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Tradução do grego, introdução e notas Rodolfo Lopes Platão Colecção Autores Gregos e Latinos Série Textos Timeu-Crítias

Timeu-Crítias · 2018. 8. 8. · 6 7 no t a p r é v i a O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova tradução do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira

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Page 1: Timeu-Crítias · 2018. 8. 8. · 6 7 no t a p r é v i a O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova tradução do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira

Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notasRodolfo Lopes

Platatildeo

Colecccedilatildeo Autores Gregos e LatinosSeacuterie Textos

Timeu-Criacutetias

Platatildeo

Timeu-Criacutetias

Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notasRodolfo Lopes

Autor PlatatildeoTiacutetulo Timeu-Criacutetias

Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices Rodolfo Lopes Editor Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Ediccedilatildeo 1ordf2011

Coordenador cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu FialhoConselho editorial Joseacute Ribeiro Ferreira Maria de Faacutetima Silva

Francisco de Oliveira Nair Castro SoaresDirector teacutecnico da colecccedilatildeo Delfim F Leatildeo

Concepccedilatildeo Graacutefica Rodolfo Lopes

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

Tel 239 859 981 | Fax 239 836 7333000-447 Coimbra

ISBN 978-989-8281-83-8ISBN Digital 978-989-8281-84-5

Depoacutesito Legal 32599511

Obra publicada com o apoio de

copy Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensiscopy Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e‑learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Iacutendice

Nota preacutevia 7

Introduccedilatildeo 11I Aspectos extratextuais 131 O projecto Timeu-CriacuteTias 132 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo 153 Personagens 20II Aspectos temaacutetico-estruturais 231 Antecedentes cosmoloacutegicos 232 O discurso de Timeu 3121 Pressupostos iniciais 3222 Intelecto e Necessidade 3423 O demiurgo 3824 O terceiro niacutevel ontoloacutegico 4225 O estatuto do discurso 483 O discurso de Criacutetias 5331 A historicidade da narrativa sobre a Atlacircntida 5532 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de Platatildeo 5633 Leituras alegoacutericas 634 Estrutura dos diaacutelogos 65

Timeu 69

CriacuteTias 213

ApecircndicesBibliografia 249Iacutendice analiacutetico 255Iacutendice de nomes e lugares 261Glossaacuterio 263

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nota preacutevia

O volume que se segue pretende por um lado apresentar uma nova traduccedilatildeo do Timeu e por outro disponibilizar a primeira versatildeo do texto do Criacutetias em portuguecircs Pelas razotildees que exporemos posteriormente (vide infra pp 13-15) a nossa proposta assenta em considerar ambos os diaacutelogos como um bloco uno tanto a niacutevel dramaacutetico como narrativo

Em relaccedilatildeo agraves duas traduccedilotildees do Timeu jaacute existentes no seguimento das quais esta forccedilosamente se inscreve cumpre esclarecer alguns aspectos A primeira de Manuel Maia Pinto (Porto Imprensa Moderna 1951) aleacutem do facto de contar com quase 50 anos denuncia bastantes fragilidades inexplicavelmente omite a secccedilatildeo inicial do texto (17a-20c) e assenta em pressupostos no miacutenimo discutiacuteveis como por exemplo a identificaccedilatildeo do demiurgo com Eros (eg pp 44 46) ou das Ideias com Deus na sua versatildeo judaico-cristatilde (eg pp 42 47) Jaacute a segunda da autoria de Maria Joseacute Figueiredo (Lisboa

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Instituto Piaget 2003) situa-se num niacutevel diferente na medida em que se manteacutem fiel ao texto grego ao seu autor e ao contexto histoacuterico-filosoacutefico que os enquadram bem como conta com uma excelente introduccedilatildeo da autoria de Joseacute Trindade Santos Em relaccedilatildeo a esta a nossa procuraraacute oferecer interpretaccedilotildees alternativas de alguns passos e uma anotaccedilatildeo mais vocacionada a por um lado esclarecer certas secccedilotildees do texto (principalmente as meta-narrativas) e por outro a propor algumas relaccedilotildees intertextuais As grandes diferenccedilas satildeo a ediccedilatildeo de base (a autora segue a de Rivaud) e a inclusatildeo na nossa versatildeo de iacutendices remissivos e glossaacuterio

Quanto agrave introduccedilatildeo procuraacutemos esclarecer alguns aspectos extratextuais (I) (1) a unidade dos dois diaacutelogos (2) a dataccedilatildeo e (3) as personagens Em relaccedilatildeo ao conteuacutedo tentaacutemos explicar com mais detalhe algumas questotildees que natildeo poderiam ser abrangidos nas notas em virtude da sua complexidade ou simplesmente porque pretendem acima de tudo situar o texto num quadro histoacuterico-filosoacutefico mais abrangente (II) (1) os antecedentes cosmoloacutegicos (2) o estatuto e estrutura da intervenccedilatildeo de Timeu e tambeacutem (3) da de Criacutetias Finalmente providenciaacutemos uma esquematizaccedilatildeo analiacutetica dos assuntos tratados nos diaacutelogos Como apensos agrave traduccedilatildeo incluiacutemos a lista da bibliografia citada um glossaacuterio dos termos mais importantes e respectivas traduccedilotildees seguido de um iacutendice analiacutetico e outro de nomes e lugares

Para a traduccedilatildeo seguimos a ediccedilatildeo estabelecida por Burnet salvo nalguns casos isolados em que se

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impunham alteraccedilotildees sugeridas e justificadas por novos dados entretanto aduzidos Em todos estes casos a divergecircncia foi devidamente assinalada em nota

Resta agradecer a todos quantos de algum modo participaram neste trabalho Maria do Ceacuteu Fialho e Maria Luiacutesa Portocarrero pela diligente orientaccedilatildeo da dissertaccedilatildeo da qual foi extraiacuteda grande parte dos elementos deste volume (toda a traduccedilatildeo do Timeu e cerca de dois terccedilos da introduccedilatildeo) Aacutelia Rodrigues Antoacutenio Pedro Mesquita Carlos A Martins de Jesus Delfim F Leatildeo Gabriele Cornelli Joatildeo Diogo Loureiro Maria Teresa Schiappa de Azevedo pela leitura criacutetica do manuscrito e tambeacutem ao Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos por ter acolhido com interesse a publicaccedilatildeo

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i aspectos extratextuais

1 O projecto Timeu-CriacutetiasA unidade entre os dois diaacutelogos verifica-se tanto

ao niacutevel dramaacutetico quanto ao temaacutetico Mas aleacutem de impliacutecita nestes duas dimensotildees a sequecircncia diegeacutetica eacute confessada pelos proacuteprios participantes Logo no iniacutecio do Timeu Criacutetias ao anunciar a Soacutecrates qual seraacute o programa (diathesis) de conversaccedilotildees para aquela ocasiatildeo diz muito claramente que a seguir a Timeu discursaraacute ele proacuteprio

Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada (27a2-27b1)

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A inclusatildeo de ambos os discursos no mesmo programa aliada ao gesto de Timeu passar a palavra a Criacutetias depois de terminar a sua intervenccedilatildeo tal como fora combinado (106b6-7) eacute motivo suficiente para considerar que haacute uma clara continuidade Para aleacutem disso uma leitura superficial de ambos seraacute com certeza bastante para perceber que eacute notoacuteria a intenccedilatildeo de Platatildeo em consideraacute-los partes de um todo em termos gerais o Timeu ocupa-se da constituiccedilatildeo do mundo e do Homem enquanto que o Criacutetias daacute seguimento a esse projecto ao apresentar a constituiccedilatildeo da dimensatildeo social ou seja da sua integraccedilatildeo em comunidade no mundo criado

Desta indissociabilidade datildeo tambeacutem conta as orientaccedilotildees dos estudos platonistas que cada vez mais tendem a considerar os dois como um soacute Aleacutem da uacuteltima grande monografia sobre estas obras (Johansen 2004) o congresso que lhes dedicou a International Plato Society aborda-as igualmente como um todo e natildeo como diaacutelogos separados (Calvo amp Brisson 1997) Ainda assim ao longo dos seacuteculos as atenccedilotildees sempre estiveram mais voltadas para o Timeu em virtude das questotildees filosoacuteficas nele abordadas Por esse motivo grande parte do que se trataraacute nesta Introduccedilatildeo diraacute respeito a esse diaacutelogo mas tendo sempre em conta que a ligaccedilatildeo com o Criacutetias eacute de tal forma estreita que nos permite encaraacute-los como uma obra soacute

De acordo com algumas breves referecircncias de que dispomos era provaacutevel que este projecto de Platatildeo incluiacutesse um terceiro diaacutelogo ndash o Hermoacutecrates ndash formando assim uma trilogia Logo no iniacutecio do Timeu

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quando Soacutecrates refere Hermoacutecrates faz questatildeo de o declarar competente em todos aqueles assuntos (20a8) e ao apresentaacute-lo nos mesmos moldes que as outras duas personagens parece implicar que tambeacutem uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele Essa possibilidade esclarece-se jaacute no Criacutetias quando Soacutecrates diz que Hermoacutecrates seraacute o terceiro a falar (108a) Contudo eacute muitiacutessimo provaacutevel que esse projecto nunca tenha sido consumado

2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeoAo abordarmos a data de uma obra com uma

estrutura desta natureza deveremos antes de mais ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista distintos o da data dramaacutetica isto eacute a altura ou eacutepoca a que se reporta a acccedilatildeo narrada por outro lado o da data real de composiccedilatildeo o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra

No que respeita agrave data dramaacutetica o seu estabelecimento dependeraacute da escolha de uma de duas vias Se considerarmos que Soacutecrates em 17c se refere agrave Repuacuteblica quando alude ao diaacutelogo que tinha travado com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor entatildeo a data dramaacutetica situar-se-aacute no dia a seguir agrave daquele outro diaacutelogo ndash por volta do ano 420 ou 421 aC durante as Bendideias1 Poreacutem se nos ativermos unicamente agravequilo que diz o texto sobre este aspecto a data apontada eacute um

1 Apud Pereira 2001 p XIII As Bendideias eram um festival religioso realizado no mecircs de Thargeleion (Junho)

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pouco diferente pois em 26e Soacutecrates refere de forma indirecta que aquele encontro se processa durante as Panateneias2 Quanto ao ano teraacute sido entre 430 e 425 aC (apud Taylor 1928 p 15 Duraacuten 1992 p 134 Brisson 2001 p 72) portanto alguns anos antes da Repuacuteblica

Aquela associaccedilatildeo com a Repuacuteblica de que depende a primeira via carece de alguma consistecircncia podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razotildees Nota muito bem Cornford (1937 pp 4-5) que o ldquoontemrdquo a que Soacutecrates se refere natildeo tem forccedilosamente que ser o dia do encontro na casa de Ceacutefalo mas poderaacute ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questotildees que nesse diaacutelogo satildeo tambeacutem discutidas Em segundo lugar a referecircncia agraves Panateneias natildeo eacute de todo inocente pois coaduna-se com o elogio de Criacutetias agrave vitoacuteria de Atenas sobre a Atlacircntida (20d-26c) bem como justifica a presenccedila de Hermoacutecrates (um estrangeiro) na cidade Aleacutem disso o resumo que Soacutecrates faz da conversa que tinham tido no dia anterior sobre o Estado ideal natildeo inclui todos os assuntos tratados na Repuacuteblica o que entra em contradiccedilatildeo com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais (to kephalaion 17c2) Por outro lado deve tambeacutem sublinhar-se que Soacutecrates inclui todos os presentes na dita conversa do dia anterior (17a1-2)3 Ora sabemos que nenhuma das personagens

2 O festival dedicado agrave deusa Atena tradicionalmente celebrado no 28ordm dia do mecircs de Hecatombeon (meados de Julho)

3 Note-se inclusivamente o uso da primeira pessoa do plural quando eacute referido o tal encontro do dia anterior (eg 17c7

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do Timeu excepto Soacutecrates participa na Repuacuteblica Deste modo seraacute porventura mais prudente optar pela segunda hipoacutetese e estabelecer a data dramaacutetica na altura das Panateneias

Quanto agrave data real de composiccedilatildeo eacute tradicionalmente situada nos uacuteltimos anos da vida de Platatildeo poreacutem houve algumas tentativas de a fazer recuar um pouco Segundo a primeira hipoacutetese (a mais antiga) o diaacutelogo pertence agrave uacuteltima fase da qual fazem parte tambeacutem o Sofista o Poliacutetico o Filebo e as Leis de acordo com a segunda ele deveraacute pelo contraacuterio ser incluiacutedo na fase meacutedia juntamente com Craacutetilo Feacutedon Banquete Repuacuteblica Fedro Parmeacutenides e Teeteto

A hipoacutetese tradicional foi postulada ainda na Antiguidade Plutarco por exemplo acreditava que o Criacutetias natildeo tinha sido acabado porque Platatildeo morrera enquanto o escrevia4 No entanto jaacute no seacuteculo XIX comeccedilaram a surgir algumas opiniotildees que apontavam para a inclusatildeo do diaacutelogo na fase meacutedia (vide Cherniss 1957 p 226 n 3) e jaacute na primeira metade do seacuteculo XX Taylor (1928 pp 4-5) admite no seu comentaacuterio ao Timeu que essa possibilidade devia ser tida em conta Alguns anos mais tarde esta hipoacutetese atinge o estatuto de tese quando Owen (1953) publica um artigo em que defende a sua validade com base em dois argumentos ndash um mais formal outro temaacutetico Por um lado partindo das anaacutelises estilomeacutetricas de Billig5 conclui

dieilometha 17d2 eipomen 18c1 epemnecircsthecircmen)4 Vida de Soacutelon 325 Billig (1920) Este autor fixar a cronologia do corpus Platonicum

atraveacutes de estudos estatiacutesticos baseados em padrotildees de frequecircncia de

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que o estilo do Timeu (e do Criacutetias) nada tem que ver com o dos diaacutelogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista Poliacutetico Filebo e Leis) mas que pelo contraacuterio estava muito proacuteximo do dos diaacutelogos meacutedios particularmente da Repuacuteblica do Fedro do Parmeacutenides e do Teeteto (Owen 1953 pp 80-82) Por outro lado Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Platatildeo aparecem no Timeu e noutros diaacutelogos da fase meacutedia no sentido de demonstrar que este seraacute obrigatoriamente anterior a alguns daqueles Diz por exemplo que o modo admiravelmente estaacutevel como a doutrina das Ideias aparece no Timeu eacute uma evidecircncia de que a obra seraacute mais anterior do que defende a hipoacutetese tradicional pois soacute no Parmeacutenides foi submetida a uma refutaccedilatildeo de tal forma irrepreensiacutevel que seria impensaacutevel que Platatildeo tivesse redigido o Timeu apoacutes o Parmeacutenides (Owen 1953 pp 82-83)

O artigo de Owen em virtude das ousadas conclusotildees que apresentava obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso Eacute Cherniss que quatro anos mais tarde vem desconstruir toda a sua argumentaccedilatildeo reforccedilando assim a posiccedilatildeo da teoria tradicional As suas conclusotildees muito bem fundamentadas apontam para que Craacutetilo Parmeacutenides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e

palavras e construccedilotildees sintaacutecticas Depois de recolhidos estes dados eram cruzados e analisados de forma a permitir um agrupamento estanque e inequiacutevoco dos diaacutelogos Este tipo de anaacutelise foi posteriormente alargado e ateacute melhorado com o contributo da informaacutetica mas continuou a carecer de alguma fiabilidade em virtude dos anacronismos resultantes

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que mais importante as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos diaacutelogos da fase tardia (Cherniss 1957 p 266)

Com efeito parece-nos que as teses de Owen natildeo se baseiam em dados suficientemente soacutelidos para abandonar a hipoacutetese tradicional Por um lado as anaacutelises estilomeacutetricas constituem um perigo metodoloacutegico que ameaccedila contaminar a coerecircncia da tarefa pois baseiam-se numa recolha ndash e posterior tratamento ndash de dados de um modo estatiacutestico que por se tratar de um processo linear e mecanizado pode aduzir agrave investigaccedilatildeo um sem nuacutemero de pequenos erros os quais imperceptivelmente multiplicados de um modo quase exponencial podem resultar em conclusotildees bastante problemaacuteticas Num desses estudos em que Owen se baseou o Criacutetias aparece muito distante do Timeu ainda que seja o proacuteprio autor a confessar e a corrigir esse erro (Owen 1953 p 80) acaba por denunciar as fragilidades daquele tipo de ferramenta Por outro lado a forma como lecirc o confronto das doutrinas de Platatildeo eacute tambeacutem faliacutevel pois admite uma perspectiva contraacuteria e igualmente vaacutelida Por exemplo o referido caso da doutrina das Ideias poderaacute ser interpretado do modo oposto apoacutes ter sido refutada no Parmeacutenides Platatildeo reformulou-a no Timeu ao acrescentar o terceiro princiacutepio ontoloacutegico ao processo de participaccedilatildeo ainda que como veremos a sua contribuiccedilatildeo se processe em contornos muitiacutessimo particulares

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3 PersonagensNos diaacutelogos participam quatro personagens

aleacutem de uma outra que eacute referida logo na primeira frase mas da qual natildeo resta qualquer notiacutecia Soacutecrates Timeu Hermoacutecrates e Criacutetias

Quanto ao primeiro que teria entre 40 a 45 anos agrave data dramaacutetica (apud Brisson 2001 p 72) pouco haveraacute a acrescentar aos milhares de paacuteginas que tecircm sido escritos ao longo dos tempos a natildeo ser o pormenor que muito bem notou Vlastos (1991 p 264) acerca da evoluccedilatildeo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cacircnone platoacutenico o facto de Soacutecrates se interessar por filosofia natural ou melhor por ciecircncias naturais como a biologia a fiacutesica a astronomia ou a quiacutemica ao contraacuterio do que acontecia em fases anteriores em que as suas preferecircncias cientiacuteficas estavam limitadas agraves ciecircncias matemaacuteticas como sugere a Repuacuteblica (vide 522b-sqq) No que respeita agraves restantes personagens cumpre dizer algumas palavras

Comeccedilando pelo primeiro protagonista Timeu cuja intervenccedilatildeo ocupa a grande maioria do que resta do texto (27c-106c) natildeo haacute evidecircncias concretas de que tenha realmente existido6 Com efeito todas as referecircncias a este suposto filoacutesofo pitagoacuterico satildeo posteriores ao diaacutelogo seu homoacutenimo no qual se diz ser um abastado cidadatildeo de Loacutecride na Itaacutelia tendo ali ocupado altos cargos na administraccedilatildeo poliacutetica e por isso recebido grandes louvores por parte dos

6 Natildeo confundir com o historiador homoacutenimo que viveu cerca de um seacuteculo depois

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habitantes locais (20a) De facto dadas as seacuterias duacutevidas em relaccedilatildeo ao Timeu histoacuterico haacute quem veja nele uma maacutescara de outra personalidade Ciacutecero refere nos Academica (11016) que Platatildeo quando foi pela primeira vez agrave Siciacutelia conviveu muito de perto com Timeu de Loacutecride e tambeacutem com Arquitas de Tarento Se a existecircncia do primeiro eacute duvidosa quanto agrave do segundo natildeo restam duacutevidas aleacutem de um poliacutetico exemplar Arquitas foi um matemaacutetico brilhante7 e mestre de ilustres matemaacuteticos como o proacuteprio Eudoxo conforme atesta Dioacutegenes Laeacutercio (8861) Por isso eacute possiacutevel que Timeu represente Arquitas contudo os dados disponiacuteveis natildeo permitem mais do que simples conjecturas

Por outro lado este caraacutecter fictiacutecio da personagem leva os estudiosos a questionar se Timeu natildeo seraacute um simples pseudoacutenimo de Platatildeo como fora inicialmente proposto por Wilamowitz-Moellendorff (1920 pp 591-592) e mais tarde desenvolvido por Cornford (1937 p 3) que sustentava esta argumentaccedilatildeo com o facto de ser impossiacutevel apontar algueacutem daquela eacutepoca que reunisse conhecimentos tatildeo aprofundados sobre tantas aacutereas do saber

Quanto a Criacutetias personagem responsaacutevel por narrar o episoacutedio da guerra que opocircs a Atenas primeva agrave Atlacircntida eacute sem duacutevida a figura que levanta mais dificuldades de ordem histoacuterica O principal problema eacute que a aacutervore genealoacutegica desta famiacutelia conta com quatro

7 Eacute-lhe por exemplo atribuiacuteda a duplicaccedilatildeo do cubo (DK 47A14)

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figuras com o nome ldquoCriacutetiasrdquo o I filho de Dropidas I e irmatildeo de Dropidas II (a quem Soacutelon teraacute transmitido o relato trazido do Egipto vide 20e) o II filho de Dropidas II um III neto do II e tio-avocirc de Platatildeo e um IV8 o dos Trinta Tiranos neto do III e primo do autor

A teoria tradicional proposta desde logo por Burnet (1914 p 338) e seguida por Cornford (1937 p 2) sustentava que se tratava do Criacutetias III tratava-se no fundo de fazer feacute nas palavras de Platatildeo Em todo o caso faltava ainda preencher o enorme fosso geracional entre este e Dropidas II Finalmente em 1949 surgiu num ostrakon encontrado na aacutegora de Atenas um registo que demonstrava a existecircncia histoacuterica de Ledas pai do Criacutetias III e filho de Dropidas II (vide Nails 2002 pp 106-107) Assim se confirmou com dados concretos a suspeita de Burnet

No que respeita a Hermoacutecrates o autor do suposto diaacutelogo pensado para seguir o Criacutetias a sua participaccedilatildeo limita-se a duas breves intervenccedilotildees (20d 108c) Quanto agrave sua existecircncia histoacuterica ela eacute inegaacutevel segundo Tuciacutedides (472) tratava-se de um homem de admiraacutevel inteligecircncia e coragem aleacutem de muitiacutessimo experiente em assuntos militares e notabilizou-se por ter previsto os planos expansionistas de Atenas logo em 424 aC (452) jaacute Proclo seguindo a mesma ideia de Tuciacutedides sublinha o seu protagonismo na vitoacuteria contra os Atenienses aquando da invasatildeo de Siracusa (Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo 17119-sqq)9 Note-

8 Participante no Caacutermides no Protaacutegoras e referido indirectamente na Carta VII (324c-d)

9 Sobre esta expediccedilatildeo militar vide infra pp 64-65

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se poreacutem que esta expediccedilatildeo foi posterior agrave data dramaacutetica do diaacutelogo

ii aspectos temaacutetico-estruturais

1 Antecedentes cosmoloacutegicosO texto do Timeu estabelece a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel e posteriormente dos seres que o habitam com particular evidecircncia para o Homem Considerando que este seraacute o eixo temaacutetico em torno do qual gira toda a narrativa eacute forccediloso que o diaacutelogo seja contextualizado num movimento que comeccedilara nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos A relaccedilatildeo de Platatildeo com esta tradiccedilatildeo eacute quase sempre ambiacutegua se por um lado a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes por outro importa dela vaacuterios elementos cuja autoria propositadamente silencia Daquela primeira inclinaccedilatildeo datildeo-nos testemunho vaacuterias passagens no Feacutedon (97c-99a) Soacutecrates confessa-se bastante desiludido com Anaxaacutegoras pelo facto de este inicialmente ter proposto o Intelecto (Nous) como causa de todas as coisas e posteriormente o ter trocado por princiacutepios naturais (ar aacutegua etc) nas Leis (889a-890a) onde o Estrangeiro de Atenas critica a tradiccedilatildeo dizendo que aquelas investigaccedilotildees estavam presas ao mundo do devir e por isso eram impassiacuteveis de constituir conhecimento estaacutevel ndash a principal censura eacute como no Feacutedon natildeo considerar o Intelecto como causa (889c5 ou de dia noun)

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Assim o Timeu surge como resposta ou proposta de substituiccedilatildeo das abordagens naturalistas a que segundo Platatildeo se tinham dedicado os preacute-socraacuteticos (cf Santos 2003 pp 18-22 47-50) Inscreve-se pois nessa tradiccedilatildeo como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade O exemplo mais claro desta dupla relaccedilatildeo ndash adaptaccedilatildeo e ruptura ndash eacute justamente o caso do Intelecto como veremos a sua concepccedilatildeo enquanto princiacutepio de racionalidade seraacute um dos elementos centrais da cosmologia platoacutenica

Quanto aos elementos que dela retira eles satildeo apenas acessiacuteveis por meio de reconstituiccedilotildees hermenecircuticas porquanto permanecem no anonimato No caso do Timeu os mais flagrantes e fundamentais seratildeo os adaptados de Empeacutedocles e do pitagorismo enquanto que os restantes se resumem a alguns aspectos pontuais10

Aleacutem das oacutebvias semelhanccedilas entre os quatro elementos e as ldquoraiacutezesrdquo (rhizocircmata) de Empeacutedocles (DK 31B6) haacute diversos pontos de contacto entre os quais poderemos citar alguns exemplos Contudo como veremos eacute incorrecto supor que Platatildeo tenha simplesmente decalcado esses dados doutrinas ou teorias pois na maior parte dos casos essa importaccedilatildeo implicou uma evidente adaptaccedilatildeo motivada por um dos pressupostos mais importantes do diaacutelogo a clara e absoluta distinccedilatildeo entre uma dimensatildeo preacute-coacutesmica e outra poacutes-criaccedilatildeo

10 Por esse motivo seratildeo apenas referidos em nota ao longo da traduccedilatildeo

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No passo em que se diz que o mundo foi constituiacutedo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atraveacutes da proporccedilatildeo para que como sumo fim obtivesse amizade (philia 32c) eacute muitiacutessimo convidativa a coincidecircncia entre este termo e o Amor (Philotecircs) de Empeacutedocles (DK 31B17) Contudo deveremos ter em conta que enquanto neste autor se trata de uma forccedila dinacircmica que de certo modo unifica as raiacutezes no texto de Platatildeo eacute claramente um resultado em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo isto eacute uma finalidade ou seja ainda que estejamos perante o mesmo conceito conveacutem ter em conta que cada um daqueles contextos tem implicaccedilotildees de ordem pragmaacutetica muito distintas um eacute processo (no caso de Empeacutedocles) outro seraacute fim ou resultado (no caso de Platatildeo)

Ainda assim haacute outras ocasiotildees em que embora crivadas por um processo de adaptaccedilatildeo as doutrinas do primeiro se espelham no segundo Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera Timeu evoca claramente a Esfera de Empeacutedocles muito embora a daquele resulte de um processo criativo enquanto que a deste se situa numa fase preacute-coacutesmica as semelhanccedilas satildeo evidentes particularmente a niacutevel vocabular tal como a esfera do preacute-socraacutetico o mundo de Timeu eacute uacutenico (33a1 ad DK 31B28) esfeacuterico (33b4 ad idem) razatildeo pela qual natildeo teria necessidade de membros (33d3-34a1 ad DK 31B29) e todos os pontos da sua superfiacutecie estavam a igual distacircncia do centro (34b2 ad idem) Embora por vezes as palavras utilizadas natildeo sejam

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exactamente as mesmas eacute bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semacircntico insistindo por outro lado a caracterizaccedilatildeo nos mesmos pormenores e inclusivamente no mesmo princiacutepio geomeacutetrico se a forma eacute esfeacuterica todos os pontos da superfiacutecie seratildeo equidistantes do centro

De um ponto de vista estrutural a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante proacuteximo do que descreve Empeacutedocles principalmente no que concerne ao modo como o seu equiliacutebrio eacute garantido Quando o demiurgo fabrica a alma do mundo faacute-lo atraveacutes de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo agraves quais atribui dois movimentos distintos contudo complementares

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente (36c5-7)

Tal como acontece com o Amor e a Discoacuterdia de Empeacutedocles que actuam com os elementos de um modo diametralmente oposto promovendo ainda assim o intercacircmbio ciacuteclico entre si (cf DK 31B17) eacute tambeacutem a concomitacircncia dos movimentos contraacuterios de entidades igualmente contraacuterias como o Mesmo e o Outro que no Timeu garantem o equiliacutebrio do mundo natural a colocaccedilatildeo destas naturezas na oacuterbita da alma do mundo cuja funccedilatildeo primordial seraacute governar o seu corpo (34c) garante-lhe essa funccedilatildeo decisiva Eacute evidente que se poderia admitir que esta noccedilatildeo de equiliacutebrio enquanto

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negociaccedilatildeo paciacutefica de forccedilas opostas tenha outra matriz que natildeo a de Empeacutedocles ndash por exemplo a teoria dos opostos Heraclito (eg DK22B67) ndash ou mesmo que se trata de uma concepccedilatildeo transversal impassiacutevel de ser identificada com um autor em particular Contudo o caraacutecter estrutural que a convivecircncia destas forccedilas assume no equiliacutebrio global do mundo pois natildeo se trata de um princiacutepio que afecta vaacuterias entidades como acontece em Heraclito aliado ao facto de essa relaccedilatildeo ter como sumo fim a amizade como foi referido anteriormente far-nos-aacute reconhecer a estreita ligaccedilatildeo

A par de Empeacutedocles a outra grande influecircncia na composiccedilatildeo do Timeu foi conforme dissemos o pitagorismo Eacute de tal modo acentuada que durante a Antiguidade alguns comentadores neoplatoacutenicos acreditavam que Platatildeo se baseara na obra Sobre a Alma do Mundo da autoria do suposto filoacutesofo pitagoacuterico Timeu de Loacutecride Embora hoje se saiba que se trata apenas de uma versatildeo doacuterica do texto de Platatildeo datada do seacuteculo I dC esta curiosidade eacute bem ilustrativa do quatildeo acentuada eacute a presenccedila do pitagorismo no diaacutelogo

Em primeiro lugar o ambiente ritual em que decorre o diaacutelogo faz lembrar o espiacuterito cientiacutefico-religioso que definia o pitagorismo natildeo esqueccedilamos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso (27c-d) e torna a invocaacute-los quando tem necessidade de forjar um novo comeccedilo agrave narrativa (48d) Desta tendecircncia jaacute alguns autores antigos tinham dado notiacutecia diz Proclo nos seus Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo

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(1303-18) que tal como pensam outros11 tambeacutem ele considera o proeacutemio inicial uma preparaccedilatildeo simboacutelica para a exposiccedilatildeo propriamente dita como era costume dos Pitagoacutericos

Aleacutem de definir a estrutura esta influecircncia funciona tambeacutem como acircncora teoacuterica a que toda a exposiccedilatildeo se fixa Como sabemos o conteuacutedo e a orientaccedilatildeo da fiacutesica pitagoacuterica tinham um caraacutecter profundamente teoloacutegico isso por si soacute seria suficiente para que Platatildeo adaptasse tal modelo ao seu sistema filosoacutefico Contudo mais do que adaptar preferiu incluir essa perspectiva e promovecirc-la a parte integrante criando aquilo a que podemos chamar ldquouma fiacutesica pitagoacuterica de Platatildeordquo Ao tornar teoloacutegica a sua filosofia natural garante a possibilidade de cumprir o principal objectivo do diaacutelogo dar a conhecer o processo de constituiccedilatildeo do mundo ou seja revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino Ora para estabelecer esse contacto entre divino e humano seria imprescindiacutevel esta vertente teoloacutegica e Platatildeo viu nos ensinamentos do pitagorismo essa preciosa ferramenta pois combinavam o saber fiacutesico com a atitude teoloacutegica ndash orientaccedilotildees verdadeiramente imprescindiacuteveis para o caso particular deste diaacutelogo

Essa vertente religiosa que determinaraacute a orientaccedilatildeo teoloacutegica deveraacute ser procurada um pouco para aleacutem de Pitaacutegoras nos Misteacuterios Oacuterficos Como

11 Refere-se muito provavelmente a Iacircmblico (apud Lernould 2000 p 65) cuja Sobre a Vida Pitagoacuterica tem por principal finalidade demonstrar a subordinaccedilatildeo das doutrinas de Platatildeo a Pitaacutegoras

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observa o proacuteprio Proclo na Teologia Platoacutenica (12526) Pitaacutegoras recebeu os rituais de Aglaofemo um iniciado de Orfeu e Platatildeo recebeu de Pitaacutegoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento Ainda que esta passagem de testemunho natildeo tenha sido assim tatildeo linear mas valha sobretudo numa dimensatildeo simboacutelica eacute por intermeacutedio de Pitaacutegoras que Platatildeo tem acesso agraves ferramentas teoacutericas oacuterficas que lhe permitiratildeo sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o Homem foram constituiacutedos e partir do que tem diante dos olhos para chegar regressivamente agrave sua criaccedilatildeo

Essas ferramentas satildeo fundamentalmente a matemaacutetica ndash sobretudo as suas vertentes geomeacutetrica e estereomeacutetrica ndash a muacutesica e a astronomia que utilizadas em conjunto permitiratildeo uma observaccedilatildeo do mundo fenomeacutenico de que se poderatildeo retirar conclusotildees com valor filosoacutefico Eacute por exemplo atraveacutes da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos atribuindo a cada um a figura correspondente de acordo com as suas propriedades cineacuteticas o cubo agrave terra pois eacute de entre os elementos o que se move mais lentamente (55d) o icosaedro agrave aacutegua (55b 56a) o octaedro ao ar (55a 56a) a piracircmide ao fogo (55d) De forma anaacuteloga a deduccedilatildeo destas figuras depende tambeacutem de um raciociacutenio matemaacutetico atraveacutes da combinaccedilatildeo dos triacircngulos-base (rectacircngulo equilaacutetero e isoacutesceles) mediada pela proporccedilatildeo a geometria em plano passa a estereometria tridimensional (54d-sqq) dando assim corpo agraves formas representaacuteveis mentalmente e de forma abstracta Em suma ao apoiar-se nos ramos matemaacuteticos

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da aritmeacutetica e da geometria a mensagem teoloacutegica pode tomar corpo e tornar-se uma fiacutesica filosoacutefica pois permite representar aquilo que natildeo pode ser alcanccedilado pelos olhos trata-se de uma matemaacutetica teoloacutegica

Aleacutem disso eacute atraveacutes da harmonia proporcionada pela muacutesica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes na medida em que ambas obedecem a um mesmo princiacutepio cineacutetico

na segunda [oacuterbita pocircs] o Sol por cima da Terra a Estrela da Manhatilde e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente (38d1-6)

()

De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento (80a6-80b1)

Os astros tal como os sons circulam juntos a diferentes distacircncias uns dos outros ndash os astros em espaccedilo os sons em tempo mas de acordo com uma mesma relaccedilatildeo numeacuterica que determina a harmonia do conjunto eacute a este raciociacutenio que segundo Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 291a10-11) os Pitagoacutericos chamavam ldquoa muacutesica das esferasrdquo cuja adaptaccedilatildeo eacute evidente no sistema

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que propotildee o Timeu Neste diaacutelogo Platatildeo parece recuperar a identificaccedilatildeo que Soacutecrates faz na Repuacuteblica (531a-c) entre muacutesica e astronomia Ao distinguir os muacutesicos que se dedicam agrave demanda do intervalo miacutenimo mensuraacutevel condenaacuteveis por se aterem em demasia agrave percepccedilatildeo sensiacutevel do som daqueles que procuram os nuacutemeros nos acordes que escutam diz que satildeo estes uacuteltimos que se aparentam aos que estudam os astros Esta teoria da muacutesica que Soacutecrates elogia eacute a pitagoacuterica

2 O discurso de TimeuComo dissemos a intervenccedilatildeo de Timeu versa

sobre o processo de criaccedilatildeo do mundo e de todas as coisas que o habitam Homem restantes animais deuses e ateacute as plantas Trata-se pois de uma tentativa de estabelecer um modelo explicativo do mundo assente em axiomas e pressupostos soacutelidos uma cosmologia Mas desta prerrogativa inicial nasce uma inevitaacutevel aporia como produzir uma cosmologia a partir da observaccedilatildeo do mundo do devir o reino da mudanccedila ininterrupta sendo por isso impassiacutevel de constituir objecto de verdadeiro saber Em uacuteltima anaacutelise como produzir saber a partir do sensiacutevel se soacute as Ideias (inteligiacuteveis) podem ser objecto de saber (cf Santos 2003 pp 13-15)

Para responder a estas questotildees nucleares Platatildeo recorre a um artifiacutecio deveras surpreendente pautar o discurso pela verosimilhanccedila mais do que pela certeza e assim apresentar uma proposta plausiacutevel em vez de um tratado dogmaacutetico e vinculativo o que de facto

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tambeacutem aproxima o projecto da tradiccedilatildeo cosmogoacutenica Ao mesmo tempo a validade desta proposta dependeraacute do estabelecimento preacutevio de axiomas estanques e estaacuteveis que forneccedilam um ponto de partida para a narrativa especulativa

21 Pressupostos iniciaisNa minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre [to on aei] e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem [to gignomenon] sem nunca ser Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo pois eacute imutaacutevel Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca (27d5-28a4)

Eacute fulcral que antes de tudo Timeu distinga aquilo que eacute sempre daquilo que estaacute sempre sujeito ao devir e por isso nunca chega a ser trata-se da ceacutelebre diferenccedila entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao sensiacutevel ndash um dos pilares do platonismo A esta distinccedilatildeo surge associada uma outra de caraacutecter epistemoloacutegico que tem que ver com a forma como cada um desses niacuteveis ontoloacutegicos pode ser apreendido se o que eacute cabe ao pensamento e agrave razatildeo jaacute o que pertence ao niacutevel do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos Toda esta argumentaccedilatildeo em torno da distinccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel faria adivinhar a ceacutelebre oposiccedilatildeo platoacutenica entre opiniatildeo (doxa) e saber (epistecircmecirc) estando a primeira destinada ao que deveacutem e a segunda ao que eacute sempre e visto que o propoacutesito do diaacutelogo eacute apresentar

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um discurso (logos) sobre o mundo implicando por isso a obediecircncia agrave verdade teria que se situar no acircmbito do saber No entanto ao comeccedilar a descrever os atributos do objecto em estudo Timeu daacute-se conta de que o mundo pertence agrave ordem do devir pois apresenta todas as caracteriacutesticas do sensiacutevel eacute visiacutevel (oratos 28b7) tangiacutevel (aptos 28b7) e tem corpo (socircma echocircn 28b7) Ora se o mundo eacute deveniente como produzir um discurso verdadeiro e estaacutevel sobre ele Eacute da resposta a esta pergunta que depende a validade de toda a proposta cosmoloacutegica

Sabendo entatildeo que o mundo pertence agrave ordem do devir o proacuteximo passo seraacute averiguar qual a sua causa pois de acordo com o preceito platoacutenico todas as coisas devenientes satildeo geradas por uma causa12 No caso do mundo a sua causa foi uma divindade (o demiurgo) que o fabricou por meio de um acto intelectivo de contemplaccedilatildeo do arqueacutetipo imutaacutevel (29a) Natildeo querendo antecipar as questotildees que esta personagem levanta e que seratildeo analisadas posteriormente digamos apenas que seraacute o centro das atenccedilotildees do discurso do protagonista Perante a falibilidade da descriccedilatildeo das coisas sensiacuteveis tentaraacute reconstituir a acccedilatildeo demiuacutergica a partir da observaccedilatildeo directa do que tem perante os olhos ndash a obra dessa divindade Ou seja se o mundo consiste numa entidade fabricada a partir de um arqueacutetipo significa que esse mesmo mundo eacute jaacute por si uma representaccedilatildeo portanto o meacutetodo para descrever

12 Cf Feacutedon 98c 99b Filebo 27b Leis 891e Timeu 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e

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a forma como foi fabricado poderaacute tambeacutem ele ser uma representaccedilatildeo sem que com isso ponha em causa a sua validade pois como diz Timeu

Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere (29b3-5)

Como muito bem nota Johansen (2004 p 50) aquilo que determina o estatuto do discurso eacute o facto de esse discurso ser congeacutenere ao seu assunto ou seja um discurso sobre uma representaccedilatildeo teraacute tambeacutem ele proacuteprio um teor representativo Ao mesmo tempo ele constitui o instrumento que nos permite situar o acircmbito do conteuacutedo a que se refere visto que transparece a sua natureza eacute nesta medida que os discursos ldquoexplicamrdquo E Timeu sublinha esta relaccedilatildeo ao qualificar com adjectivos semanticamente muito proacuteximos ambos referente e referido diz ele que o que eacute estaacutevel e fixo (monimou kai bebaiou 29b6) eacute interpretado por discursos estaacuteveis e invariaacuteveis (monimous kai ametaptocirctous 29b7) ao passo que aqueles que interpretam algo produzido como representaccedilatildeo (apeikasthentos 29c1) por serem eles proacuteprios tambeacutem representaccedilotildees (29c2) estabelecem com aquilo que representam uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia (29c2)

22 Intelecto e NecessidadeNum determinado momento da narrativa

(48e-49a) Timeu interrompe a descriccedilatildeo da criaccedilatildeo do

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mundo para esclarecer que tudo quanto referira ateacute aiacute tinha sido fabricado pelo Intelecto Era entatildeo altura de justapor ao discurso o que havia sido gerado pela Necessidade

Estes dois conceitos muito embora sejam decisivos no processo cosmoloacutegico natildeo satildeo curiosamente objecto de uma reflexatildeo metanarrativa como acontece por exemplo com o demiurgo Apenas eacute dito que a Necessidade eacute uma ldquocausa erranterdquo (to tecircs planocircmenecircs aitias 48c7) que foi persuadida pelo Intelecto a ldquoorientar para o melhor a maioria das coisas devenientesrdquo (48a) Esta informaccedilatildeo aleacutem de natildeo esclarecer a natureza daquelas entidades implica apenas que a cedecircncia da Necessidade foi apenas parcial (ldquoa maioria das coisasrdquo) Mas vejamos primeiro que tudo de que modo poderemos entender em que consistem

Quanto ao Intelecto eacute bastante convidativo fazecirc-lo coincidir com o demiurgo pois Timeu sublinha que o que acaba de descrever fora fabricado por este agente se no princiacutepio eacute dito que o demiurgo eacute a causa que originou o mundo a identificaccedilatildeo eacute oacutebvia Na verdade nas Leis Platatildeo define-o como responsaacutevel por governar tudo (875c-d) e por ter ordenado o mundo (966e) manifesta-se no movimento dos corpos celestes os quais os homens devem observar e seguir como paradigma (897d-898a) Transpondo esta descriccedilatildeo para o nosso contexto a identificaccedilatildeo do Intelecto com o demiurgo parece fazer sentido no entanto carece de explicaccedilatildeo o atributo de

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ldquogovernar tudordquo pois a divindade criadora retira-se logo apoacutes ter concluiacutedo a sua tarefa ndash tanto que entrega parte da sua ldquoobrardquo (a parte mortal da alma humana por exemplo) agraves divindades geradas por si Por esse motivo este Intelecto poderaacute por outro lado coincidir com a alma do mundo como pensa Cherniss (1944 pp 407-411 425 606-607) Ainda assim essa opccedilatildeo tambeacutem natildeo deixa de levantar problemas jaacute que como diz Brisson (1998 p 84) o demiurgo soacute pode ser independente pois constitui a causa de todas as coisas do mundo razatildeo pela qual natildeo poderaacute estar incluiacutedo naquilo que foi criado por si proacuteprio Independentemente de coincidir ou natildeo com o demiurgo o Intelecto corresponde a um princiacutepio de racionalidade teleoloacutegica pois visa acima de tudo ldquoorientar tudo para o melhorrdquo no fundo a vertente inteligente da criaccedilatildeo

Por oposiccedilatildeo a Necessidade seraacute algo cujo funcionamento se opotildee ao do Intelecto primeiro Timeu chama-lhe ldquocausa erranterdquo isto eacute sem finalidade (natildeo teleoloacutegica) segundo se a Necessidade cede a uma ldquopersuasatildeo racionalrdquo (peithous emphronos 48a) eacute evidente que a sua natureza seraacute de algum modo irracional Mas retomando a questatildeo deixada em suspenso acerca da cedecircncia unicamente parcial da Necessidade ela seraacute mais facilmente esclarecida se tomarmos em consideraccedilatildeo o seguinte

Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende

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constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade (69d3-6)

A consequecircncia de a Necessidade natildeo ter cedido senatildeo parcialmente implica que a proacutepria estrutura humana tenha sido tambeacutem parcialmente composta por ela Ao participar no processo de criaccedilatildeo o produto que dela resulta (o mundo e o Homem) partilharaacute da sua caracteriacutestica mais iacutentima a irracionalidade traduzida nas partes mortais da alma no caso do Homem no proacuteprio Homem no caso do mundo Corresponde no fundo agrave vertente mecacircnica e corpoacuterea da criaccedilatildeo que como tal natildeo dispotildee de racionalidade nem finalidade Como oportunamente sugere Santos (2003 p 28 n 32) a noccedilatildeo de ldquocausa erranterdquo pode perfeitamente ser equacionada com a passagem do Feacutedon (98c-99b) onde Soacutecrates esclarece que natildeo satildeo os seus muacutesculos e tendotildees a causa de estar na prisatildeo mas sim o Bem isto eacute a corporalidade mecacircnica natildeo pode constituir a causa primeira das coisas porquanto estaacute desprovida de qualquer razatildeo

No fundo a distinccedilatildeo entre estas duas entidades pode ser entendida agrave luz de um modelo dualista o Intelecto representa a vertente teleoloacutegica e inteligente e a Necessidade corresponde agrave corpoacuterea e irracional Sabendo que actuam como princiacutepios de criaccedilatildeo na medida em que determinam as duas faces do devir podem com justeza ser entendidos como condiccedilotildees de possibilidade do dualismo cosmoloacutegico

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23 O demiurgoLogo no iniacutecio da narrativa apoacutes a anuecircncia

de Soacutecrates Timeu comeccedila por definir o agente que constituiu o mundo como um deus (theos 31a2) bom (agathos 29e1) e absolutamente livre de inveja (peri oudenos oudepote phthonos 29e2) a melhor das causas (o drsquoaristos tocircn aitiocircn 29a6) daiacute que o que produza seja o mais belo (to kalliston 30a7) Como eacute evidente o estatuto divino do demiurgo natildeo coincide de forma alguma com o das divindades tradicionais do Olimpo grego Ao contraacuterio destes que protagonizam episoacutedios de adulteacuterio (Afrodite e Ares) guerras (a revolta dos Gigantes) e manifestam atributos opostos agrave bondade como a ganacircncia (de Cronos e posteriormente de Zeus) bem como interferem em certa medida com a acccedilatildeo quotidiana dos homens ndash os Poemas Homeacutericos satildeo bom exemplo disso ndash o demiurgo eacute todo ele bom e apoacutes ter criado a sua obra retira-se natildeo interferindo mais Eacute pois um agente divino que se situa num patamar superior ao das outras divindades tradicionais Isso eacute bastante evidente tendo em conta os dois tipos de demiurgia que a narrativa apresenta a primeira que diz respeito ao mundo e agrave parte divina do Homem eacute da autoria do demiurgo jaacute a segunda que trata das coisas mortais (a parte mortal da alma do Homem inclusive) foi delegada agraves divindades criadas por si

Em sentido inverso o demiurgo aparece caracterizado no texto mais como um homem do que como um deus Chega a ter emoccedilotildees quando se apercebe de que a sua obra estava a tomar o rumo certo jaacute que

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representava com bastante verosimilhanccedila o arqueacutetipo rejubilou e ficou satisfeito (37c7) Aleacutem disso tambeacutem a sua metodologia eacute descrita agrave luz de criteacuterios humanos pois descobre por meio de um raciociacutenio (logismos 30b1) e obedece a uma estrutura matemaacutetica (47b 87c)

Como ldquoconstrutorrdquo o demiurgo empreende uma actividade mimeacutetica Ao criar o mundo sensiacutevel por meio da imitaccedilatildeo do arqueacutetipo assemelha-se em grande medida a um artiacutefice que antes de produzir alguma coisa tem em conta uma forma da qual assimilaraacute as propriedades que faraacute corresponder no material que trabalha Assim potildee os olhos nas coisas que se mantecircm sempre iguais (as Ideias) Partindo deste conhecimento preacutevio age sobre o material de modo a dotaacute-lo de ordem pois que antes estava desordenado (30a3-5)

Levando mais longe a caracterizaccedilatildeo da obra do demiurgo como uma actividade mimeacutetica tenhamos em conta antes de mais que esta figura em termos muito gerais eacute um fabricador Este seu caraacutecter eacute desde logo confessado por Timeu no iniacutecio da sua narrativa pois a palavra que utiliza para o definir eacute muito simplesmente poiecirctecircs (28c3) Embora fosse demasiado forccedilado traduzi-la por ldquopoetardquo em virtude das contradiccedilotildees que essa opccedilatildeo levantaria natildeo eacute de todo inconcebiacutevel que ainda assim procuremos nele alguns atributos que o possam caracterizar como tal e a sua actividade como algo semelhante agrave criaccedilatildeo poeacutetica Jaacute foi dito que ela eacute mimeacutetica o que a situa num acircmbito muito proacuteximo do poeacutetico vejamos em que medida podemos aproximaacute-la ainda mais convocando para o efeito a forma como

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Platatildeo descreve a actividade dos poetas e comparando-a com a forma como no Timeu caracteriza o processo criativo levado a cabo pelo demiurgo

Primeiro que tudo eacute exactamente a mesma palavra ndash poiecirctecircs ndash que eacute usada para definir quer o fabricador do mundo neste diaacutelogo (28c3) quer os poetas um pouco por todo o corpus platoacutenico13 mas as semelhanccedilas natildeo se resumem a este pormenor vocabular Na Repuacuteblica numa altura em que se fala sobre o papel dos poetas na educaccedilatildeo a sua actividade (e tambeacutem o produto dessa actividade) eacute descrita como uma fabricaccedilatildeo (plassocirc 377b6) criaccedilatildeo (poieocirc 377c1 379a3) e composiccedilatildeo (syntithecircmi 377d6) No Timeu tambeacutem a acccedilatildeo da divindade eacute descrita com estes trecircs verbos14

Enquanto artiacutefice o demiurgo estaacute ligado agraves mais diversas artes de acordo com o que Platatildeo estabelecera na Repuacuteblica acerca da terceira classe de cidadatildeos como ferreiro quando fabrica a alma do mundo (35a-40d) e lhe daacute a forma de uma esfera armilar como pintor desenha os animais no mundo (55c5-6) isto eacute os corpos celestes associados aos animais do Zodiacuteaco eacute tambeacutem um modelador de cera (74c6) como oleiro para originar a massa oacutessea do corpo humano primeiro peneira a terra (73e1) em seguida mistura-a com o elemento liacutequido ndash a medula humedecida (73e2) ndash e finalmente daacute-lhe a forma num torno (73e7) como tecelatildeo quando fabrica os sistemas respiratoacuterio e circulatoacuterio num entranccedilado (78c1) semelhante a uma nassa (78b4) como agricultor

13 Eg Goacutergias 485d Iacuteon 534b Leis 935e Repuacuteblica 379a14 plassocirc 42d 73c 74a 78c poieocirc 31b 31c 34b 35b 36c

37d 38c 45b 71d 76c 91a syntithecircmi 33d 69d 72e

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ao semear (41e4) implantar (42a3) e enraizar (73b4) as almas nos corpos ou ainda quando a medula eacute comparada a um solo araacutevel (73c7) que deve receber a semente (73c7)

Contudo se no caso do artiacutefice ldquoconvencionalrdquo o material que trabalha eacute bastante oacutebvio no que trata ao demiurgo essa questatildeo eacute bastante mais delicada Eacute dito que a sua actividade consiste em contemplar o arqueacutetipo para trabalhar o material de modo a dotaacute-lo de ordem ele que antes estava desordenado (30a3-5) mas natildeo eacute especificada a natureza desse material Ora se a sua funccedilatildeo eacute ordenar organizar e impor medida e proporccedilatildeo onde as natildeo havia (69b) por meio da geometria e da matemaacutetica (53b-c) a mateacuteria-prima de que parte seraacute obviamente o substrato preacute-coacutesmico que existia no caos anterior agrave demiurgia Vejamos o exemplo dos elementos

Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros (53a7-b5)

O trabalho produtivo natildeo consiste numa criaccedilatildeo ex nihilo porquanto modela um material preacute-existente tem antes que ver com uma configuraccedilatildeo de acordo com uma matriz (a matemaacutetica) do substrato preacute-coacutesmico

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Ao agir como ordenadororganizador assemelha-se bastante a um administrador ou em uacuteltima anaacutelise a um poliacutetico se a sua tarefa pretende impor a ordem onde ela natildeo existia metaforicamente transmuta a anarquia do caos em sociedade coacutesmica A este respeito a proacutepria palavra decircmiourgos confirma essa orientaccedilatildeo semacircntica pois noutros contextos pode significar precisamente ldquomagistradordquo15 Deste modo quando Timeu lhe chama ldquocriador e pai do mundordquo (28c3-4) devemos entender esses epiacutetetos em primeiro lugar agrave luz do caraacutecter mimeacutetico da demiurgia e por outro lado de acordo com esta funccedilatildeo ordenadora ou seja seraacute ldquopairdquo como educador e natildeo como princiacutepio de geraccedilatildeo Tambeacutem como pai neste sentido de educador o demiurgo eacute para os homens um exemplo a seguir tal como Platatildeo diz no Teeteto (176b) acerca da necessidade de o Homem se tornar o mais semelhante possiacutevel agrave divindade ele eacute o arqueacutetipo a que o filoacutesofo deve aspirar

24 O terceiro niacutevel ontoloacutegicoNo momento em que acaba de descrever as obras

do Intelecto e passa agraves da Necessidade (48a) Timeu sente-se obrigado a reiniciar a narrativa e a desfazer a dicotomia ontoloacutegica inicial ser-devir acrescentando a estes dois tipos (dyo eidecirc 48e3) aquilo a que chama ldquoum terceiro de outra espeacutecierdquo (triton allo genos 48e4)

Ao contraacuterio do que acontece com os anteriores o modo de referir este terceiro tipo carece de clareza

15 Eg Aristoacuteteles Poliacutetica 1275b29 Poliacutebio 23516 Tuciacutedides 547 Cf Brisson (1998 p 50)

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e estabilidade epistemoloacutegica porquanto eacute acessiacutevel por meio de ldquoum certo raciociacutenio bastardordquo (logismocirc tini nothocirc 52b2) que carece de credibilidade (mogis piston 52b2) Ora seraacute inevitaacutevel o este caraacutecter hiacutebrido da explicaccedilatildeo se aplique tambeacutem ao assunto a que se reporta em trecircs ocasiotildees distintas Timeu caracteriza-o como ldquoum tipo difiacutecil e obscurordquo (chalepon kai amydron 49a3) ldquoinvisiacutevel e amorfordquo (anoraton kai amorphon 51a7) que ldquoparticipa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevelrdquo (metalambanon aporocirctata tou noecirctou 51a7-b1) Deixando de parte os problemas de interpretaccedilatildeo que esta descriccedilatildeo levanta a questatildeo que ocorre levantar eacute como formular um discurso que se reporta a algo imperscrutaacutevel

