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  1 A inserção da pesquisa-ação no contexto da extensão universitária Michel Thiollent Coppe/UFRJ RESUMO Este texto aborda a questão do uso das metodologias participativas e, especialmente da pesquisa-ação, no contexto da extensão universitária em universidades brasileiras. Norteados por essas metodologias, os projetos de extensão apre sentam aspe ctos investiga tivos e form ativos e podem adquir ir dimensões participativas , críticas, reflexivas e emancipatór ias. Tal orientação é  pensada no atual quadro das crises e transform ações da sociedade e das universidades. Palavras chave: pesquisa ação, extensão universitária, participação. 1. INTRODUÇÃO  Após várias décadas de discussã o sobre a pesquisa-ação e de experiências no Brasil, observa-se que a trajetória desta tendência de pesquisa segue caminhos às vezes contraditórios em função de obstáculos ideológicos ou institucionais e de novas oportunidades de aplicação. Observa-se, também, que a pesquisa-ação que, ontem, era sobretudo conhecida por profissionais das áreas de educação, serviço social, extensão rural, é hoje bastante difundida em áreas de medicina social, desenvolvimento local e sustentável, cooperativismo e gestão participativa. À margem das políticas oficiais em matéria de política científica e tecnológica, as atividades de apoio em projetos sociais e solidários, tanto no contexto das ONGs como no da extensão universitária, têm aberto novas possibilidades de desenvolvimento da metodologia participativa em geral e, em particular, da metodologia de pesquisa-ação. Neste trabalho, apresentaremos alguns princípios norteando o uso dessas metodologias no contexto específico da extensão universitária. Com intuito de discutir os fundamentos teórico-metodológicos das práticas de extensão universitária, este texto apresenta aspectos de uma proposta participativa segundo a qual o conhecimento não é produzido para ser em seguida difundido, como na convencional seqüência pesquisa/extensão. Tanto os projetos de pesquisa como os de extensão são vistos como construção social de conhecimento, com a participação de atores diferenciados. Voltados para a realização de objetivos concretos, tais projetos podem ser estruturados como projetos de pesquisa-ação. Nessa linha, a metodologia e as ferramentas de trabalho em uso possuem dimensões participativa, crítica e reflexiva, contribuído para fortalecer o propósito emancipatório dos projetos universitários. Estamos entrando em um novo período histórico, com mudanças previsíveis e imprevisíveis, aberto a uma nova esperança de vida cultural nas universidades.

Thiollent Michel - A Inserção Da Pesquisa-Ação No Contexto Da Extensão Universitária

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A pesquisa ação e sua metodologia investigativa acadêmica

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    A insero da pesquisa-ao no contexto da extenso universitria

    Michel Thiollent Coppe/UFRJ

    RESUMO Este texto aborda a questo do uso das metodologias participativas e, especialmente da pesquisa-ao, no contexto da extenso universitria em universidades brasileiras. Norteados por essas metodologias, os projetos de extenso apresentam aspectos investigativos e formativos e podem adquirir dimenses participativas, crticas, reflexivas e emancipatrias. Tal orientao pensada no atual quadro das crises e transformaes da sociedade e das universidades. Palavras chave: pesquisa ao, extenso universitria, participao. 1. INTRODUO Aps vrias dcadas de discusso sobre a pesquisa-ao e de experincias no Brasil, observa-se que a trajetria desta tendncia de pesquisa segue caminhos s vezes contraditrios em funo de obstculos ideolgicos ou institucionais e de novas oportunidades de aplicao. Observa-se, tambm, que a pesquisa-ao que, ontem, era sobretudo conhecida por profissionais das reas de educao, servio social, extenso rural, hoje bastante difundida em reas de medicina social, desenvolvimento local e sustentvel, cooperativismo e gesto participativa. margem das polticas oficiais em matria de poltica cientfica e tecnolgica, as atividades de apoio em projetos sociais e solidrios, tanto no contexto das ONGs como no da extenso universitria, tm aberto novas possibilidades de desenvolvimento da metodologia participativa em geral e, em particular, da metodologia de pesquisa-ao. Neste trabalho, apresentaremos alguns princpios norteando o uso dessas metodologias no contexto especfico da extenso universitria. Com intuito de discutir os fundamentos terico-metodolgicos das prticas de extenso universitria, este texto apresenta aspectos de uma proposta participativa segundo a qual o conhecimento no produzido para ser em seguida difundido, como na convencional seqncia pesquisa/extenso. Tanto os projetos de pesquisa como os de extenso so vistos como construo social de conhecimento, com a participao de atores diferenciados. Voltados para a realizao de objetivos concretos, tais projetos podem ser estruturados como projetos de pesquisa-ao. Nessa linha, a metodologia e as ferramentas de trabalho em uso possuem dimenses participativa, crtica e reflexiva, contribudo para fortalecer o propsito emancipatrio dos projetos universitrios. Estamos entrando em um novo perodo histrico, com mudanas previsveis e imprevisveis, aberto a uma nova esperana de vida cultural nas universidades.

