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1 DO INFERNO DA CRIAÇÃO AO TRABALHO TRANSDISCIPLINAR: ENTREVISTA COM MARIA DO CÉU DIEL, PROFESSORA RESIDENTE DO IEAT ENTREVISTADORES GUSTAVO AUGUSTO DE MENDONÇA ALMEIDA MARCOS FÁBIO CARDOSO DE FARIA DATA DE REALIZAÇÃO 9 DE FEVEREIRO DE 2012 “O Inferno de Dante é o inferno da memória”. Assim Maria do Céu Diel descreve o iniciar de um processo em que o inferno da criação é metaforizado em diversas concepções para justificar o seu trabalho enquanto professora, artista e pesquisadora. Maria do Céu Diel é graduada em Educação Artistica pela Unicamp, mestre e doutora em Educação pela mesma instituição. Professora no Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da UFMG, atualmente é Professora Residente no IEAT, com projeto intitulado "A Educação visual através da Mnemônica e as categorias poéticas nas Artes Visuais", no qual busca a possibilidade de migrar as categorias poéticas elencadas por Harold Bloom na Angústia da Influência para as artes visuais, como forma de entendimento, compreensão e superação da influência poética/artística. Em comemoração aos seus 20 anos de carreira, Maria do Céu Diel apresenta a exposição Entremundos , na Galeria de Arte GTO do SESC Palladium, em que se exibem gravuras, colagens, livros de artista e cadernos de desenho, somando, ao todo, 74 trabalhos. O IEAT procurou entrelaçar e percorrer os ofícios de pesquisa e arte de Maria do Céu Diel, desde sua tese iconoclasta, intitulada Imagens do Inferno: lugares da Memória, palavras de Dante , até o seu projeto de residência, bem como sua prática como docente.

Texto - IEAT Entrevista Com Maria Do Ceu Diel

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DO INFERNO DA CRIAÇÃO AO TRABALHO TRANSDISCIPLINAR:

ENTREVISTA COM MARIA DO CÉU DIEL, PROFESSORA RESIDENTE DO IEAT

ENTREVISTADORES

GUSTAVO AUGUSTO DE MENDONÇA ALMEIDA

MARCOS FÁBIO CARDOSO DE FARIA

DATA DE REALIZAÇÃO

9 DE FEVEREIRO DE 2012

“O Inferno de Dante é o inferno da memória”. Assim Maria do Céu Diel descreve o

iniciar de um processo em que o inferno da criação é metaforizado em diversas concepções

para justificar o seu trabalho enquanto professora, artista e pesquisadora. Maria do Céu

Diel é graduada em Educação Artistica pela Unicamp, mestre e doutora em Educação pela

mesma instituição. Professora no Departamento de Desenho da Escola de Belas Artes da

UFMG, atualmente é Professora Residente no IEAT, com projeto intitulado "A Educação

visual através da Mnemônica e as categorias poéticas nas Artes Visuais" , no qual busca a

possibilidade de migrar as categorias poéticas elencadas por Harold Bloom na Angústia da

Influência para as artes visuais, como forma de entendimento, compreensão e superação da

influência poética/artística. Em comemoração aos seus 20 anos de carreira, Maria do Céu

Diel apresenta a exposição Entremundos, na Galeria de Arte GTO do SESC Palladium, em

que se exibem gravuras, colagens, livros de artista e cadernos de desenho, somando, ao

todo, 74 trabalhos. O IEAT procurou entrelaçar e percorrer os ofícios de pesquisa e arte de

Maria do Céu Diel, desde sua tese iconoclasta, intitulada Imagens do Inferno: lugares da

Memória, palavras de Dante, até o seu projeto de residência, bem como sua prática como

docente.

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[…] sempre existiu alguém que

chegou antes de nós e fez algo

excepcional.

IEAT: Gostaríamos que você começasse falando um pouco sobre o seu projeto de residência no

IEAT, antes de iniciar as perguntas propriamente ditas.

MC: Esse projeto surgiu a partir das leituras de Harold Bloom. É um trabalho que eu

acalentava, embora eu tenha ficado um tempo afastada dele, por achá-lo muito denso. Isso, porque

ele aborda a questão da “angústia da influência”. Esse termo, no caso de Bloom, como estudioso

das letras, refere-se à principalmente à literatura. O autor preconiza que todos nós temos um poeta

forte, que é o nosso desejo. Nós temos desejo de nos

tornamos parte dessa “poesia forte”. E, ao não conseguirmos,

nos angustiamos. É necessário admitir que estamos a serviço

de um predecessor e de uma Estética. Inclusive, existe um

pensamento muito interessante nesse trabalho de Bloom, pois

ele sugere que sempre existiu alguém que chegou antes de nós e fez algo excepcional. O meu

projeto é migrar esse conceito para as Artes Visuais e Plásticas, onde me movo. É tentar buscar

quais artistas se inclinaram para os seus precursores e se renderam ou saíram vitoriosos.

IEAT: Como a você enxerga os estudos Transdisciplinares realizados na atualidade?