A dificuldade eacute desde logo anunciada pela incapacidade de o objectivar na linguagem Isso eacute evidente tanto nas palavras do protagonista como nas interpretaccedilotildees produzidas ao longo dos seacuteculos eacute que o termo chocircra eacute apenas uma das designaccedilotildees que recebe no texto aquela que a tradiccedilatildeo fixou Aleacutem desta que vertemos por ldquolugarrdquo (52a8) o terceiro tipo eacute tambeacutem chamado ldquoreceptaacuteculordquo (hypodochecirc 49a6) ldquosuporte de impressatildeordquo (ekmageion 50c2) ldquomatildeerdquo (mecirctecircr 50d3 51a5 88d7) ldquoaquilo em querdquo (to en ocirc 49e7 50d1 50d6) ldquolocalizaccedilatildeordquo (edra 52b1) e ldquolocalrdquo (topos 52a6 52b4) mais indirectamente eacute comparaacutevel a uma matildee (proseikasai mecirctri 50d2-3) e a uma ama (oion tithecircnecircn 49a6) Todas elas que de um modo geral se enquadram numa descriccedilatildeo da chocircra como suporte de alguma coisa parecem conferir-lhe uma concepccedilatildeo espacial contudo

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a flutuaccedilatildeo de termos como ldquolugarrdquo ldquolocalrdquo e ldquoaquilo em querdquo denuncia a impossibilidade de apontar onde eacute exactamente

A chocircra evidencia caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel eacute invisiacutevel e amorfa ao mesmo tempo que tangiacutevel mas apenas pensaacutevel por um raciociacutenio bastardo A esta constituiccedilatildeo ontoloacutegica hiacutebrida acresce o facto de em termos espaciais ser caracterizada de modo ambiacuteguo eacute extensatildeo ou espaccedilo como condiccedilatildeo de localizaccedilatildeo (ldquoprovidencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devirrdquo 52b6) e ao mesmo tempo o proacuteprio local ocupado por um determinado corpo (ldquoa natureza que recebe todos os corposrdquo 50b6) isto eacute a realizaccedilatildeo daquela extensatildeo (apud Mesquita 2009 p 91) A impossibilidade de associaacute-la em definitivo a uma das categorias ontoloacutegicas e a uma das acepccedilotildees espaciais por partilhar caracteriacutesticas que se aplicam a ambos os membros da equaccedilatildeo convida-nos a considerar que se possa situar no plano da abstracccedilatildeo Isto eacute se natildeo pertence ao inteligiacutevel nem ao sensiacutevel bem como natildeo admite por inteiro o local de contacto entre os dois niacuteveis resta considerar esse lugar uma abstracccedilatildeo do espaccedilo de particularizaccedilatildeo ldquonatildeo eacute senatildeo o particular pensado eideticamenterdquo (Mesquita 1995 p 146) No entanto se prescindirmos daquela distinccedilatildeo aceitando para tal a fusatildeo entre espaccedilo como extensatildeo e espaccedilo como concretizaccedilatildeo pontual e pegarmos no problema a partir das suas condiccedilotildees discursivas esta ideia de lugar de participaccedilatildeo abstraiacutedo pode tornar-se ligeiramente mais clara

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A descriccedilatildeo natildeo se processa de modo inequiacutevoco nem sequer toma corpo num discurso minimamente demonstrativo que pretenda tornar transparente a natureza da chocircra Em vez disso eacute comparada a uma matildee ou a uma ama equivalendo a forma como interage com o arqueacutetipo e com os particulares a um processo de impressatildeo de que ela eacute o suporte

() recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel () (50b8-c6)

Na medida em que se afigura como uacutenica alternativa possiacutevel o recurso ao metafoacuterico parece assim agravar o caraacutecter ldquodifiacutecil e obscurordquo tanto do assunto como da sua explicaccedilatildeo Mas se aceitarmos a premissa de que um discurso e o seu objecto partilham da mesma natureza seraacute de esperar que a natureza da proacutepria chocircra haacute-de tambeacutem ser metafoacuterica

Tomada na sua estrutura mais baacutesica a metaacutefora consiste na coligaccedilatildeo de dois termos atraveacutes de um elemento intermeacutedio que permite uma transferecircncia de sentido bidireccional isto eacute as duas extremidades do aparelho conceptual estatildeo co-implicadas porquanto unidas pelo terceiro termo aquele em que se consubstancia a relaccedilatildeo De modo anaacutelogo a chocircra

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representaraacute o ponto intermeacutedio de coligaccedilatildeo entre o arqueacutetipo e os particulares ou seja o lugar em que se consuma o processo de participaccedilatildeo Tambeacutem nesta perspectiva parece inscrever-se o caraacutecter mimeacutetico da chocircra ldquotudo o que nela entra e dela sai satildeo imitaccedilotildees (mimecircmata) do que eacute semprerdquo Por um lado natildeo eacute o proacuteprio arqueacutetipo que entra no lugar de participaccedilatildeo mas apenas as suas imitaccedilotildees por outro o particular e a proacutepria particularizaccedilatildeo resultam como imitaccedilotildees do proacuteprio arqueacutetipo mediadas justamente pela chocircra16

A exposiccedilatildeo deste terceiro tipo insiste nas constantes transformaccedilotildees a que todas as coisas estatildeo sujeitas e que erradamente designamos por ldquoistordquo (touto 49d5) quando deveriacuteamos optar por ldquoo que em determinadas circunstacircncias estaacute assimrdquo (to toiouton ekastote 49d5) Por exemplo aplicamos o termo ldquoaacuteguardquo independentemente de aquilo que referimos estar em estado liacutequido soacutelido ou gasoso Conclui-se que a chocircra pode ser ldquoistordquo ao passo que as coisas que nela entram e dela saem satildeo apenas ldquoque estaacute assimrdquo (49d-e) O recurso agrave linguagem como repositoacuterio metafoacuterico natildeo nos parece acidental nem inconsequente na medida em que ajuda a esclarecer a distinccedilatildeo ontoloacutegica fundamental entre as duas dimensotildees enquanto ldquoistordquo a (e soacute a) chocircra tem um sentido substantival e por conseguinte uma natureza substancial jaacute os particulares enquanto ldquoaquilo que estaacute assimrdquo estatildeo limitados ao acircmbito adjectival e natildeo podem ser mais do que qualificativos

16 Para uma discussatildeo mais detalhada do problema vide Mesquita 1995 pp 132-133

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circunstanciais Esta ldquoontologia qualitativardquo do mundo do devir atribui aos particulares um estatuto de meras entidades relacionais (apud Ferrari 2007 p 14) e como tal diametralmente opostos da substancialidade do arqueacutetipo Por conseguinte a relaccedilatildeo entre ambos os niacuteveis isto eacute a participaccedilatildeo natildeo poderaacute ser reduzida a um decalque biuniacutevoco caracteriacutestico da estrutura sujeito-predicado A nosso ver ela soacute pode ser mimeacutetica

Aleacutem desta linha de interpretaccedilatildeo espacial da chocircra existe uma outra a que podemos chamar ldquomaterialrdquo Decorre da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles que numa passagem da Fiacutesica (42 209b11-16) em que comenta esta secccedilatildeo do Timeu atribui a Platatildeo a identificaccedilatildeo entre espaccedilo (chocircra) e mateacuteria (hylecirc) Apesar de convidativa enferma de dois problemas fundamentais Em primeiro lugar esta categoria eacute absolutamente estranha ao sistema platoacutenico tanto assim eacute que o termo hylecirc soacute comeccedila a ter este sentido filosoacutefico justamente a partir de Aristoacuteteles Em segundo e natildeo menos importante o facto de aquela passagem da Fiacutesica assentar em grande parte nas chamadas doutrinas natildeo escritas ndash um grupo de postulados que Platatildeo teraacute sustentado oralmente mas de que natildeo deixou registo nos diaacutelogos Ora ainda que a sua reconstituiccedilatildeo seja possiacutevel e ateacute verosiacutemil (vide Ferrari 2007 pp 22-23) esta linha de interpretaccedilatildeo parece-nos exclusivamente vocacionada para esclarecer o Platatildeo hipoteacutetico e natildeo o dos diaacutelogos O nosso propoacutesito esgota-se nesta segunda orientaccedilatildeo

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25 O estatuto do discursoPortanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil e natildeo procurar nada aleacutem disso (29c4-29d3)

Esta curiosa afirmaccedilatildeo do narrador faz referecircncia a duas questotildees de extrema importacircncia para o entendimento do tipo de mensagem que o diaacutelogo pretende fazer passar e tambeacutem da forma como o faz o facto de toda ela ser aceite por Soacutecrates sem quaisquer reservas coloca-a num plano de acrescida importacircncia Em primeiro lugar Timeu refere que tanto ele como quem o ouve satildeo apenas seres humanos e por isso nem lhe eacute permitido a ele aflorar determinadas questotildees nem lhes seria possiacutevel a eles compreendecirc-las Em segundo lugar e mais importante ao apontar o acircmbito do verosiacutemil como uacutenica alternativa distingue muito claramente dois niacuteveis discursivos o dos ldquodiscursos verosiacutemeisrdquo (29c8 [logous] eikotas) e o da ldquonarrativa verosiacutemilrdquo (29d2 eikota mython) desta concorrecircncia ressalta obviamente a partilha do termo eikos que vertemos por ldquoverosiacutemilrdquo mas tambeacutem a associaccedilatildeo deste termo a mythos num caso e a logos noutro caso

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Aleacutem deste preluacutedio a expressatildeo eikos mythos aparece mais duas vezes no texto Na primeira insere-se no contexto da descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo das cores (67c-68d) apoacutes dar alguns exemplos do modo como se misturam Timeu diz que para os outros casos que natildeo referiu basta seguir o mesmo raciociacutenio de modo a que fique ldquosalvaguardada a narrativa verosiacutemilrdquo (68d) Na segunda ocorrecircncia as circunstacircncias satildeo muito semelhantes ao abordar os vaacuterios compostos que os elementos primaacuterios podem formar diz que para os casos que natildeo referiu deve ser aplicada a mesma metodologia desde que seja ldquoinvestigada a modalidade da narrativa verosiacutemilrdquo (59c) O estatuto de modalidade (idea) discursiva que reconhece ao eikos mythos coloca a narrativa como ponto de partida para a investigaccedilatildeo satildeo os dados nela implicados que devem ser discutidos Ao dizer que essa narrativa eacute uma modalidade Timeu parece dar a entender que haveraacute uma outra pois se eacute essa que deve ser investigada entatildeo a forma como essa investigaccedilatildeo se formaliza deveraacute obedecer a uma modalidade diferente o eikos logos

Ao longo do seu discurso Timeu por vezes suspende o papel de narrador de uma acccedilatildeo e assume o de criacutetico daquilo que ele proacuteprio disse comentando analisando e explicando alguns pormenores Enquanto descreve a transiccedilatildeo dos elementos como entidades amorfas para o estatuto de corpos recorre agraves relaccedilotildees matemaacuteticas e geomeacutetricas para esclarecer o modelo pelo qual o demiurgo se guiou e assim dar a conhecer o modo

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como atingiram a proporccedilatildeo (53b-54a) Eacute este um dos casos mais evidentes em que deixa de ser um narrador e passa a ser um demonstrador de uma teoria Eacute bastante evidente igualmente do ponto de vista estiliacutestico a insistecircncia no teor explicativo e tambeacutem especulativo das suas observaccedilotildees tenta ldquoesclarecerrdquo (decircloun 53c1) e ldquoafirmardquo na primeira pessoa (legocirc 47b2) ou por outra engloba tambeacutem os ouvintes nessa missatildeo ao preferir a primeira pessoa do plural (47b1 47b5 53e5) Ainda assim confessa uma certa falibilidade em relaccedilatildeo agravequilo que diz (53e3) por ser fruto da sua opiniatildeo (47a) No entanto ao reportar-se agrave narrativa verosiacutemil que por sua vez se refere ao mundo do sensiacutevel qual seraacute a natureza das suas observaccedilotildees

Logo apoacutes a anuecircncia de Soacutecrates ao acircmbito verosiacutemil da sua narrativa Timeu comeccedila por descrever em linhas gerais o processo de fabricaccedilatildeo do mundo durante o qual diz que o demiurgo estabeleceu o intelecto na alma do mundo e por sua vez colocou a alma no corpo (30b) Daqui retira a primeira conclusatildeo o mundo eacute um ser-vivo com alma e pensamento (30c) mas faz questatildeo de referir que esta deduccedilatildeo eacute conforme a um discurso verosiacutemil (kata logon ton eikota 30b7) De igual modo numa das suas uacuteltimas conclusotildees apoacutes ter discorrido desde o mundo ateacute agrave geraccedilatildeo do Homem o acircmbito verosiacutemil das observaccedilotildees agrave narrativa manteacutem-se (90e8) quando relembra o que dissera anteriormente sobre a degenerescecircncia em mulheres dos homens que levam uma vida injusta (90e 42b)

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Quando trata de abordar ldquoa terceira forma de serrdquo ndash a chocircra ndash manteacutem essa atitude especulativa embora admita reservas acrescidas impostas pela dificuldade do assunto Enquanto que na descriccedilatildeo da acccedilatildeo demiuacutergica eacute apenas um narrador que por isso fala na terceira pessoa assumindo somente o papel de intermediaacuterio entre acccedilatildeo e discurso neste caso eacute ele quem protagoniza Nesta altura em que deve passar agrave apresentaccedilatildeo de algo tatildeo complicado de conceber e formular como aquele terceiro niacutevel ontoloacutegico ldquotentaraacute ser ainda mais verosiacutemilrdquo (peirasomai ecirctton eikota 48d2-3) pois neste caso as suas observaccedilotildees partiratildeo de uma ldquoexposiccedilatildeo estranha e inusitadardquo (ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs 48d5-6) O objectivo eacute portanto chegar a uma conclusatildeo ndash apresentar um resultado ndash a partir do que diz a narrativa Poreacutem neste caso o eikos mythos a que as suas observaccedilotildees se reportaratildeo tem um caraacutecter diferente mais complexo e imbricado pois tambeacutem o objecto a que se refere eacute dessa natureza daiacute que o discurso que produza acerca dessa narrativa seja tambeacutem ele ldquoinusitadordquo (aecircthei 53c1)

Ao longo das suas intervenccedilotildees acerca da narrativa verosiacutemil Timeu demonstra constantemente uma preocupaccedilatildeo em fixar um ponto de vista pois tenta fornecer uma ldquoexposiccedilatildeordquo (diecircgecircsis 48d6) uma ldquoconclusatildeordquo (dogma 48d6) e aspira a ldquoapontar a causardquo (aitiateon 57c9) No entanto tem consciecircncia de que pode estar errado (53e3) e por isso admite a existecircncia de outra opiniatildeo divergente (55d6) Pelo facto de natildeo poder ser definitivamente validado o seu juiacutezo situa-se

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no campo do hipoteacutetico e do especulativo porquanto resultante da exploraccedilatildeo de possibilidades aproximaacuteveis ou provisoacuterias que apenas garantem coerecircncia e plausibilidade Ainda assim natildeo carece de validade filosoacutefica porque acima de tudo pretende representar o mundo pelo recurso a ferramentas fiaacuteveis como a matemaacutetica e a geometria

Torna-se entatildeo evidente que as duas modalidades discursivas eikos mythos e eikos logos desempenham papeacuteis bastante distintos o primeiro tem um caraacutecter narrativo expositivo natildeo-analiacutetico e natildeo aspira a uma conclusatildeo o segundo pretende partir do que resulta do primeiro e analisaacute-lo e por outro lado estabelecer tambeacutem os pressupostos sob os quais se desenrolaraacute a exposiccedilatildeo Em uacuteltima instacircncia a proacutepria enunciaccedilatildeo inicial dos dois niacuteveis ontoloacutegicos (ser e devir) e posteriormente a introduccedilatildeo do um terceiro eacute por si soacute um logos pois estabelececirc-los implica uma reflexatildeo ulterior

Resta ainda esclarecer a natureza (apenas) verosiacutemil do texto em ambas as suas dimensotildees discursivas pois que mythos e logos satildeo sempre qualificados como eikos Para tal conveacutem recuperar novamente o pressuposto onto-episteacutemico desde logo estabelecido no proeacutemio os discursos satildeo congeacuteneres daquilo que explicam Visto que o mundo criado eacute uma imagem (eikocircn) o discurso ou narrativa sobre ele teraacute necessariamente esta mesma natureza Num primeiro niacutevel mimeacutetico o demiurgo imita um modelo de inteligibilidade externo (as Ideias) cujas propriedades enforma na mateacuteria preacute-coacutesmica

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No outro o discursivo eacute o filoacutesofo que produz uma explicaccedilatildeo atraveacutes da observaccedilatildeo esquemaacutetica do real isto eacute da imitaccedilatildeo da ordem estabelecida pelo demiurgo Entatildeo a manifestaccedilatildeo discursiva da criaccedilatildeo haacute-de ser tambeacutem ela de caraacutecter mimeacutetico isto eacute do acircmbito do verosiacutemil posto que o resultado (o mundo) eacute igualmente de natureza mimeacutetica a soma dos particulares em processo isto eacute o devir consiste numa constante imitaccedilatildeo do modelo inteligiacutevel (as Ideias) cujo padratildeo de racionalidade espelha o plano cosmoloacutegico original e se desvela agrave observaccedilatildeo analiacutetica do filoacutesofo

3 o discurso de crIacutetias

O tema da narrativa de Criacutetias foi alvo de muacuteltiplas interpretaccedilotildees praticamente desde pouco tempo depois da morte de Platatildeo ateacute aos nossos dias A abordagem agrave famosa questatildeo da Atlacircntida seduz natildeo soacute acadeacutemicos das mais vaacuterias aacutereas do saber como tambeacutem autores de ficccedilatildeo Como se torna impossiacutevel circunscrever tudo quanto tenha sido feito a este respeito bem como englobar todos os possiacuteveis vectores de anaacutelise tentaremos de um modo tatildeo breve quanto geneacuterico tocar os pontos fundamentais do problema insistindo sobretudo no estatuto que cabe a esta narrativa e inevitavelmente no acircmbito em que se inscreve

Muito sucintamente a intervenccedilatildeo de Criacutetias resume-se agrave descriccedilatildeo de dois mundos antagoacutenicos a Atenas primeva e a Atlacircntida mais propriamente trata do conflito em sentido literal que travaram entre si Seria este o assunto principal do diaacutelogo segundo podemos

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deduzir a partir de alguns dados do texto embora dele tenha sobrado apenas uma descriccedilatildeo inicial que termina abruptamente O que restou desta diegese arquitectada pela dicotomia de dois mundos opostos comeccedila por dar conta do territoacuterio da populaccedilatildeo e da organizaccedilatildeo social de uma Atenas situada num tempo primordial (9000 anos antes de Platatildeo) e termina com um ensaio corograacutefico mais desenvolvido sobre uma monumental ilha situada para aleacutem das Colunas de Heacuteracles (Estreito de Gibraltar) cujos habitantes a dada altura decidiram dominar os povos e cidades do Mediterracircneo incluindo Atenas Agrave partida estariacuteamos inclinados a identificar este episoacutedio com uma determinada guerra travada entre Atenas e um invasor que mediada pela pena criativa de Platatildeo se situaria algures entre histoacuteria e mito mas o problema eacute bem mais complexo Eacute que a ilha da Atlacircntida nunca foi localizada geograficamente e natildeo existe qualquer vestiacutegio histoacuterico quer dela quer dos seus habitantes

Deste modo podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas reconhecer-lhe um fundo histoacuterico ou consideraacute-la uma ficccedilatildeo forjada pelo proacuteprio Platatildeo Aleacutem destas duas hipoacuteteses alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegoacuterico Em nosso entender esta via natildeo estaacute no mesmo plano que as anteriores na medida em que eacute compatiacutevel com ambas constituiraacute pois o segundo niacutevel de intencionalidade da narrativa seja ela histoacuterica ou ficcional

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31 A historicidade da narrativa sobre a AtlacircntidaA hipoacutetese histoacuterica foi a primeira a ser ensaiada

Segundo diz Proclo nos Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo Crantor (o precursor dos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo) atribuiacutea ao discurso de Criacutetias o estatuto de ldquohistoacuteria purardquo (historia psilecirc 1761) Decorrente deste arrojo hermenecircutico foi-se criando e consolidando a ideia de que a Atlacircntida existiria de facto em algum lugar Sobretudo a partir dos Descobrimentos portugueses e espanhoacuteis dos seacuteculos XV e XVI surgiram variadiacutessimas tentativas de identificar geograficamente o territoacuterio No entanto o uacutenico resultado que todas essas demandas (mais ou menos cientiacuteficas) obtiveram foi uma disparidade de opiniotildees tal que tornou qualquer ponto do globo passiacutevel de ser identificado com a ilha

Especial atenccedilatildeo mereceu a hipoacutetese ldquoCretardquo que inicialmente granjeou alguma credibilidade No seguimento de exploraccedilotildees arqueoloacutegicas naquela zona foi forjada uma teoria segundo a qual a civilizaccedilatildeo referida no texto de Platatildeo correspondia agrave que habitava aquela ilha durante o Periacuteodo Minoacuteico a qual tinha sido destruiacuteda por uma violenta erupccedilatildeo do vulcatildeo de Thera (actual Santorini) no entanto com base em novas investigaccedilotildees arqueoloacutegicas e geoloacutegicas essa hipoacutetese acabou por ser refutada (vide Brisson 2001 p 318) Antes destas as outras possibilidades ateacute agora adiantadas satildeo o Continente Americano a Sueacutecia os Mares do Sul (junto ao actual Peru) os arquipeacutelagos dos Accedilores

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e da Madeira entre outras17 Por conseguinte a crenccedila de que a civilizaccedilatildeo representada no discurso de Criacutetias teraacute um referente histoacuterico eacute cada vez mais residual no acircmbito da comunidade cientiacutefica na verdade a grande maioria dos tiacutetulos que tecircm sido publicados sobre a Atlacircntida ou que de algum modo a abordam tomam como princiacutepio a sua anistoricidade

32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de PlatatildeoA segunda hipoacutetese de acordo com a qual toda

a narrativa foi integralmente inventada por Platatildeo eacute aquela que teve menos aceitaccedilatildeo durante a Antiguidade Na verdade restou apenas uma referecircncia que apontava neste sentido na Geografia Estrabatildeo cita em duas ocasiotildees (236 13136) a sentenccedila ldquoo poeta que a forjou fecirc-la desaparecerrdquo na primeira natildeo explicita a sua autoria e na segunda aponta Aristoacuteteles o qual nunca refere a Atlacircntida em nenhum dos textos conservados18 Em segundo lugar porque esta orientaccedilatildeo natildeo se compatibiliza com a intenccedilatildeo do narrador que insiste em classificar o seu discurso como histoacuterico Se o primeiro aspecto natildeo permite concluir rigorosamente nada pois apenas constata uma evidecircncia jaacute o segundo seraacute mais difiacutecil de justificar

17 Para uma descriccedilatildeo mais pormenorizada das possibilidades de localizaccedilatildeo geograacutefica da Atlacircntida vide Azevedo (2009 pp 102-105) Matteacutei (2002 pp 255-256) e Brisson (2001 pp 314-319)

18 Eacute referido o Oceano Atlacircntico mas apenas em textos considerados espuacuterios (Sobre o Mundo 3 392b20-393a16 Problemas [Fiacutesicos] 2652 946a16-32)

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No breve resumo antecipado no Timeu Criacutetias refere que aquilo que estaacute prestes a contar eacute absolutamente verdadeiro (pantapasi alecircthous 20d7) ou seja o seu discurso eacute histoacuterico Na verdade a sua intervenccedilatildeo deixa transparecer vaacuterias caracteriacutesticas e preocupaccedilotildees proacuteprias de um historiador o facto de descrever (geograacutefica social e politicamente) as duas forccedilas antes de entrarem em combate tal como faz Tuciacutedides (189-sqq) a necessidade de fundamentar a argumentaccedilatildeo com evidecircncias19 o modo como o proacuteprio Soacutelon obteacutem as informaccedilotildees no Egipto faz lembrar o meacutetodo de Heroacutedoto20 ou mesmo o recurso a determinadas expressotildees formulares caracteriacutesticas do registo histoacuterico21

Todavia a fonte que sustenta o relato eacute no miacutenimo problemaacutetica Em virtude do tempo decorrido desde a eacutepoca a que Criacutetias se refere e do inevitaacutevel desaparecimento dos homens que nela viveram natildeo sobraram na Greacutecia mais do que nomes isolados que os que viviam nas montanhas ndash iletrados ndash puseram aos seus descendentes (109b-c) Perante a inexistecircncia de testemunhos heleacutenicos que dessem conta daquele episoacutedio a fundamentaccedilatildeo da narrativa remonta ao Egipto onde Soacutelon recolheu os dados junto de sacerdotes locais No entanto a dita transmissatildeo carece

19 O termo utilizado para ldquoevidecircnciardquo (tekmecircrion) eacute muitiacutessimo recorrente nos escritos de Heroacutedoto (2131 33810 72384) e Tuciacutedides (113 2392 31046)

20 Eg 244 53 10021 Por exemplo megala kai thaumasta (ldquograndes e admiraacuteveis

feitosrdquo) em 20e uma expressatildeo tipicamente historiograacutefica (eg Heroacutedoto 111 Diodoro Siacuteculo 1319 Dioniacutesio de Halicarnasso 581)

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de validade histoacuterica pelo facto de ser cronologicamente impossiacutevel que Soacutelon tenha estado no Egipto na eacutepoca do rei Amaacutesis como eacute sugerido pelo texto (21e) razatildeo pela qual o episoacutedio deve ter sido manipulado por Platatildeo (apud Leatildeo 2001 pp 249 275)

Assim a intenccedilatildeo historicista do narrador torna-se extremamente difiacutecil de compatibilizar com a evidente precariedade das fontes de que parte bem como com a impossibilidade de depois de mais de dois mileacutenios de exegese sequer se esboccedilar uma teoria minimamente vaacutelida que sustente esta posiccedilatildeo Aleacutem disso haacute outro pormenor que agrave partida parece complicar ainda mais o esclarecimento de tal contradiccedilatildeo Quando ainda no Timeu Soacutecrates elogia a intenccedilatildeo de Criacutetias oferecer um ldquodiscurso do realrdquo (alecircthinon logon 26e4-5) e natildeo uma narrativa forjada (mecirc plasthenta mython 26e4) parece subscrever o estatuto de histoacuteria pura Contudo esta aparente conivecircncia deve ser entendida agrave luz do que o proacuteprio dissera em relaccedilatildeo agrave cidade descrita ldquono dia anteriorrdquo isto eacute o Estado arquetiacutepico da Repuacuteblica (cf Pina 2010 pp 148-149)

Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos (19b-c)

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Isto eacute aquele jogo entre mythos e logos narrativa e discurso parece indiciar natildeo uma oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso antes uma tentativa de transpocircr para o real e concreto (apud Azevedo 2009 p 96) algo que fora formulado em abstracto No entanto visto que esta questatildeo entronca numa das possibilidades de interpretaccedilatildeo a abordar posteriormente deixemo-la para jaacute em suspenso

Abandonando entatildeo os pontos de vista dos participantes do diaacutelogo sobre a natureza do relato e focando um pouco mais o que podemos deduzir por meio de algumas relaccedilotildees intertextuais verificamos que o texto de Platatildeo evidencia a presenccedila de muitas fontes a que natildeo faz referecircncia directa A diversidade desses materiais usados como ldquoingredientesrdquo eacute tal que facilmente poderemos estabelecer um conjunto de substratos inerentes ao discurso os quais forccedilosamente lhe vinculam um estatuto compoacutesito e ao mesmo tempo o afastam da reclamada historicidade

Por um lado o texto ecoa em diversas ocasiotildees vozes de alguns autores gregos como nota Gill (1980 xii-xiii) Por exemplo a incomensuraacutevel fertilidade das terras da Aacutetica primeva que reduzia ao miacutenimo o trabalho agriacutecola (110e) relembra inevitavelmente a Idade do Ouro de Hesiacuteodo (Trabalhos e Dias 109-126) ou o proacuteprio nome ldquoAtlacircntidardquo e a sua localizaccedilatildeo para aleacutem dos confins do mundo conhecido (isto eacute o Estreito de Gibraltar) que recupera a ilha da filha de Atlas referida na Odisseia (151-54) No domiacutenio da histoacuteria a presenccedila de Heroacutedoto eacute tambeacutem evidente

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os aneacuteis que estruturam a principal cidade da Atlacircntida (113d-e) evocam a descriccedilatildeo do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana (198) o modo como os canais da planiacutecie daquela ilha estavam arquitectados (118c-e) traz agrave memoacuteria a descriccedilatildeo da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia (3117) a assembleia dos reis tem muitas semelhanccedilas com um ritual caracteriacutestico de uma monarquia egiacutepcia (2147-sqq) Aleacutem disso encontramos tambeacutem elementos da proacutepria cultura aacutetica na construccedilatildeo da Atlacircntida como bem observa Vidal-Naquet (1964 pp 429-432) a divisatildeo decimal do territoacuterio (113e) os edifiacutecios defensivos que fazem lembrar o Pireu (117d-f ) e ateacute o proacuteprio templo de Posiacutedon muito semelhante ao Paacutertenon (116d-f ) Finalmente satildeo tambeacutem sugestivas as semelhanccedilas entre a estaacutetua de Posiacutedon que estava dentro do seu templo e a Estaacutetua de Zeus em Oliacutempia22

Por outro lado haacute na narrativa de Criacutetias elementos pertencentes a outras culturas ou civilizaccedilotildees como Cartago a Creta do Periacuteodo Minoacuteico ou o proacuteprio Egipto No primeiro caso os paralelos que possamos estabelecer satildeo pontuais os vorazes elefantes (114e) caracteriacutesticos daquela zona do Mediterracircneo e por exemplo os nomes Gadiro e Gadiacuterica (114b) de origem semita23 O mesmo acontece com o segundo o facto de ser uma grande potecircncia mariacutetima e sobretudo o culto do touro24 Mas no terceiro caso a questatildeo eacute de

22 Sobre esta relaccedilatildeo vide nota 68 agrave traduccedilatildeo23 Para um desenvolvimento mais pormenorizado desta questatildeo

vide Dusanic (1982 pp 27-28)24 Apesar de natildeo ser exclusivo de Creta o culto do touro era

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outra ordem pois tudo aponta para que este substrato represente o fundo histoacuterico que deu origem agrave narrativa Eacute bastante provaacutevel que o conflito entre a Atenas primeva e a Atlacircntida seja uma adaptaccedilatildeo de uma batalha travada pelos Egiacutepcios no tempo de Ramseacutes III contra os chamados ldquoPovos do Marrdquo Esta designaccedilatildeo ndash muitiacutessimo sugestiva ndash sugere uma confederaccedilatildeo de gentes oriundas de vaacuterias ilhas do Mediterracircneo que unidas tentaram atacar vaacuterias zonas continentais como o Norte da Palestina a Siacuteria e mesmo o Egipto Neste paiacutes a vitoacuteria foi particularmente celebrada e por isso registada e tornada objecto de narrativas vaacuterias que perduraram ao longo dos tempos daiacute que provavelmente Platatildeo se tenha baseado neste episoacutedio (apud Griffiths 1985 pp 13-14)

A recolha de todos estes elementos disponiacuteveis em textos e lugares conhecidos pelo autor parece assim indiciar um processo de representaccedilatildeo do outro atraveacutes dos olhos de um grego uma geografia imaginaacuteria de um mundo tambeacutem ele imaginaacuterio e sobretudo imaginado mas sempre a partir do repositoacuterio cultural de que emerge o sujeito

Tidas em conta estas evidecircncias somos obrigados a confessar que a narrativa de Criacutetias tem um caraacutecter marcadamente compoacutesito No entanto natildeo se trata apenas de uma mistura de dados histoacutericos oriundos de contextos espaacutecio-temporais bastante distintos ndash como que um pastiche25 ndash dado que tambeacutem comporta uma para os Atenienses uma caracteriacutestica identitaacuteria desta ilha veja-se por exemplo o mito de Teseu e Ariadne

25 A expressatildeo eacute de Naddaf (1997 p 190)

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forte componente poeacutetico-mitoloacutegica De um modo algo iroacutenico esta natureza estaacute latente no proacuteprio texto Logo no iniacutecio do diaacutelogo Criacutetias faz questatildeo de sublinhar que a linguagem eacute em si imitaccedilatildeo e representaccedilatildeo (mimecircsin () kai apeikasian 107b4-5) A advertecircncia preliminar indicia antes de tudo uma salvaguarda que o narrador pretende marcar aleacutem disso aproxima inevitavelmente o seu relato do registo ficcional logo anistoacuterico

Dito isto a incompatibilidade entre o estatuto que o narrador atribui ao seu discurso e o estatuto que somos obrigados a reconhecer-lhe manteacutem-se inalteraacutevel se eacute que natildeo se acentuou ainda mais No entanto a soluccedilatildeo definitiva do problema encontra-se precisamente numa das intervenccedilotildees metaliteraacuterias destinadas a certificar o caraacutecter real do discurso

Quanto aos cidadatildeos e agrave cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade () (26c8-26d1)

Esta fala de Criacutetias tem lugar precisamente quando se prepara para comeccedilar a descriccedilatildeo da guerra entre a Atlacircntida e Atenas e a cidade a que se refere eacute aquela que o resumo de Soacutecrates abordara anteriormente o arqueacutetipo de Estado delineado na Repuacuteblica Tal como naquele diaacutelogo a projecccedilatildeo teoacuterica da cidade eacute formulada no acircmbito do mito (501e4) mas ao contraacuterio da Repuacuteblica diaacutelogo em que essa teorizaccedilatildeo natildeo eacute posta em praacutetica o Criacutetias pretende dar corpo ao que fora formulado em abstracto isto eacute trazecirc-lo para a realidade (epi talecircthes)

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Deste modo em vez de verdadeiro como oposto de falso o discurso de Criacutetias pretende ser concreto ou melhor concretizar o que fora teorizado Eacute aliaacutes este o desiacutegnio de Soacutecrates quando diz que pretende ver em movimento a cidade e os cidadatildeos de que falavam bem como seraacute neste sentido que devemos entender a sua preferecircncia por um discurso do real em vez de uma narrativa forjada Deste modo estaremos em condiccedilotildees de assegurar que o discurso de Criacutetias se trata de uma narrativa ficcional forjada pelo proacuteprio Platatildeo a partir de elementos diversos quer (pseudo-)histoacutericos quer poeacutetico-mitoloacutegicos

Ainda assim resta esclarecer o passo em que Criacutetias diz que o seu discurso eacute ldquoabsolutamente verdadeirordquo (pantapasi () alecircthous 20d7) ou seja por que motivo Platatildeo insiste em chamar ldquoverdadeirardquo a uma narrativa que monta com elementos ficcionais A esta questatildeo responde Morgan de um modo tatildeo vaacutelido quanto eficaz o discurso de Criacutetias consiste numa dramatizaccedilatildeo praacutetica da ldquonobre mentirardquo da Repuacuteblica26

33 Leituras alegoacutericasDeste modo entramos na primeira das possiacuteveis

leituras alegoacutericas que o discurso de Criacutetias pode assumir a narrativa sobre a guerra entre a Atlacircntida e

26 Vide Morgan (2000 pp 263-265) cf Pina (2010 pp 155-156) Na Repuacuteblica (414b-sqq) Platatildeo equaciona a possibilidade de introduzir uma crenccedila falsa na sociedade desde que com isso se consiga fazer aumentar o afecto dos cidadatildeos para com a cidade A esse tipo de narrativas chamou ldquonobre mentirardquo (pseudocircn gennaion 414b8-9)

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a Atenas primeva tem como objectivo despertar nos Atenienses um maior afecto em relaccedilatildeo agrave sua cidade Numa linha semelhante Azevedo (2006 p 295 2009 p 95) sugere que a Atlacircntida soacute faz sentido enquanto modelo distoacutepico que contrasta com a Atenas primeva esta um modelo de supremacia civilizacional e com o papel de guardiatilde da Europa Satildeo portanto duas leituras que enquadram a narrativa numa evocaccedilatildeo saudosista de um passado glorioso que pretende acima de tudo revitalizar a imagem de uma cidade desgastada por sucessivos desaires militares e poliacuteticos como era a Atenas de Platatildeo

Ao longo dos tempos foram surgindo outras propostas de leituras alegoacutericas mais individualizadas com uma evidente vertente poliacutetica A primeira tambeacutem de natureza saudosista pretende transpor a narrativa de Criacutetias para o contexto das Guerras Medo-Persas ou seja a Atenas primeva coincide com a Atenas que expulsou o inimigo oriental a qual cultivava ainda os seus costumes e tradiccedilotildees ancestrais e a dada altura tambeacutem ficou praticamente sozinha na frente de batalha em sentido inverso a civilizaccedilatildeo atlante siacutembolo da ganacircncia de domiacutenio forccedila invasora arrasadora e ao mesmo tempo superpotecircncia econoacutemica corresponderaacute aos Persas Quanto agrave segunda leitura possiacutevel ela eacute diametralmente oposta a Atlacircntida representaria a Atenas contemporacircnea de Platatildeo enquanto que a Atenas primeva simbolizaria Esparta ou seja como pano de fundo estaria a Guerra do Peloponeso e de modo subliminar uma criacutetica aguda agrave postura de Atenas durante esse conturbado periacuteodo

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ndash criacutetica essa que assumiria um caraacutecter particularmente incisivo pelo facto de o diaacutelogo se desenrolar pelo menos do ponto de vista dramaacutetico durante as Panateneias a principal festa da cidade De acordo com esta proposta o objectivo seria entatildeo vincar os ldquopecadosrdquo atenienses como a desmedida supremacia mariacutetima ou a atitude agressiva perante as naccedilotildees vizinhas e inversamente enaltecer as ldquovirtudesrdquo tradicionalmente espartanas uma classe militar extremamente forte e demarcada organizaccedilatildeo poliacutetica tradicional e a relativa desvalorizaccedilatildeo das riquezas materiais

Com efeito o que podemos afirmar com toda a certeza independentemente da posiccedilatildeo que queiramos assumir eacute que a narrativa de Criacutetias descreve os dois movimentos comuns a todas as civilizaccedilotildees ascensatildeo e queda

4 estrutura dos diaacutelogos

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias (17a-27c)1 Contexto dramaacutetico (17a-17b)2 Resumo da conversa do dia anterior (17b-20c)3 Resumo do discurso de Criacutetias (20c-26e)4 Programa dos discursos (26e-27c)

II Discurso de Timeu (27c-92c)A Preluacutedio1 Invocaccedilatildeo dos deuses (27c-27d)2 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ser e devir (27d-28b)21 Implicaccedilotildees epistemoloacutegicas (28c-29d)3 Pressupostos iniciais (29d-31b)

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31 O demiurgo (29d-30c)32 O Ser-Vivo (30c-d)33 O mundo eacute um ser-vivo (30d-31a)34 O mundo eacute uacutenico (31a-31b)

B Obras do Intelecto1 Constituiccedilatildeo do mundo (31b-40d)11 O corpo do mundo (31b-34a)12 A alma do mundo (34a-40d)2 Constituiccedilatildeo do Homem (40d-47e)21 A alma do Homem (40d-44c)22 O corpo do Homem (44c-47e)

C O acircmbito da Necessidade1 A causa errante (47e-48b)2 Novo comeccedilo da narrativa nova invocaccedilatildeo dos deuses (48b-48e)3 Terceiro princiacutepio ontoloacutegico a chocircra (48e-51e)4 Recapitulaccedilatildeo dos trecircs princiacutepios ontoloacutegicos (51e-52c)5 Os elementos (52d-61c)51 Estado preacute-coacutesmico (52d-53c)52 Formaccedilatildeo dos soacutelidos a partir dos triacircngulos elementares (53c-56c)53 Transmutaccedilatildeo e variedades dos compostos (56c-57d)54 Movimentos dos elementos (57d-61c)6 As sensaccedilotildees e as impressotildees (61c-69a)61 O tacto (61c-64a)62 O prazer e a dor (64a-65b)

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63 Os sabores (65b-66c)64 Os odores (66c-67a)65 Os sons (67a-67c)66 As cores (67c-68d)

D Cooperaccedilatildeo entre Intelecto e Necessidade (68e-81e)1 Recapitulaccedilatildeo da acccedilatildeo do demiurgo (68e-69c)2 Introduccedilatildeo das divindades menores (69c-69d)3 Constituiccedilatildeo da parte mortal da alma humana (69d-73b)4 Constituiccedilatildeo das restantes partes do corpo humano (73b-76e)5 Criaccedilatildeo dos seres vegetais (76e-77c)6 Constituiccedilatildeo dos aparelhos funcionais do corpo humano (77c-81e)7 Doenccedilas do corpo humano (81e-86a)8 Doenccedilas da alma humana (86b-92c)

E Conclusatildeo (92c)

III Discurso de Criacutetias (106a-121c)

A Introduccedilatildeo (106a-109a)1 Excurso metaliteraacuterio (106a-108a)2 Invocaccedilatildeo dos deuses (108a-d)3 Resumo do discurso (108e-109a)

B Descriccedilatildeo da Atenas primeva (109b-112b)1 Origem miacutetica dos Atenienses (109b-d)

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2 Populaccedilatildeo (109d-110d)3 Territoacuterio (110d-112e)31 Regiatildeo da Aacutetica (110e-111e)32 Cidade de Atenas (111e-112e)

C Descriccedilatildeo da Atlacircntida (113a-121c)1 Advertecircncia sobre as condiccedilotildees de transmissatildeo da narrativa (113a-b)2 Origem miacutetica dos Atlantes (113c-114d)3 Territoacuterio (114d-119b)31 Recursos naturais da ilha (114d-115b)32 A metroacutepole (115b-117e)33 Recursos forjados pelos habitantes (117e-119b)4 Organizaccedilatildeo poliacutetica (119b-121c)

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Soacutecrates Um dois trecircs mas onde estaacute meu caro Timeu o quarto dos nossos convidados1 de ontem nossos anfitriotildees de hoje

Timeu Alguma doenccedila o atingiu oacute Soacutecrates pois se dependesse de si proacuteprio natildeo faltaria a este encontro

Soacutecrates Entatildeo a tarefa de preencher o lugar do que estaacute ausente cabe-te a ti e a estes aqui natildeo eacute verdade

Timeu Sem duacutevida e dentro dos possiacuteveis natildeo falharemos na nossa tarefa De facto natildeo seria justo se depois de nos teres recebido como eacute adequado fazecirc-lo com os hoacutespedes noacutes ndash os que restamos ndash natildeo te retribuiacutessemos de bom grado o festim

Soacutecrates Entatildeo e vocecircs ainda se lembram de qual era o teor e o assunto que vos propus para a nossa conversa

1 Natildeo eacute possiacutevel sequer supor quem seja esta personagem anoacutenima Quanto aos restantes vide Introduccedilatildeo pp 20-23

Platatildeo

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Timeu Lembramo-nos de alguns temas e os que nos tiverem escapado tu estaraacutes caacute para no-los relembrar ou melhor ainda se natildeo achares inconveniente passa-os em revista de forma breve e desde o princiacutepio de modo a que fiquem mais clarificados entre noacutes

Soacutecrates Assim seja O essencial das minhas palavras de ontem tinha que ver com o tipo de Estado2 que me parece ser o melhor e a partir de que tipo de homens havia de ser composto

Timeu E de facto Soacutecrates o que nos disseste estaacute perfeitamente de acordo com o que todos noacutes pensamos

Soacutecrates E natildeo comeccedilaacutemos por dividir a classe dos que trabalham a terra em si e por separar este e os outros ofiacutecios de artesatildeos da classe daqueles que defendem a cidade3

Timeu Sim

Soacutecrates E quando atribuiacutemos de acordo com a sua natureza especiacutefica uma uacutenica profissatildeo e ocupaccedilatildeo

2 politeia Embora ldquoEstadordquo seja um conceito medieval eacute o uacutenico termo portuguecircs que engloba as instituiccedilotildees poliacuteticas e a forma de governo eacute o que estaacute implicado em politeia Trata-se evidentemente do assunto principal da Repuacuteblica (Politeia) cujo resumo parcial (sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo pp 16-17 62-63) os participantes traratildeo agrave memoacuteria nesta secccedilatildeo inicial por esse motivo remeteremos em nota para uma das passagens daquele diaacutelogo aludidas ao longo dos proacuteximos paraacutegrafos

3 Cf Repuacuteblica 374a-d

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a cada cidadatildeo que lhe fosse adequada4 dissemos que aqueles que tivessem de lutar em favor de todos deviam ser exclusivamente guardiotildees da cidade em relaccedilatildeo a algueacutem de fora ou de dentro que cometesse algum crime Deviam ainda aplicar a justiccedila com moderaccedilatildeo sobre aqueles que satildeo regidos por eles e que por natureza satildeo seus amigos e de tratar com aspereza os inimigos a defrontar no campo de batalha5

Timeu Sem qualquer duacutevida

Soacutecrates Com efeito diziacuteamos segundo creio que a natureza da alma dos guardiotildees devia ser eneacutergica e ao mesmo tempo particularmente inclinada para a sabedoria de modo a que conseguissem ser em igual medida moderados para uns e aacutesperos para os outros6

Timeu Sim

Soacutecrates E quanto agrave formaccedilatildeo Natildeo haviam de ter formaccedilatildeo no acircmbito da ginaacutestica e da muacutesica e de todas as mateacuterias adequadas para eles7

Timeu Com certeza

Soacutecrates Aleacutem disso foi dito que os homens assim formados natildeo deviam nunca considerar sua pertenccedila

4 Cf Repuacuteblica 369e-370c 423d5 Cf Repuacuteblica 375c 414b 415d-e6 Cf Repuacuteblica 374e-376c7 Cf Repuacuteblica 376e-sqq 403c-sqq 410c-sqq

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nem ouro nem prata nem qualquer outro bem antes como guardas deveriam receber daqueles que protegem um pagamento pela sua guarniccedilatildeo para ser gasto numa vida de partilha e convivecircncia entre si em permanente exerciacutecio da excelecircncia e dispensados do desempenho de outras funccedilotildees8

Timeu Tambeacutem isso foi dito desse modo

Soacutecrates E no que respeita agraves mulheres tambeacutem mencionaacutemos que a natureza delas devia ser concordante com a dos homens e com a deles harmonizado e lhes deviam ser atribuiacutedas as mesmas funccedilotildees que a eles na guerra e nos restantes assuntos do dia-a-dia9

Timeu Tambeacutem isso se disse desse modo

Soacutecrates E no que respeita agrave procriaccedilatildeo Seraacute que o caraacutecter inusitado dessas consideraccedilotildees faz com que seja recordado facilmente porque estabelecemos que todos os casamentos e os filhos seriam comuns Deste modo se conseguia que ningueacutem reconhecesse como seus filhos o engendrado por si antes que todos considerariam todos como sendo da mesma famiacutelia tendo por irmatildes e irmatildeos aqueles que fossem de idade aproximada por pais ou avoacutes dos pais os mais velhos e por filhos gerados pelos filhos os mais novos10

8 Cf Repuacuteblica 416d-417b 464b-c9 Cf Repuacuteblica 456a-sqq10 Cf Repuacuteblica 460c-461e

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Timeu Sim tambeacutem isto eacute faacutecil de relembrar como dizes

Soacutecrates E para que as crianccedilas na medida do possiacutevel fossem agrave partida de natureza excelente lembraacutemos o que tiacutenhamos dito sobre os governantes e as governantes que deviam celebrar contratos de casamento em segredo por meio de uma espeacutecie de sorteio para que os piores e os melhores se unissem separada e respectivamente com as suas semelhantes de modo a que natildeo se criasse entre eles qualquer inimizade por causa disso uma vez convencidos de que o acaso era o motivo da sua uniatildeo

Timeu Lembraacutemos

Soacutecrates E tambeacutem que tiacutenhamos dito que deveriam ser criados os filhos dos naturalmente bons enquanto que os dos piores deveriam ser dispersos pelo resto da cidade11 Mantidos todos sob observaccedilatildeo durante o seu crescimento deviam ser trazidos sempre de volta aqueles que se mostrassem dignos de tal e ser remetidos os inaptos para o local de onde aqueles tinham vindo

Timeu Assim foi

Soacutecrates Seraacute que jaacute passaacutemos em revista exactamente o que ontem dissemos na medida do que

11 eis tecircn allecircn polin Porque precedido de artigo o pronome allos deve traduzir-se por ldquoo restordquo por isso seria descabida a versatildeo ldquopara outra cidaderdquo

Platatildeo

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se pode recuperar dos assuntos principais meu caro Timeu ou querem regressar ainda a algum dos assuntos de que falaacutemos e que eu tenha deixado para traacutes

Timeu De modo algum pois isto foi exactamente o que dissemos oacute Soacutecrates

Soacutecrates Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos De facto com prazer ouviria de algueacutem o relato sobre as disputas que uma cidade trava as que ela manteacutem contra outras cidades a forma correcta como chega agrave guerra e como no seu decurso se apresenta de acordo com a sua educaccedilatildeo e formaccedilatildeo natildeo soacute nas praacuteticas de combate como tambeacutem na negociaccedilatildeo de tratados com as outras cidades Reconheccedilo Criacutetias e Hermoacutecrates que eu proacuteprio natildeo serei capaz de elogiar os homens e a cidade convenientemente E esta minha posiccedilatildeo nada tem de surpreendente pelo contraacuterio mantenho a mesma opiniatildeo em relaccedilatildeo aos poetas antigos e contemporacircneos Natildeo eacute que eu desconsidere a estirpe dos poetas mas eacute perfeitamente evidente que a raccedila dos imitadores imitaraacute com facilidade e de modo

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excelente aquilo em que foi educada poreacutem torna-se difiacutecil para qualquer um imitar bem o que natildeo pertence agrave sua educaccedilatildeo sendo ainda mais difiacutecil se a imitaccedilatildeo for feita por meio de palavras

Penso que a casta dos sofistas se destaca por ter muita experiecircncia em variados tipos de discurso e noutras coisas belas No entanto tendo em conta que ela vagueia de cidade em cidade e pelas casas sem dispor de uma morada proacutepria eu temo que natildeo atinja12 o que homens simultaneamente filoacutesofos e poliacuteticos fazem na guerra e no campo de batalha por meio de actos e palavras e como se relacionam entre si a falar e a agir Sobra portanto a classe de pessoas da vossa condiccedilatildeo que por natureza e formaccedilatildeo toma parte de ambas as categorias Eacute que Timeu que aqui temos cidadatildeo de Loacutecride a cidade na Itaacutelia com melhor organizaccedilatildeo poliacutetica13 que natildeo fica atraacutes de nenhum dos outros em riqueza e linhagem ocupou os mais altos cargos e recebeu as maiores das honras naquela cidade e na minha opiniatildeo alcanccedilou o ponto mais alto de toda a filosofia Suponho que todos noacutes sabemos que Criacutetias natildeo eacute um desconhecedor em qualquer das mateacuterias de que falamos Aleacutem disso visto que muitos o testemunham devemos acreditar que Hermoacutecrates em virtude da sua natureza e formaccedilatildeo eacute competente em todos estes assuntos Foi por isso que ontem quando vocecircs pediram para discursar sobre o Estado acedi de

12 astochon literalmente ldquoalgo que falha o alvordquo13 O sistema poliacutetico-administrativo de Loacutecride eacute elogiado

nas Leis (638b) e tambeacutem por Piacutendaro numa das Odes Oliacutempicas (1013)

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bom grado porque depois de ter reflectido percebi que ningueacutem seria mais adequado do que vocecircs para dar seguimento a esse discurso se assim quiserem Eacute que entre os nossos contemporacircneos vocecircs satildeo os uacutenicos que depois de preparar a cidade para uma guerra justificaacutevel podem proporcionar-lhe tudo quanto lhe eacute conveniente Uma vez que dissertei sobre o assunto que me tinha sido atribuiacutedo a vosso cargo deixo aquilo a que agora me refiro Tinham acordado que depois de terem reflectido em conjunto me seria retribuiacutedo por vocecircs mesmos o banquete de discursos14 Aqui estou entatildeo preparado para tal e mais do que ningueacutem pronto para recebecirc-los

Hermoacutecrates De facto Soacutecrates tal como disse Timeu15 nem faltaraacute boa-vontade nem haveraacute qualquer motivo a impedir que tal se cumpra De igual modo tambeacutem noacutes ontem logo depois de nos termos retirado daqui e chegado agrave casa de Criacutetias o nosso anfitriatildeo e ainda antes disso enquanto percorriacuteamos o caminho faziacuteamos observaccedilotildees sobre isto mesmo Este contou-nos uma estoacuteria de antiga tradiccedilatildeo Conta-a agora tambeacutem a Soacutecrates oacute Criacutetias para que ele considere se eacute adequada ou desadequada ao fim em vista

14 Embora xenia signifique simplesmente ldquopresentes de hospitalidaderdquo pode tambeacutem representar a cerimoacutenia comensal com que o anfitriatildeo recebia os convidados Neste caso parece que Soacutecrates usa a palavra com esse sentido repetindo a metaacutefora do banquete de palavras que usara neste (27b) e noutros diaacutelogos (Goacutergias 447a Repuacuteblica 352b 354a-b)

15 Cf supra 17a-b

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Criacutetias Faacute-lo-ei se igualmente parecer bem a Timeu o nosso terceiro conviva

Timeu Parece-me bem pois

Criacutetias Escuta entatildeo Soacutecrates uma estoacuteria deveras iacutempar e contudo absolutamente verdadeira como uma vez a contou Soacutelon o mais saacutebio de entre os Sete Saacutebios que era familiar e muito amigo do meu bisavocirc Dropidas tal como ele afirma com frequecircncia na sua obra poeacutetica16 Contou-a a Criacutetias nosso avocirc que jaacute velho nos narrava de memoacuteria que grandes e admiraacuteveis feitos17 dos tempos antigos desta cidade que tinham sido esquecidos graccedilas ao tempo e agrave destruiccedilatildeo da humanidade18 e a mais grandiosa de todas seria conveniente que ta deacutessemos a conhecer agora para te oferecer um agradecimento e ao mesmo tempo em jeito de hino para elogiar neste louvor a deusa de forma justa e autecircntica no dia da sua festa19

Soacutecrates Falas correctamente Mas que feito eacute esse de que natildeo temos notiacutecia e que foi realmente cumprido

16 No que sobrou da obra de Soacutelon natildeo haacute qualquer referecircncia a este nome Sobre esta figura vide Introduccedilatildeo pp 21-22

17 megala kai thaumasta eacute curiosamente uma expressatildeo formular proacutepria do discurso histoacuterico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 57-sqq esp n 21

18 Trata-se dos vaacuterios diluacutevios que quase extinguiram a espeacutecie humana (21d 22c-sqq) cf Criacutetias 109d 111a-sqq Leis 677A-sqq Poliacutetico 270c-d Entre eles conta-se evidentemente o que vai ser descrito de seguida

19 O Festival das Panateneias dedicado agrave deusa Atena durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica

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pela nossa cidade em tempos antigos o qual Criacutetias vai narrar de acordo com o testemunho de Soacutelon

