74
1 UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA INSTITUTO DE HISTÓRIA THIAGO BARBOSA VIEIRA “NOSSA VIDA NÃO VALE UM CHEVROLET”: UM ESTUDO ACERCA DA DRAMATURGIA DE MÁRIO BORTOLOTTO Monografia apresentada ao curso de Graduação em História, no Instituto de História da Universidade Federal de Uberlândia, como exigência parcial para obtenção do título de Bacharel em História, sob a orientação da Prof a . Dr a . Rosangela Patriota Ramos. UBERLÂNDIA 2010

ThiagoBV_Monografia_História.pdf

Embed Size (px)

Citation preview

  • 1

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA

    INSTITUTO DE HISTRIA

    THIAGO BARBOSA VIEIRA

    NOSSA VIDA NO VALE UM CHEVROLET: UM ESTUDO

    ACERCA DA DRAMATURGIA DE MRIO BORTOLOTTO

    Monografia apresentada ao curso de Graduao em Histria, no Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Histria, sob a orientao da Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos.

    UBERLNDIA

    2010

  • 2

    FICHA CATALOGRFICA

    Vieira, Thiago B. (1985-)

    Nossa Vida no Vale um Chevrolet: um estudo acerca da dramaturgia de Mrio

    Bortolotto / Thiago Barbosa Vieira Uberlndia, 2010.

    69 p.

    Orientador(a): Rosangela Patriota Ramos

    Monografia (Graduao) Universidade Federal de Uberlndia, Curso de Graduao

    em Histria

    Inclui Bibliografia

    Palavras-chave: Mrio Bortolotto, Teatro contemporneo, Indstria Cultural, Histria

  • 3

    THIAGO BARBOSA VIEIRA

    NOSSA VIDA NO VALE UM CHEVROLET: UM ESTUDO

    ACERCA DA DRAMATURGIA DE MRIO BORTOLOTTO

  • 4

    BANCA EXAMINADORA:

    __________________________________________________________

    Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos Orientadora

    __________________________________________________________

    Prof. Msa Maria Abadia Cardoso

    __________________________________________________________

    Prof. Ms. Rodrigo de Freitas Costa

  • 5

    Aos que no se enquadram.

  • 6

    A G R A D E C I M E N T O S

    Em primeiro lugar, agradeo a Deus pelo sopro de vida e pela Sua

    maneira de me mostrar, apesar dos meus pobres sentidos, o valor de saber,

    ousar, querer e calar. Aos meus pais, Jos Nilton Vieira e Dinair de Ftima

    Barbosa Vieira, pelo exemplo original, pelo alicerce de qualquer conhecimento

    que eu possa ter a vaidade de pensar que tenha, e pelo afeto e pacincia pelo

    qual pude me desenvolver at hoje. Agradeo aos meus irmos, Amanda,

    Fernanda, Natalie e Diego, pelo convvio e pelo antagonismo salutar que hoje

    floresce em crescente harmonia. Agradeo aos meus amigos por me aceitarem

    como um dos seus: Ao Edson por me instigar a pensar com o corao, ao

    Marcus pelo reflexo de tranqilidade e segurana, Grnissa pelo incentivo

    luz do conhecimento real, ao Neander pela experincia e suas provocaes

    benfazejas, ao Felipe Ribeiro pelas frutferas conversas filosficas, ao Csar

    pelo apoio e companheirismo sincero, ao Jeff pela sua presena fraterna,

    Paula pela inocente sagacidade, ao Felipe Rizzotto pelos longos anos de

    amizade. Ao meu amigo Wagner pelas conversas de alto nvel e pelo apoio

    dado na criao deste trabalho e pela amizade sincera e perene. Agradeo s

    minhas queridas colegas que se tornaram grandes amigas, Lgia, Luciane,

    Smia, Lohanne e Suhellen que fizeram do curso muito mais do que uma

    graduao. So muitos os que poderia agradecer aqui, mas as linhas so

    poucas em detrimento das pessoas a agradecer por amizade...

    Um agradecimento especial minha querida orientadora Rosangela

    Patriota Ramos que responsvel pelo meu interesse em relao ao tema que

    escolhi para a monografia. Agradeo a ela pelo exemplo inspirador, pela

    atuao como educadora e pelos conselhos e atos que me influenciaram muito

    alm dos muros da academia. Ao Nehac e a todos os seus membros por me

    acolherem e me ensinarem de acordo com suas experincias. Em especial a

    Alcides Freire Ramos cujas observaes sempre me foram muito caras.

    Para Duartina Ana Dias, um carinhoso agradecimento por tudo que

    aprendi e vi florescer nos ltimos dois anos. Sou to grato pelo seu incentivo e

    apoio incondicional que eu no saberia colocar em palavras aqui o que existe

    grafado em marcas indelveis no fundo da minha alma.

  • 7

    R E S U M O

    Esta monografia possui como principal objetivo estudar a cultura no cenrio

    contemporneo a partir da reflexo acerca da obra de Mrio Bortolotto, um dos

    dramaturgos contemporneos que conhecido por se afastar do perfil de produto

    cultural. A partir da anlise da pea Nossa Vida No Vale um Chevrolet, buscamos

    desenvolver uma discusso histrica que abarca as questes mais pertinentes que

    relacionam as referncias do autor bem como as impresses que o identificam como

    sujeito-histrico atuante na construo dos sentidos histrico-sociais da cultura

    urbana.

  • 8

    S U M R I O

    Introduo..........................................................................................................9

    Captulo I: Mrio Bortolotto.........................................................................17

    1.1 Sobre o sujeito Mrio Bortolotto.........................................................18

    1.2 - Mrio Bortolotto: A construo do artista e a sua linguagem.........22

    Captulo II: Nossa Vida no Vale um Chevrolet: As impresses de uma

    poca nos seus indivduos.................................................................................32

    Captulo III: O sujeito Mrio Bortolotto no palco da Histria.................. 46

    Consideraes Finais ........................................................................ 65

    Referncias ........................................................................................ 69

  • 9

    I N T R O D U O

    No estou pedindo que se tenha piedade do artista, no estou pedindo financiamentos pblicos, no peo sequer

    compreenso; peo apenas que nos deixem em paz na alegria e no horror de nossas obras."

    (Charles Bukowski)

  • 10

    Partindo da premissa que todas as diversas formas de expresso

    artstica abstraem as realidades scio-culturais de seus autores, o presente

    trabalho busca analisar a conjuntura histrica contempornea a partir de um de

    seus sujeitos histricos, (re)produtor dos sentidos aos quais est imerso. Este

    trabalho tem a inteno de mostrar, por meio da anlise de um representante

    da cultura contempornea, as marcas das inquietaes deste autor em suas

    obras, investigando o teor de crtica (se existe ou no) e realizando um debate

    da histria social que abarca a cultura produzida no mundo contemporneo.

    O desenvolvimento desta pesquisa se deu em grande parte com

    fomento e apoio da Fapemig, que nos favoreceu com uma bolsa de Iniciao

    Cientfica nos anos de 2008 e 2009, e esta pesquisa s foi possvel a partir de

    um desdobramento de um projeto maior denominado O Palco no Centro da

    Histria: Cena Dramaturgia Interpretao Teatro So Pedro Othon

    Bastos Produes Artsticas Companhia Estvel de Repertrio (C.E.R.),

    coordenado pela Prof. Dr. Rosangela Patriota Ramos, que h algum tempo

    vem estudando e pesquisando a cena teatral brasileira, em particular na

    conjuntura da Ditadura Militar no Brasil e no restabelecimento do Estado de

    Direito1, com vistas a abranger o final do sculo XX e o incio do sculo XXI.

    Partindo de questes que cercam os sujeitos histrico-sociais de hoje,

    pessoalmente, vejo como interessante caminho para o trabalho de investigao

    analisar as impresses histrico-ideolgicas que esto presentes no discurso

    de artistas da atualidade, inclusive o processo de produo cultural deste

    discurso. Os processos de criao dos artistas so diretamente relacionados

    ao que eles consideram ser real e por isso nos interessam enquanto fonte de

    numerosas elucidaes. Desta maneira, o estudo dos objetos culturais,

    relacionando-o com a conjuntura qual so produzidos, nos d valiosos

    ngulos de anlise histrica, uma vez que a sua prpria existncia e difuso

    1 Estado de Direito aquele em que o poder exercido limitado pela Ordem Jurdica vigente,

    que ir dispor, especificamente, desde a forma de atuao do Estado, suas funes e limitaes, at s garantias e direitos dos cidados. Dessa forma, tanto Estado, quanto seus indivduos so submetidos ao Direito. O Estado, assim, no poder impor suas vontades que no tiverem fixadas em lei, e nem poder atuar contra as leis existentes. Dessa forma, o Estado dever, alm de acatar as leis, proteger sua populao, concedendo-lhe segurana, e sendo eficiente na busca do bem comum. Disponvel em : Acesso em 22 set. 2009.

  • 11

    so elementos ativos nos processos histrico-sociais que constroem o

    presente. Segundo Chartier:

    Cada poca dotada de estruturas de pensamento,

    comandados pelas evolues scio-econmicas que organizam as constituies intelectuais como produes artsticas, as prticas coletivas como pensamentos filosficos2.

    Assim, para colocarmos em foco os elementos sociais contemporneos,

    adequado que o objeto de anlise cultural seja tambm imerso no mesmo

    lcus histrico-social de tais elementos que compem a conjuntura atual. Este

    trabalho monogrfico, portanto, prope contribuir com o debate acerca da

    cultura contempornea, suas nuanas e inquietaes, tendo em vista a

    discusso sobre as impresses histrico-ideolgicas que esto presentes no

    trabalho artstico dos que contribuem com o cenrio cultural no Brasil atual,

    incio do sculo XXI, numa conjuntura social onde o chamado Estado de Direito

    foi restabelecido.

    Partindo deste mote, voltamos nossa ateno para o trabalho de Mrio

    Bortolotto, que entre as suas produes culturais esto o teatro, o cinema,

    literatura (poesia e prosa), e a msica: A gente faz de tudo um pouco, n...

    declara o polivalente Bortolotto em entrevista para o programa Tunderview3. A

    atividade cultural mais expressiva de Mrio Bortolotto o teatro. A base da

    estrutura criativa de Mrio Bortolotto e dos artistas (poetas, msicos, etc...)

    equivalentes relacionada a elementos que se tornaram smbolos recorrentes

    em seus trabalhos, como o excesso da bebida alcolica, a crnica carncia

    financeira, a liberdade de no ter nada na vida, mas no dever nada pra

    ningum, de ler os cdigos de um mundo encostado de lado, sob o prprio

    nariz dos seres de uma curva normal da sociedade e coloc-los num mundo

    de palavras belamente organizadas que ora parecem brotar na garganta e nos

    sons eltricos das guitarras noturnas nos bares das cidades, ora em gestos

    expressivos dos atores que acabam buscando a suavidade de uma maneira

    brusca e pungente. Faz parte dos objetivos deste trabalho analisar o quanto

    2 CHARTIER, R. A Histria Cultural entre prticas e representaes. Trad. Maria Manuela

    Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.135. 3 Programa de entrevistas no site musical da showlivre.com apresentado pelo famoso apresentador a MTV: Thunderbird. Neste programa ele j entrevistou vrias personalidades do mundo cultural.

