15
DA MULTITERRITORIALIDADE AOS NOVOS MUROS: paradoxos da des-territorialização contemporânea Rogério Haesbaert Universidade Federal Fluminense Niterói Rio de Janeiro O espaço está na ordem do dia. Muitos, a partir dos anos 1990, falam até mesmo num “giro” ou “virada” espacial. A mais célebre referência a esta guinada foi Michel Foucault, sempre citado quando se comenta a mudança da “era do tempo”, ou da história, referida à passagem do século XIX para o XX, e a gradativa assunção da “era do espaço”, que ele já identificava no final dos anos 1960 (FOUCAULT, 2001, original escrito em 1967). Entramos nesta “era espacial” tanto no sentido da exploração dos micro-espaços (dos gens às micro-partículas) quanto dos macro-espaços (da exploração da Lua ao big- bang). Mas o que nos interessa mais de perto, aqui, enquanto geógrafos, é justamente a ênfase dada hoje à espacialidade numa escala mais especificamente “humana”, aquela de nossa reprodução e de nossa circulação enquanto seres viventes, móveis, que necessitam de abrigo, alimento e que, a todo momento, recriam o mundo pela própria ressignificação e simbolização de seu espaço-tempo. Espaço-tempo: esta é a expressão que realmente nos interessa. Muito mais do que uma “virada espacial”, ingressamos, desde Einstein, na era do “espaço-tempo”, da indissociabilidade entre essas dimensões do social. Não podemos mais nos referir a essas “categorias” diante de genéricas dicotomias como aquelas que separam presente de passado, sincrônico de diacrônico, fluidez de fixação, transformação de permanência. O presente “geográfico” passa a ser visto, sempre, como a condensação de múltiplas durações de um passado que se contrai e, ao mesmo tempo, como a abertura para um futuro de múltiplos caminhos e, assim, de múltiplas possibilidades. Por mais que o espaço pareça ser a esfera da fixação e da estabilidade, na verdade ele é a condição para que o tempo futuro seja aberto e possa realizar diferentes alternativas, colocadas a partir dessa múltipla combinação de trajetórias que incorporamos no nosso presente, na coetaneidade de nossa geografia (MASSEY, 2008). Multiplicidade é uma palavra da moda, marca, para muitos, de nossos tempos “pós - modernos” ou “pós-estruturalistas”. Mas temos que ter muito cuidado com ela.

TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

DA MULTITERRITORIALIDADE AOS NOVOS MUROS: paradoxos da des-territorialização contemporânea

Rogério Haesbaert

Universidade Federal Fluminense

Niterói – Rio de Janeiro

O espaço está na ordem do dia. Muitos, a partir dos anos 1990, falam até mesmo

num “giro” ou “virada” espacial. A mais célebre referência a esta guinada foi Michel

Foucault, sempre citado quando se comenta a mudança da “era do tempo”, ou da história,

referida à passagem do século XIX para o XX, e a gradativa assunção da “era do espaço”,

que ele já identificava no final dos anos 1960 (FOUCAULT, 2001, original escrito em

1967). Entramos nesta “era espacial” tanto no sentido da exploração dos micro-espaços

(dos gens às micro-partículas) quanto dos macro-espaços (da exploração da Lua ao big-

bang). Mas o que nos interessa mais de perto, aqui, enquanto geógrafos, é justamente a

ênfase dada hoje à espacialidade numa escala mais especificamente “humana”, aquela de

nossa reprodução e de nossa circulação enquanto seres viventes, móveis, que necessitam de

abrigo, alimento e que, a todo momento, recriam o mundo pela própria ressignificação e

simbolização de seu espaço-tempo.

Espaço-tempo: esta é a expressão que realmente nos interessa. Muito mais do que

uma “virada espacial”, ingressamos, desde Einstein, na era do “espaço-tempo”, da

indissociabilidade entre essas dimensões do social. Não podemos mais nos referir a essas

“categorias” diante de genéricas dicotomias como aquelas que separam presente de

passado, sincrônico de diacrônico, fluidez de fixação, transformação de permanência. O

presente “geográfico” passa a ser visto, sempre, como a condensação de múltiplas durações

de um passado que se contrai e, ao mesmo tempo, como a abertura para um futuro de

múltiplos caminhos e, assim, de múltiplas possibilidades. Por mais que o espaço pareça ser

a esfera da fixação e da estabilidade, na verdade ele é a condição para que o tempo futuro

seja aberto e possa realizar diferentes alternativas, colocadas a partir dessa múltipla

combinação de trajetórias que incorporamos no nosso presente, na coetaneidade de nossa

geografia (MASSEY, 2008).