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    Em vez de ser menosprezada, como foi o caso nos ltimos anos, a universidade pblica poder sair fortalecida e dar novas contribuies em ensino, pesquisa e extenso, com objetivos sociais mobilizadores. Nesse novo contexto, acredita-se que os projetos de extenso tero uma importncia sempre renovada. Tendo em mente esse desafio, sob forma de rpidas anotaes, abordaremos os seguintes aspectos:

    A produo de conhecimento e a extenso como construo social.

    O papel da metodologia participativa e de pesquisa-ao

    As dimenses crtica e reflexiva.

    O delineamento de um propsito emancipatrio para a extenso. 2. CONSTRUO SOCIAL A concepo corrente em matria de produo e difuso de conhecimento, que estabelece uma seqncia unilateral entre pesquisa e extenso, pode ser substituda com grande vantagem por um modelo de construo social do conhecimento. Sob forma de pesquisa, a produo de conhecimento uma construo que responde a diferentes demandas e que ocorre com interao entre diferentes agentes, especialistas, laboratrios, academias, firmas, estados, etc. Dependendo das reas (cincias duras ou cincias sociais e humanas, fundamentais ou aplicadas) e dos interesses que esto em jogo, os arranjos sociais para a construo do conhecimento variam de modo considervel, em termos de poder, recursos e compromissos. Isso visvel quando se comparam projetos em reas to diferentes como fsica nuclear, engenharia de petrleo, administrao, letras, servio social, enfermagem, etc. Por sua vez, a extenso tambm uma construo ou (re) construo de conhecimento, envolvendo, alm dos universitrios, atores e pblicos com culturas, interesses, nveis de educao diferenciados. A construo extensionista no est limitada aos pares, abrange uma grande diversidade de pblicos externos com os quais preciso estabelecer uma interlocuo para identificar problemas, informar, capacitar e propor solues. Com nfase na construo social, a metodologia de pesquisa-ao pode abranger tanto a pesquisa quanto a extenso, tanto o momento da produo como o da difuso, e isso em qualquer rea de conhecimento, porm, com mais pertinncia em reas humanas aplicadas (educao, gesto, comunicao, servio social, desenvolvimento local, tecnologia apropriada, etc.), isto , em todas as reas onde o conhecimento possa ser efetivamente mobilizado, orientado para analisar problemas reais e para buscar solues, tendo em vista transformaes teis para a populao (a curto ou mdio prazo). Esse pressuposto no visa a descaracterizar outras concepes ou outros tipos de conhecimento, de retorno social menos evidente ou menos imediato, mas

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    simplesmente trata-se de firmar uma opo. Nas reas em que o objetivo principal se volta para a prtica, essa opo estabelece que a extenso no deva ser vista como simples divulgao de informao destinada a um pblico composto de "receptores" individualizados e passivos. Em suma, questionvel a seqncia produo/difuso, pois para difundir algo - isto , fazer extenso - seria necessrio primeiro t-lo produzido. Primeiro produzir, para depois difundir o que foi produzido em laboratrio, em muitos casos, isso leva a um equvoco, por vrios motivos: a) O que se produz sem se ter em vista as condies de uso, em geral, de pouca valia na prtica, e ficar sepultado em revistas de pouca circulao. b) O conhecimento fundamental e boa parte dos produtos da pesquisa em cincia aplicada raramente so aplicados. A lgica de seu desenvolvimento (com publicaes e captao de fundos) diferente de uma atividade de extenso baseada em diagnstico das necessidades de atores em situaes reais, com permanente busca de sustentao. c) O conhecimento necessrio para muitos projetos de extenso compartilhado entre atores com vises e habilidades diferenciadas que tornariam inoperante a transferncia de cima para baixo. d) O conhecimento requerido pela extenso co-construdo e passa pelo crivo da "reflexo-na-ao" (conceito de Donald Schn). Levando em conta essa viso de construo social do conhecimento, os projetos de extenso adquiriro maior adequao aos objetivos de transformao social. A construo do conhecimento ocorre em cada tipo de atividade dos projetos de extenso: (a) nos diagnsticos e pesquisas efetuadas em comunidades ou instituies; (b) nas aes formativas para membros dessas comunidades ou instituies; (c) nas aes formativas para alunos, professores e tcnico-administrativos da universidade; (d) nas aes informativas ou mobilizadoras em pblicos mais amplos; e) nas aes concebidas e planejadas pelos prprios participantes a partir de sua identidade e de sua situao. 3. PARTICIPAO Objetivamente, a construo social de conhecimento pressupe uma interao e algum tipo de cooperao entre diversos atores. Uma vez reconhecido isso, podemos considerar que a metodologia de pesquisa e extenso adquire um carter participativo, inclusive no plano subjetivo. No dia-a-dia, a participao pode ser implcita e explcita. Com a metodologia apropriada ao contexto social, a participao explcita torna-se necessria.

