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ÉTICA - Prof.ª Denise D’Incao CONCEPÇÕES ÉTICAS A concepção ética dos antigos - Podemos resumir a ética dos antigos (gregos e romanos) em três aspectos principais: 1. o racionalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão; 2. o naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza (o cosmos) e nossa natureza (nos- so ethos), é a parte do todo natural; 3. a inseparabilidade entre ética e política: isto é, o sujeito moral não pode ser compreendido, como nos tempos atuais, na sua completa individualidade. O homem antigo é antes de tudo membro integrante de uma comunidade, de modo que a ética se acha intrinsecamente ligada à política. Platão - Em seus diálogos, Platão identifica a virtude com a sabedoria e o vício com a ignorância: portanto, a virtude pode ser aprendida. Na célebre passagem de A República (livro VII) em que Platão descreve o mito da caverna reaparece essa ideia: o sábio é o único capaz de se soltar das amarras que o obrigam a ver apenas sombras e, dirigindo-se para fora, contempla o sol, que representa a ideia do Bem. Só o filósofo atinge o nível mais alto de sabedoria, só a ele cabe a virtude maior da justiça e portanto lhe é reservada a função de governar. A República platônica é dividida em três grupos sociais, de acordo com as almas dos indivíduos: os filósofos – grupo dirigente que corresponde à alma superior, racional, que reside na cabeça; os guardiães ou soldados – encarregados da defesa, equivalem à alma irascível, localizada no peito (voltada para as emoções e à agressividade); os produtores (agricultores e artesãos), cuja alma está localizada no ventre, alma concupis- cível (voltada para os desejos e as paixões). Os dirigentes rece- beriam um longo período de educação, que teria por base a ginástica, a música, a poesia e a História, passando pela Matemática e culminando na filosofia, a ciência do Bem. Para os grupos superiores, dirigentes e guardiães, Platão propôs que tivessem vida em comunidade, com a abolição da propriedade privada e com a dissolução da família patriarcal: mulheres e crianças já não seriam mais objeto de “posse” de um chefe. A sociedade, isto é, a comunidade de cidadãos, se encarregaria da educação das crianças e da distribuição equitativa dos bens produzidos. Homens e mulheres pertencentes aos grupos superiores passariam a ser iguais, desempenhando as mesmas funções pelo bem da cidade. O valor supremo da República é a Justiça. Numa sociedade justa, o interesse coletivo tem preponderância sobre os interesses individuais: as políticas, sociais e culturais deveriam impedir que a convivência se baseasse no egoísmo. Justiça significa também uma sociedade organizada: justiça é cada um dos grupos sociais cumprir da melhor maneira possível a tarefa que lhe é própria. Para ser justa, a República deve manter, enfim, uma permanente referência à ordem cósmica; nela, diz Platão, Deus será a medida de todas as coisas. O homem tem a liberdade do querer e responsabilidade: cada um é autor do seu destino. Aristóteles – Encontramos a discussão mais profunda das questões éticas em seu livro Ética a Nicômaco. A felicidade: A ética nos ajuda a refletir sobre o fim último de todas as atividades humanas, pois tudo o que fazemos visa a alcançar um bem - ou o que nos parece ser um bem. Examinando todos os bens desejáveis, como os prazeres, a riqueza, a honra, a fama, Aristóteles observa que eles visam sempre a outra coisa e não são fruídos por si mesmos. Pergunta-se então pelo sumo bem, aquele que em si mesmo é um fim, e não um meio para o que quer que seja. E o encontra no conceito de “vida feliz” . Por isso a filosofia moral de ______________________________________________________________________________________ 1

ÉTICA - Prof.ª Denise D’Incao

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ÉTICA - Prof.ª Denise D’Incao

CONCEPÇÕES ÉTICAS

A concepção ética dos antigos -Podemos resumir a ética dos antigos (gregos e romanos) em três aspectos principais:1. o racionalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a razão; 2. o naturalismo: a vida virtuosa é agir em conformidade com a Natureza (o cosmos) e nossa natureza (nos-so ethos), é a parte do todo natural; 3. a inseparabilidade entre ética e política: isto é, o sujeito moral não pode ser compreendido, como nos tempos atuais, na sua completa individualidade. O homem antigo é antes de tudo membro integrante de uma comunidade, de modo que a ética se acha intrinsecamente ligada à política.

Platão - Em seus diálogos, Platão identifica a virtude com a sabedoria e o vício com a ignorância: portanto, a virtude pode ser aprendida. Na célebre passagem de A República (livro VII) em que Platão descreve o mito da caverna reaparece essa ideia: o sábio é o único capaz de se soltar das amarras que o obrigam a ver apenas sombras e, dirigindo-se para fora, contempla o sol, que representa a ideia do Bem. Só o filósofo atinge o nível mais alto de sabedoria, só a ele cabe a virtude maior da justiça e portanto lhe é reservada a função de governar.

A República platônica é dividida em três grupos sociais, de acordo com as almas dos indivíduos: os filósofos – grupo dirigente que corresponde à alma superior, racional, que reside na cabeça; os guardiães ou soldados – encarregados da defesa, equivalem à alma irascível, localizada no peito (voltada para as emoções e à agressividade); os produtores (agricultores e artesãos), cuja alma está localizada no ventre, alma concupis-cível (voltada para os desejos e as paixões). Os dirigentes rece-beriam um longo período de educação, que teria por base a ginástica, a música, a poesia e a História, passando pela Matemática e culminando na filosofia, a ciência do Bem.

Para os grupos superiores, dirigentes e guardiães, Platão propôs que tivessem vida em comunidade, com a abolição da propriedade privada e com a dissolução da família patriarcal: mulheres e crianças já não seriam mais objeto de “posse” de um chefe. A sociedade, isto é, a comunidade de cidadãos, se encarregaria da educação das crianças e da distribuição equitativa dos bens produzidos. Homens e mulheres pertencentes aos grupos superiores passariam a ser iguais, desempenhando as mesmas funções pelo bem da cidade.

O valor supremo da República é a Justiça. Numa sociedade justa, o interesse coletivo tem preponderância sobre os interesses individuais: as políticas, sociais e culturais deveriam impedir que a convivência se baseasse no egoísmo. Justiça significa também uma sociedade organizada: justiça é cada um dos grupos sociais cumprir da melhor maneira possível a tarefa que lhe é própria. Para ser justa, a República deve manter, enfim, uma permanente referência à ordem cósmica; nela, diz Platão, Deus será a medida de todas as coisas. O homem tem a liberdade do querer e responsabilidade: cada um é autor do seu destino.

Aristóteles –Encontramos a discussão mais profunda das questões éticas em seu livro Ética a Nicômaco. A felicidade: A ética nos ajuda a refletir sobre o fim último de todas as atividades humanas, pois tudo o que fazemos visa a alcançar um bem - ou o que nos parece ser um bem. Examinando todos os bens desejáveis, como os prazeres, a riqueza, a honra, a fama, Aristóteles observa que eles visam sempre a outra coisa e não são fruídos por si mesmos. Pergunta-se então pelo sumo bem, aquele que em si mesmo é um fim, e não um meio para o que quer que seja. E o encontra no conceito de “vida feliz” . Por isso a filosofia moral de

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Aristóteles é uma eudemonia. Para ele, o homem busca a felicidade (ética eudemonista) que consiste não nos prazeres nem na riqueza, mas na vida teórica, na racionalidade. A virtude: A vida humana, porém, não se resume ao intelecto, e encontra sua expressão na ação, em uma atividade bem realizada. Ou seja, o bem é a atividade exercida de acordo com a sua exce-lência ou virtude.Virtude é a permanente disposição de caráter para querer o bem, Em moral, a virtude é a força com a qual nos aplicamos ao dever e o realizamos . É por isso que a vida moral não se resume a um só ato moral, mas é a repetição do agir moral. Em outras palavras o agir virtuoso não é ocasional e fortuito, mas um hábito e não se reduz a um só momento. Ele escreve: “Porquanto uma andorinha não faz verão...” (Ética a Nicômaco) . Desse modo, assim como o intelecto se desenvolve pelo exercício da aprendizagem, também a virtude resulta da prática do hábito.

Aristóteles divide as virtudes em dianoéticas (intelectuais) e éticas (morais). “A virtude dianoética, recebe do ensino a geração e o de-

senvolvimento, por isso necessita de experiência e tempo; a ética provém do hábito... (Ética a Nicômaco).

O justo meio: Para Aristóteles a virtude está no justo meio: “Costuma-se dizer que nada há que acrescentar nem tirar nas coisas bem feitas, considerando-se que o excesso ou a falta destroem a perfeição e o justo meio a conserva.,,,”

Assim, Aristóteles desenvolve a teoria da mediania, segundo a qual toda virtude é boa quando controlada no seu excesso e na sua falta. Em outras palavras, agir virtuosamente é encontrar o justo meio entre dois extremos, que são chamados vícios.

A justiça: A virtude por excelência é a justiça. “A justiça...não é parte da virtude, mas a virtude inteira” (Ética a Nicômaco) Há duas espécies de justiça: a distributiva e a comutativa. A primeira refere-se à igual divisão de bens materiais entre todos os cidadãos; a segunda que é compartilhada somente entre alguns e que diz respeito à participação na política, governo, etc.

A amizade: Sobre a amizade, afirma Aristóteles que é uma virtude e “é a coisa mais necessária à vida... (Ética a Nicômaco). A amizade apenas entre os prudentes e justos, já que ela supõe justiça, a generosidade, a benevolência, a reciprocidade dos sentimentos. Amar a si e aos amigos de maneira generosa e desinteressada “é o que há de mais necessário para viver”.

A liberdade: Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. Na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. O homem é completamente livre. A vontade livre é determinada pela razão e é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser auto-determinada.

A concepção helenística de moral

Epicurismo ou Hedonismo - A doutrina de Epicuro surgiu em um momento de insatisfação com a condição das Cidades-Estados gregas. A vida social na Pólis era leviana e marcada pela injustiça social. O poder se concentrava nas mãos de poucos: a aristocracia urbana. Não havia felicidade entre os homens no contexto social, no qual as pessoas se interessavam estritamente pelas riquezas e pelo poder; no contexto religioso, no qual predominava a superstição, a religião tornou-se servil, cercada de mitos e ritos sem significação e também crescia a procura por oráculos e a crença em adivinhações. As pessoas gozavam dos prazeres mais supérfluos advindos das riquezas e, assim, eram relativamente felizes, pois estavam se esquecendo do que realmente proporciona a felicidade. Foi a partir disso que Epicuro criou sua doutrina contra a superstição e os bens materiais, voltada para uma reflexão interior e busca da verdadeira felicidade. A finalidade de

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sua ética consiste em propiciar a felicidade aos homens, de modo que essa possa libertá-los das mazelas que os atormentam, quer advenham de circunstâncias políticas e sociais, quer sejam causadas por motivos religiosos.

A Felicidade é alcançada por meio do controle dos medos e dos desejos, de maneira que seja possível chegar à ataraxia, a qual representa um estado de prazer estável e equilíbrio e, consequentemente, a um estado de tranquilidade e a ausência de perturbações, pois, conforme Epicuro, há prazeres maus e violentos, decorrentes do vício e que são passageiros, provocando somente insatisfação e dor. Mas também há prazeres decorrentes da busca moderada da Felicidade.