  • 12

    so significativas as referncias de Mrio Bortolotto, a formao de seu

    discurso e dos sujeitos afins, muitas vezes retratados na sua fico.

    Uma, duas, trs doses de usque que magicamente se materializam nas

    mos das personagens que insistem em viver do nico modo que conseguem.

    A nudez explcita de suas psiques insiste em se esconder nos trailers alugados,

    nas quitinetes baratas, entre os lenis que precisam ser lavados, nas pias

    com pilhas de pratos e talheres das famlias conturbadas. Os criadores dessas

    personagens podem no concordar, mas pode-se sentir um magnetismo nos

    seus estilos de vida. Nota-se uma atmosfera mstica que habita seus smbolos

    mais bvios, como a garrafa de usque barato, as pontas de cigarro - com ou

    sem marcas de batom, as infinitas latas de cerveja vazias e amassadas, e toda

    aquela gordura nos dedos e nas jaquetas jeans, provenientes dos cheese-

    burgers devorados como se no houvesse amanh. E quem garante a eles que

    haver? Violncia, sexo, marginalidade, criminalidade e outros elementos

    incmodos e complicados da contemporaneidade permeiam os caminhos

    sombrios daqueles que nascem e vivem na imatria da mente dos artistas

    como Mrio Bortolotto.

    Torna-se at mesmo engraado perceber a ironia de como o fazer

    poltico interpela estes artistas que no conseguem evitar o fato de atingirem a

    sociedade com seus quase protestos sociais no propositais -, mesmo

    tratando de assuntos que mais parecem se encontrar na esfera do

    existencialismo. Ignorando uma anlise subjetiva mais profunda, podemos

    dizer que estes artistas parecem produzir sua arte de maneira despretensiosa,

    apenas como quem o faz para a manuteno da prpria sanidade, ou por mera

    vontade de fazer o que gosta - pagando por isso qualquer preo. Obviamente

    sempre terminam por passar uma mensagem ao coletivo, mesmo que

    descompromissadamente, evitando com maestria a armadilha da panfletagem.

    Poesia o elemento que mais est presente na escrita e no fazer de artistas

    como Mrio Bortolotto. No uma poesia cheia de clichs ou, pelo menos, ela

    possui seus prprios clichs que so feitos do tdio e da falta de esperana (se

    aqui coubesse mais: o desespero) dos outsiders que habitam um mundo

    aparentemente desregrado que nega as leis pr-concebidas de uma sociedade

    que se volta cada dia mais para o culto do consumo de ouro. Variam as

  • 13

    personagens: nem sempre so desajustados sem remdio. Mas a crtica

    sempre cai sobre aqueles que seguem os valores pequeno-burqueses e sobre

    os que tendem levar uma vida careta e hipcrita do chamado politicamente

    correto. Esta marca, que denota um grande teor autoral nos textos de Mrio

    Bortolotto, o torna um artista alheio ao be-a-b da indstria cultural, e isso

    uma grande caracterstica de seu trabalho.

    O homem que atende por Mrio Bortolotto resiste para que o seu nome

    no se torne mais um produto que pode ser pego numa prateleira cultural por

    a. sabido que para qualquer sucesso em relao a uma produo cultural,

    os artistas e produtores ficam merc da visualidade de suas criaes, uma

    vez que de extrema necessidade que exista uma divulgao eficiente para

    atrair o pblico, fazendo-o comparecer e apreciar as diversas produes

    artsticas. Ora, as pessoas precisam saber de alguma maneira que as

    produes culturais existem! neste aspecto que temos um verdadeiro

    problema referente visibilidade, onde geralmente preciso ter uma grande

    quantidade de capital para o investimento em comunicao e marketing, o que

    justamente falta s produes culturais independentes do chamado teatro

    underground paulista, por exemplo, habitat social de Mrio Bortolotto. Um

    sistema que d a aparncia de ser natural chama a ateno do observador

    atento e desperto para tudo que supostamente pr-estabelecido. O bom

    historiador desconfia das naturalidades histricas, seja qual for o processo ao

    qual est inserido, e tem a vocao de investigar tudo que indique qualquer

    idia de (...) assim que as coisas so(...). Nesta pesquisa, encontramos

    sadas alternativas para o problema, muitas vezes sem uma bandeira de

    independncia e libertao de um sistema fechado para eles, mas pelo reforo

    primitivo ligado sobrevivncia em contato com um estilo de vida que pede

    seus prprios caprichos, mesmo que muitas vezes ligado a um sentido coletivo.

    Mas referindo-nos a Mrio Bortolotto, ou seja, lidando com uma anlise do

    sujeito, percebemos em seu discurso uma coerncia patente no que se trata

    sobre a sua deciso de no se misturar ao que chamado de produto cultural.

    Para melhor diz-lo: Bortolotto se recusa a tornar-se, ele prprio, um produto,

    mesmo percebendo oportunidades de se adequar por melhores condies de

    trabalho, remunerao ou o que valha. Um exemplo extremo de sua

  • 14

    integridade pode ser visto num trgico episdio ocorrido no dia 5 de dezembro

    de 2009, onde aps a sesso noturna de sua pea Brutal4 , no Espao

    Parlapates, na Praa Roosevelt, Bortolotto, aos 47 anos, confraternizava com

    colegas e amigo quando dois bandidos armados invadiram o bar do teatro,

    cujas portas estavam semifechadas, e comearam um assalto. Atores foram

    agredidos e Bortolotto, aps levar uma coronhada na cabea, partiu para cima

    do agressor. Levou quatro tiros, um deles no corao, e foi levado para a Santa

    Casa em estado grave. Praticamente desenganado, recuperou-se

    surpreendentemente, assombrando at seus mdicos. Esta foi considerada

    para muitos uma oportunidade para Bortolotto obter visualidade na mdia, uma

    vez que a imprensa disputava espao e entrevistas do dramaturgo quando este

    milagrosamente se recuperava. Mas ele declarou:

    No quero ser conhecido como o Dramaturgo que

    reagiu a um assalto e levou trs tiros. Quero sim ser conhecido como o Dramaturgo que escreveu mais de 50 peas e que trabalha exaustivamente no s como escritor, mas tambm como diretor, ator, sonoplasta, iluminador, e que ainda encontra tempo pra cantar numa banda de rock. pelo meu trabalho que quero ser lembrado quando estiver bebendo em algum boteco do cu, e no porque reagi a um assalto e levei trs tiros.5

    Estudando sua histria pessoal, temos um exemplo raro de artista que

    foi salvo do fracasso profissional pelo seu talento e pela sua prpria liberdade

    de pensamento, mesmo se atrelando significativamente s suas referncias

    mais declaradas. A sua grande afinidade com os escritores Beats, isso vai

    muito alm do que Bortolotto escreve em linhas dramticas ou poticas. Seu

    4 Pea escrita por Mrio Bortolotto. Na montagem em questo, Bortolotto foi diretor. Segundo

    crtica de Jefferson Del Rios no Jornal Estado: Embora faa um teatro existencial, ele, sua maneira, chega, assim, a temas sociais. Se, de um lado, lana no palco personagens desajustados e com algum vis autodestrutivo, mas basicamente inofensivos, por outro introduz gente que explora psiques indefesas e , em casos extremos, espalha a morte. Disponvel Acesso em 10 nov. 2009. 5 BORTOLOTTO, Mrio. O Jornalismo Mauricinho. Atire no Dramaturgo, 16/01/2010. Disponvel em Acesso em 17 jan. 2010.

  • 15

    estilo de vida chama ateno para uma coletividade que compartilha do mesmo

    estilo. Numa metfora simples, como se vestissem a mesma cor, mas com

    uma variedade de tons que se distinguem uns dos outros apesar de

    pertencerem mesma famlia; como uma mesma nota musical que se difere

    em suas oitavas diferentes. So seres humanos como quaisquer outros, mas

    que se recusam ao rtulo de normal, ou simplesmente alegam que no

    conseguem se adequar normalidade. Assim, o que d o mrito a Mrio

    Bortolotto de ser o tema central deste texto o fato do artista conseguir

    transportar para suas obras a sinceridade e a vivncia rica dos outsiders que

    habitam suas peas, textos, poesias e msicas. por conviver com tantos

    seres considerados (por eles mesmos ou por ns) marginalizados e por ter a

    sensibilidade necessria para faz-los existir pra sempre nos seus escritos e

    nas mentes dos seus leitores e expectadores, que Mrio Bortolotto merece ser

    o sujeito a ser estudado nesta humilde monografia.

    Ficaria extremamente complicado estender a anlise sobre a sua obra

    se no pudssemos concentrar nossos olhares em um de seus textos,

    escolhido depois de rduas consideraes em relao s suas questes

    centrais, sua importncia dentre as obras do autor e sua significativa fora em

    representar o mundo outsider que Mrio Bortolotto insiste em retratar na

    totalidade de sua obra. Que o carssimo leitor saiba que a tarefa de escolher

    uma nica obra para concentrar nossas anlises foi um desafio difcil e que

    com toda a certeza definiu por quais caminhos permearam nossas conjecturas

    no que tange a obra de Mrio Bortolotto.

    Depois da leitura de vrios textos, em sua grande maioria, textos teatrais

    (que a grande rea de atuao de Bortolotto e seu maior estandarte

    enquanto artista underground), selecionamos um em especial que merece

    maior ateno no somente pelo seu contedo, esttica, personagens e

    temtica, mas tambm por sua repercusso e reconhecimento, que foram

    grandes contribuintes para a atual referencia de Bortolotto no circuito cultural

    de So Paulo e do Brasil. Nossa Vida No Vale um Chevrolet foi encenada

    pela primeira vez em 30 de maro de 1990 no teatro Zaqueu de Melo, na

    cidade natal de Bortolotto, em Londrina. Na ocasio, a pea foi dirigida pelo

    prprio autor com o grupo que ajudou a fundar, o Cemitrio de Automveis.

  • 16

    Conta a histria da famlia Castilho, formada pelos irmos ladres de carros e

    pela irm, danarina de boate e groupie. A morte do pai, no incio da pea,

    desencadeia uma srie de discusses ntimas e levanta questes que sero

    tratadas no interior deste trabalho.

  • 17

    CAPTULO I

    MRIO BORTOLOTTO

  • 18

    1.1 Sobre o sujeito Mrio Bortolotto

    Autor de mais de cinquenta peas, Mario - como conhecido pelos

    numerosos amigos - atua e dirige a maioria das montagens de seus textos,

    marcando presena na cena teatral paulista em meados da dcada de 1990.