Multiplicidade é uma palavra da moda, marca, para muitos, de nossos tempos “pós-

modernos” ou “pós-estruturalistas”. Mas temos que ter muito cuidado com ela.

Page 2: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

Sobrevalorizá-la pode nos levar a ocultar, muitas vezes, a difícil empreitada de encontrar

novos caminhos dentro de um espaço moldado por sujeitos poderosos que ditam a maior

parte das regras através de uma sociedade regida, sobretudo, pela lógica contábil da

economia de mercado, onde quase tudo, hoje, é passível de compra e venda. Mas não

podemos também, por outro lado, ignorar as múltiplas trajetórias que o espaço nos coloca

para alimentarmos a criação, o novo ou, nas palavras de Deleuze e Guattari (1995), os

momentos de efetiva “desterritorialização” em que “linhas de fuga” nos levam à construção

de novos agenciamentos, tanto no campo das práticas quanto das representações espaciais.

“Desterritorialização” também acabou sendo um termo da moda a partir dos anos

1990, embora Deleuze e Guattari já o propusessem desde, pelo menos, os anos 19701. Tudo

parecia se desenraizar, perder qualquer base sólida ou, pelo menos, hibridizar-se. As bases

territoriais de controle mais conhecidas, aquelas relativas ao Estado, pareciam cada vez

mais debilitadas. O próprio capitalismo tendia a “flexibilizar-se”, perdendo a rigidez de sua

era fordista, e a famosa expressão de Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar”,

popularizada por Marshall Berman (1986), parecia fazer realmente sentido. Mas esse

desmanche e essa descartabilidade sócio-espacial, em sua maior parte, tinham endereço

certo: realimentar a espiral de crescimento e de especulação que, depois, resultaria em

crises regionais ou mundiais que, em maior ou menor grau, acabariam afetando a todos nós.

E não se tratava somente de crises econômicas, elas também abrangiam o campo dos

valores, crises de representação na nossa forma de ler o mundo e seu espaço – vide, por

exemplo, o que se passou após a queda das torres gêmeas de Nova York em 2001 e a

ambiguidade simbólica adquirida pelo 11 de Setembro.

Hoje, a instabilidade e a incerteza, definitivamente, recheiam nossas geografias, do

espaço local, mais cotidiano, ao global. Nem mesmo a dimensão material de nossos

espaços, a começar pelas rápidas transformações geradas pelas mudanças climáticas,

permitem imaginarmos o espaço como a dimensão da permanência e da “longa duração” –

como defendeu um dia o historiador Fernand Braudel2. Ao contrário, porém, de uma

desterritorialização enquanto destruição inexorável de nossos territórios, vistos como

1. Sobre essa temática, ver nossa abordagem em Haesbaert, 2004, sobretudo o capítulo 3

2. Apenas na primeira fase de sua obra, ressalte-se, notadamente na introdução de “O Mediterrâneo e o Mundo

Mediterrânico na época de Felipe II” (Braudel, 1983), quando ele, polemicamente, caracteriza o tempo

histórico de longa duração como “tempo geográfico” (sobreenfatizando, certamente, uma geografia física em

que a natureza ainda seria caracterizada, sobretudo, por seus ritmos lentos).

Page 3: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

espaços efetivamente dominados e/ou apropriados, o que encontramos é uma mudança

muito mais rápida de territórios, moldando aquilo que propusemos denominar

“multiterritorialidade”: a vivência, concomitante ou sucessiva, de múltiplos territórios na

composição de nossa territorialidade.

Se os territórios são espaços de exercício de poder, de relações de poder feitas

(no/pelo) espaço, este poder, contudo, tem múltiplas faces. Devemos considerar desde

aquelas do poder político “tradicional”, restrito à figura do Estado e/ou das “classes

hegemônicas”, quanto aquelas mais amplas, que enfatizam também sua dimensão simbólica

(ver, por exemplo, o “poder simbólico” tal como definido por Bourdieu, 1989).