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    Muita gente ainda tem medo da metodologia participativa, achando que, com esse adjetivo, ela se tornaria menos cientfica, ou mais exposta a manipulaes. Aps os avanos da pesquisa participante da dcada de 1980, no Brasil, observou-se um recuo na rea acadmica, mas, em compensao, as chamadas metodologias participativas ocuparam maior espao, a partir dos anos 90, nas reas de atuao de ONGs e da cooperao tcnica internacional, onde so objetos de sistematizao (Brose, 2001). No quadro das atividades de extenso universitria, os quatro Seminrios de Metodologia para Projetos de Extenso (SEMPE), organizados entre 1996 e 2001, revelaram o interesse de muitos universitrios em matria de metodologia participativa e de pesquisa-ao (Thiollent et al., 2000). As metodologias participativas tm adquirido maior aplicao em reas de educao e organizao, principalmente em pases anglo-saxnicos. (McTaggart, 1997). Ademais, conseguiram reconhecimento em certos organismos internacionais. Neste ltimo contexto, equipes de especialistas lidam de modo participativo com os stakeholders implicados em programas sociais, planos de desenvolvimento rural, local ou sustentvel, e em educao e gesto voltadas para o meio ambiente. A pesquisa-ao realizada em um espao de interlocuo onde os atores implicados participam na resoluo dos problemas, com conhecimentos diferenciados, propondo solues e aprendendo na ao. Nesse espao, os pesquisadores, extensionistas e consultores exercem um papel articulador e facilitador em contato com os interessados. Possveis manipulaes devem ficar sob controle da metodologia e da tica. Em um processo de pesquisa-ao, segundo Ernest Stringer, a participao mais efetiva quando:

    Possibilita significativo nvel e envolvimento. Capacita as pessoas na realizao de tarefas

    D apoio s pessoas para aprenderem a agir com autonomia.

    Fortalece planos e atividade que as pessoas so capazes de realizar sozinhas.

    Lida mais diretamente com as pessoas do que por intermdio de representantes ou agentes. (Stringer,1999, p.35).

    Alm de ser uma questo de interao entre pessoas e grupos envolvidos no projeto, a participao de grupos externos universidade pode tambm adquirir uma significao poltica. Isso acontece, por exemplo, quando os trabalhadores rurais de um assentamento de reforma agrria tm o apoio de uma universidade para estudarem, em projetos conjuntos, seus problemas de produo e comercializao. No basta reconhecer a dimenso participativa dos processos de pesquisa e extenso e a utilidade de uma metodologia participativa construda na base da

