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- 1 - A trajetória da complexidade em Edgar Morin Ariston Azevêdo Resumo As idéias de Edgar Morin vem sendo fonte de constantes estudos no Brasil e a incorporação delas podem ser encontradas em diversas áreas do conhecimento, como a sociologia, a antropologia, a filosofia e a educação, por exemplo. A sua crítica aos pressupostos que sustentam o pensamento simplificador do conhecimento e do real – a noção de ordem, a noção de separabilidade e lógica indutivo- dedutivo-identitária expõe de modo catártico os vieses epistemológicos que há séculos atuam de modo político cognitivo sobre a mente humana. A complexidade do conhecimento e do real é a contraposição de Morin à simplificação que sobre eles insiste em vigorar. Neste sentido, ordem-desordem-interações-organização, não- separabilidade e contradição são noções que aquele pensador francês tem articulado em sua epistemologia da complexidade. O presente texto encerra as primeiras explorações que os autores fazem das idéias de Edgar Morin. Nele são destacadas a trajetória intelectual do autor, as suas principais críticas ao pensamento simplificador e as linhas básicas do pensamento complexo. As implicações dessas idéias para o estudo do fenômeno administrativo e para a prática da administração ainda se encontram em estado de gestação, o que deverá merecer, em breve, um outro ensaio. Palavras-chaves: conhecimento; epistemologia; complexidade. “O que inspira confiança é o distanciamento do temível e a proximidade dos meios de salvação.” Aristóteles, Retórica das paixões. Considerações iniciais Podemos dizer que, em termos contemporâneo, a tarefa intelectual a que se lançou Edgar Morin é digna de ser reconhecida como uma das mais audaciosas. Poucos ousaram, como ele, ultrapassar – “confrontar” talvez fosse a melhor palavra para exprimir a nossa percepção pessoal do trabalho

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A t r a j e t ó r i a d a c o m p l e x i d a d e e m E d g a r M o r i n

Ariston Azevêdo

Resumo

As idéias de Edgar Morin vem sendo fonte de constantes estudos no Brasil e a incorporação delas podem ser encontradas em diversas áreas do conhecimento, como a sociologia, a antropologia, a filosofia e a educação, por exemplo. A sua crítica aos pressupostos que sustentam o pensamento simplificador do conhecimento e do real – a noção de ordem, a noção de separabilidade e lógica indutivo-dedutivo-identitária – expõe de modo catártico os vieses epistemológicos que há séculos atuam de modo político cognitivo sobre a mente humana. A complexidade do conhecimento e do real é a contraposição de Morin à simplificação que sobre eles insiste em vigorar. Neste sentido, ordem-desordem-interações-organização, não-separabilidade e contradição são noções que aquele pensador francês tem articulado em sua epistemologia da complexidade. O presente texto encerra as primeiras explorações que os autores fazem das idéias de Edgar Morin. Nele são destacadas a trajetória intelectual do autor, as suas principais críticas ao pensamento simplificador e as linhas básicas do pensamento complexo. As implicações dessas idéias para o estudo do fenômeno administrativo e para a prática da administração ainda se encontram em estado de gestação, o que deverá merecer, em breve, um outro ensaio.

Palavras-chaves: conhecimento; epistemologia; complexidade.

“O que inspira confiança é o distanciamento do temível e a proximidade dos meios de salvação.”

Aristóteles, Retórica das paixões.

Considerações iniciais

Podemos dizer que, em termos contemporâneo, a tarefa intelectual a que se lançou Edgar Morin é digna de ser reconhecida como uma das mais audaciosas. Poucos ousaram, como ele, ultrapassar – “confrontar” talvez fosse a melhor palavra para exprimir a nossa percepção pessoal do trabalho

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deste autor – as polaridades1 que herdamos como legado da ciência clássica, suas legislações, separações, certezas e racionalizações; poucos, mas muito poucos mesmo, tiveram ousadia suficiente para não recuar diante dos obstáculos que o conhecimento especialista representa para quem se lança a ultrapassar suas fronteiras. É exatamente isto que seu projeto epistemológico faz: ultrapassa o pensamento simplificador, isto é, uma espécie de política cognitiva2 que desconsidera a existência e a linguagem da complexidade, no real e no próprio conhecimento.3 Neste texto temos por intenção primeira mostrar como Edgar Morin caracteriza o pensamento simplificador da ciência clássica, e o faremos abordando o que ele considera como sendo os pilares ou princípios daquela ciência, a saber, a noção de ordem, a noção de separabilidade e a lógica indutivo-dedutivo-identitária que lhe dá coerência. Feito isto, trataremos de apresentar, de maneira sintética, as críticas que ele faz ao pensamento simplificador, quando de sua formulação do pensamento complexo. Por último, faremos algumas breves considerações finais sobre o tema. Mas antes de adentrarmos em nossa questão primeira, elaboraremos uma pequena síntese do que até agora o pensador parisiense escreveu em termos de livros.

Síntese do percurso acadêmico de Edgar Morin

Logo de pronto convém dizer que Morin considera-se, por um lado, “inscrito no tecido cultural francês e europeu e, de outro, um pouco como um aerólito” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:165). Entre suas influências recebidas estão, nas ciências sociais e políticas, Marx, Charles Gide, Simiand, Pirou, Hauser e outros; na filosofia, Heráclito, Montaigne, Pascal, Rousseau, Hegel e Prout; na psicologia, Freud, Jung, Lacan, Rank e Ferenczi; tendo também sofrido influência de historiadores como Lamartine, Aulard, Jaurès, Mathiez e Bachelard (enquanto historiador das ciências). O cinema, igualmente, tem influência significativa em sua vida, assim como algumas novelas e peças de teatro escritas por literários como Molière, Shakespeare,

1 Polaridades como “contínuo versus descontínuo”, “espécie versus indivíduo” e “sociedade versus indivíduo” servem aqui como exemplo.

2 Tomamos este termo de empréstimo de Guerreiro Ramos. Para ele, a política cognitiva “consiste no uso consciente ou inconsciente de uma linguagem distorcida, cuja finalidade é levar as pessoas a interpretarem a realidade em termos adequados aos interesses dos agentes diretos e/ou indiretos de tal distorção” (RAMOS, 1989:87).