Para o nosso tratamento do poder e, em parte, do próprio território, tomaremos

como referência central, aqui, Michel Foucault. Para ele, numa visão mais ampla de poder,

toda relação social é também uma relação de poder, poder não apenas repressivo, mas

também “produtivo”. A questão fundamental que se coloca não é aquela que responde a “o

que é” o poder, mas a “como ele se exerce”. Por isso, também, a relevância das formas

espaciais/territoriais através das quais ele é produzido.

Para Foucault (2008), ao longo do mundo moderno se sobrepuseram três formas

básicas de manifestação do poder: o (macro-)poder soberano, forjado fundamentalmente

pelo Estado, no exercício da soberania, ou seja, no controle sobre seu território de

jurisdição; o poder disciplinar, com toda uma “microfísica” que produz a disciplina a partir

da normatização do tempo e do espaço a nível individual; e o biopoder ou poder sobre a

vida, que se efetua através do homem visto enquanto “população”, em seu “meio” de

circulação e reprodução como ser vivente, biológico.

Foucault, infelizmente, aliou à sua visão ampla de poder uma abordagem muito

restrita de território, pois restringiu o uso do termo à espacialidade do poder estatal,

soberano. Na Geografia, há muito tempo (desde pelo menos Jean Gottman, nos anos 1950),

superou-se a abordagem que associava o território apenas à figura do Estado, como, de

alguma forma, propusera o geógrafo alemão Friedrich Ratzel, no final do século XIX. Hoje,

o território pode ser visto nas mais diversas escalas (Souza, 1995) e através de uma

concepção muito mais ampla de poder (Haesbaert, 2004), que inclui até mesmo a

apropriação simbólica de espaços que, desta forma, para os grupos que se identificam com

eles, leva a uma espécie de empoderamento. Nesse sentido, podemos dizer, pelo menos

Page 4: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

desde Antonio Gramsci já se fazia a ligação entre poder político como coersão, em seu

sentido estatal (e/ou representativo de uma classe), e poder simbólico ou do consentimento,

no sentido gramsciano de construção da hegemonia.

Assim, podemos afirmar que as territorialidades dominantes no mundo moderno de

matriz europeia impuseram inicialmente uma padronização territorial, de caráter

pretensamente universal e exclusivista, cuja matriz foi o Estado e seus domínios em área,

construindo “territórios-zona” que não admitiam sobreposição e cuja multiterritorialidade

tinha um caráter meramente funcional, dentro de uma mesma lógica piramidal de controle:

ao território “mínimo” da propriedade privada se sobrepunha o território municipal que, por

sua vez, estaria dentro de territórios “departamentais”, “provinciais” ou “estaduais”, a

seguir incorporados ao território estatal como um todo e, mais recentemente, pelo menos no

caso da União Europeia, a uma entidade supranacional ou de bloco internacional de poder.

Ao mesmo tempo, não podemos esquecer que, em geral sob o beneplácito do

Estado, sobrepunha-se de modo cada vez mais intrincado uma outra forma de organização

territorial, a dos “territórios-rede” das grandes corporações empresariais, em processo

gradativo de multi ou transnacionalização. Ao contrário do poder estatal, todavia,

especialmente com o fim do domínio colonial, às empresas interessava muito mais o

controle de fluxos e redes do que de áreas ou zonas – estas, ainda assim, representando

parcela indissociável na “amarração” de seus territórios-rede. A lógica territorial das

grandes corporações é sempre, em certo sentido, multi (ou mesmo “trans”) territorial, na

medida em que só estruturam seu poder pela organização de uma imensa articulação de

territórios, desde os territórios-zona em que constroem a infra-estrutura de suas bases

produtivas e/ou de circulação até a conexão em rede ao redor do mundo, realizando assim

imensos circuitos de fluxos sobre os quais efetivamente exercem seu controle.

Trata-se, contudo, também, de uma multiterritorialidade dentro de uma mesma

lógica funcional, globalmente padronizada. A diferença em relação á multiterritorialidade

funcional do Estado é que, enquanto esta se faz pelo encaixe simultâneo de territórios-zona

autocontidos, a das grandes empresas se realiza pela sucessão de territórios-zona

articulados, formando grandes territórios-rede onde o controle mais importante não é o que

se dá sobre áreas/zonas/superfícies, mas sobre dutos e/ou fluxos e pontos ou polos de

conexão que, conjugados, compõem as redes transnacionais.

