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Referências: VEIGA-NETO, Alfredo. VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, tempos e disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? In: ALVES-MAZZOTTI, Alda et al. Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2000a. p. 9-20 Espaços, Tempos e Disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? * Alfredo Veiga-Neto ** Entre as muitas maneiras de encaminhar uma resposta ao título deste texto, vou me valer de uma passagem de Kant, na sua Réflexion sur l'Éducation (Kant, 1962, p.71): "Enviam-se em primeiro lugar as crianças à escola não com a intenção de que elas lá aprendam algo, mas com o fim de que elas se habituem a permanecer tranqüilamente sentadas e a observar pontualmente o que se lhes ordena" (grifos meus), uma vez que "a falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina" (Kant, 1996, p.16). Meu objetivo não é nem concordar com o filósofo nem divergir dele, mas tão somente sublinhar o fato de que ele talvez tenha sido o primeiro a caracterizar, formalmente, a escola moderna como a grande instituição envolvida com o disciplinamento dos corpos infantis, em especial no que concerne aos usos que tais corpos fazem do espaço —denotado pela palavra sentadase do tempo —denotado pela palavra pontualmente. Assim, se para vivermos civilizadamente no mundo moderno é mesmo necessário um mínimo de disciplinamento, então as crianças ainda devem ir à escola. Mas essa resposta kantiana à pergunta do título não encerra a questão; ao contrário, ela abre um leque de possibilidades. Uma dessas possibilidades é o desenvolvimento das mais variadas considerações humanistas e éticas que lamentam esse caráter disciplinador da escola e que denunciam a opressão a que elas submetem as crianças. Uma outra possibilidade é a inclusão dessas práticas disciplinares num quadro mais amplo — que envolve alguns artefatos escolares (como o currículo) e vários outros elementos (sociológicos, econômicos, políticos, culturais ou lingüísticos)— para, a partir daí, demonstrar e denunciar o papel reprodutor da escola moderna. A possibilidade que quero desenvolver, neste pequeno texto, vai num sentido diferente dos acima referidos. Mas, antes de prosseguir, um alerta: o que segue não tem caráter

Texto alfredo veiga neto

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Referências: VEIGA-NETO, Alfredo. VEIGA-NETO, Alfredo. Espaços, tempos e disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? In: ALVES-MAZZOTTI, Alda et al. Linguagens, espaços e tempos no ensinar e aprender. Rio de Janeiro: DP&A, 2000a. p. 9-20

Espaços, Tempos e Disciplinas: as crianças ainda devem ir à escola? *Alfredo Veiga-Neto ** 

         Entre as muitas maneiras de encaminhar uma resposta ao título deste texto, vou me valer de uma passagem de Kant, na sua Réflexion sur l'Éducation (Kant, 1962, p.71): "Enviam-se em primeiro lugar as crianças à escola não com a intenção de que elas lá aprendam algo, mas com o fim de que elas se habituem a permanecer tranqüilamente sentadas e a observar pontualmente o que se lhes ordena" (grifos meus), uma vez que "a falta de disciplina é um mal pior que a falta de cultura, pois esta pode ser remediada mais tarde, ao passo que não se pode abolir o estado selvagem e corrigir um defeito de disciplina" (Kant, 1996, p.16). Meu objetivo não é nem concordar com o filósofo nem divergir dele, mas tão somente sublinhar o fato de que ele talvez tenha sido o primeiro a caracterizar, formalmente, a escola moderna como a grande instituição envolvida com o disciplinamento dos corpos infantis, em especial no que concerne aos usos que tais corpos fazem do espaço —denotado pela palavra sentadas— e do tempo —denotado pela palavra pontualmente.        Assim, se para vivermos civilizadamente no mundo moderno é mesmo necessário um mínimo de disciplinamento, então as crianças ainda devem ir à escola.Mas essa resposta kantiana à pergunta do título não encerra a questão; ao contrário, ela abre um leque de possibilidades. Uma dessas possibilidades é o desenvolvimento das mais variadas considerações humanistas e éticas que lamentam esse caráter disciplinador da escola e que denunciam a opressão a que elas submetem as crianças. Uma outra possibilidade é a inclusão dessas práticas disciplinares num quadro mais amplo —que envolve alguns artefatos escolares (como o currículo) e vários outros elementos (sociológicos, econômicos, políticos, culturais ou lingüísticos)— para, a partir daí, demonstrar e denunciar o papel reprodutor da escola moderna.        A possibilidade que quero desenvolver, neste pequeno texto, vai num sentido diferente dos acima referidos. Mas, antes de prosseguir, um alerta: o que segue não tem caráter nem de denúncia nem de lamentação; isso é assim simplesmente porque não pressuponho um ideal de educação escolarizada e de sociedade em relação ao qual a escola moderna teria se desviado ou o qual ela não tivesse (ainda) atingido. Isso não significa que não seja importante a busca de determinados ideais, seja para a escola, seja para a sociedade; significa, tão somente, que este texto se movimenta no campo da análise e da problematização. Suas implicações éticas e políticas são imensas, mas não serão desenvolvidas aqui.         O que me interessa fazer, então, é problematizar acerca da função disciplinadora da escola, especialmente nesses tempos pós-modernos. Para tanto, iniciarei relacionando, muito resumidamente, algumas técnicas espaço-temporais que funcionam na escola, e que tomam o corpo da criança com o objetivo de torná-lo dócil. A partir daí, colocarei algumas questões relativas à proclamada necessidade da escolarização universal. Meu objetivo final é sugerir que a sociedade contemporânea conta com algumas novas tecnologias e as está disseminando de tal maneira que, talvez, a pedagogia disciplinar preconizada pelo Iluminismo —e tão bem formalizada por Kant— não seja mais tão importante ou necessária como o foi até há poucas décadas. No fundo de tudo isso, o que está em jogo é a questão da própria sobrevivência da escola como a principal instituição capaz, em termos gerais, de promover a socialização e, em termos específicos, de contribuir para uma maior justiça social. 