3 Estamos conscientes de que a compreensão do projeto epistemológico de Edgar Morin não é uma das tarefas mais fáceis de serem realizadas, e que por isso, o fato de intentarmos falar sobre a sua epistemologia, não significa que conseguiremos esgota-la de uma vez por todas. Pelo contrário, o nosso exercício aqui não aspira a essa finalidade, mesmo porque acreditamos que ainda não estamos em condições para uma empreitada dessa envergadura. No entanto, temos certeza que as dificuldades agora percebidas não nos impedem do exercício intelectual que ora nos aventuramos.

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Cevantes, Balzac, Flaubert, Tostoi e Dostoievski, além de Rimbaud, Shelley, entre outros. Visto desta perspectiva, temos que admitir que quem passa por essa linhagem de intelectuais dificilmente poderia centra-se, de fato, em um ponto único do conhecimento. Dogmatismo, cepticismo, subjetivismo, realismo, pragmatismo e criticismo, tudo isso parece ter sido visitado por Morin – uma formação complexa, como se pode depreender, mas que nem por isso o fez perder a coerência em sua proposta epistemológica.

A seguir, traçaremos de maneira muito breve o legado literário até agora deixado por Edgar Morin. Por não termos tido contato direto com todas as obras listadas, gostaríamos que os parágrafos logo abaixo fossem vistos como um elencar direto de títulos, e não como um apanhado crítico, como é comum se esperar de um texto mais elaborado. Contudo, esperamos que tal confissão não induza o leitor a uma depreciação precipitada de tudo o que se encontra neste texto, tão pouco do que pessoalmente apreendemos do contato que mantivemos com as idéias desse pensador francês.4

Quando aluno em Sorbonne, Morin freqüentou os cursos de História, Geografia e Direito, simultaneamente, tendo também cursado disciplinas de Ciências Políticas, Sociologia e Filosofia, estudos concluídos no ano de 1942. Publica em 1949 uma pequena obra de cunho sociológico e jornalístico, intitulada L’An zéro de l’Allemagne, onde procura narrar as condições de vida de uma Alemanha que ele observou durante o período de guerra em que lá esteve como representante do Estado Maior do Primeiro Exército Francês e como assessor de comunicação e imprensa do Governo Militar da França. Após isso, viria a publicar, em 1951, o seu segundo livro, L’Homme et la mort, uma obra em que a sua reflexão sobre a morte seria unida a alguns estudos de cunho antropológico, histórico, social e biológico. Neste livro em específico, a sua intenção foi mostrar que o homem expressa o que de melhor há na vida quando se depara5 com a morte. Para isso, recorreu às idéias psicanalistas de Freud, Jung, Lacan e outros estudiosos da área, associando-as ao seu entendimento próprio do marxismo, corrente de pensamento com a qual manteve ligações desde os seus dezenove anos de idade, época em que se filiou ao partido comunista francês. O seu próximo livro publicado teve o título de Le cinéma ou l’homme imaginaire e foi divulgado em 1956, com nova edição no ano de 1978. Aqui, como o próprio título sugere, entra em jogo o fascínio que Morin possuía pela complexa

4 O leitor notará a forma “apressada” adota por nós quando do apontamento dos últimos livros publicados por Morin. Esta postura deve-se ao fato de nossa atenção explicativa voltar-se, nesta parte do ensaio, principalmente para as primeiras obras do autor em foco, haja vista que o desfecho de seu pensamento será, em parte, a discussão deste texto. Também, havemos de frisar que as sínteses do conjunto da obra de Edgar Morin que a partir desse ponto nos referiremos foi inspirada no pequeno livro de Izabel Petraglia (2000).

5 “Deparar”, aqui, entendido em sentido figurado.

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relação existente entre o real e o imaginário, entre a ficção e a concretude da vida. Aliás, diga-se de passagem, a reflexão sobre o cinema foi para Morin de grande relevância, levando-o, inclusive, a publicar um segundo livro, Les stars, em 1957, cujo título na língua portuguesa foi traduzido como “As estrelas: mito e sedução no cinema”. Se no livro de 1956 a natureza antropológica do cinema foi o seu olhar sobre a “sétima arte”, no de 1957, a feição sociológica, sobretudo a sociologia contemporânea de sua época, foi o destaque.

Nos anos de 1959, 1962, 1965 e 1967, Morin publica Autocritique, L’Esprit du temps, Introduction à une politique de l’homme e Commune en France: la métamorphose de Plodemet, respectivamente. Na primeira destas obras, cujo caráter é inteiramente autobiográfico, Morin busca, na tentativa de mediar a objetividade com a subjetividade, reconciliar o ser humano com o mundo; em L’Esprit....6 a sua intenção é tratar especificamente do fenômeno social da cultura de massa – uma inspiração também cinematográfica; já Introduction... é marcado pela integração das concepções Marxista e Freudianas na apresentação da multiplicidade do homem – o homem complexo –, de onde retira uma espécie de política de desenvolvimento global do homem; e Commune... é um livro particular, pois que nele são abordados aspectos peculiares de uma pequena comunidade francesa de aproximadamente 3.000 hab., com o intuito de registrar sua diversidade e singularidade em termos sócio-histórico-cultural.

Depois dessas obras, Morin viria a publicar Mai 68: la bréche (1968), La rummeur d’Orléans (1969), Le vif du suject (1969) e Paradigme perdu: la nature humaine (1973), livro que seria o ponto originário para um conjunto de reflexões sobre a investigação de método, uma obra composta por quatro volumes: Le Méthode 1: la nature de la nature (1977), Le Méthode 2: la vie de la vie (1980), Le Méthode 3: la connaissance de la connaissance (1986) e Le Méthode 4: les idées (1991). Vejamos como Petraglia sintetiza esse conjunto de textos:

O primeiro volume procurou articular a ciência do homem à ciência da natureza, através da relação ordem-desordem-organização, partindo da reflexão crítica da cibernética e da teoria dos sistemas, chegando à complexidade da natureza e à natureza da complexidade. (...) [O segundo volume] questiona a vida antes mesmo do surgimento do homem e o homem em seu papel frente à vida. Fala da ecologia, da autonomia das espécies, da auto-organização dos seres vivos, e da complexidade da vida no que tange os atos de nascer e de morrer, como também interroga a existência solitária e solidária dos homens. (...) [No terceiro volume, Morin] procurou refletir sobre os limites e as possibilidades do conhecimento, apontando as disjunções existentes nas ciências físicas, humanas e biológicas, no sentido de reconciliá-las, para a compreensão do todo.