    Nascido em 1962 na cidade de Londrina (PR), estudou em seminrio6 , onde teve

    seu primeiro contato com o teatro, antes de ser expulso:

    "Quando fui expulso do seminrio, tinha 17 anos. Tinha uma vaga noo do que era o Sagrado, depois de mergulhar em leituras doutrinrias na biblioteca do seminrio. Bobagem. Eu acabava interpretando a Bblia do meu jeito e preferia ficar tentando decifrar o Apocalipse de So Joo, Santo Agostinho e Toms de Aquino, mas gostava mesmo do Livro dos Juzes com toda aquela pancadaria comendo solta. Mas fui expulso (sob alegao de que eu era m influncia, v se pode um troo desses) e nunca mais fui igreja. Desconfiava que no ia encontrar o que estava procurando por l. Ento escrevi o meu primeiro texto de teatro que era exatamente sobre os anos de seminrio. Era muito ruim. Perdi o texto, nunca mais vi e no fao a menor questo, era ruim pra caralho. A ca na vida, em leituras mais profanas, nos autores malditos e ateus. Passava longe de alguma espcie de Paraso e ouvia blues o dia inteiro. A msica do demo." 7

    Logo depois Iniciou sua carreira teatral, ainda na adolescncia, participando

    de inmeros festivais de teatro no Brasil com o grupo fundado por ele em 1982,

    juntamente com Lzaro Cmara e Edson Monteiro Rocha, chamado a princpio de

    Chiclete com Banana que, a partir de 1987, passa a denominar-se Cemitrio de

    Automveis8. Apesar de ser um artista que tambm trabalha com poesia, msica,

    literatura e cinema, o teatro sem dvida o espao onde Bortolotto possui maior

    destaque. Entre suas peas mais conhecidas esto A Frente Fria que a Chuva Traz,

    Brutal, Hotel Lancaster, Meia-Noite um Solo de Sax na Minha Cabea e Leila

    Baby. Mrio Bortolotto ficou conhecido por ser um dramaturgo independente, por se

    6 Passei dois anos nesse seminrio na cidade de Ourinhos em So Paulo. Depois passei outros trs no seminrio de Apucarana. (BORTOLOTTO, Mrio. Em Ourinhos - 33 anos depois. Atire no Dramaturgo (blog), 17 out. 2009. Disponvel em Acesso em 05 nov. 2009. Grifo do autor.) 7 BORTOLOTTO, Mrio. O que restou do Sagrado. Atire no Dramaturgo (blog), 03 mar. 2006. Disponvel em Acesso em 13 jan. 2009. 8 Nome que alude ao poema Obligatto do Bicho Louco, do poeta e editor Lawrence Ferlinghetti, um importante nome da gerao beat.

  • 19

    afastar do perfil de produto cultural - conceito que evidentemente remete a uma

    indstria, a denominada Indstria Cultural9.

    Observa-se a existncia de um formato de cultura que se faz presente nos

    canais de veiculao em massa, ou seja, os meios de comunicao que atingem um

    enorme volume de pessoas, como a televiso, o rdio e agora a Internet. notrio

    que estes veculos de comunicao em massa contribuem de maneira significante

    no processo de formao de opinio e assim, concomitantemente, na construo

    dos imaginrios ideolgicos aos quais os sujeitos se vinculam, mas tambm

    verdade que este formato de cultura, contrariando uma anlise mais superficial, no

    remete necessariamente a um formato de cultura democrtica, uma vez que o

    controle destes grandes meios de difuso cultural por meio da televiso, por

    exemplo, so controlados no Brasil historicamente por grandes emissoras, mesmo

    com concesso federal, e que possuem seus prprios interesses institucionais, entre

    outros. O quadro vem se alterando sucessivamente com o advento da internet, onde

    o que se pode perceber uma gradual desmonopolizao da informao por parte

    dos grandes veculos tradicionais.

    Mrio Bortolotto no permitiu envolver-se de maneira comercial com este

    formato de cultura e sempre d o tom autoral em seus trabalhos. A partir da internet,

    ao montar um blog10, Mrio Bortolotto faz o que numerosos artistas independentes

    (ou no) esto fazendo, divulgando seus trabalhos para o grande pblico,

    interagindo com os mais variados tipos de pessoas que por algum motivo apreciam

    ou criticam o seu trabalho.

    Em suas peas, Bortolotto retrata personagens que so verdadeiros

    outsiders, indivduos que, em uma leitura convencional, so excludos socialmente,

    9 O conceito de industria cultural elaborado por Theodor Adorno e Max Horkheimer possui uma base terica amplamente discutida no que tange mdia em relao ao seu papel de difundir a cultura com objetivos culturais. Nesta discusso, existem opinies que se colocam demasiadamente pessimistas em relao s possibilidades de informao de baixa qualidade pelos meios de comunicao, e de outro lado, opinies favorveis que destacam a sua lucidez em apontar a nocividade da cultura industrial massiva. De qualquer forma, prematura qualquer anlise que considerem todas as expresses artsticas e estticas veiculada na mdia como se tivessem a mesma natureza perniciosa ou sendo de m-qualidade. 10 (...)Blog a contrao da expresso inglesa weblog. Log significa dirio, como o dirio de um capito de navio. Weblog, portanto, uma espcie de dirio mantido na internet por um ou mais autores regulares. Normalmente apenas um, algumas vezes dois ou trs, raramente mais que trs. O primeiro blog surgiu em 1999. Mais ou menos. H hoje mais de quatro milhes de blogs. Pense nisso. De um a quatro milhes em cinco anos." (HEWITT, Hugh. Blog: Entenda a Revoluo que vai mudar seu mundo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2007)

  • 20

    marginalizados. Segundo o autor, ele prefere trabalhar com este perfil por serem

    mais interessantes do que personagens comuns que levam uma vida rotineira,

    cotidiana11. importante ressaltar que ao criar suas personagens Mrio Bortolotto

    possui conhecimento de causa, uma vez que sabido que o autor convive com

    indivduos que possuem o perfil de outsiders:

    (...) Agora, eu sempre gostei de escrever sobre esse tipo de

    personagem marginal porque eu conheo melhor, sempre convivi com figuras mais malucas mesmo, que no tm uma vida convencional, e sempre achei que isso d uma boa literatura.12

    Ademais, Mrio Bortolotto deixa claras suas referncias em cada um de seus

    textos. Buscando concentrar nossos estudos a partir de um objeto, o presente

    trabalho se pautou em analisar sua obra sem excluir o carter histrico permeado de

    processos que contriburam para os moldes aos quais a sua obra se desenvolve,

    admitindo seus elementos mais caractersticos. So evidentes as influencias da

    literatura beat13 em toda a obra de Mrio Bortolotto e suas referncias vo alm,

    passando de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Charles Bukowski s revistas em

    quadrinhos, o Rock n roll e o Blues alm de outras referncias da cultura pop. Foi

    alvo de nossas investigaes situar o autor perante a diversidade cultural e

    desvendar suas referncias pensando em um prisma de historicidade que permeiam

    os processos sociais que o autor vivencia enquanto sujeito histrico. Conforme

    Chartier ressalta:

    As representaes do mundo social assim construdas, embora aspirem universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Da, para o caso, o necessrio relacionamento dos discursos proferidos com a posio de quem os utiliza.14

    11 BORTOLOTTO, Mrio. Entrevista cedida Etcetera Revista Eletrnica de Cultura e Arte. Disponvel em Acesso em 21 de mai. 2008. 12 Idem, Ibidem 13 Por extenso, Beat significa tambm, nos textos e na prpria vida das pessoas daquela gerao, influncia, improviso, ausncia de normas fixas, na vida e no texto, envolvimento profundo que traz a msica, balano, liberdade e prazer. (BUENO, Andr. O que gerao beat / Andr Bueno e Fred Ges, So Paulo: Brasiliense, 1984, p.09.) 14 CHARTIER, R. A Histria Cultural entre prticas e representaes. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.17.

  • 21

    Cabe ao historiador buscar desvendar os mltiplos interesses desses

    diversos grupos que terminam por forjar as inmeras representaes do mundo

    social e aqui buscamos inclusive perceber estas implicaes na (re)produo destas

    representaes na cultura presente. A partir de uma preocupao que concerne

    formao dos discursos de Mrio Bortolotto e das origens histricas do seu trabalho,

    voltamos os olhares sobre o circuito cultural em Londrina buscando ter maiores

    elucidaes acerca das origens do seu trabalho com o Cemitrio de Automveis e,

    portanto, delineando mais claramente sobre a Formao Discursiva15 de Mrio

    Bortolotto. Por meio de depoimentos do prprio autor, de personalidades prximas a

    ele ou a partir da pesquisa acerca de Festivais como o FILO Festival Internacional

    de Londrina, pde-se esclarecer numa boa medida o contexto ao qual o dramaturgo

    se inseria desde a adolescncia. Dali se revelou muitas de suas referncias e foi

    possvel ter um maior entendimento das influncias que afloram em seus textos.

    Atualmente morando em So Paulo, Mrio Bortolotto um dos artistas que

    integram o grupo que participa da efervescncia do que se convencionou chamar de

    teatro alternativo em So Paulo. Os bares e teatros da Praa Roosevelt, no centro

    da cidade, se tornaram ponto de encontro de artistas das mais variadas linguagens,

    e nos teatros da Praa Roosevelt que a maioria das montagens de Mrio

    Bortolotto exibida a um pblico cada vez maior e mais fiel. Assim, uma anlise

    deste lcus social no poderia ficar de fora da pesquisa. Por ter uma laje de

    concreto que cobre grande parte da rea da praa, o local atrai moradores de rua,

    usurios de drogas e criminosos, o que naturalmente afasta a populao de usufruir

    da rea. No fosse a presena dos bares e dos artistas que freqentam o lugar, a

    praa estaria totalmente entregue ao abandono e descaso. Em 2003, a prefeitura

    props uma reforma na praa e a estimativa era que em trs anos o projeto sairia do

    papel. No entanto, somente em 2010 que um projeto com oramento de R$ 37

    milhes de reais foi oficializado e a reforma deve ficar pronta em dois anos. Atrasos

    nas licitaes e problemas com o financiamento junto ao BID (Banco Interamericano

    15 Entendemos, por formaes discursivas, deste modo, um conjunto de regras histricas, circunscritas no tempo e no espao que definem uma determinada poca, e, no caso de uma rea social, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de produo da funo enunciativa que se estabelecem em cada uma. Nessa perspectiva, no se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um certo sujeito, mas de considerar sua enunciao como o correspondente de uma dada posio scio-histrica na qual os enunciadores revelam-se substituveis. (Stafuzza, 2005, op. cit. Foucault, 2002)

  • 22

    de Desenvolvimento) explicariam o motivo da demora do incio das obras. Outro

    motivo provvel foi o corte de quase R$ 5 bilhes feito pelo prefeito Gilberto Kassab

    no Oramento do ano de 2009, o que impediu o incio das obras. A reforma faz parte

    de um projeto da Prefeitura de So Paulo de revitalizao do centro da cidade16.

    Existiram boatos que ligavam o incidente violento sofrido por Mrio Bortolotto no

    assalto onde sofreu quatro tiros (que teve rpida repercusso na mdia) com a

    agilizao dos processos necessrios para a inicializao da reforma. O que

    podemos afirmar que o triste fato ocorrido com Mrio Bortolotto trouxe visibilidade

    a um problema e deu mais fora s vozes de moradores, artistas e demais

    freqentadores do espao.