Corpos dóceis

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        A docilização do corpo, pelo poder disciplinar, pode ser entendida em sua dimensão econômica1, na medida em que a disciplina funciona minimizando a força política e maximizando a força útil ou de trabalho (Foucault, 1989)2. Além disso, como tenho argumentado (Veiga-Neto, 1996, 2000a), as disciplinas —articuladas em seus dois eixos inseparáveis: o eixo do corpo e o eixo dos saberes— funcionam como matriz de fundo, na qual cada um de nós assume como naturais os muros a que somos submetidos como sujeitos modernos; por isso, as disciplinas estão envolvidas também com os processos de subjetivação.        Quanto a esse duplo envolvimento, podemos voltar a Kant. Há uma passagem naquela sua obra pedagógica que é emblemática: "Ser disciplinado. Disciplinar quer dizer: procurar impedir que a animalidade prejudique o caráter humano, tanto no indivíduo como na sociedade. Portanto, a disciplina consiste em domar a selvageria" (id., p.26). Como se vê, há mais de duzentos anos o filósofo já anunciava esse duplo destino para a disciplina, na Modernidade: o corpo em sua "dimensão" individual e política.        Assim, pode-se dizer que o corpo se constitui no objeto microscópico do poder disciplinar. Entender o poder disciplinar como um poder microscópico sobre o corpo —o que, certamente, não significa "fraco", "invisível" ou "pouco importante"—, bem como distribuído por toda a rede social, nos permite enxergar as inúmeras práticas que acontecem no ambiente escolar como técnicas que se combinam e dão origem a uma verdadeira tecnologia, cujo fim é tanto alcançar os corpos em suas ínfimas materialidades quanto imprimir-lhes o mais permanentemente possível determinadas disposições sociais. Isso é feito de uma maneira tal que "alma" e corpo são tomados juntos, pois "a alma é, ao mesmo tempo, o produto do investimento político do corpo e um instrumento do seu domínio" (Ewald, 1993, p.51). Por tudo isso, a disciplinaridade e seus resultados são vistos como naturais, necessários.        Certamente, nada disso é natural, isso é, não provém de uma suposta natureza do corpo ou do poder disciplinar, mas foi descoberto/inventado ao longo dos séculos XVII e XVIII, como uma combinação casual de "uma multiplicidade de processos muitas vezes mínimos, de origens diferentes, de localizações esparsas [...]" (Foucault, 1989, p.127)3. Tais processos ocorreram principalmente nos colégios, nos hospitais, nos quartéis, nos conventos, nas prisões. Em algumas décadas, na Idade Clássica se estabeleceu uma crescente microfísica do poder, funcionando a disciplina como uma anatomia política do detalhe4.         Entender o poder como uma ação sobre outras ações —como propõe Foucault—implica entender que o poder disciplinar age sempre sobre algo que tem vida, ou seja, sobre algo que ocupa um lugar no espaço e existe num tempo finito. Em outras palavras, as técnicas envolvidas no poder disciplinar operam primária e necessariamente num espaço e num tempo determinados. A questão, agora, é examinarmos como o espaço e o tempo são mobilizados nessas ações.        Concluindo esta seção, quero lembrar que um dos elementos que estou colocando em jogo na minha análise —o poder disciplinar— não é incompatível com outras formas de poder que, ao longo do século XX, foram atuando e se organizando na escola. Pelo contrário, as práticas disciplinares espaço-temporais que comentarei nas duas próximas seções até mesmo se articularam com as práticas que as novas pedagogias —principalmente as corretivas e as psicológicas— colocaram em movimento, inicialmente na Alemanha e, logo em seguida, nos Estados Unidos e na França, para serem em seguida espalhadas por todo o mundo. O espaço        