Criacutetias Passo a contaacute-lo ainda que sob a forma de relato antigo que ouvi da boca de um homem entrado em anos Eacute que Criacutetias20 como dizia tinha jaacute perto de 90 anos enquanto que eu ainda natildeo teria bem dez Por acaso era o dia de Cureoacutetis o terceiro das Apatuacuterias21 Para as crianccedilas estava reservado o que tambeacutem nessa altura era costume por ocasiatildeo de cada uma dessas festas os nossos pais organizavam-nos concursos de recitaccedilatildeo Foram declamados muitos poemas de muitos poetas mas como naquele tempo os de Soacutelon constituiacuteam ainda novidade muitos de noacutes crianccedilas cantaacutemo-los Um dos elementos da fratria22 fosse por realmente pensar desse modo fosse para prestar como que uma homenagem a Criacutetias disse considerar que aleacutem de Soacutelon ser o homem mais saacutebio noutros assuntos no que respeitava agrave poesia considerava-o o mais independente de todos os poetas23 Entatildeo o anciatildeo ndash lembro-me bem ndash muito

20 Este Criacutetias natildeo eacute o participante no diaacutelogo mas sim o seu avocirc Sobre esta relaccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp 21-22

21 Festival que decorria em todas as cidades ioacutenicas agrave excepccedilatildeo de Eacutefeso e Coacutelofon segundo Heroacutedoto 1147 O terceiro e uacuteltimo dia (dito ldquode Cureoacutetisrdquo) estava reservado agrave apresentaccedilatildeo das crianccedilas que tinham nascido nos 12 meses precedentes

22 Uma fratria era um grupo de cidadatildeos unidos por uma mesma ascendecircncia Era considerada uma marca da tradiccedilatildeo ioacutenica e como tal frequente em muitas cidades desta origem entre as quais Atenas A cerimoacutenia que celebrava esta tradiccedilatildeo era justamente as Apatuacuterias que segundo Heroacutedoto (1147) consistiam no criteacuterio de identidade desta heranccedila cultural

23 Cremos que eleutheriocirctaton natildeo se refere ao conteuacutedo temaacutetico ou qualquer outro aspecto literaacuterio da obra de Soacutelon mas

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agradado disse a sorrir ldquooacute Aminandro24 era bom que ele natildeo tivesse usado a poesia como passatempo mas sim que se tivesse empenhado como os outros e dado corpo ao relato que para aqui trouxe do Egipto Se as revoltas entre outros males que encontrou quando caacute chegou25 natildeo o tivessem obrigado a descurar a poesia nem Hesiacuteodo nem Homero nem qualquer outro poeta se teria tornado mais ceacutelebre do que elerdquo ldquoMas que relato eacute esse Criacutetiasrdquo ndash perguntou o outro ldquondash O relato era sobre o feito mais grandioso e com toda a justiccedila mais notaacutevel de todos quantos a nossa cidade praticou mas que natildeo perdurou ateacute agora por causa do tempo e da morte daqueles que nele participaramrdquo ndash respondeu ele ldquoConta desde o princiacutepio o que relatou e como o relatou Soacutelon e da boca de quem o ouviu como sendo verdadeirordquo ndash pediu o outro

ldquoHaacute no Egipto ndash comeccedilou Criacutetias ndash no extremo inferior do Delta em redor da zona onde se divide a corrente do Nilo uma regiatildeo chamada Saiticos26 e da maior cidade dessa regiatildeo Sais27 ndash precisamente de onde era natural o rei Amaacutesis28 ndash foi fundadora uma deusa

sim ao proacuteprio homem ndash de facto a palavra tem uma conotaccedilatildeo principalmente socioloacutegica e poliacutetica Eacute que ao contraacuterio da maioria dos poetas do seu tempo Soacutelon natildeo compunha por indicaccedilatildeo de um patrono

24 Personagem totalmente desconhecida25 Referecircncia provaacutevel agraves revoltas que nos finais do seacuteculo VI

aC afrontaram Atenas antes de Soacutelon ter tomado o poder26 Sobre esta regiatildeo vide Heroacutedoto 2152 165 17227 Sobre esta cidade vide Heroacutedoto 228 59 62 130-132

163 169-171 31628 Heroacutedoto refere que Soacutelon depois de ter composto as leis

para os Atenienses se ausentou durante dez anos e esteve em casa de

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cujo nome em Egiacutepcio eacute Neith e em Grego segundo dizem os que laacute vivem Atena29 Eles nutrem profunda simpatia pelos Atenienses e dizem que de certo modo com estes tecircm afinidades

Dizia Soacutelon que enquanto por ali andou era muitiacutessimo respeitado por eles e que a certa altura ao questionar os sacerdotes30 mais versados sobre acontecimentos antigos descobriu que nem ele nem nenhum outro grego sabia por assim dizer quase nada sobre aquele assunto Como ele pretendia induzir os anciatildeos a conversarem sobre acontecimentos antigos pocircs-se a contar as tradiccedilotildees ancestrais que haacute entre noacutes Falou de Foroneu que se diz ter sido o primeiro homem31 e de Niacuteobe32 de como Deucaliatildeo e Pirra sobreviveram ao diluacutevio33 e discorreu sobre a genealogia dos que lhes sucederam e tentou calcular haacute quantos anos tinha acontecido aquilo que contara trazendo agrave memoacuteria as Amaacutesis (cf 129-30) Ainda que seja quase certa a estadia de Soacutelon no Egipto eacute cronologicamente impossiacutevel que tenha acontecido no tempo de Amaacutesis cf Introduccedilatildeo pp 57-58

29 Tambeacutem Heroacutedoto estabelece esta relaccedilatildeo entre Atena e Neith e chega a referir um grande festival religioso que os egiacutepcios organizavam em honra da deusa (cf 259)

30 Plutarco na Vida de Soacutelon (261) tambeacutem refere este episoacutedio e adianta os nomes dos sacerdotes Socircnquis de Sais e Pseacutenopis de Helioacutepolis

31 As uacutenicas referecircncias a Foroneu como primeiro homem satildeo bastante posteriores (Clemente de Alexandria Stromata 1102 Pausacircnias 2155) Por isso natildeo eacute possiacutevel perceber a que tradiccedilatildeo Platatildeo se refere

32 Filha de Foroneu33 Deucaliatildeo filho de Prometeu e a esposa Pirra filha de

Epimeteu correspondem na mitologia grega ao arqueacutetipo biacuteblico de Noeacute avisados pelos deuses de um diluacutevio contruiacuteram uma arca para sobreviver e posteriormente repovoar a Terra

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suas idades Foi entatildeo que um dos sacerdotes jaacute de muita idade lhe disse ldquoOacute Soacutelon Soacutelon34 voacutes Gregos sois todos umas crianccedilas natildeo haacute um grego que seja velhordquo Ouvindo tais palavras Soacutelon indagou ldquoO que queres dizer com issordquo ldquoQuanto agrave alma35 sois todos novos ndash disse ele Eacute que nela natildeo tendes nenhuma crenccedila antiga transmitida pela tradiccedilatildeo nem nenhum saber encanecido pelo tempo A causa exacta eacute a seguinte muitas foram as destruiccedilotildees que a humanidade sofreu e muitas mais haveraacute as maiores pelo fogo e pela aacutegua mas tambeacutem outras menores por outras causas incontaacuteveis Tomemos um exemplo como o de Faetonte filho de Heacutelios que um dia atrelou o carro do pai mas por natildeo ser capaz de seguir a rota do pai lanccedilou o fogo sobre a terra e ele proacuteprio morreu fulminado Isto eacute contado sob a forma de um mito36 pois a verdade eacute que os corpos que no ceacuteu giram agrave volta da terra sofrem uma variaccedilatildeo e de muito em muito tempo sobreveacutem a destruiccedilatildeo na terra por causa do excesso de fogo Nessa altura aqueles que vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior nuacutemero do que os que vivem junto de rios ou do mar Quanto a noacutes eacute o Nilo nosso salvador tambeacutem em outras ocasiotildees que nos livra de tais apuros com as suas cheias Por outro lado sempre que os deuses provocam um diluacutevio para purificar a

34 Note-se que a repeticcedilatildeo da palavra ldquoSoacutelonrdquo eacute propositada35 psychecirc Neste caso ldquoalmardquo natildeo tem um sentido cosmoloacutegico

nem psicoloacutegico mas sim cultural36 mythou men schecircma echon Segundo a concepccedilatildeo do sacerdote

ldquomitordquo tem o sentido mais tradicional estoacuteria falsa Tornar-se-aacute evidente que a de Timeu eacute diametralmente oposta e bastante mais elaborada

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terra com aacutegua satildeo os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas37 enquanto que os que entre voacutes vivem nas cidades satildeo arrastados para o mar pelos rios Mas aqui nesta terra nem num caso nem no outro as aacuteguas correm pelos nossos campos mas pelo contraacuterio irrompem naturalmente do fundo da terra Daiacute que seja este o motivo pelo qual se diz que as tradiccedilotildees mais antigas se conservam nesta regiatildeo Em boa verdade em todos os locais onde nem o frio geacutelido nem o calor ardente perturbam aiacute estaacute sempre em maior ou menor nuacutemero a raccedila humana Assim desde tempos remotos que de tudo quanto se passa na vossa terra aqui ou em qualquer outro local de que noacutes tomemos conhecimento pelo que ouvimos dizer se porventura se tratar de qualquer coisa de belo grandioso ou de qualquer outra natureza isso fica gravado nos nossos templos e manteacutem-se conservado Por outro lado acontece que em relaccedilatildeo ao que se passa entre voacutes e entre outros mal acaba de se ordenar o sistema de escrita e tudo o resto que faz falta a uma cidade recai novamente sobre voacutes durante o habitual nuacutemero de anos uma torrente vinda do ceacuteu semelhante a uma doenccedila e apenas deixa entre voacutes os analfabetos e os que satildeo estranhos agraves Musas de tal forma que nasceis de novo do princiacutepio tal como crianccedilas sem saber nada do que aconteceu em tempos remotos quer aqui quer entre voacutes

37 Como Criacutetias faraacute questatildeo de referir no seu discurso (Criacutetias 109d) soacute as populaccedilotildees que vivem nas montanhas escapam aos diluacutevios O facto de estas pessoas desconhecerem a escrita justifica a inexistecircncia de registos posteriores a essas calamidades

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Em todo o caso oacute Soacutelon as genealogias sobre as figuras de que acabas de nos falar diferem em pouco dos contos para crianccedilas pois eles recuperam apenas um uacutenico diluacutevio na terra ao passo que houve muitos antes desse Mas aleacutem disso voacutes natildeo sabeis que foi na vossa regiatildeo que apareceu a mais bela e grandiosa casta de homens da qual descendes tu e toda a cidade que eacute agora vossa por ter restado desse tempo uma pequena semente Eacute que voacutes perdestes a memoacuteria pois morreram os sobreviventes sem terem legado o seu depoimento agrave escrita durante muitas geraccedilotildees E de facto oacute Soacutelon na eacutepoca anterior agrave maior destruiccedilatildeo causada pela aacutegua a cidade que agora eacute dos Atenienses era a mais brava na guerra e incomparavelmente a mais bem governada em todos os aspectos Dizem que deu origem aos mais belos feitos e agraves mais belas instituiccedilotildees poliacuteticas38 de entre todas as que debaixo do ceacuteu obtivemos notiacuteciardquo

Soacutelon disse ter ficado surpreendido pelo que tinha ouvido e absolutamente desejoso de pedir aos sacerdotes que discorressem com pormenor e exactidatildeo sobre tudo o que soubessem acerca dos seus concidadatildeos de outrora Entatildeo o sacerdote respondeu o seguinte ldquoEacute sem reserva alguma que to contarei oacute Soacutelon por consideraccedilatildeo a ti e agrave vossa cidade e acima de tudo por gratidatildeo agrave deusa a quem coube em sorte a vossa cidade e tambeacutem esta que ela criou e educou ndash primeiro a vossa mil anos antes da nossa depois de ter recebido de Geia e de Hefesto

38 politeia Note-se que a palavra estaacute no plural por isto e tambeacutem pelo que sugere o contexto natildeo diraacute respeito a todo o Estado mas apenas agraves instituiccedilotildees

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a semente de onde voacutes nascestes39 e depois esta aqui Segundo os nuacutemeros gravados nos escritos sagrados a nossa cidade foi organizada haacute oito mil anos Portanto vou falar-te brevemente sobre as leis dos cidadatildeos que viveram haacute nove mil anos e tambeacutem do mais nobre dos feitos que levaram a cabo Posteriormente discorreremos sobre os pormenores referentes a todas estas questotildees e em seguida com vagar pegaremos nos proacuteprios textos

Quanto agraves leis observa-as agrave luz das daqui pois encontraraacutes caacute muitos exemplos de leis que vigoravam naquele tempo entre voacutes em primeiro lugar a classe dos sacerdotes estaacute separada agrave parte das outras em seguida no que respeita aos artesatildeos a cada um cabe uma funccedilatildeo sem que se misturem umas com as outras (uma aos pastores outra aos caccediladores e outra aos agricultores) Jaacute a classe dos guerreiros conforme reparaste estaacute separada de todas as outras classes estando obrigados por lei a natildeo se dedicarem a nada mais aleacutem do que diz respeito agrave guerra40 aleacutem disso em relaccedilatildeo ao seu armamento fomos noacutes os primeiros na Aacutesia41 a equipaacute-los com escudos e lanccedilas Eacute que a deusa

39 Esta referecircncia miacutetica estaacute intimamente relacionada com o Festival das Panateneias durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica Segundo o mito quando Atena se dirigiu junto de Hefesto para lhe pedir que fabricasse as suas armas este tentou violaacute-la tendo Atena escapado o seacutemen caiu agrave terra ndash Geia ndash da qual nasceu Erictoacutenio um dos fundadores da cidade de Atenas As Panateneias celebravam precisamente o nascimento de Erictoacutenio

40 Sobre o sistema de castas que vigoraria no Egipto vide Heroacutedoto 2164-168 As semelhanccedilas com o arqueacutetipo ateniense proposto na Repuacuteblica e concretizado no discurso de Criacutetias satildeo evidentes

41 Segundo os relatos do Timeu e do Criacutetias a Aacutesia estendia-se

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o ensinou tal como a voacutes que fostes os primeiros a fazecirc-lo nesta regiatildeo Vecircs tambeacutem quatildeo diligente foi a nossa lei no que diz respeito agrave sabedoria42 e desde o princiacutepio estabeleceu harmoniosamente a ordem das coisas pois tudo descobriu a partir dos deuses em favor da acccedilatildeo humana incluindo a arte da divinaccedilatildeo e a medicina em benefiacutecio da sauacutede e adquiriu todos os outros saberes que derivam daqueles43 Toda esta ordem e sistematizaccedilatildeo partilhou a deusa convosco nesse tempo e fixou-vos uma paacutetria antes de o fazer a outros por aiacute ter identificado um equiliacutebrio de estaccedilotildees que haveria de dar origem aos homens mais inteligentes Visto que a deusa era amante simultaneamente da guerra e da sabedoria escolheu esse lugar e povoou-o antes de outros porque era propiacutecio para criar os homens que mais se lhe assemelhassem Viviacuteeis pois regidos por aquelas leis ainda melhores do que as nossas e aleacutem disso com uma boa organizaccedilatildeo poliacutetica e eacutereis melhores do que todos os homens em virtude como eacute de esperar de rebentos e disciacutepulos dos deuses

Muitos e grandes foram os feitos da vossa cidade que satildeo motivo de admiraccedilatildeo nos registos que deles aqui ficaram Mas entre todos eles destaca-se um em grandeza e beleza os nossos escritos referem como a vossa cidade um dia extinguiu uma potecircncia que marchava insolente em toda a Europa e na Aacutesia depois de ter partido do Oceano Atlacircntico Em tempos este

da margem direita do Rio Nilo para Este42 phronecircsis43 Sobre a praacutetica da medicina pelos Egiacutepcios vide Aristoacuteteles

Poliacutetica 1286a10-22 Diodoro Siacuteculo 1823

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mar podia ser atravessado pois havia uma ilha junto ao estreito a que voacutes chamais Colunas de Heacuteracles44 ndash como voacutes dizeis ilha essa que era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia juntas a partir da qual havia um acesso para os homens daquele tempo irem agraves outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o territoacuterio continental que se encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano De facto aquilo que estaacute aqueacutem do estreito de que falamos parece um porto com uma entrada apertada No lado de laacute eacute que estaacute o verdadeiro mar e eacute a terra que o rodeia por completo que deve ser chamada com absoluta exactidatildeo ldquocontinenterdquo45

Nesta ilha a Atlacircntida havia uma enorme confederaccedilatildeo de reis com uma autoridade admiraacutevel que dominava toda a ilha bem como vaacuterias outras ilhas e algumas partes do continente aleacutem desses dominavam ainda alguns locais aqueacutem da desembocadura desde a Liacutebia46 ao Egipto e na Europa ateacute agrave Tirreacutenia47 Esta potecircncia tentou toda unida escravizar com uma soacute ofensiva toda a vossa regiatildeo a nossa e tambeacutem todos os locais aqueacutem do estreito Foi nessa altura oacute Soacutelon que pela valentia e pela forccedila se revelou a todos os homens o poderio da vossa cidade pois sobrepocircs-se a todos em

44 O Estreito de Gibraltar45 Segundo esta descriccedilatildeo que recupera alguns elementos do

Feacutedon (108c-114c) a bacia mediterracircnica eacute apenas a parte central da superfiacutecie terrestre e natildeo a sua totalidade eacute circundada pelo Oceano onde se situa a Atlacircntida e eacute aleacutem deste que se situa o territoacuterio continental No fundo a zona do mediterracircneo equivale a um conjunto de ilhas desse verdadeiro mar

46 Todo territoacuterio entre o Egipto e a costa ocidental de Aacutefrica47 Parte ocidental da Peniacutensula Itaacutelica

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coragem e nas artes da guerra quando liderou o exeacutercito grego e depois quando foi deixada agrave sua proacutepria mercecirc por forccedila da desistecircncia dos outros povos e correu riscos extremos Mas veio a erigir o monumento da vitoacuteria ao dominar quem nos atacava impediu que escravizassem entre outros quem nunca tinha sido escravizado bem como todos os que habitavam aqueacutem das Colunas de Heacuteracles e libertou-os a todos sem qualquer reserva48 Posteriormente por causa de um sismo incomensuraacutevel e de um diluacutevio que sobreveio num soacute dia e numa noite terriacuteveis49 toda a vossa classe guerreira foi de uma soacute vez engolida pela terra e a ilha da Atlacircntida desapareceu da mesma maneira afundada no mar Eacute por isso que nesse local o oceano eacute intransitaacutevel e imperscrutaacutevel em virtude da lama que aiacute existe em grande quantidade e da pouca profundidade provocada pela ilha que submergiu50rdquo

Acabas de ouvir oacute Soacutecrates o essencial do relato de Criacutetias o anciatildeo segundo o que ele ouviu de Soacutelon Ontem enquanto tu falavas sobre o Estado e dos homens que referias eu fiquei atoacutenito ao recordar-me disto de que agora vos falo por me aperceber de que miraculosamente e por obra de um acaso sem que fosse tua intenccedilatildeo tinhas coligido muito do que Soacutelon dissera Ainda assim natildeo quis falar de improviso pois natildeo me

48 No Meneacutexeno (239a-sqq) eacute descrita em termos muito semelhantes a prestaccedilatildeo ateniense contra a invasatildeo dos Persas

49 Este diluacutevio eacute igualmente referido no Criacutetias (112a) e tambeacutem por outros autores (Aristoacuteteles Meteoroloacutegicos 28 368a33-b13 Pausacircnias 724)

50 Semelhante testemunho daacute Aristoacuteteles nos Meteoroloacutegicos (21 354a11-31)

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lembrava o suficiente em virtude do tempo decorrido Portanto decidi que seria preciso que eu proacuteprio recuperasse adequadamente tudo isto antes de vo-lo contar deste modo Por isso concordei prontamente com as tuas determinaccedilotildees de ontem acreditando que em todos os casos como este o encargo mais importante eacute propor um discurso que seja adequado aos objectivos e possa ser suficientemente vantajoso para noacutes Assim tal como Hermoacutecrates disse mal ontem saiacute daqui repeti-lhes aquilo de que me lembrava e depois de me ter ido embora reflecti durante a noite e recuperei quase tudo Em boa verdade o que se aprende na infacircncia segundo se diz fica admiravelmente retido na memoacuteria Com efeito o que ouvi ontem natildeo sei se eu o conseguirei trazer de novo agrave memoacuteria por completo mas em relaccedilatildeo ao que apreendi haacute jaacute muito tempo ficaria absolutamente admirado se me escapasse alguma coisa De facto era com tanto prazer e entusiasmo infantil que as escutava aleacutem de o anciatildeo mas contar de bom grado (enquanto lhe fazia perguntas repetidamente) que tal como aquele tipo de escrita em pintura encaacuteustica51 que subsiste se tornaram para mim indeleacuteveis Assim logo ao amanhecer contei-lhes isto de modo a que me acompanhassem no relato E agora pois foi por causa disso que referi tudo isto estou preparado oacute Soacutecrates a relataacute-lo natildeo soacute no que se refere aos seus aspectos principais mas tambeacutem ao pormenor tal como o ouvi Quanto aos cidadatildeos e agrave

51 Meacutetodo de pintura que consistia em aplicar cera aquecida numa base metaacutelica pelo que garantia grande durabilidade Pliacutenio na sua Histoacuteria Natural (35149) daacute uma descriccedilatildeo deste procedimento

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cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade52 como se aquela cidade fosse esta aqui e suponhamos que aqueles cidadatildeos que tu tinhas em mente satildeo os nossos antepassados ndash os reais aqueles de que falava o sacerdote Estaratildeo em absoluta harmonia e noacutes natildeo estaremos fora de tom se dissermos que eles satildeo os que existiram naquele tempo Assim dentro dos possiacuteveis tentaremos todos em conjunto ocupar-nos da tarefa que nos entregaste Portanto oacute Soacutecrates eacute preciso ter em atenccedilatildeo se este discurso estaacute de acordo com o nosso propoacutesito ou se devemos procurar um outro em substituiccedilatildeo dele

Soacutecrates E que outro discurso oacute Criacutetias poderiacuteamos noacutes preferir melhor que este que seja ainda mais adequado ao festival da deusa que celebramos pois estaacute-lhe intimamente ligado e aleacutem disso eacute muito relevante o facto de natildeo se tratar de uma narrativa forjada mas sim de um discurso real Na verdade como e onde encontrariacuteamos outros caso deixaacutessemos este de lado Natildeo eacute possiacutevel Agora boa sorte pois eacute a voacutes que compete falar Quanto a mim em troca dos discursos de ontem mantenho-me em silecircncio e retribuo o papel de ouvinte

Criacutetias Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito

52 epi talecircthes Sobre este sentido de ldquorealidaderdquo vide Introduccedilatildeo pp 62-63

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pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo53 deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada Entatildeo de acordo com as palavras e a lei de Soacutelon depois de os trazer agrave nossa presenccedila como se estivessem perante juiacutezes faacute-los-ei cidadatildeos desta cidade como se fossem os Atenienses de outrora cuja existecircncia permanece esquecida e foi agora desvelada pelo testemunho dos escritos sagrados Daqui em diante farei o meu discurso como se na verdade se tratasse de cidadatildeos e de Atenienses

Soacutecrates Perfeito e brilhante me parece o banquete de discursos que vou receber em troca do que ofereci Eacute entatildeo a tua vez de discursar segundo me parece oacute Timeu depois de invocares os deuses de acordo com o costume54

Timeu Eacute bem certo oacute Soacutecrates que todos quantos partilhem o miacutenimo de bom-senso55 sempre que iniciam algum empreendimento pequeno ou grande invocam sempre de algum modo um deus Quanto a noacutes que nos preparamos para produzir discursos sobre o

53 kosmos54 Eacute comum em Platatildeo a invocaccedilatildeo de uma divindade antes de

iniciar um discurso (Filebo 25b Leis 887c)55 socircphrosynecirc

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universo ndash sobre como deveio ou se de facto nem o toca o devir56 ndash caso natildeo tenhamos perdido por completo o discernimento eacute inevitaacutevel que invoquemos deuses e deusas bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto57 e esteja em concordacircncia com o nosso E no que respeita aos deuses seja esta a nossa invocaccedilatildeo No que nos toca conveacutem que os invoquemos para que vocecircs aprendam com facilidade e que eu exponha da melhor forma possiacutevel o que penso sobre o assunto que tenho perante mim

Na minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem58 sem nunca ser59 Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo60

56 Traduzimos gignomai por ldquodevirrdquo sempre que a oposiccedilatildeo ontoloacutegico ser-devir estiver patente Nos outros casos optaacutemos por ldquogerarrdquo um termo complementar que manteacutem a noccedilatildeo de pertenccedila ao devir (Santos 2003 p 16 n 13) ao mesmo tempo que garante a proximidade semacircntica com o original principalmente no que respeita agrave acccedilatildeo demiuacutergica a qual no fundo consiste num processo de geraccedilatildeo

57 nous Trata-se da faculdade de inteligir as Ideias eacute partilhada por deuses daimones homens e inclusivamente pela alma do mundo Esta mesma designaccedilatildeo eacute aplicada agrave sede humana dessa faculdade a parte racional e imortal da alma razatildeo pela qual a traduziremos do mesmo modo

58 ti to gignomenon A ediccedilatildeo de Burnet regista tambeacutem aei (ldquosemprerdquo) implicando a traduccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute sempre em devirrdquo Apesar de compatiacutevel com os conteuacutedos do texto trata-se de um acrescento posterior como claramente demonstrou Whittaker (1969 1973) Seguimos pois neste ponto a omissatildeo de aei

59 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ldquoo que eacuterdquo (to on) e ldquoo que deveacutemrdquo (to gignomenon) isto eacute entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao mundo sensiacutevel Eacute agrave luz deste axioma que se vai desenvolver todo o discurso de Timeu

60 noecircsei meta logou perilecircpton

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pois eacute imutaacutevel61 Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos62 e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca Ora tudo aquilo que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa pois eacute impossiacutevel que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa63 Deste modo o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel e que utiliza como arqueacutetipo64 quando daacute a forma e as propriedades ao que cria Eacute inevitaacutevel que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo Se pelo contraacuterio pusesse os olhos no que deveacutem e tomasse como arqueacutetipo algo deveniente a sua obra natildeo seria bela

Quanto ao conjunto do ceacuteu ou mundo ndash ou ainda se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado chamemos-lhe esse ndash temos que apurar primeiro no que lhe diz respeito aquilo que subjaz a todas as questotildees e deve ser apurado logo no princiacutepio

61 aei kata tauta on literalmente ldquoaquilo que eacute sempre de acordo com o mesmordquo Trata-se das Ideias que satildeo imutaacuteveis porquanto isentas das oscilaccedilotildees do devir (vide Feacutedon 78d)

62 metrsquoaisthecircseocircs alogou doxaston literalmente ldquoopinaacutevel com o auxiacutelio da percepccedilatildeo sensiacutevel privada de razatildeordquo Ao contraacuterio ldquodo que eacuterdquo ldquoo que deveacutemrdquo natildeo eacute fonte de saber estaacutevel pois aleacutem de se encontrar em constante mutaccedilatildeo soacute pode ser apreendido pela falibilidade dos sentidos e natildeo por meio da razatildeo

63 Tal como eacute referido em muitos outros diaacutelogos de Platatildeo (Leis 891e Feacutedon 98c 99b Filebo 27b) tambeacutem no Timeu natildeo soacute neste ponto como tambeacutem noutras ocasiotildees (29d 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e) o que pertence agrave dimensatildeo do devir depende de uma causa

64 paradeigma No Timeu as Ideias satildeo tomadas na sua totalidade sob o conceito de ldquoarqueacutetipordquo este representa pois a soma de todas elas que serve de modelo inteligiacutevel de racionalidade para a criaccedilatildeo

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se sempre foi sem ter tido origem no devir ou se deveio originado a partir de algum princiacutepio Deveio pois eacute visiacutevel e tangiacutevel e tem corpo assumindo todas as propriedades do que eacute sensiacutevel65 e o que eacute sensiacutevel que pode ser compreendido por uma opiniatildeo fundamentada na percepccedilatildeo dos sentidos deveacutem e eacute deveniente como jaacute foi dito66 Dissemos tambeacutem que o que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa Poreacutem descobrir o criador e pai do mundo eacute uma tarefa difiacutecil e a descobri-lo eacute impossiacutevel falar sobre ele a toda a gente67 Mas ainda quanto ao mundo temos que apurar o seguinte aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arqueacutetipos daquele que eacute imutaacutevel e inalteraacutevel68 ou do que deveacutem Ora se o mundo eacute belo e o demiurgo eacute bom eacute evidente que pocircs os olhos que eacute eterno se fosse ao contraacuterio ndash o que nem eacute correcto supor ndash teria posto os olhos no que deveacutem Portanto eacute evidente para todos que pocircs os olhos no que eacute eterno pois o mundo eacute a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo eacute a mais perfeita das causas Deste modo

65 aisthecircton66 Cf supra 27d-28a67 Este passo em que Timeu chama ao demiurgo ldquopai e criador

do mundordquo foi extensivamente citada e discutida ao longo dos seacuteculos por autores de todas as orientaccedilotildees filosoacuteficas e religiosas especificamente por teoacutelogos judeus e cristatildeos que o utilizaram para fundamentar a crenccedila monoteiacutesta Sobre este assunto vide Nock (1962 pp 79-83)

68 ocircsautocircs Isto eacute que nunca se torna ldquooutrordquo Aleacutem de isento de corrupccedilatildeo por acccedilatildeo do devir e por isso imutaacutevel (cf supra n 70) o arqueacutetipo eacute sempre idecircntico a si mesmo nunca assumindo atributos de outra coisa Trata-se no fundo do princiacutepio de identidade que define as Ideias (vide Feacutedon 78d)

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30a

o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pocircs os olhos no que eacute imutaacutevel e apreensiacutevel pela razatildeo e pelo pensamento69

Assim sendo de acordo com estes pressupostos eacute absolutamente inevitaacutevel que este mundo seja uma imagem de algo70 Mas em tudo o mais importante eacute comeccedilar pelo princiacutepio de acordo com a natureza Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere71 Por isso os discursos claros estaacuteveis e invariaacuteveis explicam com a colaboraccedilatildeo do intelecto o que eacute estaacutevel e fixo ndash e tanto quanto conveacutem aos discursos serem irrefutaacuteveis e insuperaacuteveis em nada devem afrouxar esta relaccedilatildeo Em relaccedilatildeo aos que se reportam ao que eacute copiado do arqueacutetipo por se tratar de uma coacutepia estabelecem com essa coacutepia uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia conforme o ser72 estaacute para o devir73 assim a verdade estaacute para a crenccedila74 Portanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum

69 pros to logocirc kai phronecircsei perilecircpton70 ton kosmon eikona tinos71 Sobre as implicaccedilotildees desta proposiccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp

33-3472 ousia73 genesis74 Conclusatildeo da alegoria episteacutemico-ontoloacutegica da linha dividida

formulada na Repuacuteblica (509d-511e)

96 97

Timeu

96 97

b

c

d

e

30a

outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil75 e natildeo procurar nada aleacutem disso

Soacutecrates Excelente oacute Timeu Devemos sem duacutevida alguma aceitaacute-lo tal como propotildees Acolhemos o teu preluacutedio com admiraccedilatildeo mas agora termina a aacuteria sem interrupccedilatildeo76

Timeu Digamos pois por que motivo aquele que constituiu o devir e o mundo os constituiu Ele era bom e no que eacute bom jamais nasce inveja de qualquer espeacutecie77 Porque estava livre de inveja quis que tudo fosse o mais semelhante a si possiacutevel Quem aceitar de homens sensatos que esta eacute a origem mais vaacutelida do devir e do mundo estaraacute a aceitar o raciociacutenio mais acertado Na verdade o deus quis que todas as coisas fossem boas e que no que estivesse agrave medida do seu poder78 natildeo existisse nada imperfeito Deste modo pegando em tudo quanto havia de visiacutevel que natildeo estava em repouso mas se movia irregular e desordenadamente da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que

75 eikota mython Sobre as implicaccedilotildees desta expressatildeo vide Introduccedilatildeo pp 48-53

76 A mesma metaacutefora eacute utilizada na Repuacuteblica (531d)77 Para Platatildeo um deus eacute sempre bom e tudo o que eacute bom estaacute

livre de inveja (cf Fedro 247a Repuacuteblica 379b)78 Esta noccedilatildeo de limitaccedilatildeo relativa associada ao demiurgo eacute

muitiacutessimo frequente ao longo do texto (32b 37d 38c 42e 53b 65c 71d 89d)

Platatildeo

98 9998 99

b

c

d

31a

b

esta eacute sem duacutevida melhor do que aquela Com efeito a ele sendo supremo foi e eacute de justiccedila que outra coisa natildeo faccedila senatildeo o mais belo

Reflectindo descobriu que a partir do que eacute visiacutevel por natureza de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto e que seria impossiacutevel que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma79 Por meio deste raciociacutenio80 fabricou o mundo estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza Assim de acordo com um discurso verosiacutemil eacute necessaacuterio dizer que este mundo que eacute na verdade um ser dotado de alma e de intelecto81 foi gerado pela providecircncia82 do deus

Dito isto devemos agora ocupar-nos do que se deu a seguir agrave semelhanccedila de qual dos seres constituiu o mundo aquele que o constituiu Assumamos que natildeo foi agrave semelhanccedila de qualquer um daqueles seres que por natureza formam uma espeacutecie particular ndash pois nada do que se assemelha ao que eacute incompleto pode tornar-se belo Estabeleccedilamos em vez disso que o universo se

79 Reafirmaccedilatildeo do postulado jaacute referido na Repuacuteblica (478a-b) e no Sofista (249a) segundo o qual todo o acto intelectivo soacute pode ter lugar na alma

80 logismos81 zocircon empsychon ennoun te82 pronoia Note-se que nesta e nas restantes ocorrecircncias

(44c7 45b1) ldquoprovidecircnciardquo implica apenas presciecircncia enquanto capacidade de antecipar necessidades futuras natildeo tendo pois o sentido religioso de ldquogoverno do mundordquo tanto que o demiurgo se retira apoacutes a criaccedilatildeo

98 99

Timeu

98 99

b

c

d

31a

b

assemelha o mais possiacutevel agravequele ser de que os outros satildeo parte quer individualmente quer como classe De facto esse ser compreende em si mesmo e encerra todos os seres inteligiacuteveis83 tal como este mundo nos compreende a noacutes e a todas as outras criaturas visiacuteveis Assim por querer assemelhaacute-lo ao mais belo de entre os seres inteligiacuteveis ao mais perfeito de todos o deus constituiu um ser uacutenico que contivesse em si mesmo todos os seres que se lhe assemelhassem por natureza

Entatildeo seraacute correcto declarar que haacute um uacutenico ceacuteu ou seraacute mais correcto dizer que haacute vaacuterios ou ateacute infinitos Haacute um uacutenico jaacute que foi fabricado pelo demiurgo de acordo com o arqueacutetipo84 Eacute que aquele que abrange todos os seres inteligiacuteveis natildeo pode de modo algum vir em segundo lugar a seguir a outro Caso contraacuterio deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois do qual esses dois seriam uma parte e seria mais correcto dizer que o mundo natildeo se assemelharia a esses dois mas sim agravequele que os abrangia Portanto foi para que se assemelhasse ao ser absoluto na sua singularidade85

83 noecircta zocirca84 Nas secccedilotildees subsequentes seratildeo implicitamente refutadas

duas teses centrais do atomismo a pluralidade de mundos (eg DK 67A1 68A40) e a existecircncia do vazio (eg DK 67A6-7 DK 68A37) Ambos os problemas estatildeo interligados e a sua explicaccedilatildeo depende das mesmas razotildees visto que foi necessaacuteria a totalidade dos elementos na criaccedilatildeo eacute impossiacutevel que os mundos sejam inumeraacuteveis posto que natildeo sobrou qualquer mateacuteria de que fossem ou viessem a ser formados (31a-33b) de modo a que o mundo englobasse todos os seres foi-lhe dada a forma que engloba todas as formas (a esfeacuterica) natildeo restando pois nada mais para ocupar (33b-34a)

85 monocircsis

Platatildeo

100 101100 101

c

32a

b

c

d

que aquele que fez o mundo natildeo fez dois nem uma infinidade de mundos deste modo o ceacuteu foi gerado como unigeacutenito ndash assim eacute e assim continuaraacute a ser

Eacute forccediloso que aquilo que deveio seja corpoacutereo visiacutevel e tangiacutevel mas separado do fogo sem duacutevida que nada pode ser visiacutevel nem nada pode ser tangiacutevel sem qualquer coisa soacutelida e nada pode ser soacutelido sem terra Daiacute que o deus quando comeccedilou a constituir o corpo do mundo o tenha feito a partir de fogo e de terra Todavia natildeo eacute possiacutevel que somente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira pois eacute necessaacuterio gerar entre ambas um elo que as una O mais belo dos elos seraacute aquele que faccedila a melhor uniatildeo entre si mesmo e aquilo a que se liga o que eacute por natureza alcanccedilado da forma mais bela atraveacutes da proporccedilatildeo86 Sempre que de trecircs nuacutemeros sejam eles inteiros ou em potecircncia87 o do meio tenha um caraacutecter tal que o primeiro estaacute para ele como ele estaacute para o uacuteltimo e em sentido inverso o uacuteltimo estaacute para o do meio como o do meio estaacute para o primeiro o do meio torna-se primeiro e uacuteltimo e o uacuteltimo e o primeiro passam ambos a estar no meio sendo deste modo obrigatoacuterio que se ajustem entre si e tendo-se assim ajustado uns aos outros entre si seratildeo todos um soacute Ora se o corpo do mundo tivesse sido gerado como uma superfiacutecie plana sem nenhuma

86 analogia A formaccedilatildeo do mundo organizado a partir dos quatro elementos obedece inevitavelmente agrave proporccedilatildeo isto eacute agrave relaccedilatildeo matemaacutetica Como se tornaraacute evidente ateacute o proacuteprio demiurgo estaacute atido agraves imposiccedilotildees da proporccedilatildeo matemaacutetica

87 A distinccedilatildeo entre nuacutemeros inteiros e em potecircncia eacute tambeacutem referida no Teeteto (148a-b) e nas Leis (737c)

100 101

Timeu

100 101

c

32a

b

c

d

profundidade um soacute elemento intermeacutedio teria sido suficiente para o unir aos outros termos88 Poreacutem convinha que o mundo fosse de natureza soacutelida e para harmonizar o que eacute soacutelido natildeo basta um soacute elemento intermeacutedio mas sim sempre dois Foi por isso que tendo colocado a aacutegua e o ar entre o fogo e a terra e na medida do possiacutevel produzido entre eles a mesma proporccedilatildeo de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar estava para a aacutegua e o ar estivesse para a aacutegua como a aacutegua estava para a terra o deus uniu estes elementos e constituiu um ceacuteu visiacutevel e tangiacutevel Foi por causa disto e a partir destes elementos ndash elementos esses que satildeo em nuacutemero de quatro ndash que o corpo do mundo foi engendrado posto em concordacircncia atraveacutes de uma proporccedilatildeo e a partir destes elementos obteve a amizade89 de tal forma que tornando-se idecircntico a si mesmo eacute indissoluacutevel por outra entidade que natildeo aquela que o uniu

Assim a constituiccedilatildeo do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade Foi a partir da totalidade do fogo da aacutegua do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu natildeo deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma pois este era o seu desiacutegnio90 em primeiro lugar que fosse acima

88 Referecircncia ao problema da duplicaccedilatildeo do quadrado que estaria jaacute resolvido no tempo de Platatildeo (vide Meacutenon 81e-84b)

89 A noccedilatildeo de amizade (philia) que Timeu introduz neste ponto em que aborda a combinaccedilatildeo dos quatro elementos convida a uma relaccedilatildeo intertextual com a Philia de que fala Empeacutedocles como entidade mediadora desses mesmos elementos Sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo p 25

90 dianoeocirc

Platatildeo

102 103102 103

33a

b

c

d

34a

de tudo um ser-vivo completo e perfeito91 constituiacutedo a partir de partes perfeitas em seguida que fosse uacutenico posto que natildeo sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza e ainda que estivesse imune ao envelhecimento e agrave doenccedila pois ele92 tinha perfeita consciecircncia de que o calor o frio e outras forccedilas violentas cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele dissolvem-no e impondo-lhe doenccedilas e envelhecimento causam a sua destruiccedilatildeo Foi por este motivo e com base neste raciociacutenio que a partir da globalidade dos todos produziu um soacute todo perfeito imune ao envelhecimento e agrave doenccedila

Aleacutem disso deu-lhe a figura adequada e congeacutenere De facto a forma adequada ao ser-vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres-vivos seraacute aquela que compreenda em si mesma todas as formas93 Por isso para o arredondar como que por meio de um torno deu-lhe uma forma esfeacuterica cujo centro estaacute agrave mesma distacircncia de todos os pontos do extremo envolvente ndash e de todas as figuras eacute essa a mais perfeita e semelhante a si proacutepria ndash considerando que o semelhante eacute infinitamente mais belo do que o dissemelhante

Rematou o lado exterior de forma completamente lisa e arredondada por vaacuterias razotildees Eacute que este ser-vivo natildeo tinha necessidade de olhos pois fora dele natildeo restava

91 holon () zocircon teleon92 O demiurgo93 A possibilidade de a esfera englobar todas as formas

estereomeacutetricas seraacute mais tarde desenvolvida por Euclides (1313-17)

102 103

Timeu

102 103

33a

b

c

d

34a

nada para ver nem de ouvidos pois natildeo havia nada para ouvir natildeo havia ar agrave sua volta que fosse preciso respirar nem precisava de ter qualquer oacutergatildeo atraveacutes do qual absorvesse alimentos para si proacuteprio nem por outro lado que segregasse o que tinha anteriormente filtrado Na verdade nada entrava nele nem nada saiacutea dali pois natildeo havia mais nada Ele fora gerado de tal forma que o seu alimento seria garantido pela sua proacutepria consumpccedilatildeo94 de modo que tudo quanto sofre resulta de si mesmo e tudo quanto faz eacute em si mesmo Aquele que o compocircs achou que para ser mais forte seria melhor que fosse auto-suficiente95 do que tivesse necessidade de outros Quanto a matildeos natildeo sendo preciso que com elas pegasse em nada ou afastasse algo considerou que natildeo seria necessaacuterio aplicar-lhas nem peacutes nem de um modo geral nenhum apetrecho para andar Quanto ao movimento atribuiu-lhe aquele que eacute caracteriacutestico do corpo dos sete aquele que mais tem que ver com o intelecto e com o pensamento96 Foi por isso que ao pocirc-lo girar em torno de si mesmo e no mesmo local fez com que se movimentasse num ciacuterculo em rotaccedilatildeo tendo-o despojado de todos os outros seis movimentos e tornado imoacutevel em relaccedilatildeo a

94 phtisis95 autarkecircs Eacute inevitaacutevel ler neste passo um eco da autarkeia

de Demoacutecrito (eg DK 68B176) Poreacutem como oportunamente observa Taylor (1928 pp 105-106) conveacutem ter em conta que algo deveniente natildeo eacute absolutamente auto-suficiente porquanto deve a sua causa agraves Ideias o mundo secirc-lo-aacute na medida em que natildeo tem interacccedilotildees com outro deveniente

96 phronecircsis

Platatildeo

104 105104 105

b

c

35a

b

eles97 Como para esse percurso natildeo eram precisos peacutes engendrou-o sem pernas nem peacutes

Este foi de um modo global o desiacutegnio98 do deus que eacute eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia99 tendo assim raciocinado fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos Depois no centro pocircs uma alma que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora cobrindo-o com ela Constituiu um uacutenico ceacuteu solitaacuterio e redondo a girar em ciacuterculos com capacidade pela sua proacutepria virtude de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado

No que respeita agrave alma ainda que soacute agora vamos tratar de falar dela natildeo eacute posterior ao corpo O deus natildeo os estruturou desse modo como se ela fosse mais nova ndash ao constituiacute-los natildeo permitiu que o mais velho pudesse ser governado pelo mais novo Ao passo que noacutes somos muito afectados pela casualidade e consequentemente falamos tambeacutem ao acaso100 jaacute

97 Trata-se dos seis movimentos rectiliacuteneos ldquopara cimardquo ldquopara baixordquo ldquopara a frenterdquo ldquopara traacutesrdquo ldquopara a direitardquo e ldquopara a esquerdardquo Quanto ao seacutetimo a rotaccedilatildeo sobre si mesmo seraacute aquele mais afim agrave razatildeo (cf supra 40a Leis 897c-sqq) e por isso o apropriado para o corpo do mundo

98 logismos99 Isto eacute o corpo do mundo Apesar de utilizar em ambos os

casos o verbo eimi (ldquoserrdquo) parece-nos que a distinccedilatildeo entre ldquoserrdquo (enquanto eterno e atemporal) e ldquoexistirrdquo (enquanto corruptiacutevel) eacute evidente e deve ser marcada deste modo

100 Timeu recorda a imprecisatildeo da linguagem humana ndash um

104 105

Timeu

104 105

b

c

35a

b

o deus graccedilas agrave sua condiccedilatildeo e virtude constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele para o dominar e governar ndash sendo ele o governado ndash a partir dos seguintes recursos e do modo que se expotildee entre o ser101 indivisiacutevel que eacute imutaacutevel102 e o ser divisiacutevel que eacute gerado nos corpos misturou uma terceira forma103 de ser feita a partir daquelas duas E quanto agrave natureza do Mesmo e do Outro104 estabeleceu de igual modo uma outra natureza entre o indivisiacutevel e o divisiacutevel dos seus corpos Tomando as trecircs naturezas misturou-as todas numa soacute forma e pela forccedila harmonizou a natureza do Outro ndash que eacute difiacutecil de misturar ndash com o Mesmo Procedendo agrave mistura de acordo com o ser formou uma unidade a partir das trecircs e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo de Outro e de

tema a que voltaraacute mais tarde (46e) e que tambeacutem Criacutetias retomaraacute (107b-108a) Sobre esta questatildeo vide supra pp 55-59

101 ousia102 aei kata tauta103 eidos Embora seja esta a palavra (em concorrecircncia com

idea) que Platatildeo usa em muitos diaacutelogos para definir as Ideias no Timeu isso acontece apenas uma vez (51c-d) em todas as outras ocorrecircncias tem o sentido de ldquotipo espeacutecierdquo (42d2 48a7 48b6 48e6 49a4 51a7 51c4 etc)

104 Os conceitos ldquoMesmordquo (tauton) ldquoOutrordquo (to heteron) e neste contexto ldquoserrdquo (ousia) soacute se esclarecem pelo Sofista Neste diaacutelogo (254d-259b) eacute estabelecido que uma Ideia comporta encerra outros dois elementos constitutivos aleacutem do ser o Mesmo (a sua identidade) resulta de ela ser o que ldquoaquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo natildeo eacute o Outro (a sua alteridade) representa o outro lado desta implicaccedilatildeo pois uma Ideia difere de ldquotudo aquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo Sobre esta questatildeo vide Dixsaut (2003 pp 158-165) Mesquita (1995 pp 262-265)

Platatildeo

106 107106 107

c

36a

b

c

d

e

ser105 Entatildeo comeccedilou a dividir do seguinte modo em primeiro lugar retirou uma parte do todo em seguida retirou outra que era o dobro da primeira uma terceira que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira uma quarta que era o dobro da segunda uma quinta o triplo da terceira uma sexta oito vezes a primeira e uma seacutetima que corresponde a vinte e sete vezes a primeira Depois disto preencheu os intervalos106 duplos e triplos subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros um que transpotildee um dos extremos e eacute transposto pelo outro na mesma fracccedilatildeo e outro que transpotildee o extremo que lhe eacute numericamente idecircntico e tambeacutem ele eacute transposto Destas ligaccedilotildees foram gerados nos intervalos atraacutes referidos outros intervalos de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo Atraveacutes do intervalo de um e um oitavo preencheu todos os de um e um terccedilo e deixou uma parte de cada um deles tendo este intervalo sobrante sido definido pela relaccedilatildeo entre o nuacutemero duzentos e cinquenta e seis e o nuacutemero duzentos e quarenta e trecircs Foi deste modo que a mistura da qual retirou aquelas partes foi utilizada na sua plenitude Entatildeo cortou toda esta composiccedilatildeo em duas partes no sentido do comprimento e sobrepondo-as ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra

105 Ou seja a alma do mundo foi formada com os mesmos trecircs elementos que constituem as Ideias ser Mesmo e Outro Sobre as implicaccedilotildees desta equivalecircncia constitutiva vide Johansen (2004 pp 138-142)

106 diastecircma Aleacutem de espacial este termo tem tambeacutem uma aplicaccedilatildeo musical designando nesse caso os intervalos entre os sons (Filebo 17c-d Repuacuteblica 531a)

106 107

Timeu

106 107

c

36a

b

c

d

e

(semelhante a um X) dobrou-as em ciacuterculo juntando-as uma agrave outra pelo ponto oposto agravequele pelo qual tinham sido ligadas e impocircs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local destes dois ciacuterculos fez um exterior e outro interior Entatildeo determinou que o movimento exterior corresponderia agrave natureza do Mesmo e o interior agrave do Outro Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente e deu preeminecircncia agrave oacuterbita do Mesmo e do Semelhante pois a ela soacute deixou ficar indivisa Por outro lado a oacuterbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete ciacuterculos desiguais fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo de tal forma que havia trecircs tipos de intervalos Definiu que os ciacuterculos andariam em sentido contraacuterio uns aos outros trecircs dos quais com velocidade semelhante e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros trecircs mas movendo-se uniformemente

Logo que a constituiccedilatildeo da alma foi gerada de acordo com o intelecto107 de quem a constituiu este passou agrave fabricaccedilatildeo de tudo quanto dentro dela eacute corpoacutereo e ajustando o centro de um ao centro do outro uniu-os Deste modo entrelaccedilada em todas as direcccedilotildees desde o centro ateacute agrave extremidade do ceacuteu abarcando-o do exterior num ciacuterculo e ela girando em torno de si mesma a alma deu iniacutecio ao comeccedilo divino de uma vida inextinguiacutevel e racional108 para todo o sempre Assim foi

107 nous Neste caso trata-se obviamente do intelecto do demiurgo

108 emphron ldquoRacionalrdquo no sentido em que manteraacute ao

Platatildeo

108 109108 109

37a

b

c

d

e

gerado o corpo do ceacuteu que eacute visiacutevel e a alma invisiacutevel e que participa da razatildeo109 e da harmonia e eacute a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que satildeo eternamente Constituiacuteda pela mistura dessas trecircs partes da natureza do Mesmo do Outro e do ser dividida e unida segundo a proporccedilatildeo ela gira em torno de si proacutepria e sempre que contacta com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser natildeo pode ser dividido eacute movimentada na sua totalidade ela informa a que entidade isso eacute semelhante de que entidade eacute diferente e principalmente em relaccedilatildeo a que entidade e em que circunstacircncias acontece afectar o que deveacutem e o que eacute eternamente e por cada um destes eacute afectada110

Este discurso que eacute ele proacuteprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro sempre que eacute levado sem voz nem som para aquele que eacute movimentado por si proacuteprio converte-se num discurso sobre o sensiacutevel111 e o ciacuterculo do Outro que se move em linha recta dissemina-o por toda a alma e geram-se opiniotildees e crenccedilas firmes e verdadeiras112 Todavia sempre que se aplica ao racional e sempre que o ciacuterculo do Mesmo que se movimenta com destreza revela isto

longo dos tempos a conformidade ao arqueacutetipo (um modelo de racionalidade)

109 logismos110 Esta passagem marcada por uma sintaxe imbricada daacute conta

das funccedilotildees cognitivas da alma do mundo Sobre este assunto vide Brisson (1998 pp 340-352)

111 peri to aisthecircton112 doxai kai pisteis gignontai bebaioi kai alecirctheis

108 109

Timeu

108 109

37a

b

c

d

e

eacute forccediloso que daiacute resulte saber113 e intelecccedilatildeo114 No que respeita agravequilo em que se geram estes dois modos de conhecer se alguma vez algueacutem disser que eacute outra coisa que natildeo a alma esse algueacutem estaraacute a dizer tudo menos a verdade115

Ora quando o pai que o engendrou se deu conta de que tinha gerado uma representaccedilatildeo dos deuses eternos animada e dotada de movimento rejubilou por estar tatildeo satisfeito pensou como tornaacute-la ainda mais semelhante ao arqueacutetipo Como acontece que este eacute um ser eterno tentou na medida do possiacutevel tornar o mundo tambeacutem ele eterno Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna e natildeo era possiacutevel ajustaacute-la por completo ao ser gerado Entatildeo pensou em construir uma imagem moacutevel da eternidade116 e quando ordenou o ceacuteu construiu a partir da eternidade que permanece uma unidade uma imagem eterna que avanccedila de acordo com o nuacutemero eacute aquilo a que chamamos tempo117 De facto os dias as noites os meses e os anos natildeo existiam antes de o ceacuteu ter sido gerado pois ele preparou a geraccedilatildeo daqueles ao mesmo tempo que este era constituiacutedo Todos eles satildeo partes do tempo

113 epistecircmecirc114 nous Neste caso natildeo se trata da faculdade de inteligir nem

tampouco da sede dessa faculdade trata-se sim da sua actividade isto eacute da intelecccedilatildeo sendo o saber (epistecircmecirc) o resultado desse processo Neste contexto particular nous equivale em absoluto a noecircsis o termo mais frequente para designar a actividade intelectiva

115 De acordo com a doutrina formulada no Sofista (249a) a alma aleacutem de intelecccedilatildeo (cf supra n 79) eacute tambeacutem a uacutenica sede de actividade cognitiva (cf supra 30b infra 46d Filebo 30c)

116 eikocirc kinecircton tina aiocircnos117 Sobre esta concepccedilatildeo de tempo vide Fialho (1990)

Platatildeo

110 111110 111

38a

b

c

d

e ldquoo que erardquo e ldquoo que seraacuterdquo satildeo modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignoracircncia Dizemos que ldquoeacuterdquo que ldquofoirdquo e que ldquoseraacuterdquo mas ldquoeacuterdquo eacute a uacutenica palavra que lhe eacute proacutepria de acordo com a verdade ao passo que ldquoerardquo e ldquoseraacuterdquo satildeo adequadas para referir aquilo que deveacutem ao longo do tempo ndash pois ambos satildeo movimentos No entanto aquilo que eacute sempre imutaacutevel e imoacutevel118 natildeo eacute passiacutevel de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que eacute agora nem no que seraacute no futuro) bem como em nada daquilo que o devir atribui agraves coisas que os sentidos trazem jaacute que elas satildeo modalidades devenientes119 do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo com o nuacutemero Aleacutem destas haacute ainda as seguintes o que aconteceu ldquoeacuterdquo o que aconteceu o que estaacute a acontecer ldquoeacuterdquo o que estaacute a acontecer o que aconteceraacute ldquoeacuterdquo o que aconteceraacute e o que natildeo eacute ldquoeacuterdquo o que natildeo eacute120 sendo que nenhuma destas afirmaccedilotildees eacute exacta Mas este natildeo seraacute o momento oportuno e adequado para nos determos nestas questotildees