Segundo Epicuro, a posse de poucos bens materiais e a não obtenção de cargos públicos proporcionam uma vida feliz e repleta de tranquilidade interior, visto que essas coisas trazem variadas perturbações. Por isso, as condições necessárias para a boa saúde da alma estão na humildade. E para alcançar a felicidade, Epicuro cria 4 “remédios”:

1. Não se deve temer os deuses;

2. Não se deve temer a morte;

3. O Bem não é difícil de se alcançar;

4. Os males não são difíceis de suportar.

Enfim, todo empenho de Epicuro tinha como meta a felicidade dos homens. Nos jardins (comunidade dos discípulos de Epicuro) reinava a alegria e a vida simples. A amizade era o melhor dos sentimentos, pois proporcionava a correção das faltas uns dos outros, permitindo as suas correções. Com isso, a moral epicurista é baseada na propagação de suas ações, pois ele não se restringiu apenas ao sentimento e ao prazer como normas de moralidade, mas foi muito além de sua própria teoria, sendo o exemplo vivo da doutrina que proferia.(Excertos retirados do artigo de João Francisco P. Cabral. Graduado em Filosofia pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU e Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP)

Estoicismo - O estoicismo é uma escola fundada em Atenas por Zeno de Cítio no início do século III a.C. Os estóicos

ensinavam que as emoções destrutivas resultam de erros de julgamento, e que um sábio, ou pessoa com "perfeição moral e intelectual", não sofreria dessas emoções. O estoicismo afirma que todo o universo é corpóreo e governado por um Logos divino . A alma está identificada com este princípio divino como parte de um todo ao qual pertence. Este Logos (ou razão universal) ordena todas as coisas: tudo surge a partir dele e de acordo com ele, graças a ele o mundo é um Kosmos (termo grego que significa "harmonia").

O estoicismo propõe se viver de acordo com a lei racional da natureza e aconselha a indiferença (apathea) em relação a tudo que é externo ao ser. O homem sábio obedece à lei natural, reconhecendo-se como uma peça na grande ordem e propósito do universo, devendo, assim, manter a sereni-dade perante tanto as tragédias quanto as coisas boas. A partir disso, surgem duas consequências éticas: deve-se "viver conforme a natureza": sendo a natureza essencialmente o logos, essa máxima é prescrição para se viver de acordo com a razão. Sendo a razão aquilo por meio do que o homem torna-se livre e feliz, o homem sábio não apreende o seu verdadeiro

bem nos objetos externos, mas usando estes objetos através de uma sabedoria pela qual não se deixa escravizar pelas paixões e pelas coisas externas.

As paixões devem ser eliminadas porque só provocam sofrimento, e por isso a virtude do sábio, que vive de acordo com a natureza e a razão, consiste em aceitar com impassibilidade o destino e a dor.

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Estóicos mais tardios, como Sêneca e Epiteto, enfatizaram que porque a "virtude é suficiente para a felicidade", um sábio era imune aos infortúnios. Esta crença é semelhante ao significado de calma estóica, apesar de essa expressão não incluir as visões "éticas radicais" estóicas de que apenas um sábio pode ser verdadeiramente considerado livre, e que todas as corrupções morais são todas igualmente viciosas.O estoicismo floresceu na Grécia principalmente com Crisipo, sendo levado a Roma no ano 155 a.C. Ali, seus continuadores foram Marco Aurélio, Sêneca, entre outros.

O estoicismo foi uma doutrina que sobreviveu todo o período da Grécia Antiga, até o Império Romano, incluindo a época do imperador Marco Aurélio, até que todas as escolas filosóficas foram encerradas em 529 por ordem do imperador Justiniano I, que percepcionou as suas características pagãs, contrária à fé cristã.

A escola estóica preconizava a indiferença à dor de ânimo causada pelos males e agruras da vida. Reunia seus discípulos sob pórticos (colunas) situados em templos, mercados e ginásios.

"A virtude consiste em um desejo que está de acordo com a natureza".Este princípio também se aplica ao contexto das relações interpessoais; "libertar-se da raiva, da inveja e do ciúme"e aceitar até mesmo os escravos como "iguais aos outros homens, porque todos os homens são igualmente produtos da natureza". O estoicismo se tornou a filosofia mais popular entre as elites educadas do mundo helenístico e do Império Romano, a ponto de, nas palavras de Gilbert Murray, "quase todos os sucessores de Alexandre [...] declararem-se estóicos."

Uma característica distintiva do estoicismo é o seu cosmopolitismo: todas as pessoas seriam manifes-tações do espírito universal único e deveriam, de acordo com os estóicos, em amor fraternal, ajudarem-se uns ao outros de maneira eficaz. Nos Discursos, Epiteto comenta sobre a relação do ser humano com o mundo: "cada ser humano é, primeiro, um cidadão da sua comunidade; mas também é membro da grande cidade dos homens e deuses..." Este sentimento ecoa em Diógenes de Sínope, que disse "Eu não sou nem ateniense nem coríntio, mas um cidadão do mundo."

Apoiavam a ideia de que as diferenças externas, como status e riqueza, não são importantes nas relações sociais. Em vez disso, advogavam a irmandade da humanidade e a natural igualdade do ser humano. O estoicismo tornou-se a mais influente escola do mundo greco-romano. Em particular, os estóicos eram notados pela sua defesa à clemência aos escravos. Sêneca exortava: "Lembra-te com simpatia de que aquele a quem chamas de escravo veio da mesma origem, os mesmos céus lhe sorriem, e, em iguais termos, contigo respira, vive e morre."

Idade MédiaOs valores religiosos (cristãos) impregnavam as concepções éticas, de modo que os critérios do bem e do mal se acham vinculados à fé e dependiam da esperança de vida após a morte. Surge o cristianismo.

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O Cristianismo: nasce como religião de indivíduos que se definem, não por pertencer a uma nação ou Estado, mas por sua fé num mesmo e único Deus. A vida ética do cristão não é definida por sua relação com a sociedade, mas por sua relação espiritual e interior com Deus. Dessa forma, o cristianismo introduz diferenças na antiga concepção ética: fé, caridade, e livre-arbítrio sendo que o primeiro impulso de nossa liberdade dirige-se para o mal e para o pecado, isto é, para a transgressão das leis divinas.

O cristianismo, portanto, passa a considerar que o ser humano é, em si mesmo e por si mesmo, incapaz de realizar o bem e as virtudes. Tal concepção leva a introduzir uma nova idéia na moral: a idéia do dever. Juntamente com a idéia do dever, a moral cristã introduziu uma outra, também decisiva na constituição da moralidade ocidental: a idéia de intenção. Por isso um cristão, ao se confessar, obriga-se a confessar pecados cometidos por atos, palavras e intenções.

O pensamento modernoNo início da Idade Moderna, o Renascimento, o pensamento humano passou por mudanças cruciais. O teocentrismo medieva foi substituído por um crescente antropocentrismo: em lugar da fé, a reflexão filosófica seculariza-se, ou seja volta-se para buscar o seu fundamento racional.

As alterações sociais e econômicas delinearam uma nova era de ascensão da burguesia, com o florescimento do comércio e do capitalismo. A revolução científica produziu outra realidade, em que se descobriu o poder do conhecimento humano, capaz de transformar o ambiente, ou como se dizia então, de “dominar a natureza” e tornar-se senhor dela.

Mesmo quando, no Renascimento, a filosofia moral distancia-se dos princípios teológicos e da fundamen-tação religiosa da ética, a ideia do dever permanecerá como uma das marcas principais da concepção ética ocidental. O cristianismo ao colocar a idéia de dever coloca um problema novo: se a ética exige um sujeito autônomo, livre, a idéia de dever não introduziria a heteronomia, isto é, o domínio de nossa vontade e de nossa consciência por um poder estranho a nós? Rousseau e Kant no século XVIII (Idade Moderna) tentarão resolver essa dificuldade.

(A imagem apresentada, do Homem Vitruviano, é um desenho de 1492, feito por Leonardo Da Vinci, no qual expõe o traçado e proporções do corpo humano. Também é um conceito da obra “Os dez livros da Arquitetura”, do arquiteto romano Marco Vitruvio Polião. O conceito elabora a noção a respeito da divina proporção através do raciocínio matemático, sendo um modelo ideal para todo o ser humano. As proporções do “homem vitruviano” são perfeitas e inserem o conceito clássico e divino de beleza. No desenho, as posições dos braços e pernas expressam quatro posturas diferenciadas inscritas em círculo, sendo o centro da figura o umbigo.No conceito da “Divina proporção”, tão expressado em obras renascentistas, há a busca e definição das

partes corporais do ser humano. Sabe-se que a “Divina proporção” teve uma de suas origens na Grécia Antiga,)

A moral iluminista século XVIII - O Iluminismo ou Aufklärung que caracteriza o chamado Século das Luzes exalta a capacidade humana de conhecer e agir pela “luz da razão”. Critica a religião que submete o homem a heteronomia, que o subjuga a preconceitos e fanatismo. Defende o ideal de tolerância e autonomia. Kant é seu filósofo maior.

Rousseau é também um iluminista, embora tenha coloca-ções que o distanciam dos demais expoentes dessa cor-rente de pensamento.

Euggéne Delacroix - A liberdade guiando o povo.

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Rousseau (1712-1778) - afirma que a consciência moral e o sentimento do dever são inatos, são “a voz da Natureza” e o “dedo de Deus” em nossos corações. Nascemos puros e bons, dotados de generosidade e de benevolência para com os outros.

Se o dever parece ser uma imposição imposta por Deus aos humanos, é porque nossa bondade natural foi pervertida pela sociedade, quando esta criou a propriedade privada e os interesses privados, tornando-nos egoístas, mentirosos e destrutivos. O dever simplesmente nos força a recordar nossa natureza originária e, portanto, só em aparência é imposição exterior. Obedecendo ao dever ( à lei divina inscrita em nosso coração), somos livres pois estamos obedecendo a nós mesmos, aos nossos sentimentos e nossas emoções e não à nossa razão, pois esta é responsável pela sociedade egoísta e perversa.

A moral de Rousseau foi denominada de “moral do coração”. Em “O Contrato Social” (1762) encontramos a definição de liberdade: “a obediência à lei que prescrevemos para nós, é liberdade”.

Spinoza (1632-1677) – em sua obra “Ética” parte-se da ideia de Deus para compreender todo o resto. Spinoza rejeita um Deus pessoal, criador, e cujo livre-arbítrio se decide por nos punir ou recompen-sar. Spinoza é panteísta: Deus não é transcendente ao mundo. Ele é o próprio mundo. O homem é apenas uma pequena parte da natureza.

Queremos ser poderosos, todos queremos ser felizes, mas, em nosso estado inicial, não consegui-mos isso. Spinoza pretende – em sua Ética – dar-nos a chave do poder e da alegria. O homem é de início um escravo porque ele vive na ignorância. O único meio de nos libertar, de assegurar nosso poder e nossa alegria é o esclarecimento.

Pela inteligência, saberei explicar a totalidade das aparências mutiladas. Quando a infelicidade se abater sobre mim, e eu já houver compreendido que o encadeamento das causas e dos efeitos no universo torna inevitável essa infelicidade, estarei pacificado. Deixarei de padecer, de considerar meus sofrimentos sob a perspectiva limitada de minha individualidade, para considerá-los do ponto de vista da totalidade, do ponto de vista da ligação entre todas as coisas. Pelo entendimento eu me liberto dos limites de minha indivi-dualidade para coincidir com o ponto de vista de Deus.

Unir-se ao princípio de todas as coisas por um amor que nada mais é do que a própria inteligência, tal é o objetivo do spinozismo. Aí, saber e salvação coincidem. A ética de Spinoza evita oferecer um quadro de valores ou de vícios e virtudes, distanciando-se de Aristóteles e da moral cristã, para buscar na idéia moderna de indivíduo livre, o núcleo da ação moral.

Em sua obra, Ética, Spinoza jamais fala em pecado e em dever; fala em fraqueza e em força para ser, pensar e agir. As virtudes aristotélicas inserem-se numa sociedade que valorizava as relações sociopolíticas entre os seres humanos, donde a proeminência da amizade e da justiça. As virtudes cristãs, inserem-se numa sociedade voltada para a relação dos humanos com Deus e a lei divina. A virtude spinoziana toma a relação do indivíduo com a Natureza e a sociedade, centrando-se nas idéias de integridade individual e de força interna para relacionar-se livremente com ambas.

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IMMANUEL KANT (1724-1804)Duas coisas me enchem o ânimo de admiração e respeito: o céu estrelado acima de mim e a lei moral que está em mim.