MC: Gostaria de pensar um pouco sobre o mito de origem da questão transdisciplinar. Na

década de 1990, começou esse discurso da transdisciplinaridade. O que seriam dessas áreas que se

imbricam, que se bipartem, que colaboram, ou que se opõem criativamente? Isto é, que são

opostas, mas que vão ao encontro uma da outra? Esse discurso partiu de uma demanda própria da

reforma que aconteceu na pós-graduação. Surgiu a necessidade acadêmica de nos organizarmos em

grupos de pesquisa. Isso não era obrigatório, pois os professores eram livres para ter, ou não,

grupos de pesquisas ou se inteirarem nesses grupos, bem como não eram obrigados a fazerem seus

currículos na Plataforma Lattes do CNPq. Quando isso foi implantado, houve certa resistência no

meio acadêmico. Os pesquisadores achavam o processo abusivo, pois, pelo conceito, eles seriam

localizados por uma única área de conhecimento. Porém, o currículo Lattes do CNPq tornou-se a

grande agência que formalizou a pesquisa no Brasil. Mas, imediatamente quando alguém se

agregava a um grupo de pesquisa, também estava se agregando às pessoas que não têm a mesma

formação. Mesmo que se esteja em uma grande pesquisa "guarda-chuva", os pesquisadores têm

maneiras, caminhos, autores muito particulares para chegar a certos resultados. Isso já mostra um

pequeno momento interdisciplinar, transdisciplinar, que é as pessoas pensarem de um jeito

diferente para conseguir um mesmo objetivo. Eu acho que atualmente, com a tecnologia da

informação, sua velocidade e disponibilidade, as pesquisas transdisciplinares estão muito mais

arejadas, porque nós podemos contar, inclusive, com trabalhos absolutamente atuais desenvolvidos

em países estrangeiros, bem como no Brasil. Eu costumo dizer aos meus orientandos, se eles

querem ler o que há de mais atual na pesquisa, que leiam as teses. As teses , sendo publicadas ou

não, desempenham esse papel. A maioria das bibliotecas das universidades brasileiras e europeias

tem seus bancos de teses. Quando se leem esses trabalhos, é possível observar o quanto que a

pesquisa transdisciplinar colabora para a escritura.

IEAT: Como o seu atual trabalho se comunica com a transdisciplinaridade?

MC: A partir do momento em que trabalho um autor das Letras e da Literatura, e me

aproprio das categorias poéticas elaboradas por ele, transportando-as para as Artes Visuais e

buscando, assim, uma concordância possível entre aquele trabalho e o meu, já se tem um

consentimento com a transdisciplinaridade. Isso, mesmo que nós estejamos a trabalhar com coisas

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Eu prefiro navegar entre

todas essas coisas.

muito familiares, que são linguagens, não falo da artística, ou da literatura, mas a linguagem como

uma atribuição do ser humano, um entendimento da linguagem. A partir do momento em que se

reduz tudo à linguagem, é possível, então, perceber essa possibilidade de migrar os conceitos. Vejo

que me apropriei de um conceito da Literatura e o migrei para as Artes Visuais durante esse tempo

de pesquisa. E já estou lá, mudando, também, meus autores fortes e minha própria Angústia da

Influência já está sendo imaginada ali.

IEAT: No projeto enviado para pleitear a residência, você menciona que seus trabalhos acabam

por acionar caminhos transdisciplinares ao reunir estudos da Teologia, Retórica, Artes Visuais,

Cinema, Teatro, Literatura e Mnemônica. Qual foi a contribuição desses vários caminhos para a

realização da exposição Entremundos?

MC: A exposição Entremundos, no SESC Palladium, surgiu de um convite relacionado com

uma bolsa de pesquisa com a qual fui contemplada pela fundação Carolina para investigar, na

Espanha, o mundo árabe e a sua relação com o Ocidente. Porém, tal convite se ampliou para a

realização de uma espécie de retrospectiva do meu trabalho e, então, novamente, acabei por me

encontrar com as minhas imagens, que são trabalhos de um tempo em que eu estava estudando a

questão da Educação e da Pedagogia Visual. Então, dentre todas as áreas relacionadas acima, acabei

por perceber que todas fazem parte do estudo da arte. Assim, é possível perceber as contribuições

desses estudos. A Physiognomonia, que é o estudo das expressões dos sentimentos expressos na face,

foi alvo de muitos estudos do século XV ao XIX, e serviu, para vários estudos, inclusive para

pensar o “outro”. Estudei também a Retórica, que é a arte do convencimento e que não tem nada a

ver com os currículos artísticos, mas sim com os dos cursos de Direito, na área de jurisprudência,

assim como da memória. Todas essas áreas, a Literatura, a Arquitetura, dentre outras, serviram,

para mim, como base de anos de pesquisa, que foram formalizadas como imagens. Eu tento

transformar todos esses estudos acadêmicos em imagem, porque eu sou uma artista acadêmica.