Assim o tempo foi pois gerado ao mesmo tempo que o ceacuteu para que engendrados simultaneamente

118 to de aei kata tauta echon akinecirctocircs119 gegonen eidecirc120 Neste caso particular optaacutemos por traduzir gignomai por

ldquoacontecerrdquo em vez de por ldquodevirrdquo porque a oposiccedilatildeo estabelecida com eimi natildeo se prende directamente com o axioma ontoloacutegico ser-devir Em vez disso Timeu pretende sublinhar um defeito da linguagem designar algo que ocorre num determinado momento cronoloacutegico (na dimensatildeo do sensiacutevel) nos mesmos termos em que refere aquilo que eacute atemporal (e por isso inteligiacutevel)

110 111

Timeu

110 111

38a

b

c

d

tambeacutem simultaneamente sejam dissolvidos121 ndash se eacute que alguma vez a dissoluccedilatildeo122 surja nalgum deles Foram gerados tambeacutem de acordo com o arqueacutetipo da natureza eterna para que lhe fossem o mais semelhantes possiacutevel eacute que o arqueacutetipo eacute ser para toda a eternidade enquanto que a representaccedilatildeo foi eacute e seraacute continuamente e para todo o sempre deveniente

A partir do raciociacutenio e do desiacutegnio de um deus123 em relaccedilatildeo agrave geraccedilatildeo do tempo para que ele fosse engendrado gerou o Sol a Lua e cinco astros que tecircm o nome ldquoplanetasrdquo124 para definirem e guardarem os nuacutemeros do tempo Tendo construiacutedo os corpos de cada um deles ndash sete ao todo ndash o deus estabeleceu-os nas oacuterbitas que o percurso do Outro seguia em nuacutemero de sete delas na primeira a Lua agrave volta da Terra na segunda o Sol por cima da Terra125 a Estrela da Manhatilde126 e o astro que dizem ser consagrado a Hermes127 na rota circular128 que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o

121 lyocirc122 lysis123 ex oun logou kai dianoias124 planecirctos Literalmente ldquoerranterdquo A metaacutefora deve-se ao

facto de os planetas terem uma oacuterbita proacutepria (39d-40b) como se ldquovagueassemrdquo pelo universo

125 Tenhamos em conta que este modelo eacute geocecircntrico126 Veacutenus127 Mercuacuterio128 Para Platatildeo as oacuterbitas dos planetas e do Sol em torno da

Terra descreviam ciacuterculos perfeitos Esta teoria que hoje sabemos ser errada perdurou como paradigma cientiacutefico ateacute ao seacuteculo XVI quando Kepler demonstrou que as oacuterbitas dos astros eram eliacutepticas e natildeo circulares

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astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente Quanto aos outros astros se algueacutem quisesse precisar onde e por que motivos o deus os estabeleceu sem deixar de lado nenhum deles esse discurso que eacute secundaacuterio causaria mais dificuldades do que o objectivo principal em funccedilatildeo do qual seria desenvolvido Quanto a este assunto pode ser que mais tarde o abordemos com a atenccedilatildeo que merece129

Assim logo que cada um dos astros que eram necessaacuterios para constituir o tempo obteve o movimento que lhe era adequado e depois de terem sido engendrados como corpos vivos vinculados agraves almas130 aprenderam aquilo que lhes estava prescrito a oacuterbita do Outro que por ser obliacutequa atravessa a oacuterbita do Mesmo e eacute dominada por ele Alguns astros deslocam-se em ciacuterculos maiores e outros em ciacuterculos mais pequenos os que estatildeo nos ciacuterculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estatildeo nos ciacuterculos maiores deslocam-se mais lentamente E por causa da oacuterbita do Mesmo parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcanccedilados pelos que se deslocavam mais lentamente quando eram aqueles que alcanccedilavam estes Com efeito o deus ao fazer girar em torno do eixo todos os ciacuterculos dos astros como uma espiral fazia parecer que o movimento era duplo e em sentidos opostos e que o que se afastava mais lentamente do que era mais raacutepido era o que estava mais perto Para que houvesse uma

129 Infelizmente o assunto natildeo chega a ser retomado130 Tambeacutem os astros satildeo entidades duais com uma alma

aprisionada num corpo (cf Leis 898)

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medida evidente para a lentidatildeo e para a rapidez com que se cumprissem as oito oacuterbitas o deus instalou uma luz na segunda oacuterbita a contar da Terra a que agora chamamos Sol de modo a que o ceacuteu brilhasse ainda mais para todos e que os seres-vivos aos quais isso dissesse respeito participassem do nuacutemero de modo a ficarem a conhecer a oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Deste modo e por estas razotildees foram gerados a noite e o dia ndash o percurso circular uniforme e regular Temos um mecircs quando a Lua depois de ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo alcanccedila o Sol temos um ano depois de o Sol ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo Agrave excepccedilatildeo de uma minoria131 a maior parte dos homens natildeo teve em conta os ciacuterculos dos outros astros nem lhes deu nomes nem observando-os estudou atraveacutes dos nuacutemeros as relaccedilotildees entre eles de tal forma que por assim dizer natildeo sabe que haacute um tempo definido para os seus cursos errantes132 nem que satildeo inconcebivelmente numerosos e admiravelmente variegados Em todo o caso eacute pelo menos possiacutevel perceber que o nuacutemero perfeito do tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da totalidade das oito oacuterbitas medidas pelo ciacuterculo do Mesmo em progressatildeo uniforme se completam e voltam ao iniacutecio Foi deste modo e por estas razotildees que esses astros engendrados que percorrem o ceacuteu assumiram um ponto de retorno para que o mundo fosse o mais semelhante possiacutevel ao ser

131 Este grupo restrito seraacute o nuacutemero de homens versados em astronomia isto eacute os filoacutesofos

132 planas Cf supra n XXX

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perfeito e inteligiacutevel133 bem como para que constituiacutesse uma imitaccedilatildeo da sua natureza eterna

Tudo o resto ateacute agrave geraccedilatildeo do tempo tinha sido feito dentro da maior semelhanccedila ao que lhe tinha servido de modelo Todavia o mundo ainda natildeo englobava todos os seres-vivos que dentro dele seriam gerados pelo que ainda denunciava dissemelhanccedilas Por isso o demiurgo completou a parte que lhe restava fazer agrave imagem da natureza do arqueacutetipo Assim tal como o intelecto percebe as formas do ser que eacute ndash tantas quantas haacute nele ndash o demiurgo olhou para baixo e decidiu que o mundo deveria ter tantas formas quantas aquele tem E eles satildeo quatro a primeira eacute a espeacutecie celeste dos deuses outra eacute a alada e anda pelo ar a terceira eacute a forma aquaacutetica e a quarta eacute a que caminha sobre a terra Tratando-se da divina o deus construiu-a na sua maioria a partir do fogo para que fosse a mais brilhante e a mais agradaacutevel agrave vista e de modo a ser semelhante ao universo fecirc-la redonda Atribuiu-a agrave inteligecircncia do supremo134 de modo a segui-lo e distribuiu-a em ciacuterculo por todo o ceacuteu a fim de que fosse um verdadeiro adorno bordado em toda a sua extensatildeo Atribuiu dois movimentos a cada uma das divindades um uniforme e no mesmo local para que cada uma reflectisse sempre da mesma forma sobre o mesmo e outro dirigido para a frente pois cada uma delas eacute dominada pela oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Em relaccedilatildeo aos outros cinco movimentos as divindades mantecircm-se imoacuteveis e em

133 teleocirc kai noecirctocirc134 eis tecircn tou kratistou phronecircsin Trata-se da oacuterbita do Mesmo

onde foram fixas as estrelas

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repouso para que cada uma delas seja o mais perfeita possiacutevel

Foram estes os motivos pelos quais foram gerados todos os astros natildeo errantes seres-vivos divinos e eternos que permanecem para sempre imutaacuteveis e a girar sobre si mesmos Jaacute os que mudam de direcccedilatildeo e se mantecircm assim errantes tal como foi dito atraacutes135 foram gerados ao mesmo tempo que estes Quanto agrave Terra o nosso sustento a qual roda136 em torno do eixo que atravessa o universo foi estabelecida como guardiatilde e produtora da noite e do dia ela que eacute a primeira e a mais velha das divindades geradas dentro do ceacuteu Explicar as danccedilas destes astros e as confluecircncias que mantecircm uns com os outros os recuos e os avanccedilos dos seus ciacuterculos uns em relaccedilatildeo aos outros quais satildeo os deuses que se encontram em conjunccedilatildeo e quantos estatildeo opostos uns aos outros e ainda quais se colocam uns diante dos outros e durante quanto tempo se escondem de noacutes para tornarem a aparecer e enviam maus pressaacutegios e sinais de eventos que hatildeo-de acontecer agravequeles que natildeo conseguem entendecirc-los agrave luz da razatildeo sem ter diante dos olhos uma imitaccedilatildeo destes fenoacutemenos essa explicaccedilatildeo seria

135 Cf supra 39c136 illomenecircn Desde os primeiros disciacutepulos de Platatildeo que se

tem discutido o sentido desta palavra O verbo eilocirc pode significar entre outras coisas ldquocomprimirrdquo ou ldquorodarrdquo de acordo com o primeiro a Terra estaria comprimida pelo eixo do universo e pela segunda hipoacutetese giraria em torno dele Seguimos a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 213 293b30-31) que faz equivaler eilocirc a kineocirc implicando um movimento da Terra em torno de si proacutepria Cf Cornford 1937 pp 120-134 Brisson 1998 p 395 n 1 Dillon 1989 p 67

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um encargo vatildeo No entanto isto eacute suficiente para noacutes pelo que seja este o fim da narrativa sobre a natureza dos deuses visiacuteveis e engendrados

No que respeita agraves outras divindades dizer e conhecer a sua geraccedilatildeo eacute algo que nos supera devemos portanto confiar nos que falaram outrora pois satildeo descendentes dos deuses segundo dizem e conhecem distintamente os seus ascendentes Eacute de facto impossiacutevel desconfiar dos filhos dos deuses mesmo que falem sem recurso a argumentos verosiacutemeis ou rigorosos Quando tratam de dar conta dos episoacutedios que dizem respeito agrave famiacutelia devemos entatildeo confiar neles de acordo com o costume Deste modo reproduzamos o discurso deles e faccedilamos o nosso sobre o que foi a geacutenese dos deuses De Geia e Urano foram gerados Oceano e Teacutetis seus filhos e destes foram gerados Foacutercis Cronos e Reia e todos aqueles que os seguiram de Cronos e de Reia foram gerados Zeus e Hera e todos aqueles que segundo a tradiccedilatildeo sabemos serem seus irmatildeos e ainda outros descendentes destes foram gerados137 Quando foram gerados todos os deuses quer os que se movimentam em ciacuterculos e satildeo visiacuteveis quer os que se mostram soacute quando desejam aquele que engendrou o universo disse-lhes o seguinte

ldquoDeuses gerados de deuses de quem e de cujas obras eu sou pai e demiurgo por terem sido gerados por mim natildeo podem ser dissolvidos enquanto eu natildeo

137 Esta teogenealogia difere bastante da que Hesiacuteodo estabeleceu na Teogonia eacute provaacutevel que misture elementos de tradiccedilotildees variadas nomeadamente da oacuterfica (vide Brisson 2001 p 239 n 229)

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quiser Na verdade embora o que tenha sido unido seja dissoluacutevel eacute uma maldade querer dissolver aquilo que pelo bem foi composto em harmonia Por isso mesmo que tenhais sido gerados e ainda que natildeo sejais imortais nem completamente impassiacuteveis de dissoluccedilatildeo de modo algum sereis dissolvidos nem tomareis parte na morte porque fostes unidos pela minha vontade que eacute mais forte e mais poderosa do que os elos que vos couberam em sorte e com os quais fostes gerados Agora aprendei aquilo que vos vou dizer e mostrar

Restam trecircs espeacutecies mortais que ainda natildeo foram engendradas Se elas natildeo chegarem a ser geradas o ceacuteu ficaraacute incompleto pois natildeo conteraacute em si todas as espeacutecies de seres-vivos mas eacute forccediloso que as tenha para que fique efectivamente perfeito Todavia se elas fossem geradas por mim e tomassem parte na vida atraveacutes de mim seriam equivalentes aos deuses Portanto para que sejam mortais e que o universo seja realmente um todo tratai de acordo com a vossa natureza de fabricar estes seres-vivos imitando o meu poder de quando vos gerei E no que respeita agrave parte desses seres a que pertence ter o mesmo nome que os imortais a parte a que chamamos divina e que comanda os que entre eles praticam sempre a justiccedila e vos querem servir que eu semeei e quis que se originasse essa vo-la confio Quanto ao resto entretecei uma parte mortal nessa parte imortal formai e engendrai seres-vivos fazei-os crescer providenciando-lhes o alimento e quando perecerem recebei-os outra vezrdquo138

138 Referecircncia agrave teoria da transmigraccedilatildeo das almas formulada no

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Assim falou e voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira poreacutem comparativamente agrave primeira mistura esta natildeo ficou com o mesmo teor de pureza mas sim com um segundo ou terceiro grau Depois de ter constituiacutedo o todo dividiu-o em nuacutemero de almas igual ao de astros e atribuiu uma a cada um Fazendo-as embarcar como num carro mostrou-lhes a natureza do universo e deu-lhes a conhecer as leis que lhes estavam destinadas a saber a primeira geacutenese seria estabelecida como idecircntica para todas de modo a que nenhuma fosse depreciada por ele Era obrigatoacuterio que uma vez disseminadas pelos instrumentos do tempo adequados a cada uma gerassem dos seres-vivos o que mais venerasse os deuses e por a natureza humana ser dupla139 aquela espeacutecie mais forte seria a que posteriormente se chamaria macho Sempre que fossem implantadas nos corpos por necessidade e lhes fossem acrescentadas partes enquanto outras seriam retiradas do corpo em todas elas surgiria necessariamente e em primeiro lugar uma sensaccedilatildeo uacutenica e congeacutenita gerada por impressotildees violentas140 em segundo lugar o desejo amoroso que

Fedro (246a-250c)139 Isto eacute masculina e feminina140 Uma sensaccedilatildeo (aisthecircsis) eacute uma manifestaccedilatildeo somaacutetica de uma

impressatildeo (pathecircma) sofrida ou seja uma resposta a um estiacutemulo externo Por sensaccedilatildeo Timeu entende tanto os sentimentos como a coacutelera ou o temor (42a) como os sentidos por exemplo a visatildeo eacute uma aisthecircsis cujo pathecircma eacute o fogo exterior que contacta com os olhos (45b-c)

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eacute uma mistura de prazer e sofrimento depois destes o temor a coacutelera e todas as sensaccedilotildees que se lhes seguem e todas as que por natureza satildeo contraacuterias e se diferenciam destas Se as dominarem viveratildeo de forma justa mas se forem comandados por elas viveratildeo de forma injusta Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe regressaraacute agrave morada do astro que lhe estaacute associado para aiacute ter uma vida feliz e conforme Mas se se extraviar recairaacute sobre si a natureza de mulher na segunda geraccedilatildeo e se mesmo nessa condiccedilatildeo natildeo cessar de praticar o mal seraacute sempre gerado com uma natureza de animal assumindo uma ou outra forma conforme o tipo de mal que pratique141 Ao mudar o seu estado anterior natildeo se veraacute livre destes sofrimentos enquanto for arrastado pelo percurso do Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo aacutegua ar e terra que depois se juntou a ele soacute quando dominasse por meio da razatildeo essa massa turbulenta e irracional142 voltaria agrave forma do seu estado primeiro e ideal Assim o deus depois de lhes ter dado todas as prescriccedilotildees para que natildeo fosse responsaacutevel pelo mal que pudesse existir entre elas semeou algumas na terra e outras na Lua e ainda outras nos restantes instrumentos do tempo Depois da sementeira concedeu aos jovens deuses a tarefa de formar os corpos mortais e de adicionar o que restava e era necessaacuterio agrave alma humana e depois de terem

141 Como seraacute desenvolvido mais adiante (90e-sqq) os homens que levem a vida de forma indigna assumiratildeo formas animais em nascimentos futuros Cf Feacutedon 81e-82b Fedro 249a-c Repuacuteblica 614b-sqq

142 thorubocircdecirc kai alogon onta logocirc kratecircsas

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completado tudo quanto restava fazer concedeu-lhes a tarefa de governaacute-la na medida do possiacutevel para que orientassem este ser-vivo mortal da forma melhor e mais bela de modo a que natildeo fosse a causa dos seus proacuteprios males

Depois de ter disposto tudo isto manteve-se no estado que lhe eacute proacuteprio e habitual E assim se mantendo os filhos reflectiam sobre as disposiccedilotildees do pai e obedeceram-lhe Pegando no princiacutepio imortal do ser-vivo mortal e imitando o seu demiurgo tomaram de empreacutestimo ao mundo partes de fogo terra aacutegua e ar que depois seriam devolvidas Colaram numa soacute entidade os elementos que haviam tomado natildeo com os laccedilos insoluacuteveis com que eles proacuteprios haviam sido apertados mas fundiram-nas com cavilhas apertadas que graccedilas ao seu reduzido tamanho eram invisiacuteveis A partir de tudo isto fabricaram cada corpo introduzindo as oacuterbitas da alma imortal num corpo submetido a fluxos e refluxos Presas a um rio impetuoso natildeo dominavam nem eram dominadas pelo rio mas ora o moviam ora eram movidas pela forccedila dele de tal forma que o ser-vivo se movia globalmente ndash mas fazia-o de forma desordenada irracional e ao acaso pois tinha em si todos os seis movimentos Com efeito andava para a frente e para traacutes e ainda para a direita e para a esquerda e para baixo e para cima errante avanccedilava em todas as direcccedilotildees Eacute que por ser abundante a torrente de fluxo e refluxo que transportava o alimento as impressotildees que com eles chocavam causavam um tumulto ainda maior sempre que o corpo de algum colidia com um

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fogo externo que por acaso encontrasse no exterior ou com a dureza e firmeza da terra ou com a humidade deslizante da aacutegua ou apanhado pela tempestade dos ventos transportados pelo ar ou seja quando causados por todas essas entidades os movimentos imprimidos ao corpo recaiacuteam sobre a alma Por causa disso esses movimentos foram chamados sensaccedilotildees e ainda agora no seu conjunto satildeo assim chamados Visto que no momento em que ocorrem elas provocam um movimento muito poderoso e intenso que se junta ao do canal em que segue uma torrente de forma contiacutenua e agitando com violecircncia as oacuterbitas da alma bloqueiam por completo a oacuterbita do Mesmo por correrem em sentido oposto ao dele impedindo-o de progredir e de governar o que chega a desestabilizar a oacuterbita do Outro de tal forma que cada um dos trecircs intervalos duplos e triplos os intervalos e as ligaccedilotildees de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo que de modo algum eram resoluacuteveis a natildeo ser por aquele que as ligou fizeram-nas girar todas em ciacuterculos criando todo o tipo de rupturas e desordens nos ciacuterculos ndash tantas quantas conseguiram Deste modo a custo se mantiveram ligados uns com os outros movendo-se irracionalmente ora voltadas ao contraacuterio ora de forma obliacutequa ora invertidas Por exemplo quando algueacutem se coloca em posiccedilatildeo invertida com a cabeccedila para o chatildeo e projectando os peacutes para cima contra qualquer coisa enquanto assim estaacute tanto do ponto de vista de quem nela se encontra como de quem estaacute a observaacute-lo parece-lhes tanto a uns como a outros que a direita eacute a esquerda e a esquerda

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eacute a direita Eacute exactamente isto e algo do mesmo geacutenero que as oacuterbitas sofrem violentamente sempre que por acaso encontram algum elemento do exterior quer seja da espeacutecie do Mesmo quer seja da do Outro atribuem ao Mesmo e ao Outro designaccedilotildees contraacuterias agrave verdade tornando-se mentirosas e dementes visto que nenhuma das oacuterbitas que haacute nelas governa ou orienta Poreacutem quando nelas recaem certas sensaccedilotildees vindas do exterior143 arrastando consigo todo o invoacutelucro da alma as oacuterbitas aparentam estar no comando quando satildeo elas as comandadas Eacute por causa de todas estas impressotildees que agora e tal como na sua origem a alma eacute primeiro gerada sem intelecto144 cada vez que eacute aprisionada num corpo mortal Mas logo que diminui o fluxo do que alimenta e faz crescer as oacuterbitas retomam a acalmia e seguem o caminho que lhes eacute proacuteprio e vatildeo adquirindo maior estabilidade com o passar do tempo entatildeo as oacuterbitas de cada um dos ciacuterculos que seguem a sua trajectoacuteria natural acertam-se atribuindo correctamente as designaccedilotildees de Outro e de Mesmo e acabam por tornar racional145 quem os possui Se depois algum alimento correcto servir de complemento agrave educaccedilatildeo este tornar-se-aacute completamente perfeito e saudaacutevel pois escapou agrave doenccedila mais grave146 Mas se for negligente levando ao longo da vida uma existecircncia desequilibrada iraacute novamente para o Hades em estado de imperfeiccedilatildeo

143 Isto eacute provocadas por uma impressatildeo Cf supra n 140144 anous145 emphrocircn146 Isto eacute a ignoracircncia (cf supra 44a infra 86b 88b)

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e demente Isto acontece numa altura posterior147 mas no que respeita ao que temos agora diante de noacutes eacute necessaacuterio empreendermos uma explicaccedilatildeo mais apurada e quanto aos assuntos anteriores ndash a geraccedilatildeo de cada parte dos corpos o que respeita agrave alma o que concerne agraves causas e agrave providecircncia dos deuses pelas quais foi gerada ndash temos que os descrever apoiando-nos no que eacute mais verosiacutemil seguindo o nosso caminho deste modo e de acordo com estas prerrogativas

Agrave imagem da figura do universo que eacute esfeacuterica as divindades prenderam as oacuterbitas divinas que satildeo duas num corpo esfeacuterico este a que chamamos cabeccedila que eacute a parte mais divina e domina todas as outras partes que haacute em noacutes a ela os deuses entregaram todo o corpo como servo ao qual a juntaram percebendo que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse Para que natildeo rolasse sobre a terra que tem altos e depressotildees de todo o tipo e natildeo tivesse dificuldade em transpor umas e sair de outras deram-lhe este veiacuteculo para faacutecil deslocaccedilatildeo daiacute que o corpo seja comprido e tenha por natureza quatro membros extensiacuteveis e flexiacuteveis fabricados pelo deus para a deslocaccedilatildeo Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar era capaz de se deslocar por todos os locais enquanto transportava no topo a morada daquilo que em noacutes eacute mais divino e sagrado Foi por este motivo e deste modo que a todos foram anexadas pernas e matildeos

Considerando que a parte da frente eacute mais nobre e proacutepria para governar do que a de traacutes os deuses

147 Cf infra 87b 89d

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deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido Portanto era preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante Foi por isso que em primeiro lugar estabeleceram neste lado da parte exterior da cabeccedila o siacutetio do rosto e em seguida firmaram os instrumentos relacionados com todas as capacidades de providecircncia da alma e estabeleceram que de acordo com a natureza seria na parte anterior que ficariam situados os oacutergatildeos que tomam parte na governaccedilatildeo

Entre os instrumentos fabricaram em primeiro lugar os olhos portadores da luz tendo-os ali fixado pela seguinte razatildeo essa espeacutecie de fogo que natildeo arde antes oferece uma luz suave os deuses engendraram-no de modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado O fogo puro que haacute dentro de noacutes irmatildeo do outro fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo contiacutenuo pelo que comprimiram ao maacuteximo o centro dos olhos de tal forma que sustivesse a outra espeacutecie mais espessa na sua totalidade e filtrasse apenas esta espeacutecie pura Deste modo quando a luz do dia cerca o fluxo da visatildeo o semelhante recai sobre o semelhante tornam-se compactos unindo-se e conciliando-se num soacute corpo ao longo do eixo da visatildeo o que acontece onde quer que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior Assim gera-se uma homogeneidade de impressotildees pois o todo eacute muito semelhante se esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele distribui os seus movimentos por todo o corpo ateacute agrave alma e produz a sensaccedilatildeo a que

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noacutes chamamos ldquoverrdquo Quando o fogo se afasta ao cair da noite separa-se do fogo de que eacute congeacutenere148 por cair sobre algo que lhe eacute dissemelhante ele altera-se e extingue-se pois a sua natureza natildeo eacute congeacutenere agrave do ar que o rodeia jaacute que este natildeo tem fogo Entatildeo a visatildeo acaba e gera-se o convite ao sono De facto quando se cerra a protecccedilatildeo que os deuses engendraram para a visatildeo ndash as paacutelpebras ndash essa protecccedilatildeo susteacutem o poder do fogo interno Este dispersa-se e acalma os movimentos do interior Uma vez acalmados gera-se o sossego e uma vez gerado um sossego profundo abate-se um sono com poucos sonhos mas quando restam alguns movimentos fortes conforme a sua natureza e os locais onde ficam produzem no interior simulacros que se assemelham quanto agrave natureza e ao nuacutemero ao exterior e que seratildeo recordados ao acordar Assim jaacute natildeo eacute difiacutecil perceber a formaccedilatildeo de imagens em espelhos e em todas as superfiacutecies reflectoras e lisas Por causa da relaccedilatildeo reciacuteproca que o fogo interior e o fogo exterior mantecircm entre si cada vez que um deles encontra uma superfiacutecie lisa mudando constantemente de forma todas estas imagens aparecem por necessidade graccedilas agrave conjunccedilatildeo entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda a visatildeo quando se deparam com uma superfiacutecie lisa e brilhante Aquilo que estaacute agrave direita aparece agrave esquerda porque eacute com as partes contraacuterias da visatildeo que as partes contraacuterias do fogo exterior estabelecem contacto em oposiccedilatildeo ao que habitualmente acontece quando chocam entre si Pelo contraacuterio a direita estaacute agrave direita e

148 sungenecircs

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a esquerda agrave esquerda quando a luz muda de direcccedilatildeo por se fundir com o objecto com que se funde o que acontece sempre que a superfiacutecie lisa dos espelhos por adquirir uma saliecircncia de um lado e de outro empurra para o lado esquerdo da visatildeo a luz que vem do lado direito e vice-versa Mas se o espelho for redondo transversalmente em relaccedilatildeo ao rosto faraacute com que tudo apareccedila invertido porque empurra para cima a luz que vem de baixo e para baixo a que vem de cima

Todas estas satildeo causas acessoacuterias149 que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete conforme pode a ideia do melhor150 No entanto a maioria considera que natildeo satildeo causas acessoacuterias mas sim as causas de tudo visto que produzem o arrefecimento e o aquecimento a solidificaccedilatildeo e a fusatildeo e efeitos desse tipo Mas natildeo eacute possiacutevel que tais causas possuam razatildeo ou intelecto151 em relaccedilatildeo ao que quer que seja Temos que dizer que entre todos os seres o uacutenico ao qual eacute adequado possuir intelecto eacute a alma152 ndash pois esta eacute invisiacutevel enquanto que o fogo a aacutegua a terra e o ar foram todos gerados como corpos visiacuteveis ndash e que o amante da intelecccedilatildeo153 e do saber154 persegue por necessidade as causas primeiras do que na natureza

149 synaitiai150 tecircn you aristou kata to dynaton idean apotelocircn Eacute bastante

evidente a orientaccedilatildeo teleoloacutegica da acccedilatildeo demiuacutergica o mundo eacute criado para o bem

151 logon de oudena oude noun152 Sobre a alma como uacutenica sede possiacutevel do nous vide supra

n 115153 Sobre este sentido particular de nous vide supra n 114154 epistecircmecirc

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eacute racional aquelas que satildeo movimentadas por outros seres e que por necessidade transmitem o movimento a outras essas satildeo causas secundaacuterias Tambeacutem noacutes devemos fazer isso devemos falar de ambos os geacuteneros de causas distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das que isentas de intelecccedilatildeo155 cada vez que produzem algo o fazem ao acaso e sem ordem156 Coube-nos entatildeo falar das causas acessoacuterias pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora tecircm Da obra mais importante do ponto de vista da sua utilidade razatildeo pela qual o deus no-la ofereceu eacute sobre ela que noacutes devemos falar

Em meu entender a visatildeo foi gerada como causa de maior utilidade para noacutes visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros o Sol e o ceacuteu Foi o facto de vermos o dia e a noite os meses o circuito dos anos os equinoacutecios e os solstiacutecios que deu origem aos nuacutemeros que nos proporcionam a noccedilatildeo de tempo e a investigaccedilatildeo sobre a natureza do universo A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espeacutecie mortal oferecido pelos deuses Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos Por que razatildeo havemos de celebrar os outros que satildeo inferiores a estes pelos quais soacute um natildeo-filoacutesofo choraria se ficasse cego com lamentos em vatildeo Quanto a noacutes declaremos que

155 phronecircsis156 to tychon atakton

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esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo o deus descobriu e concedeu-nos a visatildeo em nosso favor para que ao contemplar as oacuterbitas do Intelecto no ceacuteu as aplicaacutessemos agraves oacuterbitas da nossa actividade intelectiva157 que satildeo congeacuteneres daquele ainda que as nossas tenham perturbaccedilotildees e as deles sejam imperturbaacuteveis Soacute depois de termos analisado aqueles movimentos calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza e de termos imitado esses movimentos do deus absolutamente impassiacuteveis de errar podemos estabilizar os que em noacutes satildeo errantes Quanto agrave voz e agrave audiccedilatildeo o raciociacutenio eacute mais uma vez o mesmo os deuses concederam-no-las pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins Na verdade foi com o mesmo fim que nos foi atribuiacuteda a fala que tem um papel fundamental na nossa interacccedilatildeo tudo quanto eacute uacutetil agrave voz no contexto da muacutesica isso nos foi dado por causa da harmonia da audiccedilatildeo Com efeito para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto a harmonia feita de movimentos congeacuteneres das oacuterbitas da nossa alma natildeo eacute um instrumento para um prazer irracional ndash como agora se julga ser158 ndash mas em virtude de as oacuterbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geraccedilatildeo aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pocircr em ordem e em concordacircncia159 E

157 dianoecircsis158 A criacutetica ao senso-comum que concebe a muacutesica unicamente

como fonte de prazer eacute tambeacutem referida nas Leis (656c) De igual modo pensa Aristoacuteteles o qual considera que soacute acidentalmente a muacutesica pode ser causadora de prazer (85 Poliacutetica 1339b11-1340b19)

159 Sobre a muacutesica como agente harmonizador da alma vide

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o ritmo por a maioria de noacutes ser privada de medida e falta de graccedila foi-nos concedido como auxiliar pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins

O que acabaacutemos de passar em revista agrave excepccedilatildeo de pequenos aspectos ilustra o que foi fabricado pelo Intelecto Eacute necessaacuterio que justaponhamos ao discurso aquilo que foi gerado pela Necessidade160 De facto a geraccedilatildeo deste mundo resulta de uma mistura engendrada por uma combinaccedilatildeo de Necessidade e Intelecto Mas como o Intelecto dominava a Necessidade persuadindo-a a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes foi deste modo (atraveacutes da cedecircncia da Necessidade a uma persuasatildeo racional161) que o universo foi constituiacutedo desde a sua origem Portanto se algueacutem quiser dizer como foi realmente gerado de acordo com estes pressupostos teraacute que incluir tambeacutem a espeacutecie da causa errante162 tanto quanto a sua natureza o admita163 Portanto recuando um pouco atraacutes

Repuacuteblica 530d-532b160 Aleacutem da intervenccedilatildeo do Intelecto ndash racional matematicamente

estruturada e teleoloacutegica ndash o mundo sensiacutevel eacute formado tambeacutem com o contributo da Necessidade um princiacutepio de causalidade marcado pelo acidental casual material e exclusivamente mecacircnico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 34-37

161 hypo peithous emphronos162 to tecircs planocircmenecircs eidos aitias163 ecirc pherein pephyken Passagem bastante obscura e por isso

muitiacutessimo discutida A principal dificuldade reside no sentido de pherein que pode ser traduzido tanto por ldquomovimentar pocircr em movimentordquo (Cornford 1937 p 160 n 2 Brisson 1998 p 145) como por ldquopermitir admitirrdquo (Taylor 1928 p 304) Pensamos que a segunda opccedilatildeo eacute mais acertada na medida em que neste paraacutegrafo se insiste bastante nas limitaccedilotildees epistemoloacutegicas aleacutem de que em todo ele natildeo satildeo mencionados os movimentos

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teremos que comeccedilar do iniacutecio tomando para o mesmo assunto um outro ponto de partida anterior que lhe seja adequado tal como fizemos em relaccedilatildeo aos assuntos que abordaacutemos ateacute agora Antes da geraccedilatildeo do ceacuteu teremos que rever a natureza do fogo do ar da aacutegua e da terra bem como os comportamentos que tinham antes disso na verdade ateacute agora ningueacutem revelou a sua origem mas discursamos como se nos dirigiacutessemos a quem soubesse o que possa ser o fogo e cada um dos outros elementos dispondo-os como princiacutepios e164 letras do universo Ora eacute prudente que com um miacutenimo de verosimilhanccedila nem sequer agraves siacutelabas sejam comparados por quem tenha um pouco de inteligecircncia165 Quanto a noacutes agora diremos o seguinte seja qual for o que achamos sobre o princiacutepio ou princiacutepios do universo conveacutem que natildeo nos pronunciemos sobre isso agora por nenhum outro motivo que natildeo por ser difiacutecil expressar as nossas opiniotildees de acordo com o tipo de exposiccedilatildeo que nos estaacute disponiacutevel nem voacutes esperais que seja da minha obrigaccedilatildeo dizecirc-lo nem eu proacuteprio me tentarei convencer de que eu seja capaz de me atirar a uma tarefa dessa natureza Mas prestando atenccedilatildeo ao que foi dito no iniacutecio e ao

164 O texto de Burnet natildeo regista qualquer indiacutecio de coordenaccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiosrdquo (archecirc) e ldquoletrasrdquo (stoicheion) Seguimos a emenda de West (1977 p 301) que introduz kai entre as duas palavras

165 Mais que provaacutevel reacccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo atomista que compara os aacutetomos agraves letras que formam as palavras (DK 68A38) Segundo Platatildeo os quatro elementos satildeo soacutelidos que obedecem a figuras e estas a triacircngulos daiacute que as letras sejam sim os triacircngulos (54d) Dentro deste quadro metafoacuterico as siacutelabas seriam as figuras e os elementos seriam as palavras Sobre esta questatildeo vide Hershbell (1974 pp 153-sqq)

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poder dos discursos verosiacutemeis voltando ao princiacutepio tentarei abordar de forma natildeo menos verosiacutemil mas ateacute mais cada pormenor e tambeacutem a totalidade do que dissemos Voltando agora ao princiacutepio dos discursos invoquemos o deus para que nos assista novamente e a partir de uma exposiccedilatildeo estranha e inusitada166 nos guie numa conclusatildeo verosiacutemil

Assim no que respeita ao universo o novo ponto de partida deve ser mais diferenciado do que anteriormente Na verdade noacutes tiacutenhamos distinguido dois tipos de ser mas agora temos que estabelecer um terceiro de outra espeacutecie167 Decerto que aqueles dois eram suficientes para o que expusemos anteriormente um foi proposto como sendo o tipo do arqueacutetipo inteligiacutevel e que eacute sempre imutaacutevel168 e o segundo como uma imitaccedilatildeo do arqueacutetipo sujeito ao devir169 e visiacutevel Nesse momento natildeo distinguimos o terceiro por considerarmos que os dois seriam suficientes Mas agora o discurso parece obrigar-nos a empreender uma exposiccedilatildeo que esclareccedila um tipo difiacutecil e obscuro Que propriedade temos noacutes de supor que ele teraacute de acordo com a natureza Seraacute sobretudo a seguinte ser o receptaacuteculo e por assim dizer a ama de tudo quanto deveacutem Falaacutemos agora com verdade mas eacute forccediloso que digamos algo mais expliacutecito acerca dele o que poreacutem eacute difiacutecil pelo facto de ser inevitaacutevel esclarecer algumas

166 ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs167 Sobre o terceiro princiacutepio ontoloacutegico vide Introduccedilatildeo pp

XXX168 paradeigmatos eidos () noecircton kai aei kata tauta on169 mimecircma de paradeigmatos deuteron genesin echon

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questotildees preacutevias relacionadas com o fogo e com os outros elementos aleacutem do fogo Destes elementos eacute difiacutecil dizer que qualidade cada um deve ter para lhe chamarmos ldquoaacuteguardquo em vez de ldquofogordquo ou que qualidade deve ter para lhe chamarmos qualquer outra coisa em vez de todas ao mesmo tempo ou cada uma em especial e deste modo utilizar um discurso fidedigno e soacutelido Como de que modo e com que dificuldade razoavelmente superada poderemos noacutes dizer uma coisa dessas

Primeiro em relaccedilatildeo agravequilo a que chamamos aacutegua quando congela parece-nos estar a olhar para algo que se tornou pedra ou terra mas quando derrete e se dispersa esta torna-se bafo e ar o ar quando eacute queimado torna-se fogo e inversamente o fogo quando se contrai e se extingue regressa agrave forma do ar o ar novamente concentrado e contraiacutedo torna-se nuvem e nevoeiro mas a partir destes estados se for ainda mais comprimido torna-se aacutegua corrente e de aacutegua torna-se novamente terra e pedras e deste modo como nos parece datildeo geraccedilatildeo uns aos outros de forma ciacuteclica Por isso visto que nenhum de todos eles nos aparece do mesmo modo qual deles podemos afirmar com firmeza que eacute uma coisa seja ela qual for e natildeo outra sem nos sentirmos envergonhados Natildeo eacute viaacutevel mas para os estabelecer da forma mais segura possiacutevel conveacutem falar sobre eles do seguinte modo sobre o que por vezes vemos tornar-se em outra coisa como o fogo natildeo podemos dizer que fogo eacute ldquoistordquo mas sim que eacute ldquoaquilo que em determinadas circunstacircncias estaacute

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assimrdquo170 nem que aacutegua eacute ldquoistordquo mas sim ldquoaquilo que estaacute sempre assimrdquo nem nenhuma outra coisa como se algum tivesse algo de estaacutevel usando palavras como ldquoistordquo ou ldquoaquilordquo para dar a conhecer tais realidades quando cremos estar a esclarecer alguma coisa Eacute que eles escapam ao ldquoistordquo ao ldquoaquilordquo e ao ldquopara istordquo e natildeo os admitem nem qualquer outra designaccedilatildeo que os apresente como realidades estaacuteveis Mas natildeo se deve falar delas como realidades distintas ndash antes sim chamar ldquoo que estaacute assimrdquo ao que perdura sempre igual em todos os casos e em cada um em particular chamar ldquofogordquo ao que permanece como tal apesar do que quer que seja e assim sucessivamente a tudo quanto devenha Mas aquilo em que cada coisa deveniente aparece171 e daiacute torna a desaparecer soacute isso referiremos usando as designaccedilotildees ldquoistordquo e ldquoaquilordquo enquanto que o que for de um certo tipo seja quente seja branco ou seja qualquer um dos seus opostos bem como tudo o que deles se origine nenhum deles o referiremos deste modo

Mas esforcemo-nos por explicar novamente este assunto de forma ainda mais clara Se algueacutem forjasse todas as formas possiacuteveis de ouro e nunca cessasse de as transformar a todas elas em outras e lhe fosse mostrada uma de entre elas e lhe fosse perguntado o que era com toda a certeza responderia em abono da

170 A oposiccedilatildeo entre ldquoistordquo (touto) e ldquoque estaacute assimrdquo (to toiouton) pretende esclarecer a diferenccedila constitutiva entre a chocircra que natildeo se altera e por isso merece a designaccedilatildeo touto e o que nela entra a que por estar em constante mutaccedilatildeo soacute poderemos chamar to toiouton A criacutetica de Soacutecrates agrave teoria do fluxo no Teeteto (157b) eacute formulada em termos semelhantes

171 en ocirc de engignomena aei ekasta autocircn phantazetai

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verdade que era ouro No entanto de modo algum se pode dizer que o triacircngulo e quantas outras figuras que foram plasmadas no ouro satildeo ldquoistordquo pois logo que lhes eacute aplicado esse termo comeccedilam a sofrer mudanccedilas Contentemo-nos se todas elas consentirem receber com alguma seguranccedila a designaccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute assimrdquo O mesmo discurso deve ser feito acerca da natureza que recebe todos os corpos A ela se haacute-de designar sempre do mesmo modo pois ela natildeo perde de modo algum as suas propriedades recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre172 impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel que investigaremos posteriormente Por enquanto eacute necessaacuterio que tenhamos em mente que haacute trecircs geacuteneros aquilo que deveacutem aquilo em que algo deveacutem e aquilo agrave semelhanccedila do qual se cria o que deveacutem173

Eacute adequado assemelhar o receptaacuteculo a uma matildee o ponto de partida a um pai e a natureza do que nasce entre eles a um filho e compreender ainda que se a marca de impressatildeo for diversificada e se apresentar agrave vista essa diversidade em todos os aspectos o suporte que recebe o que vai ser impresso natildeo estaria bem preparado se natildeo fosse completamente amorfo e

172 tocircn ontocircn aei mimecircmata173 to men gignomenon to drsquoen ocirc gignetai to drsquoen ocirc gignetai to

drsquohothen aphomoioumenon phyetai to gignomenon

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desprovido de todos aqueles tipos que esteja destinado a receber Se o receptaacuteculo fosse semelhante a alguma das figuras que entra nele cada vez que entrasse alguma figura de natureza contraacuteria ou heterogeacutenea assumiria mal a sua semelhanccedila na medida em que estava a exibir a sua proacutepria aparecircncia Por isso eacute necessaacuterio que aquele que recebe em si todos os geacuteneros esteja desprovido de todas as formas Eacute o que se passa de modo idecircntico com os oacuteleos que satildeo perfumados artificialmente Para fabricaacute-los em primeiro lugar eacute necessaacuterio que se comece por tornar o mais inodoros possiacutevel os liacutequidos que vatildeo receber as fragracircncias Eacute como aqueles que se dedicam a modelar figuras em superfiacutecies moldaacuteveis natildeo permitem que fique visiacutevel figura alguma que jaacute laacute estivesse nivelando-as de antematildeo para que fiquem o mais lisas que lhes seja possiacutevel O mesmo se passa com aquilo que deve receber vaacuterias vezes e de forma adequada e bela as representaccedilotildees de todos os seres eternos eacute-lhe conveniente por natureza que seja desprovido de todas as formas Eacute por isso que dizemos que a matildee do devir do que eacute visiacutevel e de todo sensiacutevel que eacute o receptaacuteculo natildeo eacute terra nem ar nem fogo nem aacutegua nem nada que provenha dos elementos nem nada deveniente a partir deles Mas se dissermos que ela eacute uma certa espeacutecie invisiacutevel e amorfa174 que tudo recebe e que participa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevel e difiacutecil de compreender175 natildeo estaremos a mentir E visto que a partir do que foi dito eacute possiacutevel alcanccedilar a sua natureza

174 anoraton eidos ti kai amorphon175 metalambanon de aporocirctata pecirc tou noecirctou kai dysalocirctotaton

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eis o modo mais correcto de falar dela a sua parte que estaacute a arder aparece sempre como fogo a que estaacute huacutemida aparece como aacutegua e a que aparece como terra e como ar faacute-lo de acordo com as imitaccedilotildees que recebe de cada um

Tendo noacutes estabelecido estes limites mais precisos no nosso discurso temos que tecer consideraccedilotildees sobre esses assuntos Seraacute que algum fogo eacute em si e quanto a todas as coisas de que sempre falamos seraacute que alguma delas eacute em si176 ou seraacute aquilo que vemos e tudo o resto que sentimos atraveacutes do corpo a uacutenica coisa que eacute real e natildeo existe outra aleacutem dessa de modo nenhum e em nenhuma circunstacircncia mas seraacute em vatildeo cada vez que dizemos que haacute uma Ideia inteligiacutevel177 de cada coisa natildeo sendo tudo isto nada senatildeo palavras Por um lado natildeo nos eacute permitido deixar a questatildeo que temos agrave nossa frente por julgar e por decidir pois merece que o faccedilamos nem abandonaacute-la afirmando com certeza que eacute assim mas por outro lado natildeo podemos inserir um longo discurso acessoacuterio ao lado de outro que jaacute eacute longo Poreacutem se ao estipularmos um limite focaacutessemos aspectos decisivos em pouco tempo seria extremamente oportuno No que me diz respeito eacute esse o sentido do meu voto

Se a intelecccedilatildeo178 e a opiniatildeo verdadeira satildeo dois geacuteneros pois tecircm em si modos de existir independentes teremos Ideias que natildeo podem por noacutes sentidas

176 kathrsquoauta onta Esta mesma foacutermula eacute usada no Feacutedon (66a) tambeacutem para caracterizar as Ideias

177 eidos noecircton178 nous Sobre este sentido do termo vide supra n XXX

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mas somente inteligidas179 Mas se como a alguns parece a opiniatildeo verdadeira natildeo difere em nada da intelecccedilatildeo devemos estabelecer que tudo quanto eacute apreendido pelos sentidos do nosso corpo eacute o que de mais seguro existe Ainda assim temos que afirmar que se trata de duas coisas distintas pois eles satildeo gerados separadamente e tecircm uma existecircncia dissemelhante um deles eacute gerado em noacutes atraveacutes da aprendizagem e o outro eacute-o pela persuasatildeo180 Aleacutem disso o primeiro eacute sempre acompanhado de uma justificaccedilatildeo verdadeira enquanto que o segundo eacute desprovido de justificaccedilatildeo181 Um natildeo se move pela persuasatildeo enquanto que o outro estaacute aberto agrave persuasatildeo Devemos tambeacutem dizer que todos os homens tomam parte em um mas na intelecccedilatildeo soacute tomam parte os deuses e um reduzido tipo de homens182 Sendo assim convenhamos que haacute uma primeira espeacutecie que eacute imutaacutevel natildeo estaacute sujeita ao devir nem agrave destruiccedilatildeo183 que natildeo recebe em si nada vindo de parte alguma nem entra em nada seja o que for natildeo eacute visiacutevel nem de outro modo sensiacutevel e cabe ao pensamento184 examinaacute-la Haacute uma segunda que tem

179 Tal como fora estabelecido na Repuacuteblica (478a-b) se eacute verdade que as faculdades intelectiva e sensiacutevel satildeo distintas tambeacutem os seus objectos hatildeo-de ser distintos

180 Cf Goacutergias 454c-455a Teeteto 200e-201c181 metrsquoalecircthous logou Formulaccedilatildeo aproximada da terceira

definiccedilatildeo de epistecircmecirc do Teeteto (200c9-201d1 meta logou alecircthecirc doxan) difere no facto de associar a verdade agrave justificaccedilatildeo (logos) e natildeo agrave opiniatildeo (doxa) pois que prescinde desta Cf Banquete 202a Feacutedon 76b 97d-99d Meacutenon 97c-98b Repuacuteblica 534b

182 Isto eacute os filoacutesofos183 to kata tauta eidos echon agennecircton kai anocirclethron184 noecircsis

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um nome igual agravequela que eacute sensiacutevel eacute deveniente estaacute sempre em movimento eacute gerada num determinado local para de seguida se dissolver de novo aleacutem de que eacute apreendida pela opiniatildeo e pelos sentidos Haacute um terceiro geacutenero que eacute sempre o do lugar185 natildeo admite destruiccedilatildeo e providencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devir eacute acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo186 sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel Quando olhamos para ele como em sonhos dizemos que eacute inevitaacutevel que tudo quanto eacute seja num determinado local e lhes caiba um determinado lugar e que aquilo que natildeo eacute em nenhum siacutetio da Terra nem no ceacuteu natildeo eacute Todas estas coisas e outras que satildeo irmatildes daquelas que pertencem agrave natureza do que eacute privado de sono e eacute verdadeiro por causa de estarmos a sonhar natildeo as conseguimos definir enquanto estamos acordados nem dizer a verdade Eacute que uma imagem que natildeo tem em si mesma nada daquilo a partir do qual se gerou (eacute um simulacro que estaacute sempre a fugir de outra coisa) assenta por estes motivos o seu devir numa outra coisa aderindo assim a uma existecircncia qualquer que ela seja caso contraacuterio ela natildeo seraacute absolutamente nada No que diz respeito ao que realmente eacute o discurso verdadeiro atraveacutes da exactidatildeo vai em seu auxiacutelio porque enquanto alguma coisa for uma outra e essa for outra ainda nenhuma das duas poderaacute nascer na outra pois

185 chocircra A traduccedilatildeo deste termo seraacute sempre insuficiente em virtude das dificuldades hermenecircuticas que esta secccedilatildeo levanta A versatildeo por ldquolugarrdquo deve ser entendida agrave luz do que foi dito sobre a chocircra na Introduccedilatildeo pp 42-44

186 logismocirc tini nothocirc

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uma coisa natildeo pode ser uma soacute e a mesma e ao mesmo tempo ser duas diversas

Esta eacute portanto a explicaccedilatildeo que vai ao encontro do meu voto concedamos uma descriccedilatildeo em jeito de siacutentese o ser o lugar e o devir187 satildeo trecircs coisas distintas de trecircs maneiras diversas e anteriores agrave geraccedilatildeo do ceacuteu A ama do devir188 por ficar humedecida e ardente e receber as formas da terra e do ar e por sofrer todas as impressotildees que as acompanham aparece agrave visatildeo sob muacuteltiplas feiccedilotildees mas por causa de estar plena de propriedades que natildeo satildeo semelhantes nem equilibradas natildeo estando ela proacutepria nada equilibrada a balanccedilar irregularmente para todos os lados eacute sacudida pelos elementos e ao ser movimentada ela proacutepria novamente os sacode Sendo os elementos assim postos em movimento separam-se por serem movimentados de um lado para o outro tal como acontece com as sementes quando satildeo agitadas e peneiradas por meio de joeiras ou de outros instrumentos usados para a depuraccedilatildeo dos cereais as partes densas e pesadas vatildeo para um lado enquanto que as esparsas e leves satildeo transportadas e assentam noutro local Assim os quatro elementos satildeo ao mesmo tempo sacudidos pelo receptaacuteculo Ele proacuteprio produzindo um movimento semelhante ao de um instrumento para sacudir separou ao maacuteximo esses elementos dissemelhantes dos outros e comprimiu o mais que pocircde os semelhantes num soacute por isso uns ocuparam um lugar e os outros outro ainda antes de o universo ser organizado e gerado a partir deles

187 on te kai chocircran kai genesin188 Outra das designaccedilotildees para chocircra

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Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros Como eacute possiacutevel que o deus os tenha composto de forma tatildeo bela e excelente a partir de elementos que natildeo satildeo assim isto seraacute antes de tudo e como sempre o que comeccedilaremos por explicar Agora devo entatildeo tentar esclarecer para voacutes a ordenaccedilatildeo e a geacutenese destes elementos por meio de um discurso insoacutelito mas como graccedilas agrave educaccedilatildeo partilhais dos meacutetodos pelos quais se demonstra o que eacute necessaacuterio ser explicado voacutes ireis acompanhar-me

Em primeiro lugar que o fogo a terra a aacutegua e o ar satildeo corpos isso eacute claro para todos tudo o que eacute da espeacutecie do corpo tem profundidade Mas a profundidade envolve necessariamente e por natureza a superfiacutecie e uma superfiacutecie plana eacute composta a partir de triacircngulos Todos os triacircngulos tecircm origem em dois triacircngulos cada um dos quais com um acircngulo recto e com os outros agudos Destes um tem em cada lado uma parte do acircngulo recto dividido em lados iguais enquanto que o outro tem partes desiguais do acircngulo recto dividas por lados desiguais Este eacute o princiacutepio que supomos aplicar-se ao fogo e aos outros corpos ao seguirmos uma explicaccedilatildeo que combina necessidade e

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verosimilhanccedila quanto aos princiacutepios ainda anteriores agravequeles conhece-os o deus e aqueles de quem entre os homens ele for amigo Eacute necessaacuterio que se diga entatildeo como satildeo esses quatro corpos mais belos dissemelhantes uns em relaccedilatildeo aos outros e que tecircm a capacidade de se gerarem uns aos outros se porventura forem dissolvidos Se o conseguirmos obteremos a verdade sobre a geraccedilatildeo da terra do fogo e dos elementos intermediaacuterios que estatildeo entre eles segundo a proporccedilatildeo E natildeo aceitaremos a ningueacutem a seguinte argumentaccedilatildeo que existem e podem ser observados corpos mais belos do que estes cada um correspondendo a um soacute geacutenero Devemos portanto empenhar-nos em estabelecer uma relaccedilatildeo harmoacutenica entre os quatro geacuteneros de corpos que se distinguem pela beleza e demonstrar que compreendemos satisfatoriamente a sua natureza

Dos dois triacircngulos o isoacutesceles encerra uma soacute espeacutecie ao passo que o escaleno encerra uma infinidade delas entre esta infinidade temos que escolher a mais bela se quisermos comeccedilar pelo siacutetio certo Se algueacutem conseguir referir uma mais bela que tenha escolhido em funccedilatildeo da sua composiccedilatildeo seraacute ele quem prevalece natildeo como antagonista mas sim como aliado Estabeleccedilamos portanto que de entre os vaacuterios triacircngulos haacute um que eacute o mais belo e deixemos de parte os outros

Trata-se daquele a partir do qual se pode constituir um triacircngulo equilaacutetero Dizer por que razatildeo eacute assim exigiria um discurso muito longo poreacutem a quem refute esta afirmaccedilatildeo e descubra que natildeo eacute deste modo seraacute atribuiacutedo o preacutemio com amizade Seleccionemos entatildeo

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dois triacircngulos a partir dos quais o fogo e os outros corpos foram engendrados um eacute isoacutesceles e quanto ao outro o seu lado maior seraacute sempre o quadrado do triplo do mais pequeno189 Agora devemos esclarecer melhor o que anteriormente dissemos de forma nada clara Parecia-nos que os quatro geacuteneros de corpos tinham sido todos gerados uns pelos outros mas isso eacute uma concepccedilatildeo que natildeo estaacute correcta pois em boa verdade os quatro geacuteneros satildeo gerados a partir dos triacircngulos que elegecircramos trecircs dos quais a partir do uacutenico que tem os lados desiguais e o quarto foi o uacutenico harmonicamente constituiacutedo a partir do triacircngulo isoacutesceles Portanto natildeo eacute possiacutevel que todos eles se decomponham uns nos outros que poucos grandes se gerem a partir de muitos pequenos e vice-versa Todavia trecircs podem visto que todos eles provecircm de um soacute triacircngulo se os maiores forem decompostos muitos pequenos seratildeo compostos a partir deles recebendo o aspecto que eacute adequado a cada um e quando um grande nuacutemero de pequenos se difunde pelos triacircngulos sendo gerado um nuacutemero uacutenico num uacutenico todo ele produziraacute uma outra forma uacutenica e grande Eis o que fica dito acerca da sua geraccedilatildeo reciacuteproca O tipo de forma em que cada um deles foi gerado e a partir de que combinaccedilotildees numeacutericas constituiraacute o objecto da exposiccedilatildeo que se segue

