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1
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLNDIA
INSTITUTO DE HISTRIA
THIAGO BARBOSA VIEIRA
NOSSA VIDA NO VALE UM CHEVROLET: UM ESTUDO
ACERCA DA DRAMATURGIA DE MRIO BORTOLOTTO
Monografia apresentada ao curso de Graduao em Histria, no Instituto de Histria da Universidade Federal de Uberlndia, como exigncia parcial para obteno do ttulo de Bacharel em Histria, sob a orientao da Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos.
UBERLNDIA
2010
2
FICHA CATALOGRFICA
Vieira, Thiago B. (1985-)
Nossa Vida no Vale um Chevrolet: um estudo acerca da dramaturgia de Mrio
Bortolotto / Thiago Barbosa Vieira Uberlndia, 2010.
69 p.
Orientador(a): Rosangela Patriota Ramos
Monografia (Graduao) Universidade Federal de Uberlndia, Curso de Graduao
em Histria
Inclui Bibliografia
Palavras-chave: Mrio Bortolotto, Teatro contemporneo, Indstria Cultural, Histria
3
THIAGO BARBOSA VIEIRA
NOSSA VIDA NO VALE UM CHEVROLET: UM ESTUDO
ACERCA DA DRAMATURGIA DE MRIO BORTOLOTTO
4
BANCA EXAMINADORA:
__________________________________________________________
Profa. Dra. Rosangela Patriota Ramos Orientadora
__________________________________________________________
Prof. Msa Maria Abadia Cardoso
__________________________________________________________
Prof. Ms. Rodrigo de Freitas Costa
5
Aos que no se enquadram.
6
A G R A D E C I M E N T O S
Em primeiro lugar, agradeo a Deus pelo sopro de vida e pela Sua
maneira de me mostrar, apesar dos meus pobres sentidos, o valor de saber,
ousar, querer e calar. Aos meus pais, Jos Nilton Vieira e Dinair de Ftima
Barbosa Vieira, pelo exemplo original, pelo alicerce de qualquer conhecimento
que eu possa ter a vaidade de pensar que tenha, e pelo afeto e pacincia pelo
qual pude me desenvolver at hoje. Agradeo aos meus irmos, Amanda,
Fernanda, Natalie e Diego, pelo convvio e pelo antagonismo salutar que hoje
floresce em crescente harmonia. Agradeo aos meus amigos por me aceitarem
como um dos seus: Ao Edson por me instigar a pensar com o corao, ao
Marcus pelo reflexo de tranqilidade e segurana, Grnissa pelo incentivo
luz do conhecimento real, ao Neander pela experincia e suas provocaes
benfazejas, ao Felipe Ribeiro pelas frutferas conversas filosficas, ao Csar
pelo apoio e companheirismo sincero, ao Jeff pela sua presena fraterna,
Paula pela inocente sagacidade, ao Felipe Rizzotto pelos longos anos de
amizade. Ao meu amigo Wagner pelas conversas de alto nvel e pelo apoio
dado na criao deste trabalho e pela amizade sincera e perene. Agradeo s
minhas queridas colegas que se tornaram grandes amigas, Lgia, Luciane,
Smia, Lohanne e Suhellen que fizeram do curso muito mais do que uma
graduao. So muitos os que poderia agradecer aqui, mas as linhas so
poucas em detrimento das pessoas a agradecer por amizade...
Um agradecimento especial minha querida orientadora Rosangela
Patriota Ramos que responsvel pelo meu interesse em relao ao tema que
escolhi para a monografia. Agradeo a ela pelo exemplo inspirador, pela
atuao como educadora e pelos conselhos e atos que me influenciaram muito
alm dos muros da academia. Ao Nehac e a todos os seus membros por me
acolherem e me ensinarem de acordo com suas experincias. Em especial a
Alcides Freire Ramos cujas observaes sempre me foram muito caras.
Para Duartina Ana Dias, um carinhoso agradecimento por tudo que
aprendi e vi florescer nos ltimos dois anos. Sou to grato pelo seu incentivo e
apoio incondicional que eu no saberia colocar em palavras aqui o que existe
grafado em marcas indelveis no fundo da minha alma.
7
R E S U M O
Esta monografia possui como principal objetivo estudar a cultura no cenrio
contemporneo a partir da reflexo acerca da obra de Mrio Bortolotto, um dos
dramaturgos contemporneos que conhecido por se afastar do perfil de produto
cultural. A partir da anlise da pea Nossa Vida No Vale um Chevrolet, buscamos
desenvolver uma discusso histrica que abarca as questes mais pertinentes que
relacionam as referncias do autor bem como as impresses que o identificam como
sujeito-histrico atuante na construo dos sentidos histrico-sociais da cultura
urbana.
8
S U M R I O
Introduo..........................................................................................................9
Captulo I: Mrio Bortolotto.........................................................................17
1.1 Sobre o sujeito Mrio Bortolotto.........................................................18
1.2 - Mrio Bortolotto: A construo do artista e a sua linguagem.........22
Captulo II: Nossa Vida no Vale um Chevrolet: As impresses de uma
poca nos seus indivduos.................................................................................32
Captulo III: O sujeito Mrio Bortolotto no palco da Histria.................. 46
Consideraes Finais ........................................................................ 65
Referncias ........................................................................................ 69
9
I N T R O D U O
No estou pedindo que se tenha piedade do artista, no estou pedindo financiamentos pblicos, no peo sequer
compreenso; peo apenas que nos deixem em paz na alegria e no horror de nossas obras."
(Charles Bukowski)
10
Partindo da premissa que todas as diversas formas de expresso
artstica abstraem as realidades scio-culturais de seus autores, o presente
trabalho busca analisar a conjuntura histrica contempornea a partir de um de
seus sujeitos histricos, (re)produtor dos sentidos aos quais est imerso. Este
trabalho tem a inteno de mostrar, por meio da anlise de um representante
da cultura contempornea, as marcas das inquietaes deste autor em suas
obras, investigando o teor de crtica (se existe ou no) e realizando um debate
da histria social que abarca a cultura produzida no mundo contemporneo.
O desenvolvimento desta pesquisa se deu em grande parte com
fomento e apoio da Fapemig, que nos favoreceu com uma bolsa de Iniciao
Cientfica nos anos de 2008 e 2009, e esta pesquisa s foi possvel a partir de
um desdobramento de um projeto maior denominado O Palco no Centro da
Histria: Cena Dramaturgia Interpretao Teatro So Pedro Othon
Bastos Produes Artsticas Companhia Estvel de Repertrio (C.E.R.),
coordenado pela Prof. Dr. Rosangela Patriota Ramos, que h algum tempo
vem estudando e pesquisando a cena teatral brasileira, em particular na
conjuntura da Ditadura Militar no Brasil e no restabelecimento do Estado de
Direito1, com vistas a abranger o final do sculo XX e o incio do sculo XXI.
Partindo de questes que cercam os sujeitos histrico-sociais de hoje,
pessoalmente, vejo como interessante caminho para o trabalho de investigao
analisar as impresses histrico-ideolgicas que esto presentes no discurso
de artistas da atualidade, inclusive o processo de produo cultural deste
discurso. Os processos de criao dos artistas so diretamente relacionados
ao que eles consideram ser real e por isso nos interessam enquanto fonte de
numerosas elucidaes. Desta maneira, o estudo dos objetos culturais,
relacionando-o com a conjuntura qual so produzidos, nos d valiosos
ngulos de anlise histrica, uma vez que a sua prpria existncia e difuso
1 Estado de Direito aquele em que o poder exercido limitado pela Ordem Jurdica vigente,
que ir dispor, especificamente, desde a forma de atuao do Estado, suas funes e limitaes, at s garantias e direitos dos cidados. Dessa forma, tanto Estado, quanto seus indivduos so submetidos ao Direito. O Estado, assim, no poder impor suas vontades que no tiverem fixadas em lei, e nem poder atuar contra as leis existentes. Dessa forma, o Estado dever, alm de acatar as leis, proteger sua populao, concedendo-lhe segurana, e sendo eficiente na busca do bem comum. Disponvel em : Acesso em 22 set. 2009.
11
so elementos ativos nos processos histrico-sociais que constroem o
presente. Segundo Chartier:
Cada poca dotada de estruturas de pensamento,
comandados pelas evolues scio-econmicas que organizam as constituies intelectuais como produes artsticas, as prticas coletivas como pensamentos filosficos2.
Assim, para colocarmos em foco os elementos sociais contemporneos,
adequado que o objeto de anlise cultural seja tambm imerso no mesmo
lcus histrico-social de tais elementos que compem a conjuntura atual. Este
trabalho monogrfico, portanto, prope contribuir com o debate acerca da
cultura contempornea, suas nuanas e inquietaes, tendo em vista a
discusso sobre as impresses histrico-ideolgicas que esto presentes no
trabalho artstico dos que contribuem com o cenrio cultural no Brasil atual,
incio do sculo XXI, numa conjuntura social onde o chamado Estado de Direito
foi restabelecido.
Partindo deste mote, voltamos nossa ateno para o trabalho de Mrio
Bortolotto, que entre as suas produes culturais esto o teatro, o cinema,
literatura (poesia e prosa), e a msica: A gente faz de tudo um pouco, n...
declara o polivalente Bortolotto em entrevista para o programa Tunderview3. A
atividade cultural mais expressiva de Mrio Bortolotto o teatro. A base da
estrutura criativa de Mrio Bortolotto e dos artistas (poetas, msicos, etc...)
equivalentes relacionada a elementos que se tornaram smbolos recorrentes
em seus trabalhos, como o excesso da bebida alcolica, a crnica carncia
financeira, a liberdade de no ter nada na vida, mas no dever nada pra
ningum, de ler os cdigos de um mundo encostado de lado, sob o prprio
nariz dos seres de uma curva normal da sociedade e coloc-los num mundo
de palavras belamente organizadas que ora parecem brotar na garganta e nos
sons eltricos das guitarras noturnas nos bares das cidades, ora em gestos
expressivos dos atores que acabam buscando a suavidade de uma maneira
brusca e pungente. Faz parte dos objetivos deste trabalho analisar o quanto
2 CHARTIER, R. A Histria Cultural entre prticas e representaes. Trad. Maria Manuela
Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.135. 3 Programa de entrevistas no site musical da showlivre.com apresentado pelo famoso apresentador a MTV: Thunderbird. Neste programa ele j entrevistou vrias personalidades do mundo cultural.
12
so significativas as referncias de Mrio Bortolotto, a formao de seu
discurso e dos sujeitos afins, muitas vezes retratados na sua fico.
Uma, duas, trs doses de usque que magicamente se materializam nas
mos das personagens que insistem em viver do nico modo que conseguem.