IEAT: Na exposição é possível perceber que há uma relação muito interessante da economia, de

refletir o mercado editorial, a partir dos livros de artistas e, também, da crítica genética. É

interessante pensar na crítica genética para o artista plást ico, porque o rascunho se transforma na

própria arte. Então, não é esse rascunho que depois se torna outro rascunho. É o rascunho que vai

se moldando nele mesmo, ele vai construindo o próprio rascunho que se finda em arte. Isso está

presente em Entremundos?

MC: Há uma coisa muito interessante que é uma opção que eu fiz: eu não quero ser uma

especialista. Eu não sou especialista em colagem, ou uma gravadora, ou uma desenhadora

especialista. Eu prefiro navegar entre todas essas coisas. Em

Entremundos, o que existe são muitos esboços, não é

propriamente o rascunho que é a forma de estudar, mas a

técnica é uma das maneiras de poder entrar no objeto de

estudo. Há um caderno que eu fiz agora em Granada, na Espanha. Ele pode gerar vários

pensamentos como: "então este foi o objetivo de estudo: desenhar a arquitetura de Granada?" Não.

Enquanto eu desenhava a arquitetura de Granada, coisas que eu não poderia imaginar se

apresentam, porque, ao fazer isso, o artista-pesquisador fica à disposição das imagens. Esse é o

objetivo que se deve ter quando se faz uma viagem de pesquisa. Além de ser uma coisa muito

difícil conseguir passar um mês fora do seu país, com uma bolsa de uma instituição estrangeira.

Então, como é que você faz para criar uma tensão que, ao mesmo tempo, é uma brecha entre dois

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[…] os artistas que eu estou

buscando são esses que encaram

não só seus pais poéticos, como

suas nações, suas épocas, o país

onde nasceram, o momento em

que nasceram, o projeto político

desse país.

mundos: o mundo acadêmico e o mundo da viagem de pesquisa? É desenhando, ou fotografando,

ou colando? Não sei. A melhor forma que existe para trabalhar nesse tipo lugar é ir e trabalhar.

IEAT: Ainda sobre o seu projeto de residência enviado ao IEAT, existe a afirmação de que você

buscava entender as categorias poéticas elencadas por Harold Bloom na Angústia da Influência

(clinamen, tessera, kenosis, demonização, askesis e apófrades) a partir das artes visuais. Como você vê

hoje a transposição dessas categorias para as artes plásticas em geral e para o seu trabalho em

específico?

MC: Bom, essa é uma pergunta maravilhosa, e eu espero poder respondê-la. Mas ao final do

ano! Vamos pensar essa primeira categoria, que é a clinamen. É um termo latino, retirado de

Lucrécio, que foi um dos primeiros estudiosos da dimensão e do movimento dos átomos. Lucrécio

fala que os átomos precisam trocar de lugar entre as coisas, entre a matéria das coisas. E aí ele

figura um átomo, essa troca de lugar, numa queda de uma matéria para outra. Mas não é uma

queda vertical, mas uma queda que faz uma curva suave: a queda dos átomos em direção a outra

matéria. Essa curva, esse clinamen, essa troca entre lugar e outro, Bloom utiliza esse termo da

seguinte forma: a queda é a queda do artista em direção ao autor forte. Lá está o autor forte, no

Inferno da criação. Para ele a clinamen é o Inferno da criação.

Cai o artista angustiado pela influência. E onde ele cai? Cai

no colo do autor forte. Então a primeira imagem que se tem é

quando se olha para o autor forte. Seja ele qual for.

Independente de quem ele seja, o importante é cada um

encarar o seu pai poético. Esse é o primeiro choque que se

tem. Eu ainda estou no clinamen, porque os artistas que eu

estou buscando são esses que encaram não só seus pais

poéticos, como suas nações, suas épocas, o país onde nasceram, o momento em que nasceram, o

projeto político desse país. Pois ao falarmos de autoria e de projeto político, ele não é isolado

disso. Inclusive, alguns artistas são fruto desse projeto político.

IEAT: Quem seria seu autor forte? Seria Dante?

MC: Dante... Dante é um autor forte! Sim, eu sempre o estudei e gostei muito dele. Eu

estudei não só a Comédia, mas todas as obras, inclusive Vita Nova. Vita Nova é um tratado político

da República Fiorentina, em que o autor está dizendo as relações poéticas, políticas e a felicidade

como um direito à política. Isso é algo muito bonito, mas que se perdeu. Dante, na verdade, não só

foi genial enquanto escritor, como também foi um artista da colagem muito interessante. Todas

suas referências vêm de vários lugares: Mitologia Cristã, Mitologia Etrusca, Egípcia, inclusive

desafetos políticos que ele coloca no Inferno, ou amores que ele coloca no Paraíso. Em verdade,

Dante foi uma espécie de forte poeta que guiou uma forma de pensar. É atribuída a ele a invenção

da língua italiana, pois, em verdade, ele teceu entre a vulgata e o latim uma língua. Através desses

poemas ele pensou a língua italiana. Para mim, Dante é um autor forte, mas ele não é um artista

visual, apesar de criar imagens. Eu tenho outros autores forte que me assombram! No caso,

Giacometti, Francis Bacon, e Anselm Kiefer, pois, quando eu os encaro é como perceber-se num

pesadelo, porque eles ficam a perguntar: "O que é que você veio fazer aqui? O que é que você tem

para dizer que vale a pena ser ouvido?" Porque é isso que o autor forte faz.