Comeccedilaremos pela primeira espeacutecie constituiacuteda como a mais pequena o seu elemento eacute o triacircngulo cujo comprimento da sua hipotenusa eacute o dobro do do lado

189 A noccedilatildeo de ldquoquadradordquo isto eacute x2 estaacute contida no termo dynamis tambeacutem com este sentido aparece no Teeteto (147d)

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mais pequeno190 Se justapusermos dois destes triacircngulos pela sua diagonal fazendo isto trecircs vezes fixando no mesmo ponto ndash que serviraacute de centro ndash as diagonais e os lados mais pequenos seraacute gerado um uacutenico triacircngulo equilaacutetero a partir de um nuacutemero de seis triacircngulos Quatro desses triacircngulos constituiacutedos por quatro lados iguais unidos a trecircs acircngulos planos191 formam um uacutenico acircngulo soacutelido192 que eacute gerado imediatamente a seguir ao mais obtuso dos acircngulos planos Uma vez formados quatro acircngulos desse tipo estaacute composta a primeira figura soacutelida193 que divide um todo esfeacuterico em partes iguais e semelhantes A segunda figura eacute formada a partir dos mesmos triacircngulos combinando-se oito triacircngulos equilaacuteteros que produzem um soacute acircngulo soacutelido a partir de quatro acircngulos planos e quando se geram seis acircngulos deste tipo o segundo corpo194 estaacute deste modo terminado A terceira figura eacute constituiacuteda pela conjunccedilatildeo de cento e vinte triacircngulos elementares e de doze acircngulos soacutelidos cada um dos quais envolvido por cinco triacircngulos planos equilaacuteteros e eacute gerada com

190 Triacircngulo rectacircngulo escaleno191 Isto eacute trecircs acircngulos de 60o192 Acircngulo raso de 180o193 Tetraedro regular (piracircmide) Comeccedila aqui a descriccedilatildeo

da formaccedilatildeo dos cinco soacutelidos elementares que se combinam na esfera final Mais tarde Euclides partiraacute deste passo do Timeu para abordar estas figuras Dedica-lhes todo o Livro XIII onde descreve as suas propriedades e constituiccedilatildeo bem como as caracteriza matematicamente determinando a proporccedilatildeo existente entre cada uma delas e a esfera Conclui que natildeo existe mais nenhum soacutelido regular aleacutem destes

194 Octaedro regular

Platatildeo

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vinte bases que satildeo triacircngulos equilaacuteteros195 Engendrados estes soacutelidos o outro triacircngulo elementar foi deixado de parte e o triacircngulo isoacutesceles engendrou a natureza do quarto constituindo quatro triacircngulos que coincidiram no centro os seus acircngulos rectos formando um uacutenico quadrilaacutetero equilateral Quando foram conjugados seis deste tipo produziu oito acircngulos soacutelidos sendo cada um deles constituiacutedo pela harmonia de trecircs acircngulos planos rectos a figura do corpo constituiacutedo foi a do cubo que tem seis faces planas quadrangulares e equilaterais196 Visto que havia ainda uma quinta combinaccedilatildeo197 o deus utilizou-a para pintar animais no universo198

Quem considerar tudo isto de forma adequada pode encontrar dificuldades quanto ao que se deve dizer

195 Icosaedro regular196 Hexaedro regular197 Dodecaedro Esta figura geomeacutetrica constituiacuteda por 12

faces sendo cada uma delas um pentaacutegono (cf Euclides 1128) aproxima-se bastante da forma da esfera Sabendo que no Feacutedon (110b) o formato esfeacuterico da Terra eacute comparado agraves lsquodoze esferasrsquo (uma espeacutecie de bolas feitas com doze pedaccedilos de pele cosidos uns com os outros) e que os siacutembolos do Zodiacuteaco satildeo tambeacutem 12 e representados de forma geometricamente semelhante a relaccedilatildeo parece-nos oacutebvia na verdade Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1003C-D) citando este passo do Timeu diz que a representaccedilatildeo do Zodiacuteaco se deve precisamente a esta relaccedilatildeo

198 Eacute bastante complicado apurar o sentido exacto de diazocircgrapheocirc pois o elemento zocirc- ainda que originalmente siginificasse ldquoanimalrdquo pelo uso passou tambeacutem a ter o sentido de ldquofigurardquo daiacute que este verbo possa tambeacutem significar ldquopintar de vaacuterias coresrdquo Contudo sabendo que o universo visto a olho nu como era observado no tempo de Platatildeo natildeo apresenta quaisquer variaccedilotildees cromaacuteticas e de acordo com o que dissemos na nota anterior pensamos que este sentido de ldquopintar animaisrdquo estaacute relacionado com o Zodiacuteaco maioritariamente formado por animais

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se haacute uma infinidade de mundos ou em nuacutemero limitado Pode considerar que dizer que haacute uma infinidade de universos eacute um parecer de algueacutem que eacute inexperiente num um assunto sobre o qual deveria ser experiente199 mas entatildeo o que eacute adequado dizer em abono da verdade Que haacute soacute um mundo ou que haacute cinco ndash eacute uma questatildeo em que eacute razoaacutevel que possamos ter muita dificuldade Ora bem em nosso parecer de acordo com o discurso verosiacutemil o deus indica que um soacute mundo foi gerado poreacutem outra pessoa ao analisar outros pressupostos teraacute outra opiniatildeo Mas deixemos agora esse assunto e distribuamos os geacuteneros que foram gerados pelo nosso discurso em fogo terra aacutegua e ar Atribuamos agrave terra a forma cuacutebica pois a terra dos quatro elementos eacute o que tem mais dificuldade em mover-se e dos corpos o mais adequado para ser moldado ndash inevitavelmente e com certeza que foi gerado deste modo para que tivesse as bases mais estaacuteveis De entre os triacircngulos que estabelecemos no princiacutepio200 a base de lados iguais eacute mais estaacutevel de acordo com a natureza do que a de lados desiguais e quanto agrave superfiacutecie quadrangular equilateral composta a partir de cada um daqueles201 estaacute assente de um modo necessariamente mais estaacutevel em relaccedilatildeo quer agraves partes quer ao todo do que o triacircngulo equilaacutetero Por isso manteremos a salvo o discurso verosiacutemil se atribuirmos esta forma agrave terra e das que restam a forma mais difiacutecil de movimentar agrave aacutegua a que se movimenta melhor ao

199 Note-se o jogo de palavras provocado entre apeiros (ldquoilimitadordquo) empeiros (ldquoexperienterdquo) e apeiros (ldquoinexperienterdquo)

200 Cf supra 53c-55c201 Triacircngulos rectacircngulo isoacutesceles e escaleno

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fogo e a intermeacutedia ao ar o corpo mais pequeno ao fogo o maior agrave aacutegua e o meacutedio ao ar o que eacute mais agudo ao fogo o segundo mais agudo ao ar e o terceiro agrave aacutegua Considerando todos estes corpos aquele que tem as bases mais pequenas seraacute por natureza necessariamente o que melhor se movimenta pois de todos eles eacute absolutamente o mais pungente e mais agudo e ainda o mais leve pelo facto de ser constituiacutedo por um menor nuacutemero de partes iguais O segundo corpo deveraacute vir em segundo lugar de acordo com estes pressupostos e o terceiro em terceiro Portanto de acordo com o raciociacutenio correcto e verosiacutemil estabeleccedilamos que a figura soacutelida da piracircmide eacute o elemento que gerou o fogo e a sua semente digamos que na ordem de geraccedilatildeo o ar eacute o segundo e a aacutegua o terceiro Eacute necessaacuterio ter em mente que todos os corpos satildeo de tal forma pequenos que tomando cada um deles de acordo com o seu geacutenero nenhum pode ser observado por noacutes por causa da sua pequenez mas soacute satildeo visiacuteveis quando reunidos em grande nuacutemero numa massa consistente E quanto agraves proporccedilotildees que determinam as suas quantidades aos movimentos e agraves outras propriedades em geral eacute loacutegico que o deus tanto quanto a natureza da Necessidade cedeu ao deixar-se persuadir de bom grado harmonizou isto de acordo com a proporccedilatildeo de modo a que em cada caso tudo fosse produzido por ele com precisatildeo

A partir de tudo quanto acabaacutemos de dizer sobre os geacuteneros eis o que deve ter ocorrido de acordo com o maacuteximo de verosimilhanccedila quando a terra encontra o fogo e eacute dividida pelo que nela haacute de cortante pode ser

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arrastada por dissoluccedilatildeo no proacuteprio fogo ou ao deparar-se com uma massa de ar ou de aacutegua ateacute que as suas partes se reencontrem e se harmonizem novamente umas com as outras tornando-se terra outra vez ndash pois jamais pode passar a outra espeacutecie Mas quando a aacutegua eacute dividida pelo fogo ou ateacute pelo ar eacute possiacutevel que decirc origem a um corpo uacutenico constituiacutedo de fogo e a dois de ar a partir da dissoluccedilatildeo de uma partiacutecula de ar os seus segmentos podem dar origem a dois corpos de fogo E por outro lado quando o fogo eacute envolvido em ar em aacutegua ou numa porccedilatildeo de terra posto em movimento pelos elementos que o arrastam entra em conflito com eles eacute castigado e desfeito em pedaccedilos Entatildeo dois corpos de fogo combinam-se num elemento de ar e quando o ar eacute dominado e cortado em pedaccedilos a partir de duas partes e meia uma forma de ar eacute compactada num soacute corpuacutesculo de aacutegua

Mas calculemos novamente estas questotildees do seguinte modo logo que um dos outros elementos ao ser envolvido em fogo e cortado pela agudeza dos seus acircngulos e das suas arestas eacute constituiacutedo na natureza do fogo o corte acaba Eacute que cada geacutenero eacute semelhante e idecircntico a si proacuteprio e natildeo eacute possiacutevel produzir qualquer alteraccedilatildeo num outro que tem uma condiccedilatildeo semelhante agrave sua nem dele sofrer nenhuma mas se se tornar num outro geacutenero haveraacute um mais fraco a combater com um mais forte e natildeo paacutera de ser dissolvido Quando as partiacuteculas mais pequenas e em menor nuacutemero satildeo envolvidas pelas maiores e mais numerosas satildeo dissolvidas e extinguem-se mas se se

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deixarem constituir na forma do elemento dominante param de se extinguir e do fogo eacute gerado ar e do ar eacute gerada aacutegua Todavia se enquanto os corpuacutesculos se estiverem a unir num todo uma massa de outros elementos entrar em conflito com eles natildeo param de se dissolver ateacute que sejam completamente afastados e dissolvidos refugiando-se junto do que eacute seu congeacutenere ou sendo vencidos se convertam numa massa uacutenica semelhante agrave que os dominou e permaneccedilam com ela Decerto que estas impressotildees originam mudanccedilas de lugar eacute que as massas de cada geacutenero estatildeo separadas cada uma no siacutetio que lhe compete em virtude do movimento do receptaacuteculo mas as que por vezes se tornam dissemelhantes de si proacuteprias e semelhantes a outras satildeo levadas por via das agitaccedilotildees para o lugar daquelas a que se tornaram semelhantes

Eis as causas por que foram gerados os corpos primeiros e puros mas quanto ao motivo por que nascerem outros geacuteneros nas suas formas devemos apontar como causa a constituiccedilatildeo dos elementos de cada corpo pois cada uma delas natildeo foi feita desde o princiacutepio de modo a que o seu triacircngulo fosse uacutenico e de um tamanho soacute ndash jaacute que havia uns mais pequenos e outros maiores ndash com um nuacutemero de variaccedilotildees tatildeo grande quanto o de geacuteneros que haacute dentro das formas Por isso eacute que quando esses triacircngulos se misturam entre si ou com outros decorre daiacute uma variedade infinita Essa variedade deve merecer a atenccedilatildeo daqueles que tencionam fazer uso de um discurso verosiacutemil sobre a natureza

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No que respeita ao movimento e ao repouso se natildeo chegarmos a um acordo sobre a forma e em que condiccedilotildees se geram haveraacute vaacuterios impedimentos ao raciociacutenio que se segue Decerto que jaacute se falou sobre este assunto202 mas acrescentemos ainda o seguinte de modo algum o movimento consente existir na uniformidade Eacute difiacutecil ndash ou melhor impossiacutevel ndash haver um movido203 sem um movente204 ou um movente sem um movido natildeo eacute possiacutevel haver movimento sem a existecircncia destes termos mas eacute impossiacutevel que de algum modo eles sejam uniformes Assim estabeleccedilamos definitivamente que o repouso existe na uniformidade205 e o movimento na natildeo-uniformidade a causa da natureza do que eacute natildeo-uniforme eacute a desigualdade Noacutes jaacute discorremos sobre a geraccedilatildeo da desigualdade206 mas natildeo dissemos como se separaram os elementos uns dos outros de acordo com o seu geacutenero e desse modo cessaram de se mover e passar uns pelos outros Eis o que diremos novamente a oacuterbita do universo visto que engloba todos os geacuteneros e eacute circular tende por natureza a querer concentrar-se em si mesma e comprime todas as coisas natildeo permitindo que lugar algum permaneccedila vazio Foi por isso que o fogo principalmente penetrou em tudo e em seguida o ar que eacute por natureza o segundo em subtileza e assim sucessivamente para os restantes De facto os corpos gerados a partir de partiacuteculas maiores satildeo os que deixam

202 Cf supra 52d-53a 57a-c203 to kinecircsomenon204 to kinecircson205 stasin men en omalotecircti206 Cf supra 57c-d

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maiores interstiacutecios durante a sua composiccedilatildeo enquanto que os mais pequenos deixam interstiacutecios muito pequenos O processo de compressatildeo impele os mais pequenos para os interstiacutecios dos maiores Quando os pequenos se encontram estabelecidos entre os grandes separando entre si os maiores e os maiores comprimem os mais pequenos todos satildeo levados para cima e para baixo em direcccedilatildeo aos lugares que lhes satildeo proacuteprios Eacute que cada um ao mudar de tamanho eacute levado igualmente a mudar de posiccedilatildeo Eacute deste modo e por estes motivos que se gera e perdura a natildeo-uniformidade fornecendo a esses corpos este movimento que existe sempre de forma contiacutenua

Aleacutem dos mencionados eacute necessaacuterio ter em conta que existem outros geacuteneros de fogo como a chama e aquilo que emana da chama que natildeo queima mas fornece aos olhos a luz e aquilo que quando a chama se extingue dela subsiste nos corpos inflamados O mesmo se aplica ao ar a que naquela forma mais pura nos referimos com o termo ldquoeacuteterrdquo enquanto que para mais turva designamos por ldquonevoeirordquo e ldquoescuridatildeordquo existindo tambeacutem noutras formas que natildeo tecircm nome e que satildeo geradas por causa da desigualdade dos triacircngulos Quanto aos tipos de aacutegua em primeira instacircncia dividem-se em dois geacuteneros o liacutequido e o passiacutevel de se liquefazer O liacutequido que tem partes dos mais pequenos compostos de aacutegua (os quais satildeo desiguais) eacute moviacutevel por si mesmo ou por outro elemento em virtude da sua irregularidade e da forma da sua figura Por outro lado o que eacute feito a partir de compostos grandes e uniformes eacute mais estaacutevel do que

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aquele e mais pesado pois foi compactado por causa da uniformidade Mas sob efeito do fogo que o penetra e dissolve perde a uniformidade e depois de a perder participa mais do movimento ao tornar-se facilmente moviacutevel eacute impregnado pelo ar circundante e espalhado sobre a terra Cada uma destas impressotildees recebeu um nome ldquoderreterrdquo para a decomposiccedilatildeo das suas massas e ldquofluirrdquo para a sua dispersatildeo sobre a terra Mas quando o fogo se precipita novamente e de forma espontacircnea visto que natildeo se precipita para o vazio o ar circundante repele a massa huacutemida que ainda eacute faacutecil de mover em direcccedilatildeo aos lugares que o fogo ocupava obrigando-a a misturar-se com ela proacutepria Sendo o liacutequido assim comprimido recupera a sua homogeneidade visto que o fogo que criara esta irregularidade tinha-se retirado assim eacute restabelecido ao seu estado original E porque o afastamento do fogo eacute ldquocongelamentordquo a constriccedilatildeo subsequente ao seu afastamento significa o que chamamos ldquoestado soacutelidordquo Dentre todos os tipos de aacutegua a que chamaacutemos ldquopassiacutevel de se liquefazerrdquo uma que eacute muito densa por ser gerada atraveacutes de partiacuteculas muito finas e uniformes (uacutenica na sua espeacutecie) foi tingida com uma cor brilhante e amarela e que eacute o bem mais precioso o ouro ndash filtrado atraveacutes das pedras solidificou-se Quanto ao rebento do ouro que eacute muito duro em virtude da sua densidade e de cor negra eacute chamado ldquoadamanterdquo207

207 adamas Pelo facto de lhe ser atribuiacuteda uma cor negra e ser chamada ldquorebento do ourordquo esta misteriosa substacircncia tambeacutem referida no Poliacutetico (303e) e na Repuacuteblica (616c) corresponderaacute muito provavelmente agrave hematite Sobre este assunto vide Lopes (2009 pp 29-30)

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Afim ao ouro por causa das partiacuteculas mas tendo mais do que uma espeacutecie mais compacto em densidade do que o ouro e com pequenas e poucas partiacuteculas de terra de tal modo que eacute mais duro embora seja mais leve por ter em si interstiacutecios maiores eacute o geacutenero do cobre ndash uma combinaccedilatildeo gerada a partir de aacuteguas liacutempidas e densas Quanto agrave porccedilatildeo de terra aiacute misturada logo que se torna a separar deste com o passar do tempo torna-se visiacutevel por si soacute e gera-se aquilo a que se chama ldquoverdeterdquo

No que respeita agraves outras substacircncias deste tipo natildeo seraacute complicado discorrer sobre elas se investigarmos a modalidade da narrativa verosiacutemil Algueacutem que ponha de parte os discursos relativos ao que eacute eternamente e analise o verosiacutemil que diz respeito ao devir obteacutem como que um prazer de que natildeo se arrepende e produziraacute na sua vida uma recriaccedilatildeo comedida e prudente Por isso deixemos tambeacutem noacutes agora aqueles assuntos e prossigamos a buscar a verosimilhanccedila nestas questotildees e do seguinte modo

A aacutegua misturada com fogo toda ela fina e liacutequida em virtude do seu movimento e do seu percurso eacute chamada ldquoliacutequidardquo208 Ela rola macia sobre a terra e por as suas bases menos estaacuteveis do que as da terra cederem a aacutegua quando eacute separada do fogo e do ar fica sozinha e eacute mais uniforme e comprimida sobre si mesma por aquilo que dela sai Solidificada deste modo a que eacute mais afectada pelo que estaacute por cima da terra chama-se ldquogranizordquo e sobre a terra chama-se ldquogelordquo

208Caracterizaccedilatildeo tipicamente homeacuterica do percurso da aacutegua (Odisseia 371)

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aquela que ficou menos afectada se natildeo for mais do que meio congelada chama-se ldquoneverdquo e se condensar sobre a terra a partir do orvalho chama-se ldquogeadardquo No que respeita agraves espeacutecies de aacutegua mais numerosas por estarem misturadas umas com as outras ndash a todo esse geacutenero por ter sido filtrado pelas plantas da terra chamamos sucos ndash todas elas por causa das misturas tecircm dissemelhanccedilas Muitos geacuteneros seus foram produzidos que ficaram sem nome Mas haacute quatro espeacutecies que contecircm fogo tendo sido as mais conspiacutecuas as que receberam nomes a que consegue aquecer tanto a alma como o corpo eacute o vinho a que eacute suave e divide o raio visual e por estas razotildees eacute brilhante e reluzente para a visatildeo e tem uma aparecircncia lustrosa eacute o oacuteleo o pez o oacuteleo de riacutecino o proacuteprio azeite e todos os outros produtos que tecircm esta mesma propriedade E o que tem a capacidade de dissolver nos limites da sua natureza as partes compactas agrave volta da boca proporcionando a doccedilura atraveacutes dessa propriedade tem a designaccedilatildeo geral de ldquomelrdquo a espeacutecie que dissolve a carne por queimaacute-la um geacutenero espumoso que estaacute aparte de todos os outros sucos recebeu o nome ldquofermentordquo

Quanto agraves espeacutecies de terra a que foi filtrada pela aacutegua torna-se num corpo pedregoso do seguinte modo Quando a aacutegua que estava misturada se separa durante a mistura torna-se numa espeacutecie de ar transformada em ar vai disparada para o lugar que lhe eacute proacuteprio Como natildeo havia nenhum vazio em redor deles empurrou o ar circundante Visto que ele eacute pesado quando eacute empurrado e espalhado na massa da terra comprime-a

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atirando-a com forccedila para os locais de onde saiacutera o novo ar comprimida pelo ar e insoluacutevel pela aacutegua209 a terra constitui a pedra que eacute mais bela quando eacute brilhante (pois tem origem em partes iguais e uniformes) e mais feia quando acontece o contraacuterio Quando toda a humidade eacute retirada por causa da rapidez do fogo e se constitui um corpo mais seco do que a pedra gera-se aquele geacutenero a que chamamos ldquobarrordquo Mas acontece que se restar humidade a terra torna-se passiacutevel de fusatildeo por acccedilatildeo do fogo e quando arrefece gera-se uma pedra de cor negra210 Restam dois geacuteneros que igualmente resultam de uma mistura com muita aacutegua Sendo constituiacutedos por partes mais pequenas de terra e ambos salgados tornam-se semicondensados e novamente dissoluacuteveis pela aacutegua um eacute o geacutenero do salitre que limpa o azeite e a terra o outro que se mistura harmoniosamente em combinaccedilotildees de sabores eacute o sal que segundo a tradiccedilatildeo eacute considerado um corpo amado pelos deuses211 Quanto aos que satildeo compostos de ambos soluacuteveis natildeo em aacutegua mas sim no fogo solidificam-se do seguinte modo e pelos seguintes motivos nem o fogo nem o ar dissolvem as massas de terra pois as suas partiacuteculas satildeo por natureza mais pequenas do que os interstiacutecios da estrutura da terra e como haacute muito espaccedilo por onde podem passar sem ser pela forccedila permitem que ela fique

209 Questatildeo que seraacute detalhadamente analisada por Aristoacuteteles (Meteoroloacutegicos 383b19-sqq)

210 A lava depois de seca211 Esta concepccedilatildeo remonta a Homero Plutarco em No

Banquete (684F-sqq) citando este passo do Timeu dedica-lhe uma quaestio inteira

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indissoluacutevel e indissociaacutevel por outro lado as partiacuteculas de aacutegua que satildeo por natureza maiores forccedilam a passagem e ao fazecirc-lo dissociam a terra dissolvendo-a De facto quando a terra natildeo se solidifica pela forccedila soacute a aacutegua a dissolve deste modo mas se se solidificar dessa forma nada a natildeo ser o fogo a pode dissolver pois natildeo resta entrada para nada a natildeo ser para o fogo Quanto agrave estrutura da aacutegua extremamente forte soacute o fogo a pode destruir poreacutem quando enfraquece ambos os elementos a podem destruir o fogo pelos triacircngulos e o ar pelos interstiacutecios Quanto ao ar comprimido pela forccedila nada o dissolve a natildeo ser que dissolva o elemento propriamente dito e quando foi comprimido sem forccedila soacute o fogo o dissolve No que respeita aos corpos misturados a partir de terra e de aacutegua enquanto a aacutegua ocupar os interstiacutecios da terra que satildeo comprimidos pela forccedila as partes de aacutegua que vecircm do exterior natildeo tecircm entrada pelo que correm em torno de toda a massa sem que ela permita ser dissolvida mas as partes do fogo entram pelos interstiacutecios de aacutegua e o que a aacutegua faz agrave terra o fogo o faz ao ar ndash satildeo as uacutenicas causas que levam este corpo composto a dissolver-se e a fluir Acontece que entre estes seres uns tecircm menos aacutegua do que terra geacutenero a que diz respeito todo o tipo de vidro e as pedras a que chamamos ldquofundiacuteveisrdquo mas outros tecircm mais aacutegua satildeo todos os corpos constituiacutedos de cera e incenso

Estatildeo entatildeo mais ou menos demonstradas as variedades de espeacutecies em funccedilatildeo das figuras combinaccedilotildees e alteraccedilotildees de uns para os outros Temos agora que tentar esclarecer por que causas se geram essas

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impressotildees Primeiro eacute obrigatoacuterio que pressuponhamos sempre nos nossos discursos a existecircncia de sensaccedilotildees mesmo que ainda natildeo tenhamos discorrido sobre o que respeita agrave carne e agrave geraccedilatildeo da carne212 nem sobre a parte mortal da alma213 Acontece que natildeo eacute possiacutevel falar-se disso satisfatoriamente sem que se aborde as impressotildees sensiacuteveis nem falar daquela separadamente destas todavia tratar dos dois assuntos ao mesmo tempo eacute quase impossiacutevel Assim temos que pressupor que um dos dois jaacute foi tratado anteriormente mas regressaremos mais tarde ao que supusemos tratado

Portanto para que falemos sobre as propriedades a seguir ao que as gera tenhamos em conta o que respeita agrave existecircncia do corpo e da alma Em primeiro lugar procuremos saber por que dizemos que o fogo eacute quente tendo em conta que ele gera dissociaccedilatildeo e corte no nosso corpo Todos noacutes temos mais ou menos noccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo que provoca eacute como qualquer coisa aguda no que trata agrave fineza das suas arestas agrave agudeza dos seus acircngulos agrave pequenez das suas partiacuteculas e agrave rapidez dos seus movimentos que em todos os sentidos fazem do fogo algo veemente e cortante que corta de forma pungente o que quer que lhe apareccedila devemos consideraacute-las relembrando a origem da sua figura e sobretudo que essa e natildeo outra a natureza que divide os nossos corpos e os fragmenta em pequenas partes eacute justamente o que deu o nome e a sensaccedilatildeo ao que noacutes agora chamamos ldquoquenterdquo

212 Vide infra 73b-sqq213 Vide infra 69a-sqq

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O contraacuterio disto eacute evidente todavia que natildeo fique privada de explicaccedilatildeo Dentre os liacutequidos que circundam o corpo quando aqueles que tecircm partiacuteculas maiores se aproximam para expelirem os de partiacuteculas mais pequenas (como natildeo lhes eacute possiacutevel ocupar os lugares deles comprimem a humidade que haacute em noacutes) fazem uma coisa inamoviacutevel a partir de uma que eacute dotada de um movimento irregular atraveacutes de homogeneizaccedilatildeo compressatildeo e solidificaccedilatildeo Poreacutem aquilo que eacute unido de forma contraacuteria agrave natureza luta de acordo com a sua natureza para se afastar no sentido contraacuterio que eacute o seu estado proacuteprio A este embate e a este abalo pusemos os nomes ldquotremorrdquo e ldquoarrepiordquo enquanto que esta impressatildeo em geral e aquilo que a provoca tem o nome ldquofriordquo

Duro eacute aquilo a que a nossa carne cede e mole eacute aquilo que cede agrave carne determinam-se relativamente uns aos outros Cede aquilo que estaacute assente numa base pequena Aquele que tem uma base de quadrados estando assente firmemente eacute a forma mais resistente porque pode reunir grande densidade e tem muita firmeza

Para que se explique com o maacuteximo de clareza o ldquopesadordquo e o ldquoleverdquo examinemo-los juntamente com aquilo a que chamamos ldquopor baixordquo e ldquopor cimardquo Natildeo eacute nada acertado pensar que haacute por natureza dois lugares determinados e opostos que dividem o universo em duas partes a de baixo para onde eacute levado tudo quanto tenha uma massa corpoacuterea e a de cima para onde tudo se dirige contrariado Sabendo que o ceacuteu tem todo ele uma forma esfeacuterica todos os pontos que satildeo extremos

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por estarem agrave mesma distacircncia do centro devem ser em igual medida extremidades e quanto ao centro afastado agrave mesma distacircncia das extremidades eacute forccediloso acreditar que seja o oposto de todas as extremidades Visto que o mundo eacute por natureza formado deste modo qual dos pontos se diga estar no alto ou em baixo para que natildeo pareccedila com justiccedila que se estaacute a aplicar designaccedilotildees nada adequadas Com efeito natildeo eacute certo dizer que o local que estaacute no centro do mundo seja por natureza em baixo ou em cima mas sim no centro jaacute a periferia natildeo estaacute no centro nem tem em si nenhuma parte mais diferenciada do que outra em relaccedilatildeo ao centro ou a qualquer outro dos opostos Portanto que tipo de designaccedilotildees contraacuterias se poderaacute aplicar agravequilo que eacute em si mesmo semelhante em todos os aspectos e como se pode acreditar que estaacute a falar correctamente Se houver um soacutelido em equiliacutebrio no centro do universo de modo algum seraacute levado em direcccedilatildeo a qualquer das extremidades em virtude de serem semelhantes em todas as direcccedilotildees Mas se algo andasse em ciacuterculos agrave volta dele achar-se-ia frequentemente nos antiacutepodas e referir-se-ia ao mesmo ponto como ldquoem baixordquo e ldquoem cimardquo214 Portanto se o universo eacute todo esfeacuterico tal como acabo de dizer natildeo faz sentido dizer que um siacutetio eacute em baixo e outro eacute em cima de onde provecircm estas designaccedilotildees e aquilo a que elas se aplicam por causa das quais nos acostumaacutemos a descrever o ceacuteu como um todo e a dividi-lo deste modo eis aquilo em que devemos estar de acordo ao supormos o que se segue

214 No Sobre o Ceacuteu (42 308a34-b28) Aristoacuteteles parafraseia esta secccedilatildeo do texto para especular sobre a esfericidade da Terra e a sua posiccedilatildeo central no universo

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No siacutetio do universo de que a natureza do fogo mais participa e onde haacute mais quantidade acumulada daquilo a que ele se dirige se algueacutem aiacute se aproximasse dele supondo que tinha esse poder e tirasse partes de fogo para as pesar numa balanccedila e erguendo a balanccedila arrastasse agrave forccedila o fogo para o ar que lhe eacute dissemelhante eacute evidente que as partes mais pequenas cederiam mais facilmente do que as maiores ndash eacute que quando dois corpos satildeo levantados por uma soacute forccedila torna-se inevitaacutevel que o mais pequeno anua mais facilmente agrave forccedila e o maior menos pois resiste ateacute um certo ponto Ao maior que eacute levado para baixo chamemos ldquopesadordquo e ao pequeno que eacute levado para cima chamemos ldquoleverdquo Eacute forccediloso que noacutes sejamos levados a fazer isto mesmo em relaccedilatildeo a este local Por andarmos sobre a terra separamos geacuteneros teacuterreos agraves vezes ateacute a proacutepria terra e contra a natureza atiramo-los com violecircncia para o ar que eacute dissemelhante pois ambos se mantecircm naquilo de que satildeo congeacuteneres mas o mais pequeno acompanha mais facilmente o arrastamento para o dissemelhante do que o maior Por isso lhe atribuiacutemos a propriedade ldquoleverdquo a ele e ldquoem cimardquo ao local para onde foi arrastado e ao oposto ldquopesadordquo e ldquoem baixordquo Consequentemente eacute inevitaacutevel que essas propriedades se relacionem umas com as outras de maneiras diversas em virtude de as massas destes geacuteneros ocuparem um local oposto umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash se compararmos o que eacute leve num lugar com o que eacute leve no lugar oposto o que eacute pesado com aquilo que eacute pesado o que estaacute em baixo com o que estaacute em baixo o que estaacute em cima com o

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que estaacute em cima descobriremos que todos se tornam e satildeo opostos obliacutequos e em tudo diferentes uns dos outros Mas o aspecto particular que devemos ter em mente em relaccedilatildeo a todos eles eacute que para cada corpo eacute o trajecto que conduz ao congeacutenere que torna ldquopesadordquo aquele que o percorre e ldquoem baixordquo o lugar para onde se dirige e o contraacuterio eacute vaacutelido para os opostos destes215 Estatildeo estabelecidas as causas que dizem respeito a estas propriedades No que respeita agrave causa da impressatildeo do ldquolisordquo e do ldquorugosordquo qualquer pessoa pode percebecirc-la e explicaacute-la a outra pessoa um resulta da dureza misturada com a irregularidade o outro eacute produzido pela homogeneidade combinada com densidade

No que respeita agraves questotildees que satildeo comuns a todo o corpo resta uma importantiacutessima que eacute a causa dos prazeres e das dores devidos agraves impressotildees sobre as quais temos discorrido que por receberem as sensaccedilotildees atraveacutes de todas as partes do corpo trazem consigo mesmas dor e prazer simultaneamente216 Tomemos pois as causas que tecircm que ver com todas as impressotildees sensiacuteveis ou natildeo sensiacuteveis relembrando a distinccedilatildeo que estabelecemos anteriormente217 entre a natureza do que se move facilmente e do que se move a custo Eacute de acordo com ela que devemos procurar tudo aquilo que temos a intenccedilatildeo de perceber

Quando ao que por natureza se movimenta facilmente sobreveacutem uma impressatildeo por mais

215 Isto eacute aplica-se o mesmo princiacutepio agraves noccedilotildees ldquoleverdquo e ldquoem cimardquo

216 Sobre a relaccedilatildeo entre prazer e dor vide Feacutedon 60b-c Filebo 51a-sqq Leis 732d-734e Repuacuteblica 584b

217Cf supra 55e-56a

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brevemente que seja as suas partiacuteculas diferentes espalham-se em ciacuterculo pelas outras partiacuteculas produzindo nelas essa mesma impressatildeo ateacute que ao atingirem o discernimento218 datildeo a conhecer a propriedade do agente Pelo contraacuterio o que eacute estaacutetico e natildeo tem nenhum movimento em ciacuterculo apenas sofre a impressatildeo e natildeo movimenta nenhuma das partiacuteculas circundantes de tal forma que em virtude de as partiacuteculas natildeo a transmitirem umas agraves outras a impressatildeo inicial permanece neles imoacutevel sem que esteja na totalidade do ser-vivo nem proporcione nenhuma sensaccedilatildeo agrave parte afectada Isto eacute o que acontece aos ossos aos cabelos e a todas as outras partes maioritariamente teacuterreas que temos em noacutes Mas o que dissemos anteriormente tem que ver sobretudo com a visatildeo e com a audiccedilatildeo porque eacute o fogo e o ar que exercem sobre eles uma influecircncia mais importante Quanto ao prazer e agrave dor eacute necessaacuterio que tenhamos em mente o seguinte uma impressatildeo violenta e em desacordo com a natureza que se gera em noacutes de forma suacutebita eacute dolorosa mas pelo contraacuterio o regresso ao estado natural de forma suacutebita eacute apraziacutevel jaacute uma impressatildeo moderada e faseada natildeo eacute sentida aplicando-se o oposto aos seus opostos Mas todas as impressotildees que se geram com facilidade satildeo extremamente sensiacuteveis poreacutem delas natildeo participam nem dor nem prazer como por exemplo as impressotildees que dizem respeito agrave visatildeo em si que como foi dito anteriormente eacute um corpo que durante o dia nos eacute aparentado De facto os cortes as queimaduras e tudo

218 to phronimon

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o resto que a afectam natildeo lhes provocam dor nem prazer quando regressa novamente agrave sua forma original embora cause sensaccedilotildees intensas e manifestas em funccedilatildeo das impressotildees que sofra e dos corpos com que de certo modo contacta quando contra eles colide pois natildeo haacute qualquer violecircncia na sua dissociaccedilatildeo e associaccedilatildeo Mas os corpos com partes maiores que cedem com relutacircncia ao que age sobre eles e transmitem os movimentos ao todo sofrem prazer e dor ndash dor quando satildeo alterados prazer quando regressam novamente ao estado original Todos os que se desvanecem a si proacuteprios gradualmente e se esvaziam mas que se enchem de forma suacutebita e em larga escala tornam-se insensiacuteveis quando se esvaziam e sensiacuteveis quando se enchem e natildeo provocam dores agrave parte mortal da alma mas sim prazeres intensos Isto eacute evidente em relaccedilatildeo a substacircncias fragrantes219 Mas todos os que satildeo alterados de forma suacutebita e regressam gradualmente e com relutacircncia ao seu estado original proporcionam sensaccedilotildees absolutamente contraacuterias agraves que atraacutes referimos eacute evidente que eacute o que acontece em relaccedilatildeo agraves queimaduras e aos cortes no corpo

Eis uma explicaccedilatildeo razoaacutevel das impressotildees comuns a todo o corpo e dos nomes que foram dados aos agentes que as geram Devemos agora tentar falar tanto quanto nos for possiacutevel do que se gera nas partes especiacuteficas do nosso corpo das suas impressotildees e mais uma vez das causas dos seus agentes Primeiro devemos esclarecer na medida do possiacutevel tudo quanto deixaacutemos

219 Semelhante ideia surge tambeacutem no Filebo (51b) e na Repuacuteblica (584b)

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por dizer nos discursos anteriores acerca dos sucos220 e das impressotildees particulares da liacutengua Eacute evidente que tambeacutem estas tal como outras se geram por meio de algumas associaccedilotildees e dissociaccedilotildees mas aleacutem disso estatildeo mais do que qualquer outra coisa relacionadas com a rugosidade e a lisura Com efeito todas as partiacuteculas terrosas que entram pelos vasos sanguiacuteneos que se prolongam ateacute ao coraccedilatildeo satildeo para a liacutengua uma espeacutecie de instrumentos de teste colidem com as partes huacutemidas e tenras da carne e ao dissolverem-se contraem e secam os vasos sanguiacuteneos221 As mais rugosas apresentam-se-nos como amargas e as que satildeo menos rugosas como azedas De entre elas as que limpam os vasos sanguiacuteneos lavam toda a superfiacutecie da liacutengua Fazem-no aleacutem da justa medida e excedem-se a ponto de dissolver parte da proacutepria natureza da liacutengua (tal como os salitres) e satildeo todas chamadas ldquopicantesrdquo ao passo que as que satildeo mais fracas do que o salitre e tecircm uma acccedilatildeo de limpeza na medida justa satildeo ldquosalgadasrdquo ndash sem amargor aacutespero e evidenciando uma sensaccedilatildeo mais amistosa

Outras que por terem partilhado do calor da boca e sido trituradas por ela satildeo inflamadas em conjunto e em sentido inverso queimam aquilo que as sobreaqueceu satildeo levadas para cima (em virtude da sua leveza) para junto da parte sensorial da cabeccedila cortando tudo o que lhes sobrevenha graccedilas agrave natureza das propriedades que

220 Cf supra 60a221 Posteriormente Aristoacuteteles defenderaacute a mesma concepccedilatildeo o

paladar estaacute sempre dependente de substacircncias em estado liacutequido (Sobre a Alma 210 422a8-35)

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todas estas substacircncias tecircm elas foram chamadas ldquoacresrdquo Por outro lado haacute partiacuteculas que foram diminuiacutedas por putrefacccedilatildeo Elas imiscuiacuteram-se nos vasos sanguiacuteneos estreitos por terem a mesma dimensatildeo que as partiacuteculas terrosas e a mesma quantidade de ar que existe nos vasos sanguiacuteneos de tal forma que fazem com que eles se movimentem e misturem uns com os outros quando estatildeo misturadas formam uma cerca e como as de um tipo se imiscuem nas de outro tipo datildeo origem a espaccedilos vazios que satildeo distendidos pelas partiacuteculas que entram Quando um espaccedilo vazio huacutemido seja terroso ou em estado puro se distende em torno do ar forma um reservatoacuterio huacutemido com ar e gera-se um espaccedilo vazio de aacutegua arredondado os que satildeo de aacutegua pura e transluacutecidos em toda a volta receberam o nome ldquobolhardquo enquanto que os que satildeo terrosos e ao mesmo tempo movimentados e efervescentes satildeo referidos com as designaccedilotildees ldquoebuliccedilatildeordquo e ldquofermentaccedilatildeordquo O responsaacutevel por estas impressotildees eacute chamado ldquoaacutecidordquo

Uma impressatildeo que seja contraacuteria ao conjunto das que acabaacutemos de falar eacute fruto de uma causa contraacuteria Sempre que a estrutura das partiacuteculas que entram em algo liacutequido eacute de natureza afim agrave da liacutengua aquelas alisam-na lubrificando as rugosidades relaxando aquilo que foi comprimido em desacordo com a natureza e comprimindo aquilo que foi relaxado em desacordo com a natureza e restabelecendo tudo tanto quanto possiacutevel de acordo com a natureza por todos estes remeacutedios para as impressotildees violentas serem em tudo apraziacuteveis e amigaacuteveis eles foram chamados ldquodocesrdquo

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Eis o que haacute a dizer sobre estes assuntos Em relaccedilatildeo agrave propriedade que diz respeito agraves narinas natildeo haacute formas a definir Eacute que todos os odores satildeo semigerados e acontece que natildeo haacute qualquer forma com dimensatildeo para ter um cheiro Pelo contraacuterio os nossos vasos sanguiacuteneos tecircm uma constituiccedilatildeo demasiado estreita para os geacuteneros de terra e de aacutegua e demasiado larga para os de fogo e ar razatildeo pela qual ningueacutem nunca sentiu nenhum cheiro destes corpos pois os cheiros satildeo gerados a partir daquilo que se liquefaz apodrece se dissolve ou evapora Com efeito os cheiros satildeo gerados durante o estado intermeacutedio em que a aacutegua se estaacute a transformar em ar ou o ar em aacutegua e todos eles satildeo vapor ou nevoeiro Entre eles o nevoeiro eacute o que passa de ar para aacutegua e o vapor eacute o que passa de aacutegua para ar daiacute que todos os cheiros sejam mais finos do que a aacutegua e mais espessos do que o ar Isso eacute evidente quando um obstaacuteculo se interpotildee agrave respiraccedilatildeo de algueacutem e outra pessoa lhe aspira o sopro respiratoacuterio com forccedila Nenhum cheiro eacute filtrado juntamente com ele e passa somente um sopro respiratoacuterio livre de cheiros Deste modo as suas variedades formam dois grupos desprovidos de nome visto que natildeo advecircm de uma determinada quantidade de espeacutecies simples entatildeo agraves uacutenicas duas que com justiccedila satildeo manifestas chamemos-lhes ldquoapraziacutevelrdquo e ldquodesagradaacutevelrdquo uma exaspera e constringe toda a cavidade que em noacutes estaacute situada entre a cabeccedila e o umbigo a outra amacia esta zona e devolve-lhe alegremente o seu estado natural

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Analisemos agora a terceira parte sensiacutevel que haacute em noacutes a que diz respeito agrave audiccedilatildeo Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressotildees que lhe dizem respeito Estabeleccedilamos que de um modo geral o som eacute uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos ceacuterebro e sangue ateacute agrave alma enquanto que a audiccedilatildeo eacute o movimento dessa pancada que comeccedila na cabeccedila e termina na regiatildeo do fiacutegado Quando o movimento eacute raacutepido o som eacute agudo quando eacute mais lento o som eacute mais grave222 se o movimento for constante o som eacute uniforme e suave no caso contraacuterio seraacute aacutespero Se o movimento for possante o som seraacute amplo caso contraacuterio seraacute breve No que trata agrave harmonia entre os sons eacute inevitaacutevel que falemos dela em discursos posteriores223

Resta-nos ainda um quarto geacutenero de sensaccedilatildeo que eacute forccediloso que determinemos pois envolve em si mesmo um grande nuacutemero de variedades a todas elas chamaacutemos ldquocoresrdquo Trata-se de uma chama que emana de todos os corpos cujas partiacuteculas tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de visatildeo de modo a produzir a sensaccedilatildeo nos discursos anteriores dissemos algo sobre as causas da origem da visatildeo224 No que respeita agraves cores eis a explicaccedilatildeo que estaacute mais de acordo com a verosimilhanccedila e que parece ser adequada para expor detalhadamente As partiacuteculas que vecircm de outros corpos e chocam com o raio de visatildeo satildeo por vezes mais pequenas por vezes maiores e por outras tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de

222 Princiacutepio atribuiacutedo a Arquitas de Tarento (DK 47B1)223 Cf infra 79e-80c224 Cf supra 45b-46c

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visatildeo As que satildeo do mesmo tamanho satildeo insensiacuteveis e a essas chamamos-lhe ldquotransparentesrdquo mas as maiores que associam o raio de visatildeo e as mais pequenas que o dissociam satildeo irmatildes das que parecem quentes e frias agrave carne e amargas agrave liacutengua assim chamamos-lhes ldquoacresrdquo porque aquecem Quanto ao branco e ao preto satildeo impressotildees semelhantes agravequelas mas satildeo geradas noutro oacutergatildeo motivo pelo qual aparecem de um modo diferente Eis o modo como devemos nomeaacute-las o ldquobrancordquo eacute o que dilata o raio visual e o ldquopretordquo eacute o que faz o contraacuterio Quando se trata de um movimento mais pungente e de um outro geacutenero de fogo que chocam com o raio de visatildeo e o dissociam ateacute aos olhos irrompendo com violecircncia pelas entradas dos olhos dissolvendo-as fazem correr delas essa torrente de aacutegua e fogo a que chamamos ldquolaacutegrimasrdquo Quando este movimento que eacute proacuteprio fogo se encontra com o fogo que vem no sentido oposto um deles salta como um relacircmpago e o outro entra e extingue-se entre a humidade gerando-se neste alvoroccedilo todo o tipo de cores a esta impressatildeo chamamos ldquoofuscaccedilatildeordquo e agravequilo que a produz damos os nomes ldquobrilhanterdquo e ldquoresplandecenterdquo Poreacutem quando o geacutenero de fogo intermeacutedio entre estes dois chega agrave parte huacutemida dos olhos e se mistura com ela natildeo eacute resplandecente em virtude de a humidade se misturar com o claratildeo do fogo produz-se uma cor sanguiacutenea a que damos o nome ldquoencarnadordquo Misturando o encarnado com o brilhante e o branco gera-se o amarelo em que proporccedilatildeo satildeo misturados natildeo seria prudente explicaacute-lo mesmo que algueacutem soubesse pois a partir deles

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natildeo seria possiacutevel expressar razoavelmente nem uma necessidade nem um discurso verosiacutemil O encarnado misturado com o preto e o branco daacute puacuterpura ou bistre quando esta mistura eacute queimada e lhe eacute acrescentado mais preto O fulvo gera-se com a mistura de amarelo e cinzento o cinzento com a mistura de branco e preto e o ocre de branco misturado com amarelo Quando se combina branco com brilhante e se mergulha esta mistura em preto carregado produz-se o azul-escuro o azul-escuro misturado com branco daacute azul-claro e o fulvo misturado com preto daacute verde225

Quanto agraves restantes cores eacute relativamente evidente a partir destes exemplos a que misturas se devem assemelhar de modo a salvaguardar a narrativa verosiacutemil Mas se algueacutem quiser examinaacute-las por meio de um teste praacutetico estaria a ignorar a distinccedilatildeo entre a natureza humana e a divina porque enquanto um deus eacute suficientemente conhecedor e ao mesmo tempo capaz226 de fazer a mistura de muitas coisas em conjunto numa soacute e novamente de dissolver o que eacute uno em muacuteltiplas coisas nenhum homem eacute neste momento nem alguma vez seraacute capaz de fazer qualquer das duas operaccedilotildees

Uma vez criadas todas estas coisas deste modo e de acordo com a necessidade o demiurgo do que eacute mais belo e melhor colocou-as como acessoacuterias naquilo que eacute gerado de modo a engendrar o deus auto-suficiente e mais perfeito servindo-se a esse respeito das causas

225 Sobre as relaccedilotildees entre estas e outras cores vide Teofrasto Histoacuteria das Plantas 625

226 hikanocircs epistamenos ama kai dynatos

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instrumentais mas foi ele proacuteprio que forjou o bom funcionamento em tudo o que eacute deveniente Por isso eacute necessaacuterio distinguir duas espeacutecies de causas a necessaacuteria e a divina E eacute a divina que devemos procurar em tudo com vista agrave obtenccedilatildeo de uma vida feliz na medida em que a nossa natureza o admita quanto agrave necessaacuteria eacute em funccedilatildeo da divina que a procuramos tendo em mente que sem as causas necessaacuterias natildeo nos podemos ocupar das proacuteprias causas divinas as uacutenicas com que nos preocupamos nem apreendecirc-las nem participar delas de qualquer modo

Assim tal como os carpinteiros tecircm a madeira jaacute preparada para trabalhar temos noacutes agora tambeacutem agrave nossa disposiccedilatildeo os geacuteneros das causas jaacute filtrados a partir dos quais eacute forccediloso que teccedilamos o resto do discurso Regressemos por um breve instante de novo ao princiacutepio do discurso e voltemos rapidamente ao ponto a partir do qual aqui chegaacutemos tentemos providenciar uma cabeccedila (como final) agrave nossa narrativa227 que esteja em harmonia com o que dissemos ateacute aqui Eacute que tal como foi dito de princiacutepio228 em virtude de estas coisas estarem desordenadas o deus criou em cada uma delas uma medida que servisse de referecircncia tanto a cada uma em relaccedilatildeo a si mesma como tambeacutem em relaccedilatildeo agraves outras de modo a serem proporcionais Essas proporccedilotildees eram tantas quantas podiam ser e possuiacuteam analogia e proporcionalidade Eacute que ateacute agravequele momento nenhuma delas tomava parte

227 A mesma imagem eacute utilizada no Goacutergias (505c-d) e nas Leis (752a)

228 Cf 30a 53a-b 56c

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na ordem a natildeo ser que fosse por acaso e nenhuma era inteiramente digna de ser chamada do modo que agora satildeo chamadas como ldquofogordquo ldquoaacuteguardquo e qualquer um dos outros Mas tudo isto o deus comeccedilou por organizar e em seguida constituiu o universo a partir delas ndash um ser-vivo uacutenico que conteacutem em si mesmo todos os outros seres-vivos mortais e imortais E ele mesmo se tornou demiurgo dos seres divinos enquanto que atribuiu o encargo de fabricar os mortais agravequeles que tinham sido gerados por si Estes imitando-o depois de terem recebido o princiacutepio imortal da alma tornearam para ele um corpo mortal a que deram como veiacuteculo todo o corpo e nele construiacuteram uma outra forma de alma mortal que conteacutem em si mesma impressotildees terriacuteveis e inevitaacuteveis primeiro o prazer o maior engodo do mal em seguida as dores que fogem do bem e ainda a audaacutecia e o temor dois conselheiros insensatos a paixatildeo difiacutecil de apaziguar e a esperanccedila que induz em erro Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade229

Por este motivo temendo conspurcar a parte divina o que natildeo era de todo inevitaacutevel estabeleceram a parte mortal numa outra morada do corpo separada daquela e construiacuteram um istmo e um limite entre

229 Tal como Brisson (2001 p 266 n 599) cremos que seraacute este o sentido na medida em que a estrutura humana foi formada com uma parte de Necessidade que apesar de irracional se revela essencial agrave sua sobrevivecircncia neste caso trata-se do desejo amoroso que potencia a procriaccedilatildeo e garante a perenidade da espeacutecie

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a cabeccedila e o peito ao estabelecerem no meio deles o pescoccedilo para que fosse um separador No peito tambeacutem chamado toacuterax sediaram a parte mortal da alma Visto que uma parte dela eacute por natureza mais forte e outra mais fraca construiacuteram uma divisoacuteria na cavidade do toacuterax (70a) como se delimitam os aposentos das mulheres separados dos dos homens Entre elas puseram o diafragma a servir de barreira Assim estabeleceram a parte da alma que participa da coragem e do fervor que eacute adepta da vitoacuteria230 mais perto da cabeccedila entre o diafragma e o pescoccedilo para que escutasse a razatildeo231 e em conjunto com ela refreasse pela forccedila a espeacutecie dos desejos sempre que estes natildeo quisessem de modo algum obedecer prontamente agraves ordens e aos decretos da cidadela do alto Quanto ao coraccedilatildeo o entroncamento dos vasos sanguiacuteneos e a fonte do sangue que circula com energia por todos os membros estabeleceram-no na morada dos guardiotildees para que quando o sentimento de coacutelera fervilhasse por a razatildeo anunciar que uma acccedilatildeo injusta a partir de causas exteriores ou que alguma se prepara a partir do iacutentimo causada pelos desejos tudo aquilo que no corpo haacute de sensiacutevel apreendesse imediatamente atraveacutes de todos os canais estreitos as advertecircncias e ameaccedilas estivesse atento obedecesse em absoluto e desta forma permitisse que a parte mais nobre prevalecesse sobre tudo No que respeita ao bater do coraccedilatildeo perante a expectativa de perigos e o despertar de paixotildees jaacute que sabiam de antematildeo que era por causa

230 Trata-se do thymos a parte passional da alma231 logos

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do fogo que toda esta dilataccedilatildeo se produzia nas pessoas encolerizadas os deuses engendraram um reforccedilo implantando a forma do pulmatildeo que primeiro que tudo eacute mole e exangue e por outro lado tem no seu interior cavidades perfuradas como as de uma esponja para que ao receberem o ar e as bebidas232 arrefecessem o coraccedilatildeo e o dotassem de focirclego e acalmia quando aquece Por isso talharam um canal desde a traqueia ateacute ao pulmatildeo e estabeleceram-no em volta do coraccedilatildeo como uma almofada para que quando a paixatildeo se desencadeasse dentro dele ressaltasse contra algo que amortece e arrefece para que se esforccedilasse menos e juntamente com as paixotildees pudesse submeter-se mais facilmente agrave razatildeo233

Quanto agrave parte da alma que deseja comida e bebida e tudo aquilo de que o corpo tem necessidade por natureza essa parte eles estabeleceram entre o diafragma e o limite do umbigo fabricando em toda esta regiatildeo uma espeacutecie de manjedoura para o sustento do corpo Foi nesse lugar que aprisionaram esta parte da alma como se fosse uma criatura selvagem234 mas que era necessaacuterio alimentar para que no futuro pudesse existir uma espeacutecie mortal De modo a que estivesse sempre situada junto agrave manjedoura e estabelecida bem mais longe do centro de decisotildees provocando nele o menos possiacutevel de distuacuterbios e clamores e a parte

232 Note-se que o sistema digestivo descrito por Timeu prevecirc que os alimentos e os liacutequidos ingeridos passem pelos pulmotildees