A nudez explcita de suas psiques insiste em se esconder nos trailers alugados,
nas quitinetes baratas, entre os lenis que precisam ser lavados, nas pias
com pilhas de pratos e talheres das famlias conturbadas. Os criadores dessas
personagens podem no concordar, mas pode-se sentir um magnetismo nos
seus estilos de vida. Nota-se uma atmosfera mstica que habita seus smbolos
mais bvios, como a garrafa de usque barato, as pontas de cigarro - com ou
sem marcas de batom, as infinitas latas de cerveja vazias e amassadas, e toda
aquela gordura nos dedos e nas jaquetas jeans, provenientes dos cheese-
burgers devorados como se no houvesse amanh. E quem garante a eles que
haver? Violncia, sexo, marginalidade, criminalidade e outros elementos
incmodos e complicados da contemporaneidade permeiam os caminhos
sombrios daqueles que nascem e vivem na imatria da mente dos artistas
como Mrio Bortolotto.
Torna-se at mesmo engraado perceber a ironia de como o fazer
poltico interpela estes artistas que no conseguem evitar o fato de atingirem a
sociedade com seus quase protestos sociais no propositais -, mesmo
tratando de assuntos que mais parecem se encontrar na esfera do
existencialismo. Ignorando uma anlise subjetiva mais profunda, podemos
dizer que estes artistas parecem produzir sua arte de maneira despretensiosa,
apenas como quem o faz para a manuteno da prpria sanidade, ou por mera
vontade de fazer o que gosta - pagando por isso qualquer preo. Obviamente
sempre terminam por passar uma mensagem ao coletivo, mesmo que
descompromissadamente, evitando com maestria a armadilha da panfletagem.
Poesia o elemento que mais est presente na escrita e no fazer de artistas
como Mrio Bortolotto. No uma poesia cheia de clichs ou, pelo menos, ela
possui seus prprios clichs que so feitos do tdio e da falta de esperana (se
aqui coubesse mais: o desespero) dos outsiders que habitam um mundo
aparentemente desregrado que nega as leis pr-concebidas de uma sociedade
que se volta cada dia mais para o culto do consumo de ouro. Variam as
13
personagens: nem sempre so desajustados sem remdio. Mas a crtica
sempre cai sobre aqueles que seguem os valores pequeno-burqueses e sobre
os que tendem levar uma vida careta e hipcrita do chamado politicamente
correto. Esta marca, que denota um grande teor autoral nos textos de Mrio
Bortolotto, o torna um artista alheio ao be-a-b da indstria cultural, e isso
uma grande caracterstica de seu trabalho.
O homem que atende por Mrio Bortolotto resiste para que o seu nome
no se torne mais um produto que pode ser pego numa prateleira cultural por
a. sabido que para qualquer sucesso em relao a uma produo cultural,
os artistas e produtores ficam merc da visualidade de suas criaes, uma
vez que de extrema necessidade que exista uma divulgao eficiente para
atrair o pblico, fazendo-o comparecer e apreciar as diversas produes
artsticas. Ora, as pessoas precisam saber de alguma maneira que as
produes culturais existem! neste aspecto que temos um verdadeiro
problema referente visibilidade, onde geralmente preciso ter uma grande
quantidade de capital para o investimento em comunicao e marketing, o que
justamente falta s produes culturais independentes do chamado teatro
underground paulista, por exemplo, habitat social de Mrio Bortolotto. Um
sistema que d a aparncia de ser natural chama a ateno do observador
atento e desperto para tudo que supostamente pr-estabelecido. O bom
historiador desconfia das naturalidades histricas, seja qual for o processo ao
qual est inserido, e tem a vocao de investigar tudo que indique qualquer
idia de (...) assim que as coisas so(...). Nesta pesquisa, encontramos
sadas alternativas para o problema, muitas vezes sem uma bandeira de
independncia e libertao de um sistema fechado para eles, mas pelo reforo
primitivo ligado sobrevivncia em contato com um estilo de vida que pede
seus prprios caprichos, mesmo que muitas vezes ligado a um sentido coletivo.
Mas referindo-nos a Mrio Bortolotto, ou seja, lidando com uma anlise do
sujeito, percebemos em seu discurso uma coerncia patente no que se trata
sobre a sua deciso de no se misturar ao que chamado de produto cultural.
Para melhor diz-lo: Bortolotto se recusa a tornar-se, ele prprio, um produto,
mesmo percebendo oportunidades de se adequar por melhores condies de
trabalho, remunerao ou o que valha. Um exemplo extremo de sua
14
integridade pode ser visto num trgico episdio ocorrido no dia 5 de dezembro
de 2009, onde aps a sesso noturna de sua pea Brutal4 , no Espao
Parlapates, na Praa Roosevelt, Bortolotto, aos 47 anos, confraternizava com
colegas e amigo quando dois bandidos armados invadiram o bar do teatro,
cujas portas estavam semifechadas, e comearam um assalto. Atores foram
agredidos e Bortolotto, aps levar uma coronhada na cabea, partiu para cima
do agressor. Levou quatro tiros, um deles no corao, e foi levado para a Santa
Casa em estado grave. Praticamente desenganado, recuperou-se
surpreendentemente, assombrando at seus mdicos. Esta foi considerada
para muitos uma oportunidade para Bortolotto obter visualidade na mdia, uma
vez que a imprensa disputava espao e entrevistas do dramaturgo quando este
milagrosamente se recuperava. Mas ele declarou:
No quero ser conhecido como o Dramaturgo que
reagiu a um assalto e levou trs tiros. Quero sim ser conhecido como o Dramaturgo que escreveu mais de 50 peas e que trabalha exaustivamente no s como escritor, mas tambm como diretor, ator, sonoplasta, iluminador, e que ainda encontra tempo pra cantar numa banda de rock. pelo meu trabalho que quero ser lembrado quando estiver bebendo em algum boteco do cu, e no porque reagi a um assalto e levei trs tiros.5
Estudando sua histria pessoal, temos um exemplo raro de artista que
foi salvo do fracasso profissional pelo seu talento e pela sua prpria liberdade
de pensamento, mesmo se atrelando significativamente s suas referncias
mais declaradas. A sua grande afinidade com os escritores Beats, isso vai
muito alm do que Bortolotto escreve em linhas dramticas ou poticas. Seu
4 Pea escrita por Mrio Bortolotto. Na montagem em questo, Bortolotto foi diretor. Segundo
crtica de Jefferson Del Rios no Jornal Estado: Embora faa um teatro existencial, ele, sua maneira, chega, assim, a temas sociais. Se, de um lado, lana no palco personagens desajustados e com algum vis autodestrutivo, mas basicamente inofensivos, por outro introduz gente que explora psiques indefesas e , em casos extremos, espalha a morte. Disponvel Acesso em 10 nov. 2009. 5 BORTOLOTTO, Mrio. O Jornalismo Mauricinho. Atire no Dramaturgo, 16/01/2010. Disponvel em Acesso em 17 jan. 2010.
15
estilo de vida chama ateno para uma coletividade que compartilha do mesmo
estilo. Numa metfora simples, como se vestissem a mesma cor, mas com
uma variedade de tons que se distinguem uns dos outros apesar de
pertencerem mesma famlia; como uma mesma nota musical que se difere
em suas oitavas diferentes. So seres humanos como quaisquer outros, mas
que se recusam ao rtulo de normal, ou simplesmente alegam que no
conseguem se adequar normalidade. Assim, o que d o mrito a Mrio
Bortolotto de ser o tema central deste texto o fato do artista conseguir
transportar para suas obras a sinceridade e a vivncia rica dos outsiders que
habitam suas peas, textos, poesias e msicas. por conviver com tantos
seres considerados (por eles mesmos ou por ns) marginalizados e por ter a
sensibilidade necessria para faz-los existir pra sempre nos seus escritos e
nas mentes dos seus leitores e expectadores, que Mrio Bortolotto merece ser
o sujeito a ser estudado nesta humilde monografia.
Ficaria extremamente complicado estender a anlise sobre a sua obra
se no pudssemos concentrar nossos olhares em um de seus textos,
escolhido depois de rduas consideraes em relao s suas questes
centrais, sua importncia dentre as obras do autor e sua significativa fora em
representar o mundo outsider que Mrio Bortolotto insiste em retratar na
totalidade de sua obra. Que o carssimo leitor saiba que a tarefa de escolher
uma nica obra para concentrar nossas anlises foi um desafio difcil e que
com toda a certeza definiu por quais caminhos permearam nossas conjecturas
no que tange a obra de Mrio Bortolotto.
Depois da leitura de vrios textos, em sua grande maioria, textos teatrais
(que a grande rea de atuao de Bortolotto e seu maior estandarte
enquanto artista underground), selecionamos um em especial que merece
maior ateno no somente pelo seu contedo, esttica, personagens e
temtica, mas tambm por sua repercusso e reconhecimento, que foram
grandes contribuintes para a atual referencia de Bortolotto no circuito cultural
de So Paulo e do Brasil. Nossa Vida No Vale um Chevrolet foi encenada
pela primeira vez em 30 de maro de 1990 no teatro Zaqueu de Melo, na
cidade natal de Bortolotto, em Londrina. Na ocasio, a pea foi dirigida pelo
prprio autor com o grupo que ajudou a fundar, o Cemitrio de Automveis.
16
Conta a histria da famlia Castilho, formada pelos irmos ladres de carros e
pela irm, danarina de boate e groupie. A morte do pai, no incio da pea,
desencadeia uma srie de discusses ntimas e levanta questes que sero
tratadas no interior deste trabalho.
17
CAPTULO I
MRIO BORTOLOTTO
18
1.1 Sobre o sujeito Mrio Bortolotto
Autor de mais de cinquenta peas, Mario - como conhecido pelos
numerosos amigos - atua e dirige a maioria das montagens de seus textos,
marcando presena na cena teatral paulista em meados da dcada de 1990.