    1.2 - Mrio Bortolotto: A construo do artista e a sua linguagem

    O poema Howl17 de Allen Ginzberg escrito em 1956 juntamente com On the

    road18 (1957) de Jack Kerouac e Naked Lunch19 escrito por William S. Burroughs em

    1959 inauguram o que passou a ser chamado de Gerao Beat. Composta por

    escritores americanos, os beats romperam grandes barreiras sociais devido sua

    viso de mundo e sua vivncia transgressora em relao rgida moral

    estadunidense da poca. Estes poetas, escritores e intelectuais influenciaram as

    geraes subsequentes e foram considerados os novos bomios.

    interessante percebermos que ao relacionarmos a vivncia de Mrio

    Bortolotto (aqui visto como representante de uma gerao de artistas que se

    colocam margem do produto cultural e se afastam como podem do mercado de

    consumo) com a vivncia dos bomios, como intelectuais que se afastavam da

    utopia do trabalho e da acumulao de riquezas, notamos significativas afinidades.

    Seres cuja vivncia social tem caractersticas da boemia - vista aqui sem a

    16

    Ver Projeto de R$ 37 milhes de reforma da praa Roosevelt oficializado no Dirio Oficial Obras devem comear nas prximas semanas; prazo para trmino de dois anos. R7 27 jul. 2010. Disponvel em Acesso em 02 ago. 2010. Em SP, artistas da Praa Roosevelt reclamam de roubos Atores acreditam que revitalizao da Cracolndia espalhou problema para outras regies. Estado 07 dez. 2009. Disponvel em Acesso em 10 dez 2010. 17 Uivo. 18 P na Estrada. 19 Almoo Nu.

  • 23

    conotao pejorativa que parece perseguir estes grupos20- fazem parte do universo

    pessoal de Mrio Bortolotto, que vive em um nicho social urbano onde a vida

    noturna efervescente21.

    Ao observarmos por meio de declaraes do autor em seu blog, pelas

    informaes que se tem acesso sobre sua vida social ou mesmo se observarmos a

    vida social noturna ao qual ele est inserido Praa Roosevelt, onde esto

    instalados grupos teatrais menores; os bares e inferninhos da Rua Augusta e

    outros pontos noturnos no centro de So Paulo notamos que Bortolotto possui

    grande conhecimento em relao aos indivduos e vivncias que escreve, uma vez

    que os elementos encontrados em sua obra, juntamente com as reflexes filosficas

    e existenciais que podem se desdobrar das mesmas, compem seu lcus social

    desde quando ainda morava na sua cidade natal, em Londrina, no Paran.

    O comportamento urbano e rebelde dos bomios, presente tambm nos

    representantes da Gerao Beat, pode ser reconhecidos na obra do autor. No

    entanto, mais do que isso, permeia o prprio universo social ao qual Bortolotto se

    insere, onde constri sua vivncia social e que composto de ambientes urbanos

    precrios, comida barata, bebida alcolica em excesso e uma marcada rejeio

    modos de vida que se enquadram nos padres sociais considerados prximos

    sociedade capitalista de consumo.

    Ao investigar as origens referenciais do autor aqui estudado, se mostra

    importante saber mais sobre os bomios, seu estilo de vida, seus desdobramentos e

    possveis contradies. Russel Jacoby em Os ltimos intelectuais: a cultura

    americana na Era da academia esclarece:

    Para o ctico, a confiana dos intelectuais bomios na vida

    e nas instituies urbanas tem um toque de hipocrisia: os marginais auto proclamados florescem junto ao centro. Eles necessitam das ruas, dos cafs e dos bares da civilizao urbana para escapar do fardo da civilizao urbana: trabalho e rotina. A hipocrisia da boemia, entretanto, no simples desonestidade; ela alude a uma flagrante contradio. O mundo do trabalho e da riqueza est armado contra a inatividade e a utopia que ele por vezes promete. Pensar e sonhar requerem um tempo desregulado; os intelectuais

    20 O comportamento dos denominados outsiders, desperta uma reao da prpria sociedade que deseja punir os transgressores ou ento pedagogicamente enquadr-los. 21 A regio central de So Paulo conhecida tambm por ser repleta de bares e casas noturnas.

  • 24

    perpetuamente postados em cafs e bares ameaam os respeitveis cidados pelo esforo que colocam ou pela aparncia em escapar da escravido do dinheiro e do trabalho duro22.

    Assim, podemos pensar que os bomios ou mesmo os indivduos que

    renegam um estilo de vida enquadrado uma sociedade disciplinada e regulada por

    horrios e normas de trabalho, s podem surgir e conviver mediante seus prprios

    opositores ideolgicos, sendo elementos simblicos de uma alternativa todas as

    incmodas obrigaes dos indivduos comuns como ter que ganhar dinheiro, de

    trabalhar para sustento, de defenderem os seus. Tais expresses saltam de

    indivduos que raramente so incentivados a pensarem seu modo de vida de

    maneira crtica e sincera, muitas vezes apenas herdando de maneira automtica as

    preocupaes de outros que se habituaram a viver de maneira aparentemente

    bovina e satisfeita. O estilo de vida bomia na sociedade contempornea continua

    sendo mal visto pela grande maioria da sociedade imersa no mercado de consumo e

    nas teias da conjuntura atual capitalista. Apesar do eventual charme que atribuda

    a vida boemia, desde a poca em que os primeiros bomios se tornaram

    conhecidos, considera-se que [...] no rol dos pecados burgueses, os intelectuais

    bomios merecem ser duplamente citados, por pensarem muito e por fazerem

    pouco.23

    Para ser um potencial consumidor, o indivduo deve seguir o caminho regular

    de cidado urbano, sendo til e assalariado. No este perfil de personalidade que

    os bomios mostravam. E no este modo de viver que as personagens de Mrio

    Bortolotto possuem. Sua obra, juntamente com sua crtica acompanha o atual nvel

    de desenvolvimento da sociedade, chamando ateno para aqueles que no se

    dobram perante a lgica de mercado que erroneamente pode ser considerada como

    natural. Jacoby Russel nos atenta que o desenvolvimento das cidades,

    estacionamentos, pistas elevadas, vias expressas e agora centros comerciais,

    transformam as cidades, alterando tambm o ritmo da cultura24

    Estas alteraes propulsionam novas formas de ver o mundo reagindo de

    acordo com as contradies vivenciadas pelos sujeitos em uma determinada poca.

    22 JACOBY, Russel. Os ltimos intelectuais: a cultura americana na Era da academia. Trad. Magda Lopez. So Paulo: Trajetria Cultural: EDUSP, 1990, p. 40. 23 Idem, p.41. 24 Idem, p.42.

  • 25

    Diferentemente dos bomios, que possuam um forte elitismo e averso s massas

    condicionadas a um sistema que criticavam, os beats romantizavam

    significativamente a vida e as pessoas comuns. Indo contra esse padro rgido de

    sociedade, os beats influenciaram as novas geraes norte-americanas com uma

    nova maneira de pensar em um perodo marcado pela delinqncia juvenil e a

    ascenso e queda do macartismo. Neste contexto, eles ainda coexistiam com um

    fenmeno quase oposto: a juventude aptica e conformista. Os beats so os

    bomios da poca nas rodovias interestaduais, depois dos beats a boemia urbana e

    os bomios se tornaram fatos histricos, no uma realidade viva25

    Nascia a chamada contracultura, fenmeno ao qual os beats se fundiram.

    No possvel falar em contracultura sem falar em juventude. Este foi um perodo

    de grande evidncia por parte das manifestaes da juventude em defesa de suas

    idias e em detrimento das contradies que presenciavam na sociedade. Com

    grande habilidade de sntese panormica, diz Hobsbawm: Liberao pessoal e

    liberao social, assim, davam-se as mos, sendo sexo e drogas as maneiras mais

    bvias de despedaar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei

    da conveno.26

    O envolvimento com as drogas e uma nova forma de encarar a sexualidade

    tambm foi incorporado ao quadro social da juventude que, de maneira espantosa

    detinha meios para difundir sua nova concepo de mundo por todo o planeta. Uma

    grande peculiaridade da nova cultura jovem nas sociedades urbanas o seu

    espantoso internacionalismo. neste sentido que ele completa:

    O blue Jeans e o rock tornaram-se marcos da juventude

    moderna, das minorias destinadas a tornar-se maiorias, em todo pas onde eram oficialmente tolerados e em alguns onde no eram, como na URSS a partir da dcada de 1960 (Starr, 1990, Captulos 12 e 13). Letras de rock em Ingls muitas vezes nem eram traduzidas. Isso refletia a esmagadora hegemonia cultural dos EUA na cultura popular e nos estilos de vida, embora deva notar que os prprios ncleos de cultura jovem ocidental eram o oposto do chauvinismo cultural, sobretudo em seus gostos musicais. Acolhiam estilos

    25 Idem, p. 66 26 HOBSBAWM. Eric J. A Era dos Extremos: o Breve Sculo XX: 1914 1991. Trad. Marcos Santarrita. So Paulo: Companhia das Letras. 1995, p. 326.

  • 26

    importados do Caribe, da Amrica Latina e, a partir da dcada de 1980, cada vez mais a frica. 27.

    Mrio Bortolotto possui, em significativo grau, influencia da msica e da

    literatura estrangeira, principalmente no que tange s movimentaes culturais que

    efervesceram a partir dos anos cinqenta do sculo passado nos EUA como a

    literatura beat, e o som marcado pelo Blues, Jazz e o Rock.

    Alm de comporem as trilhas sonoras da maioria de suas montagens, estes

    estilos musicais fazem parte de maneira contundente do universo social de

    Bortolotto, que se aventura e se diverte no universo musical participando conjuntos

    musicais de rock e blues - deixando evidente suas influencias -, por exemplo, como

    vocalista e compositor das bandas Saco de Ratos Blues e Tempo Instvel.

    Gravou o cd de blues Cachorros gostam de Bourbon, lanado em 2007, com

    composies suas. Em entrevista recente, o autor declara:

    Sou fissurado em msica. Quando era criana, passava a

    manh inteira ouvindo rdio, anotando letras de msica, criando a minha prpria parada musical. Pra mim tambm bastante natural fazer parte de uma banda. Desde moleque sempre toquei e cantei em bandas. Quando tava no seminrio, tocava violo e cantava na missa. Enfim, natural, s isso. Estou em duas bandas atualmente: a Saco de Ratos e a Tempo Instvel, que acabou de lanar o primeiro CD. 28

    Tais declaraes esto repletas de historicidade e s puderam existir

    mediante a imensa difuso cultural que ocorreu com estes estilos musicais

    considerados na poca como estilos juvenis - nas dcadas de 1960-70:

    Difundiam-se atravs dos discos e fitas cujo grande veculo

    de promoo esto como antes e depois, era o velho rdio. Difundiam-se atravs da distribuio mundial de imagens; atravs de contatos internacionais do turismo juvenil, que distribua pequenos, mas crescentes e influentes fluxos de rapazes e moas de jeans por todo o globo, atravs da rede mundial de universidades, cuja capacidade de rpida comunicao internacional se tornou bvia na dcada de 1960. Difundiam-se ainda pela fora

    27 Idem, p. 320. 28 BORTOLOTTO, Mrio. Entrevista novembro: Mrio Bortolotto. [novembro, 2008]. So Paulo: Site Balangandans. Entrevista concedida ao site. Disponvel em : Acesso em: 20 jan 2009.