233 logos234 Sobre a necessidade de aprisionar a alma vide Repuacuteblica

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mais poderosa pudesse deliberar com tranquilidade sobre tudo o que respeita ao conjunto e a cada parte atribuiacuteram-lhe esta arrumaccedilatildeo espacial Estavam conscientes de que ela natildeo conseguia compreender a razatildeo e se de algum modo apreendesse alguma das sensaccedilotildees natildeo estaria na sua natureza a capacidade de perceber algo que pertencesse agrave razatildeo em vez disso de noite e de dia seria extremamente influenciada por representaccedilotildees e simulacros235 De acordo com isto um deus delineou um plano conforme agrave sua intenccedilatildeo constituiu a espeacutecie do fiacutegado e estabeleceu-o na morada desta parte da alma Fabricou-o espesso liso e brilhante e contendo doce e amargor para que a potecircncia das noccedilotildees ao transportaacute-las do intelecto ateacute ele como num espelho que recebe impressotildees e fornece reflexos a quem o contemplar o atemorizasse ao trazer-lhe ameaccedilas terriacuteveis e fazendo uso da sua parte congeacutenere que tem amargor espalhasse o amargo por todo ele e fizesse aparecer as cores da biacutelis contraindo-o ateacute se fazer aacutespero e todo rugoso vergando e contraindo o lobo a partir da posiccedilatildeo correcta e obstruindo e fechando a vesiacutecula e as entradas de modo a provocar dores e naacuteuseas Em sentido oposto quando algum movimento inspiratoacuterio reflecte do pensamento236 simulacros de suavidade converte o amargor em tranquilidade pois esse movimento natildeo quer ser anexado a uma natureza contraacuteria agrave sua Em vez disso com recurso agrave doccedilura que estaacute por natureza presente no fiacutegado corrige tudo

235 hypo de eidocirclocircn kai phantasmatocircn236 dianoia

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para ficar correcto liso e livre tornando agradaacutevel e de bom humor a parte da alma que estaacute estabelecida junto do fiacutegado passando a noite de forma tranquila e fazendo uso da divinaccedilatildeo durante o sono dado que natildeo participa da razatildeo nem do pensamento237 Aqueles que nos constituiacuteram ao lembrarem-se da ordem do seu pai que lhes tinha mandado fazer o geacutenero mortal da melhor forma possiacutevel dentro das suas capacidades rectificaram as suas deficiecircncias deste modo (com o estabelecimento da divinaccedilatildeo) para que de algum modo ele tivesse ligaccedilatildeo agrave verdade Eis um indiacutecio suficiente de que o deus concedeu a divinaccedilatildeo agrave insensatez humana eacute que ningueacutem participa da divinaccedilatildeo inspirada e verdadeira em consciecircncia mas sim quando o seu pensamento238 eacute suspenso durante o sono ou pela doenccedila ou se for adulterado por qualquer tipo de deliacuterio Por outro lado eacute em consciecircncia que o Homem deve compreender o que foi dito ndash depois de o trazer de novo agrave memoacuteria ndash em sonhos ou em estado de vigiacutelia sob o efeito da natureza da divinaccedilatildeo e do deliacuterio quanto aos simulacros que tenha visto deve por meio da reflexatildeo explicar de que modo e por que motivo cada um deles possa significar algo de mau ou de bom quer pertenccedila ao futuro ao passado ou ao presente Enquanto aquele que estaacute possuiacutedo se mantiver neste estado natildeo cumpriraacute a tarefa de distinguir por si proacuteprio o que lhe foi dado a conhecer ou a ouvir pois estaacute certo o velho dito ldquoPertence somente ao saacutebio cumprir a sua tarefa de se conhecer a si mesmordquo239 Daiacute

237 logou kai phronecircseocircs ou meteiche238 phronecircsis239 Eacute logo no Caacutermides (161b 164d) que eacute referida a

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que a norma tenha estabelecido que o geacutenero dos profetas seja inteacuterprete das divinaccedilotildees inspiradas Haacute quem lhes chame ldquoadivinhosrdquo ignorando por completo que eles interpretam revelaccedilotildees e apariccedilotildees por meio de enigmas e de modo algum satildeo adivinhos pelo que seraacute mais justo chamar-lhes ldquoprofetas de assuntos divinatoacuteriosrdquo

Eacute por isto que a natureza do fiacutegado eacute assim e foi graccedilas agrave divinaccedilatildeo que lhe foi atribuiacutedo este lugar que descrevemos Aleacutem disso eacute ainda enquanto cada criatura estaacute viva que este oacutergatildeo fornece os sinais mais visiacuteveis jaacute que depois de lhe ter sido privada a vida torna-se cego e os sinais que fornece satildeo muito obscuros para terem uma significaccedilatildeo evidente Mas a estrutura do oacutergatildeo vizinho240 e o facto de o lugar desta entranha ser agrave esquerda eacute em favor do fiacutegado para o manter sempre brilhante e limpo como se fosse um trapo de limpar o espelho que estaacute sempre agrave matildeo e disponiacutevel para ser utilizado Por isso sempre que por causa de uma doenccedila do corpo se geram impurezas junto do fiacutegado a porosidade do baccedilo depura-as e absorve-as todas pois eacute feito de uma trama permeaacutevel e exangue Daiacute que quando fica preenchido por aquilo que filtra aumenta de tamanho e fica ulcerado poreacutem quando o corpo eacute purgado diminui de tamanho e retoma a sua forma original

Portanto no que diz respeito agrave alma se noacutes falaacutemos com verdade sobre a sua parte mortal sobre a divina de que modo com a colaboraccedilatildeo de quecirc e por que razatildeo obrigatoriedade de o filoacutesofo procurar cumprir a maacutexima deacutelfica ldquoconhece-te a ti mesmordquo

240 O baccedilo

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foi estabelecida separadamente somente o poderemos afirmar com certeza depois de um deus o confirmar Que o que noacutes dissemos eacute verosiacutemil devemos arriscar a declaraacute-lo agora e mais ainda quando reflectirmos sobre essa mateacuteria E declaremo-lo entatildeo

De acordo com os mesmos pressupostos devemos abordar agora o que se segue como foi gerado o resto do corpo Seraacute mais adequado seguir este raciociacutenio em vez de qualquer outro para explicar a sua constituiccedilatildeo Os que constituiacuteram a nossa espeacutecie estavam a par da licenciosidade que haveria em noacutes em relaccedilatildeo agrave bebida e agrave comida e que por causa da gula consumiriacuteamos muito mais do que a medida necessaacuteria Para que natildeo tiveacutessemos uma morte raacutepida por causa das doenccedilas e para que a espeacutecie dos mortais ainda incompleta natildeo acabasse de imediato ndash uma vez previstas estas coisas ndash os deuses estabeleceram o chamado baixo ventre como receptaacuteculo da bebida e da comida supeacuterfluas e enrolaram em volta dele os intestinos para que os alimentos natildeo passassem pelo corpo rapidamente e isso obrigasse a que ele tivesse necessidade de outro alimento tornando-se insaciaacutevel Por causa da gula a espeacutecie humana tornar-se-ia completamente estranha agrave filosofia e agraves Musas e seria desobediente agrave parte mais divina que haacute em noacutes

No que respeita aos ossos agrave carne e agrave natureza deste tipo de elementos orgacircnicos eis o que se passou Para todas as estruturas o ponto de partida foi a geraccedilatildeo da medula De facto os laccedilos da vida desde que a alma estaacute unida ao corpo foram presos a ela e constituiacuteram a raiz da espeacutecie mortal mas a medula em si foi gerada

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a partir de outras substacircncias Com efeito de entre os triacircngulos os primeiros em regularidade e lisura que em virtude da sua precisatildeo eram mais capazes de produzir fogo aacutegua ar e terra o deus escolheu-os separadamente dos outros geacuteneros misturou-os uns com os outros na medida certa concebendo uma mistura de sementes para todo a espeacutecie mortal e produziu a medula a partir deles Em seguida plantou e aprisionou nela os geacuteneros de alma e na sua distribuiccedilatildeo inicial dividiu imediatamente a medula em figuras equivalentes em nuacutemero e qualidade aos das figuras que estava destinado que cada espeacutecie tivesse Depois moldou em forma de ciacuterculo perfeito essa parte da medula a qual semelhante a um terreno lavrado havia de receber a semente divina e chamou-lhe ldquoenceacutefalordquo de tal forma que quando cada ser-vivo estivesse acabado o recipiente que o contivesse seria a cabeccedila Aquilo que era suposto conter o resto da alma (a sua parte mortal) dividiu-o em figuras redondas e ao mesmo tempo alongadas a este conjunto deu o nome ldquomedulardquo e lanccedilando a partir delas os laccedilos de toda a alma como a partir de acircncoras formou em torno dela todo o nosso corpo tendo primeiro construiacutedo agrave volta de todo o conjunto uma protecccedilatildeo feita de osso

Quanto agrave constituiccedilatildeo do osso ela processou-se do seguinte modo depois de ter peneirado terra pura e lisa misturou-a e humedeceu-a com medula em seguida pocirc-la no fogo depois mergulhou-a em aacutegua pocirc-la novamente no fogo e outra vez em aacutegua Repassando-a vaacuterias vezes deste modo num e noutro tornou-a impassiacutevel de ser dissolvida por ambos Foi desta mistura

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que se serviu para tornear uma esfera oacutessea agrave volta da cabeccedila na qual deixou ficar uma saiacuteda estreita Em redor da medula do pescoccedilo e do dorso estendeu as veacutertebras semelhantes a gonzos que moldou a partir da mesma mistura comeccedilando pela cabeccedila e atravessando todo o dorso Cercou toda a semente para deste modo a manter a salvo com uma vedaccedilatildeo peacutetrea onde criou articulaccedilotildees servindo-se das propriedades do Outro que colocou no meio deles em virtude do movimento e da flexibilidade Mas prevendo que a condiccedilatildeo da natureza oacutessea seria mais fragmentaacutevel do que devia ser e muito inflexiacutevel ndash se fosse aquecida e novamente arrefecida gangrenaria rapidamente ndash e que a semente dentro dela se destruiria concebeu deste modo e por estes motivos o geacutenero dos tendotildees e da carne para que unindo todos os membros com os tendotildees que distendem e contraem em torno das veacutertebras o corpo se pudesse dobrar e estender A carne seria uma protecccedilatildeo contra as queimaduras e um obstaacuteculo para o frio e ainda para as quedas semelhante a uma almofada que cede de forma mole e suave ao peso dos corpos Por conter dentro de si proacutepria uma humidade quente que durante o Veratildeo seria exsudada produziria no exterior de todo o corpo uma agradaacutevel frescura e durante o Inverno novamente por meio deste fogo repeliria adequadamente as investidas do frio que o cerca do exterior Tendo isto em consideraccedilatildeo aquele que nos moldou como se trabalhasse a cera fez uma mistura e uma combinaccedilatildeo harmoniosa de aacutegua fogo e terra aos quais acrescentou um fermento composto de

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aacutecido e de sal e constituiu a carne mole e suculenta No que respeita agrave natureza dos tendotildees de osso e

de carne sem fermento misturou-os num soacute composto com propriedades intermeacutedias agravequeles dois servindo-se da cor amarela Daiacute que os tendotildees apresentem a propriedade de serem mais compactos e viscosos do que a carne mas mais moles e huacutemidos do que os ossos Com eles o deus envolveu os ossos e a medula depois de ter unido os ossos uns com os outros aos tendotildees de seguida cobriu todos eles com carne por cima Os ossos que continham mais alma envolveu-os com muito menos carne e os que tinham menos alma dentro de si envolveu-os com muita e mais compacta Junto agraves articulaccedilotildees dos ossos onde a razatildeo241 mostrava que natildeo havia qualquer necessidade de carne ele fez crescer a carne com pouca espessura para que os corpos natildeo se fizessem difiacuteceis de carregar e se tornassem avessos ao movimento pois impediriam as flexotildees e por outro lado para que as carnes abundantes e excessivamente densas compactadas umas com as outras natildeo causassem insensibilidade em virtude da sua firmeza nem fizessem os corpos muito avessos agrave memoacuteria e torpes de pensamento242 Eacute por isso que as coxas as pernas e a zona das ancas os ossos da zona do braccedilo e do antebraccedilo e todos os que em noacutes satildeo desprovidos de articulaccedilatildeo isto eacute todos os ossos que por terem pouca alma na sua medula satildeo vazios de pensamento243 todas estas zonas estatildeo completamente preenchidas de carne Pelo contraacuterio as partes com

241 logos242 dysmnecircmoneutotera kai kocircphotera ta peri tecircn dianoian243 phronecircsis

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pensamento tecircm menos carne ndash excepto quando o deus constituiu alguma parte de carne autoacutenoma por causa dos sentidos como a espeacutecie da liacutengua por exemplo mas na maior parte dos casos passou-se daquele modo Eacute que a natureza gerada da Necessidade e por ela criada de modo algum admite ao mesmo tempo uma estrutura oacutessea compacta muita carne e acuidade sensorial Mais do que todas seria a estrutura que circunda a cabeccedila que teria estes atributos contanto que elas pudessem ocorrer ao mesmo tempo e por outro lado se o geacutenero dos homens tivesse uma cabeccedila coberta de carne e tendotildees ndash isto eacute forte ndash granjearia uma vida duas ou mais vezes maior mais saudaacutevel e mais livre de dores do que agora Nesse momento os demiurgos da nossa geraccedilatildeo ao reflectirem sobre se o geacutenero que estavam para criar havia de ter uma vida mais longa e pior se uma mais breve e melhor e decidiram que por todos os motivos deviam preferir uma vida mais curta que fosse melhor a uma mais longa que seria mais trivial Daiacute que natildeo tenham recobrido a cabeccedila com carne e tendotildees mas sim com um osso fino pois ela natildeo se destinava a fazer qualquer flexatildeo Foi por todas estas razotildees que a cabeccedila aplicada a todos os homens eacute mais proacutepria para sentir e mais dada ao pensamento e por outro lado muito fraacutegil No que respeita aos tendotildees foi deste modo e por estes motivos que o deus os pocircs em ciacuterculo ao fundo da cabeccedila colando-os uniformemente agrave volta do pescoccedilo e lhes uniu as extremidades dos maxilares por baixo da natureza do rosto Quanto aos outros distribuiu-os por todos os membros unindo cada articulaccedilatildeo agrave sua articulaccedilatildeo contiacutegua

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Em relaccedilatildeo agraves propriedades da nossa boca foi com vista ao que eacute necessaacuterio e melhor que aqueles que a apetrecharam a apetrecharam de dentes liacutengua e laacutebios segundo a forma como hoje estaacute disposta concebendo a entrada com vista agrave necessidade e a saiacuteda com vista ao melhor eacute que tudo quanto entra dado ao corpo como alimento diz respeito ao necessaacuterio e o fluxo de palavras que corre para o exterior e auxilia o pensamento244 eacute o mais belo e excelente de todos os fluxos

Natildeo era possiacutevel deixar a cabeccedila calva soacute com o osso por causa das intempeacuteries de cada uma das estaccedilotildees nem por outro lado consentir que ela ficasse oculta por uma massa de carne que a tornaria muda e insensiacutevel Como a natureza do que tem carne natildeo secasse foi separada dela uma grande camada superficial a que agora chamamos pele Esta camada em virtude da humidade que circunda o ceacuterebro uniu-se a si mesma e propagou-se em ciacuterculos ateacute que cobriu a cabeccedila a humidade que irrompia sob as costuras irrigou-a e encerrou a camada no cume da cabeccedila como se tivesse dado um noacute Haacute variadas formas de sutura em funccedilatildeo da acccedilatildeo das oacuterbitas da alma e do alimento essas suturas satildeo em maior nuacutemero quando essas forccedilas se opotildeem muito umas agraves outras e em menor quando se opotildeem menos Atraveacutes do fogo a divindade perfurou toda a pele em ciacuterculos e as secreccedilotildees eram expelidas ao passarem pela pele para o exterior tudo quanto fosse huacutemido e quente em estado puro saiacutea Por outro lado a mistura constituiacuteda pelos mesmos elementos que a pele

244 phronecircsis

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elevou-se pelo movimento e estendeu-se muito para fora pois tinha uma finura igual agrave das perfuraccedilotildees Mas em virtude da sua lentidatildeo foi empurrada novamente do exterior para o interior pelo ar circundante Encheu a pele e ganhou raiacutezes debaixo dela

Foi por causa destes fenoacutemenos que nasceu na pele o geacutenero do cabelo fibroso e congeacutenere da pele mas mais soacutelido e mais denso por causa da compressatildeo provocada pelo arrefecimento esse processo de compressatildeo ocorre quando cada cabelo eacute separado da pele e arrefece Foi deste modo que aquele que nos fez produziu uma cabeccedila cabeluda servindo-se das causas que referimos por considerar que em vez de carne era necessaacuterio haver uma cobertura agrave volta do ceacuterebro (tendo em vista a sua seguranccedila) que fosse leve e capaz de lhe garantir sombra no Veratildeo e abrigo no Inverno sem que se gerasse qualquer obstaacuteculo que impedisse a capacidade sensorial No local agrave volta dos dedos onde se entrecruza o tendatildeo a pele e o osso a mistura destes trecircs quando secou por completo deu origem a uma uacutenica pele dura que reunia todos os outros ndash fabricada com estas causas acessoacuterias mas produzida com o pensamento como causa principal245 e tendo em vista aqueles que viriam a seguir Eacute que aqueles que nos constituiacuteram tinham conhecimento de que um dia as mulheres e os outros animais selvagens seriam gerados a partir dos homens e tambeacutem sabiam que muitas dessas criaturas teriam que se servir das garras para muitos fins daiacute que ao mesmo tempo que eram gerados os homens

245 tecirc de aitiocirctatecirc dianoia eirgasmenon

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eles fizeram um esboccedilo das garras Foi deste modo e por estes motivos que criaram a pele os pecirclos e as unhas nas extremidades dos membros

Logo que todas as partes e todos os membros do ser-vivo mortal ficaram naturalmente combinados seria forccediloso que este tivesse uma vida exposta ao fogo e ao ar Visto que ele seria consumido e desgastado e por causa disso pereceria entatildeo os deuses conceberam um auxiacutelio para ele Criaram uma natureza congeacutenita da humana tendo misturado outras sensaccedilotildees com outras figuras de modo a que resultasse um outro ser Trata-se das aacutervores das plantas e das sementes actualmente educadas entre noacutes e domesticadas pela agricultura poreacutem antigamente existiam somente geacuteneros bravios os quais eram mais velhos do que os dos nossos dias A tudo quanto participe da vida podemos chamar-lhe correctamente ser-vivo segundo parece Poreacutem esta espeacutecie de que falamos participa da terceira forma de alma246 que estaacute estabelecida entre o diafragma e o umbigo como dissemos e nada tem que ver com a opiniatildeo com o raciociacutenio ou com o intelecto mas sim com a sensaccedilatildeo de prazer ou de dor que acompanha os apetites247 De facto manteacutem-se passiva em relaccedilatildeo a tudo rodando ela proacutepria em si mesma e em torno de si mesma248 repelindo o movimento do exterior e fazendo

246 Trata-se da parte apetitiva (epithymia)247 Ao fazer derivar a alma das plantas da terceira forma de

alma Timeu justifica assim o facto de os seres vegetais estarem desprovidos de pensamento ainda que sejam duais

248 Tambeacutem no Fedro (245c-d) eacute sublinhado o movimento da alma em torno de si mesma

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uso do que eacute seu congeacutenere pois a sua geraccedilatildeo natildeo lhe permitiu perceber por natureza nada de si proacutepria nem raciocinar Por isso ainda que tenha vida e natildeo seja nada senatildeo um ser-vivo manteacutem-se estaacutetica e enraizada privada de movimento proacuteprio

Depois de os seres mais poderosos plantarem todos estes geacuteneros como alimento para os mais fracos (noacutes) equiparam o nosso proacuteprio corpo com canais tal como se talham regos nos jardins para que fosse como que irrigado por uma torrente que o inunda Primeiro talharam dois canais escondidos por baixo do ponto onde se juntam a pele e a carne os vasos sanguiacuteneos dorsais249 (que satildeo dois) porque acontece que o corpo eacute duplo tem um lado direito e um esquerdo Lanccedilaram estes vasos sanguiacuteneos ao longo da coluna encerrando entre eles a medula geratriz250 para que se desenvolvesse ao maacuteximo e fluindo em abundacircncia dali para os outros locais a corrente gerada pudesse providenciar uma irrigaccedilatildeo uniforme Em seguida dividiram os vasos sanguiacuteneos agrave volta da cabeccedila e enlaccedilaram as extremidades de modo a ficarem enrolados uns nos outros flectindo os do lado direito para o lado esquerdo do corpo e os do lado esquerdo para o lado direito de modo a que fizessem uma ligaccedilatildeo com a pele entre a cabeccedila e o corpo jaacute que esta natildeo estava envolvida com tendotildees em ciacuterculo no topo e para que todo o corpo distinguisse o efeito das sensaccedilotildees provenientes de cada uma das partes

249 A arteacuteria aorta e a veia cava (inferior e superior)250 Espinal medula

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Logo de seguida os deuses prepararam a irrigaccedilatildeo da forma que se segue perceberemo-la mais facilmente se concordarmos de antematildeo com isto todos os corpos constituiacutedos a partir de partiacuteculas mais pequenas satildeo impermeaacuteveis aos de partiacuteculas maiores e os de partiacuteculas maiores natildeo conseguem ser impermeaacuteveis aos de partiacuteculas mais pequenas de todos os geacuteneros o fogo eacute o que eacute constituiacutedo por partiacuteculas mais pequenas daiacute que atravesse a estrutura da aacutegua da terra e do ar enquanto nada eacute impermeaacutevel a ele Devemos ter em mente que se passa o mesmo com o nosso abdoacutemen251 quando a comida e a bebida caem dentro dele ficam retidos no entanto o sopro respiratoacuterio e o fogo natildeo conseguem pois satildeo constituiacutedos por partes mais pequenas do que as da constituiccedilatildeo do abdoacutemen Portanto o deus serviu-se deles para fazer a irrigaccedilatildeo desde o toacuterax ateacute aos vasos sanguiacuteneos tecendo uma tranccedila de ar e de fogo semelhante a uma nassa252 com dois funis agrave entrada e fez um desses dois bifurcado a partir destes funis estendeu uma espeacutecie de junco em ciacuterculos por toda a tranccedila ateacute agraves extremidades Todo o interior do entranccedilado era constituiacutedo por fogo enquanto que os funis e o invoacutelucro tinham a forma do ar Pegando nele colocou-o da seguinte forma no interior do ser-vivo que moldava Um dos funis largou-o na boca Como esse era o bifurcado esticou uma das ramificaccedilotildees ateacute ao pulmatildeo pela traqueia abaixo e a outra ateacute ao abdoacutemen ao longo da

251 koilia Este termo designa toda a cavidade toraacutexica que inclui os sistemas digestivo e respiratoacuterio

252 Uma espeacutecie de camaroeiro utilizado pelos pescadores para reter o peixe

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traqueia a outra dividiu-a e fez passar cada uma das duas partes em conjunto pelos canais do nariz de tal forma que visto que a segunda natildeo passa pela boca todos os fluxos daquela satildeo cumpridos por esta Quanto ao resto da nassa o invoacutelucro ele fecirc-la crescer agrave volta de toda a cavidade do nosso corpo e fez tudo de forma a que umas vezes todo ele fluiacutesse docemente pelos funis ndash os quais satildeo feitos de ar ndash e outras vezes os funis se esvaziassem Visto que o corpo eacute permeaacutevel fez por outro lado que a tranccedila entrasse por ele e novamente saiacutesse Jaacute os raios de fogo encerrados dentro dele eles seguiriam o ar de um lado para o outro e isto natildeo cessaria enquanto o ser-vivo mortal mantivesse a sua constituiccedilatildeo Foi por isso que aquele que estabeleceu as designaccedilotildees se referiu a isto pondo-lhes os nomes ldquoinspiraccedilatildeordquo e ldquoexpiraccedilatildeordquo Todas estas acccedilotildees e impressotildees foram geradas no nosso corpo para que ele sendo irrigado e refrescado se alimentasse e vivesse Eacute que sempre que a respiraccedilatildeo se dirige de dentro para fora e de fora para dentro o fogo unido ao seu interior segue-a Neste constante vaiveacutem entra pelo abdoacutemen e apropria-se da comida e da bebida dissolve-os dividindo-os em pequenas partes leva-os pelos poros por onde se desloca e despeja-os nos vasos sanguiacuteneos como a aacutegua de uma fonte em canais e faz fluir pelo corpo as torrentes dos vasos sanguiacuteneos como num aqueduto

Vejamos novamente as impressotildees da respiraccedilatildeo e de que causas se serve para ser do modo como eacute agora Passa-se o seguinte quando jaacute natildeo haacute nenhum vazio em que possa entrar alguma das coisas que se movimentam

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e como o sopro respiratoacuterio sai de dentro de noacutes o que se sucede eacute evidente para todos ele natildeo vai para o vazio mas empurra o ar que estaacute proacuteximo de si para fora do seu lugar este ao ser empurrado desloca incessantemente o ar proacuteximo de si e de acordo com esta necessidade todo ele se desloca num movimento circular em direcccedilatildeo ao lugar de onde sai o sopro respiratoacuterio Entra nesse lugar e preenche-o seguindo o sopro respiratoacuterio E tudo isto ocorre em simultacircneo semelhante ao girar de uma roda por natildeo existir qualquer vazio Eacute por isso que a zona do peito e do pulmatildeo quando expele o sopro respiratoacuterio para o exterior fica novamente cheia do ar que circunda o corpo pois este entra atraveacutes da carne porosa e circula dentro dele quando o ar regressa e se dirige para o exterior atraveacutes do corpo forccedila o ar inspirado a entrar pela passagem das narinas e pela boca Devemos estabelecer que a causa deste princiacutepio eacute a seguinte em todos os seres vivos as partes interiores que circundam o sangue e os vasos sanguiacuteneos satildeo as mais quentes como se dentro do proacuteprio corpo houvesse uma fonte de fogo foi isto que comparaacutemos agrave tranccedila da nassa quando foi dito que toda ela estava entretecida com fogo no centro e as outras partes do exterior com ar Portanto devemos admitir que o que eacute quente se dirige por natureza para o exterior em direcccedilatildeo ao lugar de que eacute congeacutenere Como haacute duas saiacutedas ndash uma atraveacutes do corpo para o exterior outra atraveacutes das boca e das narinas ndash quando corre para uma empurra o ar em ciacuterculos na outra o ar empurrado em ciacuterculos choca contra o fogo e eacute aquecido o que sai eacute arrefecido Agrave medida que se daacute o intercacircmbio de calor

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e o ar que transita pela outra saiacuteda fica mais quente este por ser mais quente eacute o que estaacute mais inclinado a voltar agravequela saiacuteda movimentando-se por natureza na sua direcccedilatildeo empurra em ciacuterculos o ar que vai para a outra Por receber sempre os mesmos impulsos e reagir sempre da mesma maneira ao oscilar de um lado para o outro e ao produzir este movimento circular provoca por meio desta duplicidade a formaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo e expiraccedilatildeo

Devemos em igual medida procurar tambeacutem a explicaccedilatildeo para os efeitos relacionados com as ventosas medicinais253 com a degluticcedilatildeo e com os projeacutecteis ndash quer os que satildeo lanccedilados para o ar quer os que satildeo lanccedilados para a terra ndash e tambeacutem de todos os sons raacutepidos ou lentos que nos aparecem como agudos e graves os quais recebemos como estando desprovidos de harmonia por causa da dissemelhanccedila do movimento que geram em noacutes ou como sendo harmoniosos em virtude da semelhanccedila De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento Contudo quando os apanham natildeo lhes incutem um outro movimento que os transtorne Ao ajustar a origem do movimento mais lento e o termo do mais raacutepido quando este estaacute a abrandar na altura em que atingiu a semelhanccedila o deus misturou o agudo e o grave em conjunto numa

253 Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1004D-1006D) fornece uma explicaccedilatildeo pormenorizada deste meacutetodo terapecircutico

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soacute impressatildeo daiacute que cause prazer aos insensatos e boa-disposiccedilatildeo aos intelectuais254 por representar a harmonia divina em movimentos mortais

O mesmo se passa com todos os fluxos de aacutegua a queda de raios as maravilhas da atracccedilatildeo do acircmbar e da pedra de Heacuteracles255 A atracccedilatildeo natildeo interveacutem de qualquer modo em nenhum de todos estes objectos mas seraacute evidente para quem os investigar adequadamente que eacute por causa destes acidentes (em virtude de natildeo existir o vazio e de eles se empurrarem em ciacuterculos entre si por vezes separando-se e por vezes combinando-se trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes eacute proacuteprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenoacutemenos admiraacuteveis

Tambeacutem o processo de respiraccedilatildeo a partir de onde este discurso comeccedilou eacute gerado de acordo com estes pressupostos e pelas mesmas causas como foi dito em discursos anteriores256 O fogo desfaz os alimentos e eacute elevado dentro de noacutes ao acompanhar o sopro respiratoacuterio e por meio dessa oscilaccedilatildeo enche os vasos sanguiacuteneos desde o abdoacutemen irrigando-os com o que nele desfez eacute por isto que em todos os seres-vivos a corrente de alimentos circula deste modo por todo o corpo Estas partiacuteculas acabadas de ser cortadas das suas congeacuteneres umas de frutas outras de vegetais que o deus plantou para noacutes com esta finalidade ndash ser alimento

254 Este duplo efeito da muacutesica em funccedilatildeo da natureza do ouvinte fora jaacute abordado em 47d

255 Magnetite Esta concepccedilatildeo eacute tambeacutem atribuiacuteda a Empeacutedocles (DK 31A89)

256 Cf supra 79a-e

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ndash assumem cores variadas por terem sido misturadas conjuntamente poreacutem o encarnado eacute a cor que mais as envolve pois consiste na aparecircncia produzida no liacutequido pelo corte do fogo Daiacute que o fluido que corre pelo nosso corpo ndash a que chamamos ldquosanguerdquo e que eacute o alimento da carne e da totalidade do corpo graccedilas ao qual cada parte irrigada enche o siacutetio que se esvazia ndash tenha a cor e o aspecto que descrevemos O mecanismo de enchimento e esvaziamento eacute gerado tal como o movimento de todo o universo foi gerado segundo o qual tudo o que eacute seu congeacutenere se movimenta em direcccedilatildeo a si proacuteprio Aquilo que nos rodeia no exterior dissolve-nos e decompotildee-nos incessantemente remetendo cada espeacutecie para aquilo que lhe eacute aparentado mas as partiacuteculas de sangue fragmentadas dentro de noacutes e envolvidas pela estrutura de cada um dos seres-vivos como por um ceacuteu satildeo obrigadas a imitar o movimento do universo como cada uma das partiacuteculas divididas dentro de noacutes se dirige ao que eacute nosso congeacutenere o vazio deixado eacute novamente preenchido Quando desprendem mais do que recebem todos os seres perecem mas quando desprendem menos crescem No tempo em que toda a estrutura do ser-vivo eacute jovem quando os seus triacircngulos satildeo novos como acabados de acabados de sair da oficina257 mantecircm-se resistentes e coesos mutuamente embora todo o corpo seja uma composiccedilatildeo delicada visto que foi acabada de gerar a partir da medula e alimenta-se de leite Quanto aos triacircngulos que envolve em si mesma e que provecircm do exterior (aqueles de que se hatildeo-de formar o alimento

257 Metaacutefora importada de Aristoacutefanes (Tesmofoacuterias 52)

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e a bebida) por serem mais velhos e mais fraacutegeis do que os triacircngulos dela domina-os e corta-os com os seus que satildeo novos e o ser-vivo faz-se maior por ser alimentado por muitas substacircncias semelhantes258 Mas quando o sustentaacuteculo dos triacircngulos relaxa em virtude de eles terem disputado muitos confrontos durante muito tempo e contra muitos inimigos eles jaacute natildeo conseguem cortar e assimilar nenhum dos triacircngulos do alimento que entram mas pelo contraacuterio os seus satildeo facilmente divididos pelos que entram do exterior ndash todo o ser-vivo perece ao ser deste modo dominado e a esta impressatildeo chamamos ldquovelhicerdquo Por fim quando os elos dos triacircngulos que estatildeo unidos em torno da medula jaacute natildeo aguentam e satildeo separados pelo esforccedilo desprendem os laccedilos da alma que ao ser libertada de acordo com a natureza desvanece-se de forma apraziacutevel eacute que tudo o que acontece em desacordo com a natureza eacute doloroso mas o que se gera de forma natural eacute agradaacutevel Por isso de acordo com este pressuposto a morte eacute dolorosa e violenta se for causada por ferimentos ou decorrente de doenccedilas e a morte que ocorre na sequecircncia da velhice ndash de que eacute por natureza o culminar ndash eacute a menos penosa e tem mais prazer do que dor

De onde provecircm as doenccedilas isso eacute evidente para todos Visto que o corpo eacute composto de quatro elementos ndash terra fogo aacutegua e ar ndash uma doenccedila eacute gerada pelo excesso ou pela falta (contra a natureza) de algum deles ou por uma mudanccedila de lugar quando um elemento

258 A ideia de que as substacircncias se alimentam daquilo que lhes eacute afim seraacute tambeacutem partilhada por Aristoacuteteles (Sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo 333a36-b16)

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abandona o lugar que lhe corresponde por natureza para ocupar um que lhe eacute estranho ou entatildeo pois acontece que existe mais do que um geacutenero de fogo e de outros elementos quando um deles toma para si mesmo algo que natildeo lhe eacute adequado ndash todos os fenoacutemenos desta natureza provocam distuacuterbios e doenccedilas Quando cada um deles eacute gerado ou deslocado contra a natureza torna-se quente o que outrora fora frio o que eacute seco vai tornar-se huacutemido o que eacute leve torna-se pesado e eles sofrem toda a espeacutecie de mudanccedilas Eacute que segundo dizemos soacute se o mesmo for adicionado ou subtraiacutedo ao mesmo na mesma medida e da mesma maneira segundo a proporccedilatildeo correcta eacute que o mesmo poderaacute ser ele proacuteprio satildeo e saudaacutevel mas aquele que transgredir algum destes limites separando-se ou adicionando-se produziraacute todo o tipo de alteraccedilotildees doenccedilas e destruiccedilotildees incontaacuteveis

Visto que foram constituiacutedas estruturas secundaacuterias de acordo com a natureza haacute uma segunda ordem de consideraccedilotildees a fazer sobre as doenccedilas por aquele que quer percebecirc-las Eacute que a medula o osso a carne e o tendatildeo satildeo compostos a partir daquelas estruturas ndash tambeacutem o sangue embora de um modo diferente foi gerado a partir dos mesmos elementos A maioria das doenccedilas sobreveacutem do modo que foi descrito mas com as mais graves de entre elas as mais difiacuteceis de suportar passa-se o seguinte quando a geacutenese daquelas estruturas sofre uma inflexatildeo em relaccedilatildeo ao que lhe eacute natural elas corrompem-se De acordo com a natureza a carne e os tendotildees satildeo gerados a partir do sangue ndash os

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tendotildees a partir das fibras de natureza idecircntica agrave sua e a carne a partir do coaacutegulo que se forma quando se separa das fibras A partir dos tendotildees e da carne escorre uma substacircncia viscosa e brilhante que cola a carne agrave natureza dos ossos e ao alimentar os ossos que estatildeo em torno da medula faacute-lo crescer enquanto que o geacutenero mais puro mais liso e mais brilhante dos triacircngulos ao ser filtrado pela espessura dos ossos e liquefeito vai pingando dos ossos e irriga a medula Quando cada etapa se processa desta maneira surge em grande parte dos casos a sauacutede mas ocorre a doenccedila quando se passa o contraacuterio Eacute que quando a carne se liquefaz e inversamente expele para os vasos sanguiacuteneos o resultado da dissoluccedilatildeo entatildeo nos vasos sanguiacuteneos fica muito sangue diacutespar pois estaacute multiplamente alterado por cores e azedumes e ainda por propriedades aacutecidas e salinas aleacutem de que conteacutem toda a espeacutecie de biacutelis259 soros e fleumas Depois de todos serem reconstituiacutedos e corrompidos comeccedilam por deteriorar o proacuteprio sangue e sem que eles forneccedilam qualquer alimento ao corpo circulam por todo lado atraveacutes dos vasos sanguiacuteneos sem obedecerem agrave ordem natural das oacuterbitas hostis a si mesmos por natildeo retirarem qualquer proveito de si proacuteprios e inimigos das estruturas do corpo que se mantecircm no lugar que lhes compete as quais por seu turno deterioram e dissolvem

Quando a parte da carne que se vai dissolver eacute muito velha torna-se difiacutecil de assimilar entatildeo eacute enegrecida

259 Haacute dois tipos de biacutelis a branca e a negra (cf infra 82e 83c)

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por um incecircndio prolongado e por ser completamente consumida torna-se amarga e ataca de forma terriacutevel por todo o corpo ndash mesmo aquilo que ainda natildeo foi consumido Por vezes quando a parte amarga eacute reduzida a partes mais pequenas em vez de amargor a cor negra faz-se acompanhar de acidez outras vezes quando o amargor eacute mergulhado no sangue adquire uma cor mais avermelhada e como o negro se mistura com ele adquire a cor biliosa ou ainda a cor amarela mistura-se com o azedume quando a carne nova eacute dissolvida com a chama do fogo E o nome comum a todas as substacircncias desta natureza eacute ldquobiacutelisrdquo atribuiacutedo por alguns meacutedicos ou por algueacutem que eacute capaz de observar muitas coisas dissemelhantes e de identificar entre todas elas um geacutenero uacutenico merecedor de uma designaccedilatildeo comum Quanto a todos os outros fluidos que dizemos serem formas de biacutelis cada um tem uma designaccedilatildeo proacutepria em funccedilatildeo da sua cor No que respeita ao soro eacute brando quando se trata da parte aquosa do sangue mas eacute rude quando se trata da biacutelis negra e aacutecida porque se mistura por meio do calor com uma potecircncia salgada ao que eacute misturado deste modo chama-se ldquofleuma aacutecidardquo Aquilo que combinado com o ar resulta da dissoluccedilatildeo de carne nova e tenra isto eacute quando eacute preenchida por ar e envolvida por liacutequido e quando se constituem bolhas a partir deste processo ndash cada uma delas torna-se invisiacutevel em virtude da sua pequenez mas o conjunto apresenta-se como uma massa visiacutevel que por gerar espuma tem uma cor branca aos nossos olhos ndash dizemos que toda esta dissoluccedilatildeo de carne tenra entretecida com o sopro

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respiratoacuterio eacute fleuma branca A parte aquosa da fleuma constituiacuteda recentemente eacute o suor as laacutegrimas e tudo o mais que os corpos segregam todos os dias para se purificarem Todos eles se tornam agentes causadores de doenccedilas quando o sangue em vez de estar preenchido por comida e bebida de acordo com a natureza recebe uma massa de substacircncias que estatildeo em desacordo com as leis da natureza Mesmo que os vaacuterios tipos de carne sejam desfeitos pelas doenccedilas enquanto as suas fundaccedilotildees aguentarem a gravidade do problema seraacute meacutedia para elas ndash ainda eacute possiacutevel uma recuperaccedilatildeo com facilidade Mas se aquilo que liga a carne aos ossos chegar a adoecer e se ela proacutepria se separar simultaneamente das fibras e dos tendotildees e natildeo alimentar os ossos nem mantiver a ligaccedilatildeo entre a carne e os ossos e de brilhante lisa e viscosa passe a aacutespera salgada e ressequida por um regime prejudicial tudo o que eacute afectado deste modo eacute mais uma vez desagregado sob a carne e os tendotildees Ao separar-se dos ossos a carne eacute arrancada do sustentaacuteculo e deixa os tendotildees nus e cheios de salinidade ela proacutepria remetida novamente para o sangue torna ainda piores as doenccedilas de que falaacutemos anteriormente260

Mesmo que se trate de impressotildees graves para o corpo ainda mais graves satildeo as que se geram numa camada anterior quando o osso que em virtude da espessura da carne natildeo toma ar suficiente e eacute aquecido pelo bolor fica gangrenado natildeo recebe o alimento e segue pelo sentido contraacuterio desfazendo-se ele proacuteprio em alimento eacute remetido para a carne e a carne eacute

260 Cf supra 82e-83a

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remetida para o sangue o que produz doenccedilas todas elas mais severas do que as anteriores O caso mais extremo de todos daacute-se quando a natureza da medula adoece por falta ou excesso de algo o que provoca os maiores e mais poderosos distuacuterbios que podem levar agrave morte dado que toda a natureza do corpo eacute obrigada a fluir em sentido contraacuterio

Haacute uma terceira espeacutecie de doenccedilas que eacute necessaacuterio considerar as quais satildeo geradas a partir de trecircs causas do sopro respiratoacuterio da fleuma e da biacutelis Quando o pulmatildeo que eacute o controlador dos sopros respiratoacuterios no corpo natildeo consegue manter limpas as vias de saiacuteda que estatildeo bloqueadas por secreccedilotildees o sopro respiratoacuterio natildeo chega a certas partes mas chega a outras mais do que o necessaacuterio o que as faz apodrecer por natildeo conseguirem o arrefecimento enquanto que invadindo outros vasos sanguiacuteneos retorcendo-os e destruindo-os dissolve o corpo ateacute ao seu centro ndash laacute onde o diafragma o refreia e intercepta Por este motivo produz-se uma infinidade de distuacuterbios dolorosos muitas vezes acompanhados de uma abundacircncia de suores Frequentemente quando a carne eacute dissolvida forma-se ar dentro do corpo e eacute impossiacutevel levaacute-lo para o exterior o que causa os mesmos tormentos que quando vem do exterior Satildeo maiores quando o ar afecta os tendotildees e os vasos sanguiacuteneos mais proacuteximos e os faz inchar retesando deste modo para traacutes o extensor e os tendotildees contiacuteguos eacute desta tensatildeo e por este motivo que estas doenccedilas foram chamadas ldquoteacutetanordquo e ldquoopistoacutetonordquo261 Satildeo difiacuteceis de tratar e as febres que

261 opisthotonos Trata-se muito provavelmente do espasmo

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nelas tecircm origem satildeo o factor que leva agrave sua extinccedilatildeo A fleuma branca eacute dolorosa quando o ar das bolhas fica retido mas se for exalada para fora do corpo torna-se mais suave embora peje o corpo com erupccedilotildees brancas e crie distuacuterbios congeacuteneres Mas quando estaacute misturada com biacutelis negra e eacute difundida ateacute agraves oacuterbitas na cabeccedila que satildeo as mais divinas potildee-as em desordem quando acontece durante o sono eacute mais suave mas se se instala enquanto se estaacute acordado torna-se mais difiacutecil de nos vermos livres dela Enquanto distuacuterbio da parte divina eacute com toda a justiccedila que se lhe chama ldquosagradardquo262

A fleuma aacutecida e salgada eacute a fonte de todas as doenccedilas que o catarro gera mas em virtude de os lugares para os quais corre serem variados tomam todo o tipo de nomes Sempre que se diz que haacute uma inflamaccedilatildeo no corpo por causa de ele estar a arder e inflamado tudo isso eacute gerado pela biacutelis Quando ela encontra uma via respiratoacuteria para o exterior entra em ebuliccedilatildeo e expele todo o tipo de abcessos mas se ficar encerrada no interior cria muacuteltiplos distuacuterbios inflamatoacuterios e o mais grave ocorre quando ao misturar-se com o sangue puro altera a organizaccedilatildeo natural do geacutenero das fibras as quais estatildeo espalhadas pelo sangue para que este mantenha a relaccedilatildeo correcta entre fluidez e espessura e natildeo escorra

opistoacutetono (arqueamento suacutebito do corpo que faz projectar a cabeccedila e as pernas para traacutes) que consiste num dos sintomas do teacutetano ou de meningite No entanto o contexto parece sugerir que ldquoopistoacutetonordquo designaria a doenccedila em si e natildeo um sintoma

262 Timeu refere-se agrave epilepsia O facto de lhe chamar ldquosagradardquo deve-se a um tratado do Corpus Hippocraticum dedicado a esta doenccedila cujo tiacutetulo (Sobre a Doenccedila Sagrada) e conteuacutedo lhe apontam causas divinas

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pelos poros do corpo em virtude de ser liquefeito pelo calor nem por outro lado se mantenha sempre nos vasos sanguiacuteneos fluindo a custo por se tornar espesso As fibras graccedilas agrave sua constituiccedilatildeo natural preservam este equiliacutebrio mesmo depois de o sangue ter morrido e comeccedilar a arrefecer se juntarmos as fibras umas com as outras tudo o que resta do sangue fica liquefeito mas se deixarmos ficar as fibras como estatildeo rapidamente o sangue coagula com a colaboraccedilatildeo do frio circundante Como as fibras tecircm esta propriedade sobre o sangue a biacutelis (que por natureza tem a sua origem em sangue velho e volta novamente dissolvida da carne para o sangue) quando primeiro entra em estado liacutequido e quente em pequenas quantidades coagula por causa da propriedade das fibras enquanto coagula e arrefece agrave forccedila causa calafrios e arrepios no interior do corpo Mas quando corre em maior quantidade ao dominar as fibras com o calor que traz consigo sacode-as ateacute agrave desordem ao entrar em ebuliccedilatildeo e se for capaz de dominaacute-las por completo penetra na medula e depois de a incendiar desata daiacute os viacutenculos da alma como se fossem as amarras de um barco e solta-a para a liberdade No entanto quando vem em menor quantidade o corpo resiste a ser dissolvido e ela eacute dominada ou eacute dispersa por todo o corpo ou eacute forccedilada pelos vasos sanguiacuteneos a ir para a parte inferior ou para a parte superior do abdoacutemen Eacute entatildeo expulsa do corpo como os exilados de uma cidade em revolta porque causa diarreias e disenterias e todos os distuacuterbios dessa natureza Quando o corpo adoece sobretudo por um excesso de fogo produzem-se

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inflamaccedilotildees e febres constantes por um excesso de ar tem febres quotidianas por um excesso de aacutegua tem febres terccedilatildes pois a aacutegua eacute mais lenta do que o ar e do que o fogo e por um excesso de terra que eacute a quarta mais lenta deles o corpo eacute purgado durante um periacuteodo de tempo de quatro dias e criam-se febres quartatildes que custam muito a desaparecer

Eacute deste modo que se geram os distuacuterbios que afectam o corpo enquanto que os que afectam a alma e que resultam da condiccedilatildeo do corpo ocorrem do modo que se segue Temos que admitir que a doenccedila da alma eacute a demecircncia e haacute dois geacuteneros de demecircncia a loucura e a ignoracircncia A todas a impressotildees que algueacutem sofra e que englobem uma das duas devemos chamar ldquodoenccedilardquo Devemos tambeacutem estabelecer que os prazeres e as dores em excesso satildeo as mais graves das doenccedilas para a alma Eacute que quando um homem estaacute excessivamente contente ou pelo contraacuterio sofre por causa da dor apressando-se a arrebatar inoportunamente algum objecto ou a fugir do outro natildeo eacute capaz de ver nem de ouvir nada correctamente pois estaacute louco e a sua capacidade de participar do raciociacutenio encontra-se reduzida ao miacutenimo Aquele em quem se gera uma semente abundante que corre livremente pela medula como se fosse uma aacutervore com uma carga de frutos superior agrave medida estipulada pela natureza adquire repetidamente muacuteltiplas anguacutestias e muacuteltiplos prazeres nos seus apetites e nos frutos que nascem dessa condiccedilatildeo Torna-se louco durante a maior parte da vida por causa dos prazeres e dores extremos pois tem a alma doente e eacute mantida na

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insensatez por via do corpo ele eacute tido natildeo por doente mas por propositadamente mau263 A verdade eacute que esta licenciosidade em relaccedilatildeo aos prazeres sexuais eacute uma doenccedila da alma que se deve em grande medida a uma soacute substacircncia que por causa da porosidade dos ossos corre pelo corpo e humedece-o De um modo geral natildeo eacute correcto repreender tudo quanto respeita agrave incontinecircncia de prazeres e ao que eacute considerado digno de repreensatildeo como se os maus o fossem propositadamente ningueacutem eacute mau propositadamente pois o mau torna-se mau por causa de alguma disposiccedilatildeo maligna do corpo ou de uma educaccedilatildeo mal dirigida ndash estas satildeo inimigas de todos e acontecem contra a nossa vontade Novamente no que respeita agraves dores a alma adquire do mesmo modo uma grande quantidade de males atraveacutes do corpo Quando as fleumas aacutecidas e salinas e todos os sucos amargos e biliosos que vagueiam pelo corpo natildeo tomam um fluxo respiratoacuterio para o exterior mas ficam agraves voltas no interior se cruzam com o movimento da alma misturando com ela os seus proacuteprios vapores e introduzem na alma distuacuterbios de toda a espeacutecie mais ou menos graves em menor ou maior quantidade Faz-se transportar ateacute agraves trecircs regiotildees da alma e conforme qual delas ataquem pejam tudo de todas as formas e variedades de mau-humor de

263 Esta concepccedilatildeo assenta no famoso postulado platoacutenico segundo o qual a virtude eacute identificada com o conhecimento e inversamente o viacutecio com a ignoracircncia A sua formulaccedilatildeo eacute amplamente discutida um pouco por todo o corpus platoacutenico (Apologia de Soacutecrates 26a Goacutergias 467c-468c Leis 731c 734b 860d Protaacutegoras 345d-e 357c-e 358c-d Sofista 230a)

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desgosto e pejam tudo de audaacutecia de cobardia e ainda de esquecimento e dificuldade em aprender Aleacutem disto quando haacute homens assim mal constituiacutedos pelas cidades as instituiccedilotildees poliacuteticas264 e os discursos produzidos em privado ou em puacuteblico satildeo maus e quando ainda por cima natildeo existem ensinamentos aprendidos por estes homens desde a infacircncia que de nenhum modo curam destes males entatildeo todos os maus os tornaram maus por via de duas coisas completamente alheias agrave sua vontade Entre eles devemos lanccedilar a acusaccedilatildeo muito mais sobre os que concebem do que os que satildeo concebidos muito mais sobre os que educam do que os que satildeo educados Todavia devemos esforccedilar-nos na medida do possiacutevel atraveacutes da educaccedilatildeo e de haacutebitos de aprendizagem a fugir do mal e a alcanccedilar o seu contraacuterio Mas estes assuntos pertencem a outro tipo de discussatildeo265

No entanto eacute adequado proceder a reflexotildees inversas agravequelas por acccedilatildeo de que meios a sauacutede do corpo e do intelecto266 pode ser cuidada e conservada eacute mais justo atermo-nos a um discurso sobre o bem do que sobre o mal Tudo o que eacute bom eacute belo e o que eacute belo natildeo eacute assimeacutetrico267 estabeleccedilamos que um ser-vivo para ter estes atributos teraacute que ser simeacutetrico Mas entre essas simetrias reconhecemos e distinguimos as

264 politeia Sobre esta traduccedilatildeo do termo vide supra n 38265 O paralelo com a degeneraccedilatildeo dos regimes poliacuteticos no Livro

VIII da Repuacuteblica eacute inevitaacutevel266 dianoecircsis Neste contexto natildeo se trata da actividade

intelectiva mas sim e apenas do proacuteprio intelecto como faculdade que tal como o corpo deve ser exercitada e salvaguardada

267 Sobre a necessidade de algo belo ser simeacutetrico vide Filebo 64e-65a Repuacuteblica 402d

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pequenas enquanto que as mais importantes e as mais grandiosas mantemo-las indefinidas No que respeita agrave sauacutede e agrave doenccedila agrave virtude e agrave maldade natildeo haacute simetria ou assimetria maior do que a da proacutepria alma em relaccedilatildeo ao proacuteprio corpo natildeo temos nada disto em mente nem supomos que quando uma estrutura fraacutegil e pequena carrega uma alma forte e em tudo grandiosa e quando os dois satildeo unidos de acordo com a relaccedilatildeo inversa o conjunto do ser-vivo natildeo seraacute belo ndash eacute assimeacutetrico em relaccedilatildeo agraves simetrias principais No entanto quando estaacute na situaccedilatildeo inversa mostra a quem consegue ver a mais bela e mais agradaacutevel de todas as maravilhas Um corpo com as pernas demasiadamente compridas ou com qualquer outro excesso eacute em si mesmo simultaneamente aberrante e assimeacutetrico ao mesmo tempo quando conjuga esforccedilos provoca muitos sofrimentos muitas roturas e quedas em virtude do seu movimento cambaleante o que eacute uma causa de incontaacuteveis males para si proacuteprio

Devemos pensar o mesmo acerca do composto dual a que chamamos ser-vivo porque quando nele a alma por ser mais poderosa do que o corpo se apresenta irasciacutevel sacode-o violentamente e inunda-o todo de doenccedilas por todo o lado e consome-o quando se debruccedila intensamente sobre algum ensinamento ou investigaccedilatildeo quando ela se dedica agrave aprendizagem ou a discussotildees oratoacuterias em puacuteblico ou em privado agita-o e torna-o ardente nas disputas e rivalidades que se geram Ao induzir fluxos engana a maioria dos chamados meacutedicos e faacute-los responsabilizar as causas contraacuterias

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Quando um corpo demasiado grande e demasiado forte para a alma eacute congeminado com uma actividade intelectual268 diminuta e fraacutegil como nos homens existem dois tipos de apetites ndash um de alimento que proveacutem do corpo e outro de pensamento269 que proveacutem da parte mais divina que haacute em noacutes ndash e visto que os movimentos da parte mais poderosa dominam e aumentam o seu poder tornam a alma obtusa avessa agrave aprendizagem e privada de memoacuteria e produzem a pior doenccedila a ignoracircncia270 Haacute uma soacute salvaccedilatildeo para estas duas doenccedilas natildeo movimentar a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma para que defendendo-se um ao outro mantenham equiliacutebrio e sauacutede Por isso o matemaacutetico ou qualquer outra pessoa que se dedique intensamente a uma actividade intelectual271 deve compensaacute-la com o movimento do seu corpo associando-lhe ginaacutestica em sentido inverso aquele que molda o corpo cuidadosamente deve compensar com os movimentos da alma servindo-se da muacutesica e de tudo quanto diz respeito agrave filosofia se espera que se diga com justiccedila e correctamente que eacute simultaneamente belo e bom272 Eacute tambeacutem deste modo que devemos tratar estas partes imitando o padratildeo do universo

268 dianoia269 phronecircsis270 amathia ldquoIgnoracircnciardquo no sentido mais literal de ldquodificuldade

em aprenderrdquo271 dianoia272 Referecircncia ao homem kalos kagathos o estado de perfeiccedilatildeo

educativa discutido e desenvolvido em vaacuterios diaacutelogos (Protaacutegoras 315d Repuacuteblica 376c 396c Teeteto 185e)