6 Temos notícias de que em 1975 foi publicado um segundo volume desta obra.

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Apresenta o estudo das idéias sob o ponto de vista da antropologia do conhecimento. (...) [No quarto volume], Morin nos mostra o estudo das idéias sob três vertentes fundamentais: ecologia das idéias, que aponta os aspectos culturais e sociais; noofesra, que apresenta o ponto de vista da autonomia e da dependência da vida das idéias e noologia, que mostra a organização das idéias a partir da linguagem e da lógica (2000:29-30).

Para fins conclusivos dessa introdução, falta elencar aqui as últimas obras escritas por Edgar Morin que temos conhecimento: Pour sortir du XXè sièclé (1981), Science avec conscience, (1982), De la nature l’URSS (1983), Le rose et le noir (1984), Sociologia (1984), Science et conscience de la complexité (1984), Penser l’Europe (1987), Vidal et les siens (1989), Introduction à une pensée complexe (1990), Un nouveau commencement (1991), Le doigt dans l’Emile: notes éparses pour un Emile contemporain (1992), Terra-Patrie (1993) e A decadência do futuro e a construção do presente (1993).

Feitas estas considerações, achamos conveniente informar que ao longo do período que compreende os anos de 1968 a 1975, Edgar Morin esteve envolvido com um grupo de pesquisadores – o “Grupo dos Dez” – de diversas áreas, entre eles cibernéticos e biologistas, de onde acreditamos que o escritor francês tenha descoberto os indícios de suas reflexões, intercedidas pelo pensamento cibernético, à respeito da complexidade. Paralelamente, Morin também esteve envolvido, durante os anos de 1969 e 1970, com o Salk Institute for Biological Studies de San Diego, além do Centre International d’Études Bio-Antropologiques et d’Anthropologie Fondamentale, de onde se originou o seu livro L’Unité de l’Homme, publicado em 1974.

Pilares que sustentam o pensamento simplificador

Pensar o problema da complexidade é, antes de tudo, pensar primeiramente o problema da simplificação, um problema que tem as suas origens ligadas à própria nascença do conhecimento cientifico, haja vista que este, quando de suas primeiras articulações, operou duas grandes disjunções: uma que deriva da atitude questionadora adotada pelos primeiros cientistas frente ao julgamento de valor e ao dever moral, que trouxe como conseqüência a disjunção absoluta entre conhecimento e moral; e uma outra, proposta por Descartes, que advoga a disjunção entre sujeito (ego cogitans) e objeto (res extensa). Enquanto a primeira disjunção apontaria para a geração de uma espécie de “conhecimento amoral”, a outra, por sua vez, remetia o sujeito para a filosofia, e o objeto, para a ciência, o que na opinião do autor de Terra Pátria mutilou tanto esta quanto aquela, causando o “divórcio trágico” entre ciência e filosofia (MORIN & VÁRIOS, s/d:31).7 E

7 Diz Morin em outra obra: “efetivamente, o desenvolvimento da Filosofia e da Ciência seguiu a direção fixada por Descartes. A filosofia tornou-se cada vez mais uma filosofia

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não apenas isso. Levar a cabo aquele tipo de condição criadora de conhecimento exigia, também, que tanto o sujeito que conhece como o objeto que se visa fossem, ambos, devidamente descontextualizados, o que significa dizer, isolados entre si e de tudo que lhes cerca. Assim, essa dupla disjunção originária, do conhecimento da moral e do sujeito do objeto, levaria a uma “ruptura decisiva”, qual seja, a do conhecimento com a consciência: um conhecimento sem consciência, “sem consciência moral, sem consciência reflexiva e também subjetiva” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:28). É este o estado em que o conhecimento científico criticado por Morin se encontra. E o que isso significa? Significa a perda da reflexão do sujeito sobre o próprio conhecimento que constrói, o que conduz a um desconhecimento do conhecimento – se se retira o sujeito do conhecimento que conhece, se se retira a consciência do conhecimento, temos então um tipo de conhecimento que não mais possibilita o conhecimento de si próprio.

A proposição de Morin, no entanto, segue no sentido do conhecimento do conhecimento, um conhecimento com consciência, o que só pode ocorrer caso o sujeito seja reintroduzido no processo de conhecer.8 Na realidade, a possibilidade do conhecimento do conhecimento – aquilo que pretende Morin – requer o retorno do sujeito, e esse retorno está sendo clamado por meio das várias indagações sociais a respeito da responsabilidade do cientista frente à incerteza do conhecimento científico que produz, uma incerteza que lhe é intrínseca; ou dizendo de outra maneira, o cientista trabalha em algo que “pode produzir vida e morte, sujeição ou liberação” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:35).

reflexiva, do sujeito que por si próprio tenta sondar-se, conhecer-se, enquanto o conhecimento científico fundou-se excluindo por princípio o sujeito do objeto de conhecimento. E essa exclusão podia ser desse modo legitimada. O sujeito é considerado como qualquer coisa parasita no sentido de que ele faz intervir a subjetividade de tal e tal pesquisador. Com efeito, há pesquisadores de opiniões diferentes, de países diferentes, de classes diferentes, de metafísicas diferentes, e é isso que deve ser retirado, a sua subjetividade.” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:28)

8 Não se trata aqui de dizer que o sujeito é consciência, e apenas isso. Essa propositura já foi muitas vezes defendida, em especial por algumas correntes existencialistas. Pelo contrário, na visão de Morin, a consciência é a ultima qualidade adquirida pelo sujeito, a mais preciosa, uma das mais frágeis. O aparecimento da consciência no sujeito é uma emergência reflexiva, que permite a ela a possibilidade de retornar a si mesma, em uma espécie de circuito. A pergunta que surge aqui é a seguinte: então, o que é esse sujeito? Estaríamos entendendo-o na concepção corrente? É claro que não. O entendimento que Morin tem do sujeito não segue, digamos assim, as vias convencionais. Ele não parte de uma base afetiva ou sentimental para definir o sujeito. Não. O ponto do qual parte para propor a sua definição do sujeito é a base bio-lógica, para daí então atingir uma concepção complexa do sujeito. (Sobre este ponto ver o anexo 2, “A noção de sujeito”, em A cabeça bem-feita). Assim, reintroduzir o sujeito no processo de conhecimento não é simplesmente retornar com a consciência; é também ser sabedor de tudo o que leva a consciência a emergir enquanto tal.