Para que o poder atinja a todos da maneira o mais minuciosa possível, é preciso que os corpos estejam distribuídos no espaço e que essa distribuição obedeça a uma lógica

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econômica5.         Em primeiro lugar, isso implica que os corpos não estejam dispersos, mas de preferência submetidos a algum tipo de cerceamento ou confinamento que os torne acessíveis às ações do poder. A clausura —em tantos aspectos copiada pela escola— é o exemplo limite desse confinamento. Rocha (1999), chamando de "conformação" a essa variável, nos mostra quatro diferentes "tipos" de confinamento a que se pode submeter os alunos, em quatro escolas no município de Porto Alegre, RS, e associa esses "tipos" às diferentes perspectivas pedagógicas que nortearam a criação dessas escolas. Ao retirar das plantas arquitetônicas grande parte dos detalhes que dificultavam a leitura que lhe interessava fazer, essa autora descobriu quatro padrões de conformação, cuja correlação às respectivas orientações pedagógicas é evidente. As conformações vão do maior fechamento e isolamento possíveis em relação ao espaço circundante à escola —Colégio Militar de Porto Alegre— até à maior abertura, contato e transparência em relação ao exterior —Escola Municipal Jean Piaget. 

        Em segundo lugar, dentro desse confinamento, a distribuição dos corpos deve ser o menos caótica, difusa e informe possível, pois é preciso que o poder atinja igualmente a todos. Assim, "importa estabelecer as presenças e as ausências, saber onde e como encontrar os indivíduos, [...] poder a cada instante vigiar o comportamento de cada um" (Foucault, 1989, p.131). O quadriculamento é a melhor imagem para uma distribuição em que a lógica é: "um lugar para cada corpo e um corpo em cada lugar". As descrições que Rocha (1999) faz das escolas cuja arquitetura analisou servem como exemplos de diferentes detalhamentos no acesso que elas têm aos corpos das crianças, em função basicamente das pedagogias por elas assumidas e do tipo de aluno com que trabalha. Além disso, cabe referir a homologia que existe entre esse espaço físico e o espaço abstrato que a disciplinarização dos saberes engendrou, a partir da virada disciplinar que ocorreu ao longo do século XVI6. 

        Em terceiro lugar, a distribuição deve obedecer a um princípio de funcionalidade. Assim, o quadriculamento não é uma questão puramente geométrica e não deve ser deixado ao acaso; ele não deve gerar células homogêneas. Ao contrário, cada quadrícula deve guardar uma certa correspondência à sua função, no conjunto da rede de que ela faz parte. A função de uma quadrícula é, em última instância, desempenhada pelo corpo que a ocupa. Voltando aos exemplos que tomei de Rocha (1999), é por isso que, numa escola de formação profissional —como a Escola Técnica Parobé—, a heterogeneidade —na tipologia das salas de aula e do mobiliário— é muito maior do que numa escola de formação geral —como o Colégio Americano.