(Crítica da Razão Pura)! Kant, considerado um dos maiores iluministas, era alemão e em sua terra a filosofia das Luzes era denominada Aufklärung, ou Esclarecimento que ele assim define:! “Esclarecimento é a saída do homem de sua minoridade da qual ele próprio é culpado. A minoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio culpado dessa minoridade se a causa dela não se encontra na falta de entendimento, mas na falta de decisão e coragem de servir-se de si mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! (ouse saber, em latim)Tem coragem de fazer uso de teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento.”

(O que é o esclarecimento, Immanuel Kant)

A Alemanha de sua época era um aglomerado de Estados independentes, unidos pela cultura e língua alemãs. O Estado mais importante era a Prússia, governada por Frederico II, o Grande, monarca culto, admirador dos iluministas franceses e que concedia liberdade de pensamento, tendo adquirido a reputação de “rei filósofo”. Kant nasceu em Königsberg (hoje Kaliningrado), pequena cidade situada a oeste da Prússia (hoje território russo). Filho de um humilde artesão, estudou na universidade local, da qual se tornou professor brilhante e até reitor. Tinha uma vida extremamente metódica, nunca se casou e, apesar de tornar-se internacionalmente famoso ainda em vida, jamais saiu de sua cidade natal.

A REVOLUÇÃO COPERNICANA REALIZADA POR KANT! Em relação ao problema do conhecimento, Kant posiciona-se diferentemente de Descartes e dos empiristas que, por sua vez, eram contrários a Descartes. Os cartesianos representam o racionalismo para o qual a razão é suficiente para explicar tudo. Os empiristas destacavam a importância dos sentidos e seus limites. Para Kant tanto a razão como os sentidos são importantes no processo de conhecimento e os sintetizou numa perspectiva totalmente nova. Em sua primeira obra, Crítica da Razão Pura, Kant afirma fazer o mesmo que Copérnico, astrônomo, havia feito em relação à posição do Sol, tirando do centro, como a tradição acreditava ser correto, a Terra. Assim do geocentrismo passamos ao heliocentrismo. Kant age da mesma forma em relação ao conhecimento: coloca o sujeito como centro do conhecimento e não mais o objeto. Isto significa que no ato de conhecer não recebemos passivamente as qualidades do objeto mas que projetamos, no ato de conhecê-lo, faculdades que pertencem ao nosso entendimento, que pertencem ao sujeito cognoscente (sujeito transcendental, como Kant o denomina), faculdades que são a priori, isto é, antes de qualquer experiência e que são o espaço e o tempo.

A NEGAÇÃO DA METAFÍSICA! Para Kant a possibilidade do conhecimento da natureza se faz através da Razão Pura na qual temos o espaço e o tempo como elementos a priori (antes de qualquer experiência) de nossa sensibilidade. Desta forma podemos conhecer as coisas como elas são para nós, os fenômenos, “as coisas para nós”. O mundo, tal como ele seria em sua essência, como seria em si mesmo, “a coisa-em-si”, o númeno (ou noúmeno em grego) porque seria o mundo que não pode ser percebido pela razão humana, sem as nocões de espaço e tempo que nos são a priori, estão em nós. Assim, Kant critica a pretensão da metafísica de conhecer “as coisas-em-si” e torná-la ciência. O que ultrapassa a experiência sensível é impossível conhecer: provar a existência de Deus, a imortalidade da alma, a liberdade humana, etc. Quando se tenta fazer isso, surgem as antinomias da razão pura que são juízos que se contradizem em tese e antítese, sem que haja falhas lógicas de raciocínio), pois nessas questões tanto parecerá provável uma coisa como o seu contrário e sempre será possível refutar as duas posições.

A RAZÃO PRÁTICA E A MORAL! Isto não quer dizer que Kant descarte essas questões fundamentais da filosofia, pois o homem sempre vai sentir a necessidade, segundo ele, de saber de onde vem e para onde vai. Kant afirma que o homem possui também uma razão prática . No campo da razão prática, ideias como Deus, imortalidade e liberdade não devem ser tratadas como conhecimento - campo próprio da razão pura - e sim como noções reguladoras da prática humana; em outras palavras elas têm uma função prática em nossas vidas. Esse é o campo da moral e da religião, no qual o homem afirma coisas que não pode provar, porque isso favorece a sua existência prática. São os postulados práticos, moralmente necessários.

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! Tal como Rousseau, Kant também entendia que a filosofia devia se colocar ao lado dos interesses do homem, e entre os mais importantes estava a liberdade. É o que encontramos em seu pensamento no campo da moral, em que propõe que as leis morais são necessárias e universais, mas, ao mesmo tempo, derivam dos próprios homens. Nesse sentido, portanto, apesar de agir por dever, o homem é livre, pois deve seguir a lei que ele próprio criou.

OS IMPERATIVOS CATEGÓRICOS ! Opondo-se à moral do coração de Rousseau, Kant volta a afirmar o papel da razão na Ética. Não existe bondade natural. Por natureza, diz Kant, somos egoístas, ambiciosos, destrutivos, agressivos, cruéis, ávidos de prazeres que nunca nos saciam e pelos quais matamos, mentimos, roubamos. É justamente por isso que precisamos do dever para nos tornarmos seres morais.! A razão pura e a prática são universais, isto é, as mesmas para todos os homens em todos os tempos e lugares - podem variar no tempo e no espaço os conteúdos dos conhecimentos e das ações, mas as formas da atividade racional de conhecimento e da ação são universais..... A diferença entre razão teórica e prática encontra-se em seus objetos.! A razão teórica ou especulativa tem como matéria a realidade exterior a nós, que opera segundo leis necessárias de causa e efeito, independentes de nossa intervenção; a razão prática cria sua própria realidade, na qual se exerce.A Natureza é o reino da necessidade, isto é, de acontecimentos regidos por sequências necessárias de causa e efeito - é o reino da física, da astronomia, da química, da psicologia. Diferentemente do reino da Natureza, há o reino humano na qual as ações são realizadas racionalmente não por necessidade causal, mas por finalidade e liberdade. A razão prática é a liberdade como instauração de normas e fins éticos. ! Se a razão prática tem o poder para criar normas e fins morais, tem também o poder para impô-los a si mesma. Essa imposição que a razão prática faz a si mesma daquilo que ela própria criou é o dever  . Este, portanto, longe de ser uma imposição externa feita à nossa vontade e à nossa consciência, é a expressão da lei moral em nós, manifestação mais alta da humanidade em nós. Obedecê-lo é obedecer a si mesmo. Por dever, damos a nós mesmos os valores, os fins e as leis de nossa ação moral e por isso somos autônomos.! Kant pensava que a moralidade pode resumir-se num princípio fundamental, a partir do qual se derivam todos os nossos deveres e obrigações. Chamou a este princípio “imperativo categórico”. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes (1785) exprimiu-o desta forma:! Age apenas segundo aquela máxima que possas ao mesmo tempo desejar que se torne lei uni-versal.! No entanto, Kant deu igualmente outra formulação do imperativo categórico. Mais adiante, na mesma obra, afirmou que se pode considerar que o princípio moral essencial afirma o seguinte:! Age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim e nunca apenas como um meio.! Para Kant a moralidade exige que tratemos as pessoas “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Além disso, e ainda mais importante, os seres humanos têm “um valor intrínseco, isto é, dignidade”, porque são agentes racionais, ou seja, agentes livres com capacidade para tomar as suas próprias decisões, estabelecer os seus próprios objetivos e guiar a sua conduta pela razão. Uma vez que a lei moral é a lei da razão, os seres racionais são a encarnação da lei moral em si. A única forma de a bondade moral poder existir é as criaturas racionais aprenderem o que devem fazer e, agindo a partir de um sentido de dever, fazê-lo. ! Kant conclui, pois, que o valor do homem tem de ser absoluto, e não comparável com o valor de qualquer outra coisa. Se o seu valor está “acima de qualquer preço”, segue-se que os seres racionais têm de ser tratados “sempre como um fim e nunca apenas como um meio”. Isto significa, a um nível muito superficial, que temos o dever estrito de beneficência relativamente às outras pessoas: temos de lutar para promover o seu bem-estar; temos de respeitar os seus direitos, evitar fazer-lhes mal, e, em geral, “empenhar-nos, tanto quanto possível, em promover a realização dos fins dos outros”.! Mas a ideia de Kant tem também uma implicação um tanto mais profunda. Os seres de que estamos falando são racionais, e “tratá-los como fins em si” significa respeitar a sua racionalidade. Assim, nunca podemos manipular as pessoas, ou usá-las, para alcançar os nossos objetivos, por melhores que esses objetivos possam ser. Kant dá o seguinte exemplo para ilustrar o seu imperativo categórico: suponha que precisa de dinheiro e quer um empréstimo, mas sabe que não será capaz de devolvê-lo. Em desespero, pondera fazer uma falsa promessa de pagamento de maneira a levar um amigo a emprestar-lhe o dinheiro.

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Poderá fazer isso? Talvez precise do dinheiro para um propósito meritório — tão bom, na verdade, que poderia convencer-se a si mesmo de que a mentira seria justificada. No entanto, se mentisse ao seu amigo, estaria apenas manipulando-o e usando-o “como um meio”.! Por outro lado, como seria tratar o seu amigo “como um fim”? Suponha que dissesse a verdade, que precisava do dinheiro para um certo objetivo mas não seria capaz de devolvê-lo. O seu amigo poderia, então, tomar uma decisão sobre o empréstimo. Poderia exercer os seus próprios poderes racionais, consultar os seus próprios valores e desejos, e fazer uma escolha livre e autônoma. Se decidisse de fato emprestar o dinheiro para o objetivo declarado, estaria escolhendo fazer seu esse objetivo. Dessa forma, o leitor não estaria a usá-lo como um meio para alcançar o seu objetivo, pois seria agora igualmente o objetivo dele.

A ÉTICA COMO DEVER! A ética kantiana é deontológica, ou seja, é uma ética fundada no conceito de dever. Kant afirma que a ação humana deve ser regida unicamente pelo princípio do dever que comanda o agir. A pergunta que norteia a investigação ética de Kant, “Como devo agir”? é enfrentada nos três principais livros em que o filósofo se ocupou do problema moral: a Fundamentação da metafísica dos costumes, a Crítica da razão prática e a Metafísica dos costumes. ! O ponto de partida de Kant é o “fato” de que “temos uma consciência moral”: louvamos o bem e condenamos o mal. Todos nós percebemos a existência de uma “voz da consciência” que intervém nos momentos decisivos de nossa vida. É por isso que Kant compreende a consciência moral como a faculdade que julga a moralidade de nossas ações. Ora, se esta consciência moral julga, deve fazê-lo segundo princípios, e, uma vez que nós podemos ter consciência destes princípios, eles podem ser estabelecidos de modo definitivo e evidente. A este conjunto de princípios evidentes Kant dá o nome de razão prática. Não se trata da razão em seu poder de conhecer os fenômenos, mas da razão aplicada à ação, à prática, à vida moral.