  • 27

    da moda na sociedade de consumo que agora chegava s massas ampliada pela presso dos grupos de seus pares. Passou a existir a cultura jovem global29

    Com o advento da possibilidade de reproduo tcnica em massa dos

    elementos culturais, abriram-se as portas para uma indstria que abarcou um

    caudaloso mercado consumidor, formado em sua grande maioria pelos jovens que

    se iniciavam no mercado de trabalho em uma Amrica ps Segunda Guerra

    Mundial. Esses jovens se tornavam novos consumidores, gastando seus salrios em

    discos e roupas da moda.

    Devemos evitar o julgo maniquesta ao pensarmos o fenmeno da Indstria

    Cultural. Ter uma idia pr-definida ou at mesmo especulativa sobre as questes

    que compem o seu cerne uma forma inadequada de analisarmos suas

    problematizaes e desdobramentos. Dizer que a chamada indstria cultural algo

    bom ou ruim, simplesmente, nos remete facilidade em reduzir os diferentes

    processos existentes entre bons ou ruins, o que no passa de uma maneira

    equivocada de olhar a Histria.

    Analisando o cenrio cultural contemporneo e discutindo perspectivas de

    abordagem filosfica acerca de Indstria Cultural, Featherstone diz:

    Atualmente, embora tenha se verificado um aumento

    considervel do interesse por cultura de consumo, bem como do uso desta expresso, no se concede mais tanta importncia s teorias de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros representantes da Teoria Crtica. Sua abordagem muitas vezes apresentada com uma crtica elitista da cultura de massa, apoiada em distines hoje consideradas discutveis entre individualidade autntica e pseudo-individualidade e entre necessidades verdadeiras e falsas. De modo geral, considera-se que esses autores olham com desprezo para a cultura de massa degradada e no tem nenhuma simpatia pela integridade dos prazeres das classes populares30

    Onde se situa Mrio Bortolotto em meio a esta discusso? Em entrevista feita

    em um programa de televiso chamado Saca-Rolha31, questionado sobre suas

    29 HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 321. 30 FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e Ps-Modernismo. Trad. Julio Assis Simes. So Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 10. 31 Apresentado pelo jornalista Marcelo Tas, pelo cantor Lobo e pela modelo Mariana Weickert, o programa se encontra fora do ar.

  • 28

    expectativas e possibilidades na televiso, emblemtico meio de comunicao de

    massas, Bortolotto declara:

    [...] Eu gosto de televiso pra caramba, eu s acho que no

    se faz nada na TV que eu esteja a fim de fazer, s isso... No quer dizer que eu tenho algo contra a televiso... Eu vejo a televiso e penso. Eu no gostaria de estar ali. [...] No tem nada de fico legal... Isso uma pena, uma pena... Eu tenho vergonha de falar aqueles textos de novela hoje em dia, sabe? Um texto do Walcyr Carrasco... Glria Perez, eu no vou falar aquilo, eu tenho vergonha, o texto muito ruim. [...]32

    Glria Perez e Walcyr Carrasco, exemplos citados por Bortolotto, so

    escritores que atualmente escrevem novelas, entre outros trabalhos, para a Rede

    Globo de Televiso, grande veculo de comunicao em massa. O tom categrico de

    Bortolotto, expresso pela sua opinio, mostra que o autor no exclui a possibilidades

    de trabalhar com uma mdia de massas, no entanto, no d o brao a torcer em

    relao ao seu gosto e liberdade criativa, realizando uma crtica contumaz ao

    contedo da televiso aberta no Brasil, principalmente em relao teledramaturgia.

    Apesar de no atingir um pblico abrangente, a obra de Mrio Bortolotto

    possui um pblico fiel. O pblico de sua dramaturgia lota as pequenas salas de

    teatro em que se apresentam suas montagens. Assim, a configurao do trabalho

    atual de Mrio Bortolotto parece mesmo se esquivar do que se convencionou

    chamar de mercado de consumo. Seu pblico majoritariamente formado por

    pessoas que buscam um formato de cultura alternativo ao que vinculado nos

    grandes meios de comunicao em massa. Existem ainda aqueles que ficam

    conhecendo o seu trabalho buscando despretensiosamente uma alternativa de

    entretenimento no centro de So Paulo.

    Indubitavelmente, a Praa Roosevelt responsvel por integrar o teatro

    vida noturna da cidade de So Paulo. Ela se tornou ponto de encontro de artistas,

    entre eles atores, msicos, poetas, dramaturgos e diretores. Hoje, smbolo da

    efervescncia cultural da noite paulistana, a emblemtica Praa Roosevelt, como j

    falamos, foi famosa por outras caractersticas, como a de ser abandonada e foco de

    32 BORTOLOTTO, Mrio. Mrio Bortolotto no programa Saca-Rolha: entrevista. [2005]. So Paulo: PlayTV. Entrevista concedida a Marcelo Tas. (O trecho em questo tambm est disponvel no site You Tube). Disponvel em: Acesso em: 25 fev. 2009.

  • 29

    criminalidade. Isso mudou depois que o grupo de teatro chamado Os Styros se

    mudou para a praa no ano 2000 e montou um negcio que alm de mudar os

    rumos da praa, criou uma maneira dos grupos teatrais alternativos poderem

    sobreviver sem a ajuda estatal: a abertura de bares no saguo da suas sedes. A

    idia que antes buscava apenas acolher o pblico das peas encenadas pelo grupo,

    se tornou a grande alternativa para obteno de recursos financeiros dos grupos

    teatrais que esto instalados na regio da Praa Roosevelt.

    O veterano Jos Celso Martinez Correa33 comenta que: "A partir dos Satyros,

    a praa passou a reunir teatros e bares prximos uns aos outros, tornando-se um

    lugar propcio ao encontro entre artistas e bomios. 34 Atualmente, existem sete

    teatros na Roosevelt, e este o principal local de socializao de Mrio Bortolotto.

    So nestes bares/teatros, entre um espetculo e outro, que o autor passa grande

    parte do seu tempo, se relacionando com os indivduos que, segundo o prprio

    autor, o influenciam nos seus processos criativos: As pessoas com quem encontro

    e converso me inspiram.35

    A obra de Mrio Bortolotto notadamente marcada pela sua experincia

    histrico-social, aliada poderosamente s suas referncias culturais. Sua trajetria

    pessoal e profissional atravessou de maneira prpria os peculiares anos 80. No

    Brasil, foram anos marcados pela de abertura poltica36, expresso usada para

    designar o processo de transio de um perodo de ditadura militar para uma

    denominada ordem democrtica.

    Na fala de Jotab Medeiros, um dos amigos de mais de 20 anos de Mrio

    Bortolotto desde suas origens em Londrina, podemos ter uma idia dos elementos

    que circulavam no universo social de Bortolotto. Conta Medeiros que:

    Em junho de 1982, ramos majoritariamente monoglotas e estvamos comeando a vida exatamente no ponto em que o Brasil saa de uma ditadura. Em Londrina, naquela poca, ainda havia uns

    33 Conhecido como Z Celso, nascido em Araraquara em So Paulo, em 30 de Maro de 1937, uma das personalidades mais importantes do teatro brasileiro, tendo destaque como um dos principais diretores, dramaturgos, atores e encenadores do Brasil. Seu trabalho, iniciado no final da dcada de 1950, se definiu na dcada de 1960 quando liderou o importante Teatro Oficina. 34 RINALDI, Gabriel; MELLO, Gabriela. Boemia, Ribalta e Cerveja. Revista Bravo! Editora Abril 2009. Disponvel em:< http://bravonline.abril.com.br/conteudo/teatroedanca/boemia-ribalta-cerveja-432304.shtml> Acesso em: 15 mai. 2009. 35 Idem. 36 Costuma-se referir ao processo ocorrido entre 1974 e 1985.

  • 30

    malucos que patrulhavam quem usava camiseta com smbolos imperialistas (um logotipo da Coca-Cola, uma etiqueta importada, uma Levis 501) - tinha at um sujeito que andava com uma tesoura pela universidade para cortar as etiquetas fora. Os melhores livros desbundados estavam fora de catlogo, e a gente os lia em cpias xerox que passavam de mo em mo: Parania, do Roberto Piva; Panamrica, do Jos Agrippino de Paula; Alegria Alegria, do Caetano Veloso; e Deus da Chuva e da Morte, de Jorge Mautner. No tnhamos Salinger como baliza.37

    So experincias assim que permearam a vivncia de Mrio Bortolotto, ainda

    em Londrina. Segundo o prprio autor, foram da seguinte maneira que os anos 80

    que o moldaram:

    A gente colocava um rock pra tocar e a noite nunca tinha

    fim. Nenhum de ns trabalhava em um trampo convencional. Era uma opo nossa. Alis a gente no trabalhava. Apresentava alguma pea em algum lugar, tentava vender para alguma secretaria de cultura e era s. Quase nunca dava certo, mas quando a gente conseguia, pagava os aluguis atrasados e continuava vivendo na misria. Mas era assim que a gente tinha escolhido viver. Eu sempre escolhi o meu jeito de viver. E nunca vou deixar que digam que eu tenho que fazer de outro jeito. Posso at estar errado, mas so meus erros e ningum est pagando por eles. (...) E os anos 80 foram os grandes responsveis. Eu vivi a fase dos meus 20 anos nos tais 80. Ento foi ali que eu me moldei.38

    Seus primeiros contatos com a dramaturgia, com a msica e com o estilo de

    vida puramente outsider, claramente se deram ali. Temos aqui um importante

    depoimento de Ademir Assuno (Pinduca), poeta e jornalista amigo de Bortolotto:

    De repente aparece um cara magrelo da periferia da cidade com uma pea chamada Voc viu uma azeitona por a? Quase ningum deu bola. Mas o cara insistiu: veio com meia-noite um solo de sax na minha cabea, com uma tonalidade meio poltica, como era quase tudo em Londrina na poca, mas com personagens que no passavam duas frases sem dizer um palavro, usavam bluses de couro, ouviam rockn roll e cultivavam uma forte amizade.