        Em quarto lugar, a distribuição espacial dos corpos não tem, necessariamente, uma correspondência simétrica ao espaço físico; e nem, muito menos, guarda com esse, uma correspondência unívoca. Em outras palavras, o que mais importa não é tanto o território nem o local —em termos físicos— ocupados por um corpo, mas, antes, a sua posição em relação aos demais. E desses demais entre si e assim por diante. Dessa maneira, a distribuição espacial é sempre uma questão relacional, a fim de que se obtenha a maior economia na circulação do poder disciplinar. Várias práticas e vários artefatos, que foram se firmando na escola moderna, servem de bons exemplos do caráter relacional do espaço ocupado pelos corpos infantis: a invenção das classes ordenadas por idade e por desempenho das crianças; as filas durante os deslocamentos das crianças; a posição relativa que essas crianças ocupam dentro de cada classe, em função de seus atributos biométricos ou em função de outros critérios; a posição que cada uma ocupa num ranking de desempenhos (nas cada vez mais freqüentes avaliações); e, até mesmo, a posição relativa dos saberes que, compondo um currículo, são ministrados às crianças segundo uma lógica que nada tem de natural.

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        O resultado da combinação desses elementos é que o poder disciplinar não atinge um corpo livre no espaço; a rigor, ele nem mesmo atinge um corpo em si. O que esse poder microfísico atinge é, antes, uma célula; e ali há um corpo a ocupá-la. Mas é esse corpo que dá materialidade à célula; dito de outra forma, é o corpo que, enquanto objeto do poder disciplinar, atualiza a virtualidade da célula. Sem o corpo, a célula não teria sentido. Sem ela, o corpo estaria fora do alcance do poder disciplinar. Nessa metafísica, talvez se possa dizer que há uma relação imanente e de tensão —mas jamais dialética— entre o corpo e o espaço.

Um engendra o outro, ao mesmo tempo em que é por esse engendrado.        Assim, o espaço não se reduz a um simples cenário onde se inscreve e atua um corpo. Muito mais do que isso, é o próprio corpo que institui e organiza o espaço, enquanto o espaço dá um "sentido" ao corpo.  

O tempo

        Assim como o espaço, para a maior economia do poder disciplinar é preciso que o tempo em que se dão as experiências individuais siga uma ordenação.

        Em primeiro lugar, é preciso que o tempo seja particularizado, individualizado, isso é, é preciso que o tempo vivido por alguém seja separado tanto do tempo físico (ao longo do qual se desenrola sua vida) —ao qual, a rigor, não temos acesso direto, a não ser através de representações socialmente construídas7— quanto do tempo social. Essa separação não é natural; ela não ocorre como um atributo humano. A percepção do tempo não é um a priori, como pensou Kant. Ao contrário, ela resulta de uma construção social; a percepção do tempo —como a do espaço— é, portanto, contingente. 

        Na cultura do Ocidente, foi somente a partir do final do Renascimento que ocorreu a ruptura entre o tempo físico, macrocósmico, imutável —no qual o homem estava mergulhado; do qual o homem não se distinguia— e o tempo vivido individualmente. Essa separação —entre, de um lado, o tempo subjetivo, e de outro lado, o tempo físico e o tempo social/coletivo— funcionou como uma condição de possibilidade para o processo de progressiva individualização que vários sociólogos descreveram na nossa História —entre os clássicos, Marx, Weber e Durkheim; entre os contemporâneos, Elias8. Mas dessa individualização não decorre que cada corpo tenha seu próprio tempo, separado e independente dos demais corpos. Ao contrário, no que diz respeito ao tempo —como também no que concerne a muitas outras variáveis, práticas ou atributos— a individualização não implica autonomização, mas tão somente uma facilitação para que cada corpo seja mais fácil, pontual e economicamente atingido e perpassado pelo poder disciplinar. A solidão do Homo clausus de que nos fala Elias é um tanto paradoxal: cada um se sente único e sozinho, ainda que todos sejam tão igual e homogeneamente subjetivados. 

       Em segundo lugar, o tempo a que o corpo se submete —que se transforma em tempo subjetivo, ou, ainda melhor, em tempo subjetivado— deve ser também fracionado, fragmentado, microscopizado. No âmbito escolar e microscópico, isso é feito de uma maneira muito eficiente pelos horários os quais, além da repartição, ainda possibilitam tanto o controle minucioso e sem desperdícios sobre as ações quanto a repetição cíclica dessas ações. Ainda no âmbito escolar, mas agora considerando as grandes durações, isso é feito principalmente pela seriação. Numa escala intermediária, está a programação semanal ou mensal, cuja materialidade mais gritante se dá na agenda, esse cronograma que,

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espacializando o tempo, tanto nos coloca quanto permite que coloquemos as crianças, desde cedo, num duplo aprisionamento.