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Na verdade o corpo eacute aquecido e arrefecido por aquilo que nele entra e novamente eacute seco e humedecido pelo que vem do exterior Ele eacute afectado por este duplo movimento e por aquilo que dele decorre Assim quando algueacutem abandona o corpo em repouso ao sabor destes movimentos eacute dominado e destruiacutedo por eles Mas se algueacutem imitar aquilo a que chamaacutemos ldquoama e sustento do universordquo273 antes de mais natildeo pode deixar de modo algum o corpo em repouso antes o deve manter sempre em movimento e imprimir-lhe uma certa agitaccedilatildeo constante o que o protegeraacute normalmente dos movimentos interiores e exteriores No entanto se agitarmos na justa medida as propriedades e as partes em desordem no corpo ordenaremos as partes umas em relaccedilatildeo agraves outras seguindo a disposiccedilatildeo que lhes eacute congeacutenere de acordo com o discurso que fizemos anteriormente sobre o universo274 impedindo que o inimigo sendo posto ao lado do inimigo crie guerras e doenccedilas para o corpo antes fazendo com que o amigo posto ao lado do amigo ofereccedila sauacutede O melhor dos movimentos do corpo eacute aquele que eacute produzido por ele proacuteprio e nele proacuteprio ndash pois eacute o movimento de natureza mais proacutexima do pensamento e do do universo ndash e os produzidos por outra coisa satildeo inferiores mas de todos o pior eacute aquele que por meio de causas externas move algumas partes de um corpo em repouso que se manteacutem estaacutetico Eacute por isso que entre as formas de purificaccedilatildeo e reforccedilo do corpo a melhor eacute a que se alcanccedila atraveacutes

273 Cf supra 52d-sqq274 Cf supra 53a-b 69b

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da ginaacutestica A segunda eacute a que se consegue atraveacutes das oscilaccedilotildees ritmadas nas viagens de barco ou noutro meio de transporte que nos mantenha livres de fadiga A terceira forma de movimento uacutetil para quem em certas alturas tenha extrema necessidade mas que natildeo deve ser empregue em nenhuma outra circunstacircncia por quem tenha bom-senso275 trata-se do tratamento meacutedico de purificaccedilatildeo farmacecircutica eacute que natildeo devemos irritar com faacutermacos as doenccedilas que natildeo constituem grandes perigos

Toda a estrutura das doenccedilas se assemelha de algum modo agrave natureza dos seres-vivos Eacute que a constituiccedilatildeo dos seres-vivos em todo o conjunto das espeacutecies tem uma duraccedilatildeo de vida preacute-definida e cada ser-vivo nasce com a existecircncia que lhe foi destinada agrave parte as impressotildees produzidas pela Necessidade pois desde a origem de cada um os triacircngulos conseguem guardar a propriedade que possuem de se manterem constituiacutedos ateacute um determinado tempo altura aleacutem da qual a vida natildeo pode de modo algum prolongar-se Passa-se o mesmo com a constituiccedilatildeo das doenccedilas quando algueacutem potildee fim a uma doenccedila por meio de faacutermacos antes da duraccedilatildeo que lhe foi destinada eacute frequente gerarem-se graves doenccedilas a partir de doenccedilas fracas e um grande nuacutemero a partir de poucas Por isso eacute que eacute necessaacuterio educar todas as manifestaccedilotildees desta natureza atraveacutes de haacutebitos de vida quando se tiver tempo para isso e natildeo se deve irritar um mal coleacuterico com a aplicaccedilatildeo de faacutermacos

275 nous

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Fica assim descrito o que respeita ao conjunto do ser-vivo no que respeita agrave sua parte corporal e ao modo como algueacutem deve governar e ser governado por si mesmo para que tenha uma existecircncia em maacuteximo acordo com a razatildeo276 Quanto agrave parte que governa devemos preparaacute-la para que dentro dos possiacuteveis seja a mais bela e melhor para governar Discorrer com exactidatildeo sobre este assunto seria por si soacute suficiente para dar origem a uma obra exclusiva mas como assunto acessoacuterio no seguimento do que dissemos anteriormente natildeo seria despropositado retomar e concluir o discurso do seguinte modo Como jaacute dissemos muitas vezes277 foram estabelecidas em noacutes trecircs espeacutecies de alma em trecircs regiotildees e aconteceu que cada uma ficou com um movimento Deste modo de acordo com estes pressupostos temos que mencionar do modo mais breve possiacutevel que aquela das espeacutecies que se manteacutem em descanso e em repouso em relaccedilatildeo aos movimentos que lhe satildeo proacuteprios torna-se necessariamente mais fraca enquanto que aquela que se manteacutem em exerciacutecio fica mais forte por isso devemos zelar para que possam manter os movimentos coordenados umas com as outras

Quanto agrave espeacutecie de alma que nos domina eacute necessaacuterio ter em conta o seguinte um deus deu a cada um de noacutes um daimon278 aquilo que dizemos habitar no

276 logos277 Cf supra 69d-sqq278 Toda esta secccedilatildeo faz lembrar o mito escatoloacutegico com que

termina a Repuacuteblica (614b-621b) segundo o qual as almas satildeo redistribuiacutedas pelos novos corpos em funccedilatildeo da orientaccedilatildeo seguida

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alto do nosso corpo ndash e dizemo-lo muito correctamente ndash e nos eleva desde a terra ateacute agravequilo que eacute nosso congeacutenere no ceacuteu porque somos uma planta celeste e natildeo terrena Foi desse lugar onde se engendrou a primeira geacutenese da alma que a parte divina fez depender a nossa cabeccedila que eacute como uma raiz e manteacutem todo o nosso corpo da posiccedilatildeo erecta Assim quando algueacutem se entregou aos apetites e agraves ambiccedilotildees e cultivou excessivamente esses viacutecios eacute inevitaacutevel que todos os seus pensamentos sejam mortais em tudo se tornou mortal tanto quanto possiacutevel e nada nele deixa de ser mortal pois foi essa a natureza que desenvolveu Por outro lado para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos verdadeiros279 exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo eacute absolutamente inevitaacutevel que nele surjam pensamentos imortais e divinos jaacute que se ateve ao que eacute verdadeiro E tanto quanto eacute permitido agrave natureza humana participar da imortalidade dessa condiccedilatildeo natildeo deixe de lado nem a miacutenima parte Ao cuidar sempre da parte divina que conteacutem em si tenha em ordem o daimon que habita dentro de si bem como seja particularmente feliz

Para todos os seres haacute somente um cuidado a ter em atenccedilatildeo atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes satildeo proacuteprios Os movimentos congeacuteneres do que haacute de divino em noacutes satildeo os pensamentos280 e as oacuterbitas do universo Eacute necessaacuterio que cada um os acompanhe corrigindo atraveacutes da nas vidas anteriores

279 peri philomathian kai peri tas alecirctheis phronecircseis280 dianoecircsis

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aprendizagem das harmonias e das oacuterbitas do universo as oacuterbitas destruiacutedas nas nossas cabeccedilas na altura da geraccedilatildeo tornando aquilo que pensa semelhante ao objecto pensado281 de acordo com a natureza original e depois de ter feito esta assimilaccedilatildeo atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro

Parece que agora estaacute perto do fim aquilo que desde o princiacutepio estaacutevamos obrigados a fazer discorrer sobre o universo ateacute agrave geraccedilatildeo do homem282 Quanto aos outros seres vivos no que toca ao modo como foram gerados devemos mencionaacute-lo ainda que de forma breve pois natildeo haacute qualquer necessidade de nos demorarmos sobre esse assunto Se fosse esse o caso poderia algueacutem achar que eu estava a ser mais minucioso em relaccedilatildeo a estes assuntos do que agravequeles

Eis o que iremos dizer Entre os que foram gerados machos todos os que satildeo cobardes e levaram a vida de forma injusta de acordo com o discurso verosiacutemil renascem mulheres na segunda geraccedilatildeo Por esse motivo e nessa altura os deuses conceberam o desejo da copulaccedilatildeo constituindo dentro de noacutes e dentro das mulheres um ser-vivo animado e criaram cada um deles do seguinte modo A via de saiacuteda da bebida onde o liacutequido chega depois passar pelo pulmatildeo e pelos rins ateacute agrave bexiga que ao ser pressionado pelo sopro respiratoacuterio283 ela recebe e expele juntaram-na por meio de uma perfuraccedilatildeo agrave medula ndash a que nos discursos anteriores chamaacutemos

281 tocirc katanooumenocirc to katanooun exomoiocircsai282 Cf supra 27a283 pneuma

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semente284 ndash que da cabeccedila desce ateacute ao pescoccedilo e passa pela espinha A medula que eacute dotada de alma e recebe respiraccedilatildeo ao criar no oacutergatildeo por onde se ventila um apetite vital de ejaculaccedilatildeo engendra o desejo amoroso criador Eacute por isso que a natureza das partes iacutentimas dos homens eacute desobediente e autoacutenoma semelhante a um ser-vivo desobediente da razatildeo285 e empreende dominaacute-lo por meio destes apetites acutilantes Pelas mesmas razotildees aquilo a que nas mulheres se chama ldquomatrizrdquo ou ldquouacuteterordquo um ser-vivo aacutevido de criaccedilatildeo quando estaacute infrutiacutefero durante muito tempo aleacutem da eacutepoca torna-se irritado ndash um estado em que sofre terrivelmente Em virtude de vaguear por todo o lado no corpo e bloquear as vias de saiacuteda do sopro respiratoacuterio natildeo o deixando respirar atira-o para extremas dificuldades e provoca-lhe outras doenccedilas de toda a espeacutecie ateacute que o apetite e o desejo amoroso de cada um deles se reuacutenam para colherem o fruto como de uma aacutervore e semearem na matriz como num campo lavrado os seres-vivos invisiacuteveis (por causa da sua extrema pequenez) e ainda informes os quais depois separam e alimentam dentro de si tornando-os grandes depois disto datildeo-nos agrave luz e completam a geraccedilatildeo dos seres-vivos

Assim nasceram as mulheres e todas as fecircmeas Quanto agrave raccedila das aves eacute produzida de uma forma diferente pois tem por natureza penas em vez de pecirclos a partir de homens sem maldade e leves conhecedores dos fenoacutemenos celestes mas que na sua ingenuidade

284 sperma Cf supra 74a 77d 86c-d285 logos

Platatildeo

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acreditam que as evidecircncias mais seguras sobre estes assuntos satildeo as fornecidas pela visatildeo Quanto agrave espeacutecie dos animais terrestres e das feras ela gera-se daqueles que natildeo fazem uso da filosofia nem prestam qualquer atenccedilatildeo agrave natureza do que diz respeito ao ceacuteu por jamais se servirem das oacuterbitas que tecircm dentro da cabeccedila mas seguem os conselhos das partes da alma que estatildeo em torno do peito Por causa destes haacutebitos os seus membros anteriores e as suas cabeccedilas foram arrastados em direcccedilatildeo agrave terra para se fixarem naquilo de que satildeo congeacuteneres Tecircm o topo da cabeccedila alongado e multiforme em funccedilatildeo do modo como as oacuterbitas de cada um foram esmagadas pela preguiccedila (92a)O seu geacutenero foi criado com quatro ou mais patas pelo seguinte motivo o deus apocircs mais suportes aos mais irracionais porque iriam ser mais arrastados para a terra Aos mais irracionais de entre eles e aos que tecircm o corpo completamente estendido pela terra visto natildeo terem qualquer necessidade de patas engendraram-nos privados de patas e a rastejar sobre a terra (92b) A quarta espeacutecie a que estaacute na aacutegua foi gerada a partir daqueles que eram mais desprovidos de intelecto e ignorantes aqueles que os tornaram a moldar nem sequer os acharam dignos de respirar ar puro porque graccedilas aos erros tinham a alma completamente conspurcada pelo que em vez de uma respiraccedilatildeo de ar leve e puro obrigaram-nos a respirar um ar turvo e pesado na aacutegua Por isso se gerou a raccedila dos peixes e de todos os crustaacuteceos que vivem na aacutegua como pena pelo grau de ignoracircncia a que desceram coube-lhes a mais baixa morada Eacute de acordo com todos estes pressupostos

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que outrora e agora os seres-vivos se transformam uns nos outros de acordo com o facto de perderem ou ganharem em intelecto ou em demecircncia

Agora declaremos que o nosso discurso sobre o universo chegou ao fim tendo recebido seres-vivos mortais e imortais ndash ficando deste modo preenchido ndash assim foi gerado o mundo como um ser-vivo visiacutevel que engloba todas as coisas visiacuteveis deus sensiacutevel imagem do inteligiacutevel286 o mais grandioso o melhor o mais belo e mais perfeito o ceacuteu que eacute uacutenico e unigeacutenito

286 eikocircn tou noecirctou theos aisthecirctos

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Timeu Como estou feliz oacute Soacutecrates agora que termino com regozijo a viagem do meu discurso tal como se descansasse de uma longa caminhada1 Ao deus que foi gerado outrora na realidade e agora mesmo em palavras2 eu rogo que de entre aquilo que dissemos garanta a perenidade do que foi mencionado correctamente mas se em relaccedilatildeo a algum assunto proferimos inadvertidamente algo fora de tom que nos aplique a pena que seja adequada Ora a pena acertada para quem daacute uma nota em falso eacute entrar no tom portanto para que exponhamos correctamente os discursos relativos ao que resta dizer sobre a geraccedilatildeo dos deuses rogamos-lhe que nos forneccedila o remeacutedio mais

1 A metaacutefora do discurso como viagem eacute bastante recorrente em Platatildeo (eg Filebo 14a Leis 645a)

2 Trata-se do mundo sensiacutevel que por diversas vezes eacute chamado ldquodeusrdquo (34a-b 68e 92c) A oposiccedilatildeo ldquona realidadeem palavrasrdquo e ldquooutroraagorardquo acentua os planos absolutamente distintos em que se encontram os dois ldquofabricadoresrdquo em causa o demiurgo gerou (literalmente) o mundo num tempo anterior ao humano e natildeo cronoloacutegico ao passo que Timeu o reconstituiu em palavras obedecendo a um ldquoagorardquo cronoloacutegico e diegeacutetico

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perfeito e excelente de entre os remeacutedios ndash o saber Feitas as preces entreguemos o discurso seguinte a Criacutetias de acordo com o combinado3

Criacutetias E eu aceito-o oacute Timeu mas tal como tambeacutem tu o abordaste no iniacutecio quando pediste toleracircncia4 porque estavas prestes a falar sobre assuntos de grande importacircncia igualmente eu neste momento apelo a isso mesmo pois considero-me merecedor de obter ainda mais toleracircncia em virtude dos assuntos sobre os quais estou prestes a falar Com efeito tenho noccedilatildeo de que o pedido que vos vou dirigir eacute bastante ambicioso e mais indelicado do que eacute devido mas ainda assim tenho que dizecirc-lo Quanto ao que foi referido por ti quem no seu juiacutezo perfeito ousaria dizer que isso natildeo eacute acertado Mas que aquilo de que eu vou falar carece de mais toleracircncia por ser mais problemaacutetico isso terei que explicar de uma maneira ou de outra

Na verdade oacute Timeu sempre que dizemos aos homens algo sobre os deuses eacute mais faacutecil parecer falar adequadamente do que quando dizemos a noacutes homens algo sobre os mortais Eacute que a inexperiecircncia e a ignoracircncia extremas dos ouvintes em relaccedilatildeo aos assuntos a tratar proporcionam uma destreza acrescida agravequele que estaacute prestes a dizer algo sobre eles no que diz respeito aos deuses sabemos que eacute essa a nossa condiccedilatildeo

3 O programa dos discursos fora estabelecido logo no iniacutecio do Timeu (27a-b) Eacute provaacutevel que se trate dos astros como sugere Brisson (2001 p 380 n 8) mas natildeo existem quaisquer dados que confirmem essa suspeita

4 Cf Timeu 29c-d

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Mas para que explique com maior clareza aquilo que digo acompanhem-me no seguinte raciociacutenio Aquilo que todos noacutes pronunciamos eacute necessariamente uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo5 No que trata agrave reproduccedilatildeo de imagens de corpos humanos ou divinos produzida pelos pintores apercebemo-nos de que no apuramento da facilidade ou dificuldade do processo imitativo para quem as observa a aparecircncia eacute suficiente Tambeacutem reparamos que no que diz respeito agrave terra a montanhas rios uma floresta ao ceacuteu e a tudo quanto existe e circula em torno dele ficamos satisfeitos acima de tudo se algueacutem for capaz de os reproduzir com um miacutenimo de semelhanccedila Aleacutem disso como natildeo sabemos nada de rigoroso sobre assuntos dessa natureza natildeo examinamos nem pomos agrave prova o que foi pintado e apreciamos uma pintura de sombreados indistinta e ilusoacuteria6 Por outro lado sempre que algueacutem tenta representar os nossos corpos em virtude de nos apercebermos com acuidade daquilo que foi negligenciado graccedilas agrave constante observaccedilatildeo iacutentima tornamo-nos juiacutezes implacaacuteveis de tudo aquilo que natildeo esteja absolutamente dotado de semelhanccedila

Eacute forccediloso que compreendamos que acontece o mesmo com os discursos jaacute que devemos ficar satisfeitos

5 Criacutetias propotildee uma teoria da linguagem muito proacutexima da concepccedilatildeo platoacutenica da arte em geral que fora estabelecida na Repuacuteblica (597a-e) e no final do Sofista Tanto que o exemplo a que vai recorrer para ilustrar esta sua posiccedilatildeo releva precisamente do acircmbito da pintura

6 A teacutecnica da pintura com sombreados (skiagraphia) era considerada por Platatildeo uma forma de ilusatildeo propositada (cf Repuacuteblica 602c-e)

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se o que dissermos sobre assuntos celestes e divinos for minimamente verosiacutemil ao passo que podemos examinar minuciosamente os mortais e humanos7 Quanto ao discurso que agora faremos fruto do improviso se natildeo conseguirmos dotaacute-lo de clareza em relaccedilatildeo a todos os aspectos teremos necessariamente que ser condescendentes eacute que eacute preciso ter em conta que natildeo eacute nada faacutecil senatildeo extremamente difiacutecil produzir representaccedilotildees dos assuntos mortais que relevam do acircmbito da opiniatildeo

108a Eacute disto que eu vos quero recordar e foi pelo facto de vos pedir natildeo menos mas sim mais toleracircncia em relaccedilatildeo ao que estou prestes a dizer que mencionei tudo isto oacute Soacutecrates Se vos pareccedilo pedir justificadamente a oferenda concedei-me-la de bom grado

Soacutecrates E por que motivo natildeo ta haveriacuteamos de conceder oacute Criacutetias Tambeacutem ao terceiro Hermoacutecrates noacutes havemos de lhe conceder a mesma toleracircncia De facto eacute evidente que um pouco mais tarde quando lhe competir a ele discursar a pediraacute tal como vocecircs8 Deste modo para que planeie um iniacutecio diferente e natildeo esteja compelido a dizer o mesmo ele que discurse partindo do princiacutepio que deste modo e neste momento lhe foi garantida a toleracircncia Quanto a ti meu caro Criacutetias dir-te-ei de antematildeo qual eacute a disposiccedilatildeo do puacuteblico o

7 Note-se que tambeacutem no discurso de Criacutetias a verosimilhanccedila eacute tida por exigecircncia racional

8 Hermoacutecrates seria o terceiro (a seguir a Criacutetias) a intervir (vide Introduccedilatildeo pp 14-15)

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poeta anterior a ti9 granjeou diante dele grande estima de tal forma que precisaraacutes de toleracircncia ilimitada a teu favor se te consideras capaz de a obter

Hermoacutecrates Daacutes-me a mesma recomendaccedilatildeo que a este aqui oacute Soacutecrates Mas com efeito oacute Criacutetias nunca homens sem valor obtiveram um trofeacuteu10 Por isso conveacutem que avances corajosamente com o teu discurso invocando o Salvador11 e as Musas para dares a conhecer os ilustres cidadatildeos antepassados e lhes dedicares um hino12

Criacutetias Oacute caro Hermoacutecrates por teres sido posicionado na linha mais recuada e teres outra pessoa agrave tua frente estaacutes ainda cheio de coragem O que eacute estar nesta situaccedilatildeo isso em breve te seraacute revelado mas tenho que obedecer ao teu incentivo e estiacutemulo e aleacutem dos deuses que mencionaste temos que invocar ainda outros principalmente Mnemoacutesine13 Eacute que quase todos os assuntos do nosso discurso dizem respeito a

9 Refere-se a Timeu10 Neste contexto a metaacutefora eacute puramente beacutelica sendo que o

trofeacuteu (tropaion) refere um pequeno monumento que era erigido no campo de batalha como siacutembolo de vitoacuteria O acircmbito semacircntico militar vai manter-se pelas proacuteximas linhas como que anunciando o longo discurso de Criacutetias sobre o confronto militar

11 Epiacuteteto de Apolo12 Foi referido ainda no resumo do Timeu (21a) que a narrativa

sobre a lendaacuteria guerra visava glorificar a cidade de Atenas no dia da sua festa (as Panateneias durante as quais se desenvolve a acccedilatildeo)

13 Personificaccedilatildeo divinizada da memoacuteria de quem eram filhas as Musas Esta invocaccedilatildeo era bastante comum nos poetas e historiadores

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essa deusa pois se lembrarmos o suficiente do que foi dito pelos sacerdotes de outrora trazido ateacute aqui por Soacutelon14 e o dermos a conhecer creio que aos olhos do puacuteblico pareceremos cumprir razoavelmente aquilo a que nos comprometecircramos Eacute isso que devemos fazer de imediato e natildeo podemos demorar nem mais um pouco

Primeiro que tudo recordemos o principal15 passaram nove mil anos desde a referida guerra entre os que habitavam aleacutem das Colunas de Heacuteracles16 e todos aqueles que estavam para aqueacutem conveacutem agora que discorramos sobre ela em pormenor De um lado segundo se diz estava a nossa cidade que comandou e travou a guerra ateacute ao fim enquanto que do outro estavam os reis da Ilha da Atlacircntida ilha essa que como dissemos haacute pouco era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia17 juntas Mas actualmente por estar submersa graccedilas aos tremores de terra constitui um obstaacuteculo de lama intransitaacutevel para aqueles que querem navegar dali para o alto-mar de tal forma que nunca mais pode ser ultrapassado

Quanto aos vaacuterios povos baacuterbaros e tambeacutem todos os que de entre os Gregos existiam naquele tempo a exposiccedilatildeo do relato no seu desenrolar revelaraacute o que diz respeito a cada um deles sucessivamente e caso a

14 Cf Timeu 21c-sqq15 O essencial do discurso Criacutetias vai iniciar fora jaacute referido no

Timeu (20d-26d)16 O Estreito de Gibraltar17 A Liacutebia corresponde actualmente a todo o Norte de Aacutefrica

e a Aacutesia ao territoacuterio que se estende desde a Peniacutensula Araacutebica ateacute ao Norte da Iacutendia

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caso18 No que diz respeito aos Atenienses de entatildeo e aos seus opositores contra os quais entraram em guerra eacute necessaacuterio que comece por analisar em primeiro lugar o poderio beacutelico e a forma de governo19 de cada um deles De entre eles devemos optar por falar primeiro deste daqui

Em determinada altura os deuses dividiram toda a terra em regiotildees ndash sem recurso a disputa nem seria correcto dizer que os deuses ignoravam o que era apropriado a cada um deles nem tampouco que apesar de saberem o que era mais adequado para os outros tentavam entre si apropriar-se disso para si proacuteprios por meio de disputas ndash e havendo obtido a regiatildeo que lhes agradava de acordo com as sortes da Justiccedila povoaram esses lugares Depois de os terem povoado criaram-nos como se fossem bens ou animais agrave semelhanccedila de pastores com o gado soacute que natildeo subjugavam corpos com corpos como os pastores que orientam os rebanhos agrave pancada mas da melhor maneira para lidar com uma criatura que eacute guiaacute-la pela proa tomando de acordo com o seu proacuteprio desiacutegnio a alma como um leme por meio da persuasatildeo conduziam e governavam deste modo todos os seres mortais20

18 A descriccedilatildeo das forccedilas em conflito antes do combate propriamente dito era um costume dos historiadores (cf Tuciacutedides 189-sqq) Visto que Criacutetias refere que falaraacute detalhadamente de todos os povos envolvidos (Atlantes Gregos e respectivos aliados) descrevendo depois o confronto propriamente dito eacute certo que o diaacutelogo completo era bastante extenso Contudo termina como sabemos quando aborda o iniacutecio da degenerescecircncia social e moral do povo atlante

19 politeia20 Esta metaacutefora do estadista como timoneiro de uma nau

bastante utilizada na trageacutedia remonta aos versos de Arquiacuteloco

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Enquanto que aos outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de um modo diferente Hefesto e Atena por terem uma natureza comum ndash por um lado eram irmatildeos de um mesmo pai e por outro em virtude do gosto pelo saber e pela arte tinham a mesma orientaccedilatildeo21 ndash a ambos assim coube em sorte uma uacutenica porccedilatildeo que eacute este lugar aqui porque era por natureza afim e adequado agrave virtude e agrave sabedoria22 Entatildeo colocaram aqui homens bons os autoacutectones e introduziram-lhes a ordem poliacutetica no intelecto23

Os nomes deles foram conservados mas os feitos graccedilas ao facto de terem perecido aqueles que os herdaram e agrave vastidatildeo do tempo desapareceram Eacute que o geacutenero de pessoas que sempre sobrevive tal como foi dito anteriormente24 manteacutem-se serrano25 e analfabeto estas apenas tinham ouvido falar dos nomes dos governantes daquele lugar e aleacutem disso do pouco que haviam feito Assim eles punham esses nomes aos seus descendentes

(poeta do seacutec VII aC) que compara uma tempestade a uma crise poliacutetica e o timoneiro ao poliacutetico que a pode superar (fr 106 West) Aparece com um sentido anaacutelogo na passagem da Repuacuteblica sobre a nau do estado (488a-499a) e tambeacutem no Poliacutetico onde Cronos eacute chamado ldquotimoneiro do universordquo (272e4)

21 Ambos Atena e Hefesto eram filhos de Zeus bem como se dedicavam a assuntos muito semelhantes Atena nutria especial apreccedilo pelas artes e letras (o saber em geral) e Hefesto dominava a metalurgia como artesatildeo bem como era o deus do fogo (o fogo era siacutembolo da ciecircncia como disso eacute exemplo o famoso mito de Prometeu)

22 aretecirc kai phronecircsis23 nous24 Cf Timeu 22c-d25 O termo oreios (lit ldquoque vive nas montanhasrdquo) eacute neste

contexto usado com um sentido pejorativo

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por isso os agradar mas natildeo conheciam as virtudes e as leis dos antepassados a natildeo ser alguns relatos obscuros em relaccedilatildeo a certos aspectos Por viverem com carecircncia e necessitados durante muitas geraccedilotildees eles e os seus filhos tinham apenas em mente aquilo de que careciam e conversavam apenas sobre isso negligenciando aquilo que acontecera outrora num tempo anterior ao seu Na verdade a mitologia e a investigaccedilatildeo de dados do passado chegam agraves cidades juntamente com o oacutecio apenas quando os habitantes se apercebem de que as necessidades baacutesicas estatildeo garantidas para um certo nuacutemero de pessoas e natildeo antes Foi por este motivo que mantiveram conservados os nomes dos antepassados agrave parte dos feitos Digo isto baseando-me em Soacutelon que referia que os sacerdotes enquanto narravam a guerra de outrora mencionavam com muita frequecircncia os nomes de Ceacutecrope Erecteu Erictoacutenio Erisiacutecton26 e a maior parte daqueles que antecederam Teseu cujos nomes permaneceram recordados e o mesmo no que respeita agraves mulheres ndash de facto visto que naquele tempo as ocupaccedilotildees respeitantes agrave guerra eram comuns agraves mulheres e aos homens a estaacutetua da deusa era por isso representada pelos de entatildeo com armas de acordo com aquele costume como tributo agrave deusa isso eacute uma prova27 de que todos os seres-vivos da mesma condiccedilatildeo

26 Personagens lendaacuterias associadas agrave fundaccedilatildeo da cidade de Atenas Ceacutecrope teria sido o primeiro rei Erecteu o seu pai Erictoacutenio avocirc de Erecteu Erisiacutecton filho de Ceacutecrope

27 Endeigma Embora esta palavra em concreto natildeo seja usada por Heroacutedoto nem por Tuciacutedides daacute igualmente conta da preocupaccedilatildeo historicista no narrador A este propoacutesito vide Introduccedilatildeo pp 57-63

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ndash tanto fecircmeas quanto machos ndash satildeo por natureza capazes de praticar em comum a virtude respeitante a cada espeacutecie28

Por outro lado naquele tempo os outros grupos de cidadatildeos ligados aos ofiacutecios e ao sustento que provinha da terra viviam neste lugar aqui enquanto que o dos combatentes separados desde o princiacutepio por homens divinos viviam agrave parte tendo acesso a tudo o que fosse adequado agrave sua subsistecircncia e educaccedilatildeo Nenhum deles possuiacutea nada a tiacutetulo particular pois todos eles consideravam tudo comum a todos eles e natildeo se achavam no direito de receber dos outros cidadatildeos nada aleacutem do necessaacuterio agrave sua subsistecircncia atarefados que estavam com todas as ocupaccedilotildees de que ontem falaacutemos ndash aquelas que foram referidas a propoacutesito dos guardiotildees que propusemos29

Na verdade ateacute era plausiacutevel e mesmo verdadeiro o que se dizia a propoacutesito da nossa terra30 em primeiro

28 A igualdade de geacuteneros eacute tambeacutem referida no Timeu (18c-sqq) e na Repuacuteblica (456a-sqq)

29 Quando refere que as ocupaccedilotildees destes cidadatildeos satildeo as que descreveram no dia anterior Criacutetias remete para o que foi dito acerca das funccedilotildees da classe dos guardiotildees da cidade ideal descritas na Repuacuteblica (395b-d) e tambeacutem no iniacutecio do Timeu (17d) deviam dedicar-se exclusivamente agrave defesa do Estado Aleacutem disso satildeo tambeacutem evidentes outras semelhanccedilas natildeo possuiacuteam bens a tiacutetulo particular recebiam o sustento dos outros cidadatildeos bem como viviam em comunidade (Repuacuteblica 416e Timeu 18b)

30 Segundo Brisson (2001 p 383 nn 60 64) a descriccedilatildeo que se segue pretende fundamentar algumas reivindicaccedilotildees territoriais atenienses da eacutepoca de Platatildeo Ao alargar as fronteiras da Aacutetica ateacute ao Istmo de Corinto a sudoeste inclui a cidade de Meacutegara (causa de diversos confrontos com os Coriacutentios) e quando aponta o Rio Asopo como fronteira a norte engloba a Oroacutepia cuja principal

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lugar que nessa altura as fronteiras que a circunscreviam se estendiam ateacute ao Istmo [de Corinto] de um lado31 e na direcccedilatildeo da regiatildeo continental ateacute aos cumes do Citeacuteron e do Parnaso32 que essas fronteiras continuavam pelas encostas do lado direito (incluindo a Oroacutepia33) ateacute ao Asopo34 e do lado esquerdo estavam delimitadas pelo mar que toda esta terra superava em fertilidade o restante territoacuterio pelo que na altura este lugar era capaz de manter alimentado um vasto exeacutercito e livre de trabalhos com a terra35 Eis uma grande evidecircncia36 dessa fertilidade o que dela ainda agora resta eacute equiparaacutevel a qualquer outra por ter muita variedade de cultivo e riqueza de colheitas bem como boas pastagens para todo o tipo de animais Aleacutem da qualidade de entatildeo comportava tudo isso em abundacircncia Mas como pode isso ser crediacutevel e com base em quecirc se poderaacute dizer acertadamente que satildeo os restos da terra daquele tempo

Todo o territoacuterio que se estende a partir do resto do continente e desemboca no mar eacute semelhante a um cidade (Oropo) era continuamente disputada com os Beoacutecios

31 Isto eacute para sudoeste32 O Citeacuteron e o Parnaso eram dois montes que se encontravam

entre a Beoacutecia e a Aacutetica33 Vide supra n 3034 Um rio a norte dos Montes Parnaso e Citeacuteron Vide supra

n 3235 Natildeo podemos deixar de notar nesta secccedilatildeo um eco da Idade

do Ouro (periacuteodo em que a Natureza proporcionava todos os bens estando os homens livres de trabalhos agriacutecolas) que Hesiacuteodo descreve nos Trabalhos e Dias (vv 109-126)

36 Tekmecircrion Trata-se de um termo muito usado pelos historiadores para fundamentar o seu discurso (Heroacutedoto 2131 33810 72384 Tuciacutedides 113 2392 31046)

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grande promontoacuterio e acontece que o invoacutelucro de mar que a circunda eacute profundo em todos os pontos da costa Graccedilas a muitos e grandes diluacutevios que ocorreram nestes nove mil anos ndash este foi o nuacutemero de anos que passou desde esse tempo ateacute agora ndash a terra que em virtude do que aconteceu durante essas ocasiotildees deslizou das terras altas natildeo se empilhou num morro digno de menccedilatildeo como acontece noutros locais antes ao escorregar continuamente semelhante a uma roda desapareceu no fundo do mar Comparado ao de entatildeo o que agora restou ndash tal como aconteceu nas pequenas ilhas ndash eacute semelhante aos ossos de um corpo que adoeceu pois tudo o que a terra tinha de gordo e mole escorregou tendo somente restado desse lugar o corpo descascado Mas naquele tempo enquanto esteve intacta tinha montanhas altas e encristadas de terra e quanto agraves planiacutecies a que agora chamamos solo rochoso tinha-as cheias de terra feacutertil Tinha tambeacutem numerosas florestas nas montanhas de que ainda hoje haacute evidecircncias manifestas pois eacute nestas montanhas que actualmente existe o uacutenico alimento para as abelhas e natildeo haacute muito tempo que se cortava aacutervores nesse local para construir os tectos das grandes edificaccedilotildees ndash coberturas essas que ainda estatildeo conservadas Havia tambeacutem muitas e grandes aacutervores benignas bem como a terra providenciava pastos maravilhosos para o gado Aleacutem disso fruiacutea a cada ano de aacutegua vinda de Zeus e natildeo a perdia ao contraacuterio de agora que corre da terra nua ateacute ao mar em vez disso por ter muita terra recebia-a dentro de si e armazenava-a num solo argiloso que a sustinha Ao descarregar a aacutegua dos pontos altos

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para os vales garantia fluxos abundantes de fontes e rios a todos os lugares os templos que outrora foram estabelecidos nessas fontes e ainda hoje laacute permanecem satildeo um indiacutecio37 de que o que agora dizemos sobre ela eacute verdadeiro

Tambeacutem assim era a natureza do resto da regiatildeo que era provavelmente cultivada por agricultores autecircnticos isto eacute que faziam apenas isto ndash vocacionados para as coisas caras agrave beleza e tinham agrave disposiccedilatildeo a melhor terra e aacutegua em muita abundacircncia bem como estaccedilotildees temperadas da forma mais moderada que havia sobre a terra

Quanto agrave cidade nesta altura ela estava estabelecida do seguinte modo em primeiro lugar naquela altura a zona da Acroacutepole natildeo estava como estaacute hoje eacute que uma soacute noite de chuva deixou-a completamente nua pois dissolveu a terra por completo e ao mesmo tempo geraram-se terramotos e um violento diluacutevio ndash o terceiro antes da calamidade da eacutepoca de Deucaliatildeo38 Quanto ao tamanho que tinha outrora noutro tempo chegava ateacute ao Eriacutedano e ao Ilisso39 compreendia em si a Pnix40 e tinha como limite do lado oposto agrave Pnix o Licabeto41 toda ela era terra e excepto em poucos siacutetios formava uma planiacutecie nos pontos mais altos

37 Vide supra n 3638 Trata-se do diluacutevio com que Zeus decidiu destruir a raccedila

humana Escaparam Deucaliatildeo e Pirra sua esposa por meio de uma arca que haviam construiacutedo de antematildeo depois de terem sido avisados pelo deus

39 Dois rios da Aacutetica40 Colina a oeste da Acroacutepole onde desde os iniacutecios do seacuteculo

V aC se reunia a Assembleia41 Um monte a nordeste da Acroacutepole

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A parte exterior junto aos seus proacuteprios vertentes era habitada por artesatildeos e pelos agricultores que cultivavam as imediaccedilotildees Quanto agrave parte superior habitava-a a classe dos guerreiros de forma autoacutenoma e isolada junto ao templo de Atena e Hefesto que eles tinham vedado com uma uacutenica cerca como se fosse uma soacute casa Habitavam em aposentos comuns a parte que dava para norte que equiparam com uma messe para as noites de Inverno e tinham tudo quanto fosse adequado agrave vida em comunidade42 fossem residecircncias ou templos excepto ouro ou prata43 ndash pois natildeo faziam qualquer uso disso para nada mas por buscarem o ponto intermeacutedio entre a arrogacircncia e a subserviecircncia habitavam em residecircncias organizadas em que envelheciam eles proacuteprios e tambeacutem os netos dos seus netos as quais iam ininterruptamente entregando aos outros seus semelhantes Na parte que dava para sul fizeram jardins ginaacutesios e messes para o Veratildeo e usavam-na para isso No lugar onde actualmente estaacute a Acroacutepole havia uma fonte uacutenica que foi destruiacuteda pelos terramotos da qual actualmente restam apenas pequenas linhas de aacutegua em ciacuterculo mas que naquele tempo providenciava a toda a gente uma corrente abundante mantendo a mesma temperatura de Veratildeo e de Inverno E assim viviam eles como guardiotildees dos seus proacuteprios cidadatildeos e comandantes reconhecidos dos outros gregos e garantiam a todo o custo que o

42 tecirc koinecirci politeiai43 Curiosamente a privaccedilatildeo de ouro e prata especificamente

eacute tambeacutem referida na Repuacuteblica (417a) a propoacutesito classe dos guardiotildees

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nuacutemero de homens e mulheres que eram ou viriam a ser capazes de combater fosse sempre o mesmo cerca de vinte mil

Visto que eles eram desta natureza e administravam sempre com a mesma orientaccedilatildeo ndash agrave luz da justiccedila ndash a sua cidade e o resto da Heacutelade gozavam de alta reputaccedilatildeo em toda a Europa e em toda a Aacutesia graccedilas agrave beleza dos seus corpos e a todo o tipo de virtude das suas almas bem como eram famosos entre todos os homens daquele tempo

No que trata agrave condiccedilatildeo daqueles contra quem combateram e ao modo como de princiacutepio se gerou essa condiccedilatildeo se natildeo estiver privado da memoacuteria visto que o ouvi quando ainda era crianccedila restituiacute-lo-ei no meio de voacutes para que seja comum entre amigos

Mas antes ainda do meu discurso impotildee-se um breve esclarecimento para que natildeo fiqueis admirados por muitas vezes ouvirdes nomes gregos aplicados a homens estrangeiros ouvi entatildeo a razatildeo Soacutelon por ter pensado em utilizar esta narrativa na sua poesia procurou o significado destes nomes e descobriu que aqueles primeiros egiacutepcios os tinham redigido vertidos na sua proacutepria liacutengua entatildeo ele por sua vez depois de ter assimilado o sentido de cada um desses nomes registou-os e traduziu-os para a nossa liacutengua Estes escritos estiveram na posse do meu avocirc e neste momento estatildeo ainda comigo com os quais me exercitei enquanto era crianccedila Portanto que natildeo vos cause nenhuma admiraccedilatildeo se ouvirdes alguns nomes como estes aiacute tendes portanto a razatildeo Mas vejamos agora como era o princiacutepio daquela grande narrativa

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Tal como foi dito anteriormente44 acerca da partilha que ocorreu entre os deuses eles dividiram toda a terra aqui em porccedilotildees maiores e acolaacute em mais pequenas onde estabeleceram templos e sacrifiacutecios em seu proacuteprio benefiacutecio Deste modo Posiacutedon quando lhe coube em sorte a Ilha da Atlacircntida estabeleceu aiacute os filhos que gerou de uma mulher mortal num certo local da ilha

Existia ao longo de toda a ilha em direcccedilatildeo ao mar uma planiacutecie central a qual se diz que seria a mais bela de todas as planiacutecies e com uma fertilidade consideraacutevel Nesta planiacutecie havia ainda na parte central uma montanha baixa em todos os pontos que distava cinquenta estaacutedios45 do mar Neste local estava um habitante de entre os homens que aiacute tinham nascido dessa terra em tempos primordiais o seu nome era Evenor e vivia juntamente com a sua mulher Leucipe tiveram uma filha uacutenica Clito Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido a sua matildee e o seu pai morreram e entatildeo Posiacutedon desejou-a e uniu-se a ela Entatildeo de modo a construir uma cerca segura desfez num ciacuterculo o monte em que ela habitava e construiu agrave volta aneacuteis de terra alternados com outros de mar uns maiores uns mais pequenos ndash dois de terra e trecircs de mar no total torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos para que fosse inacessiacutevel aos homens46 com efeito naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava

44 Cf supra 109b-c45 8880m46 O sistema de aneacuteis atlante traz agrave memoacuteria uma descriccedilatildeo

do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana registada por Heroacutedoto (Histoacuterias 198)

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Foi o proacuteprio Posiacutedon que organizou o centro da ilha ndash facilmente pois era um deus ndash fazendo surgir de debaixo da terra duas nascentes de aacutegua ndash uma quente outra fria ndash que corriam de uma fonte e fez brotar da terra alimentos variados e suficientes Engendrou e criou cinco geraccedilotildees de varotildees geacutemeos e dividiu toda a Ilha da Atlacircntida em dez partes entregou a residecircncia materna ao que de entre os mais velhos nascera primeiro juntamente com a porccedilatildeo que a circundava que era a maior e a melhor e nomeou-o rei dos restantes ao passo que fez destes governantes bem como atribuiu a cada um o governo de muitos homens e uma regiatildeo com vastos territoacuterios A todos eles atribuiu nomes ao mais velho ndash o rei ndash deu-lhe o nome do qual toda a ilha e tambeacutem o mar chamado Atlacircntico receberam uma designaccedilatildeo derivada ndash o primeiro que reinou tinha entatildeo o nome Atlas47 Ao segundo geacutemeo ndash o que nasceu depois deste ndash a quem havia cabido em sorte uma porccedilatildeo na extremidade da ilha na direcccedilatildeo das Colunas de Heacuteracles ateacute agrave regiatildeo aleacutem daquele ponto que hoje eacute chamada Gadiacuterica deu o nome Eumelo em grego e Gadiro na liacutengua do paiacutes sendo esta designaccedilatildeo a que deu o nome agravequela zona48 Aos dois que nasceram depois

47 Titatilde que em virtude de ter tentado usurpar o poder de Zeus foi punido com a obrigaccedilatildeo de suster sobre os ombros o ceacuteu Eacute apresentado neste contexto como primeiro rei da Atlacircntida O facto de Atlas (e natildeo Posiacutedon) ser apontado como primeiro rei da Atlacircntida pode estar ligado agrave localizaccedilatildeo miacutetica da ilha de uma filha sua nos confins dos Jardins das Hespeacuterides que segundo Hesiacuteodo (Teogonia vv 215-216 517-518) se situavam precisamente naquela zona

48 Gadiro estaacute na origem do nome da actual cidade de Caacutediz e

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chamou Anferes e Eveacutemon aos terceiros Mneacuteseas ao que nasceu primeiro e Autoacutecton ao que nasceu a seguir ao primeiro dos quartos Elasipo e Mestor ao seguinte aos quintos pocircs o nome Azais ao que nasceu antes e Diaprepes ao seguinte E assim todos eles e os seus descendentes ali viveram durante muitas geraccedilotildees governando sobre todas as outras ilhas do mar e ainda tal conforme dito anteriormente49 como senhores dos territoacuterios aqueacutem das Colunas de Heacuteracles ateacute ao Egipto e a Tirreacutenia50

De Atlas nasceu uma linhagem numerosa e honrada o rei que era o mais velho transmitia a monarquia sempre ao mais velho dos descendentes e assim se preservaram durante muitas geraccedilotildees Aleacutem disso detinham riquezas em nuacutemero tatildeo elevado como nunca houve em quaisquer dinastias de reis anteriores nem eacute faacutecil que haja nas que se sigam pois estavam providos de tudo do que havia necessidade garantir agrave cidade e ao resto do territoacuterio Com efeito ainda que muito viesse de fora por causa do impeacuterio a proacutepria ilha fornecia a grande maioria dos bens essenciais Em primeiro lugar tudo quanto fosse soacutelido e fundiacutevel era extraiacutedo pelo ofiacutecio mineiro bem como aquilo que actualmente apenas nomeamos ndash naquela altura mais do que um nome existia a substacircncia o oricalco51 que a Gadiacuterica seria toda aquela zona circundante

49 Cf Timeu 25a-b50 A Tirreacutenia ou Etruacuteria era a paacutetria dos Etruscos localizada na

parte central da Peniacutensula Itaacutelica51 A letra oreichalcos significa ldquoo cobre das montanhasrdquo Era usado

pelos Atlantes como elemento decorativo para o revestimento de superfiacutecies (as muralhas da muralha central da ilha 116c os tectos

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era extraiacutedo em vaacuterios locais da ilha o qual naquela altura era agrave parte o ouro o material mais valioso ndash e a floresta fornecia tudo quanto pudesse ser trabalhado pelos carpinteiros

A ilha produzia tudo em abundacircncia e no que respeita aos animais alimentava convenientemente os domesticados e os selvagens incluindo a raccedila dos elefantes que nela existia em grande nuacutemero No entanto havia tambeacutem pastagens para os outros seres-vivos tanto os que viviam nos pacircntanos nos lagos e nos rios quanto os que pastavam nas montanhas e nas planiacutecies ndash havia em abundacircncia para todos eles e tambeacutem na mesma medida para este animal52 que era por natureza o maior e o mais voraz Aleacutem disto criava tambeacutem diversos aromas que actualmente a terra tem aqui e ali de raiacutezes folhagens madeiras ou sucos destilados de flores ou de frutos ndash isto produzia e criava a ilha em abundacircncia Mais ainda frutos cultivados secos e tudo quanto usamos na alimentaccedilatildeo e de que aproveitamos o gratildeo ndash chamamos leguminosas a todas as suas variedades ndash os frutos das aacutervores que nos fornecem bebida comida e oacuteleo53 os frutos que crescem em ramos altos os quais satildeo difiacuteceis de armazenar e

paredes colunas e pavimento do templo de Posiacutedon) aleacutem disso tambeacutem a estela que continha gravadas as leis dos primeiros reis era deste material (119d) Embora se tenha tentado identificar esta substacircncia com ldquoum reluzir semelhante ao fogordquo (116c) propondo hipoacuteteses como o latatildeo ou uma liga composta entre ouro e cobre (como sugere a falsa etimologia latina aurichalcum) eacute provaacutevel que se trate de uma substacircncia mitoloacutegica Sobre este assunto vide Halleux (1973)

52 Isto eacute o elefante53 Azeitonas

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que usamos apenas por prazer e divertimento54 e tudo quanto oferecemos como estimulante desejaacutevel depois da ceia a quem sofre por estar cheio55 ndash naquela altura a extraordinaacuteria ilha que entatildeo estava sob o Sol56 fornecia todas estas coisas belas e admiraacuteveis em quantidade ilimitada

Por receberem da terra tudo isto construiacuteram templos residecircncias reais portos estaleiros navais e melhoraram todo o restante territoacuterio organizando tudo do modo que se segue Primeiro fizeram pontes sobre os aneacuteis de mar que estavam agrave volta da metroacutepole antiga criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real Esta zona real fizeram-na logo de princiacutepio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados Como cada um quando o recebia do outro adornava aquilo que jaacute estava adornado superava sempre na medida do possiacutevel o anterior ateacute que tornaram o edifiacutecio espantoso de ver graccedilas agrave magnificecircncia e beleza das suas obras

Escavaram um canal com trecircs pletros57 de largura cem peacutes58 de profundidade e cinquenta estaacutedios59 de comprimento que comeccedilaram a partir do mar ateacute ao anel mais exterior e naquele local construiacuteram uma via de acesso do mar agravequele ponto como a um porto

54 Tratar-se-aacute provavelmente de romatildes55 Seraacute com bastante certeza o limatildeo que naquela altura era

utilizado com este fim56 Isto eacute que ainda natildeo tinha sido engolida pelo mar (vide supra

25c-d 108e)57 888m58 296m59 8880m

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tambeacutem abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito grandes Tambeacutem abriram os aneacuteis de terra que separavam os de mar obedecendo agrave direcccedilatildeo das pontes de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma soacute trirreme e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo eacute que as bordas dos aneacuteis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar

O maior dos aneacuteis aquele pelo qual passava o mar tinha trecircs estaacutedios60 de largura e o anel de terra contiacuteguo tinha a mesma largura Dos segundos o de aacutegua tinha dois estaacutedios61 de largura enquanto que o seco era mais uma vez igual ao anterior de aacutegua aquele que circulava no centro da ilha tinha um estaacutedio62 Quanto agrave ilha onde estava a zona real ela tinha cinco estaacutedios63 de diacircmetro Agrave volta dela a partir dos aneacuteis e de um lado e de outro da ponte que tinha um pletro64 de largura lanccedilaram uma muralha de pedra e colocaram torres e portas em cada um dos lados das pontes vedando o acesso a partir do mar A pedra que era branca negra e vermelha extraiacuteram-na debaixo da ilha do centro e debaixo dos aneacuteis quer da parte de fora quer da de dentro Ao mesmo tempo que a extraiacuteam iam construindo no interior do espaccedilo vazio docas duplas que cobriam com a mesma pedra Algumas das estruturas fizeram-nas simples mas noutras misturaram as pedras e assim

60 5328m61 3552m62 1776m63 888m64 296m

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produziram por divertimento um entranccedilado colorido tornando-as naturalmente apraziacuteveis As muralhas que circundavam a parte exterior do anel a toda a volta do periacutemetro revestiram-nas com cobre que usaram como pintura as da parte interior com estanho fundido e as que circundavam a Acroacutepole com oricalco que tinha um reluzir semelhante ao fogo

Quanto ao modo como estava disposta a zona real no interior da Acroacutepole era o seguinte No centro ndash ali mesmo ndash estava um templo sagrado dedicado a Clito e a Posiacutedon o qual tornaram inacessiacutevel envolvendo-o numa cerca de ouro ndash foi naquele siacutetio que no princiacutepio estes deuses conceberam e geraram a linhagem dos dez priacutencipes era tambeacutem naquele mesmo siacutetio que todos os anos entregavam a cada um deles as primiacutecias sagradas provindas das dez partes da ilha Ali estava o naos65 soacute de Posiacutedon que tinha um estaacutedio66 de comprimento e trecircs pletros67 de largura ndash em altura parecia proporcional a estas medidas mas a aparecircncia era de certa forma baacuterbara Toda a parte exterior do naos tinha sido coberta com prata agrave excepccedilatildeo das extremidades (as extremidades foram cobertas com ouro)

Quanto agrave parte interior o tecto era de marfim maciccedilo com ouro prata e oricalco o que lhe dava uma aparecircncia variegada enquanto que revestiram todas as outras partes ndash paredes colunas e pavimento ndash com oricalco Erigiram estaacutetuas de ouro o deus erguido num

65 Parte interior do templo onde se encontrava a estaacutetua do deus ao qual o edifiacutecio era consagrado

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carro segurando as reacutedeas de seis cavalos alados que graccedilas agrave sua altura tocava no tecto com a cabeccedila agrave volta dele estavam cem Nereides montadas em golfinhos ndash naquele tempo julgavam que elas eram assim tantas68 no interior havia ainda muitas outras estaacutetuas que tinham sido oferecidas por particulares Em torno do naos no exterior estavam erguidas representaccedilotildees de ouro de todas as mulheres e dos descendentes dos dez reis e muitas outras grandes estaacutetuas de reis e tambeacutem de particulares da proacutepria cidade e de quantos territoacuterios no exterior eles governavam Concordante em grandeza e construccedilatildeo com esta edificaccedilatildeo havia um altar bem como a zona real estava tambeacutem de acordo com a grandeza do impeacuterio e com a organizaccedilatildeo que rodeava estes locais sagrados

Quanto agraves fontes a que tinha uma corrente fria e a que tinha uma quente abundantes e inesgotaacuteveis sendo cada uma das quais de uma admiraacutevel utilidade em virtude do sabor e da excelecircncia das suas aacuteguas aproveitavam para construir edifiacutecios em torno delas para plantar aacutervores adequadas agraves suas aacuteguas e para instalar reservatoacuterios ndash uns a ceacuteu aberto outros cobertos tendo em vista os banhos quentes durante o Inverno

68 As Nereides filhas de Nereu e ninfas marinhas associadas ao culto de Posiacutedon eram no tempo de Platatildeo apenas 50 Quanto agrave estaacutetua em si o facto de Criacutetias dizer que quase tocava no tecto do templo que a albergava traz agrave memoacuteria a estaacutetua de Zeus em Oliacutempia uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo Diz Estrabatildeo (Geografia 8330 a traduccedilatildeo deste passo pode ser consultada em Ferreira amp Ferreira 2009 pp 182-184) que se o deus se levantasse (estava representado sentado) arrancaria seguramente o telhado do edifiacutecio

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De um lado estavam os reais do outro os particulares outros ainda para as mulheres e os restantes para os cavalos e para os outros animais de jugo atribuindo a cada um deles a organizaccedilatildeo que lhe era adequada De modo a dirigir a corrente para o bosque sagrado de Posiacutedon que tinha todo o tipo de aacutervores de uma beleza e uma altura divinas graccedilas agrave fertilidade da terra e para os territoacuterios perifeacutericos canalizaram-na por meio de condutas ao longo das pontes Ali construiacuteram vaacuterios templos de muitos deuses vaacuterios jardins e ginaacutesios uns para os homens outros agrave parte para os cavalos em cada uma das ilhas dos aneacuteis

Entre outras coisas havia no centro da ilha grande um hipoacutedromo agrave parte com um estaacutedio69 de largura cujo comprimento compreendia a totalidade do periacutemetro do anel para a competiccedilatildeo dos cavalos Em toda a volta havia por toda a parte aquartelamentos para um grande nuacutemero de guarda-costas ndash a guarniccedilatildeo dos que eram mais fieacuteis estava disposta no anel mais pequeno no ponto mais proacuteximo da Acroacutepole e aos que de entre todos estes se distinguiam em fidelidade foram concedidas residecircncias no interior da Acroacutepole junto agraves proacuteprias residecircncias reais Os estaleiros navais estavam preenchidos de trirremes e de quantos acessoacuterios satildeo adequados agraves trirremes tudo preparado de forma capaz

Quanto agraves periferias da residecircncia dos reis elas estavam dispostas do seguinte modo quando se atravessava os portos ndash que eram trecircs ndash vindo do exterior

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uma muralha estendia-se em ciacuterculo que comeccedilava no mar distando em todos os pontos cinquenta estaacutedios70 do maior anel e do porto e fechava-se na barra do canal que dava para o lado do mar Todo este local estava povoado por edifiacutecios numerosos e concentrados ao passo que o canal e o porto maior estavam preenchidos por naus e comerciantes que vinham de todo o lado que por serem em grande nuacutemero causavam um clamor e um ruiacutedo produzido por toda a espeacutecie de barulhos tanto de dia quanto durante a noite

