diversas - lazer, sade, performance -. No vejo de outra maneira um professor de educao fsica.

87 incrvel. bvio. Em todo lugar do mundo assim. Um Professor de Educao Fsica. Mas, nossa inteligncia superior, nossa criatividade tupiniquim resolveu que aqui na terra de Cabral deveria ser diferente. Seriam duas profisses. Um licenciado s para a escola de educao bsica e um bacharel para dar conta de todo o resto. um desatino! Nada prejudica mais nossa cultura do que o excesso de pretensiosos mandries e humanidades fragmentrias. (NIETZSCHE)75. 88 Um professor de educao fsica sempre, em todas suas atividades um educador, um pedagogo. uma miopia severa acompanhada deNietzsche, F. Crepsculo dos dolos, ou, Como se filosofa com o martelo Traduo de Paulo Cesar de Souza. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.57.75

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daltonismo crnico e surdez absoluta julgarem o professor como somente aquele que atua na educao formal. Um professor de msica, por exemplo, pode ensinar flauta doce em qualquer espao cultural. Na escola, no conservatrio em praa pblica. E, indiferentemente do local, ele est sendo professor com todas as responsabilidades de desenvolver as tcnicas do instrumento, os contedos da teoria musical, alm da educao do sentido esttico e compromisso moral. um professor. Assim deve ser em relao ao professor de educao fsica. Independente do local onde atua, seu compromisso pedaggico est inerente a sua prtica. O ensino do esporte na escola no deve ter pressupostos pedaggicos distintos do ensino do esporte num programa de insero social numa comunidade carente. Somos sempre professores. Por isso nossa formao deve ocorrer num curso de licenciatura. O bacharelado76 no pode formar um professor de educao fsica. 89 Bem! Creio j ter deixado suficientemente claro minha posio em relao defesa da formao unificada em torno de uma licenciatura ampliada para professores de educao fsica. Devo seguir adiante, outros muitos temas deveremos pautar para nosso debate fraterno e democrtico. Tratar da reformulao curricular envolve muitas outras questes. 90 Por exemplo, a concepo de currculo. Vamos manter esse currculo multidisciplinar. estrutura Nossos77

currculos por um

atuais conjunto

so de

multidisciplinares disciplinas que

(ou

pluridisciplinares ). Entendo por currculos multidisciplinares aqueles cuja constituda atuam independentemente uma das outras. Pode ser entendida como uma simples associao de especialistas em diversas disciplinas que concorrem para umaQuando penso na possibilidade de um bacharelado em educao fsica s vejo uma possibilidade. Um bacharel em pesquisa. Algum que vai dedicar-se exclusivamente ao trabalho cientfico. No vai dar aulas. Vai fazer pesquisa. Assim, mais ou menos, como o curso de biomedicina em relao ao de medicina. 77 Considero o conceito similar ao de pluridisciplinaridade Alguns autores divergem. Consideram a diferena entre pluri e multi. Multidisciplinaridade seria a justaposio de duas ou mais disciplinas, sem relaes entre elas e nenhuma coordenao. A pluridisciplinaridade j admitiria uma certa cooperao mas sem coordenao dessas relaes. (CALLONI, 2006, p.65).76

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realizao comum, mas sem que cada disciplina tenha que modificar significativamente a sua prpria viso dos objetos, seus prprios mtodos e linguagem. uma justaposio de conhecimentos78. 91 Ou deveremos propor um currculo transdisciplinar. Defino a transdisciplinaridade como um sistema aberto. Distinto da viso multidisciplinar, o olhar transdisciplinar no resulta em uma reduo de um campo disciplinar a outro, nem numa soma de metodologias ou na postulao de uma metametodologia, tampouco, na criao de algo absolutamente novo (uma nova disciplina ou uma nova cincia). A transdisciplinaridade articulao de saberes. efetivamente um gerenciamento de saberes. A transdisciplinaridade gera saberes, tanto abrangentes como particulares, mas configurando um sistema coerente e consistente, como tais, fortemente contextualizados segundo as situaes, os objetos e escopos da prtica pedaggica79. Creio, a transdisciplinaridade a abordagem capaz de justificar currculo de formao de professores que d sentido s formas de saber sobre as manifestaes da cultura corporal do movimento humano. Um saber estruturado em forma de rede. Um sistema sem hierarquia pr-definida e sem espaos com fronteiras rgidas. Sem ordem pr-definida no tempo. Um espao onde os conceitos disciplinares so relativizados, tornando suas fronteiras porosas ao ponto de permitir uma miscigenao de saberes, saberes hbridos80;81). Ponto de convergncias. Conhecimentos estruturados em forma de redes permitem a unidade do saber. De seu inacabamento, certo. Mas tambm da sua inexorvel abertura promessa de um saber em permanente crescimento. A transdisciplinaridade a coordenao do conhecimento em um sistema lgico, que permite o livre trnsito de um campo de saber para outro, ultrapassando a concepo de disciplina e enfatizando o desenvolvimento de todas as nuances e aspectos do comportamento humano.78