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[...] a memória não reside nos

objetos. A memória está em quem

está vivo.

IEAT: Em seu projeto você diz sobre a relação entre Mnemônica e Retórica, pelo que você tem

pesquisado, como se dá a relação entre esses dois saberes?

MC: A memória tornou-se um objeto de incessante pesquisa nos últimos dez anos.

Primeiramente, a memória não reside nos objetos. A memória está em quem está vivo. Os objetos,

os textos e as outras coisas servem apenas para ativar essa

memória, ou seja, um estado da Mnemônica: a reminiscência.

A partir desse objeto, desse texto, desse som, dessa imagem,

ou desse sabor, desse perfume, é possível entrar em

reminiscência e evocar a memória de alguma coisa que

aconteceu na vida. Isso é bonito, há certos diretores de cinema que fazem isso maravilhosamente,

como Peter Greenaway e John Houston. Mnemônica é isto: a arte da memória. Retórica: a arte do

convencimento. Como isso pertence à arte contemporânea? A Retórica auxilia o artista para

conseguir falar sobre o próprio trabalho, inventando para isso figuras de linguagem. Acredito que

o artista plástico perdeu seu vocabulário, pois o trocou por outros termos que ele não sabe

exatamente o que são. Dessa forma, pessoas que são formadas no convencimento da linguagem são,

atualmente, os críticos de arte, que precisam argumentar sobre o trabalho do artista. Eu acredito

no estudo sobre retórica para que os artistas tenham possibilidade de conhecer as inúmeras

possibilidades das figuras de linguagem. Quando nos voltamos aos estudos de Quintiliano,

percebemos que algumas figuras são denominadas pinturas. Eu sei que a imagem sempre foi alvo de

tantos programas de educação política, desde o século X até hoje. Então que tipo de sociedade é

esta que precisa ter a imagem controlada? E por que, então, essas ciências que colaboravam para a

Mnemônica desapareceram de nossos currículos e foram substituídas por disciplinas que não

tratam da linguagem? Estamos sofrendo uma espécie de esvaziamento do sentido das palavras. As

palavras não significam mais o que elas dizem. O que se percebe é que estamos desaprendendo a

falar para sermos compreendidos. É um movimento por simpatia: precisamos fechar os olhos para

nos vermos melhor. É um momento de ruptura e transição.

IEAT: Dentro da sua obra como artista plástica, onde se insere, exatamente, Entremundos? Seria

uma continuidade de sua obra, seria algo inovador?

MC: Quando comecei a me aproximar do mundo árabe, foi por influência do meu

orientador de doutorado e de pós-doutorado, Dr. Milton José de Almeida, recém-falecido, que fez

um grupo muito interessante de pesquisa sobre cultura árabe na Unicamp, na Faculdade de

Educação. Eu, infelizmente, não consegui participar efetivamente do grupo. Mas acompanhei as

teses e dissertações, frutos destes estudos. Isso me inquietou demais, pois o mundo árabe é muito

escorregadio. Diferente do mundo ocidental, ele não é um mundo que tem uma resolução e não é

um emblema moral: não fala de virtudes ou vícios. É um mundo com imagens muito fortes e

imagens que nascem da própria imagem da palavra. Em Allambra, onde estive estudando estas

imagens, por vezes aparece algum pássaro, mas são palavras. São palavras de imagens. Você lê a

letra como se ela fosse um desenho. Aquelas lindas escavações, como o "Alá é grande", escritas

naquela caligrafia magnífica, profundamente escavada, em que se está vendo a palavra de Deus na

própria palavra "Deus". Isso, no Ocidente, contrasta grandemente com as decisões tomadas

principalmente desde o Concílio de Trento e outras diretrizes que a Igreja Católica promoveu

exatamente para organizar como as imagens deveriam aparecer, formando um contraste muito

forte com a política das imagens. E obviamente que meu trabalho sofreu uma reviravolta, não

sobre conceitos de Estética, pois a Estética atrapalha a beleza, mas uma nova maneira de ver a

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O Inferno sempre foi uma espécie

de lodaçal de mobilidade dentro

de uma angústia, ou de

uma melancolia.

beleza. O que é realmente uma imagem forte, um emblema moral, sem falar de vício ou de virtude

que é ela em si? Ela aparece em si e basta. É suficiente para que cada espectador encontre ali o

sentido para sua vida.

IEAT: E o papel que o Inferno exerce sobre sua obra? O que ele significa para você? Ele parece ser

bastante recorrente em seu trabalho.