KANT E A BOA VONTADE ! A esfera da moral se caracteriza pela avaliação do Bem e do Mal. Mas as coisas, em si mesmas, são indiferentes ao Bem e ao Mal. As coisas são o que são e somente do homem (que é além da natureza) se pode dizer que é “bom” ou “mau” (moralmente falando). Na verdade, bom ou mau só podem qualificar as ações do homem. E só podem qualificar as ações porque quando o homem age há dois aspectos envolvidos: o que ele efetivamente faz e aquilo que ele quer fazer. Se, enquanto estamos dirigindo, alguém se lança diante de nosso automóvel e vem a falecer, ainda que tenhamos cometido um homicídio, o fizemos de modo involuntário e não podemos ser tidos como maus. Exatamente o contrário do que se dá com aquele que mata de modo premeditado. Em consequência disso, segundo Kant, o que de fato é bom ou mau é a vontade.! “Entre tudo aquilo que é possível conceber no mundo, e mesmo em geral fora dele, não há senão uma coisa que se possa considerar boa sem restrição: uma boa vontade”. Assim se inicia a Funda-mentação e o que Kant quer dizer com isso é que enquanto todos os outros bens que não sejam a boa vontade dependem de uma situação determinada, apenas a boa vontade independe de qualquer situação. O que faz com que uma vontade seja “boa”? Não são as consequências do que ela almeja ou pretende alcançar, nem o sucesso ou a aptidão para levar seus propósitos a um bom termo. Por exemplo, podemos imaginar alguém dedicado a erradicar toda miséria do mundo sem, no entanto, o conseguir. Contudo, se apela a todos os meios que estão ao seu alcance para isso, então sua boa vontade possui valor intrínseco. Assim, o que torna uma vontade em boa é a própria natureza do querer.! A questão se desloca, então, para: qual é o conteúdo desse querer para que ele seja bom? A resposta de Kant é inequívoca: a boa vontade é a vontade de agir por dever. Do ponto de vista do dever, os homens podem agir:! a) Contrariamente ao dever.! b) Em conformidade com o dever.! c) Por dever.! Quando a ação é útil, mas contrária ao dever, nem se põe a questão de saber se pode ser praticada por dever. Quando a ação é conforme ao dever, mas esta conformidade é baseada numa disposição moralmente duvidosa, como o temor das consequências, o ato não pode ser moralmente bom. Por exemplo, quando o comerciante dá a nota fiscal que intimamente não queria, por temor da fiscalização. Quando a ação é conforme ao dever, mas a conformidade é baseada numa inclinação imediata em agir

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deste modo, o ato não é moralmente valioso. Por exemplo, quando alguém se esforça em conservar uma vida em que é feliz. Conservar a própria vida é um dever, mas, pela inclinação imediata em fazê-lo, não há nenhum mérito moral nisso. Ao contrário, quando alguém conserva a própria vida mesmo não tendo nenhuma inclinação imediata para tanto, age, então, exclusivamente por dever. E este ato, sim, é moralmente valioso e meritório. Ou quando alguém é benévolo com os outros unicamente por dever, ainda que sua inclinação imediata seja a rispidez e a intolerância.! Evidencia-se assim a oposição entre o ponto de vista da legalidade, a conformidade à lei, e o ponto de vista da moralidade verdadeira, que reside na pureza da intenção. No entanto, a intenção em Kant não é o simples desejo ou querer. É um querer que envida os esforços necessários para realizar a ação. Assim, o primeiro princípio da moralidade é: o valor moral de um ato reside na intenção. Além disso, há um segundo princípio: a intenção não pode ser ligada ao fim da ação. Por exemplo, quando se deseja conservar a própria vida. O que importa é tão-somente a regra pela qual o homem pauta a sua ação, isto é, o que importa é o “princípio de ação” (máxima) pelo qual este querer irá agir. Para Kant, o valor moral do ato decorre de uma intenção que quer fazer o que se deve fazer.! Desses dois princípios, Kant extrai a seguinte definição do dever: “O dever é a necessidade de cumprir uma ação por respeito à lei”. É preciso, então, entender como pode se dar o respeito à lei. A mo-ralidade só tem lugar quando a ação é realizada por respeito ao dever e não por simples cumprimen-to do dever. Surge então a questão do respeito, que Kant diz ser um sentimento que se produz a si mesmo através de um conceito da razão: “Aquilo que reconheço imediatamente como lei para mim, reconheço-o com um sentimento de respeito que não significa senão a subordinação da minha vontade a uma lei, sem intervenção de outras influências. A determinação imediata da vontade pela lei e a consciência desta deter-minação é o que se chama respeito, de modo que (o respeito) deve ser o efeito da lei sobre o sujeito.”! Para Kant, a moral não pode se estabelecer sobre uma série de mandamentos com conteúdos determinados, sejam este conteúdo fatos da experiência ou obediência a um deus, mas sim unicamente sobre a figura da universalidade incondicional da lei que determina o agir. A principal característica do dever é que ele não é um conceito extraído da experiência, na medida em que da experiência não tiramos nenhum exemplo indubitável de ação cumprida por dever. Vemos muitas ações cumpridas conforme ao dever, mas nem assim desaparece a dúvida sobre se o verdadeiro motivo de tais ações foi, realmente, o respeito à lei. Assim, não é possível refutar com exemplos a tese de que todos os nossos atos, até mesmo os mais virtuosos na aparência, possam, de fato, estar inspirados pelo amor-próprio e pelo interesse. No entanto, para Kant, “quando se trata de valor moral, o que importa não são as ações exteriores que se vêem, mas os princípios internos da ação, que não se vêem”. A moralidade não se julga de fora, e é por isso que o conceito do dever não pode ser tirado da experiência. A moral diz o que deve ser e não o que é. É exatamente esta recusa de todo compromisso entre a moralidade e a experiência que recebeu o nome de rigorismo kantiano. Isto é, o dever não é um conceito empírico, mas uma ordem a priori da razão.! Nesse sentido, os exemplos dados na experiência é que devem ser avaliados em função do ideal moral, e não o contrário. Se o dever é uma ordenação a priori, então não há nenhum caso em que o dever possa ser desobedecido e que isto possa constituir um ato verdadeiramente moral. É por esse motivo que a moral não deve se apoiar na antropologia, isto é, no estudo psicológico dos costumes e do caráter do homem, mas numa metafísica, isto é, num estudo a priori das condições da moralidade. Em síntese, o propósito de Kant é o de elevar-se da filosofia popular à metafísica dos costumes, isto é, “seguir e expor claramente a potência prática da razão, partindo das suas regras universais de determinação até ao ponto em que dela brota o conceito do dever”.

O SER HUMANO! Uma vontade seria perfeita se fosse determinada unicamente pela razão. Mas, no homem, a vontade está também sujeita às inclinações naturais. Há, então, um conflito entre a razão e a sensibilidade na determinação da vontade humana. A vontade não obedece naturalmente à razão (porque o que há de natureza em nós responde pelas nossas inclinações e não por nossa razão). A vontade só obedece à razão se for, assim, constrangida por ela. Uma vontade perfeitamente boa – como a vontade divina, por exemplo – não necessita de imperativos para seguir leis da razão. Pois nela a razão é sua própria natureza. Para uma vontade humana, no entanto, as leis da razão prática se apresentam como imperativos, ou seja, sob a forma de um dever (formalismo).! De fato, todos os imperativos são expressos pelo verbo dever. Há, pois, duas classes de fórmulas do dever ou imperativos:

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! a) Imperativos hipotéticos – que são aqueles que nos apresentam uma ação como necessária para alcançar um fim determinado. Podem ser imperativos de habilidade (técnica) ou de prudência (prática).! b) Imperativos categóricos – são os que nos propõem uma ação (ou uma abstenção de ação) como necessária em si mesma, incondicionalmente. São os imperativos da moralidade (mandamentos ou leis).! Como são possíveis os imperativos? Decerto, os hipotéticos não são difíceis de entender, pois “quem quer os fins, quer os meios”. Mas se os imperativos categóricos não nos propõem nenhum fim, na medida em que é a necessidade de agir por respeito à lei e não o conteúdo da lei que os tornam em categóricos (e é isto que chamamos propriamente de formalismo kantiano), então o imperativo categórico é, de fato, um só, e sua fórmula geral é: “Age apenas segundo aquela máxima, em virtude da qual podes querer que ao mesmo tempo ela se torne em lei universal”.! A questão é: como pode uma máxima subjetiva converter-se em lei universal? De fato, para Kant, são os objetos e não os sujeitos que são determinados por leis universais (da natureza). Nesse caso, a fórmula do imperativo categórico pode ser precisada nestes termos [primeira formulação específica]: “Age como se a máxima de tua ação devesse ser erigida, por tua vontade, em lei universal da natureza”. O problema está em saber se os seres humanos que adotassem as nossas máximas como regras universais constituiriam uma ordem viável.! Além da questão de que as máximas subjetivas possam se converter em lei universal, há uma outra questão que diz respeito à própria caracterização do agir moral, que, como sabemos, não visa a nenhum fim. Ora, todo homem, enquanto ser racional, age em vista de um fim. Então, como pode uma máxima subjetiva converter-se em lei objetiva, isto é, que não vise a fins subjetivos? Isto pode ocorrer quando a vontade age determinada por um fim “objetivo”. Ora, para Kant, “objetivo” só pode ser um fim que seja fim em si mesmo, e nunca meio para outra coisa. Segundo Kant, na natureza há apenas um fim objetivo desse tipo: o homem. Assim, enquanto as coisas só têm valor para nós, os seres racionais ou pessoas têm valor absoluto. Se não houvesse nenhum fim absoluto, o imperativo categórico seria simplesmente impossível. Como ele efetivamente se apresenta à consciência moral, sua fórmula geral, considerando o princípio do querer agir por respeito à lei, pode ser precisada nestes termos [segunda formulação específica]: “Age de maneira que trates a humanidade, tanto na tua pessoa, como na pessoa de todos os outros, sempre ao mesmo tempo como fim, e nunca como meio”.! Kant reivindica para o homem uma responsabilidade total por suas ações, do ponto de vista moral. Nem mesmo Deus pode ser considerado causa dos atos humanos. É, enfim, a ideia da liberdade e da autonomia da vontade que pode explicar, justificar e ordenar a lei moral do homem. Não respeitá-la é, simplesmente, não ser livre, nem racional e, em último caso, nem homem. Apenas um fenômeno, entre outros.

Diálogo sobre a ética kantiana - Luís VeríssimoJoão: Estou profundamente desiludido com a teoria de Kant.Francisca: Pois eu nunca engoli muito bem a ética kantiana. Dá excessiva importância à intenção, mas esquece-se de que na prática só temos acesso às consequências.Maria: O quê? A mim parece uma excelente teoria. Julgo que o imperativo categórico ("Age unicamente de acordo com a máxima que te permita querer a sua transformação em lei universal") é realmente um princípio ético fundamental e universal. Fundamental porque é dele que brotam todos os nossos juízos morais, e universal porque qualquer agente racional tem de o aceitar.João: Ora aí está uma coisa que eu não percebo. Porque é que o imperativo categórico é um princípio racional? Porque é que uma pessoa racional não pode rejeitá-lo?Maria: Hmmm... Uma pessoa racional tem de ser coerente, não é?João: Sim, e depois?Maria: Então imagina que alguém diz isto: "Eu posso quebrar as promessas que faço, mas não quero, aliás não posso querer que todos quebrem as promessas que fazem." Julgo que quem pensa assim, rejeitando o imperativo categórico, está sendo incoerente, não te parece? Julgo que o imperativo categórico é uma simples exigência de coerência que nos impede, entre outras coisas, de abrir exceções convenientes para nós próprios. Portanto, qualquer pessoa racional tem de aceitá-lo.João: Talvez tenhas razão... Talvez seja verdade que, como agentes racionais, temos de agir apenas segundo máximas que possamos universalizar. No entanto, este princípio parece-me vazio, uma pura formalidade sem as implicações práticas que Kant pretendia. Não serve, por exemplo, para resolver conflitos entre deveres.