Page 5: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

Hoje, ao lado do “sujeito” grande empresa capitalista, temos também os próprios

grupos culturais, em suas migrações diaspóricas de caráter global, construindo e

vivenciando uma complexa multiterritorialidade ao redor do mundo. Esta, ao contrário da

multiterritorialidade também em rede, mas meramente funcional, das empresas globais,

refere-se a uma maior multiplicidade de dimensões do poder. O migrante em diáspora,

através das múltiplas territorialidades a que pertence, possui trunfos (“trunfos espaciais”,

diria o geógrafo Ma Mung, 1999) para sacar quando necessita, na medida em que, em geral,

pode acionar conexões situadas em diferentes contextos territoriais (locais, nacionais) ao

redor do mundo.

Esse migrante globalizado pode estar ligado a territorialidades locais (um bairro

numa grande metrópole), regionais (a região e a língua ou dialeto no país de origem ou de

destino), nacionais (o Estado-nação em que se situa e o de onde partiu) e globais (o próprio

território-rede da diáspora a que pertence). A multiterritorialidade que ele constrói pelo

acionamento – simultâneo e/ou sucessivo – dessas múltiplas territorialidades é composta

não só pela “funcionalidade” que o leva, por exemplo, a estabelecer toda uma rede de

auxílio financeiro transnacional, mas também pela identificação que ele cria com uma

grande multiplicidade de territórios, permitindo, inclusive, se for um grupo mais aberto, a

construção de territorialidades híbridas com outras etnias e/ou nacionalidades. Bem ao

contrário da multiterritorialidade meramente funcional dos grandes executivos de empresas

multinacionais que, por mais que frequentem diferentes territórios ao redor do mundo,

acabam recriando sempre suas “bolhas” de segurança, no convívio entre iguais, que os

impede de dialogar com territorialidades efetivamente distintas.

Esses migrantes em diáspora podem, ao mesmo tempo, ser o núcleo de

territorialidades múltiplas, abertas, em constante reconstrução pelo trânsito por diversos

territórios “alheios”, e ser objeto, também, de formas de reclusão ou confinamento, como

ocorre quando da formação de guetos – seja “guetos voluntários”, quando se encontram

apenas entre seus semelhantes (reproduzindo traços de alguns grupos hegemônicos), seja

“guetos efetivos”, quando, enquanto grupos subalternos, são forçados a se fechar em

espaços mais precarizados no interior das cidades.

É justamente frente a essa precarização social ou, em outras palavras, à

desterritorialização em sentido mais estrito, isto é, à perda relativa de controle de seus

Page 6: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

territórios, que esses grupos subalternizados são objeto de medidas, ora de reclusão – como

no poder disciplinar que propõe retirar por um tempo os “anormais” do convívio social com

o pressuposto de “resgatá-los” mais tarde (numa “reclusão de sequestro”, como aludia

Foucault, 2001), ora de contenção – como denominamos os atuais processos biopolíticos de

controle da circulação, especialmente em relação aos fluxos migratórios globais.

Foto do Autor, 2010

Entendemos que a atual proliferação de novos muros ao longo das fronteiras

internacionais (v. mapa 1) reflete, sobretudo, as bio-políticas de contenção da circulação –

especialmente a circulação dos chamados circuitos ilegais, seja de pessoas (migrantes),

contrabando de mercadorias, tráfico de drogas, etc. Foucault, nesse sentido, também nos

ajuda a compreender esse fenômeno, especialmente ao propor que a principal marca

espacial das sociedades biopolíticas – ou de controle, como prefere Deleuze (ou ainda,

como preferimos, de “in-segurança”) – é o “meio”, enquanto espaço em que se dá a

circulação, seja de fluxos naturais (como as águas e os ventos), seja de fluxos sociais (como

a mobilidade de pessoas). Como já afirmamos, a biopolítica tem como preocupação

primeira o governo da “população” em sua circulação e/ou reprodução biológica, ligando-

se assim à instituição de saberes como o da estatística – “ciência do Estado” – capaz de

Foto 1. “Muro-barragem” de contenção de expansão da favela Santa Marta, no Rio de Janeiro, conhecido retoricamente como “ecolimite”

Page 7: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

proporcionar os dados indispensáveis à gestão econômica e ao controle do comportamento

geral do homem visto enquanto espécie, isto é, enquanto “população”.