Nascido em 1962 na cidade de Londrina (PR), estudou em seminrio6 , onde teve
seu primeiro contato com o teatro, antes de ser expulso:
"Quando fui expulso do seminrio, tinha 17 anos. Tinha uma vaga noo do que era o Sagrado, depois de mergulhar em leituras doutrinrias na biblioteca do seminrio. Bobagem. Eu acabava interpretando a Bblia do meu jeito e preferia ficar tentando decifrar o Apocalipse de So Joo, Santo Agostinho e Toms de Aquino, mas gostava mesmo do Livro dos Juzes com toda aquela pancadaria comendo solta. Mas fui expulso (sob alegao de que eu era m influncia, v se pode um troo desses) e nunca mais fui igreja. Desconfiava que no ia encontrar o que estava procurando por l. Ento escrevi o meu primeiro texto de teatro que era exatamente sobre os anos de seminrio. Era muito ruim. Perdi o texto, nunca mais vi e no fao a menor questo, era ruim pra caralho. A ca na vida, em leituras mais profanas, nos autores malditos e ateus. Passava longe de alguma espcie de Paraso e ouvia blues o dia inteiro. A msica do demo." 7
Logo depois Iniciou sua carreira teatral, ainda na adolescncia, participando
de inmeros festivais de teatro no Brasil com o grupo fundado por ele em 1982,
juntamente com Lzaro Cmara e Edson Monteiro Rocha, chamado a princpio de
Chiclete com Banana que, a partir de 1987, passa a denominar-se Cemitrio de
Automveis8. Apesar de ser um artista que tambm trabalha com poesia, msica,
literatura e cinema, o teatro sem dvida o espao onde Bortolotto possui maior
destaque. Entre suas peas mais conhecidas esto A Frente Fria que a Chuva Traz,
Brutal, Hotel Lancaster, Meia-Noite um Solo de Sax na Minha Cabea e Leila
Baby. Mrio Bortolotto ficou conhecido por ser um dramaturgo independente, por se
6 Passei dois anos nesse seminrio na cidade de Ourinhos em So Paulo. Depois passei outros trs no seminrio de Apucarana. (BORTOLOTTO, Mrio. Em Ourinhos - 33 anos depois. Atire no Dramaturgo (blog), 17 out. 2009. Disponvel em Acesso em 05 nov. 2009. Grifo do autor.) 7 BORTOLOTTO, Mrio. O que restou do Sagrado. Atire no Dramaturgo (blog), 03 mar. 2006. Disponvel em Acesso em 13 jan. 2009. 8 Nome que alude ao poema Obligatto do Bicho Louco, do poeta e editor Lawrence Ferlinghetti, um importante nome da gerao beat.
19
afastar do perfil de produto cultural - conceito que evidentemente remete a uma
indstria, a denominada Indstria Cultural9.
Observa-se a existncia de um formato de cultura que se faz presente nos
canais de veiculao em massa, ou seja, os meios de comunicao que atingem um
enorme volume de pessoas, como a televiso, o rdio e agora a Internet. notrio
que estes veculos de comunicao em massa contribuem de maneira significante
no processo de formao de opinio e assim, concomitantemente, na construo
dos imaginrios ideolgicos aos quais os sujeitos se vinculam, mas tambm
verdade que este formato de cultura, contrariando uma anlise mais superficial, no
remete necessariamente a um formato de cultura democrtica, uma vez que o
controle destes grandes meios de difuso cultural por meio da televiso, por
exemplo, so controlados no Brasil historicamente por grandes emissoras, mesmo
com concesso federal, e que possuem seus prprios interesses institucionais, entre
outros. O quadro vem se alterando sucessivamente com o advento da internet, onde
o que se pode perceber uma gradual desmonopolizao da informao por parte
dos grandes veculos tradicionais.
Mrio Bortolotto no permitiu envolver-se de maneira comercial com este
formato de cultura e sempre d o tom autoral em seus trabalhos. A partir da internet,
ao montar um blog10, Mrio Bortolotto faz o que numerosos artistas independentes
(ou no) esto fazendo, divulgando seus trabalhos para o grande pblico,
interagindo com os mais variados tipos de pessoas que por algum motivo apreciam
ou criticam o seu trabalho.
Em suas peas, Bortolotto retrata personagens que so verdadeiros
outsiders, indivduos que, em uma leitura convencional, so excludos socialmente,
9 O conceito de industria cultural elaborado por Theodor Adorno e Max Horkheimer possui uma base terica amplamente discutida no que tange mdia em relao ao seu papel de difundir a cultura com objetivos culturais. Nesta discusso, existem opinies que se colocam demasiadamente pessimistas em relao s possibilidades de informao de baixa qualidade pelos meios de comunicao, e de outro lado, opinies favorveis que destacam a sua lucidez em apontar a nocividade da cultura industrial massiva. De qualquer forma, prematura qualquer anlise que considerem todas as expresses artsticas e estticas veiculada na mdia como se tivessem a mesma natureza perniciosa ou sendo de m-qualidade. 10 (...)Blog a contrao da expresso inglesa weblog. Log significa dirio, como o dirio de um capito de navio. Weblog, portanto, uma espcie de dirio mantido na internet por um ou mais autores regulares. Normalmente apenas um, algumas vezes dois ou trs, raramente mais que trs. O primeiro blog surgiu em 1999. Mais ou menos. H hoje mais de quatro milhes de blogs. Pense nisso. De um a quatro milhes em cinco anos." (HEWITT, Hugh. Blog: Entenda a Revoluo que vai mudar seu mundo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson, 2007)
20
marginalizados. Segundo o autor, ele prefere trabalhar com este perfil por serem
mais interessantes do que personagens comuns que levam uma vida rotineira,
cotidiana11. importante ressaltar que ao criar suas personagens Mrio Bortolotto
possui conhecimento de causa, uma vez que sabido que o autor convive com
indivduos que possuem o perfil de outsiders:
(...) Agora, eu sempre gostei de escrever sobre esse tipo de
personagem marginal porque eu conheo melhor, sempre convivi com figuras mais malucas mesmo, que no tm uma vida convencional, e sempre achei que isso d uma boa literatura.12
Ademais, Mrio Bortolotto deixa claras suas referncias em cada um de seus
textos. Buscando concentrar nossos estudos a partir de um objeto, o presente
trabalho se pautou em analisar sua obra sem excluir o carter histrico permeado de
processos que contriburam para os moldes aos quais a sua obra se desenvolve,
admitindo seus elementos mais caractersticos. So evidentes as influencias da
literatura beat13 em toda a obra de Mrio Bortolotto e suas referncias vo alm,
passando de Allen Ginsberg, Jack Kerouac e Charles Bukowski s revistas em
quadrinhos, o Rock n roll e o Blues alm de outras referncias da cultura pop. Foi
alvo de nossas investigaes situar o autor perante a diversidade cultural e
desvendar suas referncias pensando em um prisma de historicidade que permeiam
os processos sociais que o autor vivencia enquanto sujeito histrico. Conforme
Chartier ressalta:
As representaes do mundo social assim construdas, embora aspirem universalidade de um diagnstico fundado na razo, so sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Da, para o caso, o necessrio relacionamento dos discursos proferidos com a posio de quem os utiliza.14
11 BORTOLOTTO, Mrio. Entrevista cedida Etcetera Revista Eletrnica de Cultura e Arte. Disponvel em Acesso em 21 de mai. 2008. 12 Idem, Ibidem 13 Por extenso, Beat significa tambm, nos textos e na prpria vida das pessoas daquela gerao, influncia, improviso, ausncia de normas fixas, na vida e no texto, envolvimento profundo que traz a msica, balano, liberdade e prazer. (BUENO, Andr. O que gerao beat / Andr Bueno e Fred Ges, So Paulo: Brasiliense, 1984, p.09.) 14 CHARTIER, R. A Histria Cultural entre prticas e representaes. Trad. Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p.17.
21
Cabe ao historiador buscar desvendar os mltiplos interesses desses
diversos grupos que terminam por forjar as inmeras representaes do mundo
social e aqui buscamos inclusive perceber estas implicaes na (re)produo destas
representaes na cultura presente. A partir de uma preocupao que concerne
formao dos discursos de Mrio Bortolotto e das origens histricas do seu trabalho,
voltamos os olhares sobre o circuito cultural em Londrina buscando ter maiores
elucidaes acerca das origens do seu trabalho com o Cemitrio de Automveis e,
portanto, delineando mais claramente sobre a Formao Discursiva15 de Mrio
Bortolotto. Por meio de depoimentos do prprio autor, de personalidades prximas a
ele ou a partir da pesquisa acerca de Festivais como o FILO Festival Internacional
de Londrina, pde-se esclarecer numa boa medida o contexto ao qual o dramaturgo
se inseria desde a adolescncia. Dali se revelou muitas de suas referncias e foi
possvel ter um maior entendimento das influncias que afloram em seus textos.
Atualmente morando em So Paulo, Mrio Bortolotto um dos artistas que
integram o grupo que participa da efervescncia do que se convencionou chamar de
teatro alternativo em So Paulo. Os bares e teatros da Praa Roosevelt, no centro
da cidade, se tornaram ponto de encontro de artistas das mais variadas linguagens,
e nos teatros da Praa Roosevelt que a maioria das montagens de Mrio
Bortolotto exibida a um pblico cada vez maior e mais fiel. Assim, uma anlise
deste lcus social no poderia ficar de fora da pesquisa. Por ter uma laje de
concreto que cobre grande parte da rea da praa, o local atrai moradores de rua,
usurios de drogas e criminosos, o que naturalmente afasta a populao de usufruir
da rea. No fosse a presena dos bares e dos artistas que freqentam o lugar, a
praa estaria totalmente entregue ao abandono e descaso. Em 2003, a prefeitura
props uma reforma na praa e a estimativa era que em trs anos o projeto sairia do
papel. No entanto, somente em 2010 que um projeto com oramento de R$ 37
milhes de reais foi oficializado e a reforma deve ficar pronta em dois anos. Atrasos
nas licitaes e problemas com o financiamento junto ao BID (Banco Interamericano
15 Entendemos, por formaes discursivas, deste modo, um conjunto de regras histricas, circunscritas no tempo e no espao que definem uma determinada poca, e, no caso de uma rea social, econmica, geogrfica ou lingstica, as condies de produo da funo enunciativa que se estabelecem em cada uma. Nessa perspectiva, no se trata de examinar um corpus como se tivesse sido produzido por um certo sujeito, mas de considerar sua enunciao como o correspondente de uma dada posio scio-histrica na qual os enunciadores revelam-se substituveis. (Stafuzza, 2005, op. cit. Foucault, 2002)
22
de Desenvolvimento) explicariam o motivo da demora do incio das obras. Outro
motivo provvel foi o corte de quase R$ 5 bilhes feito pelo prefeito Gilberto Kassab
no Oramento do ano de 2009, o que impediu o incio das obras. A reforma faz parte
de um projeto da Prefeitura de So Paulo de revitalizao do centro da cidade16.
Existiram boatos que ligavam o incidente violento sofrido por Mrio Bortolotto no
assalto onde sofreu quatro tiros (que teve rpida repercusso na mdia) com a
agilizao dos processos necessrios para a inicializao da reforma. O que
podemos afirmar que o triste fato ocorrido com Mrio Bortolotto trouxe visibilidade
a um problema e deu mais fora s vozes de moradores, artistas e demais
freqentadores do espao.