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Antes de abordarmos com maiores detalhes o que significa, de fato, conhecimento com consciência, voltemo-nos, de agora em diante, às considerações feitas pelo nosso autor sobre o tipo de conhecimento científico que ele designa como simplificador. Na realidade, se bem observarmos a exposição de suas idéias, Morin primeiramente constrói uma espécie de sistematização da crítica aos princípios, objetivos, hipóteses e conclusões de um saber fragmentado, que simplifica o real e o próprio conhecimento, para, posteriormente, trazer à tona a questão da complexidade e seus os desafios em termos de uma nova articulação do saber. Ao pensamento simplificador Morin contrapõe o pensamento complexo. O seu ponto de partida parece dar-se na seguinte ordem: o real é complexo9; por ser complexo, ele exige que o conhecimento se complexifique;10e mais, o real e o conhecimento são imprecisos11. Por assim pensar, a elaboração de sua epistemologia faz-se por meio de uma profunda reflexão a respeito das noções fecundadoras do conhecimento científico clássico e de suas implicações. Para os fins deste trabalho, decidimos operar com apenas três dessas noções, às quais também Morin chama de princípios, sem nos atermos, demasiadamente, às suas implicações.12 Essas noções são as seguintes: a noção de ordem, a noção de separabilidade e o caráter absoluto da lógica indutivo-dedutivo-identitária na construção do conhecimento. Vejamos, de maneira sintética, a caracterização que Morin dá a cada uma delas, para depois avançarmos para a questão da complexidade.

9 De fato, o problema da complexidade em Morin funda-se no real, que é “enorme” e “não se deixa jamais arrebatar pelo nosso espírito, pela nossa ideologia, e os estimula a se auto-ultrapassar”; ele é “resistente”, e é exatamente a sua resistência que levanta a questão da complexidade (MORIN & LE MOIGNE, 2000:77-78).

10 A complexidade do real, como afirmamos na nota anterior, chama o abstrato a se complexificar. É por isso que o autor irá afirmar que o pensamento que se quer complexo está sempre em combate “com e contra a lógica, com e contra as palavras, com e contra o conceito” (MORIN & VÁRIOS, s/d:14).

11 Neste sentido, talvez seja correto dizer um pouco mais. A imprecisão do conhecimento não é a mesma imprecisão da realidade. Há, acreditamos, diferenças qualitativas e quantitativas substanciais entre ambas, muito embora a imprecisão do real seja impossível de ser provada, ao passo que a imprecisão do conhecimento é sempre revelada.

12 Muito embora não tenhamos feito no início do texto o esclarecimento que se segue, a sua indispensabilidade nos leva a fazê-lo agora, sob pena de nosso procedimento frente ao pensamento de Morin ser compreendido inadequadamente, menos pelo conteúdo do que apresentamos do que pela forma como o fazemos. O fato de nos atermos as essas três noções, não significa que um número maior (ou menor) de caracteres do pensamento simplificador não possa ser extraído das obras de Morin. Ele mesmo, em Ciência com consciência, elabora treze princípios para tratar do assunto, e em A inteligência da complexidade os apresenta, em determinado momento do livro, reagrupados em nove tópicos, para em outra parte dessa mesma obra os apresentar como três pilares (ordem, separação e lógica). Da mesma maneira ele assim procede em Os sete saberes, onde aponta as características do conhecimento simplificado em três categorias, a saber: disjunção e especialização, redução e disjunção e a falsa racionalidade. Desse ponto foi que partimos neste texto.

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A noção de ordem, também designada por princípio da ordem, tem caráter fundador, digamos assim, entre os outros princípios. A sua atribuição primeira é “legislar”, ou seja, subordinar os elementos fundamentais da vida humana individual e coletiva, bem como a natureza, a uma a concepção determinista e mecânica do mundo. O Corolário dessa legislação é a universalização – o universo obedece a leis deterministas; há uma “ordem-mestra” no universo e é ela que deve guiar o conhecimento. Sob este prisma, todo o conhecimento aspira à formulação de leis com o intuito de poder prever, ou melhor, não apenas isso, mais o de determinar o comportamento futuro das coisas, dos fenômenos. À luz desse princípio, não há desordem, aleatoriedade, dispersão, agitação e outros fenômenos correlatos.

A noção de separabilidade ou princípio de separação, de disjunção.13 Trata-se de outra característica marcante do pensamento simplificador. A sua ação primeira consiste em disjuntar o objeto do meio ao qual pertence, ou seja, advoga que a compreensão de determinado objeto só é possível quando se procede através do seu isolamento do meio ambiente com o qual inter-relaciona-se. Da mesma maneira, esse tipo de comportamento também é levado a termo no que tange à relação do sujeito com o objeto da seguinte maneira: é imperativo para o pensamento simplificador que o objeto seja disjunto do sujeito que o percebe e o concebe. Como podemos apreender, a noção de separabilidade deriva diretamente do racionalismo cartesiano segundo o qual é necessário, para que qualquer fenômeno seja devidamente estudado ou para que qualquer tipo de problema encontre solução, a decomposição do todo em partes. A ciência atual está por demais refém desse princípio. Há, nos dias de hoje, uma parcelarização generalizada do saber: as grandes ciências encontram-se separadas entre elas; internamente a essas grandes ciências também notamos a separação entre as diversas disciplinas, que via de regra encontram-se fechadas em si mesmas; e no interior dessas disciplinas observamos os especialistas enclausurados juntamente com seu objetos de estudo, a “coisa auto-suficiente”.