Num mundo como o nosso, por um lado marcado pela fluidez do espaço, as

questões ligadas à circulação se tornam ainda mais relevantes e, com elas, a situação de um

dos componentes mais emblemáticos dos territórios: suas fronteiras – ou, numa leitura mais

simples, seus limites. E é aí que surge um dos grandes paradoxos da geografia

contemporânea: ao lado da fluidez globalizada das redes e da “desterritorialização” (e/ou da

multiterritorialidade) aparecem também os fechamentos, as tentativas de controle dos

fluxos, da circulação, sobretudo da circulação de pessoas, da força de trabalho, dos

migrantes.

Esse controle da circulação pode se dar sob uma espécie de confinamento de redes,

pela produção de circuitos isolados, sob a forma de barragem ou, como preferimos, de

contenção territorial, com a construção de “diques” e, finalmente, pode ocorrer por meio de

dutos, num efeito de canalização desses fluxos. Nesse sentido, uma das estratégias

aparentemente mais anacrônicas, hoje em dia, é a construção de novos muros – desde o

nível da propriedade privada, dos condomínios fechados (gated communities, na realidade

norte-americana) e dos bairros (como em bairros ciganos ou de imigrantes na Europa) até

os muros transfronteiriços, como o famoso muro da fronteira entre Israel e Palestina ou

aquele entre o México e os Estados Unidos. No caso brasileiro temos os muros-“barragens”

construídos para estancar a expansão de favelas, no Rio de Janeiro e São Paulo (fotos 1 e

2), e os muros-“dutos” ao longo de vias de grande circulação, para evitar contato (mesmo

visual) com populações mais pobres (caso da Linha Vermelha, no Rio de Janeiro, foto 3).

É claro que, a nível mais amplo, como limite de uma jurisdição política, os muros

não surgem, como poderíamos imaginar, a partir da emergência do Estado moderno e da

propriedade privada. Da muralha da China aos muros das cidades medievais, do muro de

Adriano, no Império Romano, ao muro de Berlim, durante a Guerra Fria, muitos foram os

contextos em que fronteiras políticas adquiriram essa forma de materialização. Suas

funções, é claro, mudaram muito ao longo do tempo. O muro de Adriano (foto 4), por

exemplo, servia não só para delimitar os domínios do Império Romano e assegurar-lhe um

maior controle em termos de defesa militar mas também para controlar fluxos de pessoas e

comércio em relação aos povos que habitavam mais ao norte.

Page 8: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

Alguns muros e cercas contemporâneos ainda são um resquício do período da

Guerra Fria, como aquele entre as Coreias e o de Guantánamo, enclave norte-americano

dentro do território cubano. Eles, contudo, alteraram sua função, e hoje se colocam

claramente dentro de um contexto marcado pelo biopoder. O muro entre a Coreia do Norte

e a do Sul, resquício de uma era de confronto entre dois grandes blocos geopolíticos, tem

hoje a função de controlar o fluxo de refugiados – e não somente de refugiados políticos,

como durante a Guerra Fria, mas também econômicos, dado o empobrecimento crescente

dos norte-coreanos. Guantánamo, por sua vez, pode ser interpretado como o protótipo dos

“campos”, dentro da abordagem teórica do cientista político italiano Giorgio Agamben.

Para Agamben (2002), os campos seriam territórios que manifestam a situação biopolítica

do “homo sacer”, condição humana da “vida nua”, situada num limbo jurídico em que o

homem se torna “matável e não-sacrificável”, ou seja, quem o mata não é passível de ser

julgado, nem pelas leis humanas, nem pelas divinas.

Foto 2. Parte remanescente de uma favela “intra-muros” junto à Daslu, uma das lojas mais elitizadas de São Paulo (ao fundo), e a “E-Tower”, um centro de negócios (à esquerda) Foto do autor, 2009

Page 9: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

Foto do Autor, 2010

O campo, na conceituação do autor, seria o território por excelência do Estado de

exceção, Estado em que a exceção, por ser desejada, torna-se regra. Ele encontra-se numa

situação ambivalente, ao mesmo tempo dentro e fora da lei “normal”. O refugiado poderia

ser visto como o indivíduo que melhor representa essa ambivalência jurídica. Para

Agamben, no entanto, o próprio Estado como um todo pode adquirir a conotação de

“campo”, na medida em que decrete medidas de exceção em todo o território nacional.