MC: Ele foi o tema do meu doutorado, quando eu utilizei uma pequena parte do poema do

Inferno de Dante, o Anti-Inferno: o Inferno dos Pecados da Inteligência. Esse é um Inferno forte,

porque, de acordo com Dante, a inteligência é um presente de Deus. Se você usar a inteligência

para perpetrar o mal a outra pessoa, você vai para o Inferno dos pecados da inteligência, com

punições terríveis. O Inferno é algo muito grande, muito

imagético, assim como o Apocalipse de São João, ou outros

Apocalipses em textos fundadores sagrados. O Inferno

sempre foi uma espécie de lodaçal de mobilidade dentro de

uma angústia, ou de uma melancolia. Principalmente, quando

se está estudando, ou pintando, ou desenhando. Quando

falamos: "eu estou no inferno", Harold Bloom escreve que, você está no Inferno da criação; você

caiu, mas está modificado pela sua própria criação. Isso é muito bonito: eu sei que estou em queda,

mas na queda eu me modifico, eu tenho consciência que eu tenho que trazer uma criação para sair

do Inferno. Então, são duas as figuras infernais para mim: imobilidade e lodaçal melancólico.

IEAT: Na sua tese, você diz, em especial quando na leitura da Comédia, que chamou sua atenção a

Cidade de Dite. Por quê?

MC: Na época do estudo de doutorado, uma das coisas que primeiro me assombrou foi o

ineditismo da pesquisa, pois afinal esse texto tem 700 anos. Quantas pessoas já estudaram

brilhantemente esse poema? Fazendo uma pequena pesquisa na internet, eu descobri inúmeros

grupos de pesquisa que se dedicavam apenas a uns pequenos cantos, para estudar o seu movimento

alegórico e literário. Eu pensei: o que faço? Como posso figurar uma questão inédita em relação ao

poema de Dante? Após desconsiderar o fator ineditismo, decidi que poderia fazer uma leitura

imagética de Dante. Diversos artistas fizeram isso lindamente, Rodin, William Blake fez

maravilhosas gravuras e desenhos, Gustave Doré fez xilogravuras fantásticas. Então, qual foi o

local em que eu escolhi estar imersa? O local onde as pessoas que utilizaram da inteligência e que

perpetuaram o mal para outras, ou seja, o inferno do intelecto. Esse me interessou profundamente,

por ser exatamente uma metáfora do próprio estudo superior acadêmico, que encontrava seu fim

na figura do próprio Lúcifer, que está no último círculo do Inferno, preso no lago de gelo dos

traidores. Imagem forte, a terra se afasta do corpo de Lucifer, com asco do contato. Ele poderia

sair se quisesse. Então essa é uma imagem forte que ficou para mim. Assim, a escolha da Cidade de

Dite é emblemática da própria pesquisa.

IEAT: Chama a atenção em sua tese a postura em aceitar a parcela de ficção da teoria e do texto

científico, essa não busca pela verdade, às vezes, é vista como um não rigor acadêmico. Mas, pelo

contrário, traz essa reflexão que é, talvez, mais importante que buscar a própria verdade. Eu

gostaria que você falasse um pouco sobre isso.

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Quando se está a fazer uma

pesquisa forte, eu chamo isso de

metodologia de vida, percebem-se

coisas que às vezes são triviais,

uma pequena viagem, uma ida à

biblioteca, abrir um livro, que são

tão fortes que é como se aquela

pesquisa se apresentasse por ela

mesma.

MC: Isso foi muito possível, também, pela natureza das atividades desse grupo em que eu

fiquei muitos anos e do qual eu sou colaboradora sênior, na Faculdade de Educação da Unicamp,

que é o OLHO, Laboratório de Estudos Audiovisuais, no qual meu orientador, Milton José de

Almeida, acreditava que, independente de nossas pesquisas, devíamos nos inserir nesse trabalho,

pois a pesquisa existe somente porque o autor assim deseja. Então, enquanto se pesquisa, vive-se.

Muitas vezes embebidas pelos textos, pelas imagens, as nossas percepções estão em um nível tão

alto que é impossível que não se viva e não se veja o momento da vida como um fato alegórico. Os

fatos se apresentam, principalmente as imagens, como se fossem coisas que estavam sempre ali e

que, por algum momento, estavam invisíveis, mas aparecem e

se solidificam. Quando se está a fazer uma pesquisa forte, eu

chamo isso de metodologia de vida, percebem-se coisas que às

vezes são triviais, uma pequena viagem, uma ida à biblioteca,

abrir um livro, que são tão fortes que é como se aquela

pesquisa se apresentasse por ela mesma. O que é tratado por

parcela da ficção são os objetos e as coisas que vêm ao seu

encontro. Alegro-me que tenha percebido isso. Porque na

minha tese tem uma parte que são alguns contos, que é

literatura e é dessa forma que eu oriento e incentivo aos

alunos de doutorado e de mestrado, que assumam sua parcela

autoral, principalmente: uma tese de mestrado e doutorado não é o trabalho da vida, senão, ao

defendermos, deveríamos morrer imediatamente. Dessas etapas tem que sair uma palavra de vida

para algum lugar, para literatura, ficção, música, para a imagem e que, principalmente, faça com

que algo continue vivendo para além do momento da defesa.

IEAT: Nos termos de Bloom, pode-se dizer que Dante seria seu precursor e seu trabalho seria uma

forma de desleitura da Comédia?