    37 MEDEIROS. Jotab. Jotab Medeiros escreve sobre Tanto Faz. Atire no Dramaturgo: Um Blog de Mrio Bortolotto, 16 jun. 2009. Disponvel em:< http://atirenodramaturgo.zip.net/arch2009-06-07_2009-06-13.html> Acesso em 23 jun. 2009. 38 BORTOLOTTO, Mrio. Aumenta que isso rock n roll. Atire no Dramaturgo: Um Blog de Mrio Bortolotto. 24 out. 2009. Disponvel em:

  • 31

    Pouca gente levava o cara a srio na cidade. Mas ele continuou insistindo. Apareceu dois ou trs anos depois com Feliz Natal, Charles Bukovski. Algumas pessoas comearam a perceber que era um cara diferente. Um cara que no estudava na UEL. Um cara que, em vez de entrar no Delta ou no Proteu, preferia encenar suas prprias peas, com uma precariedade absurda, sem cenrios, sem patrocnios, sem porra nenhuma, a no ser atores no palco, luzes e uma boa trilha sonora. Um cara que no falava de Brecht e Nelson Rodrigues, mas de Charles Bukovski. 39

    Delta e Proteu so grupos teatrais tradicionais em Londrina. No relato de

    Pinduca, notamos as escolhas de Bortolotto ainda no incio de sua carreira,

    preterindo textos mais tradicionais, diversas vezes escolhidos pelas companhias

    teatrais famosas que, entre outras caractersticas, eram compostas por alunos da

    Universidade Estadual de Londrina. No se enquadrando, Bortolotto prefere se virar

    como pode, apresentando sua arte da maneira que lhe possvel e ignorando as

    tendncias que apontariam uma forma teatral estabelecida.

    Desde sua origem, Mrio Bortolotto deixa suas impresses mais pessoais

    nas suas obras, demonstrando claramente as suas mais variadas formas de

    expresso artstica, abstraindo sua realidade histrica e scio-cultural. Ao dar vida a

    seus personagens margem, Bortolotto d voz a uma coletividade por meio de um

    indivduo que cria arte, um fazer poltico, ora despreocupado, cujas aspiraes mais

    genunas so originrias de suas experincias e reflexes enquanto sujeito que ousa

    discutir com a sociedade temas que a incomoda, mas que esto longe de serem

    superados como problemas. Mrio Bortolotto no o nico a dizer: "Esse no o

    meu mundo, eu s vivo nele".

    39 ASSUNO, Ademir. As coisas no surgem do nada, maluco. ESPELUNCA - blogue de ademir assuno. 15 de Maio de 2005. Disponvel em http://zonabranca.blog.uol.com.br/arch2004-05-09_2004-05-15.html Acesso em 20/05/2008. Grifo do autor

  • 32

    Captulo II

    NOSSA VIDA NO VALE UM CHEVROLET: AS IMPRESSES DE UMA

    POCA NOS SEUS INDIVDUOS

    [...] Eu gosto de escrever sobre pessoas comuns, mas [...] so pessoas que andam do outro lado da rua, n cara, no so as pessoas que andam do lado de c assim, andam dali. As pessoas ficam chamando de excludos, eu no sei se so exatamente excludos, eu acho que eles optam por ficarem excludos numa sociedade que eles no aceitam. E eu acho que sou meio assim tambm...

    (Mrio Bortolotto)

  • 33

    Escrita em 1990, Nossa Vida No Vale um Chevrolet foi encenada pela

    primeira vez no mesmo ano em 30 de maro - no teatro Zaqueu de Melo na cidade

    de Londrina (PR). Depois foi remontada em Curitiba, em 1993, com direo do Paulo

    Friebe, com Bortolotto no elenco. Em 2000, para fazer parte da I Mostra Cemitrio

    de Automveis, Bortolotto montou a pea no Poro do Centro Cultural de So Paulo

    - montagem que deu o prmio Shell ao dramaturgo e que depois passou por

    festivais como o Rio Cena, o Porto Alegre em Cena e o Festival de Belo Horizonte e,

    posteriormente agosto de 2008 , montada no Rio de Janeiro. Nossa Vida no

    Vale um Chevrolet conquista aos poucos a platia, com cenas e personagens entre

    o pattico e o melanclico.40

    A pea ainda teve adaptao para o cinema filmada pelo diretor Reinaldo

    Pinheiro e lanada nos cinemas brasileiros em agosto de 2008. O filme, denominado

    Nossa Vida No Cabe num Opala por imposies da fabricante de carros General

    Motors - teve a primeira verso do roteiro feita por Mrio Bortolotto, no entanto, a

    verso definitiva foi a do roteirista Di Moretti, cujo trabalho no agradou nem um

    pouco autor do texto original, gerando polmica: A parada a seguinte. O cara (Di

    Moretti) escreveu um roteiro sofrvel a partir do meu texto Nossa Vida no vale um

    Chevrolet. Eu tenho vergonha de ler o roteiro dele.41

    Na mesma poca da estria do filme nos cinemas, Mrio Bortolotto e o grupo

    Cemitrio de Automveis remontaram42 Nossa Vida No Vale um Chevrolet, que

    propiciou a todos, crticos e espectadores, a oportunidade de apreciar a ambos, e

    fazerem suas inevitveis comparaes. Foram quatro apresentaes no Espao dos

    Parlapates (um dos teatros que esto instalados na Praa Roosevelt). A pea

    entrou novamente em cartaz, ainda com a direo de Mrio Bortolotto, nos ltimos

    sbados do ano de 2008, sempre no horrio alternativo da meia-noite. O texto de

    40 Bortolotto equilibra o pattico e o melanclico. Estado, 30 nov. 2000 - Online: Disponvel em Acesso em 23 julh. 2008. 41 BORTOLOTTO, Mrio. Nossa Vida No Cabe Num Opala Melhor Roteiro?. Atire no Dramaturgo Um Blog de Mrio Bortolotto. 19 abr. 2008. Disponvel em: . Grifo do autor. 42 No dia 01 de Agosto de 2008 e esta montagem teve apenas quatro apresentaes (dias 01, 08, 15 e 22 de Agosto)

  • 34

    Nossa Vida no Vale um Chevrolet teve tal repercusso que o mesmo chegou a ser

    traduzido e publicado na Frana43.

    Como grande parte das obras de Bortolotto, Nossa Vida No Vale um

    Chevrolet se passa em um universo urbano decadente retratando indivduos

    incomuns em uma sociedade que supostamente os renega. As personagens so:

    Monk, Lupa, Slide, Magali, Guto, Suruba, Love e Silvia. So personagens que

    aparentemente no expressam qualquer sinal de profundidade psicolgica,

    podendo-se tom-los por personagens esteretipos. Mas no desenrolar da trama,

    percebemos que se trata de personagens com alto grau de complexidade, cada um

    tendo que lidar com seus prprios fantasmas. A pea inicia-se numa aparente

    atmosfera de curtio e felicidade, onde esto presentes, numa cena beira de uma

    piscina, as personagens Guto, Love, Suruba e Magali. No espetculo, marcante a

    ausncia de elementos cenogrficos no palco, exceto por alguns itens portteis, o

    que, alm de reduzir substancialmente o custo de sua produo, privilegia o vazio

    em cena e exige mais da capacidade imaginativa do seu pblico. Alm disso,

    importantssimo o trabalho da sonoplastia e iluminao que tambm so compostos

    pelo prprio autor.

    Nas primeiras falas j notamos o tom descontrado e bem-humorado que h

    na narrativa de Mrio Bortolotto que, a partir das falas descompromissadas das

    personagens em cena, faz o desenho de cada uma e apresenta gradativamente as

    suas caractersticas e papis na trama. Magali, a irm dos ladres de carros da

    famlia Castilho, responde a uma indagao de Love sobre o boato de que ela teria

    catalogadas todas as suas relaes amorosas em uma caderneta:

    MAGALI: Nome, idade, endereo... SURUBA: Preferncias sexuais, marca de preservativo usado

    na ocasio... LOVE: Como que voc t sabendo, Suruba? MAGALI: Chute. Ele no tem a menor chance. Eu s catalogo

    celebridades.44

    43 Notre vie ne vaut pas une chevrolet. diteur: Les Solitaires Intempestifs. Collection: La mousson Dte. 2005. 44 BORTOLOTTO, Mrio. Nossa Vida no Vale um Chevrolet. So Paulo: Via Lettera, 2008, p7.

  • 35

    A seguir, Suruba, que uma espcie de empregado ou capanga de Guto,

    provoca Love com escrnio dizendo: Danou, Love, no tem vez pra go-go boy

    decadente no caderninho da Magali.45. Na seqncia, Guto, um empresrio de lutas

    clandestinas, demonstra sua superioridade na seguinte indagao Love,

    afirmando-se no que tange a relao de poder (que expresso na financeiramente e

    na tenso potencialmente violenta que existe em relao personagem no decorrer

    da estria):

    GUTO: Conta pra gente, Love. Continua danando pelado

    pra mulherada? LOVE: Pelado no, n, Guto. SURUBA: Essa eu queria ver. O Love de cuequinha

    danando go-go. LOVE: A tua hora vai chegar, Suruba. Quando eu tiver na

    pior, no vou ter o menor pudor de apelar para um clube gay.46

    No fosse pelos assuntos apresentados nas falas das personagens, o mesmo

    cenrio de informalidade e descontrao mais as provocaes notadamente infantis,

    poderiam compor uma cena comum, uma paisagem de inocentes crianas se

    descontraindo beira de uma piscina. Apesar de conter implicitamente uma aura

    infantil, a acidez nos dilogos d continuidade na cena, at que, subitamente, essa

    atmosfera quebrada por uma aura de seriedade ao saberem da notcia da morte

    do pai de Magali. A seriedade, pressupondo espanto por causa do falecimento do

    pai dos irmos Castilho, rompida com a declarao de Magali:

    MAGALI: Tudo bem, H dias que no fazia um sol assim. O

    velho nunca soube a hora certa de fazer as coisas.47

    O trecho aqui citado no passa de uma nfima amostra do estilo de narrativa

    de Mrio Bortolotto, de sua capacidade em dar vida aos seus personagens

    incomuns. Na sequncia, temos uma breve cena do enterro do pai, que precede

    outra onde os irmos se encontram numa forada reunio em famlia. As discusses

    entre os irmos no poderiam cessar nem mediante ao trgico acontecimento. Em

    toda reunio em famlia, assuntos em comum so suscitados, e aqui no seria

    45Idem. 46Idem, p. 8. 47 Idem, p. 10.

  • 36

    diferente, exceto pela forma com que composto o dilogo, mostrando que existem

    feridas que ainda no cicatrizaram e que remetem ausncia da me, algo ainda

    misterioso para o caula Slide:

    SLIDE: Por que a me no tava l? LUPA: Ei, vocs ouviram isso? Ouviram o que o di menor

    perguntou? SLIDE: Di menor, o cacete. J fiz dezoito. LUPA: Ok, ancio, pergunta de novo, vai. SLIDE: Por que a me no tava l: LUPA: Mas que porra de pergunta essa? MAGALI: Uma porra de uma pergunta. LUPA: Conversa que s uma pergunta, ele t provocando. SLIDE: No s uma pergunta. LUPA: To vendo s? To vendo s? Ele t confessando que

    no s uma pergunta. Vem c, Matusalm, conta pro teu irmozinho aqui, h quanto tempo que voc no v a me?

    MAGALI: A, Lupa, no vai comear com esse papo de famlia de novo, vai?

    SLIDE: Eu no vejo a me... no vejo ela... eu no sei, cacete, no sei h quanto tempo... eu nem sequer lembro da me.