Num “capitalismo de catástrofe”, como indica Naomi Klein (2008), vivemos uma era de

administração de tragédias, ou seja, de sucessões de regimes de urgência ou de exceção.

Grande parte dessas situações jurídicas ambivalentes e marcadas por medidas autoritárias é

decretada em nome da “segurança da população” – esta, por isso mesmo, aceitando abrir

mão de muitos direitos em nome de sua propalada segurança. Para Agamben, um Estado

que legisla praticamente em nome da segurança é um organismo frágil. Ele pode defender,

por exemplo, uma legislação de exceção para combater o terrorismo e, assim, em nome

desse combate, tornar-se, ele próprio, “terrorista”.

Foto 3. “Muro-duto” entre a Linha Vermelha e o complexo de favelas da Maré, no Rio de Janeiro

Page 10: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

Foto do Autor, 2010

A difusão de fronteiras muradas surge em grande parte, também, em nome do

mesmo discurso global da “segurança”, através de um Estado que claramente busca

reconfigurar seu papel num mundo que já há algumas décadas busca decretar o seu

debilitamento. Autores como Brown (2009) defendem a tese de que os muros

transfronteiriços são uma das formas mais visíveis de demonstração de força de um Estado

cujo poder está em cheque e que, por isso mesmo, necessita ostentar de modo o mais

explícito possível uma potência que estaria perdendo – especialmente no que se refere à

capacidade de controlar fluxos através de suas fronteiras.

O muro contemporâneo, então, podemos afirmar, tem uma dupla e inglória função:

primeiro, representar a força de um poder – o estatal – que em parte está em crise; e,

segundo, como decorrência da anterior, controlar os fluxos em fronteiras de um mundo

cada vez mais global, onde muros físicos, materiais, há muito deixaram de ter eficácia em

Foto 4. Muro de Adriano, “limes” norte do Império Romano (atual Inglaterra) construído por volta de II d.C.

Page 11: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

relação ao controle da circulação mais relevante a nível internacional. Qual seria o papel,

então, desses novos muros?

Além de seu papel simbólico, tentando evidenciar uma potência (estatal) em

declínio, o máximo que o muro consegue fazer é “conter” alguns fluxos, de um modo

espaço-temporalmente bastante limitado, em especial o fluxo material de pessoas, já que

fluxos imateriais, como o do próprio capital, há muito desconhecem a concretude das

fronteiras e suas linhas demarcatórias. Defendemos a ideia, assim, de que os novos muros

fronteiriços, numa sociedade biopolítica ou de in-segurança como a nossa, têm uma função

meramente de postergar o agravamento de uma situação, de “evitar o pior”, especialmente

naquelas áreas do mundo marcadas por níveis crescentes de desterritorialização – no

sentido do aumento das desigualdades, da precarização e, muitas vezes, da própria

instabilidade social. Pela distribuição desses muros, revelada pela cartografia do mapa 1,

podemos perceber que a grande maioria se desdobra em áreas particularmente vulneráveis,

com graves problemas e/ou desigualdades sociais, tanto entre países tipicamente periféricos

(Botswana-Zimbábue, Irã-Afeganistão, Índia-Bangladesh), quanto entre paises ou regiões

periféricas e semi-periféricas ou centrais (Estados Unidos-México, Espanha-Marrocos,

Coreia do Sul-Coreia do Norte).

O muro, em muitos desses casos, participa como uma espécie de técnica de evitação

e, como tal, exerce um efeito que propomos chamar de efeito-barragem, dentro de

processos mais amplos de contenção territorial. Como numa represa, busca-se conter o

fluxo (da água) mas nunca em um sentido temporalmente definitivo ou espacialmente

completo, como nos processos clássicos de confinamento ou reclusão e seu “cercamento”

por todos os lados. Faz-se a contenção de um lado ou até um certo nível mas, com o tempo,

o fluxo pode aumentar, a pressão sobre a barragem pode ser maior e é-se obrigado a “abrir

as comportas” – um vertedouro sempre está previsto e, muitas vezes, é ele que garante a

manutenção de um determinado fluxo, ainda que sob constante controle.