13 Este princípio é fortalecido por um outro, o princípio da redução. Sobre ele não nos determos a falar no corpo deste trabalho, apesar da sua importância, pois que isso incorreria em estender demasiadamente o texto. Para os fins por nós visados, apenas convém que se diga que o princípio da redução tem como inclinação reduzir o conhecimento apenas ao que seja passível de ser medido, quantificado e formalizado. Nos dizeres de Morin: “...a redução ao quantificável condena à morte qualquer conceito que não se traduza por uma medida. Ora, nem o ser, nem a existência, nem o sujeito conhecedor não podem ser matematizados nem formalizados. (...) O espírito da redução anima todos os empreendimentos destinados a dissolver o espírito no cérebro, a reenviar o cérebro ao neurônio, a explicar o humano pelo biológico, o biológico pelo químico ou pelo mecânico. Ele anima todos os empreendimento que tratam da história e da sociedade humana, fazendo economia dos indivíduos, da consciência, dos acontecimento.” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:96-97).

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A terceira noção corresponde à lógica indutivo-dedutivo-identitária. Esta é reflexa dos três princípios sob os quais a razão científica clássica assenta-se, qual sejam, a indução, a dedução e os axiomas identitários de Aristóteles (princípio da identidade, princípio da contradição, princípio do terceiro excluído). Esses três princípios são fundamentais na construção do saber simplificador, dado que é neles que se sustenta a verdade científica. Podemos dizer também que neles reside uma espécie de confiança especial: a confiança epistemológica.14 Como diria Morin, “o conhecimento simplificador baseia-se na confiança absoluta da lógica para estabelecer a verdade intrínseca das teorias, uma vez que elas estão fundadas empiricamente nos procedimentos da verificação“ (MORIN & LE MOIGNE, 2000:60).

Estas três noções, como não poderiam deixar de ser, interdependem e se reforçam mutuamente. Delas deriva e sobre elas se constrói o pensamento simplificador, um tipo de pensamento que, para Morin, adquire o caráter de paradigma15, que tem na disjunção e na redução16 o seu primado. Vejamos como Morin sintetiza as características desse pensamento:

Ele só consegue conceber os objetos simples que obedecem às leis gerais. Ele produz um saber anônimo, cego, sobre todo o complexo; ignora o singular, o concreto, a existência, o sujeito, a afetividade, os sofrimentos, os gozos, os desejos, as finalidades, o espírito, a consciência. Ele considera o cosmos, a vida, o ser humano, a sociedade como máquinas deterministas triviais através das quais se poderiam prever todos os outputs se conhecêssemos todos os inputs (MORIN & LE MOIGNE, 2000:100).

Dessa maneira, a simplificação torna-se

estreitamente correlacionada à manipulação, ela própria correlacionada à

14 Em Para um novo senso comum, capítulo primeiro, Boaventura discute a “confiança epistemológica” derivada do paradigma epistemológico da ciência moderna. Trata-se de uma boa fonte de consulta para o entendimento das críticas que atualmente são feitas à lógica derivada de Aristóteles. O mesmo podemos dizer de Bachelard em Filosofia do novo espírito científico, capítulo quinto (a lógica não-aristotélica), onde os limites da lógica aristotélica são apontados.

15 O entendimento de Morin sobre o termo paradigma destoa do sentido etimológico da palavra, assim como do sentido que a mesma recebeu de Thomas Kuhn. “Um paradigma, diz Morin, é um tipo de relação muito forte, que pode ser de conjunção ou de disjunção, logo, aparentemente de natureza lógica, entre alguns conceitos-mestres; este tipo de relação dominadora determina o curso de todas as teorias, todos os discursos que o paradigma controla. O paradigma é invisível para quem sofre os seus efeitos mas é o que há de mais poderoso sobre as suas idéias. A noção de paradigma é, ao mesmo tempo, lingüística, lógica e ideológica: é uma noção nuclear.” (MORIN & OUTROS, s/d:31). Para maior esclarecimento dos termos, ver MORIN (1991:211-238).

16 Para esclarecimento desse termo, ver os comentários tecidos na nota de número 16.

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idéia, ou, melhor ainda, ao mito da conquista da natureza e do domínio do homem sobre o Universo. É um princípio de persuasão, segundo Heidegger. Conduz à dominação, ao que é preciso acrescentar que ela conduz ao desprezo, no dois sentidos do termo (tomar abstração por realidade e desprezar tudo aquilo que não participa do projeto de dominação).

Constitui-se desse modo ‘um paradigma’ de disjunção/redução, comportando nele mesmo um princípio de seleção/rejeição. Esse paradigma, presente de maneira invisível no espírito daquele que sofreu a sua influência, determina a dissolução dos complexos para reconduzi-los aos seus elementos de base, a dissolução do não-formalizável para reduzir o real ao seu esqueleto matemático. Ele ordena a separação do objeto do meio ambiente, da ordem da desordem, das disciplinas das ciências e da ciência da filosofia. A seleção escolhe tudo aquilo que é ordem, quantidade, medida. A rejeição elimina o ser, a existência, o individual, o singular. Esse paradigma que regula todos os conhecimentos reinou no conhecimento científico, técnico, político (MORIN & LE MOIGNE, 2000:101).

E em uma só frase: “o pensamento simplificador é incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitas multiplex): ou ainda unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou, pelo contrário, justapõe a diversidade sem conceber a unidade” (MORIN, 1995:18).

A crítica ao pensamento simplificador ou introdução ao pensamento complexo

Para compreendermos o pensamento complexo formulado por Morin, é de fundamental importância que não tenhamos em mente apenas o contexto em que se constroem as ciências, ou seja, a vida acadêmica. Contrariamente a outras epistemologias que partem e têm por foco as práticas efetivas dos cientistas17, e que quase sempre acabam por afastar ainda mais o conhecimento científico do conhecimento de senso comum18,

17 Este nos parece ser o caso da epistemologia de Gaston Bachelard (1973, 1976, 1996), que se baseia principalmente nas ciências físicas e químicas. Citamos este autor por questões de maior aprofundamento nosso em sua proposta epistemológica.