    LUPA: Ento que porra de pergunta essa? MAGALI: T saindo fora. J banquei a boa filha demais por

    hoje. LUPA: Acho legal tu puxar o carro mesmo, Magali. J deu no

    saco. MAGALI: Puxar carro com vocs, irmzinho. Sou a ovelha

    negra da famlia. (Sai.) SLIDE: A gente enterrou o pai, no enterrou? A me devia t

    l, no devia? LUPA: Acontece que a me louca, a velha completamente

    pirada, doidona. (Para Monk.) Diz pra ele, Monk, diz pra ele que a me muito doida.

    MONK: Ela t num hospcio. LUPA: Ela t num hospcio. Voc ouviu isso? Num

    hospcio.48

    Bortolotto constri a narrativa com impressionante realismo, retratando com

    afinidade o universo de uma famlia com muitos irmos e ainda d seu trato mais

    autoral, compondo a situao familiar com os elementos prprios de sua fico,

    como podemos observar pelas falas de suas personagens e pelo humor negro que

    48 Idem, p.10-12.

  • 37

    dialoga com o trgico. Esta dimenso trgica na desestruturao da famlia Castilho

    pode ser sentida pelos seus dilogos, que sempre possuem uma carga intrnseca de

    ressentimento e de revolta. A morte do pai, marco culminante que norteia as

    relaes dos irmos na pea, leva as personagens a refletirem sobre seus mais

    ntimos processos onde resultam na solido, sentimentos de incompreenso e

    dvidas existenciais que so secretamente comportadas por detrs de suas

    respectivas couraas, compostas pelas formas particulares que cada um buscou

    construir suas personalidades perante a sociedade. Mas tudo isso no mostrado

    na pea de maneira explcita, uma vez que seus personagens centrais no do o

    brao a torcer sobre suas profundas inquietaes e fraquezas.

    Apesar da viso de mundo e da maneira radical de cada um lidar com suas

    questes pessoais, os membros remanescentes da famlia Castilho, ainda que de

    forma deficiente uma vez que suas referncias familiares (pai ladro de carros,

    me internada em hospital psiquitrico) , se esforam em manter os laos de

    solidariedade entre irmos, mesmo que este esforo seja esvaziado de um sentido

    consciente de famlia, e reforado por um estmulo tradicional de obrigao entre os

    irmos como nica linha tnue que os separa da solido absoluta: Em vrios

    momentos da pea, observamos maneiras controversas de preocupao e cuidado.

    Abaixo, trecho da cena em que Slide preso por ter sido flagrado pela polcia ao

    tentar roubar um carro, Monk e Lupa o visitam na cadeia:

    LUPA: Porra, Slide, o que que voc andou aprontando dessa vez?

    SLIDE: No tava fazendo nada no. LUPA: Puta que nos pariu, Slide, levanta a pra falar com a

    gente, vai. SLIDE: No tava fazendo nada, no. LUPA: Levanta a, Slide, caralho. MONK: Levanta a, Slide, a gente vai ver se d pra pagar sua

    fiana. SLIDE (levanta.): T levantado. LUPA: Olha a, moleque, to de saco cheio de livrar a tua cara. SLIDE: No tava fazendo nada, no. LUPA: No vem com essa. No vem com essa. Sabe quanto

    que vai custar pra gente essa tua fiana? Sabe quanto? Dois. Vamo ter que puxar dois carango pro Evangelista, dois.

    SLIDE: No tava fazendo nada, enfia no cu, no tava fazendo nada, enfia no cu.

  • 38

    LUPA: No tava fazendo nada. SLIDE: Tava s puxando um ronco na praa, os homi

    encostaram e j foram me inquirindo, pedindo documento. LUPA: A gente puxa carro desde pivete e nunca caiu em

    cana, o otrio aqui puxa um ronco, os homi janta ele. A gente j t sabendo, tu tava tentando puxar um Caravan.

    SLIDE: Vocs nunca deixam eu ir junto. LUPA: Por que tu otrio, no leva jeito nem pra

    trombadinha, a maior bandeira, Marco, cabao, laranja. Ia roubar quem? Quem?

    SLIDE: (para Monk.): E voc? No vai dizer nada? MONK: Puta que pariu, hein, Slide? LUPA: Nos pariu, nos pariu, porra. MONK: A gente vai levantar uma grana pra tirar voc da.

    (Para Lupa.) E nos pariu porra nenhuma que voc adotado. (E sai.) LUPA: Adotado seu futuro, filho da puta. Volta aqui, Monk.

    (Vai atrs dele.)49

    Apesar dos conflitos e da discusso repleta de traos cmicos, a cena

    de dois irmos ajudando um terceiro, e este, reagindo com inibio e revolta por

    ser extremamente inexperiente e inbil para o ofcio dos dois irmos mais velhos, se

    defende tentando justificar sua inaptido e se protege das broncas com respostas

    agressivas. No fosse o cenrio (a priso) e as razes do dilogo (roubo de carros),

    esta seria uma cena comum nos cenrios casuais das de qualquer famlia.

    Observemos que h uma hierarquia que rege as aes dos irmos, onde o

    lder Monk, falando somente o necessrio, d a palavra final. Existem ali laos

    afetivos que por sua vez so exprimidos de acordo com a vivncia e psicologia das

    personagens, alm de suas experincias prprias enquanto membros de uma

    famlia.

    Enquanto a pea se desenrola, persiste a presena indireta do falecido pai

    Castilho. As aes das personagens so regidas por este fantasma que insiste em

    assombrar o imaginrio dos irmos na trama.

    A partir do campo ficcional, Bortolotto prope em Nossa Vida No Vale um

    Chevrolet uma reflexo por parte do pblico perante questes comuns ali

    presenciadas e que so experimentadas pelas personagens, prprias de seu

    universo urbano, decadente, palco da solido que existe mesmo na multido das

    grandes cidades.

    49 Idem, p. 28-30.

  • 39

    As personagens de Mrio Bortolotto no so retratadas como meras vtimas

    de seu tempo. Pelo contrrio, elas buscam seus prprios meios de vida de acordo

    com seu discernimento. Existe a uma crtica ao indivduo comum que tem como

    motivao vital ser aceito dessa forma incorporando os discursos do progresso

    maneira compreendida pelas sociedades ocidentais.

    No o simples fato de serem considerados excludos socialmente que

    justifica a escolha de Mrio Bortolotto por tipos outsiders. O autor declarou em vrias

    entrevistas que no considera escrever sobre excludos, mas escreve sobre

    indivduos que, de certa forma, se afastam de um padro social, rejeitando assim a

    sociedade qual esto imersos. De forma franca, Bortolotto dispara:

    Numa sociedade onde qualquer babaca quer virar

    celebridade, a figura do ningum sempre me pareceu o melhor modo de vida. E aqui no vai nenhuma pretenso estilosa do tipo legal ser diferente. Porra nenhuma. O que eu penso que simplesmente ningum precisa ser igual.50

    Ao apreciarmos sua obra, notamos que suas personagens no escapam de

    viver as crises que os sujeitos contemporneos tambm so interpelados a

    atravessar, algo que comum tanto aos grupos retratados por Bortolotto quanto ao

    outros indivduos sociais comuns. Cornelius Castoriadis prope discutir um

    fenmeno que ele chama de crise no processo de identificao onde as

    significaes que estruturam a sociedade contempornea esto em crise. Segundo

    este autor:

    o papel dessas significaes imaginrias sociais [...] triplo.

    So elas que estruturam as representaes do mundo em geral, sem as quais no pode haver ser humano. Essas estruturas so, a cada vez, especficas: nosso mundo no o mundo grego antigo, e as rvores que estamos vendo atravs das janelas no abrigam ninfas, trata-se simplesmente de madeira, esta a construo do mundo moderno. Em segundo lugar, elas designam as finalidades da ao, impem o que est por fazer e por no fazer, o que deve ou no ser feito: preciso adorar a Deus ou ento preciso acumular foras produtivas ao passo que nenhuma lei natural ou biolgica, ou mesmo psquica, afirma que necessrio adorar a Deus ou acumular

    50 BORTOLOTTO, Mrio. Outsider: Quem no se enquadra. Digestivo Cultural, 09 ago. 2004.

  • 40

    foras produtivas. E em terceiro lugar, [...] elas estabelecem os tipos de efeitos caractersticos de uma sociedade51

    Os indivduos que encontramos na obra de Mrio Bortolotto, se vem

    inseridos nesta crise no tocante assimilao dos seus sentidos. Possuem nas suas

    psiques os dilemas sobre o que realmente vlido e que realmente importa a ser

    vivido. Desta maneira, o texto de Mrio Bortolotto, ao realizar crticas ao modo de

    vida da sociedade contempornea, contemplando temas comuns do cotidiano e

    podendo ser lido at com problemas existencialistas, pode ser considerado um texto

    poltico. pertinente esclarecermos a noo de texto poltico, como nos esclarece

    Patriota:

    A denominao texto poltico comumente utilizada para

    designar uma produo teatral vinculada a um iderio poltico ou uma temtica social fortemente destacada. No sculo XIX, os textos teatrais que procuravam levar para o palco problemas sociais encontraram na esttica naturalista uma das bases para a realizao do seu intento Isto se deu em uma sociedade que ao reestruturar as relaes sociais no mbito do espetculo e de outras manifestaes artsticas, ampliou a noo de pblico, porque o teatro deixa de ser destinado a um grupo para, potencialmente, atingir toda a sociedade52

    Partindo deste raciocnio, a obra de Mrio Bortolotto possui em si um grande

    potencial poltico, sem jamais panfletrio. Na trama de Nossa Vida No Vale um

    Chevrolet, identificamos a crtica silenciosa de Monk, que mostra ser o que tem mais

    conscincia de sua situao na estria, se afundando na tristeza de sentir que no

    pode fazer nada para mudar o destino dos irmos, ao mesmo tempo em que ele

    prprio no pode ou no quer mudar o prprio destino, recusando-se a viver uma

    vida vazia de sentidos numa sociedade em que ele no acredita. Lupa sente as

    mesmas problemticas de Monk, mas, ao contrrio do irmo que racional, lida com

    seus traumas e inadequaes de maneira mais sentimental, protegido em uma

    roupagem de embrutecimento, mas com emoes que o consomem. Slide pode ser

    51 CASTORIADIS, Cornelius. A Ascenso da insignificncia. Trad. Regina Vasconcellos. So Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 148. 52 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um dramaturgo no corao de seu tempo. So Paulo: Hucitec, 1999. p. 18.

  • 41

    considerado o irmo que mais sofre com as confuses geradas pela carncia de

    referncias paternas, maternas e fraternas. Sua maior aspirao na vida em vir a

    ser um ladro de carros como o pai e os dois irmos.

    O grito silencioso das personagens de Mrio Bortolotto atinge o pblico

    convidando-o a pensar sobre questes que passam despercebidas no cotidiano das

    grandes cidades. Seus textos mostram que seres considerados at como caricaturas

    de problemas sociais, tm profundidade e questes complexas como qualquer ser

    humano. O sentimento de orfandade das personagens de Nossa Vida no Vale um

    Chevrolet chega a nos atingir na forma de culpa pelo abandono. A presena oculta

    do pai Castilho pode ser a da prpria platia que assiste os dramas das

    personagens, mas esta uma idia que fica no ar, sem uma denotao explicita por

    parte do autor. A solido das personagens realada com o fato de que todas elas

    se perdem nas prprias iluses e expectativas.