É mais ou menos o que se passa com as fronteiras muradas enquanto

constrangedoras do fluxo de migrantes – ou mesmo de outros processos, como o

contrabando ou o narcotráfico. Sabe-se que o muro pode simplesmente estar redirecionando

o fluxo, pois nunca irá ocorrer um controle total, em todas as fronteiras de um pais. Assim,

à barreira eletrificada entre os enclaves espanhóis de Ceuta e Melilla, no Marrocos, com um

Page 12: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

maior controle das migrações rumo à Espanha ou, mais amplamente, à União Europeia,

segue-se um aumento da mobilidade humana da África à Europa via ilhas Canárias, por

exemplo.

A esses processos de contenção territorial por parte de grupos hegemônicos segue-

se o seu contraponto, aquilo que, inspirados em outros autores (como Vera Telles),

propomos denominar de dinâmicas de contornamento, a “arte de contornar”, de encontrar

saídas, de inventar contornos, diversas formas de evitar o controle imposto “pelo alto”,

geralmente desencadeadas como formas de resistência por parte de grupos subalternos.

Contornamento, termo que tem forte conotação espacial, está intimamente ligado à ideia de

muro de contenção, que não realiza um cercamento total, deixando sempre a possibilidade

de um desvio.

Contornar significa também, ao mesmo tempo, num sentido mais amplo, menos

literal, “viver no limite”, nas próprias fronteiras, como se, na impossibilidade de superá-las,

fosse inventada uma condição de liminaridade, de ambivalência, como se pudéssemos

“estar dos dois lados” da fronteira ao mesmo tempo – ou, em outras palavras, “encima da

linha” limítrofe. Como no campo de Agamben, porém aqui num processo com

características potenciais de contra-hegemonia, essa situação ambígua não define

claramente o dentro e o fora, o legal e o ilegal, permanecendo numa espécie de limbo. Ao

contrário do campo, entretanto, estabelecido dentro da política dominante, trata-se de

políticas alternativas, ainda que algumas possam ser tão ou até mais autoritárias do que as

primeiras – como no caso dos narcotraficantes e de algumas milícias nas favelas brasileiras.

Em muitas favelas cariocas (foto 1) os muros desempenham também, a exemplo dos

muros fronteiriços, o papel de contenção: nesse caso buscando delimitar rigidamente as

áreas faveladas a fim de que não se expandam em direção a áreas de preservação ambiental

(daí a retórica denominação “ecolimites” para esses muros). Uma das formas de

“contornamento” desses processos de contenção territorial pode ser estabelecida, por

exemplo, pelo crescimento não mais horizontal, mas vertical, com a densificação da

ocupação humana no interior da mesma área da favela. Ou então, o que parece ser mais

comum, pela “fuga” para outras favelas, mais distantes, ainda não rigidamente controladas

– estratégia que é também praticada por facções do narcotráfico em relação às medidas de

contenção adotadas pelo aparelho policial do Estado, com o domínio permanente de favelas

Page 13: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

sob antigo controle desses grupos. Medidas, no seu conjunto, de caráter paliativo, pois

acabam simplesmente deslocando o problema em termos de sua expansão e intensidade

espaço-temporal na teia da cidade.

O que se passa é que, na impossibilidade de contarem com uma multiplicidade de

territórios pelos quais optar, os mais precariamente territorializados, longe de comporem

uma multiterritorialidade constantemente aberta para novas conexões, novas

territorialidades, vivem na frágil e mutável condição de “aglomerados”, uma situação

confusa e muitas vezes “ilógica”, de organização territorial. Sujeitos o tempo todo a

medidas de contenção, destinadas prioritariamente ao controle de seus “meios”/espaços de

circulação, como diria Foucault, vivem buscando “contornar” riscos, seja o da extrema

precarização e da fome, seja o da morte violenta – esta, uma marca maior para aqueles que

optam pelo “contorno” via circuitos ilegais da economia, em especial o narcotráfico, e

também via migração ilegal, como tem ocorrido com migrantes latino-americanos rumo aos

Estados Unidos, assassinados por policiais, por grandes proprietários ou, simplesmente, por

gangues do tráfico que, em verdadeiros “Estados de exceção paralelos”, dominam extensas

áreas do território mexicano.