        Em terceiro lugar, o tempo subjetivado não se reduz a um simples rebatimento do tempo físico sobre um corpo individualizado. O tempo subjetivado é muito mais do que isso: ele permite tanto um controle minucioso sobre os movimentos do corpo quanto uma mais eficiente articulação entre esse corpo e os objetos que o circundam. A importância disso para as práticas escolares é muito grande, indo desde o treinamento da héxis corporal até o melhor uso dos objetos, do domínio dos movimentos até a otimização das habilidades individuais.        Para finalizar esta seção, lembro que —assim como o espaço não deve ser compreendido como um simples cenário onde se dão nossas ações— as nossas ações não se dão simplesmente ao longo de uma duração de tempo; muito mais do que isso, é na própria ação que se institui um tempo capaz de ser percebido e de ter algum sentido para nós. Dito de outra maneira, o tempo se institui e se organiza pela nossa ação.  

E agora?  

Em termos do espaço e do tempo, a escola moderna foi sendo concebida e montada como a grande —e (mais recentemente) a mais ampla e universal— máquina capaz de fazer, dos corpos, o objeto do poder disciplinar; e, assim, torná-los dóceis. As conseqüências disso —seja ao nível individual, seja ao nível populacional— foram imensas. Mas, e agora? Diante de todas as grande e rápidas modificações por que está passando o mundo, qual a importância de continuar fabricando corpos dóceis? E mesmo que isso seja necessário, que papel terá a escola nessa fabricação? 

        Diante, por um lado, das modernas tecnologias de vigilância e controle social e, por outro lado, das modificações no sistema de produção e acumulação capitalistas, talvez não seja mais necessário que o modelo do panóptico —a grande máquina óptica proposta para as prisões, por Bentham há mais de duzentos anos— seja materializado nas escolas modernas. Talvez não seja mais necessário que a escola panóptica seja o lugar pelo qual devam passar todas as crianças a fim de aprenderem a viver nos espaços e nos tempos em que o mundo quer colocá-las. Com isso, eu não quero dizer algo como "finalmente, estamos livres do poder disciplinar". Meu argumento vai em outra direção: talvez não precisemos mais da escola como máquina panóptica simplesmente porque o próprio mundo se tornou uma imensa e permanente máquina panóptica. O ideal da sociedade de cristal foi, há dois séculos, pontualmente materializado no panóptico (Varela, 1996); hoje, foi a própria sociedade que se tornou de cristal. 

        De fato, o avanço de toda uma sofisticada tecnologia eletrônica de vigilância e documentação —de que são bons exemplos os circuitos fechados de televisão e os potentes e velozes sistemas de informação e bancos de dados— aponta para o progressivo barateamento e disseminação de todos os atributos do panóptico. O principal desses atributos —a visibilidade— não apenas se conserva, mas foi até mesmo melhorado.

        Se até há pouco foi tão necessário que a escola ensinasse as crianças a se verem —para que apreendessem a ser objetos-de-si-mesmas, ovelha-e-pastor-de-si, réu-e-juiz-de-si—, foi porque não era econômico mantê-las, depois de adultas, sob o olhar soberano. Mas, agora, a

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situação é outra. O que era uma limitação econômica não é mais problema, pois agora a eletrônica tornou possível distribuir —a baixos custos e infinitamente— o olhar externo, soberano. Mais um paradoxo da solidão do Homo clausus: ao mesmo tempo tão fechado em si mesmo e tão acessível ao olhar dos outros.

        E, como se não bastasse a onipresença da máquina de Bentham —agora materializada em toda uma parafernália eletrônica—, ainda é preciso levar em consideração que uma das características da pós-modernidade é a proliferação de situações em que, desde o nascimento, cada um de nós é interpelado por diferentes dispositivos, instituições e técnicas de informação, de subjetivação e de disciplinamento. O resultado é que, mais do que em qualquer outro momento da história, vivemos hoje um empalidecimento da escola como a grande instituição disciplinar.         Soma-se a tudo isso o fato de que as próprias percepções sobre o espaço e o tempo estão em contínua mudança, na pós-modernidade. Várias questões ligadas ao espaço e ao tempo —tais como a fantasmagoria, a presentificação do futuro, a compressão espaço-temporal, a desterritorialização, a volatilidade e o desencaixe— estão transformando de tal maneira nossas vidas —e, em conseqüência, nossas percepções sobre a realidade— que é comum sentirmos nossa época como uma época de incerteza e de insegurança. 