1.2 - Mrio Bortolotto: A construo do artista e a sua linguagem
O poema Howl17 de Allen Ginzberg escrito em 1956 juntamente com On the
road18 (1957) de Jack Kerouac e Naked Lunch19 escrito por William S. Burroughs em
1959 inauguram o que passou a ser chamado de Gerao Beat. Composta por
escritores americanos, os beats romperam grandes barreiras sociais devido sua
viso de mundo e sua vivncia transgressora em relao rgida moral
estadunidense da poca. Estes poetas, escritores e intelectuais influenciaram as
geraes subsequentes e foram considerados os novos bomios.
interessante percebermos que ao relacionarmos a vivncia de Mrio
Bortolotto (aqui visto como representante de uma gerao de artistas que se
colocam margem do produto cultural e se afastam como podem do mercado de
consumo) com a vivncia dos bomios, como intelectuais que se afastavam da
utopia do trabalho e da acumulao de riquezas, notamos significativas afinidades.
Seres cuja vivncia social tem caractersticas da boemia - vista aqui sem a
16
Ver Projeto de R$ 37 milhes de reforma da praa Roosevelt oficializado no Dirio Oficial Obras devem comear nas prximas semanas; prazo para trmino de dois anos. R7 27 jul. 2010. Disponvel em Acesso em 02 ago. 2010. Em SP, artistas da Praa Roosevelt reclamam de roubos Atores acreditam que revitalizao da Cracolndia espalhou problema para outras regies. Estado 07 dez. 2009. Disponvel em Acesso em 10 dez 2010. 17 Uivo. 18 P na Estrada. 19 Almoo Nu.
23
conotao pejorativa que parece perseguir estes grupos20- fazem parte do universo
pessoal de Mrio Bortolotto, que vive em um nicho social urbano onde a vida
noturna efervescente21.
Ao observarmos por meio de declaraes do autor em seu blog, pelas
informaes que se tem acesso sobre sua vida social ou mesmo se observarmos a
vida social noturna ao qual ele est inserido Praa Roosevelt, onde esto
instalados grupos teatrais menores; os bares e inferninhos da Rua Augusta e
outros pontos noturnos no centro de So Paulo notamos que Bortolotto possui
grande conhecimento em relao aos indivduos e vivncias que escreve, uma vez
que os elementos encontrados em sua obra, juntamente com as reflexes filosficas
e existenciais que podem se desdobrar das mesmas, compem seu lcus social
desde quando ainda morava na sua cidade natal, em Londrina, no Paran.
O comportamento urbano e rebelde dos bomios, presente tambm nos
representantes da Gerao Beat, pode ser reconhecidos na obra do autor. No
entanto, mais do que isso, permeia o prprio universo social ao qual Bortolotto se
insere, onde constri sua vivncia social e que composto de ambientes urbanos
precrios, comida barata, bebida alcolica em excesso e uma marcada rejeio
modos de vida que se enquadram nos padres sociais considerados prximos
sociedade capitalista de consumo.
Ao investigar as origens referenciais do autor aqui estudado, se mostra
importante saber mais sobre os bomios, seu estilo de vida, seus desdobramentos e
possveis contradies. Russel Jacoby em Os ltimos intelectuais: a cultura
americana na Era da academia esclarece:
Para o ctico, a confiana dos intelectuais bomios na vida
e nas instituies urbanas tem um toque de hipocrisia: os marginais auto proclamados florescem junto ao centro. Eles necessitam das ruas, dos cafs e dos bares da civilizao urbana para escapar do fardo da civilizao urbana: trabalho e rotina. A hipocrisia da boemia, entretanto, no simples desonestidade; ela alude a uma flagrante contradio. O mundo do trabalho e da riqueza est armado contra a inatividade e a utopia que ele por vezes promete. Pensar e sonhar requerem um tempo desregulado; os intelectuais
20 O comportamento dos denominados outsiders, desperta uma reao da prpria sociedade que deseja punir os transgressores ou ento pedagogicamente enquadr-los. 21 A regio central de So Paulo conhecida tambm por ser repleta de bares e casas noturnas.
24
perpetuamente postados em cafs e bares ameaam os respeitveis cidados pelo esforo que colocam ou pela aparncia em escapar da escravido do dinheiro e do trabalho duro22.
Assim, podemos pensar que os bomios ou mesmo os indivduos que
renegam um estilo de vida enquadrado uma sociedade disciplinada e regulada por
horrios e normas de trabalho, s podem surgir e conviver mediante seus prprios
opositores ideolgicos, sendo elementos simblicos de uma alternativa todas as
incmodas obrigaes dos indivduos comuns como ter que ganhar dinheiro, de
trabalhar para sustento, de defenderem os seus. Tais expresses saltam de
indivduos que raramente so incentivados a pensarem seu modo de vida de
maneira crtica e sincera, muitas vezes apenas herdando de maneira automtica as
preocupaes de outros que se habituaram a viver de maneira aparentemente
bovina e satisfeita. O estilo de vida bomia na sociedade contempornea continua
sendo mal visto pela grande maioria da sociedade imersa no mercado de consumo e
nas teias da conjuntura atual capitalista. Apesar do eventual charme que atribuda
a vida boemia, desde a poca em que os primeiros bomios se tornaram
conhecidos, considera-se que [...] no rol dos pecados burgueses, os intelectuais
bomios merecem ser duplamente citados, por pensarem muito e por fazerem
pouco.23
Para ser um potencial consumidor, o indivduo deve seguir o caminho regular
de cidado urbano, sendo til e assalariado. No este perfil de personalidade que
os bomios mostravam. E no este modo de viver que as personagens de Mrio
Bortolotto possuem. Sua obra, juntamente com sua crtica acompanha o atual nvel
de desenvolvimento da sociedade, chamando ateno para aqueles que no se
dobram perante a lgica de mercado que erroneamente pode ser considerada como
natural. Jacoby Russel nos atenta que o desenvolvimento das cidades,
estacionamentos, pistas elevadas, vias expressas e agora centros comerciais,
transformam as cidades, alterando tambm o ritmo da cultura24
Estas alteraes propulsionam novas formas de ver o mundo reagindo de
acordo com as contradies vivenciadas pelos sujeitos em uma determinada poca.
22 JACOBY, Russel. Os ltimos intelectuais: a cultura americana na Era da academia. Trad. Magda Lopez. So Paulo: Trajetria Cultural: EDUSP, 1990, p. 40. 23 Idem, p.41. 24 Idem, p.42.
25
Diferentemente dos bomios, que possuam um forte elitismo e averso s massas
condicionadas a um sistema que criticavam, os beats romantizavam
significativamente a vida e as pessoas comuns. Indo contra esse padro rgido de
sociedade, os beats influenciaram as novas geraes norte-americanas com uma
nova maneira de pensar em um perodo marcado pela delinqncia juvenil e a
ascenso e queda do macartismo. Neste contexto, eles ainda coexistiam com um
fenmeno quase oposto: a juventude aptica e conformista. Os beats so os
bomios da poca nas rodovias interestaduais, depois dos beats a boemia urbana e
os bomios se tornaram fatos histricos, no uma realidade viva25
Nascia a chamada contracultura, fenmeno ao qual os beats se fundiram.
No possvel falar em contracultura sem falar em juventude. Este foi um perodo
de grande evidncia por parte das manifestaes da juventude em defesa de suas
idias e em detrimento das contradies que presenciavam na sociedade. Com
grande habilidade de sntese panormica, diz Hobsbawm: Liberao pessoal e
liberao social, assim, davam-se as mos, sendo sexo e drogas as maneiras mais
bvias de despedaar as cadeias do Estado, dos pais e do poder dos vizinhos, da lei
da conveno.26
O envolvimento com as drogas e uma nova forma de encarar a sexualidade
tambm foi incorporado ao quadro social da juventude que, de maneira espantosa
detinha meios para difundir sua nova concepo de mundo por todo o planeta. Uma
grande peculiaridade da nova cultura jovem nas sociedades urbanas o seu
espantoso internacionalismo. neste sentido que ele completa:
O blue Jeans e o rock tornaram-se marcos da juventude
moderna, das minorias destinadas a tornar-se maiorias, em todo pas onde eram oficialmente tolerados e em alguns onde no eram, como na URSS a partir da dcada de 1960 (Starr, 1990, Captulos 12 e 13). Letras de rock em Ingls muitas vezes nem eram traduzidas. Isso refletia a esmagadora hegemonia cultural dos EUA na cultura popular e nos estilos de vida, embora deva notar que os prprios ncleos de cultura jovem ocidental eram o oposto do chauvinismo cultural, sobretudo em seus gostos musicais. Acolhiam estilos
25 Idem, p. 66 26 HOBSBAWM. Eric J. A Era dos Extremos: o Breve Sculo XX: 1914 1991. Trad. Marcos Santarrita. So Paulo: Companhia das Letras. 1995, p. 326.
26
importados do Caribe, da Amrica Latina e, a partir da dcada de 1980, cada vez mais a frica. 27.
Mrio Bortolotto possui, em significativo grau, influencia da msica e da
literatura estrangeira, principalmente no que tange s movimentaes culturais que
efervesceram a partir dos anos cinqenta do sculo passado nos EUA como a
literatura beat, e o som marcado pelo Blues, Jazz e o Rock.
Alm de comporem as trilhas sonoras da maioria de suas montagens, estes
estilos musicais fazem parte de maneira contundente do universo social de
Bortolotto, que se aventura e se diverte no universo musical participando conjuntos
musicais de rock e blues - deixando evidente suas influencias -, por exemplo, como
vocalista e compositor das bandas Saco de Ratos Blues e Tempo Instvel.
Gravou o cd de blues Cachorros gostam de Bourbon, lanado em 2007, com
composies suas. Em entrevista recente, o autor declara:
Sou fissurado em msica. Quando era criana, passava a
manh inteira ouvindo rdio, anotando letras de msica, criando a minha prpria parada musical. Pra mim tambm bastante natural fazer parte de uma banda. Desde moleque sempre toquei e cantei em bandas. Quando tava no seminrio, tocava violo e cantava na missa. Enfim, natural, s isso. Estou em duas bandas atualmente: a Saco de Ratos e a Tempo Instvel, que acabou de lanar o primeiro CD. 28
Tais declaraes esto repletas de historicidade e s puderam existir
mediante a imensa difuso cultural que ocorreu com estes estilos musicais
considerados na poca como estilos juvenis - nas dcadas de 1960-70:
Difundiam-se atravs dos discos e fitas cujo grande veculo
de promoo esto como antes e depois, era o velho rdio. Difundiam-se atravs da distribuio mundial de imagens; atravs de contatos internacionais do turismo juvenil, que distribua pequenos, mas crescentes e influentes fluxos de rapazes e moas de jeans por todo o globo, atravs da rede mundial de universidades, cuja capacidade de rpida comunicao internacional se tornou bvia na dcada de 1960. Difundiam-se ainda pela fora
27 Idem, p. 320. 28 BORTOLOTTO, Mrio. Entrevista novembro: Mrio Bortolotto. [novembro, 2008]. So Paulo: Site Balangandans. Entrevista concedida ao site. Disponvel em : Acesso em: 20 jan 2009.