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    sistematizao das prticas interativas. A metodologia de que precisamos, cada vez mais, deve ter outras dimenses associadas, em particular, crtica, reflexividade e emancipao. s vezes, esses termos geram ceticismo por terem sido exageradamente usados em retricas pouco conseqentes, mas vale a pena reafirmar uma nova inteno. 4. DIMENSO CRTICA Entendemos a crtica em trs nveis: o das idias em geral, o da vida cotidiana e o da prtica profissional. a) Crtica das idias. Em perspectiva de transformao social, nos processos de extenso, ocupa um lugar de destaque a divulgao de idias crticas sobre os dogmas vigentes. Nos ltimos sculos, a crtica aos conhecimentos socialmente inadequados passou pelo marxismo, a fenomenologia e outras teorias crticas. No sculo XIX, Karl Marx foi mestre em matria de crtica do direito, da filosofia hegeliana ou da economia poltica clssica. No sculo XX, Antonio Gramsci deu uma contribuio fundamental para criticar os conhecimentos estabelecidos pelos grandes intelectuais de sua poca. A partir da dcada de 1960, Michel Foucault desempenhou um papel importante no mundo acadmico para criticar, no somente as idias gerais, mas as que se impem como normas nas instituies e seus micropoderes. Paralelamente, Pierre Bourdieu contribuiu para desmistificar as funes de instituies de ensino e cultura, remetendo-as aos processos de reproduo e diferenciao social. Hoje, levando em conta o legado dos sculos passados, precisamos renovar a capacidade crtica para desmistificar os edifcios intelectuais e vises unilaterais que existem em torno da globalizao, do mercado, das novas tecnologias e formas de poder. Deveria haver uma crtica aos conhecimentos nobres da economia ou da poltica e, tambm, uma crtica de conhecimentos intermedirios, em uso nas reas de gesto, tecnologia, educao ou comunicao, por exemplo. Mas a crtica no plano das idias no basta, deve ser prolongada em nvel das prticas do dia-a-dia. a crtica das situaes vividas no trabalho, nas escolas, na cidade, em famlia, na vida cotidiana em geral. b) Crtica do senso comum e da vida cotidiana. Nesse plano, a crtica evidencia as implicaes das representaes ou percepes vigentes e levar a uma denncia dos interesses, dos conflitos, dos efeitos de discriminao, de dominao, etc. O senso comum pode ser criticado a partir da viso dialtica da histria (Gramsci, 1978), ou reconstrudo a partir das mudanas intelectuais

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    conhecidas como ps-modernidade, analisadas por Boaventura de Sousa Santos (1996). Alm de esclarecer ou denunciar as situaes de injustia, esse tipo de crtica tambm construtivo, ou propositivo, gerando idias para possveis transformaes, com democracia, ou participao direta dos prprios interessados. c) Crtica das prticas profissionais. No seu lado impensado, muitas prticas profissionais possuem aspectos de excluso, no que se refere tanto aos critrios de acesso ao exerccio da profisso, quanto s conseqncias prticas sobre os usurios ou os atendidos dos servios profissionais. O papel dos professores nem sempre to democrtico quanto se imagina. A pedagogia que adota pode ser, em certos casos, prejudicial aos alunos socialmente desfavorecidos. Os mdicos contribuem para a reproduo social dos modos inadequados de se lidar com certas doenas. Os engenheiros intervm nos processos de produo de uma maneira que, freqentemente, desqualifica o trabalho do operrio. A formao cientificista dos agrnomos pode os levar a ignorar os ricos conhecimentos e a sabedoria de produtores e nativos que seriam teis para assegurar a sustentabilidade da agricultura. As crticas formuladas por grupos de profissionais autoconscientes em suas prprias prticas de fundamental importncia. J existem exemplos em reas de servio social, medicina, agronomia/agroecologia, estatstica, administrao de recursos humanos, e outras. Nos projetos propiciando um contato dos universitrios com populaes ou grupos de cultura diferenciada, importante salientar as condies de dilogo intercultural, limitando preconceitos e vis de percepo para estabelecer uma intercompreenso crtica, com base na linguagem dos atores. Com, de um lado, a interdisciplinaridade entre grupos universitrios e, por outro lado, o dilogo intercultural com os membros externos, cria-se, durante a realizao do projeto, um espao de interlocuo onde se produzem efeitos de compreenso, de traduo, de facilitao no plano na comunicao. De acordo com a viso crtica, todos os participantes aprendem em contato com os outros, aceitando relativizar seus pontos de vista. 5. DIMENSO REFLEXIVA No contexto da extenso, os conhecimentos teis esto inseridos em prticas educacionais, culturais, polticas, tcnicas, profissionais, e fazem sentido na vida cotidiana dos interessados. Nunca so simplesmente transferidos ou aplicados, no so meras adaptaes de instrues escritas em livros ou monopolizadas por intelectuais convencionais.

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    Na linha de Schn (2000), possvel problematizar a reflexividade do conhecimento na prtica extensionista. O esforo reflexivo sobre a prtica por parte dos professores, estudantes e tcnico-administrativos implicados na mesma apresenta vrios aspectos:

    reflexo na prtica como fonte de aprendizagem;

    reflexo na ao no decorrer do projeto para um direcionamento adequado, corrigindo erros;

    dilogo reciprocamente reflexivo entre professores, alunos e usurios ou grupos destinatrios.