18 Aqui se confirma realmente o caso da epistemologia de Bachelard. Em seu trabalho fica devidamente claro que o senso comum, ou a “opinião”, como ele próprio diria (Bachelard, 1996), apresenta-se ao novo espírito científico como o primeiro obstáculo epistemológico a ser ultrapassado. Devemos destacar também que semelhante opinião foi emitida pelo intelectual português Boaventura de Souza Santos (2000). É de Bachelard que parte Boaventura para preparar a sua epistemologia de uma ciência pós-moderna: primeiramente, porque a construção epistemológica de Bachelard é considerada por Boaventura como a que maior influência obteve entre os cientistas naturais e sociais nos últimos anos; em segundo lugar porque, sem recorrer a fundamentos metafísicos, mas tão somente aos

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a epistemologia implícita ao pensamento complexo é uma epistemologia que tem como um dos seus pressupostos o diálogo entre os vários saberes que se apresentam aos homens.19 Neste sentido, o pensamento complexo requer, impreterivelmente, que tenhamos em vista a nossa condição no Planeta Terra – a terra-pátria20 – como o grande quadro referencial na busca do “conhecimento pertinente”, isto é, de um conhecimento contextualizado – a Terra é o nosso contexto e o das demais espécies.21 Neste sentido, Morin não esconde a cosmogonia que há por trás de seu pensamento. Embora lamentando que a descoberta (científica) do cosmos, de um “novo” cosmos22, ainda não nos tenha penetrado os espíritos (MORIN & KERN, 2001:46), aquele intelectual parisiense parece incansável em sua labuta para conciliar a humanidade com o cosmos a partir da ampliação do pensamento e das ações. Escreveu ele em Terra-Pátria: “...é no cosmos que devemos situar o nosso planeta e o nosso destino, as nossas meditações, as nossas idéias, as nossas aspirações, os nossos medos, as nossas vontades.” (2001:47).

Mas foi inspirado pela necessidade de romper com a idéia dominante de um saber atomizado, parcelado, disciplinar, e guardando

resultantes da prática científica, a reflexão epistemológica de Bachelard representa o “máximo de consciência possível” de uma concepção científica engajada na luta pela defesa da autonomia do conhecimento científico frente às demais formas de conhecer, em especial ao senso comum, bem como porque trata-se de uma concepção que não nega o seu comprometimento com a verdade proveniente da ciência (2000:30). Assim, por considerar a reflexão epistemológica bachelardiana como a concepção mais avançada que a ciência moderna gestou, é nela que Boaventura acredita encontrar os limites da lógica dos pressuposto científicos modernos, sendo, portanto, o ato conceptual que melhor pode fornecer opções para a sua própria superação.

19 Não somente os saberes científicos, achamos nós (vejamos o caso de Saberes globais e saberes locais, um livro em que Morin mantém um diálogo com Marcos Terena, professor e líder indígena), apesar de que em Morin, vez por outra, percebemos o domínio do cientificismo em seu discurso.

20 Como não será a nossa intenção aqui entrarmos nos pormenores de suas obras, quando necessário apenas comentários sintéticos serão feitos. Em Terra-Pátria (MORIN & KERN, 2001), a proposta que surge é a de que estamos no momento em que urge reformular o pensamento – “fazemos a cabeça”, sugere ele em outro livro – para que possamos compreender a crise planetária que nos abate neste final do séc. XX início do séc. XXI. E não apenas isso. Torna-se urgente reformarmos o pensamento – reforma paradigmática – para que possamos redefinir as nossas “finalidades terrestres”; descobrir, milhões de anos após o surgimento da terra e do homem, “a comunidade de destino homem/natureza”, e, assim, co-pilotarmos a terra.

21 Considerando-se, é claro, a inexistência de seres extra-terrenos.

22 Talvez ele adjetive de “novo” para ressaltar a diferença do entendimento de cosmos que há entre nós, criaturas do terceiro milênio, e a que possuíam os antigos: para uns, um cosmos fruto das descobertas da astronomia, do auxílio técnico do telescópio Hubble; para outros, um cosmos fruto da teoria, da contemplação, tal como entendida pelos gregos (MORIN & KERN, 2001:43-47).

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crença na incompletude e na incerteza que há em todo e qualquer conhecimento, que Morin buscou elaborar de maneira sistemática a sua concepção sobre a complexidade. Esta, nos diz ele em O problema epistemológico da complexidade (s/d:13), enquanto problema de investigação, não emergiu como preocupação direta ou indireta dos epistemólogos nem dos filósofos da ciência; apenas Bachelard, ressalta, tratou da complexidade “de maneira profunda”, mas não foi “redescoberto e compreendido na filosofia das ciências”.23 Na realidade, Morin credita a emergência da “problemática da complexidade” à cibernética, à teoria da informação e ao conceito de auto-organização, conquanto, adverte ele, naquelas duas primeiras áreas de conhecimento a distinção conceitual entre complexidade e complicação seja muitas vezes ignorada. Por não ter sido percebida anteriormente pelos cientistas – apesar, como falamos acima, do prenúncio feito por Bachelard – a complexidade não foi levada ao centro dos debates científicos; a bibliografia a seu respeito ainda é, segundo informa Morin (In: MORIN & LE MOIGNE, 2000:46-47), muito restrita (apenas Weaver, Von Neumann, Von Forerster, Bachelard, H. Simon, Henri Atlan, Hayek); via de regra, a sua presença efetiva nos discursos manifesta-se como desordem, incerteza, confusão, irracionalidade.

A inteligência que pensa de maneira simplificada é uma “inteligência cega”, porque perdeu de vista a noção de conjunto e de totalidade quando partiu para o isolamento dos objetos daquilo que lhes envolve, o mesmo ocorrendo em relação ao sujeito que lhes percebe e conceitua.24 Se em

23 Quanto à referência feita a Bachelard, queremos acreditar que Morin percebeu que aquele pesquisador foi um dos primeiros a apontar para três pontos que gostaríamos de tratar, de maneira resumida. O primeiro, diz respeito à importância capital que as teorias – e somente elas – possuem quando se tratar de conhecer o real, os “mistérios do real”, diria Morin, ou os “aspectos desconhecidos do real”, diria Bachelard. O segundo ponto refere-se ao fato de as teorias serem, em Bachelard, vistas como construções do espírito (científico); que o espírito (científico) está constantemente empenhado em prosseguir de maneira abstrativa, querendo isso significar que as construções teóricas são as fontes de purificação do espírito (científico). O terceiro e último ponto diz respeito ao fato de o avanço intensivo do uso da razão na tarefa de conhecer nunca apontar para a simplificação, antes, porém, desenvolve-se, sempre, na direção de uma complexidade crescente: a complexidade é sempre resultante do que a priori nos é apresentado como simples ou, dizendo como Bachelard, “o elemento sobre o qual a razão trabalha será mais ou menos complexo de acordo com o grau de aproximação” (1976:43). Obviamente que outros pontos, outras afinidades entre o pensamento de Morin e o de Bachelard poderiam ser apontadas, assim como também acreditamos que as diferenças deveriam ficar explícitas, muito embora não seja esse o momento adequado para uma investida de profundidade. Contudo, vale ressaltar que, se para Bachelard o conhecimento é complexo, e que a existência do real como real ocorre à proporção mesmo que a abstração racional avança – o ultraracionalismo dialético seria o estágio final (?) a ser alcançado –, Morin parte do fato mesmo de que o real é complexo, por isso exige um conhecimento também complexo, um pensamento complexo.