27
da moda na sociedade de consumo que agora chegava s massas ampliada pela presso dos grupos de seus pares. Passou a existir a cultura jovem global29
Com o advento da possibilidade de reproduo tcnica em massa dos
elementos culturais, abriram-se as portas para uma indstria que abarcou um
caudaloso mercado consumidor, formado em sua grande maioria pelos jovens que
se iniciavam no mercado de trabalho em uma Amrica ps Segunda Guerra
Mundial. Esses jovens se tornavam novos consumidores, gastando seus salrios em
discos e roupas da moda.
Devemos evitar o julgo maniquesta ao pensarmos o fenmeno da Indstria
Cultural. Ter uma idia pr-definida ou at mesmo especulativa sobre as questes
que compem o seu cerne uma forma inadequada de analisarmos suas
problematizaes e desdobramentos. Dizer que a chamada indstria cultural algo
bom ou ruim, simplesmente, nos remete facilidade em reduzir os diferentes
processos existentes entre bons ou ruins, o que no passa de uma maneira
equivocada de olhar a Histria.
Analisando o cenrio cultural contemporneo e discutindo perspectivas de
abordagem filosfica acerca de Indstria Cultural, Featherstone diz:
Atualmente, embora tenha se verificado um aumento
considervel do interesse por cultura de consumo, bem como do uso desta expresso, no se concede mais tanta importncia s teorias de Adorno, Horkheimer, Marcuse e outros representantes da Teoria Crtica. Sua abordagem muitas vezes apresentada com uma crtica elitista da cultura de massa, apoiada em distines hoje consideradas discutveis entre individualidade autntica e pseudo-individualidade e entre necessidades verdadeiras e falsas. De modo geral, considera-se que esses autores olham com desprezo para a cultura de massa degradada e no tem nenhuma simpatia pela integridade dos prazeres das classes populares30
Onde se situa Mrio Bortolotto em meio a esta discusso? Em entrevista feita
em um programa de televiso chamado Saca-Rolha31, questionado sobre suas
29 HOBSBAWM, E. Op. cit., p. 321. 30 FEATHERSTONE, Mike. Cultura de consumo e Ps-Modernismo. Trad. Julio Assis Simes. So Paulo: Studio Nobel, 1995, p. 10. 31 Apresentado pelo jornalista Marcelo Tas, pelo cantor Lobo e pela modelo Mariana Weickert, o programa se encontra fora do ar.
28
expectativas e possibilidades na televiso, emblemtico meio de comunicao de
massas, Bortolotto declara:
[...] Eu gosto de televiso pra caramba, eu s acho que no
se faz nada na TV que eu esteja a fim de fazer, s isso... No quer dizer que eu tenho algo contra a televiso... Eu vejo a televiso e penso. Eu no gostaria de estar ali. [...] No tem nada de fico legal... Isso uma pena, uma pena... Eu tenho vergonha de falar aqueles textos de novela hoje em dia, sabe? Um texto do Walcyr Carrasco... Glria Perez, eu no vou falar aquilo, eu tenho vergonha, o texto muito ruim. [...]32
Glria Perez e Walcyr Carrasco, exemplos citados por Bortolotto, so
escritores que atualmente escrevem novelas, entre outros trabalhos, para a Rede
Globo de Televiso, grande veculo de comunicao em massa. O tom categrico de
Bortolotto, expresso pela sua opinio, mostra que o autor no exclui a possibilidades
de trabalhar com uma mdia de massas, no entanto, no d o brao a torcer em
relao ao seu gosto e liberdade criativa, realizando uma crtica contumaz ao
contedo da televiso aberta no Brasil, principalmente em relao teledramaturgia.
Apesar de no atingir um pblico abrangente, a obra de Mrio Bortolotto
possui um pblico fiel. O pblico de sua dramaturgia lota as pequenas salas de
teatro em que se apresentam suas montagens. Assim, a configurao do trabalho
atual de Mrio Bortolotto parece mesmo se esquivar do que se convencionou
chamar de mercado de consumo. Seu pblico majoritariamente formado por
pessoas que buscam um formato de cultura alternativo ao que vinculado nos
grandes meios de comunicao em massa. Existem ainda aqueles que ficam
conhecendo o seu trabalho buscando despretensiosamente uma alternativa de
entretenimento no centro de So Paulo.
Indubitavelmente, a Praa Roosevelt responsvel por integrar o teatro
vida noturna da cidade de So Paulo. Ela se tornou ponto de encontro de artistas,
entre eles atores, msicos, poetas, dramaturgos e diretores. Hoje, smbolo da
efervescncia cultural da noite paulistana, a emblemtica Praa Roosevelt, como j
falamos, foi famosa por outras caractersticas, como a de ser abandonada e foco de
32 BORTOLOTTO, Mrio. Mrio Bortolotto no programa Saca-Rolha: entrevista. [2005]. So Paulo: PlayTV. Entrevista concedida a Marcelo Tas. (O trecho em questo tambm est disponvel no site You Tube). Disponvel em: Acesso em: 25 fev. 2009.
29
criminalidade. Isso mudou depois que o grupo de teatro chamado Os Styros se
mudou para a praa no ano 2000 e montou um negcio que alm de mudar os
rumos da praa, criou uma maneira dos grupos teatrais alternativos poderem
sobreviver sem a ajuda estatal: a abertura de bares no saguo da suas sedes. A
idia que antes buscava apenas acolher o pblico das peas encenadas pelo grupo,
se tornou a grande alternativa para obteno de recursos financeiros dos grupos
teatrais que esto instalados na regio da Praa Roosevelt.
O veterano Jos Celso Martinez Correa33 comenta que: "A partir dos Satyros,
a praa passou a reunir teatros e bares prximos uns aos outros, tornando-se um
lugar propcio ao encontro entre artistas e bomios. 34 Atualmente, existem sete
teatros na Roosevelt, e este o principal local de socializao de Mrio Bortolotto.
So nestes bares/teatros, entre um espetculo e outro, que o autor passa grande
parte do seu tempo, se relacionando com os indivduos que, segundo o prprio
autor, o influenciam nos seus processos criativos: As pessoas com quem encontro
e converso me inspiram.35
A obra de Mrio Bortolotto notadamente marcada pela sua experincia
histrico-social, aliada poderosamente s suas referncias culturais. Sua trajetria
pessoal e profissional atravessou de maneira prpria os peculiares anos 80. No
Brasil, foram anos marcados pela de abertura poltica36, expresso usada para
designar o processo de transio de um perodo de ditadura militar para uma
denominada ordem democrtica.
Na fala de Jotab Medeiros, um dos amigos de mais de 20 anos de Mrio
Bortolotto desde suas origens em Londrina, podemos ter uma idia dos elementos
que circulavam no universo social de Bortolotto. Conta Medeiros que:
Em junho de 1982, ramos majoritariamente monoglotas e estvamos comeando a vida exatamente no ponto em que o Brasil saa de uma ditadura. Em Londrina, naquela poca, ainda havia uns
33 Conhecido como Z Celso, nascido em Araraquara em So Paulo, em 30 de Maro de 1937, uma das personalidades mais importantes do teatro brasileiro, tendo destaque como um dos principais diretores, dramaturgos, atores e encenadores do Brasil. Seu trabalho, iniciado no final da dcada de 1950, se definiu na dcada de 1960 quando liderou o importante Teatro Oficina. 34 RINALDI, Gabriel; MELLO, Gabriela. Boemia, Ribalta e Cerveja. Revista Bravo! Editora Abril 2009. Disponvel em:< http://bravonline.abril.com.br/conteudo/teatroedanca/boemia-ribalta-cerveja-432304.shtml> Acesso em: 15 mai. 2009. 35 Idem. 36 Costuma-se referir ao processo ocorrido entre 1974 e 1985.
30
malucos que patrulhavam quem usava camiseta com smbolos imperialistas (um logotipo da Coca-Cola, uma etiqueta importada, uma Levis 501) - tinha at um sujeito que andava com uma tesoura pela universidade para cortar as etiquetas fora. Os melhores livros desbundados estavam fora de catlogo, e a gente os lia em cpias xerox que passavam de mo em mo: Parania, do Roberto Piva; Panamrica, do Jos Agrippino de Paula; Alegria Alegria, do Caetano Veloso; e Deus da Chuva e da Morte, de Jorge Mautner. No tnhamos Salinger como baliza.37
So experincias assim que permearam a vivncia de Mrio Bortolotto, ainda
em Londrina. Segundo o prprio autor, foram da seguinte maneira que os anos 80
que o moldaram:
A gente colocava um rock pra tocar e a noite nunca tinha
fim. Nenhum de ns trabalhava em um trampo convencional. Era uma opo nossa. Alis a gente no trabalhava. Apresentava alguma pea em algum lugar, tentava vender para alguma secretaria de cultura e era s. Quase nunca dava certo, mas quando a gente conseguia, pagava os aluguis atrasados e continuava vivendo na misria. Mas era assim que a gente tinha escolhido viver. Eu sempre escolhi o meu jeito de viver. E nunca vou deixar que digam que eu tenho que fazer de outro jeito. Posso at estar errado, mas so meus erros e ningum est pagando por eles. (...) E os anos 80 foram os grandes responsveis. Eu vivi a fase dos meus 20 anos nos tais 80. Ento foi ali que eu me moldei.38
Seus primeiros contatos com a dramaturgia, com a msica e com o estilo de
vida puramente outsider, claramente se deram ali. Temos aqui um importante
depoimento de Ademir Assuno (Pinduca), poeta e jornalista amigo de Bortolotto:
De repente aparece um cara magrelo da periferia da cidade com uma pea chamada Voc viu uma azeitona por a? Quase ningum deu bola. Mas o cara insistiu: veio com meia-noite um solo de sax na minha cabea, com uma tonalidade meio poltica, como era quase tudo em Londrina na poca, mas com personagens que no passavam duas frases sem dizer um palavro, usavam bluses de couro, ouviam rockn roll e cultivavam uma forte amizade.