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Maria: Como assim?João: Imagina que um amigo teu está fugindo de um assassino e pede para se esconder em tua casa. Atrás dele vem o assassino e pergunta-te se essa pessoa se escondeu em tua casa. Segundo Kant, devo dizer a verdade em todas as circunstâncias, uma vez que os nossos deveres são categóricos, ou seja absolutos e incondicionais. Mas também temos o dever de ajudar um amigo em necessidade, porque não posso querer consistentemente que toda a gente deixe de ajudar os amigos em necessidade (isso não só me impediria de poder ajudar os meus amigos, como também me deixaria privado de toda a chance de obter ajuda quando precisasse). O que devo fazer nesta situação?Francisca: O problema é esse, para encontrar um princípio absoluto e universal, Kant parece ter-se esquecido das circunstâncias concretas em que nos encontramos quando agimos. A mim parece-me claro que, neste caso, o mais correto seria mentir e afastar o assassino do nosso amigo.Maria: Mas repara que se toda a gente andasse por aí mentindo, a mentira deixaria de fazer sentido, porque todas as pessoas deixariam de acreditar umas nas outras.Francisca: Acho que existe aqui outro problema!Maria: Que queres dizer?Francisca: Suponhamos que estou disposta a aceitar que só devemos executar as ações que tenham origem em máximas que possamos querer ver transformadas em leis universais.Maria: Sim, é esse tipo de comportamento que Kant espera de agentes morais, racionais.Francisca: Pois bem, um sado-masoquista poderia querer que a máxima "maltrata o próximo" se transfor-masse numa lei universal. E, no entanto, esta máxima vai contra aquilo que intuitivamente achamos correto.Maria: Hum... Acho que Kant responderia a isso dizendo simplesmente que o sado-masoquista não é um agente moral, racional, dado que se está guiando por um gosto (ou inclinação) pessoal e subjetivo, em vez de agir por dever.João: Bem, acho que podemos admitir que o imperativo categórico nos impede de mentir a torto e a direito e de maltratar o próximo. Mas, ainda assim, continuo a achar que a ética kantiana é vazia...Maria: Como assim?João: É vazia de emoções. Como podem emoções como a compaixão, a simpatia e o remorso não ter nada a ver com a moral?!Maria: Estás referindo àquela passagem em que Kant nos fala de uma pessoa que seja de tal modo compassiva, que sem nenhum tipo de interesse ou vaidade, se alegra ao espalhar a alegria à sua volta, agindo deste modo não por puro dever mas por inclinação, certo?João: Sim. Não me conformo com isso, acho que o papel que Kant atribui às emoções assume contornos pouco humanos.Francisca: E por falar em humanos... O lugar que Kant atribui aos animais não-humanos na sua ética é simplesmente vergonhoso.Maria: Que queres dizer?Francisca: Kant apresenta outra formulação do imperativo categórico, que nos diz: age de tal forma que trates a humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem, sempre como um fim em si e nunca apenas como um meio.Maria: Sim, mas isso só vem salientar o valor intrínseco que temos enquanto seres racionais, a dignidade humana.Francisca: Pois, o problema é que, além disso, Kant diz coisas como "no que diz respeito aos animais, não temos deveres diretos. Os animais [...] existem apenas como meios para um fim. Esse fim é o homem."João: Que horror!Francisca: Nesse aspecto, o utilitarismo veio finalmente propor uma teoria ética que coloca animais humanos e não-humanos na mesma categoria moral. E ainda há mais, o tratamento que Kant prevê na sua ética para os criminosos é desumano.João: Como assim?Francisca: A sua teoria é retributivista.João: O que quer isso dizer?Francisca: É tipo "Olho por olho, dente por dente": o crime deve ser pago na mesma moeda, o que quer dizer que nos casos de homicídio Kant era a favor da pena de morte.

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João: E o que aconteceu ao "trata a humanidade sempre como um fim em si mesma"?Maria: Calma. Kant explica isso da seguinte maneira: segundo o imperativo categórico, quando decidimos corretamente o que fazer, é porque podemos querer que a máxima subjacente à nossa ação se converta em lei universal, ou seja, se alguém maltrata um ser humano é porque acha que essa é a forma como devemos tratar as pessoas, e por isso é assim que quer ser tratado.Francisca: Bentham afirmou que "Toda a punição é danosa". Isto porque punir implica sempre tratar mal as pessoas, e não devemos retribuir o mal feito com outro mal. O retributivismo leva-nos a aumentar, e não a diminuir, a quantidade de sofrimento no mundo.Maria: E como defende o utilitarismo que devemos tratar os criminosos?Francisca: Os criminosos não precisam de punição, mas de tratamento. Alguém que viola a lei, mostra não ter respeito pelas normas sociais, e torna-se potencialmente perigoso para a sociedade, por isso deve, antes de mais, ser detido. Mas enquanto está detido, deve ingressar num programa de reabilitação tendo em vista a sua reinserção na vida em sociedade.Maria: Mas só estás considerando os aspectos negativos da ética kantiana, não achas que também existem aspectos positivos?Francisca: Eu acho que a ética kantiana está desatualizada. Não oferece quaisquer regras que permitam orientar-nos na prática. Além disso dá demasiada importância à intenção, e no dia-a-dia lidamos sobretudo com as consequências das nossas ações. Isto significa que idiotas bem-intencionados que acabem, involuntariamente por causar várias mortes em consequência da sua incompetência, podem ser moralmente inocentes à luz da teoria de Kant.Maria: Isso explica-se porque as consequências das nossas acções escapam muitas vezes ao nosso controle e, para Kant, dever implica poder, ou seja, só somos responsáveis por aquilo que podemos controlar.João: Sim, nesse ponto estou de acordo com Kant... mas espera aí! Perguntavas há pouco se não existiriam aspectos positivos na ética kantiana, gostaria que me falasses um pouco mais sobre eles.Maria: Gostaria de destacar essencialmente dois aspectos: a autonomia e a universalizabilidade. O primeiro prende-se ao fato de procurar o fundamento da moral em nós próprios, em particular, na nossa capacidade racional. Quer concordemos na totalidade com a teoria kantiana quer não, temos de reconhecer que os juízos morais têm de se apoiar em boas razões.João: Que queres dizer?Maria: Repara, um juízo moral é diferente da expressão de um gosto pessoal.João: O.K., entendo isso, mas gostaria que explicasses melhor.Maria: Então é assim: se alguém diz "Eu gosto de chocolate", não necessita apresentar razões para isso, está apenas a declarar um fato sobre si mesmo, nada mais.João: Sim, continua...Maria: Agora suponhamos que alguém diz que eu devo fazer isto ou aquilo (ou que fazer aquilo seria errado). Pode-se legitimamente perguntar por que motivo se deve fazê-lo (ou por que razão seria errado fazê-lo), e se a pessoa não nos puder dar qualquer boa razão podemos rejeitar o conselho como arbitrário ou infundado.João: Muito bem, já percebi. E em relação ao segundo aspecto, a universali....Maria: A universalizabilidade. Como vimos, Kant pensava que, para que uma ação fosse moral, a máxima subjacente teria de ser universalizável. Teria de ser uma máxima que se aplicaria de igual modo a todas as pessoas. Este requisito é a garantia da imparcialidade exigida por toda e qualquer norma moral. E, aliás, a igualdade de todos os cidadãos face à lei é um pressuposto básico de todas as sociedades democráticas do mundo contemporâneo.João: Por falar nisso, como achas que se passa do plano moral ao plano legal?Francisca: Pessoal, já viram as horas? Acho que esta conversa vai ter de esperar ou perdemos a caminhoneta.João: Tens razão vamos embora. Até amanhã, Maria!Maria: Até amanhã.

Luís Verí[email protected]

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Século XIX - Marx e a moral como superestrutura –No século XIX s relações entre capitalistas e proletariado atingiram níveis agudos de antagonismo. Marx, considera que “o ser social determina a consciência”, ou seja, “o modo de produção da vida material condiciona o desenvolvimento da vida social, política e intelectual em geral”. Isso significa que as expressões da consciência humana – inclusive a moral – são o reflexo das relações que os homens estabelecem na sociedade para produzirem sua existência.

Afirma que onde há sociedade dividida em classes, a moral da classe domi-nante impõe-se sobre a classe dominada e torna-se instrumento ideológico para manter a dominação. Por isso, só na sociedade mais fraterna, sem a exploração de uma classe sobre outra, é que se poderá esperar o surgimento de uma moral autêntica, numa sociedade sem Estado e sem propriedade privada.

Nietzsche (1844-1900) – O pensamento de Nietzsche se orienta no sentido de recuperar as forças inconscientes, vitais, instintivas subjugadas pela razão durante séculos. Em diversas de suas obras, como a Genealogia da moral, Nietzsche faz a análise histórica da moral e denuncia a incompatibilidade entre esta e a vida.

Critica Sócrates por valorizar o controle racional das paixões. Nasce aí, segundo Nietzsche o homem desconfiado de seus instintos, tendo essa tendência culminado com o cristianismo, que acelerou a “domesticação” do homem. Ao fazer sua crítica ,Nietzsche preconiza a “transvaloração de todos os valores”. Denuncia a falsa moral ,de rebanho, de escravos, cujos valores seriam a bondade, a humildade, a piedade e o amor ao próximo. Contrapõe a ela a moral “de senhores”, uma moral positiva que visa à conservação da vida e dos seus instintos fundamentais. O homem que consegue superar-se é o super-homem. É necessário assumir uma

perspectiva além do bem e do mal, isto é, “além da moral”. O que é bom? Tudo que intensifica no homem a vontade de potência. O que é mau? Tudo o que provém da fraqueza.”

Freud – as crenças racionalistas do poder que o homem teria de controlar os desejos e tornar-se o centro de suas próprias decisões foram seriamente abaladas pela teoria psicanalítica de Freud (1856-1939). Ao levantar a hipótese do inconsciente, Freud descobre o mundo oculto da vida das pulsões, dos dese-jos, da energia primária da sexualidade e agressividade que se encontram na raiz dos comportamentos humanos.

Para Freud, o ego, enquanto instância consciente da personali-dade, é pressionado por conflitos entre as forças pulsionais (vin-das do id) e as regras sociais (introjetadas pelo superego), e nem sempre pode reagir equilibradamente apelando para mecanis-mos de repressão. Se a moral supõe a autonomia, nada mais distante disso do que o comportamento resultante da repressão dos impulsos que sempre desencadeia formas doentias de comportamento.

O EXISTENCIALISMO No século XIX, o filósofo dinamarquês Kierkgaard foi o primeiro a descrever a angústia como experiência fundamental do ser livre ao se colocar em situação de escolha. Mais tarde, no século seguinte, os existencialistas continuaram o caminho por ele aberto, buscando compreender a singularidade da escolha livre.

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HEIDEGGER

Heidegger (1889-1976) nasceu na Alemanha, em uma família católica tradicional; estudou teologia e filoso-fia. Foi assistente e discípulo de Edmund Husserl a quem sucedeu na cátedra de filosofia. Em 1927, publicou sua obra fundamental Ser e tempo, dedicada a seu mestre, Husserl.

Muitas pessoas viram em seu pensamento uma forma de apoio ao nazismo, provocando uma polêmica que até hoje não está encerrada. Entretanto, em 1933, tornou-se reitor da Universidade de Friburgo e pouco depois demitiu-se do cargo por não concordar com a demissão de professores judaicos, feita por pressão dos nazistas.Para Heidegger, o homem dispõe de livre-arbítrio e pertence a um universo que só adquire significado a partir de sua reflexão. Discípulo de Husserl, na obra Ser e Tempo segue o método fenomenológico para discutir e elaborar uma teoria do ser. Assim, parte da análise do ser, que ele denomina Dasein no caso do ser humano. Esta expressão alemã significa justamente o “ser-aí”, isto é, um ser-no-mundo: o ser humano não constitui uma consciência separada do mundo; ser é “estourar”, “eclodir” no mundo.

A fenomenologia baseia-se no conceito de intencionalidade. Segundo essa noção, a consciência é sempre consciência de alguma coisa. Em outras palavras não há pura consciência separada do mundo, mas toda consciência visa ao mundo. Desse modo, a fenomenologia tenta superar não só o dualismo corpo-mente, como as dicotomias consciência-objeto e indivíduo-mundo, descobrindo nesses polos relações de reciprocidade.

Facticidade - O “ser-aí” (dasein) não é consciência separada do mundo, mas está num mundo que ele próprio não criou e ao qual se acha submetido em um primeiro instante. A isso chamamos facticidade. Além da herança biológica, o indivíduo recebe a herança cultural, que depende do tempo e do lugar em que nasceu.