24 A inteligência cega é prisioneira do pensar simplificador, porque unidimensionaliza o que é multidimensional. Ela só sabe operar parceladamente, mecanicamente, reduzindo e disjuntando as coisas e os homens. O verbo que conjuga é o separar. Por ser “incapaz de

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determinado momento a ciência clássica afirmava possuir visão de totalidade, tratava-se de uma totalidade revestida de totalitarismo. Urge, então, que se aponte os limites do pensamento simplificador. É neste sentido que as noções de ordem-desordem-intetrações-organização, não-separabilidade e a de contradição são apresentadas por Morin.25

Para Morin, assumir uma posição crítica perante o princípio da ordem não significa que a ordem e a lei sejam desnecessárias; pelo contrário, elas são necessárias; porém, como fonte explicativa para a complexidade, são insuficientes. Afinal, pensar o conhecimento de maneira complexa, diz ele, exige que a ordem (as leis e determinação) e a desordem sejam detectadas simultaneamente, e que se reconheça as relações que há entre elas: “o interessante é que a ordem e a desordem têm uma relação de complementaridade e de complexidade” (2000:52). Assim entendido, o conceito de ordem deixa de seguir o seu significado antigo, qual seja, o de determinismo, estabilidade, permanência, imutabilidade, constância, um significado que, ao tomar o universal como referência primeira, expulsa a possibilidade de existência conjunta do que é local e o que seja singular26, para incluir a idéia de singularidade, de peculiaridade, presente na emergência e no desenvolvimento das coisas, bem como a idéia de interação, o que implica afirmar que nada pode existir sem sofrer influências internas e externas, nem sem ser interdependente.27 Mas isso não que dizer apenas que o conceito de ordem foi resignificado, e que de agora em diante podemos pensar o simples como sendo complexo. Não. Para pensarmos a ordem à luz da complexidade, é necessário que tenhamos em consideração, também, a presença da desordem; e não apenas isso, é necessário que a desordem seja vista sob três formas diferentes, quais sejam, como acaso, como acontecimento e como acidente – o acaso simboliza a impotência de predizer que cerca o observador frente a multiplicidade de formas da desordem; o acontecimento significa a não-regularidade, a não-repetitividade, ou seja, a singularidade que determinando fato possui quando

visualizar o contexto e o complexo”, Morin a acusará de ser “inconsciente e irresponsável” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:94).

25 De acordo com Morin, o conhecimento simplificador entrou em crise no século XX, e isso é devido, por um lado, à revolução científica que a física operou no conhecimento científico a partir de 1900, e de outro, devido às ciências sistêmicas que surgiram na segunda metade do século XX, provocando o reagrupamento de disciplinas diversas na busca de explicações para objetos de constituição complexa, cujo entendimento rejeitava os princípios de separação e de redução.

26 As críticas a essa postura universalizante que o princípio da ordem abriga podem ser claramente percebidas em Saberes globais e saberes locais, onde o discurso sobre as minorias insistentemente desrespeitadas ganha tom de engajamento político, e em Terra-Pátria, onde o desafio de se pensar globalmente o local e localmente o global é apontado como o desafio do pensamento complexo.

27 Veja como Morin desenvolve essa idéia quando da sua exposição da noção de sujeito em A cabeça bem-feita, obra já citada anteriormente.

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emerge para um observador; e o acidente representa o encontro entre fenômenos, quer estejam os dois em estado organizado, quer apenas um deles esteja (MORIN, 1977). Da mesma maneira, associada à ordem e à desordem encontramos a idéia de organização e interação, que quando juntas dão origem a um tetragrama: ordem-desordem-interações-organização. Este, por sua vez, representa um determinado estado de uma unidade complexa:

...é a disposição de relações entre componentes ou indivíduos, que produz uma unidade complexa ou sistema, dotada de qualidades desconhecidas ao nível dos componentes ou indivíduos. A organização liga, de modo inter-relacional, elementos ou acontecimentos ou indivíduos diversos que, a partir daí, se tornam os componentes de um todo. Garante solidariedade e solidez relativa a estas ligações, e portanto garante ao sistema uma certa possibilidade de duração apesar das perturbações aleatórias. Portanto a organização: transforma, produz, liga, mantém (1977:101).28

Em síntese, com a figura do tetragrama Morin quer exprimir a idéia complexa de co-existência inter-relacional em uma mesma unidade, ou seja, “ao mesmo tempo em que se desenvolve a complexidade, há o crescimento da desordem, o crescimento da ordem, se eu ouso empregar essa palavra quantitativa de crescimento” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:55).

Para rebater a noção de separabilidade, Morin afirma ser preciso distinguir, mas não se pode separar nem disjuntar as coisas, os fenômenos. Eis porque a complexidade se reveste em um grande desafio, pois que há um tipo de conhecimento que não consegue progredir de maneira separada – o conhecimento complexo. O seu avanço só ocorre quando se tem em consideração as interações. Na realidade, a conclusão a que se chega, e é para lá que aponta Morin, é a de que “esta divisão do conhecimento em disciplinas, que permite o desenvolvimento dos conhecimentos, é uma organização que torna impossível o conhecimento do conhecimento. Por quê? Porque este campo está fragmentado em campos de conhecimentos não comunicantes” (MORIN & OUTROS, s/d:20). O

28 Em O método 1, Morin nos fala que a emergência resulta da organização. Esta, muito embora não esteja separada de um sistema enquanto todo, surge tanto em nível global quanto em nível de componente, embora, adverte, de forma mais eventual. São emergentes, portanto, aquelas qualidades que informam um todo organizado. Além disso, Morin diz que a própria emergência é um princípio, o princípio de emergência. Assumir esse princípio significa afirmar que “as qualidade e as propriedade que nascem [o verbo aparecer também pode ser aqui usado como sinônimo] da organização de um conjunto retroagem sobre esse conjunto” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:55). Com esta forma de raciocínio, fica difícil termos em conta o pensamento dedutivo para nos referirmos ao aparecimento, à emergência “das qualidades ou propriedades de todo fenômeno organizado”, de onde podemos concluir que o conhecimento possui “um movimento circular ininterrupto”, isto é, “conhecemos melhor as partes que permitem conhecer melhor o todo, mas o todo permite novamente conhecer melhor as partes” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:55).