MC: Podemos chamar de uma aventura, mas, por enquanto, eu diria que ainda estou em

um nível atomístico da pesquisa. Gostaria de fazer um comentário sobre a Comédia a partir de

Boccaccio, que nomeou a obra por Divina Comédia. O autor fez dois comentários importantes

sobre o trabalho de Dante: um literário explicando o vocábulo e suas relações semânticos no texto;

e um comentário alegórico, que é fascinante, porque me abriu para a questão das alegorias. A

questão dos emblemas diz que as imagens podem ser lidas na forma que derem sentido às vidas de

quem vê. Dessa maneira, eu acho que ainda estou percebendo e buscando, através de Dante, ou

através das leituras que ainda ecoam destes textos apócrifos e apocalípticos, a ideia de uma imagem

emblemática, uma imagem que se faz por si. Essa concepção há-de ser alcançada, pelos emblemas

do próprio trabalho acadêmico.

IEAT: Quem seria o Virgílio que te guiaria inicialmente pelos caminhos do inferno? Seria Dante?

As imagens de Dorè?

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[…] trabalhar com o prazo da

universidade não é trabalhar com o

prazo da arte.

MC: Virgílio tem algo muito interessante. Ele caminha com Dante até uma parte do

Purgatório, depois, subitamente, desaparece. Ele não se despede e essa passagem é muito forte.

Quando ele deixa o autor-personagem, nem mesmo Dante

percebe que o mestre desapareceu. Ambos estão ali, mas é

dada a fala a Virgílio e, então, se percebe que ele já não está

mais lá e o personagem tem uma comoção muito forte

mediada por esse desaparecimento. Esse guia é o que

subverteu as leis, enfrentou demônios por Dante, que não o podia fazer por ser uma alma viva.

Para mim, ele é a figura de um orientador, é ele quem vai dizer o que pode e o que e o que é

possível fazer junto com o aluno. Quem foi para mim essa figura foi o Professor Milton, que é esse

orientador que discutia sobre as políticas da pós-graduação e enfrentava os males da burocracia,

porque trabalhar com o prazo da universidade não é trabalhar com o prazo da arte. A instituição

trabalha com um tipo de tempo e o pesquisador com outro. Eu sinto que o Professor Milton foi,

para mim, Virgílio e, quando ele desapareceu, nos deixou assim: olhamos para trás e entendemos

que essa foi a lição mais dura que nos foi legada. Agora estamos trabalhando a força dele nos

autores que ele estuda nesse grupo de pesquisa árabe, para que a palavra dele permaneça.

IEAT: “O Inferno de Dante é o inferno da memória”, o que você tem a dizer sobre isso?

MC: Isso percebi quando estava tão encharcada com os estudos de Dante, quando entendi

que a punição do inferno é que a memória das pessoas não é apagada. Há um episódio nesse livro

muito bonito, que é a passagem de Francesca da Rimini, que se casou com o irmão de seu

verdadeiro amor, Paolo Malatesta. Os dois então são assassinados pelo marido traído e vão para o

Inferno, ao encontro de Virgílio e de Dante, e este último pergunta algo mais ou menos assim: mas

vocês, que se amaram, como podem estar no inferno? O amor não deveria ser uma coisa a ser

punida, porque O Deus do Amor, [não se pode falar o nome de Deus no inferno], gira o mundo e

as estrelas? E ela responde: “Não há dor maior do que recordar o tempo feliz quando se está na

miséria”. Então Dante, autor e personagem, percebe que todos têm memória dos seus tempos de

vida. Em outro círculo, o pai que lembra do filho pergunta a Dante se ele está vivo e como ele

está. Então, qual é o Inferno? É uma câmara da memória que não é apagada. Quando Dante sai do

inferno, lava-se no Rio Lete do esquecimento. Quando ele pode experimentar algo próximo da

felicidade.

IEAT: Você divide uma posição interessante de pesquisadora e artista. Na maioria das vezes, ou se

é um, ou outro. Para você, como é a relação entre teoria e prática, entre ser pesquisador de arte e

artista?

MC: Eu lembro de minha professora de didática, no estágio supervisionado na graduação,

que sempre falava assim: “Só podemos ensinar o que sabemos”. Pensei: mas isso é claro! Porém não

é tão claro, porque quando se fala de imagem, quando se está estudando ou gravando, encontram-se

muitas dificuldades. E é isso que eu trabalho com os meus alunos, que são os que acabaram de

entrar na universidade, os que estão no primeiro semestre. Pois o que eu estou fazendo, as

dificuldades pelas quais eu passo para concretizar uma imagem, são as mesmas dificuldades que

esses alunos têm. Muitas vezes, esses alunos nem têm formação em arte ou cultura, eles saem do

segundo grau instrumental e vêm para a universidade. Dessa maneira, a minha pesquisa se volta

para a sala de aula e para as indagações e posturas políticas dos alunos, e até mesmo a ausência de

uma postura e estética. Isso faz com que eu indague o meu próprio trabalho. Penso sempre em que

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Alguns artistas imitam,

outros renegam.

tipo de sociedade é essa que suprimiu a imagem da vida dos alunos, ou impôs uma imagem com

outra carga política, na qual eles começam a acreditar que seria verdadeira. Eu fico muito contente

em ser uma artista, professora e pesquisadora, porque todas essas atividades circulam com energias

e dúvidas, retroalimentando-se e até arrefecendo quando, às vezes em sala de aula, um pensamento

que eu gostaria de deixar claro não se complete. Então, para mim isso é um círculo completo e

acho que eu seria e faria coisas diferentes se fosse apenas uma artista, ou se trabalhasse apenas com

as questões teóricas da imagem e não as produzisse, isto, certamente, implicaria em outras relações

com o pensar. Então, as coisas são como são para mim, pois escolhi estas relações.