Transcendência - Se o indivíduo é lançado no mundo de maneira passiva, pode tomar a iniciativa de descobrir o sentido da existência e orientar suas ações nas mais diversas direções. A isso se chama trans-cendência. Essa passagem, porém não é feita sem dificuldade, porque, mergulhado na facticidade, tende a recusar seu próprio ser, cujo sentido se anuncia mas que ainda se acha oculto. A angústia surge da tensão entre o que o indivíduo é e aquilo que virá a ser, como dono do seu próprio destino.

Autenticidade - A autenticidade ou a inautenticidade depende do sentido que o ser humano imprime à sua ação. O indivíduo inautêntico é o que se degrada vivendo de acordo com verdades e normas dadas. A despersonalização o faz mergulhar no anonimato, que anula qualquer originalidade. É o que Heidegger chama mundo do “se “, ao designar a impessoalidade da ação: come-se, bebe-se, vive-se, como todos comem, bebem, vivem. Ao contrário, a pessoa autêntica é aquela que se projeta no tempo, sempre em direção ao futuro, a possibilidades renovadas.

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Entre as possibilidades, a pessoa vislumbra uma delas, privilegiada e inexorável: a morte. O “ser-aí” é um “ser-para-a-morte”. A máxima “situação-limite”, que é a morte, ao aparecer no cotidiano, possibilita-lhe o olhar crítico sobre sua existência. É característica da inautenticidade abordar a morte como “morte na terceira pessoa”, ou seja, a morte dos outros, evitando tematizar a própria finitude e, portanto, nunca questionando a própria existência.

SARTRE E O EXISTENCIALISMO

Jean-Paul Sartre (1905-1980) escreveu O ser e o nada, sua principal obra filosófica, em 1943. Sofreu forte influência da fenomenologia de Husserl e da filosofia de Heidegger. Seu pensamento é muito conhecido e gerou, inclu-sive, uma “moda existencialista”, também pelo fato de ter se tornado famoso romancista e tea-trólogo. Sua produção intelectual foi marcada pela Segunda Guerra Mundial e pela ocupação nazista da França.

(na imagem temos Sartre e sua companheira de sempre Simone de Beauvoir, também filósofa e

escritora)

Foi um filósofo engajado com as mudanças sociais e políticas de seu tempo. O envolvimento com essa política também repercutiu na discussão da moral do sujeito concreto. Por isso, para Sartre, não é possível prever o conteúdo da moral, mas apenas indagar se o que fazemos é ou não em nome da liberdade.

A existência precede a essência“A existência precede a essência” é uma frase fundamental para compreendermos o existencialismo. Segundo as concepções tradicionais, o ser humano possui uma essência, uma natureza humana universal. Não é essa, no entanto, a posição de Sartre. Para ele, no caso do ser humano, a existência precede a essência. Ele afirma: “...o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo, só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente não é nada. Só depois será alguma coisa e tal como a si próprio se fizer. Assim, não há natureza humana, visto que não há Deus para a conceber. O homem é, não apenas como ele se concebe, mas como ele quer que seja, como ele se concebe depois da existência, como ele se deseja após este impulso para a existência; o homem não é nada mais do que ele próprio se faz. Tal é o primeiro princípio do existencialismo.” ( Sartre, Jean-Paul, O existencialismo é um humanismo)

Qual a diferença entre o ser humano e as coisas? É que só ele é livre, porque nada mais é do que seu projeto, ( do latim projectus, “lançado para a frente”) ou seja, o ser que age tendo em vista o que virá. Portanto, só o ser humano existe (ex -siste - do latim exsistere que significa “elevar-se para fora de”) porque, sendo consciente, é um “ser-para-si”, já que a consciência é autorreflexiva, pensa sobre si mesma, é capaz de pôr-se “fora” de si. É a consciência que distingue o ser humano das coisas e dos animais, que são “em-si”, ou seja, não são capazes de se colocar “do lado de fora” para se autoexaminarem.

O indivíduo descobre que não há essência ou modelo para orientar o seu caminho e que o 24 futuro encontra-se disponível e aberto; portanto, está irremediavelmente “condenado a ser livre”. Sartre cita a frase de Dostoiévski em Os irmãos Karamazov: “Se Deus não existe, então tudo é permitido”, para lembrar que os valores não são dados nem por Deus nem pela tradição: só ao próprio indivíduo cabe inventá-los.

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Angústia e má féAo experimentar a liberdade, o indivíduo vive a angústia da escolha. Muitas pessoas não suportam essa angústia, fogem dela, aninhando-se na má-fé. A má -fé é a atitude de quem finge escolher sem na verdade escolher, é um autoengano. Imagina que seu destino já está traçado: aceita as verdades exteriores, “mente” para si mesmo e simula ser ele próprio o autor dos seus atos, já que aceitou sem críticas os valores dados. Não se trata de uma mentira, pois esta supõe os outros para quem mentimos, enquanto na má-fé o indivíduo dissimula para si mesmo com o objetivo de evitar fazer uma escolha pela qual deva se responsabilizar.Sartre chama de espírito de seriedade esse comportamento de recusa da liberdade para viver o conformismo e a “respeitabilidade” da ordem estabelecia e da tradição.

Liberdade e responsabilidadeCom base no que Sartre afirma ser o existencialismo poderíamos supor que se trata de uma filosofia do individualismo, cada um se preocupando coma própria liberdade e ação. Sartre, contra esse mal-enten-dido, adverte:

“... quando dizemos que o homem é responsável por si próprio, não queremos dizer que o homem é responsável pela sua restrita individualidade, mas que é responsável por todos os homens...Com efeito, não há dos nossos atos um sequer que, ao criar o homem que desejamos ser, não crie ao mesmo tempo uma imagem do homem como julgamos que deve ser...Se a existência, por outro lado, precede a essência e se quisermos existir, ao mesmo tempo que construímos a nossa imagem, esta imagem é válida para todos, e para toda a nossa época. Assim, a nossa responsabilidade é muito maior do que poderíamos supor, porque ela envolve toda a humanidade.”

Segundo alguns autores, vários problemas decorrentes do pensamento sartriano, desencadeados pela consciência capaz de criar valores e, ao mesmo tempo, de se responsabilizar por toda a humanidade, o que parece gerar uma contradição indissolúvel. Sartre sempre prometeu escrever um livro sobre moral, mas não realizou seu projeto.

A FENOMENOLOGIA: A INTENCIONALIDADE

A Fenomenologia é a filosofia (e o método) que nasceu na Alemanha e teve como precursor Franz Brentano, no final do século XIX. Mas foi Edmund Husserl (1850-1938) quem formulou suas principais linhas, abrindo caminho no século seguinte para Heidegger, Karl Jaspers, Jean-Paul Sartre, Maurice Merleau-Ponty entre outros.

Os filósofos da corrente fenomenológica criticam a concepção dualista que separa corpo-mente, sujeito-mundo. Para tanto, baseia-se no conceito de intencionalidade. Segundo a noção de intencionalidade, a consciência e sempre consciência de alguma coisa. Em outras palavras, não há pura consciência separada do mundo, mas toda consciência visa ao mundo, numa relação de reciprocidade.

Afinal, o que é o corpo nessa perspectiva? Ele não se identifica às “coisas” porque, embora o corpo seja facticidade (fato, imanência), no sentido de estar lá com as coisas, não é facticidade pura, por ter também acesso às coisas e a si mesmo. Portanto, a dimensão de facticidade do corpo não se

desliga da possibilidade de transcendência.

Se o corpo não é coisa nem obstáculo, mas integra a totalidade do ser humano, meu corpo não é alguma coisa que eu tenho: eu sou o meu corpo. O corpo é o primeiro momento da experiência humana, porque antes de ser um “ser que conhece”, o sujeito é um “ser que vive e sente”, maneira essa de participar, com o corpo, do conjunto da realidade.

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FOUCAULT: A MICROFÍSICA DO PODER

Foucault ao investigar de que maneira as instâncias do poder atuam sobre o indivíduo para criar modos de agir e de pensar, conclui que a imposição de comportamentos passa pela domesticação e docilização do corpo.

Segundo Michel Foucault, autor de História da sexualidade, a civili-zação contemporânea fala muito sobre sexo, sobretudo a partir do discurso científico. Para ele, a ciência “naturaliza”o sexo, reduzindo-o a uma visão biologizante. Ao mostrá-lo como algo “natural”, estabe-lece padrões sobre o que é normal ou patológico, classifica os tipos de comportamento, determina a profilaxia e aprisiona os indivíduos à última palavra do “especialista competente”, por meio do qual o sexo é vigiado e regulado.

Pela teoria da microfísica do poder, Foucault demonstra como a debilitação do corpo não depende necessariamente do aparelho do Estado ou de algum outro modo de dominação às claras, tal como a escravidão. Mas trata-se da ação de micropoderes que se exercem de maneira difusa nos mais diversos campos da vida social e cultural, no próprio seio da sociedade. O novo tipo de disciplina atua na organização do espaço, no controle do tempo e na vigilância, visando à padronização de comportamento. Perguntamos: como fica a felicidade de um sujeito cuja autonomia é diminuída sem que ele perceba? Pode-se falar em felicidade com tão alto controle social?

MERLEAU-PONTY

Um dos mais importantes filósofos da corrente fenomenológica, o francês Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) relaciona a liberdade à compreensão do corpo, entendido como condição de nossa experiência no mundo. Para ele, não tenho um corpo, mas sou meu corpo, ou seja, meu corpo não é um objeto no mundo, mas é aquilo pelo qual o mundo existe para mim.

Merleau-Ponty desfaz a ideia tradicional de que de um lado existe o mundo dos objetos, do corpo, da pura facticidade e, de outro, o mundo da consciência e da subjetividade, da transcendência. O que ele pretende é compreender melhor as relações entre a consciência e a natureza, entre o interior e o exterior. Essas relações são de ambiguidade e sobreposição: “A verdade não “habita” apenas o “homem interior”, ou, entes, não existe homem interior, o homem es-tá no mundo, é no mundo que ele se conhece.” (Fenomenologia da percepção, Merleau-Ponty) A realidade não aparece da mesma maneira à percepção das pessoas, mas se dá a partir da vivência de cada um, a partir de um modo de existir e de dar sentido ao mundo.De que modo essas questões se relacionam com a liberdade, entendida como um plano de ação de transformação da realidade vivida? Merleau-Ponty dá o exemplo de um operário que toma consciência da exploração a que está submetida sua classe e que se engaja na revolução. Essa consciência não brota de um esforço intelectual de conhecimento, nem de uma escolha racional após o exame de um leque de alternativas de ação. Antes disso, o indivíduo viveu as dificuldades de sobrevivência, o medo do desemprego, os sonhos abortados.

Ora, enquanto para alguns essa situação aparece como uma fatalidade a que não teria meios de se opor, outros reagem diante dos fatos, pelas reivindicações, pelas greves, por eventuais conquistas. Antes de ter a consciência explícita da situação, o movimento amadurece na coexistência com os outros.

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A ESCOLA DE FRANKFURT

Fundada em 1923 sob o nome de Instituto para a Pesquisa Social, a Escola de Frankfurt reuniu sociólogos, filósofos e cientistas políticos. Os que mais se destacaram foram Theodor Adorno, Max Horkheimer, Walter Benjamin e Herbert Marcuse, que foram influenciados por Marx, apesar das críticas que lhe fizeram.

Tendo como perspectiva uma teoria crí-tica, que visa ao estabelecimento de uma versão do marxismo, esse movimento pretendia uma transformação radical da sociedade. Os frankfurtianos são Horkhei-mer, Adorno e Habermas (ao fundo). totalmente contrár ios ao sistema capitalista. A irracionalidade do ser humano consistiria na utilização de seu conheci-mento para fins puramente instrumentais (Razão instrumental), ou seja, voltados para o acúmulo de lucros e riquezas. Assim, rejeitam o progresso científico que determina a sujeição de indivíduos autônomos a um sistema totalitário, que encontra na uniformização da indústria da cultura o seu mecanismo de controle do poder.