37 MEDEIROS. Jotab. Jotab Medeiros escreve sobre Tanto Faz. Atire no Dramaturgo: Um Blog de Mrio Bortolotto, 16 jun. 2009. Disponvel em:< http://atirenodramaturgo.zip.net/arch2009-06-07_2009-06-13.html> Acesso em 23 jun. 2009. 38 BORTOLOTTO, Mrio. Aumenta que isso rock n roll. Atire no Dramaturgo: Um Blog de Mrio Bortolotto. 24 out. 2009. Disponvel em:
31
Pouca gente levava o cara a srio na cidade. Mas ele continuou insistindo. Apareceu dois ou trs anos depois com Feliz Natal, Charles Bukovski. Algumas pessoas comearam a perceber que era um cara diferente. Um cara que no estudava na UEL. Um cara que, em vez de entrar no Delta ou no Proteu, preferia encenar suas prprias peas, com uma precariedade absurda, sem cenrios, sem patrocnios, sem porra nenhuma, a no ser atores no palco, luzes e uma boa trilha sonora. Um cara que no falava de Brecht e Nelson Rodrigues, mas de Charles Bukovski. 39
Delta e Proteu so grupos teatrais tradicionais em Londrina. No relato de
Pinduca, notamos as escolhas de Bortolotto ainda no incio de sua carreira,
preterindo textos mais tradicionais, diversas vezes escolhidos pelas companhias
teatrais famosas que, entre outras caractersticas, eram compostas por alunos da
Universidade Estadual de Londrina. No se enquadrando, Bortolotto prefere se virar
como pode, apresentando sua arte da maneira que lhe possvel e ignorando as
tendncias que apontariam uma forma teatral estabelecida.
Desde sua origem, Mrio Bortolotto deixa suas impresses mais pessoais
nas suas obras, demonstrando claramente as suas mais variadas formas de
expresso artstica, abstraindo sua realidade histrica e scio-cultural. Ao dar vida a
seus personagens margem, Bortolotto d voz a uma coletividade por meio de um
indivduo que cria arte, um fazer poltico, ora despreocupado, cujas aspiraes mais
genunas so originrias de suas experincias e reflexes enquanto sujeito que ousa
discutir com a sociedade temas que a incomoda, mas que esto longe de serem
superados como problemas. Mrio Bortolotto no o nico a dizer: "Esse no o
meu mundo, eu s vivo nele".
39 ASSUNO, Ademir. As coisas no surgem do nada, maluco. ESPELUNCA - blogue de ademir assuno. 15 de Maio de 2005. Disponvel em http://zonabranca.blog.uol.com.br/arch2004-05-09_2004-05-15.html Acesso em 20/05/2008. Grifo do autor
32
Captulo II
NOSSA VIDA NO VALE UM CHEVROLET: AS IMPRESSES DE UMA
POCA NOS SEUS INDIVDUOS
[...] Eu gosto de escrever sobre pessoas comuns, mas [...] so pessoas que andam do outro lado da rua, n cara, no so as pessoas que andam do lado de c assim, andam dali. As pessoas ficam chamando de excludos, eu no sei se so exatamente excludos, eu acho que eles optam por ficarem excludos numa sociedade que eles no aceitam. E eu acho que sou meio assim tambm...
(Mrio Bortolotto)
33
Escrita em 1990, Nossa Vida No Vale um Chevrolet foi encenada pela
primeira vez no mesmo ano em 30 de maro - no teatro Zaqueu de Melo na cidade
de Londrina (PR). Depois foi remontada em Curitiba, em 1993, com direo do Paulo
Friebe, com Bortolotto no elenco. Em 2000, para fazer parte da I Mostra Cemitrio
de Automveis, Bortolotto montou a pea no Poro do Centro Cultural de So Paulo
- montagem que deu o prmio Shell ao dramaturgo e que depois passou por
festivais como o Rio Cena, o Porto Alegre em Cena e o Festival de Belo Horizonte e,
posteriormente agosto de 2008 , montada no Rio de Janeiro. Nossa Vida no
Vale um Chevrolet conquista aos poucos a platia, com cenas e personagens entre
o pattico e o melanclico.40
A pea ainda teve adaptao para o cinema filmada pelo diretor Reinaldo
Pinheiro e lanada nos cinemas brasileiros em agosto de 2008. O filme, denominado
Nossa Vida No Cabe num Opala por imposies da fabricante de carros General
Motors - teve a primeira verso do roteiro feita por Mrio Bortolotto, no entanto, a
verso definitiva foi a do roteirista Di Moretti, cujo trabalho no agradou nem um
pouco autor do texto original, gerando polmica: A parada a seguinte. O cara (Di
Moretti) escreveu um roteiro sofrvel a partir do meu texto Nossa Vida no vale um
Chevrolet. Eu tenho vergonha de ler o roteiro dele.41
Na mesma poca da estria do filme nos cinemas, Mrio Bortolotto e o grupo
Cemitrio de Automveis remontaram42 Nossa Vida No Vale um Chevrolet, que
propiciou a todos, crticos e espectadores, a oportunidade de apreciar a ambos, e
fazerem suas inevitveis comparaes. Foram quatro apresentaes no Espao dos
Parlapates (um dos teatros que esto instalados na Praa Roosevelt). A pea
entrou novamente em cartaz, ainda com a direo de Mrio Bortolotto, nos ltimos
sbados do ano de 2008, sempre no horrio alternativo da meia-noite. O texto de
40 Bortolotto equilibra o pattico e o melanclico. Estado, 30 nov. 2000 - Online: Disponvel em Acesso em 23 julh. 2008. 41 BORTOLOTTO, Mrio. Nossa Vida No Cabe Num Opala Melhor Roteiro?. Atire no Dramaturgo Um Blog de Mrio Bortolotto. 19 abr. 2008. Disponvel em: . Grifo do autor. 42 No dia 01 de Agosto de 2008 e esta montagem teve apenas quatro apresentaes (dias 01, 08, 15 e 22 de Agosto)
34
Nossa Vida no Vale um Chevrolet teve tal repercusso que o mesmo chegou a ser
traduzido e publicado na Frana43.
Como grande parte das obras de Bortolotto, Nossa Vida No Vale um
Chevrolet se passa em um universo urbano decadente retratando indivduos
incomuns em uma sociedade que supostamente os renega. As personagens so:
Monk, Lupa, Slide, Magali, Guto, Suruba, Love e Silvia. So personagens que
aparentemente no expressam qualquer sinal de profundidade psicolgica,
podendo-se tom-los por personagens esteretipos. Mas no desenrolar da trama,
percebemos que se trata de personagens com alto grau de complexidade, cada um
tendo que lidar com seus prprios fantasmas. A pea inicia-se numa aparente
atmosfera de curtio e felicidade, onde esto presentes, numa cena beira de uma
piscina, as personagens Guto, Love, Suruba e Magali. No espetculo, marcante a
ausncia de elementos cenogrficos no palco, exceto por alguns itens portteis, o
que, alm de reduzir substancialmente o custo de sua produo, privilegia o vazio
em cena e exige mais da capacidade imaginativa do seu pblico. Alm disso,
importantssimo o trabalho da sonoplastia e iluminao que tambm so compostos
pelo prprio autor.
Nas primeiras falas j notamos o tom descontrado e bem-humorado que h
na narrativa de Mrio Bortolotto que, a partir das falas descompromissadas das
personagens em cena, faz o desenho de cada uma e apresenta gradativamente as
suas caractersticas e papis na trama. Magali, a irm dos ladres de carros da
famlia Castilho, responde a uma indagao de Love sobre o boato de que ela teria
catalogadas todas as suas relaes amorosas em uma caderneta:
MAGALI: Nome, idade, endereo... SURUBA: Preferncias sexuais, marca de preservativo usado
na ocasio... LOVE: Como que voc t sabendo, Suruba? MAGALI: Chute. Ele no tem a menor chance. Eu s catalogo
celebridades.44
43 Notre vie ne vaut pas une chevrolet. diteur: Les Solitaires Intempestifs. Collection: La mousson Dte. 2005. 44 BORTOLOTTO, Mrio. Nossa Vida no Vale um Chevrolet. So Paulo: Via Lettera, 2008, p7.
35
A seguir, Suruba, que uma espcie de empregado ou capanga de Guto,
provoca Love com escrnio dizendo: Danou, Love, no tem vez pra go-go boy
decadente no caderninho da Magali.45. Na seqncia, Guto, um empresrio de lutas
clandestinas, demonstra sua superioridade na seguinte indagao Love,
afirmando-se no que tange a relao de poder (que expresso na financeiramente e
na tenso potencialmente violenta que existe em relao personagem no decorrer
da estria):
GUTO: Conta pra gente, Love. Continua danando pelado
pra mulherada? LOVE: Pelado no, n, Guto. SURUBA: Essa eu queria ver. O Love de cuequinha
danando go-go. LOVE: A tua hora vai chegar, Suruba. Quando eu tiver na
pior, no vou ter o menor pudor de apelar para um clube gay.46
No fosse pelos assuntos apresentados nas falas das personagens, o mesmo
cenrio de informalidade e descontrao mais as provocaes notadamente infantis,
poderiam compor uma cena comum, uma paisagem de inocentes crianas se
descontraindo beira de uma piscina. Apesar de conter implicitamente uma aura
infantil, a acidez nos dilogos d continuidade na cena, at que, subitamente, essa
atmosfera quebrada por uma aura de seriedade ao saberem da notcia da morte
do pai de Magali. A seriedade, pressupondo espanto por causa do falecimento do
pai dos irmos Castilho, rompida com a declarao de Magali:
MAGALI: Tudo bem, H dias que no fazia um sol assim. O
velho nunca soube a hora certa de fazer as coisas.47
O trecho aqui citado no passa de uma nfima amostra do estilo de narrativa
de Mrio Bortolotto, de sua capacidade em dar vida aos seus personagens
incomuns. Na sequncia, temos uma breve cena do enterro do pai, que precede
outra onde os irmos se encontram numa forada reunio em famlia. As discusses
entre os irmos no poderiam cessar nem mediante ao trgico acontecimento. Em
toda reunio em famlia, assuntos em comum so suscitados, e aqui no seria
45Idem. 46Idem, p. 8. 47 Idem, p. 10.
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diferente, exceto pela forma com que composto o dilogo, mostrando que existem
feridas que ainda no cicatrizaram e que remetem ausncia da me, algo ainda
misterioso para o caula Slide:
SLIDE: Por que a me no tava l? LUPA: Ei, vocs ouviram isso? Ouviram o que o di menor
perguntou? SLIDE: Di menor, o cacete. J fiz dezoito. LUPA: Ok, ancio, pergunta de novo, vai. SLIDE: Por que a me no tava l: LUPA: Mas que porra de pergunta essa? MAGALI: Uma porra de uma pergunta. LUPA: Conversa que s uma pergunta, ele t provocando. SLIDE: No s uma pergunta. LUPA: To vendo s? To vendo s? Ele t confessando que
no s uma pergunta. Vem c, Matusalm, conta pro teu irmozinho aqui, h quanto tempo que voc no v a me?
MAGALI: A, Lupa, no vai comear com esse papo de famlia de novo, vai?
SLIDE: Eu no vejo a me... no vejo ela... eu no sei, cacete, no sei h quanto tempo... eu nem sequer lembro da me.