    O projeto reflexivo ajuda seus destinatrios a refletirem na ao; assim eles so incitados a construir um conhecimento prprio. Bons projetos de extenso so aqueles que geram ganhos de conhecimento e de experincia para todos os participantes, com base no ciclo relacionando ao e reflexo. 6. PROPSITO EMANCIPATRIO Emancipao o contrrio de dependncia, submisso, alienao, opresso, dominao, falta de perspectiva. O termo caracteriza situaes em que se encontra um sujeito que consegue atuar com autonomia, liberdade, autorealizao, etc. No sculo XIX, a emancipao poltica e social dos escravos era sem dvida a transformao de maior importncia. No sculo XX, a emancipao das classes trabalhadoras foi marcada por avanos e retrocessos. No sculo XXI, que apenas comeou, a emancipao apresenta-se como objetivo mais difuso para todos os indivduos ou grupos sociais que sofrem algum tipo de discriminao, baseada em condio social, raa, gnero. Especialmente em contexto educacional, a busca de emancipao diz respeito a pessoas que sofrem as conseqncias de algum tipo de desigualdade social. Essa busca se concretiza quando as pessoas conseguem superar os obstculos ligados a sua condio e alcanam nveis de conhecimento mais elevados a partir dos quais podero exercer atividades desafiadoras (em qualquer rea de atuao especfica). Uma ao educacional com propsito emancipatrio um desafio s leis de reproduo social, gerando transformaes sociais a partir do fato de as camadas desfavorecidas terem acesso educao, no apenas acesso ao vigente conhecimento elitizado, mas sobretudo condio de construir conhecimentos novos, em termos de contedos, formas e usos. Um mesmo conhecimento tem usos diferenciados que depende dos referenciais de classe, dos campos de atuao e dos meios sociais envolvidos. No passado, relutamos a usar o termo, por causa do medo de se criar uma expectativa exagerada. Em vrios de nossos projetos de extenso, de fato, no se deve esperar muito em matria de emancipao, devido a limitaes

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    institucionais e ideolgicas. Um projeto educacional considerado emancipatrio especialmente quando permite aos grupos de condio modesta terem acesso a conhecimentos que no teriam alcanado de outro modo. Como tema psicossociolgico, a emancipao pode ser aprofundada graas ao estudo de trajetrias sociais com base em biografias ou autobiografias de pessoas que conseguiram evitar os obstculos sociais e entrar em universos culturais mais amplos, a caminho de uma profissionalizao de nvel superior, ou de alto prestgio. Entretanto, no se trata de qualquer tipo de ascenso social, pois, em certos casos, a ascenso de tipo conservador e no requer uma cultura emancipatria, apenas adeso aos valores vigentes e esperteza em situao de competio com os outros. Ao nascer em um roado ou em uma favela, uma criana tem pouca probabilidade de tornar-se mdico, professor, advogado, escritor, cineasta. Aes educacionais que pudessem ajudar nesse sentido seriam de carter emancipatrio. A relao entre biografia e pesquisa participativa um tema que j foi explicitamente abordado por Henri Desroche (1990). A conduo de um projeto participativo no uma tarefa fcil e exige qualidades individuais e sociais observveis na biografia do sujeito. requerida uma ntida capacidade de liderana e um relacionamento democrtico, oferecendo a todos o contexto ideal de motivao e desempenho. Por outro lado, os processos da pesquisa participativa e de capacitao bem conduzidos exercem um efeito significativo nas trajetrias de vida sobre as pessoas ou grupos destinatrios. Nem todos os projetos de extenso so de tipo emancipatrio, mas um ideal a ser perseguido, especialmente quando se trata de extenso voltada para interesses populares ou superao de obstculos sociais, como no caso, por exemplo, de cursos de preparao ao vestibular ou de programas de apoio criao de cooperativas para populao de baixa renda. A emancipao representa uma promoo de carter coletivo e compartilhvel entre membros de classes populares. Um projeto de extenso pode ser considerado emancipatrio quando as atividades que lhes so associadas incitam as pessoas a superar os obstculos e limitaes que encontram em sua vida social, cultural ou profissional. Por exemplo, isso acontece em um projeto de extenso que ajude a populao de jovens e adultos carentes a progredirem em sua formao, possibilitando o acesso a cursos de nveis mdio ou superior. A emancipao pode ser pensada em termos de trajetria de pessoas que superaram obstculos do destino social. Por exemplo, filhos de famlia humilde que conseguem estudar e, pelo resultado de seus esforos, alcanar elevados nveis de compreenso ou de criao em determinadas reas profissionais ou culturais. A emancipao de grupos ocorre quando a iniciativa capaz de mobilizar coletividades e alcanar resultados mais abrangentes que a descoberta de talentos individuais, em casos isolados. A emancipao diferente de uma simples ascenso social, ou promoo, por estar ligada a