Contra esse processo de massificação, o ser humano deve desenvolver sua razão crítica, para analisar as estruturas presentes em nossa sociedade a partir de sua livre convicção, de seus próprios princípios, que serão contrapostos aos dos demais na busca da verdade, da justiça e da autonomia.

O iluminismo do século XVIII representou a defesa da racionalidade contra os dogmas religiosos e sociais da época. A Escola de Frankfurt e sua teoria crítica racionalista podem ser consideradas como a retomada daqueles ideais, mas examinadas com rigor e criticamente, em face de suas consequências históricas.

A filosofia dos frankfurtianos é conhecida como teoria crítica. O que eles criticam? Leitores de Marx, Nietzsche, Freud, os frankfurtianos, sabem que não se adere à razão inocentemente. Concluem que a razão, exaltada tradicionalmente por ser “iluminada”, também traz sombras em seu bojo, quando se torna instrumento de dominação.

Na obra Eclipse da razão, Horkheimer distingue dois tipos de razão: a cognitiva e a instrumental. A primeira ,como o nome diz, é a que busca conhecer a verdade, enquanto a razão instrumental é aquela que visa agir sobre a natureza e transformá-la. No entanto, no capitalismo, com o desenvolvimento das ciências aplicadas à técnica - que permitiu o progresso da tecnologia a patamares jamais vistos -, a razão instrumental tomou tal vulto que se sobrepôs à razão cognitiva, a ponto de se poder afirmar que a ciência não visa mais o “homem” , mas sim o “lucro”.

Esses teóricos identificam a origem do irracional ao exercício desse tipo de racionalidade, que, em última análise, visa à dominação da natureza para fins lucrativos e coloca a ciência e a técnica a serviço do capital.

No entanto, quando a valorização dos meios se sobrepõe aos fins humanos, esvanece a ideia de que a ciência e a técnica seriam condição de emancipação social. Em vez de emancipar, provocaram o desaparecimento do sujeito autônomo, engolido pela uniformidade imposta pela indústria cultural, como disseram Adorno e Horkheimer, ou mergulhado na sociedade unidimensional, conforme conceito de Marcuse.

Os múltiplos interesses dos pensadores de Frankfurt e o fato de não constituírem uma escola no sentido tradicional do termo, mas uma postura de análise crítica e uma perspectiva aberta para todos os problemas

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da cultura do século XX, torna difícil a sistematização de seu pensamento. Pode-se, no entanto, salientar alguns de seus temas, chegando-se a compor um quadro de suas principais ideias.

De Walter Benjamin, devem-se destacar reflexões sobre as técnicas físicas de reprodução da obra de arte, (a perda da “aura”, da originalidade de uma obra de arte pode levar à democratização do conhecimento, da cultura) particularmente do cinema, e as consequências sociais e políticas resultantes; de Adorno, o conceito de indústria cultural e a função da obra de arte; de Horkheimer, os fundamentos epistemo-lógicos da posição filosófica de todo o grupo de Frankfurt, tal como se encontram formulados em sua teoria crítica; de Marcuse, - a sociedade unidimensional -a esperança em novas formas de libertação da Razão e emancipação do ser humano através da arte e do prazer; finalmente, de Habermas, as ideias sobre a ciência e a técnica como ideologia.

Com a chegada de Hitler ao poder na Alemanha, os membros do Instituto, na sua maioria judeus, migraram para Genebra, depois a Paris e finalmente, para a Universidade de Columbia, em Nova Iorque. A primeira obra coletiva dos frankfurtianos são os Estudos sobre Autoridade e Família, escritos em Paris, onde estes fazem um diagnóstico da estabilidade social e cultural das sociedades burguesas contemporâneas. Nestes estudos, os filósofos põem em questão a capacidade das classes trabalhadoras em levar a cabo transformações sociais importantes.

Esta desconfiança, que os afasta progressivamente do marxismo operário, se consuma na Dialética do Esclarecimento de 1947, onde o termo marxismo já se encontra quase ausente. Em 1949-1950 publicam os Estudos sobre o Preconceito que representa uma inovação significativa nas metodologias de pesquisa social, embora de pouca significação teórica.

Com Erich Fromm e Herbert Marcuse inicia-se uma frente de trabalho que associa a Teoria Crítica da Sociedade à psicanálise. Fromm, precursor desta frente de trabalho, logo se distancia do núcleo da Escola, e este perde o interesse pela Psicanálise até o início dos trabalhos de Marcuse.

Marcuse, que permanece nos EUA após o retorno do Instituto para a Alemanha em 1948, foi o mais significativo dos frankfurtianos, do ponto de vista das repercussões práticas de seu trabalho teórico, já que teve influência notável nas insurreições antibélicas e nas revoltas estudantis de 1968 e 1969.

Adorno continuará o trabalho iniciado na Dialética do Esclarecimento, de reformulação dialética da razão ocidental, em sua Dialética Negativa, sendo considerado ainda hoje o mais importante dos filósofos da Escola. Com a sua morte, começa o que alguns chamam de segundo período da Escola de Frankfurt, tendo como principal articulador o antes assistente de Adorno e, depois, seu crítico mais ferrenho: Jürgen Habermas.

HABERMAS E A ÉTICA DISCURSIVA

Jürgen Habermas (1929) é um dos principais repre-senantes da chamada segunda geração da Escola de Frankfurt. Foi assistente de Adorno antes de seguir caminhos próprios de investigação filosófica.

Habermas continuou a discussão a respeito da razão instrumental, iniciada pelos frankfurtianos. Como vive em época posterior a eles, encontra-se diante de uma realidade diferente, representada pela sociedade industrial do capitalismo tardio - o capitalismo contem-porâneo de tecnologia avançada, produção em escala e consumo em massa. Esse novo contexto o levou a elaborar uma teoria social baseada no conceito de racionalidade comunicativa, que se contrapõe à

razão instrumental. Habermas desenvolve a teoria da ação comunicativa, conceito básico para a compreensão da chamada ética do discurso.

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Por meio dessa teoria, critica a filosofia da consciência da tradição moderna por ser fundada em uma reflexão solitária, centrada no sujeito. Habermas critica Descartes e Kant, cuja razão subjetiva busca por si mesma o caminho que levaria à verdade indubitável, Propõe outro paradigma em que a razão não seja monológica (diz respeito ao monólogo), mas dialógica, como resultado do processo de entendimento intersubjetivo, são os sujeitos, situados historicamente, que, pela fala, estabelecem uma relação interpes-soal numa comunidade comunicativa.Essa “pluralidade de vozes” não cai no relativismo, uma vez que, por meio do procedimento argumen-tativo, o grupo busca o consenso a partir de princípios que visam a assegurar sua validade. Portanto, a verdade não resulta da reflexão isolada, no interior de uma consciência solitária, mas é exercida por meio do diálogo orientado por regras estabelecidas pelos membros do grupo, numa situação dialógica ideal; A situação ideal de fala consiste em evitar a coerção e dar condições para todos os participantes do discurso exercerem os atos de fala. Para Habermas o critério da verdade não consiste na correspondência dos enunciados com os fatos mas sim no consenso discursivo.

ÉTICA E RELATIVISMO CULTURAL (Harry Gensier)As posições de Ana Relativista e as de Rita RebeldeO relativismo cultural (RC) defende que o bem e o mal são relativos a cada cultura. O ‘bem” coincide com o que é “socialmente aprovado’ numa dada cultura. Os princípios morais descrevem convenções sociais e devem ser baseados nas normas da nossa sociedade. Começaremos por ouvir uma figura ficcional, a quem chamaremos de Ana Relativista, e que nos explicará a sua crença no relativismo cultural. Ao ler o que se segue reflita até que ponto esta é uma perspectiva plausível e se harmoniza com o seu ponto de vista. Depois de ouvirmos o que Ana tem para dizer, consideraremos várias objeções ao RC.

1. Ana RelativistaO meu nome é Ana Relativista. Aderi ao relativismo cultural ao compreender a profunda base cultural que suporta a moralidade. Fui educada para acreditar que a moral se refere a fatos objetivos. Tal como a neve é branca, também o infanticídio é um mal. Mas as atitudes variam em função do espaço e do tempo. As normas que aprendi são as normas da minha própria sociedade; outras sociedades possuem diferentes normas. A moral é uma construção social. Tal como as sociedades criam diversos estilos culinários e de vestuário, também criam códigos morais distintos. Aprendi-o ao estudar antropologia e vivi-o no México quando estive lá a estudar.Considere a minha crença de que o infanticídio é um mal. Ensinaram-me isto como se tratasse de um padrão objetivo. Mas não é; é apenas aquilo que defende a sociedade a que pertenço. Quando afirmo “O infanticídio é um mal” quero dizer que a minha sociedade desaprova essa prática e nada mais. Para os antigos romanos, por exemplo, o infanticídio era um bem. Não tem sentido perguntar qual das perspectivas é “correta”. Cada um dos pontos de vista é relativo à sua cultura, e o nosso é relativo à nossa. Não existem verdades objetivas acerca do bem ou do mal. Quando dizemos o contrário, limitamo-nos a impor a nossas atitudes culturalmente adquiridas como se se tratassem de “verdades objetivas”.“Mal” é um termo relativo. Deixe-me explicar o que isto significa. Quero dizer que nada está absolutamente “à esquerda”, mas apenas “à esquerda deste ou daquele” objeto. Do mesmo modo, nada é um mal em absoluto, mas apenas um mal nesta ou naquela sociedade particular. O infanticídio pode ser um mal numa sociedade e um bem noutra. Podemos expressar esta perspectiva claramente através de uma definição: “x é um bem” significa “a maioria (na sociedade em questão) aprova X”. Outros conceitos morais como “mal” ou “correto”, podem ser definidos da mesma forma. Note-se ainda a referência a uma sociedade específica. A menos que o contrário seja especificado, a sociedade em questão é aquela a que pertence a pessoa que formula o juízo. Quando afirmo “Hitler agiu erradamente” quero de fato dizer “de acordo com os padrões da minha sociedade”.O mito da objetividade afirma que as coisas podem ser um bem ou um mal de uma forma absoluta e não relativamente a esta ou àquela cultura. Mas como poderemos saber o que é o bem ou o mal em termos absolutos? Como poderíamos argumentar a favor desta idéia sem pressupor os padrões da nossa própria sociedade? As pessoas que falam do bem e do mal de forma absoluta limitam-se a absolutizar as normas que vigoram na sua própria sociedade. Consideram as normas que lhes foram ensinadas como fatos objetivos. Essas pessoas necessitam de estudar antropologia, ou viver algum tempo numa cultura diferente.

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Quando adotei o relativismo cultural tomei-me mais receptiva a aceitar outras culturas. Como muitos outros estudantes, eu partilhava a típica atitude “nós estamos certos e eles errados”. Lutei arduamente contra isto. Apercebi-me de que o outro lado não está “errado” mas que é apenas “diferente”. Temos, por isso, que considerar os outros a partir do seu próprio ponto de vista; ao criticá-los, limitamo-nos a impor-lhes padrões que a nossa própria sociedade construiu. Nós, os relativistas culturais, somos mais tolerantes.Através do relativismo cultural tomei-me também mais receptiva às normas da minha própria sociedade. O RC dá-nos uma base para uma moral comum no interior da cada cultura — uma base democrática que abrange as idéias de todos e assegura que as normas tenham um amplo suporte. Assim, posso sentir-me solidária com pessoas que partilham comigo uma mesma comunidade, ainda que outros grupos possuam diferentes valores.