O paradoxo entre um mundo cada vez mais fluido e multiterritorial e um mundo

onde nunca se construíram tantos muros, e em tão diversas escalas, revela-se então nem tão

paradoxal assim. Geometrias do poder (como diria Doreen Massey) profundamente

desiguais marcam a mobilidade diferencial entre os diversos sujeitos contemporâneos,

sejam eles ricos ou pobres, homens ou mulheres, negros ou brancos, jovens ou velhos,

participantes desta ou daquela identidade nacional ou étnica. Ao mesmo tempo em que,

para alguns, o espaço é composto de arenas e dutos seguros, integrando múltiplos territórios

em redes de alcance planetário, para outros o espaço é uma sucessão de constrangimentos –

entre os quais os novos muros – a serem constantemente, se não derrubados, pelo menos

contornados, em estratégias que nem sempre representam o caminho rumo a um espaço

mais humano.

Quando a sociedade de in-segurança e o Estado biopolítico em que vivemos acaba

tomando a massa crescente de despossuídos não como seu produto, mas como sua causa,

mais uma vez criminalizando de forma ultra-simplificada a pobreza, o combate à

insegurança (em seu sentido mais amplo), na impossibilidade de erradicar a miséria, pode

Page 14: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

se resumir a duas medidas interligadas: a banalização da morte daqueles que,

profundamente depreciados socialmente, perdem seus direitos mais elementares, e/ou sua

contenção em espécies de “campos” onde prolifera a “vida nua”, essa condição ambivalente

do limbo jurídico em que se está, ao mesmo tempo, dentro e fora da jurisdição política do

Estado.

Mas, como afirmamos inicialmente, o espaço, por mais constringente e “uni-

territorial” que pareça, é também a esfera do múltiplo, oferecendo sempre alguma abertura

para a realização de novas conexões e novas articulações sócio-espaciais. O próprio Estado

contemporâneo não é marcado apenas pelas medidas de exceção, a serviço da “segurança”

de grupos cada vez mais (para)militarizados. Algumas iniciativas recentes, sobretudo no

espaço latino-americano, permitem divisar novos horizontes, ainda tímidos, provavelmente,

mas estimuladores da resistência e da luta por uma outra multiterritorialidade –

multiterritorialidade que não seja uma simples composição multifuncional a serviço dos

interesses hegemônicos, mas que represente, efetivamente, o convívio plural de múltiplas

identidades e a destruição dos muros que, concreta ou simbolicamente, demarcam a

extrema desigualdade do nosso tempo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AGAMBEN, G. 2002. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Belo

Horizonte: EdUFMG.

BERMAN, M. 1986. Tudo o que é sólido desmancha no ar. São Paulo: Companhia das

Letras.

BOURDIEU, P. 1989. O Poder Simbólico. Lisboa: Difel; Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

BRAUDEL, F. 1983. O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na época de Felipe II.

Lisboa: Martins Fontes.

BROWN, W. 2009. Murs: les murs de séparation et le déclin de la souveraineté étatique.

Paris: Les Prairies Ordinaires.

DELEUZE, G. e GUATTARI, F. 1995. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo:

Editora 34.

Page 15: TEXTOS -Desterritorialização - da Multiterritorialidade aos novos muros

FOUCAULT, M. 2003 (1973) A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: NAU

Editora.

________ 2001. De outros espaços. In: Ditos & Escritos. Rio de Janeiro: Forense

Universitária.

________ 2008. Segurança, Território e População. São Paulo: Martins Fontes.

HAESBAERT, R. 2004. O Mito da Desterritorialização: do “fim dos territórios” à

multiterritorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

KLEIN, N. 2008. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo de desastre. Rio de

Janeiro: Nova Fronteira.

MA MUNG, E. 1999. Autonomie, Migration et alterité. Dossier pour l’obtention de

l’habilitation à diriger des recherches. Poitiers: Université de Poitiers.

MASSEY, D. 2008. Pelo Espaço: por uma nova política da espacialidade. Rio de Janeiro:

Bertrand Brasil.

SOUZA, M. 1995. O território: sobre espaço, poder, autonomia e desenvolvimento. In:

Castro, I. et al. (org.) Geografia: Conceitos e Temas. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil.

Mapa 1. Os principais muros e cercas fronteiriças no mundo contemporâneo (Rogério Haesbaert, 2010)

Rog