IEAT: Em alguns trabalhos anteriores, você fez uso de têmperas para criar camadas e sugerir

características “dantescas” à sua obra. Qual seria, então, o papel da técnica para a construção da sua

arte?

MC: A técnica para mim é uma aproximação honesta da imagem mental mais forte que, no

caso do pigmento e da gema de ovo para a têmpera, vem a ser um material orgânico. Ele cria uma

pele, ou seja, uma película e, querendo ou não, ele pode apodrecer. Um caderno do inferno que

está na exposição Entremundos, por exemplo, está bastante danificado por fungos, apesar de

minhas amigas restauradoras já terem feito o possível para limpar . É como se ele estivesse vivo, no

sentido de uma organicidade. Ele desaparece suavemente, mas constantemente, quase como uma

entidade. No caso das figuras, os emblemas feitos com papel de seda e veladuras são os véus que eu

tento criar e, às vezes, se aproximam do que eu fui pesquisar nesse mundo árabe. Ou seja, é minha

própria educação visual ocidental se deparando com uma coisa que não tem um fim moral. Aquilo

não existe para acalentar culpa, não existe somente para fazer uma educação religiosa. Outro

exemplo é a gravura em metal com uma ponta seca, que é o método mais direto e mais bruto que

se tem para trabalhar. Eu tento trabalhar com a ponta seca, que é a coisa mais áspera do meu

trabalho, para que a técnica não seja um obstáculo para que a imagem mental idealizada venha o

mais rápido possível para o mundo visual. Enquanto a imagem estiver no plano intelectual, ela é

do campo da filosofia, da psicologia, ela não é do campo das artes visuais. Trazer essa imagem para

frente o mais rápido possível implica em pensar quais são os métodos de trabalhar. E essas são as

regras que funcionaram na minha experiência.

IEAT: No seminário anual do IEAT do ano de 2011, ao apresentar o seu projeto, você citou um

texto de Jorge Luis Borges, intitulado “Kafka e seus precursores”, como aparato teórico para o seu

projeto de pesquisa enquanto residente. Você concordaria que todo artista já apresenta em sua obra

trabalhos que o antecedem e, dessa maneira, é possível, ainda, refletir que a criação artística é

imbuída de questões para além da técnica e talento, mas, também, do conhecimento da tradição?

MC: Eu trabalho com a tradição, mas não com a imitação. Eu fiz uma opção estético-

politicaque, na verdade, eu retomo assim: toda escolha

estética é uma escolha política. Quando se fala da questão de

que tudo está imbuído em tudo, toda a formação artística está

realmente na tradição. Pois nós temos uma história da arte

muito recente, com técnicas que foram descobertas e que permanecem iguais. Gravura em metal

permanece igual à época de sua invenção, pintura sobre tela também. Talvez o mundo das imagens

seja mais limitado do que imaginamos. A ideia atelieística da formação do artista é basicamente a

mesma desde que as escolas de arte e as academias foram fundadas. O que fazer com isso? Alguns

artistas imitam, outros renegam. É possível perceber, agora, nas artes um discurso apocalíptico, em

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[...] o que se tem é a troca de um

pensamento erudito por um

pensamento técnico, que, por

muitas vezes, chega até a ser

excludente, porque exclui e

sinaliza quem é um e quem é

outro. Em vez de um

conhecimento fluido – que

especula, que suspeita, que se

questiona sobre as relações entre

autores e épocas [...]

que se afirma que a a pintura, a gravura e o desenho morreram e que vivam as novas mídias, vivam

as artes digitais, viva o efêmero, a projeção de imagens e a instalação. Não uso conceitos, busco

mitos de origem. Eu não abro mão da tradição, principalmente a atelieística da formação, para

fazer com ela o que se acredita que são imagens verdadeiras e honestas do mundo . Imagens essas

que são um projeto político e estético, que permitirão, enquanto imagens, uma ação no mundo. Às

vezes, isso é confundido com engessamento. Quando vemos que um artista atua com figuração,

com desenho, é possível perceber figuras, emblemas, mesmo que esse discurso seja pautado na

negação ou até mesmo, na implosão de ambos. É bom que se misturem as ideias e que se faça com

elas o movimento de alma que se queira. Porém, não se fala mais em coisas como movimento e

alma, porque tudo se transformou em um aparato intelectual tão pesado e tão retórico do sentindo

da linguagem que, muitas vezes, o texto da crítica e da história da arte precede a imagem.