LUPA: Ento que porra de pergunta essa? MAGALI: T saindo fora. J banquei a boa filha demais por
hoje. LUPA: Acho legal tu puxar o carro mesmo, Magali. J deu no
saco. MAGALI: Puxar carro com vocs, irmzinho. Sou a ovelha
negra da famlia. (Sai.) SLIDE: A gente enterrou o pai, no enterrou? A me devia t
l, no devia? LUPA: Acontece que a me louca, a velha completamente
pirada, doidona. (Para Monk.) Diz pra ele, Monk, diz pra ele que a me muito doida.
MONK: Ela t num hospcio. LUPA: Ela t num hospcio. Voc ouviu isso? Num
hospcio.48
Bortolotto constri a narrativa com impressionante realismo, retratando com
afinidade o universo de uma famlia com muitos irmos e ainda d seu trato mais
autoral, compondo a situao familiar com os elementos prprios de sua fico,
como podemos observar pelas falas de suas personagens e pelo humor negro que
48 Idem, p.10-12.
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dialoga com o trgico. Esta dimenso trgica na desestruturao da famlia Castilho
pode ser sentida pelos seus dilogos, que sempre possuem uma carga intrnseca de
ressentimento e de revolta. A morte do pai, marco culminante que norteia as
relaes dos irmos na pea, leva as personagens a refletirem sobre seus mais
ntimos processos onde resultam na solido, sentimentos de incompreenso e
dvidas existenciais que so secretamente comportadas por detrs de suas
respectivas couraas, compostas pelas formas particulares que cada um buscou
construir suas personalidades perante a sociedade. Mas tudo isso no mostrado
na pea de maneira explcita, uma vez que seus personagens centrais no do o
brao a torcer sobre suas profundas inquietaes e fraquezas.
Apesar da viso de mundo e da maneira radical de cada um lidar com suas
questes pessoais, os membros remanescentes da famlia Castilho, ainda que de
forma deficiente uma vez que suas referncias familiares (pai ladro de carros,
me internada em hospital psiquitrico) , se esforam em manter os laos de
solidariedade entre irmos, mesmo que este esforo seja esvaziado de um sentido
consciente de famlia, e reforado por um estmulo tradicional de obrigao entre os
irmos como nica linha tnue que os separa da solido absoluta: Em vrios
momentos da pea, observamos maneiras controversas de preocupao e cuidado.
Abaixo, trecho da cena em que Slide preso por ter sido flagrado pela polcia ao
tentar roubar um carro, Monk e Lupa o visitam na cadeia:
LUPA: Porra, Slide, o que que voc andou aprontando dessa vez?
SLIDE: No tava fazendo nada no. LUPA: Puta que nos pariu, Slide, levanta a pra falar com a
gente, vai. SLIDE: No tava fazendo nada, no. LUPA: Levanta a, Slide, caralho. MONK: Levanta a, Slide, a gente vai ver se d pra pagar sua
fiana. SLIDE (levanta.): T levantado. LUPA: Olha a, moleque, to de saco cheio de livrar a tua cara. SLIDE: No tava fazendo nada, no. LUPA: No vem com essa. No vem com essa. Sabe quanto
que vai custar pra gente essa tua fiana? Sabe quanto? Dois. Vamo ter que puxar dois carango pro Evangelista, dois.
SLIDE: No tava fazendo nada, enfia no cu, no tava fazendo nada, enfia no cu.
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LUPA: No tava fazendo nada. SLIDE: Tava s puxando um ronco na praa, os homi
encostaram e j foram me inquirindo, pedindo documento. LUPA: A gente puxa carro desde pivete e nunca caiu em
cana, o otrio aqui puxa um ronco, os homi janta ele. A gente j t sabendo, tu tava tentando puxar um Caravan.
SLIDE: Vocs nunca deixam eu ir junto. LUPA: Por que tu otrio, no leva jeito nem pra
trombadinha, a maior bandeira, Marco, cabao, laranja. Ia roubar quem? Quem?
SLIDE: (para Monk.): E voc? No vai dizer nada? MONK: Puta que pariu, hein, Slide? LUPA: Nos pariu, nos pariu, porra. MONK: A gente vai levantar uma grana pra tirar voc da.
(Para Lupa.) E nos pariu porra nenhuma que voc adotado. (E sai.) LUPA: Adotado seu futuro, filho da puta. Volta aqui, Monk.
(Vai atrs dele.)49
Apesar dos conflitos e da discusso repleta de traos cmicos, a cena
de dois irmos ajudando um terceiro, e este, reagindo com inibio e revolta por
ser extremamente inexperiente e inbil para o ofcio dos dois irmos mais velhos, se
defende tentando justificar sua inaptido e se protege das broncas com respostas
agressivas. No fosse o cenrio (a priso) e as razes do dilogo (roubo de carros),
esta seria uma cena comum nos cenrios casuais das de qualquer famlia.
Observemos que h uma hierarquia que rege as aes dos irmos, onde o
lder Monk, falando somente o necessrio, d a palavra final. Existem ali laos
afetivos que por sua vez so exprimidos de acordo com a vivncia e psicologia das
personagens, alm de suas experincias prprias enquanto membros de uma
famlia.
Enquanto a pea se desenrola, persiste a presena indireta do falecido pai
Castilho. As aes das personagens so regidas por este fantasma que insiste em
assombrar o imaginrio dos irmos na trama.
A partir do campo ficcional, Bortolotto prope em Nossa Vida No Vale um
Chevrolet uma reflexo por parte do pblico perante questes comuns ali
presenciadas e que so experimentadas pelas personagens, prprias de seu
universo urbano, decadente, palco da solido que existe mesmo na multido das
grandes cidades.
49 Idem, p. 28-30.
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As personagens de Mrio Bortolotto no so retratadas como meras vtimas
de seu tempo. Pelo contrrio, elas buscam seus prprios meios de vida de acordo
com seu discernimento. Existe a uma crtica ao indivduo comum que tem como
motivao vital ser aceito dessa forma incorporando os discursos do progresso
maneira compreendida pelas sociedades ocidentais.
No o simples fato de serem considerados excludos socialmente que
justifica a escolha de Mrio Bortolotto por tipos outsiders. O autor declarou em vrias
entrevistas que no considera escrever sobre excludos, mas escreve sobre
indivduos que, de certa forma, se afastam de um padro social, rejeitando assim a
sociedade qual esto imersos. De forma franca, Bortolotto dispara:
Numa sociedade onde qualquer babaca quer virar
celebridade, a figura do ningum sempre me pareceu o melhor modo de vida. E aqui no vai nenhuma pretenso estilosa do tipo legal ser diferente. Porra nenhuma. O que eu penso que simplesmente ningum precisa ser igual.50
Ao apreciarmos sua obra, notamos que suas personagens no escapam de
viver as crises que os sujeitos contemporneos tambm so interpelados a
atravessar, algo que comum tanto aos grupos retratados por Bortolotto quanto ao
outros indivduos sociais comuns. Cornelius Castoriadis prope discutir um
fenmeno que ele chama de crise no processo de identificao onde as
significaes que estruturam a sociedade contempornea esto em crise. Segundo
este autor:
o papel dessas significaes imaginrias sociais [...] triplo.
So elas que estruturam as representaes do mundo em geral, sem as quais no pode haver ser humano. Essas estruturas so, a cada vez, especficas: nosso mundo no o mundo grego antigo, e as rvores que estamos vendo atravs das janelas no abrigam ninfas, trata-se simplesmente de madeira, esta a construo do mundo moderno. Em segundo lugar, elas designam as finalidades da ao, impem o que est por fazer e por no fazer, o que deve ou no ser feito: preciso adorar a Deus ou ento preciso acumular foras produtivas ao passo que nenhuma lei natural ou biolgica, ou mesmo psquica, afirma que necessrio adorar a Deus ou acumular
50 BORTOLOTTO, Mrio. Outsider: Quem no se enquadra. Digestivo Cultural, 09 ago. 2004.
40
foras produtivas. E em terceiro lugar, [...] elas estabelecem os tipos de efeitos caractersticos de uma sociedade51
Os indivduos que encontramos na obra de Mrio Bortolotto, se vem
inseridos nesta crise no tocante assimilao dos seus sentidos. Possuem nas suas
psiques os dilemas sobre o que realmente vlido e que realmente importa a ser
vivido. Desta maneira, o texto de Mrio Bortolotto, ao realizar crticas ao modo de
vida da sociedade contempornea, contemplando temas comuns do cotidiano e
podendo ser lido at com problemas existencialistas, pode ser considerado um texto
poltico. pertinente esclarecermos a noo de texto poltico, como nos esclarece
Patriota:
A denominao texto poltico comumente utilizada para
designar uma produo teatral vinculada a um iderio poltico ou uma temtica social fortemente destacada. No sculo XIX, os textos teatrais que procuravam levar para o palco problemas sociais encontraram na esttica naturalista uma das bases para a realizao do seu intento Isto se deu em uma sociedade que ao reestruturar as relaes sociais no mbito do espetculo e de outras manifestaes artsticas, ampliou a noo de pblico, porque o teatro deixa de ser destinado a um grupo para, potencialmente, atingir toda a sociedade52
Partindo deste raciocnio, a obra de Mrio Bortolotto possui em si um grande
potencial poltico, sem jamais panfletrio. Na trama de Nossa Vida No Vale um
Chevrolet, identificamos a crtica silenciosa de Monk, que mostra ser o que tem mais
conscincia de sua situao na estria, se afundando na tristeza de sentir que no
pode fazer nada para mudar o destino dos irmos, ao mesmo tempo em que ele
prprio no pode ou no quer mudar o prprio destino, recusando-se a viver uma
vida vazia de sentidos numa sociedade em que ele no acredita. Lupa sente as
mesmas problemticas de Monk, mas, ao contrrio do irmo que racional, lida com
seus traumas e inadequaes de maneira mais sentimental, protegido em uma
roupagem de embrutecimento, mas com emoes que o consomem. Slide pode ser
51 CASTORIADIS, Cornelius. A Ascenso da insignificncia. Trad. Regina Vasconcellos. So Paulo: Paz e Terra, 2002. p. 148. 52 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha um dramaturgo no corao de seu tempo. So Paulo: Hucitec, 1999. p. 18.
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considerado o irmo que mais sofre com as confuses geradas pela carncia de
referncias paternas, maternas e fraternas. Sua maior aspirao na vida em vir a
ser um ladro de carros como o pai e os dois irmos.
O grito silencioso das personagens de Mrio Bortolotto atinge o pblico
convidando-o a pensar sobre questes que passam despercebidas no cotidiano das
grandes cidades. Seus textos mostram que seres considerados at como caricaturas
de problemas sociais, tm profundidade e questes complexas como qualquer ser
humano. O sentimento de orfandade das personagens de Nossa Vida no Vale um
Chevrolet chega a nos atingir na forma de culpa pelo abandono. A presena oculta
do pai Castilho pode ser a da prpria platia que assiste os dramas das
personagens, mas esta uma idia que fica no ar, sem uma denotao explicita por
parte do autor. A solido das personagens realada com o fato de que todas elas
se perdem nas prprias iluses e expectativas.