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    uma trajetria de superao de obstculos com dimenses participativa, crtica e reflexiva. 7. CONCLUSO Aps uma dcada de liberalismo, a universidade pblica est ameaada e muito gente perdeu o nimo, deixando de atuar em projetos audaciosos e conformando-se no cumprimento de exigncias de avaliao ou de sobrevivncia. No atual contexto de mudana, precisamos recuperar idias mais ousadas para enfrentar os desafios intelectuais e da vida cotidiana. animadora a possibilidade de se produzir conhecimento crtico a ser compartilhado com atores sociais por meio de programas e projetos de extenso. A metodologia de extenso ter tudo a ganhar se reforarmos suas dimenses participativa, crtica e emancipatria. Entretanto, para isso, ningum possui uma soluo mgica. Isso se constri coletivamente a partir das experincias existentes, com acesso ao conhecimento terico-metodolgico (em particular de tipo participativo e em pesquisa-ao). Ademais, as tecnologias da informao e da comunicao tm um papel positivo a desempenhar nesse contexto. Ainda longa a distncia entre a realidade (s vezes, a mediocridade) de nossos projetos de extenso e a definio desse ideal, participativo, crtico e emancipatrio. Se tal ideal for adequado ao atual (ou futuro) contexto de transformao social, poderemos sugerir um esforo de capacitao metodolgica dos docentes e alunos para levarem a bem projetos orientados em condizente perspectiva. Tambm os outros aspectos de sustentao da poltica de extenso (dedicao, recursos, valorizao) precisam ser repensados. Seja como for, em contexto de real enfrentamento dos grandes problemas da sociedade (educao, sade, fome, emprego, agricultura familiar, preservao ambiental, etc.), parece que haver, nos prximos anos, novas oportunidades para a experimentao de mtodos participantes em extenso universitria (e tambm em outros contextos). REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS BROSE, Markus (org). Metodologia participativa. Uma introduo a 29 instrumentos. Porto Alegre : Tomo Editorial, 2001. DESROCHE, Henri. Entreprendre dapprendre. Dune autobiographie raisonne aux projets dune recherche-action. Apprentissage 3. Paris : Editions Ouvrires, 1990. GRAMSCI, A. Concepo dialtica da histria. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.

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    McTAGGART, Robin (ed.) Participatory Action Research. International Context and Consequences. Albany-NY : State University of New York Press, 1997. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mo de Alice. O Social e o poltico na Ps-Modernidade. So Paulo: Cortez, 1996. SCHN, Donald A. Educando o profissional reflexivo. Um novo design para o ensino e a aprendizagem. Porto Alegre : ArtMed, 2000. STRINGER, Ernest. Action Research. 2nd. ed. Thousand Oaks; Londres : Sage, 1999. THIOLLENT. Michel, ARAJO FILHO, Targino de, SOARES, Rosa Leonra Salerno. (coord.) Metodologia e experincias em projetos de extenso. Niteri-RJ : EDUFF, 2000. 340 p.

    Dados de apresentao Michel Thiollent

    Professor do Instituto Luiz Alberto Coimbra de Ps-Graduao e Pesquisa em Engenharia COPPE - Universidade Federal do Rio de Janeiro. (Linha de pesquisa: Inovaes e Mudanas Organizacionais).

    Doutor em Sociologia pela Universidade Ren Descartes, Paris-Sorbonne V (1975)

    Ex-Professor de Sociologia no IFCH da Unicamp (na dcada de 1970).

    Autor e coordenador de vrios livros sobre metodologia de pesquisa participativa, organizao e comunicao.

    Animador dos Seminrios de Metodologia para Projetos de Extenso (SEMPE).

    Endereo: Caixa Postal 68566 21945-970 Rio de Janeiro RJ E-mail: [email protected] Fone : 21- 2562 8251