Pensemos na etimologia da palavra descrição, descriptio, temos: descrição de uma paisagem. Esse

termo serviu e foi inventado pelos holandeses, para fazer um cartório da própria Holanda. Para

que servia esta descrição da terra? Um moinho, um lago, uma tintura de linho. Dessa maneira, o

que é uma descrição? Formar uma paisagem, que pode ser uma sala, porque paisagem é sempre uma

coisa que está fora de si. Não existe uma paisagem interior. Paisagem é sempre contemplativa,

porque está fora. Eu acredito que em virtude de minha formação, por ser acadêmica como a de

muitos artistas, tenho que pensar que a arte pode estar se transformando apocalipticamente em

outra coisa, que será substituída por outra coisa, que é o

mesmo que estamos vivendo no mundo da imagem. Marshall

McLuhan escreve: “Somos uma civilização que viaja para

frente a 200 km/h, cuja informação vem pelo espelho

retrovisor”. Ou seja, no mundo do computador, o que temos

é uma estética do Renascimento, com perspectiva, planos,

fundo, linhas de perspectiva excludentes para alcançar a alma

das ideias e afastar o expectador. Os aparatos tecnológicos

são baseados em conquistas da humanidade em termos de

visualidade. Percebemos isto quando estudamos os tratados

de educação dos sentidos, dos patriarcas e doutores da Igreja

que se ocuparam com o controle das imagens. Geralmente

essas questões na Escola de Arte não são abordadas, pois são

entendidas como estudos teológicos. Porém percebemos que Santo Alberto Mágno, São Domingos,

Santo Agostinho e Santo Ignácio de Loyola foram os organizadores do pensamento sobre a

imagem. Seus escritos deveriam fazer parte do nosso currículo de arte, os alunos precisam saber

como percebemos as coisas. As novas gerações só se interessam pelas questões vetoriais, que são as

coisas mais voláteis que se têm para aprender. As questões vetoriais e as imagens que tem que se

compor não são assim tão interessantes. Então, o que se tem é a troca de um pensamento erudito

por um pensamento técnico, que, por muitas vezes, chega até a ser excludente, sinalizando quem é

um e quem é outro. Em vez de um conhecimento fluido – que especula, que suspeita, que se

questiona sobre as relações entre autores e épocas – mas nós pesquisamos provas e teses: as

pesquisas de arte deveriam ser platônicas na estrutura aristotélica.

IEAT: Como você vê o futuro das artes?

MC: Muito já foi feito no universo da linguagem, da imagem, muitas ideias figuram nos

tratados mas isto não significa que não possamos criar coisas novas. Quando se fala do futuro das

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[A pintura] não é uma coisa em si,

é como se fosse uma porta para

outro lugar […]

artes, eu sempre me preocupo, por dois motivos. Primeiro, por nós perdermos o vocabulário

específico e usarmos palavras até de cunho bélico e militar, como, por exemplo, estratégia das

artes. A palavra estratégia não é um termo artístico, é um termo aguerrido. Um aluno certa vez me

falou: “Professora, com você eu sempre tenho que ter uma bala na agulha”. Mas que medo de falar

com esta pessoa, ela pode dar um tiro em mim! Talvez o que ele quisesse dizer é que sempre

precisa ter um repertório de imagem. Então, o que me preocupa é que nós abrimos mão de nossa

voz e emprestamos para diversas áreas do conhecimento como a Psicologia, Filosofia e

Antropologia. Segundo, por eu não acreditar no futuro, porque, nesse momento que estamos

conversando, nós estamos no passado. Canhestramente e filosoficamente pensando, nós não

chegaremos nunca no presente. Eu acredito, se formos prever o futuro, imaginar, figurar, que

vamos ter um retorno grande da tradição das artes. Chegamos a um evaporamento, a uma

fragmentação, a uma atomização tão grande da imagem, que, em algum lugar, ela está se refazendo.

Em algum lugar, no plano do pensamento, essas imagens que estão evaporando estão, ao mesmo

tempo, se refazendo e pretendem voltar, na forma de

gravuras, desenhos e pinturas. Recentemente, estive no museu

do Prado para ver As Meninas, de Velázquez. Eu e talvez cerca

de duas mil pessoas por dia. É uma das coisas mais

impressionantes do mundo pensar como as pessoas gostam de

ver pinturas. Então se questiona que as pessoas veem mais pinturas figurativas? Não, as pessoas

vão, também, ver Guernica, de Picasso, que é uma pintura sonhada em algum local terrífico de dor

e atrocidades. E por que as pessoas vão ver pinturas se o discurso apocalíptico afirma que elas estão

mortas? É porque ela não é uma coisa em si, é como se fosse uma porta para outro lugar, onde não

se está vendo como o artista pinta a mão ou o cabelo, porque não é isso que interessa, mas, sim,

como o mundo é generoso. Velázquez nos colocou dentro de uma pintura, pois nós estamos na

quarta parede e ele nos coloca dentro dessa pintura. É como se nós quiséssemos viver com aquela

pintura pelo menos alguns segundos para fazer parte daquele universo. Eu vejo isso, o retorno da

figuração com uma força magnética, irresistível.