No decorrer da estria, coincidentemente, os trs se relacionam, cada um ao
seu momento, com Slvia, uma mulher solitria que encontram em um buteco. Esta
personagem talvez seja a que mais exprima a crtica do autor em relao
fugacidade das relaes humanas contemporneas, referente solido dos centros
urbanos.
Silvia surpreende ao repetir, em todas as suas cenas na pea, a mesma fala a
cada um dos trs irmos ao receb-los em sua casa. Bortolotto genial na
construo dos dilogos onde, de acordo com o irmo que est no papel de
interlocutor de Silvia, as suas falas remetem personalidade de cada um dos trs
irmos. O primeiro a se relacionar com Silvia Monk, que no a considera ningum
importante, a tratando apenas como um encontro de uma noite, abandonando-a logo
em seguida. Lupa, demonstrando intenes bem mais romnticas e duradouras com
a moa, rejeitado (percebe-se claramente a influencia da personalidade de Monk
na pele de Silvia neste momento), e Slide, ao se encontrar com a mulher, mesmo
sendo alertado por Monk sobre os perigos das mulheres uma aluso drogas
pesadas aceita o pedido de Silvia de viver com ela (aqui sendo claramente
influenciada pelo contato com Lupa).
Quando leva o fora de Slvia, Lupa questiona qual seria o problema com ele.
Em um desabafo, Silvia deixa cair sua mscara (ou estaria ela agindo como Monk?)
e com sinceridade declara:
42
SLVIA T bom, cara, eu vou dizer qual o problema. O
problema a hora do rush, o forno microondas estragar quando voc mais precisa dele, o problema os caras que vendem carns da felicidade, o problema os filmes que saem de cartaz justamente quando eu decido assistir, o problema o carro afogar no meio do trnsito, o problema, cara, a gente nunca ter com quem dividir o guarda-chuva.53
A indignao emocionada de Silvia perante as dificuldades da vida urbana,
culminando no fato de nunca ter com quem dividir o guarda-chuva exprime
claramente a sua solido. Aps cada encontro com cada um dos irmos, Silvia liga
para a me e distorce as informaes de seu novo pretendente, fazendo-o parecer
algum importante. Por exemplo, aps se encontrar com o caula Slide, uma pessoa
insegura, jovem, em crise de referncias pessoais, que logo admitiu para Silvia seu
fracasso profissional como ladro de carros e disse que faz lutas de rua para um
empresrio, Silvia diz para a me:
SILVIA: Claro, me... dessa vez vai dar tudo certo, ele um
bom rapaz,maduro, seguro, do tipo que sabe o que quer, me, no timo? D uma segurana pra gente, n? Ele empresrio, me, tima profisso, n? T, me... eu t muito feliz.54
A me de Silvia, que no aparece e no tem falas as cenas das ligaes
mostram apenas a atriz que atua como Silvia e um telefone representaria a ligao
de Silvia com sua famlia original provavelmente do interior , uma forma da
mesma se equilibrar diante da solido em que se encontra e ao mesmo tempo de
contabilizar os seus sucessos (neste caso na esfera dos relacionamentos
amorosos) com a me. O que temos nestas falas, escritas com certo tom de
comicidade por Bortolotto, relato pouco verdadeiro e ideal de uma mulher frustrada
praticamente annima no meio de uma grande cidade.
A formao histrica dos grandes centros urbanos privilegia a fragmentao
do sujeito e mais ainda, seu processo de individualizao, uma vez que as
instituies que garantem sua proteo se tornam cada vez mais afastadas da
53 BORTOLOTTO, Mrio. Op. cit., p 49. 54 BORTOLOTTO, Mrio. Op. cit., p 60.
43
esfera da famlia, ficando sobre uma suposta tutela de um Estado centralizado.
Segundo a explicao de Norbert Elias,
um nmero cada vez menor de funes relativamente
exercidas por pequenos grupos, como a tribo, a parquia, o feudo, a guilda ou o Estado, vai sendo transferido para Estados altamente centralizados e cada vez mais urbanizados. medida que essa transferncia avana as pessoas isoladas, uma vez adultas, deixam mais e mais para trs os grupos locais prximos, baseados na consanginidade. A coeso dos grupos rompe-se medida que perdem suas funes protetoras e de controle. E, nas sociedades estatais maiores, centralizadas e urbanizadas, o indivduo tem que batalhar muito mais por si. A mobilidade das pessoas no sentido espacial e social aumenta. Seu envolvimento com a famlia, o grupo de parentesco, a comunidade local e outros grupos dessa natureza, antes inescapvel pela vida inteira, v-se reduzido. Elas tm menos necessidade de adaptar seu comportamento, metas e ideais vida de tais grupos, ou de se identificar automaticamente com eles. 55
As personagens de Nossa Vida no Vale um Chervrolet vivenciam este
processo de desligamento com sua consanginidade. No entanto, algo ainda os
interpela para manter suas ligaes conectadas. Podemos arriscar aqui que eles
assim o fazem por causa de seus sucessivos enganos e fracassos que, numa
complexa contradio, os empurra para a solido e uma tendncia maior de
isolamento e, por outro lado, os fazem cedem para o magnetismo de valores
tradicionais e familiares que os ancoram dando uma margem de equilbrio que
aparentemente os fazem suportar a vida que levam. So indivduos marginais, mas
suas questes superam seus supostos esteretipos superficiais.
Com uma escrita que remete ao que a sua sensibilidade permite destacar,
Mrio Bortolotto imprime em suas obras as inquietaes que interpelam os
indivduos contemporneos e, por meio de seus outsiders, o autor consegue
expressar sua crtica em relao sociedade. De forma consciente ou no, os
outsiders se incomodam com as leis socialmente acordadas e as burlam, s vezes
exageradamente, outras vezes apenas para introduzir regras novas. Os irmos
Castilho podem ser considerados representantes deste modo de viver, mas pode ser
tambm que o fazem simplesmente por no terem outras aspiraes ou motivaes.
55 ELIAS, Norbert. A Sociedade dos Indivduos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1994, p 102.
44
Como j mostramos neste trabalho, estas inquietaes, expressas na obra de
Bortolotto, podem ser observadas tambm nos artistas que so referncias para o
autor, como os beats, e sua literatura:
A obra dramtica de Mrio Bortolotto tem bvias influncias
da literatura em permanente confronto com o sistema, de um Kerouac e, mais ainda, de um Bukowski. Na maneira de abordagem, aos problemas e nos fluentes dilogos, todavia, prevalecem a cor local, e os estigmas da classe mdia brasileira, sufocada em angstias, medos e carncias. Numa linguagem teatral contempornea, Bortolotto v o inconformismo dos filhos da burguesia em face do sistema burgus, que marcou a arte nos anos 50 e 60. E revela a atualidade desse inconformismo seminal e transformador"56
Com alvo na classe mdia brasileira, o ttulo Nossa Vida No Vale um
Chevrolet apela para um smbolo de status: possuir um carro no Brasil nas dcadas
de 70 e 80 - e ainda nos dias atuais. Mrio Bortolotto combina em sua dramaturgia
estes smbolos que esto difundidos na cultura popular, por meio das propagandas e
da grande mdia nacional, com os elementos da cultura beat que possuem potencial
questionador, no reverenciando valores que acabam sendo socialmente impostos
em uma lgica que acabou se tornando natural para a grande maioria dos indivduos
na sociedade contempornea. significativo o fato dos irmos Castilho roubarem
carros fora de linha, como se partissem em direo conquista de um ideal burgus
j gasto e decadente. Na pea aqui estudada, o cotidiano das personagens, seus
conflitos e interesses vo revelando, paulatinamente, suas dificuldades na
assimilao de smbolos que interpelam os indivduos contemporneos, no tendo
liberdade de ao ao negar o materialismo, o consumismo, a necessidade
financeira, a falta de oportunidades. Sobrevivem da maneira mais sincera possvel a
um estilo de vida que sobrepe um mar de angstias em um labirinto de relaes
humanas cada vez mais vazias.
O final da pea dramtico, onde, numa luta de rua com apostas
clandestinas, Monk enfrenta Slide e termina matando-o, o que parece ter sido
acidental, mas fica a dvida sobre as reais intenes de Monk ao ver seu irmo
caula adentrando num destino sem volta ao se relacionar com um mundo de crimes
56 ARAP, Fauzi. Depoimento sobre Mrio Bortolotto. In: SEIS peas de Mrio Bortolotto. So Paulo: s.e, 1997, p.5.
45
liderado por Guto que, de certa forma, possui a famlia Castilho refm: A me dos
quatro irmos est internada num hospcio que custeado por Guto e este faz a
nica ameaa que abala Monk, que se este no lutasse, Guto iria providenciar que
sua me ficasse solta nas ruas. Monk aceita na hora e o resultado no poderia ser
mais trgico.
A pea, iniciada com o velrio do pai Castilho, termina com o velrio do
caula Slide. Mas a cena final de Silvia, repetindo a mesma fala dita aos trs
irmos para um quarto indivduo que no aparece. Sua voz em monlogo termina a
pea, denotando a sua solido que parece se estabelecer em um ciclo que se
renova.
]
46
Captulo III
O sujeito Mrio Bortolotto no palco da Histria
47
Estudando as referencias de Mrio Bortolotto colocando-as em contraponto
com os temas abordados em suas peas e produes de outras linguagens,
podemos compreender que questes surgidas de processos ocorridos ainda nas
dcadas de 50 e 60 e que estavam aparentemente superadas ainda se encontram
presentes em tempos contemporneos e podem ter se tornado elementos para,
arrisco aqui, uma situao coletiva repleta de insegurana e ausncia de
estabilidade e pertencimento. Mediante esta constatao, nos referimos aqui
cultura de massas que, com o advento da televiso no Brasil, inaugura um fator
extremamente potente de difuso de informaes e de cultura popular moderna
brasileira. Em nosso pas, a televiso surge sob smbolos brasileiros como o ndio
que estampava o logotipo da primeira emissora, a TV Tupi, que s existiu mediante
a importao de materiais dos Estados Unidos, uma vez que no eram produzidos
equipamentos para televiso no Brasil. At o surgimento do vdeo - tape (VT), a
televiso era feita de improvisos e aventuras ao vivo. Com o VT, na dcada de 60, o
horrio nobre da televiso brasileira era dominado por seriados estrangeiros e, com
o desenvolvimento das possibilidades tcnicas, se desenvolvem tambm as
narrativas e abordagens textuais e surgem as primeiras novelas, com o objetivo de
dar televiso mais aceitao nacional com temticas urbanas e su