Nicolescu, B. A Viso do que h Entre e Alm. Entrevista a Antnia de Sousa in. Dirio de Notcias, Caderno Cultura. Lisboa, 3 de fevereiro de 1994, ps 2-3. 79 Conceito adaptado a partir de DOMINGUES, (2005, p.36). 80 Serres, M. Os Cinco Sentidos. Filosofia dos corpos misturados 1. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 81 Serres, M. Hominescncias. O comeo de uma outra humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.

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92 Caso, nossa estrutura curricular pretenda avanar para a transdisciplinaridade, que estratgia ou mtodo ser definido? Os complexos temticos como sugerem os representantes discentes? Ou, por exemplo, como eu pretendo propor, a pedagogia de projetos? Ou, quem sabe, outra alternativa construda coletivamente? 93 Que perfil profissional ns desejamos? O especialista ou o generalista? Minha sugesto superar essa dicotomia atravs da proposio de um generalista instrudo. O generalista instrudo aquele que, tal como um bricoleur82, capaz de nos fazer ver uma paisagem a partir de um conjunto, mais ou menos, grande de pequenas peas. Aquele que nos permite visualizar na floresta a partir de rvores mais ou menos dispersas a trilha para alcanarmos nosso ponto de chegada. O generalista instrudo aquele que d sentido s totalidades. Ele dialoga com os especialistas, penetra nos vrios territrios, junta as peas, integra-as numa totalidade complexa e constri sua paisagem rica de novos sentidos. Provavelmente o generalista instrudo se manifeste menos na figura do cientista tradicional do que na figura do pedagogo. Sim! Talvez um organizador de conhecimentos, aquele que, viaja entre as vrias fronteiras disciplinares das Cincias do Movimento Humano. Nas palavras de Edgar Morin, um contrabandista de saberes83. O Generalista Instrudo dialoga com fisiologistas, biomecnicos, psiclogos, coregrafos, antroplogos, filsofos..., de onde retira os fundamentos para organizar, por exemplo, uma bem estruturada teoria sobre o ensino ou treino esportivo para crianas e jovens. O programa de ensino ou treino a paisagem que se quer vislumbrar. o que se exige do generalista instrudo.

94

82 83

Lovisolo, H. Educao Fsica a Arte da Mediao. Rio de Janeiro: Sprint, 1995. Morin, E. Contrabandista de Saberes. In PESSIS-PASTERNAK, G. Do Caos Inteligncia Artificial. 2a Ed. 1993, ps:83- 94.

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Sobre as competncias inerentes formao do graduado em licenciatura em educao fsica. Quais as atitudes, conhecimentos e habilidades inerentes a sua prtica pedaggica. Ora! A natureza de um repertrio de conhecimentos e habilidades especficos para a prtica pedaggica em geral, e para a educao fsica em especial, comporta diferentes dimenses tanto ideolgicas e polticas quanto normativas e cientficas. Como sugerem Gauthier et al.84, essas dimenses esto sempre intimamente ligadas e s podem ser separadas, mesmo para fins de descrio e anlise, de modo arbitrrio. Todavia, como o meu objetivo sugerir indicadores para subsidiar a configurao do currculo de licenciatura ampliada em educao fsica da UFRGS, vou apenas enunciar algumas categorias de anlise sem me preocupar em aprofund-las ao detalhe. Minha pretenso , apenas, delinear um mapa sobre conhecimentos e habilidades necessrias organizao de uma grade curricular que satisfaa as exigncias de um curso de licenciatura em educao fsica de elevado nvel acadmico e profissional.