        Para concluir este texto, volto a Kant. Se ele escreveu "na verdade, o constrangimento é necessário" (Kant, 1996, p.34) foi porque ele, inspirado em Rousseau, queria corrigir o nosso assim chamado "estado de selvageria" e, por aí, combinando disciplina e formação (Bildung) levar-nos à maioridade. Ele ter pensado a escola como a instituição principal para realizar tal intento nos mostra que ele foi um filósofo do seu tempo. Se quisermos pensar dentro do nosso tempo, na busca de um mundo mais justo e feliz, teremos de colocar no equacionamento dos nossos problemas uma maior clareza acerca das novas práticas espaço-temporais a que estamos submetidos —e às quais estamos submetendo nossos alunos— dentro e fora da escola.

NOTAS:

1 Estou usando econômico no sentido amplo de "obtenção dos maiores resultados —em termos de lucros, bens, afetos, saberes, etc.— a partir dos menores custos ou investimentos".

2 Nesse sentido, comprende-se a importância do papel da escola moderna (disciplinar) para o avanço do capitalismo. Para uma revisão dessa questão, numa perspectiva econômica e política, vide Ewald (1993), Varela & Álvarez-Uria (1992) e Foucault (1989).

3 De certa maneira, o que Kant faz em sua Pedagogia é então, digamos, sistematizar esses novos processos, legitimando-os e colocando-os num quadro mais amplo, de cunho modernizador e moral.

4 O detalhe, nesse caso, "vale menos pelo sentido que nele se esconde que pela entrada que aí encontra o poder que quer apanhar" o homem disciplinado (Foucault, 1989, p.129).

5 Vide nota 1.

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6 Para uma discussão detalhada acerca dos papéis que desempenharam a virada disciplinar, a invenção do currículo e de várias práticas escolares e, até mesmo, a difusão do alfabetismo, no estabelecimento da sociedade disciplinar, vide Veiga-Neto (1995, 1996, 2000a).

7 Para uma discussão detalhada dessa questão, vide Veiga-Neto (2000b).

8 É fácil ver o quanto essa progressiva individualização criou as condições de possibilidade para a invenção da infância, da Pedagogia moderna, das epistemologias genéticas e do próprio sujeito (Narodowski, 1994; Varela, 1996).

 Referências bibliográficas

EWALD, François. Foucault, a norma e o direito. Lisboa: Veja, 1993.FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes, 1989.KANT, Immanuel. Réflexion sur l’Éducation. Paris: Vrin, 1962.________. Sobre a Pedagogia. Piracicaba: Unimep, 1996.NARODOWSKI, Mariano. Infancia y poder: la conformación de la Pedagogía moderna. Buenos Aires: Aique, 1994.ROCHA, Cristianne F. Desconstruções edificantes: uma análise da ordenação do espaço como elemento do currículo. Porto Alegre: PPG-Edu/UFRGS, 1999. Dissertação de Mestrado.VARELA, Julia. Categorías espacio-temporales y socialización escolar: del individualismo al narcisismo. In: LARROSA, Jorge (org.). Escuela, poder y subjetivación. Madrid: La Piqueta, 1996. p.155-189.VARELA, Julia & ÁLVAREZ-URIA, Fernando. A maquinaria escolar. Porto Alegre: Teoria e Educação, n.6, 1992. p.68-96.VEIGA-NETO, Alfredo. Michel Foucault e Educação: há algo de novo sob o sol? In: VEIGA-NETO, Alfredo (org.) Crítica Pós-estruturalista e Educação. Porto Alegre: Sulina, 1995. P.9-56.________. A ordem das disciplinas. Porto Alegre: PPG-Edu/UFRGS, 1996. Tese de Doutorado.________. Espacios que producen. In: GVIRTZ, Silvina (comp.) Textos para repensar el día a día escolar: sobre cuerpos, vestuarios, espacios, lenguajes, ritos y modos de convivencia en nuestra escuela. Buenos Aires: Santillana, 2000a. p.195-212.________. As idades do corpo: (material)idades, (divers)idades, (corporal)idades, (ident)idades... Porto Alegre: VII Seminário Internacional sobre Reestruturação Curricular/SMED, 2000b.

 * Texto para o Simpósio Espaços e tempos escolares, no 10º ENDIPE, Rio de Janeiro, 31 de maio de 2000.** Alfredo Veiga-Neto é Doutor em Educação e professor no Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, UFRGS. Porto Alegre, RS, Brasil.