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momento agora exige, afirma Morin, que passemos a pensar de maneira inter-poli-transdisciplinar, de exigirmos objetos e projetos inter-poli-transdisciplinares, que por sua vez possam acelerar as “noções migradoras”, ou seja, a transposição de esquemas cognitivos de uma disciplina para outra, criar esquemas cognitivos reorganizadores para que, enfim, possamos vislumbrar a “constituição de concepções organizadoras que permitam articular os domínios disciplinares em um sistema teórico comum”, sistemas ecodisciplinares e metadisciplinares (MORIN, 2001a:112).29

No que diz respeito à lógica indutivo-dedutivo-identitária, a sua desorientação está no aparecimento da contradição. O seu aparecimento pode ocorrer de diversas formas, quais sejam, como paradoxo, antinomias, aporias e como o acoplamento de dois termos mutuamente exclusivos, e sempre causa uma espécie de absurdo ao pensamento em que ela aparece. Tradicionalmente, o aparecimento da contradição sempre foi um sinal de erro, e a postura para corrigi-lo estava no “abandono do caminho” lógico tomado. Mas, para Morin, o surgimento da contração indica que estamos diante “de superfícies profundas ou desconhecidas da realidade”, superfícies essas que não obedecem à lógica clássica ou aristotélica (MORIN & LE MOIGNE, 2000:60), e a única saída que se tem é o enfrentamento da contradição (MORIN & OUTROS, s/d:30). Esse enfrentamento abre a perspectiva para que se possa chegar à idéia complexa de que duas proposições contrárias podem ser também complementares, o que não quer dizer associá-las para que assim se possa chegar a uma verdade mais completa; pelo contrário, “trata-se também de ver que a verdade pode encontrar-se no vazio, insondável, na brecha lógica que abre uma contradição ‘forte’” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:116). Como isso, Morin não quer dizer que todas as contradições que aparecem são, de imediato, superáveis. A cautela aqui é aconselhada: há na contradição um caráter de incerteza, dado que nunca sabemos de antemão quais as “contradições que se podem superar e ultrapassar e aquelas que é preciso manter e salvaguardar. Cada uma das contradições que surgem no percurso do conhecimento deve ser encarada em sua singularidade e sua própria problemática” (MORIN & LE MOIGNE, 2000:117).

Feitas estas considerações, cumpre, então, perguntar: afinal, o que é isso, o pensamento complexo? Respondendo de maneira bem direta: o pensamento complexo “é a viagem em busca de um modo de pensamento capaz de respeitar a multidimensionalidade, a riqueza, o mistério do real; e de saber que as determinações – cerebral, cultural, social, histórica – que se impõem a todo o pensamento co-determinam sempre o objecto do conhecimento”. Esta é a resposta que encontramos em seu livro O método 2: a vida da vida (MORIN, 1980:14), e é este pensamento que encontramos na base de sua formulação epistemológica. Arrisquemos falar

29 Ver a este respeito o anexo 1 da obra A cabeça bem-feita.

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por nós mesmos: não é possível conhecer sem conhecer o conhecimento que quer conhecer e as condições que o leva a conhecer.

À guisa de conclusão

Comecemos este parágrafo com a afirmação de que muito ainda haveria para ser dito. Talvez até o que seja de mais importante necessitasse vir à tona neste texto, mas infelizmente não poderemos, agora, ceder à tentação de nossa ambição, de nossa vontade de sempre querer ir um pouco mais além do que se pretende. Conceitos como os de dialógica, recursão organizacional, hologramática, paradigmatologia, noosfera, noologia, assim como as condições bio-antropológicas e condições socioculturais do conhecimento mereceriam ter sido discutidas para que o pensamento complexo ficasse mais claro na mente do leitor. Sob pena de não podemos corresponder à riqueza dos conceitos, e de por isso cairmos na simplificação do que é complexo, a nossa decisão foi por interromper, quase bruscamente, reconhecemos, a emersão conceitual violenta que se aproximava quando chegávamos ao fim do texto. Mas não faremos dessa conclusão um elenco resumido do que se encontra exposto no corpo do texto. Não. Talvez seja melhor penetrarmos mais uma vez no mundo das questões do que das respostas. Disse certa vez Alfred Whitehead: no mundo das idéias, importa mais que a proposição seja interessante do que verdadeira. Nestes termos, a proposição de Morin é interessante, não neguemos, mas não podemos lhe dá o caráter de verdade, principalmente o de verdade universal. Parafraseando Heidegger, diríamos que, de certo modo, Edgar Morin “está-aí”, para nós, para alguns, mas não para todos. Como pudemos perceber ao longo do nosso estudo, a complexidade é uma idéia que tem frutificado. São vários os encaminhamentos que vem sendo dados na direção de melhor explorar a questão (da complexidade), desde o que se chama de “modelização inteligível da complexidade”, onde o rigor clássico de se fazer ciência aparece de forma determinada, até discussões mais brandas, como a que observamos na linha educativa. Apesar disso, resta ainda a pergunta: mas a complexidade resolve a questão do conhecimento? É ela a palavra final? Nos parece claro que não. Se por um lado o discurso de Morin exacerba nos encaminhamentos científicos – todo conhecimento é passível de ser “cientificamente conhecido”; por outro, vemos defesas que apontam para a direção do “oculto”, o indizível, do que não pode ser dito nem conhecido. Eis que o conhecimento científico nos parece condenado a dizer, a desocultar. Aliás, a complexidade parece situar-se exatamente aí, entre o que se desoculta, o desocultado, e o que se oculta; entre o que está sendo dito, o dizendo, e o que o que ainda será dito, o por dizer; ou seja, no mistério que cerca homens e mulheres.

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