95 Juarez Vieira do Nascimento85 define operacionalmente competncia do professor como um conjunto de saberes, habilidades e atitudes necessrias para uma atuao profissional adequada.Esta caracterstica indica que o profissional necessita possuir conhecimentos amplos da realidade na qual vive em diferentes dimenses (cultural, social, econmica, etc.), bem como conhecimentos especficos dos contedos necessrios para seu desempenho profissional. Da mesma forma, necessita dominar habilidades que o capacitem para o desenvolvimento de propostas pedaggicas. Alm disso, precisa assumir e comprometer-se com atitudes de respeito (tolerncia, flexibilidade, reflexo, etc.) e 86 aceitao da diversidade de gnero, raa e religio .

Mas o que eu gostaria de salientar, para alm dessas exigncias sugeridas pelo meu amigo Juarez, que para o ensino da educao fsica, assim como para o ensino da educao artstica, h uma competncia particular que, provavelmente no est presente de forma to significativa nasGauthier, C; Martineau, S; Desbiens, J.F; Malo, A.; Simard, D. Por uma teoria da pedagogia. Traduo: Francisco Pereira Lima. Iju: Uniju, 1998. 85 Nascimento, J. V. Preparao Profissional em Educao Fsica. In: Tani, G.; Bento, J. O. & Petersen, R. Pedagogia do Desporto. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2006, ps.193 203. 86 Id. Ibid. p.194 e 195.84

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outras reas do ensino. Trata-se de um tipo especial de conhecimento, uma forma de saber que se manifesta diretamente na corporalidade. o saber sensvel. Enquanto nas disciplinas como matemtica, cincias, biologia, etc., predominam o saber inteligvel, a razo pura, a lgica formal, a racionalidade, na educao fsica e educao artstica predominam o saber sensvel. O saber sensvel, repito, aquele oriundo de nossa corporalidade. Manifesta-se atravs dos processos perceptivos e expressivos. Situa-se no espao da representao simblica, na esttica, na manifestao de sentimentos e emoes. a expresso de um saber predominantemente corporal e motor. , na expresso de Merleau-Ponty, o corpo vivido. Como sugere Kant, a caracterstica principal do saber humano devido ao fato dele estar sempre ligado sensibilidade, intuio87. Todos ns que ensinamos o esporte, por exemplo, sabemos que um bom atleta no aprende exclusivamente atravs do raciocnio lgico de nossos discursos. Na aprendizagem esportiva e motora h intuio, h criatividade. H uma expresso corporal que capaz de manifestar mensagens que esto muito alm das possibilidades manifestas em qualquer discurso formal por mais sofisticado que possa ser. Enfim! a manifestao de um saber no declarativo. O saber sensvel o saber fazer. So as emoes e os sentimentos expressos na sua mais ampla possibilidade. Oportunizar o desenvolvimento do saber sensvel , sem dvida, uma competncia da mais alta relevncia na formao do professor de educao fsica. Dar nfase ao saber sensvel atribui educao fsica, bem como a educao artstica, um alcance educacional e formativo que vai alm das exigncias inerentes as demais licenciaturas. Ao tratar da formao do saber sensvel o professor se envolve com o desenvolvimento da capacidade de sentir, de perceber e de expressar o mundo valendo-se de construes ticas e estticas que articulam elementos dessa sabedoria primordial do ser humano que a sua relao corporal imediata com a realidade. A educao do saber sensvel, por outro lado, atribui educao fsica responsabilidades que vo alm do espao escolar. evidente que se encontra fortemente no contexto da educao bsica, porm no se restringe a ela, visto que a educao fsica como fenmeno educativo insere-se em outros espaos sociais no fomento da

87

Apud. Luc Ferry, Ibid, p. 5.

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formao acadmica, esportiva, artstica e cultural, no mbito da sade, do lazer e da performance e, em vrios locais de atuao como escolas, academias, clubes, etc. Portanto, mais uma vez se justifica a nossa conjectura em identificar a educao fsica como uma licenciatura que ultrapassa os limites estreitos da exclusiva formao de professores da educao bsica, tal como pretendem impor nossos rgos de regulamentao profissional.

96 Mas, dito de outra forma, entre as competncias dos professores de educao fsica e de educao artstica esto presentes simultaneamente duas modalidades de saber humano: o saber sensvel88,89 e o saber inteligvel. J, o