    No decorrer da estria, coincidentemente, os trs se relacionam, cada um ao

    seu momento, com Slvia, uma mulher solitria que encontram em um buteco. Esta

    personagem talvez seja a que mais exprima a crtica do autor em relao

    fugacidade das relaes humanas contemporneas, referente solido dos centros

    urbanos.

    Silvia surpreende ao repetir, em todas as suas cenas na pea, a mesma fala a

    cada um dos trs irmos ao receb-los em sua casa. Bortolotto genial na

    construo dos dilogos onde, de acordo com o irmo que est no papel de

    interlocutor de Silvia, as suas falas remetem personalidade de cada um dos trs

    irmos. O primeiro a se relacionar com Silvia Monk, que no a considera ningum

    importante, a tratando apenas como um encontro de uma noite, abandonando-a logo

    em seguida. Lupa, demonstrando intenes bem mais romnticas e duradouras com

    a moa, rejeitado (percebe-se claramente a influencia da personalidade de Monk

    na pele de Silvia neste momento), e Slide, ao se encontrar com a mulher, mesmo

    sendo alertado por Monk sobre os perigos das mulheres uma aluso drogas

    pesadas aceita o pedido de Silvia de viver com ela (aqui sendo claramente

    influenciada pelo contato com Lupa).

    Quando leva o fora de Slvia, Lupa questiona qual seria o problema com ele.

    Em um desabafo, Silvia deixa cair sua mscara (ou estaria ela agindo como Monk?)

    e com sinceridade declara:

  • 42

    SLVIA T bom, cara, eu vou dizer qual o problema. O

    problema a hora do rush, o forno microondas estragar quando voc mais precisa dele, o problema os caras que vendem carns da felicidade, o problema os filmes que saem de cartaz justamente quando eu decido assistir, o problema o carro afogar no meio do trnsito, o problema, cara, a gente nunca ter com quem dividir o guarda-chuva.53

    A indignao emocionada de Silvia perante as dificuldades da vida urbana,

    culminando no fato de nunca ter com quem dividir o guarda-chuva exprime

    claramente a sua solido. Aps cada encontro com cada um dos irmos, Silvia liga

    para a me e distorce as informaes de seu novo pretendente, fazendo-o parecer

    algum importante. Por exemplo, aps se encontrar com o caula Slide, uma pessoa

    insegura, jovem, em crise de referncias pessoais, que logo admitiu para Silvia seu

    fracasso profissional como ladro de carros e disse que faz lutas de rua para um

    empresrio, Silvia diz para a me:

    SILVIA: Claro, me... dessa vez vai dar tudo certo, ele um

    bom rapaz,maduro, seguro, do tipo que sabe o que quer, me, no timo? D uma segurana pra gente, n? Ele empresrio, me, tima profisso, n? T, me... eu t muito feliz.54

    A me de Silvia, que no aparece e no tem falas as cenas das ligaes

    mostram apenas a atriz que atua como Silvia e um telefone representaria a ligao

    de Silvia com sua famlia original provavelmente do interior , uma forma da

    mesma se equilibrar diante da solido em que se encontra e ao mesmo tempo de

    contabilizar os seus sucessos (neste caso na esfera dos relacionamentos

    amorosos) com a me. O que temos nestas falas, escritas com certo tom de

    comicidade por Bortolotto, relato pouco verdadeiro e ideal de uma mulher frustrada

    praticamente annima no meio de uma grande cidade.

    A formao histrica dos grandes centros urbanos privilegia a fragmentao

    do sujeito e mais ainda, seu processo de individualizao, uma vez que as

    instituies que garantem sua proteo se tornam cada vez mais afastadas da

    53 BORTOLOTTO, Mrio. Op. cit., p 49. 54 BORTOLOTTO, Mrio. Op. cit., p 60.

  • 43

    esfera da famlia, ficando sobre uma suposta tutela de um Estado centralizado.

    Segundo a explicao de Norbert Elias,

    um nmero cada vez menor de funes relativamente

    exercidas por pequenos grupos, como a tribo, a parquia, o feudo, a guilda ou o Estado, vai sendo transferido para Estados altamente centralizados e cada vez mais urbanizados. medida que essa transferncia avana as pessoas isoladas, uma vez adultas, deixam mais e mais para trs os grupos locais prximos, baseados na consanginidade. A coeso dos grupos rompe-se medida que perdem suas funes protetoras e de controle. E, nas sociedades estatais maiores, centralizadas e urbanizadas, o indivduo tem que batalhar muito mais por si. A mobilidade das pessoas no sentido espacial e social aumenta. Seu envolvimento com a famlia, o grupo de parentesco, a comunidade local e outros grupos dessa natureza, antes inescapvel pela vida inteira, v-se reduzido. Elas tm menos necessidade de adaptar seu comportamento, metas e ideais vida de tais grupos, ou de se identificar automaticamente com eles. 55

    As personagens de Nossa Vida no Vale um Chervrolet vivenciam este

    processo de desligamento com sua consanginidade. No entanto, algo ainda os

    interpela para manter suas ligaes conectadas. Podemos arriscar aqui que eles

    assim o fazem por causa de seus sucessivos enganos e fracassos que, numa

    complexa contradio, os empurra para a solido e uma tendncia maior de

    isolamento e, por outro lado, os fazem cedem para o magnetismo de valores

    tradicionais e familiares que os ancoram dando uma margem de equilbrio que

    aparentemente os fazem suportar a vida que levam. So indivduos marginais, mas

    suas questes superam seus supostos esteretipos superficiais.

    Com uma escrita que remete ao que a sua sensibilidade permite destacar,

    Mrio Bortolotto imprime em suas obras as inquietaes que interpelam os

    indivduos contemporneos e, por meio de seus outsiders, o autor consegue

    expressar sua crtica em relao sociedade. De forma consciente ou no, os

    outsiders se incomodam com as leis socialmente acordadas e as burlam, s vezes

    exageradamente, outras vezes apenas para introduzir regras novas. Os irmos

    Castilho podem ser considerados representantes deste modo de viver, mas pode ser

    tambm que o fazem simplesmente por no terem outras aspiraes ou motivaes.

    55 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994, p 102.

  • 44

    Como j mostramos neste trabalho, estas inquietaes, expressas na obra de

    Bortolotto, podem ser observadas tambm nos artistas que so referncias para o

    autor, como os beats, e sua literatura:

    A obra dramtica de Mrio Bortolotto tem bvias influncias

    da literatura em permanente confronto com o sistema, de um Kerouac e, mais ainda, de um Bukowski. Na maneira de abordagem, aos problemas e nos fluentes dilogos, todavia, prevalecem a cor local, e os estigmas da classe mdia brasileira, sufocada em angstias, medos e carncias. Numa linguagem teatral contempornea, Bortolotto v o inconformismo dos filhos da burguesia em face do sistema burgus, que marcou a arte nos anos 50 e 60. E revela a atualidade desse inconformismo seminal e transformador"56

    Com alvo na classe mdia brasileira, o ttulo Nossa Vida No Vale um

    Chevrolet apela para um smbolo de status: possuir um carro no Brasil nas dcadas

    de 70 e 80 - e ainda nos dias atuais. Mrio Bortolotto combina em sua dramaturgia

    estes smbolos que esto difundidos na cultura popular, por meio das propagandas e

    da grande mdia nacional, com os elementos da cultura beat que possuem potencial

    questionador, no reverenciando valores que acabam sendo socialmente impostos

    em uma lgica que acabou se tornando natural para a grande maioria dos indivduos

    na sociedade contempornea. significativo o fato dos irmos Castilho roubarem

    carros fora de linha, como se partissem em direo conquista de um ideal burgus

    j gasto e decadente. Na pea aqui estudada, o cotidiano das personagens, seus

    conflitos e interesses vo revelando, paulatinamente, suas dificuldades na

    assimilao de smbolos que interpelam os indivduos contemporneos, no tendo

    liberdade de ao ao negar o materialismo, o consumismo, a necessidade

    financeira, a falta de oportunidades. Sobrevivem da maneira mais sincera possvel a

    um estilo de vida que sobrepe um mar de angstias em um labirinto de relaes

    humanas cada vez mais vazias.

    O final da pea dramtico, onde, numa luta de rua com apostas

    clandestinas, Monk enfrenta Slide e termina matando-o, o que parece ter sido

    acidental, mas fica a dvida sobre as reais intenes de Monk ao ver seu irmo

    caula adentrando num destino sem volta ao se relacionar com um mundo de crimes

    56 ARAP, Fauzi. Depoimento sobre Mrio Bortolotto. In: SEIS peas de Mrio Bortolotto. So Paulo: s.e, 1997, p.5.

  • 45

    liderado por Guto que, de certa forma, possui a famlia Castilho refm: A me dos

    quatro irmos est internada num hospcio que custeado por Guto e este faz a

    nica ameaa que abala Monk, que se este no lutasse, Guto iria providenciar que

    sua me ficasse solta nas ruas. Monk aceita na hora e o resultado no poderia ser

    mais trgico.

    A pea, iniciada com o velrio do pai Castilho, termina com o velrio do

    caula Slide. Mas a cena final de Silvia, repetindo a mesma fala dita aos trs

    irmos para um quarto indivduo que no aparece. Sua voz em monlogo termina a

    pea, denotando a sua solido que parece se estabelecer em um ciclo que se

    renova.

    ]

  • 46

    Captulo III

    O sujeito Mrio Bortolotto no palco da Histria

  • 47

    Estudando as referencias de Mrio Bortolotto colocando-as em contraponto

    com os temas abordados em suas peas e produes de outras linguagens,

    podemos compreender que questes surgidas de processos ocorridos ainda nas

    dcadas de 50 e 60 e que estavam aparentemente superadas ainda se encontram

    presentes em tempos contemporneos e podem ter se tornado elementos para,

    arrisco aqui, uma situao coletiva repleta de insegurana e ausncia de

    estabilidade e pertencimento. Mediante esta constatao, nos referimos aqui

    cultura de massas que, com o advento da televiso no Brasil, inaugura um fator

    extremamente potente de difuso de informaes e de cultura popular moderna

    brasileira. Em nosso pas, a televiso surge sob smbolos brasileiros como o ndio

    que estampava o logotipo da primeira emissora, a TV Tupi, que s existiu mediante

    a importao de materiais dos Estados Unidos, uma vez que no eram produzidos

    equipamentos para televiso no Brasil. At o surgimento do vdeo - tape (VT), a

    televiso era feita de improvisos e aventuras ao vivo. Com o VT, na dcada de 60, o

    horrio nobre da televiso brasileira era dominado por seriados estrangeiros e, com

    o desenvolvimento das possibilidades tcnicas, se desenvolvem tambm as

    narrativas e abordagens textuais e surgem as primeiras novelas, com o objetivo de

    dar televiso mais aceitao nacional com temticas urbanas e su