2. Objeções ao Relativismo CulturalO principal problema vem a ser que o relativismo cultural nos força a conformarmo-nos com as normas sociais — ou contradizemo-nos, pois “bem” e “socialmente aprovado” significam a mesma coisa. Se o relativismo cultural fosse verdadeiro, não poderíamos consistentemente discordar dos valores da nossa sociedade. Mas isto é absurdo. Claro que podemos discordar dos valores da nossa sociedade. Podemos afirmar consistentemente que algo é socialmente aprovado e negar que seja um “bem”. Isto não seria possível se o relativismo cultural fosse verdadeiro.Rita RebeldeEis uma dificuldade ainda mais grave. Imaginemos que Ana encontrasse alguém chamada Rita Rebelde, oriunda de um país Nazi. Na terra natal de Rita, os judeus e os críticos do governo são colocados em campos de concentração. Sucede que a maioria das pessoas, mal informadas sobre o que se passa, aprovam esta política. Rita é uma dissidente. Defende que esta política, apesar do apoio da maioria das pessoas, está errada. Se Ana quisesse aplicar o relativismo cultural a esta situação particular teria que dizer a Rita algo do gênero: Rita, a palavra “bem” refere-se ao que é aprovado pela tua cultura. Como essa cultura aprova o racismo e a opressão, deves aceitar esta atitude como um bem. Não podes pensar diferentemente. A perspectiva minoritária está sempre errada — o “bem” é, por definição, aquilo que socialmente é aprovado.A perspectiva do RC é intolerante para com as minorias (que automaticamente estão erradas) e forçaria Rita a aceitar o racismo e a opressão como sendo bons. Isto decorre da definição de “bem” como algo “socialmente aprovado”.O racismo é um bom teste para a ética. Uma perspectiva ética satisfatória deve fornecer-nos os meios para combater atos racistas. O RC falha neste aspecto por estar comprometido com a tese segundo a qual as ações racialmente motivadas são boas numa dada sociedade se essa sociedade as aprova.A educação moral é também um bom teste ético. Se aceitássemos o RC, como educaríamos os nossos filhos em questões de ordem moral? Ensinar-lhes-íamos que pensassem e agissem de acordo com as normas da sua sociedade, qualquer que esta fosse. Estaríamos ensinando-os a serem conformistas. Aceitar o RC priva-nos de exercer qualquer sentido crítico acerca das normas da nossa sociedade. Estas normas não podem estar erradas — ainda que resultem da estupidez e da ignorância.Do mesmo modo, as normas de outras sociedades (mesmo as da terra natal de Rita) não podem estar erradas ou serem criticadas, O RC contraria o espírito crítico que é próprio da filosofia.

3. Diversidade moralO relativismo cultural considera o mundo como algo que está dividido de uma forma nítida em sociedades distintas. Em cada uma delas não existe desacordo em questões morais ou apenas em pequena escala, dado que a perspectiva majoritária determina o que é considerado um bem ou um mal nessa sociedade. Mas o mundo não é assim. Pelo contrário, o mundo é uma mistura confusa de sociedades e grupos sobrepostos; e os indivíduos não seguem necessariamente o ponto de vista da maioria.O relativismo cultural ignora o problema dos subgrupos. Todos nós fazemos parte de grupos sobrepostos. Cada um de nós, por exemplo, faz parte de uma nação, de um estado, de uma cidade, de um bairro. Além disso, cada um de nós pertence a várias comunidades, profissionais, religiosas, grupos de amigos, etc. E’ freqüente estes grupos terem valores que estão em conflito. De acordo com o RC, quando afirmo “O racismo é um mal” pretendo dizer “A minha sociedade desaprova o racismo”. Mas a que sociedade nos referimos? Talvez a maioria das pessoas que pertencem à minha comunidade religiosa e ao meu país

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desaprove o racismo, enquanto a maioria dos que fazem parte do meu grupo profissional e familiar o aprovem. O relativismo cultural poderia dar-nos meios para nos conduzirmos corretamente no plano moral apenas se cada um de nós pertencesse a uma sociedade única e uniforme. Mas o mundo é bastante mais complicado do que este quadro sugere. Até certo ponto, todos nós somos indivíduos multi-culturalizados.O RC não tenta estabelecer normas comuns entre sociedades. À medida que a tecnologia invade o planeta, as disputas morais entre diferentes sociedades tendem a se tornarem mais importantes. O país A aprova a existência de direitos iguais para as mulheres (ou outras raças e religiões), mas o país B desaprova-o, O que deve fazer uma companhia multinacional que opera nos dois países? Certas sociedades, A e B por exemplo, têm conflitos de valores que podem conduzir à guerra. E o relativismo cultural pouco nos ajuda acerca destes problemas, oferece-nos uma base muito pobre para responder às exigências da vida no século XXI.Como responder à diversidade cultural entre sociedades? Ana rejeita a atitude dogmática do gênero “Nós estamos certos e eles errados”. Percebe a necessidade de compreender as sociedades e culturas diferentes da sua própria a partir do ponto de vista dessas culturas e sociedades. Estas são idéias positivas. Mas, em seguida, afirma também que nenhum dos lados pode estar errado. Isto limita a nossa capacidade para aprender. Se a nossa cultura não pode estar errada, não se pode aprender com seus próprios erros. Compreender as normas de outras culturas não nos ajuda a corrigir os erros das nossas próprias socie-dades.

4. Valores objetivosA perspectiva objetivista (também designada realismo moral) defende que certas coisas são objetivamente um bem ou objetivamente um mal, independentemente do que possamos sentir ou pensar. Martin Luther King, por exemplo, defendia que o racismo está objetivamente errado. Que o racismo esteja errado era para ele um fato. Qualquer pessoa e cultura que aprovasse o racismo estariam erradas. Ao dizer isto, King não estava absolutizando as normas da nossa sociedade; discordava, pelo contrário, com normas amplamente aceitas. Fazia apelo a uma verdade mais elevada acerca do bem e do mal, uma verdade que não estava dependente do modo de pensar ou sentir das pessoas neste ou naquele momento. Fazia apelo a valores objetivos.Ana rejeita a crença em valores objetivos e chama-lhe “o mito da objetividade’. As coisas não são objetivamente boas ou más, como King pensava. Ana tinha dois argumentos contra a objetividade dos valores. Não existem verdades morais objetivas porque:• As sociedades discordam amplamente acerca de moralidade;• Não existe uma maneira clara de resolver diferenças morais.Estes argumentos cedem com facilidade se os examinarmos cuidadosamente.1. O simples fato de existir desacordo não mostra que não existe verdade neste domínio e que nenhum dos lados está certo ou errado. O extenso desacordo entre diferentes culturas acerca de antropologia, religião, não impede a existência de verdades objetivas nestes domínios. Logo, o desacordo em questões morais não mostra que não exista verdade nestes assuntos. Podemos igualmente nos questionar se as diferentes culturas divergem assim tão profundamente sobre a moral. Na maior parte das culturas existem normas muito semelhantes quanto a matar, roubar e mentir. A Regra de Ouro “Trata os outros como queres ser tratado” é quase universalmente aceita em todo o mundo. E as diferentes culturas que constituem as Nações Unidas concordaram em larga medida a respeito dos direitos humanos mais elementares.2. Se não existe uma maneira clara de resolver diferenças morais, pode haver maneiras claras de resolver pelo menos um grande número de diferenças morais. Ainda que não existisse uma maneira sólida de conhecer verdades morais, daí não se segue que tais verdades não existam. Existem verdades que não conhecemos. Terá chovido neste lugar 500 anos atrás? Há seguramente uma verdade acerca disto que nunca conheceremos. Apenas uma pequena percentagem de verdades são conhecidas. Logo, podem existir verdades morais objetivas mesmo que não possamos sabê-lo.O ponto de vista objetivista afirma que algumas coisas são objetivamente um bem ou um mal, independentemente do que possamos pensar ou sentir; contudo, esta perspectiva está preparada para aceitar algum relativismo noutras áreas. Muitas regras sociais são claramente determinadas por padrões locais: • Regra local: “É proibido virar à direita com a luz vermelha.”/ • Regra de etiqueta local: “Use o garfo apenas com a mão esquerda.” /

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É necessário respeitar este gênero de regras locais; ao proceder de outra maneira podemos ferir as pessoas, seja porque chocamos contra os seus carros seja porque ferimos os seus sentimentos. Na concepção objetivista, a exigência de não magoar as outras pessoas é uma regra de um gênero diferente — uma regra moral — não determinada por costumes locais. Considera-se que as regras morais possuem mais autoridade que as leis governamentais ou as regras de etiqueta; são regras que qualquer sociedade deve respeitar se quiser sobreviver e prosperar. Se visitamos um lugar cujos padrões permitem magoar as pessoas por razões triviais, então esses padrões estão errados. Respeitar as diferenças culturais não nos transforma em relativistas culturais. Este é um falso estereótipo. O que caracteriza o relativismo cultural é a afirmação de que tudo o que é socialmente aprovado é um bem.

5. Ciências sociaisHá um estereótipo bastante divulgado que afirma que todos os especialistas em ciências sociais são relativistas culturais. Muitos rejeitam este gênero de relativismo. O psicólogo moral Lawrence Kohlberg, por exemplo, considerava o relativismo cultural uma abordagem relativamente imatura da moralidade, típica de adolescentes e de adultos jovens. Kohlberg afirmava que todos nós, independentemente da nossa cultura, desenvolvemos o pensamento moral através de uma série de estágios. Os primeiros quatro são os seguintes:1. Punição / obediência: o ‘mal” é o que implica punição.2. Recompensas: o “bem” é aquilo que nos dá o que desejamos.3. Aprovação familiar: o “bem” é o que agrada à mamãe e ao papai.4. Aprovação social: o “bem” é aquilo que é socialmente aprovado.Quando são muito novas, as crianças pensam na moral em termos de punições e obediência. Mais tarde, começam a pensar em termos de recompensa e, em seguida, em termos de aprovação familiar. Mais tarde ainda, na adolescência ou quando são adultos jovens, atingem a fase do relativismo cultural. Nesta fase, o “bem” coincide com o que é socialmente aprovado, o grupo de amigos em primeiro lugar, e depois a sociedade como um todo. E dada importância ao tipo de vestuário que se usa e ao gênero certo de música que se ouve — onde “gênero certo” significa seja o que for que é socialmente aprovado. São muitos os jovens estudantes que se debatem com estas questões. Talvez por isso levem a sério o relativismo cultural — mesmo que o ponto de vista seja implausível quando o analisamos cuidadosamente.Segundo Kohlberg, que fase sucede ao relativismo cultural? Por vezes, confusão e ceticismo; de fato, um curso de ética pode promover esta atitude. A seguir, passamos para o estágio 5 (semelhante ao utilitarismo das regras) ou para o estágio 6 (próximo da Regra de Ouro). Ambos procuram avaliar as normas convencionais racionalmente.Kohlberg e muitos outros especialistas em ciências sociais rejeitam enfaticamente o relativismo cultural. Vêem nele um estágio imaturo do pensamento moral que nos faz conformar com a nossa sociedade.Uma pessoa com maturidade moral, quando utiliza este termo, não pretende afirmar que “bem” significa “socialmente aprovado”.

6. SumárioO relativismo cultural afirma que “bem” significa o que é “socialmente aprovado” pela maioria de uma dada cultura. A moral é um produto da cultura. Afirma que as diferentes sociedades discordam amplamente sobre a moral e que não temos meios claros para resolver as diferenças. Os relativistas culturais consideram-se pessoas tolerantes; olham para as outras culturas não como estando “erradas” mas como “diferentes”.O RC tem vários problemas: torna impossível discordar dos valores da nossa sociedade. Leva-nos ainda a aceitar as normas da nossa sociedade acriticamente.O relativismo cultural combate a ideia de que existem valores objetivos. São muitos os especialistas em ciências sociais que se opõem ao relativismo cultural. O psicólogo Lawrence Kohlberg, por exemplo, defende que as pessoas de todas as culturas passam pelos mesmos estágios de desenvolvimento moral. O relativismo cultural representa um estágio relativamente inferior no qual simplesmente nos conformamos com os valores da sociedade em que vivemos. Em estágios mais avançados, o relativismo cultural é rejeitado; passamos a criticar as normas aceitas e pensamos pela nossa cabeça em questões de ordem moral.

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