Temos agora na memoacuteria uma aproximaccedilatildeo daquilo que foi narrado naquele tempo sobre a cidade e a zona circundante das antigas edificaccedilotildees devemos entatildeo tentar relembrar qual era a natureza do resto da regiatildeo e o tipo de organizaccedilatildeo que tinha Primeiro todo este lugar segundo se dizia era muitiacutessimo alto e escarpado desde o mar mas a periferia da cidade era toda plana Esta zona que rodeava a cidade era ela proacutepria rodeada por montanhas em ciacuterculo que se estendiam ateacute ao mar ndash aleacutem disso era plana e nivelada toda ela oblonga com trecircs mil estaacutedios71 numa direcccedilatildeo e pela parte central dois mil estaacutedios72 do mar ateacute ao topo Esta regiatildeo da ilha estava orientada para Sul abrigada do Norte As montanhas que a circunscreviam naquele tempo eram famosas pelo nuacutemero grandeza e beleza superando todas as que hoje existem nelas havia aldeias ricas e numerosas rios lagos prados que forneciam alimento suficiente para todos os animais domeacutesticos

70 8880m71 5328km72 3552km

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e selvagens e uma floresta toda ela abundante e com grande variedade de espeacutecies ndash uma fonte inesgotaacutevel para todo o tipo de obras em geral e para cada uma em particular

A planiacutecie foi mantida pela natureza e tambeacutem por muitos reis durante muito tempo do seguinte modo A maior parte da sua aacuterea formava um quadrilaacutetero rectangular e oblongo e o restante aplanaram-no por meio de uma vala que escavaram em ciacuterculo Na medida em que se tratava de uma obra feita agrave matildeo a profundidade largura e comprimento desta fossa de que se fala satildeo duvidosos se a compararmos aos outros empreendimentos mas devemos dar a conhecer aquilo que ouvimos dizer foi escavada com um pletro73 de profundidade um estaacutedio de largura em todos os pontos e visto que tinha sido escavada agrave volta de toda a planiacutecie a largura era coincidente 10000 estaacutedios74 Como recebia as correntes de aacutegua que desciam das montanhas e sabendo que rodeava a planiacutecie chegava agrave cidade por ambos os lados descarregava deste modo o fluxo no mar Assim talharam vaacuterios canais perpendiculares com 100 peacutes75 de largura e cada um dos quais 100 estaacutedios76 afastado dos outros dispostos transversalmente ao longo da planiacutecie desde as montanhas que iam por seu turno desaguar na outra ponta da vala na direcccedilatildeo do mar Era deste modo que transportavam a madeira das montanhas ateacute agrave cidade

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e expediam os restantes produtos da eacutepoca por meio de barcos visto que haviam talhado vias de navegaccedilatildeo transversais de uns canais para outros e para a cidade ndash colhiam os frutos da terra duas vezes por ano Usavam no Inverno a aacutegua que vinha de Zeus e no Veratildeo a que a terra fornecesse e os fluxos que faziam correr dos canais77

No que respeita agrave populaccedilatildeo foi estabelecido que na planiacutecie cada distrito forneceria um homem que comandasse aqueles que pudessem servir para a guerra sendo que o tamanho de cada regiatildeo era de dez por dez estaacutedios78 e no total havia sessenta mil distritos Dizia-se que o nuacutemero de homens das montanhas e do resto do territoacuterio era infinito e todos eles em funccedilatildeo dos lugares e das aldeias estavam distribuiacutedos pelos distritos e adscritos a quem as comandava conforme o lugar e a aldeia

Estava prescrito que caso houvesse guerra cada comandante fornecesse uma sexta parte de um carro de guerra para um total de dez mil carros dois cavalos e respectivos cavaleiros mais um par de cavalos sem carro um soldado que combatesse com um pequeno escudo a peacute e tambeacutem dentro do carro bem como pudesse conduzir ambos os cavalos dois hoplitas79 arqueiros e fundeiros80 ndash tambeacutem dois de cada soldados

77 Este sistema de irrigaccedilatildeo faz lembrar descriccedilatildeo de Heroacutedoto (Histoacuterias 3117) da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia

78 1776m por 1776m79 Soldados de infantaria pesada que usavam uma lanccedila

comprida e estavam munidos de uma pesada armadura80 Atiradores que manejavam a funda ndash uma arma constituiacuteda

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de infantaria ligeira uns que lanccedilassem pedras e outros dardos ndash trecircs de cada quatro marinheiros para formar tripulaccedilatildeo de mil e duzentas naus Assim estavam organizadas as tarefas militares da cidade real quanto agraves restantes nove regiotildees era de outro modo mas isso levaria muito tempo para explicar

Quanto agrave organizaccedilatildeo inicial das instituiccedilotildees de governo e dos cargos processou-se do seguinte modo Cada um dos dez reis na sua regiatildeo e na sua cidade detinha um poder absoluto sobre as leis e sobre os homens pois castigava e condenava agrave morte quem quer que quisesse Por outro lado a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relaccedilotildees muacutetuas dependiam das determinaccedilotildees de Posiacutedon tal como lhes transmitira a lei que havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco que se encontrava no centro da ilha num templo de Posiacutedon Nesse local os reis reuniam-se de cinco em cinco e de seis em seis anos alternadamente distribuindo assim equitativamente ciclos de anos pares e iacutempares durante essas reuniotildees deliberavam sobre assuntos de interesse comum verificavam se algum deles tinha transgredido alguma norma e julgavam-no Quando chegava a altura de julgar trocavam antes votos de boa feacute entre si do seguinte modo81 Depois de terem

por um entranccedilado de couro ou corda para arremessar pedras81 O ritual que Criacutetias estaacute prestes a descrever tinha por objectivo

um contacto com o deus Posiacutedon que ao escolher um touro para sacrificar inspiraria os dez reis nas suas decisotildees e reforccedilaria a obediecircncia agraves leis divinas Na origem deste sacrifiacutecio poderaacute estar um episoacutedio relatado por Heroacutedoto (Histoacuterias 2 147-sqq) segundo este autor foi estabelecida uma monarquia no Egipto cujos moldes eram muito semelhantes previa uma divisatildeo territorial sendo

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sido largados os touros no templo de Posiacutedon os dez reis que estavam sozinhos faziam imprecaccedilotildees ao deus para que eles capturassem a viacutetima que lhe agradasse depois perseguiam-na sem armas de ferro mas sim com paus e laccedilos Desses touros aquele que tivessem capturado levavam-no para junto da estela e degolavam-no no topo dela para que o sangue corresse pelas letras ndash na estela junto agraves leis estava um juramento que imprecava grandes maldiccedilotildees para aqueles que o violassem Entatildeo depois de sacrificarem o touro de acordo com as suas leis queimavam todos os seus membros enchiam um kratecircr82 de vinho misturado e deitavam um pedaccedilo de sangue coagulado sobre cada um em seguida limpavam a estela e lanccedilavam o restante para o fogo Depois disto retirando vinho do kratecircr com phiales83 de ouro e fazendo libaccedilotildees na direcccedilatildeo do fogo juravam julgar de acordo com as leis que estavam na estela punir quem anteriormente as tivesse transgredido em algum ponto natildeo transgredir propositadamente nenhuma daquelas escrituras no futuro e natildeo governar nem obedecer a nenhum governante a natildeo ser ao que estava estabelecido de acordo com as leis do pai Depois de fazer estas

cada regiatildeo (12 em vez de 10) administrada por um rei esses reis reuniam-se em assembleia em ambiente ritual e tambeacutem junto a um templo e durante esse encontro faziam sacrifiacutecios libaccedilotildees bem como ingeriam uma bebida sacrificial Aleacutem disso faziam juramentos de fidelidade e entreajuda e elegiam um dos reis como soberano Curiosamente esta civilizaccedilatildeo tambeacutem cultivava uma arquitectura rica e monumental

82 Recipiente utilizado para misturar o vinho com aacutegua antes de ser servido

83 Espeacutecie de copo ndash largo baixo sem asa nem peacute ndash utilizado para retirar o vinho do kratecircr durante as libaccedilotildees

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imprecaccedilotildees para si proacuteprio e para aqueles que de si nascessem cada rei bebia e oferecia como ex-voto a phiale ao templo do deus e dedicava-se ao jantar e a tudo o resto de que tinha necessidade Quando chegava a escuridatildeo e o fogo do sacrifiacutecio se extinguia entatildeo todos eles vestidos com um beliacutessimo manto azul-escuro sentavam-se no chatildeo junto agraves cinzas sacrificiais Agrave noite depois de apagarem por completo o fogo junto ao templo eram julgados e julgavam caso algum deles acusasse outro de ter transgredido algum ponto Depois de julgarem quando chegava a claridade registavam as determinaccedilotildees numa placa de ouro que vestidos com o manto ofereciam como monumento

Havia muitas outras leis particulares sobre as prerrogativas de cada rei mas as mais importantes eram as seguintes nunca em circunstacircncia alguma lutarem entre si ajudarem-se todos uns aos outros caso algum deles tentasse alguma vez destituir a famiacutelia real numa cidade e tal como os antepassados deliberar em comunhatildeo as resoluccedilotildees respeitantes agrave guerra e a outros assuntos atribuindo o comando agrave estirpe de Atlas Natildeo era liacutecito que um rei determinasse a morte de nenhum membro da sua famiacutelia se natildeo tivesse o voto de metade dos dez reis

Esta era segundo o relato a natureza e o poderio que outrora existia naquelas terras e que o deus84 por sua vez organizou e dali trouxe aqui para estas terras pelo seguinte motivo Durante vaacuterias geraccedilotildees

84 Tratar-se-aacute provavelmente de Zeus pois na uacuteltima secccedilatildeo que resta do diaacutelogo (121c) eacute dito que este deus decide aplicar uma puniccedilatildeo aos Atlantes

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121a

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enquanto a natureza do deus85 os engrandecia foram obedientes agraves leis e mantiveram-se indulgentes agrave ascendecircncia divina em todos os aspectos aspiravam a pensamentos verdadeiros e grandiosos e faziam sempre uso da delicadeza86 juntamente com a prudecircncia87 perante as vicissitudes e nas relaccedilotildees entre si ndash daiacute que desprezavam tudo menos a virtude pouco apreciavam a sua condiccedilatildeo e suportavam com facilidade tal como um fardo o peso do ouro e das outras riquezas Assim por natildeo se inebriarem pela sumptuosidade causada pela riqueza nem se descontrolarem natildeo capitulavam Pelo contraacuterio mantendo-se soacutebrios percebiam com acuidade que tudo isso aumentava graccedilas agrave amizade muacutetua acompanhada da virtude mas que isso mesmo decaiacutea por causa da acircnsia e da veneraccedilatildeo bem como a virtude era destruiacuteda pelo mesmo motivo

Foi graccedilas a esta maneira de pensar e agrave natureza divina que mantinham em si que aumentavam todas estas riquezas de que temos falado Mas quando a parte divina neles se comeccedilou a extinguir em virtude de ter sido excessivamente misturada com o elemento mortal passando o caraacutecter humano a dominar entatildeo incapazes de suportar a sua condiccedilatildeo caiacuteram em desgraccedila e aos olhos de quem tem discernimento pareciam desavergonhados pois haviam destruiacutedo os bens mais nobres que advecircm da honra88 Mas aos olhos

85 Neste caso o deus seraacute Posiacutedon pois era dele que descendiam os Atlantes

86 praotecircs87 phronecircsis88 Note-se a ideia da condiccedilatildeo humana enquanto degeneraccedilatildeo

Platatildeo

246 247246 247

c

daqueles que natildeo conseguem discernir a conduta que corresponde agrave verdadeira felicidade davam a impressatildeo de ser extremamente belos e felizes mas estavam impregnados de uma arrogacircncia injuriosa e de poder89

O deus dos deuses ndash Zeus ndash que reina por meio de leis como tem capacidade para discernir este tipo de acontecimentos apercebeu-se de que uma estirpe iacutentegra estava organizada de um modo lastimoso Entatildeo decidiu aplicar-lhes uma puniccedilatildeo de modo a que eles se tornassem razoaacuteveis e moderados Reuniu todos os deuses na sua nobiliacutessima morada que se encontra estabelecida no centro do mundo e contempla tudo quanto participa no devir90 e depois de os ter reunido disse91

progressiva de uma origem divina89 O processo de queda da civilizaccedilatildeo atlante motivado por

uma degenerescecircncia moral faz lembrar a anaacutelise histoacuterica que Platatildeo dedica ao desmembramento do impeacuterio persa nas Leis Neste diaacutelogo o Estrangeiro de Atenas estabelece um contraste entre o reinado de Ciro eacutepoca em que este povo vivia ldquona justa medida entre a servidatildeo e a liberdaderdquo (694a) e o tempo dos seus descendentes que preferiam a luxuacuteria a desmesura e a licenciosidade (695a-b) para explicar a perdiccedilatildeo persa culminada nos exageros de Xerxes (695d-696b)

90 Ao colocar os deuses liderados por Zeus no centro do mundo criado o discurso de Criacutetias confirma a transmissatildeo de poderes por parte do demiurgo jaacute adianta durante o discurso de Timeu Quando o demiurgo entrega agraves divindades menores a tarefa de fabricar as partes mortais da espeacutecie humana (69c) delega-lhes ao mesmo tempo a tarefa de os governar (42e)

91 O texto termina abruptamente neste ponto por motivos que natildeo se conhecem

246 247

Timeu

246 247

c

Apecircndices

248 249

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Iacutendice analiacutetico

254 255

Iacutendice analIacutetico1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

abdoacutemen 78a-e 80d 85eaacutecido 66b 74cactividade intelectual 88a cadamante 59badivinhaccedilatildeo v divinaccedilatildeoagudeza 53d 56a 57a 61e

67b 80a-balma 18a 22b 38e 69c

do homem [36-38 41] 27c n57 42d 43a-d 44a-c 45a d 46d 47d 60a 61c-d 65a 67b 69e 72d 73b-d 74e-75a 76a 81d 85e 86b-88c 89e 90a 91b e 92b 109c 112e 121c n90

parte desiderante 70d-e 71b d 77bparte passional 70aparte racional v intelecto

do mundo [26-27 36 40 50] 30b-c 34b-c 36d-e 37b-c 41d

acircnguloagudo 53d 57a 61eplano (60ordm) 54e-55a crecto 53d 55b-csoacutelido (180ordm) 54e-55b

aquilo em que (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar re-ceptaacuteculo suporte) [43-44] 49e 50c

armas 24b 119a-b e 110barqueacutetipo (cf Ideia ser) [33-

34 39 41-42 45-47] 28a-b e 29b 31a 37c 38b 39e 48e

associaccedilatildeo (cf dissociaccedilatildeo) 64e 65c

biacutelis 71b 82e 83b-c 84d 85a-d

bom-senso 89bcausa [23-24 33-38 51] 22c

28a c 29a 44c 46e-47a 57c-d 58a 61b-c 63e-64a

Iacutendice analiacutetico

256 257256 257

65b 66b 67b-c 69a 70b 76c 79a c 80d 84b 85b n262 87e-88a 89a

acessoacuteria 46c-e 68e 76ddivina 69aerrante 48ainstrumental 68enecessaacuteria 68e-69aprimeira 46dprincipal 76dsecundaacuteria 46e

ceacuterebro 67b 76a ccomposiccedilatildeo (cf decomposi-

ccedilatildeo) [40 49] 33a d 36b 41a d 53b 54a c 55a e 58b e 60e 61b 74c-d 81b e 82c 87e

congeacutenere [34 52] 29b 33b 45d 47b d 57b 63c e 71b 76c 77c 79d 80d 81a-b 85a 88e 90a c 91e

coacutepia 29b-ccores 67c-68dcorpo [37 44 49 58] 19c

33a 34b 35a 36d 43c 45c 46d 50b 53c-e 54b 55c-d 56a-e 57c-d 58b-c 60b-c 61b-d 63c-64a d-e 66d 67c-d 92a 109bceleste [30 35 40] 22d 38c edo homem [40 41] 42a d 43a c 44b-47e 51c-d 53c 60a 61d 62a 65b 69c-e 70b-e 72c-76e 77c-86a 87c-89a 90a 91c 107b d 111b 112edo mundo [25 27 33 50]

28b 30b 31b-40d 44ddaimon 27c n57 90a cdecomposiccedilatildeo (cf composi-

ccedilatildeo) 54c 58edemiurgo [26 33 35-36 38-

42 49-50 52-53] 28a 29a-30c 31a 33a 36d n107 39e 41a 42e 68e-69c 106a n2 121c n90

densidade 59b 62c 64adesejo amoroso [37] 42a

69d 91a-cdevir [24 31-33 37 42 44 47

52-53] 27c 28b 29c-e 38a 49a 51a 52a-d 59d 121c

diluacutevio 20e n18 22b d 23b 25c 111a 112a

discurso verosiacutemil (cf verosi-milhanccedila narrativa verosiacute-mil) [48-53] 30b 55d-e 57d 68b 90e

dissemelhanccedila 33b 39e 45a d 51e 53a e 57c 60a 63b-d 80a 83c

dissociaccedilatildeo (cf associaccedilatildeo) 61d 64e 65c

dissoluccedilatildeo 33a 38b 41a-b 52a 53e 56c-d 57a-b 58e 60b-61b 65d 66d 67e 68d 73e 79a 81a 82e-83d 84d-e 85d-e 111e

divinaccedilatildeo 24c 71d-72bdoce v doccediluradoccedilura 60b 66c 71b-c 78ddoenccedila 17a 23a 71e

da alma 44c 86b-92cdo corpo 33a 72c e 81e-86a

256 257

Iacutendice analiacutetico

256 257

dor (cf prazer) 42a 64a-65b 69d 71c 75b 77b 81e 86b d-e

duplicaccedilatildeodo cubo [21 n7]do quadrado 32a-b

dureza 43c 59b 62b 63e 76d

elementos [24-26 29 41 49] 32a-c 43a 44a 48b-c 49b 51a 52d-61c 73a 76b 81e-82c 121aaacutegua [23 29 41 46] 32b-c 42c e 43c 46d 48b 49b-d 51a-b 53b-c 55d 56a-e 57b 58d 59b-61c 66b-e 68a 69b 73b e 74c 78a 79a 80b 82a 86a 92bar [23 29 41] 32b-c 33c 42d-e 45d 46d 48b 49c 51a-b 52d 53b-c 55d-61c 63b-c 64c 66a-67b 73b 77a 78a-d 79b-80a 82a 83c 84b-85a 86a 92bfogo [29 41] 31b 32b-c 40a 42c-e 43c 45b-46d 48b 49b-2 51a-b 53b-54b 55d-61e 63b 64c-d 67e-68b 69b 70c 73b-e 74c 76b 77a 78a-e 79d-e 80d-e 82a 83b 86aterra [29 40-41] 31b 32b-c 42d-43c 44d 46d 48b 49c 51a-b 52d-53e 55d-e 56d-e 58e-61b 63c 66d 73b-e 74c 78a 82a 86a

epilepsia 85b n262

esfera [25 40] 33b 44d 55a c n197 62c 63a 73e

espelho 46a-c 71b 72cEstado [15-16 58 62] 17c

19b 20b 25e 110d n29estaacutedio (medida) 113c 115d-

116c 117c-119aestaleiro naval 115c 117devidecircncia [57] 91e 110e

111cfebre 84e 86afleuma 82e 83c-d 84d-85b

86efluxo (cf refluxo) 43a-b 44b

45c 75e 78c 80b 86e 88a

frio 22e 33a 62b 74b-c 82a 85d

guerra [22 38 54 62 64] 18c 19c-20b 23c 24b d 25b 88e 108c n12 108e-109a 110a-b 119a 120d 121c n90

harmonia [25 30-31] 26d 37a 41a 47c-d 55c 67c 69b 80a-b 90d

hipotenusa 54dhumidade v huacutemidohuacutemido 43c 51b 59a 60c-d

62a 65d-66b 68a-b 74c-d 76a-b 82b

Ideia (cf arqueacutetipo ser) [18-20 31 39 52-53] 27c n57 28a nn 61 64 29a n68 33d n95 35a nn103 104 51c-d

imagem [34 52] 29b 37d 52c 92c

Iacutendice analiacutetico

258 259258 259

imitaccedilatildeo [39 45-46 52-53 62] 19d 38a 39e 40d 41c 42e 47c 48e 50c 51b 69c 81b 88c 107b-c

impressatildeo 42a 43b 44a 45c 52d 57c 58e 61c

instituiccedilatildeo poliacutetica 23c 87aintelecccedilatildeo 37c 46d-e 51d-eintelecto [50] 27c 29b-30c

34a 36d-37a 39e 44a 46d 47d 71b 77b 87c 92b-c 109d 121c n90

Intelecto [23-24 35-37 42] 47b-48a

inteligiacutevel [31-33 43-44 53] 28a nn59 64 30c-31a 38b n120 39e 48e 51a c 92c

interstiacutecio 58b 59c-61birracionalidade [32 36-37]

28a 42d 43b e 47d 69dirregularidade 30a 52e 58d

59a 62b 63ejusticcedila 17d 41c 112ekratecircr 120alei 21e n28 23e-24d 27b

41e 83e 109e 114e n51 119c-120e 121b

limite 51b-c 55c d n199 60b 69e-70e 82b 112a

localizaccedilatildeo (cf aquilo em que lugar receptaacuteculo suporte) [42-47] 52b

loucura 86b-clugar (cf aquilo em que locali-

zaccedilatildeo receptaacuteculo suporte) [42-47] 52a-d

medula [40-41] 73b-75a 77d 81c-d 82c-d 84b 85e

86c 91a-bMesmo [26] 35a-b 36c-40b

42d 43d-44b 83e-84bmito [54 61 n24 62-63]

22b n33 22c 23e n39 26c 90a n278 109c n21 110a

movimento [26 30 35 58 63] 19b 34a 36c 37c 38a 38e-39a 40a-b 43b-c 44d 45d-e 46e 47c-d 48a n163 52a-53a 56c e 57c-58e 59d 61e 62b 64b e 67b-68a 71c 74a e 76b 77c 79b-80b 81a-b 86e 87e 88b-90c

mulher [50] 18c 42b 70a 76d 90e-91d 110b 112d 113c-d 116e 117b

muacutesica [29-31] 18a 35c n106 47c 80b n254 88c

naos 116cnarrativa verosiacutemil (cf discurso

verosiacutemil verosimilhanccedila) [48-53] 29c 59c 68d

nassa [40] 78b-d 79dNecessidade [35-37] 47e

56c 69d 75a 89bordem [35 39 41-42 53]

24b-c 30a 37d 46e 47e 53b 69b 83a 88e 90c 109c-d

organizaccedilatildeo [41-42 54 65] 20a 21b 23e 24d 53a 69c 85c 112c 113e 115c 117a-b 118a 119b-c 120d 121b

oricalco 114e 116c-d 119d

258 259

Iacutendice analiacutetico

258 259

osso 64c 73a-e 74d-75e 76d 82c-d 83d-84b 86d 111b

ouro 18b 50a-b 59b 112c 114e 116c-e 120a c 121a

Outro [26] 35a-b 36c 37a-b 38c-e 43d-44b 74a

pai [22 42] 22c 28c 37c 41a 42e 50d 71d 109c 110b n26 113d 120b

peacute (medida) 115d 118dpensamento 47b 87c 90cpercepccedilatildeo [31] 28bpintura [58] 19b 116b

encaacuteustica 26cde sombreados 107d

phiale 120a-bplanta [31] 59e 77a-c 90apletro 115d 116a d 118cpoesia 21b-c 113apoeta [39-40 56] 19d 21b-d

108bpoliedros regulares

dodecaedro 55c n297hexaedro 55c n196icosaedro [29] 55b n195octaedro [29] 55a n194tetraedro 55a n 193

poro v porosidadeporosidade 72c 79a-c 85c

86dporto 25a 115c-d 117d-epotecircncia (sentido filosoacutefico)

71b 83c (sentido matemaacute-tico) 31c (sentido poliacutetico-militar) [60 64] 24e 25b

prata 18b 112c 116dprazer (cf dor) 42a 47d 59d

64a-65b 69d 77b 80b

81e 86b-e 115bproporccedilatildeo [25 30 41 49]

31c-32c 37a 53a e 56c 68b 69b 82b 116d

providecircncia 30c 44c 45aquente 50a 61d-62a 67d

74c 76b 79d-e 82a 85d 113e 117a-b

raciociacutenio [29 39 43-44 49] 29e 30b 33a 34a 38c 47c 52b 56b 57d 72e 77b-c 86c 107b

receptaacuteculo (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar suporte) [43] 49a 50d-51a 53a 57c

refluxo (cf fluxo) 43a-brepresentaccedilatildeo [34 61-62]

37c 38c 51a 71a 107b e 116e

sabedoria 18a 24b d 109csangue 67b 70b 79d 80e-

81a 82c-84c 85c-d 119e-120a

seco 22d 60c 76d 82b 88d 115a e

sensaccedilatildeo v sensiacutevelsensiacutevel [23 31-33 37 39 44

50] 28b 37b 38b n120 42a 43c 44a 45d 47e n160 51a d 52a-b 61c-62a 64a-65e 67a-d 69d 70b 71a e 74e 75b e 76d 77a-e 80b 92c 106a n2

sentidos [32] 28a-b 38a 42a n140 75aaudiccedilatildeo 47c 64c 67a-colfacto 66c-67a

Iacutendice analiacutetico

260 261260 261

paladar 65b-66ctacto 61c-64avisatildeo 45b-47a 52d 60a 64c-d 67c-68d 91e

ser (op devir cf arqueacutetipo Ideia) [32 42 51-52] 27c n56 27d-28d 29c 34e-35b 37a-38c 48e 52d

sonho 45e 52b 71esopro respiratoacuterio 66e 78a

79b-c 80d 83d 84d 91a c

soro 82e 83csuor 83d 84esuporte (cf aquilo em que lo-

calizaccedilatildeo lugar receptaacuteculo) [43 45] 50c-d

templo [60] 23a 111d 112b-c 113c 114e n51 115b 116c 117c 119d 120b-c

teacutetano 84etouro [60] 119d-etriacircngulo [30] 48c n165 50b

53c 54a-55e 57d 58d 61a 73b 81b-d 82d 89cequilaacutetero [30] 54a-55eisoacutesceles [30] 54a-c 55brectacircngulo [30] 54d

verosimilhanccedila (cf discurso ve-rosiacutemil narrativa verosiacutemil) [32 35 39] 29c 44c 48b d 53d 56b-c 59d 67d 72d 107d

virtude [65] 24d 34b-c 86d n263 87d 109c 110c 112e 120e-121a

260 261

Iacutendice de nomes e lugares

260 261

Iacutendice de nomes e lugares1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

Anferes 114bApatuacuterias 21bApolo 108cAacutesia [60] 24b e 112e 118eAsopo 110eAtena [16 n2] 20e n19 21e

23e n39 109c 112bAtenas [16 22-23 53-54 61-

62 64-65 67-68] 21b n22 c n25 23e n39 108c n13 110b n27 121b n90

Atenienses [23 61 n24 64-65 68] 21e 23c 24b n40 27b 109a 121c n90

Aacutetica [59 68] 110eAtlantes [68] 109a n18 114e

n51 120d nn84 85Atlacircntida [16 22 53-56 59-

62 64 68] 25a-sqq 108e 113c e 114b n47

Atlas [59] 114b d 120dAutoacutecton 114c

Azais 114cCiteacuteron 110eColunas de Heacuteracles (Estrei-

to de Gibraltar) 24e 25c 108e 114b-c

Cureoacutetis 21bDeucaliatildeo 22b 112aDiaprepes 114cEgipto [22 57-58 60-61]

21c e 24b n40 25b 114c 119d n81

Elasipo 114cErictoacutenio 23e n39 110bErisiacutecton 110bEriacutedano 112aEumelo 114bEuropa [64] 24e 25b 112eEveacutemon 114bFaetonte 22cFoacutercis 40eForoneu 22aGadiacuterica [60] 114b

Iacutendice de nomes e lugares

262 263262 263

Gadiro [60] 114bGeia 23e 40eHefesto 23e 109c 112bHeacutelios 22cHera 40eHesiacuteodo 21cHomero 21cIstmo de Corinto 110dItaacutelia [21] 20aJusticcedila (divindade) 109bLiacutebia 24e 25b 108eLoacutecride [21 27] 20aMestor 114cMnemoacutesine 108dMneacuteseas 114bMusas 23a 47d-e 73a 108cNeith (Atena) 21eNereides 116eNilo 21e 22d 24b n41Niacuteobe 22aOceano (divindade) 40eOceano Atlacircntico [56 n18]

24e 114aOroacutepia 110eOropo 110d n30Panateneias [16-17 65] 21a

n19 23e n39 108c n12Parnaso 110ePirra 22b 112a n38Posiacutedon [60] 113c-e 114b

n47 e n51 116c 117b 119c-d 119d n81 120e n85

Pseacutenopis de Helioacutepolis 22a n30

Reia 40eSais 21e 22a n30Saiticos 21e

Soacutelon [22 57-58] 20e 21a-22b 23b-c 25b e 27b 110a 113a

Socircnquis de Sais 22a n30Teacutetis 40eTirreacutenia 25b 114cZeus [38 60] 40e 109c n21

111d 114b n47 116e n68 118e 120d n84 121b c n90

262 263

Glossaacuterio

262 263

glossaacuterio

agalma representaccedilatildeoagnoia ignoracircnciaaisthecircsis sensaccedilatildeo percepccedilatildeoaitia causaalogos irracionalamathia ignoracircnciaanankecirc Necessidadeanalogia proporccedilatildeoanocircmalos irregularanomoiotecircs dissemelhanccedilaapeikasia representaccedilatildeoapollymenon corruptiacutevel (sujei-

to agrave corrupccedilatildeo)aretecirc virtudeblepocirc contemplar (ldquopocircr os

olhos emrdquo)chocircra lugar(to) diakenon interstiacuteciodiakosmecircsis organizaccedilatildeodiakrisis dissociaccedilatildeodialyocirc desintegrardianoecircsis actividade intelecti-

va intelecto

dianoia actividade intelectual desiacutegnio disposiccedilatildeo pensa-mento

diataxis ordenaccedilatildeodynamis potecircncia proprieda-

deeidos Ideia formaeikocircn coacutepia imagemeikos verosiacutemileikos logos discurso verosiacutemileikos mythos narrativa verosiacute-

milekmageion suporte(to) en ocirc aquilo em queepistecircmecirc saberepithymia parte desiderante da

alma (v alma)erocircs desejo amorosogenesis devir geraccedilatildeogenos espeacutecie linhagemgignomai gerar(to) gignomenon deveniente (v

devir)

Glossaacuterio

264 265264 265

harmonia harmoniahedra localizaccedilatildeo(to) heteron Outrohypodochecirc receptaacuteculokoilia abdoacutemenkata tauta aei imutaacutevelkenos vaziokenocircsis esvaziamentokerannymi misturar (v mistu-

ra)kinecircsis movimentokosmos mundologismos desiacutegnio raciociacuteniologos discursolysis dissoluccedilatildeolyocirc dissolvermania loucurameignymi misturar (v mistu-

ra)meixis misturamimecircma mimecircsis imitaccedilatildeomonimos estaacutevelmonocircsis singularidadenoecirctos inteligiacutevelnous intelecto intelecccedilatildeo pro-

poacutesito bom-sensohomoiotecircs semelhanccedila(to) on o que eacute (v ser)ousia ser (to) pan universopathecircma afecccedilatildeoparadeigma arqueacutetipo exem-

plopaideia paideusis educaccedilatildeophronecircsis inteligecircncia pensa-

mento sabedoriaphthora destruiccedilatildeophysis natureza

plecircrocircsis enchimentopneuma sopro respiratoacuteriopoliteia Estado instituiccedilatildeo

poliacutetica (p koinecirc) vida em comunidade

praotecircs delicadezapronoia providecircncia (divina)

capacidade de antecipaccedilatildeo (da alma humana)

syngenecircs congeacuteneresynkrisis associaccedilatildeosynaitia causa acessoacuteriasynisthecircmi constituirsyntithecircmi comporsymmetria proporcionalidadesystasis constituiccedilatildeo estruturasyntaxis sistematizaccedilatildeotaxis ordemtauton Mesmotekmecircrion evidecircnciatecirckocirc derreter dissolverthymos parte passional da alma

(v alma)zocircon ser-vivo

264 265264 265

volumes puBlicados na ColeCccedilatildeo Autores GreGos e lAtinos ndash seacuterie textos GreGos

1 Delfim F Leatildeo e Maria do Ceacuteu Fialho Plutarco Vidas Paralelas ndash Teseu e Roacutemulo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

2 Delfim F Leatildeo Plutarco Obras Morais ndash O banquete dos Sete Saacutebios Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

3 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Banquete Apologia de Soacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

4 Carlos de Jesus Joseacute Luiacutes Brandatildeo Martinho Soares Rodolfo Lopes Plutarco Obras Morais ndash No Banquete I ndash Livros I-IV Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

5 Aacutelia Rodrigues Ana Elias Pinheiro Acircndrea Seiccedila Carlos de Jesus Joseacute Ribeiro Ferreira Plutarco Obras Morais ndash No Banquete II ndash Livros V-IX Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

6 Joaquim Pinheiro Plutarco Obras Morais ndash Da Educaccedilatildeo das Crianccedilas Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

7 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Memoraacuteveis Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

8 Carlos de Jesus Plutarco Diaacutelogo sobre o Amor Relatos de Amor Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

9 Ana Maria Guedes Ferreira e Aacutelia Rosa Conceiccedilatildeo Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Peacutericles e Faacutebio Maacuteximo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

10 Paula Barata Dias Plutarco Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo Como Retirar Benefiacutecio dos Inimigos Acerca do Nuacutemero Excessivo de Amigos Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

11 Bernardo Mota Plutarco Obras Morais - Sobre a Face Visiacutevel no Orbe da Lua Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

12 J A Segurado e Campos Licurgo Oraccedilatildeo Contra Leoacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH CEC 2010)

13 Carmen Soares e Roosevelt Rocha Plutarco Obras Morais - Sobre o Afecto aos Filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

14 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Plutarco Vidas de Galba e Otatildeo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

15 Marta Vaacuterzeas Plutarco Vidas Paralelas ndash Demoacutestenes e Ciacutecero Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

16 Maria do Ceacuteu Fialho e Nuno Simotildees Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Alcibiacuteades e Coriolano Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

17 Gloacuteria Onelley e Ana Luacutecia Curado Apolodoro Contra Neera [Demoacutestenes] 59 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2011)

18 Rodolfo Lopes Platatildeo Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices (Coimbra CECH 2011)

ImpressatildeoSimotildees amp Linhares Lda

Av Fernando Namora nordm 83 - Loja 43000 Coimbra

O projecto Timeu-Criacutetias circula todo ele em torno dos conceitos de origem criaccedilatildeo e constituiccedilatildeo ordenada num primeiro momento cosmoloacutegicas e num segundo soacutecio‑poliacuteticas ou mesmo civilizacionaisNo Timeu um princiacutepio divino inteligente (o demiurgo) molda como um artiacutefice a mateacuteria preacute‑coacutesmica em obediecircncia a um modelo de racionalidade externo (o arqueacutetipo) O resultado eacute o mundo uma imagem do modelo e o Homem um microcosmosNo Criacutetias depois de suposta a cosmologia encena‑se uma guerra entre duas civilizaccedilotildees contrastantes (e tambeacutem elas arquetiacutepicas) que serve de paradigma para a constituiccedilatildeo originaacuteria das sociedades e tambeacutem para a natureza ciacuteclica da supremacia poliacutetica Deste breve texto natildeo resta senatildeo a parte inicial que permite natildeo mais do que suposiccedilotildees instaacuteveis Sobreviveu poreacutem um patrimoacutenio ficcional riquiacutessimo em tudo o que se tem criado sobre a suposta Ilha da Atlacircntida e o mito a que deu origem

  • Capa
  • Folha de rosto
  • Ficha teacutecnica
  • Iacutendice
  • Nota preacutevia
  • Introduccedilatildeo
    • I Aspectos extratextuais
      • 1 O projecto Timeu-Criacutetias
      • 2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo
      • 3 Personagens
        • II Aspectos temaacutetico-estruturais
          • 1 Antecedentes cosmoloacutegicos
          • 2 O discurso de Timeu
          • 21 Pressupostos iniciais
          • 22 Intelecto e Necessidade
          • 23 O demiurgo
          • 24 O terceiro niacutevel ontoloacutegico
          • 25 O estatuto do discurso
          • 3 O discurso de Criacutetias
          • 31 A historicidade da narrativa sobre aAtlacircntida
          • 32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeode Platatildeo
          • 33 Leituras alegoacutericas
          • 4 Estrutura dos diaacutelogos
              • Timeu
              • Criacutetias
              • Apecircndices
                • Bibliografia
                • Iacutendice analiacutetico
                • Iacutendice de nomes e lugares
                • Glossaacuterio
                  • Volumes publicados na Colecccedilatildeo Autores Gregos e Latinos ndash Seacuterie Textos Gregos
                  • Coacutelofon
                  • Contracapa
Page 2: Timeu-Crítias · 2018. 8. 8. · 6 7 no t a p r é v i a O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova tradução do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira

Platatildeo

Timeu-Criacutetias

Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notasRodolfo Lopes

Autor PlatatildeoTiacutetulo Timeu-Criacutetias

Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices Rodolfo Lopes Editor Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Ediccedilatildeo 1ordf2011

Coordenador cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu FialhoConselho editorial Joseacute Ribeiro Ferreira Maria de Faacutetima Silva

Francisco de Oliveira Nair Castro SoaresDirector teacutecnico da colecccedilatildeo Delfim F Leatildeo

Concepccedilatildeo Graacutefica Rodolfo Lopes

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

Tel 239 859 981 | Fax 239 836 7333000-447 Coimbra

ISBN 978-989-8281-83-8ISBN Digital 978-989-8281-84-5

Depoacutesito Legal 32599511

Obra publicada com o apoio de

copy Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensiscopy Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e‑learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Iacutendice

Nota preacutevia 7

Introduccedilatildeo 11I Aspectos extratextuais 131 O projecto Timeu-CriacuteTias 132 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo 153 Personagens 20II Aspectos temaacutetico-estruturais 231 Antecedentes cosmoloacutegicos 232 O discurso de Timeu 3121 Pressupostos iniciais 3222 Intelecto e Necessidade 3423 O demiurgo 3824 O terceiro niacutevel ontoloacutegico 4225 O estatuto do discurso 483 O discurso de Criacutetias 5331 A historicidade da narrativa sobre a Atlacircntida 5532 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de Platatildeo 5633 Leituras alegoacutericas 634 Estrutura dos diaacutelogos 65

Timeu 69

CriacuteTias 213

ApecircndicesBibliografia 249Iacutendice analiacutetico 255Iacutendice de nomes e lugares 261Glossaacuterio 263

6 76 7

nota preacutevia

O volume que se segue pretende por um lado apresentar uma nova traduccedilatildeo do Timeu e por outro disponibilizar a primeira versatildeo do texto do Criacutetias em portuguecircs Pelas razotildees que exporemos posteriormente (vide infra pp 13-15) a nossa proposta assenta em considerar ambos os diaacutelogos como um bloco uno tanto a niacutevel dramaacutetico como narrativo

Em relaccedilatildeo agraves duas traduccedilotildees do Timeu jaacute existentes no seguimento das quais esta forccedilosamente se inscreve cumpre esclarecer alguns aspectos A primeira de Manuel Maia Pinto (Porto Imprensa Moderna 1951) aleacutem do facto de contar com quase 50 anos denuncia bastantes fragilidades inexplicavelmente omite a secccedilatildeo inicial do texto (17a-20c) e assenta em pressupostos no miacutenimo discutiacuteveis como por exemplo a identificaccedilatildeo do demiurgo com Eros (eg pp 44 46) ou das Ideias com Deus na sua versatildeo judaico-cristatilde (eg pp 42 47) Jaacute a segunda da autoria de Maria Joseacute Figueiredo (Lisboa

8 98 9

Instituto Piaget 2003) situa-se num niacutevel diferente na medida em que se manteacutem fiel ao texto grego ao seu autor e ao contexto histoacuterico-filosoacutefico que os enquadram bem como conta com uma excelente introduccedilatildeo da autoria de Joseacute Trindade Santos Em relaccedilatildeo a esta a nossa procuraraacute oferecer interpretaccedilotildees alternativas de alguns passos e uma anotaccedilatildeo mais vocacionada a por um lado esclarecer certas secccedilotildees do texto (principalmente as meta-narrativas) e por outro a propor algumas relaccedilotildees intertextuais As grandes diferenccedilas satildeo a ediccedilatildeo de base (a autora segue a de Rivaud) e a inclusatildeo na nossa versatildeo de iacutendices remissivos e glossaacuterio

Quanto agrave introduccedilatildeo procuraacutemos esclarecer alguns aspectos extratextuais (I) (1) a unidade dos dois diaacutelogos (2) a dataccedilatildeo e (3) as personagens Em relaccedilatildeo ao conteuacutedo tentaacutemos explicar com mais detalhe algumas questotildees que natildeo poderiam ser abrangidos nas notas em virtude da sua complexidade ou simplesmente porque pretendem acima de tudo situar o texto num quadro histoacuterico-filosoacutefico mais abrangente (II) (1) os antecedentes cosmoloacutegicos (2) o estatuto e estrutura da intervenccedilatildeo de Timeu e tambeacutem (3) da de Criacutetias Finalmente providenciaacutemos uma esquematizaccedilatildeo analiacutetica dos assuntos tratados nos diaacutelogos Como apensos agrave traduccedilatildeo incluiacutemos a lista da bibliografia citada um glossaacuterio dos termos mais importantes e respectivas traduccedilotildees seguido de um iacutendice analiacutetico e outro de nomes e lugares

Para a traduccedilatildeo seguimos a ediccedilatildeo estabelecida por Burnet salvo nalguns casos isolados em que se

8 98 9

impunham alteraccedilotildees sugeridas e justificadas por novos dados entretanto aduzidos Em todos estes casos a divergecircncia foi devidamente assinalada em nota

Resta agradecer a todos quantos de algum modo participaram neste trabalho Maria do Ceacuteu Fialho e Maria Luiacutesa Portocarrero pela diligente orientaccedilatildeo da dissertaccedilatildeo da qual foi extraiacuteda grande parte dos elementos deste volume (toda a traduccedilatildeo do Timeu e cerca de dois terccedilos da introduccedilatildeo) Aacutelia Rodrigues Antoacutenio Pedro Mesquita Carlos A Martins de Jesus Delfim F Leatildeo Gabriele Cornelli Joatildeo Diogo Loureiro Maria Teresa Schiappa de Azevedo pela leitura criacutetica do manuscrito e tambeacutem ao Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos por ter acolhido com interesse a publicaccedilatildeo

inTroduccedilatildeo

12 13

inTroduccedilatildeo

12 13

i aspectos extratextuais

1 O projecto Timeu-CriacutetiasA unidade entre os dois diaacutelogos verifica-se tanto

ao niacutevel dramaacutetico quanto ao temaacutetico Mas aleacutem de impliacutecita nestes duas dimensotildees a sequecircncia diegeacutetica eacute confessada pelos proacuteprios participantes Logo no iniacutecio do Timeu Criacutetias ao anunciar a Soacutecrates qual seraacute o programa (diathesis) de conversaccedilotildees para aquela ocasiatildeo diz muito claramente que a seguir a Timeu discursaraacute ele proacuteprio

Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada (27a2-27b1)

Rodolfo Lopes

14 1514 15

A inclusatildeo de ambos os discursos no mesmo programa aliada ao gesto de Timeu passar a palavra a Criacutetias depois de terminar a sua intervenccedilatildeo tal como fora combinado (106b6-7) eacute motivo suficiente para considerar que haacute uma clara continuidade Para aleacutem disso uma leitura superficial de ambos seraacute com certeza bastante para perceber que eacute notoacuteria a intenccedilatildeo de Platatildeo em consideraacute-los partes de um todo em termos gerais o Timeu ocupa-se da constituiccedilatildeo do mundo e do Homem enquanto que o Criacutetias daacute seguimento a esse projecto ao apresentar a constituiccedilatildeo da dimensatildeo social ou seja da sua integraccedilatildeo em comunidade no mundo criado

Desta indissociabilidade datildeo tambeacutem conta as orientaccedilotildees dos estudos platonistas que cada vez mais tendem a considerar os dois como um soacute Aleacutem da uacuteltima grande monografia sobre estas obras (Johansen 2004) o congresso que lhes dedicou a International Plato Society aborda-as igualmente como um todo e natildeo como diaacutelogos separados (Calvo amp Brisson 1997) Ainda assim ao longo dos seacuteculos as atenccedilotildees sempre estiveram mais voltadas para o Timeu em virtude das questotildees filosoacuteficas nele abordadas Por esse motivo grande parte do que se trataraacute nesta Introduccedilatildeo diraacute respeito a esse diaacutelogo mas tendo sempre em conta que a ligaccedilatildeo com o Criacutetias eacute de tal forma estreita que nos permite encaraacute-los como uma obra soacute

De acordo com algumas breves referecircncias de que dispomos era provaacutevel que este projecto de Platatildeo incluiacutesse um terceiro diaacutelogo ndash o Hermoacutecrates ndash formando assim uma trilogia Logo no iniacutecio do Timeu

14 15

inTroduccedilatildeo

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quando Soacutecrates refere Hermoacutecrates faz questatildeo de o declarar competente em todos aqueles assuntos (20a8) e ao apresentaacute-lo nos mesmos moldes que as outras duas personagens parece implicar que tambeacutem uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele Essa possibilidade esclarece-se jaacute no Criacutetias quando Soacutecrates diz que Hermoacutecrates seraacute o terceiro a falar (108a) Contudo eacute muitiacutessimo provaacutevel que esse projecto nunca tenha sido consumado

2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeoAo abordarmos a data de uma obra com uma

estrutura desta natureza deveremos antes de mais ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista distintos o da data dramaacutetica isto eacute a altura ou eacutepoca a que se reporta a acccedilatildeo narrada por outro lado o da data real de composiccedilatildeo o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra

No que respeita agrave data dramaacutetica o seu estabelecimento dependeraacute da escolha de uma de duas vias Se considerarmos que Soacutecrates em 17c se refere agrave Repuacuteblica quando alude ao diaacutelogo que tinha travado com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor entatildeo a data dramaacutetica situar-se-aacute no dia a seguir agrave daquele outro diaacutelogo ndash por volta do ano 420 ou 421 aC durante as Bendideias1 Poreacutem se nos ativermos unicamente agravequilo que diz o texto sobre este aspecto a data apontada eacute um

1 Apud Pereira 2001 p XIII As Bendideias eram um festival religioso realizado no mecircs de Thargeleion (Junho)

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pouco diferente pois em 26e Soacutecrates refere de forma indirecta que aquele encontro se processa durante as Panateneias2 Quanto ao ano teraacute sido entre 430 e 425 aC (apud Taylor 1928 p 15 Duraacuten 1992 p 134 Brisson 2001 p 72) portanto alguns anos antes da Repuacuteblica

Aquela associaccedilatildeo com a Repuacuteblica de que depende a primeira via carece de alguma consistecircncia podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razotildees Nota muito bem Cornford (1937 pp 4-5) que o ldquoontemrdquo a que Soacutecrates se refere natildeo tem forccedilosamente que ser o dia do encontro na casa de Ceacutefalo mas poderaacute ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questotildees que nesse diaacutelogo satildeo tambeacutem discutidas Em segundo lugar a referecircncia agraves Panateneias natildeo eacute de todo inocente pois coaduna-se com o elogio de Criacutetias agrave vitoacuteria de Atenas sobre a Atlacircntida (20d-26c) bem como justifica a presenccedila de Hermoacutecrates (um estrangeiro) na cidade Aleacutem disso o resumo que Soacutecrates faz da conversa que tinham tido no dia anterior sobre o Estado ideal natildeo inclui todos os assuntos tratados na Repuacuteblica o que entra em contradiccedilatildeo com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais (to kephalaion 17c2) Por outro lado deve tambeacutem sublinhar-se que Soacutecrates inclui todos os presentes na dita conversa do dia anterior (17a1-2)3 Ora sabemos que nenhuma das personagens

2 O festival dedicado agrave deusa Atena tradicionalmente celebrado no 28ordm dia do mecircs de Hecatombeon (meados de Julho)

3 Note-se inclusivamente o uso da primeira pessoa do plural quando eacute referido o tal encontro do dia anterior (eg 17c7

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do Timeu excepto Soacutecrates participa na Repuacuteblica Deste modo seraacute porventura mais prudente optar pela segunda hipoacutetese e estabelecer a data dramaacutetica na altura das Panateneias

Quanto agrave data real de composiccedilatildeo eacute tradicionalmente situada nos uacuteltimos anos da vida de Platatildeo poreacutem houve algumas tentativas de a fazer recuar um pouco Segundo a primeira hipoacutetese (a mais antiga) o diaacutelogo pertence agrave uacuteltima fase da qual fazem parte tambeacutem o Sofista o Poliacutetico o Filebo e as Leis de acordo com a segunda ele deveraacute pelo contraacuterio ser incluiacutedo na fase meacutedia juntamente com Craacutetilo Feacutedon Banquete Repuacuteblica Fedro Parmeacutenides e Teeteto

A hipoacutetese tradicional foi postulada ainda na Antiguidade Plutarco por exemplo acreditava que o Criacutetias natildeo tinha sido acabado porque Platatildeo morrera enquanto o escrevia4 No entanto jaacute no seacuteculo XIX comeccedilaram a surgir algumas opiniotildees que apontavam para a inclusatildeo do diaacutelogo na fase meacutedia (vide Cherniss 1957 p 226 n 3) e jaacute na primeira metade do seacuteculo XX Taylor (1928 pp 4-5) admite no seu comentaacuterio ao Timeu que essa possibilidade devia ser tida em conta Alguns anos mais tarde esta hipoacutetese atinge o estatuto de tese quando Owen (1953) publica um artigo em que defende a sua validade com base em dois argumentos ndash um mais formal outro temaacutetico Por um lado partindo das anaacutelises estilomeacutetricas de Billig5 conclui

dieilometha 17d2 eipomen 18c1 epemnecircsthecircmen)4 Vida de Soacutelon 325 Billig (1920) Este autor fixar a cronologia do corpus Platonicum

atraveacutes de estudos estatiacutesticos baseados em padrotildees de frequecircncia de

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que o estilo do Timeu (e do Criacutetias) nada tem que ver com o dos diaacutelogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista Poliacutetico Filebo e Leis) mas que pelo contraacuterio estava muito proacuteximo do dos diaacutelogos meacutedios particularmente da Repuacuteblica do Fedro do Parmeacutenides e do Teeteto (Owen 1953 pp 80-82) Por outro lado Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Platatildeo aparecem no Timeu e noutros diaacutelogos da fase meacutedia no sentido de demonstrar que este seraacute obrigatoriamente anterior a alguns daqueles Diz por exemplo que o modo admiravelmente estaacutevel como a doutrina das Ideias aparece no Timeu eacute uma evidecircncia de que a obra seraacute mais anterior do que defende a hipoacutetese tradicional pois soacute no Parmeacutenides foi submetida a uma refutaccedilatildeo de tal forma irrepreensiacutevel que seria impensaacutevel que Platatildeo tivesse redigido o Timeu apoacutes o Parmeacutenides (Owen 1953 pp 82-83)

O artigo de Owen em virtude das ousadas conclusotildees que apresentava obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso Eacute Cherniss que quatro anos mais tarde vem desconstruir toda a sua argumentaccedilatildeo reforccedilando assim a posiccedilatildeo da teoria tradicional As suas conclusotildees muito bem fundamentadas apontam para que Craacutetilo Parmeacutenides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e

palavras e construccedilotildees sintaacutecticas Depois de recolhidos estes dados eram cruzados e analisados de forma a permitir um agrupamento estanque e inequiacutevoco dos diaacutelogos Este tipo de anaacutelise foi posteriormente alargado e ateacute melhorado com o contributo da informaacutetica mas continuou a carecer de alguma fiabilidade em virtude dos anacronismos resultantes

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que mais importante as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos diaacutelogos da fase tardia (Cherniss 1957 p 266)

Com efeito parece-nos que as teses de Owen natildeo se baseiam em dados suficientemente soacutelidos para abandonar a hipoacutetese tradicional Por um lado as anaacutelises estilomeacutetricas constituem um perigo metodoloacutegico que ameaccedila contaminar a coerecircncia da tarefa pois baseiam-se numa recolha ndash e posterior tratamento ndash de dados de um modo estatiacutestico que por se tratar de um processo linear e mecanizado pode aduzir agrave investigaccedilatildeo um sem nuacutemero de pequenos erros os quais imperceptivelmente multiplicados de um modo quase exponencial podem resultar em conclusotildees bastante problemaacuteticas Num desses estudos em que Owen se baseou o Criacutetias aparece muito distante do Timeu ainda que seja o proacuteprio autor a confessar e a corrigir esse erro (Owen 1953 p 80) acaba por denunciar as fragilidades daquele tipo de ferramenta Por outro lado a forma como lecirc o confronto das doutrinas de Platatildeo eacute tambeacutem faliacutevel pois admite uma perspectiva contraacuteria e igualmente vaacutelida Por exemplo o referido caso da doutrina das Ideias poderaacute ser interpretado do modo oposto apoacutes ter sido refutada no Parmeacutenides Platatildeo reformulou-a no Timeu ao acrescentar o terceiro princiacutepio ontoloacutegico ao processo de participaccedilatildeo ainda que como veremos a sua contribuiccedilatildeo se processe em contornos muitiacutessimo particulares

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3 PersonagensNos diaacutelogos participam quatro personagens

aleacutem de uma outra que eacute referida logo na primeira frase mas da qual natildeo resta qualquer notiacutecia Soacutecrates Timeu Hermoacutecrates e Criacutetias

Quanto ao primeiro que teria entre 40 a 45 anos agrave data dramaacutetica (apud Brisson 2001 p 72) pouco haveraacute a acrescentar aos milhares de paacuteginas que tecircm sido escritos ao longo dos tempos a natildeo ser o pormenor que muito bem notou Vlastos (1991 p 264) acerca da evoluccedilatildeo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cacircnone platoacutenico o facto de Soacutecrates se interessar por filosofia natural ou melhor por ciecircncias naturais como a biologia a fiacutesica a astronomia ou a quiacutemica ao contraacuterio do que acontecia em fases anteriores em que as suas preferecircncias cientiacuteficas estavam limitadas agraves ciecircncias matemaacuteticas como sugere a Repuacuteblica (vide 522b-sqq) No que respeita agraves restantes personagens cumpre dizer algumas palavras

Comeccedilando pelo primeiro protagonista Timeu cuja intervenccedilatildeo ocupa a grande maioria do que resta do texto (27c-106c) natildeo haacute evidecircncias concretas de que tenha realmente existido6 Com efeito todas as referecircncias a este suposto filoacutesofo pitagoacuterico satildeo posteriores ao diaacutelogo seu homoacutenimo no qual se diz ser um abastado cidadatildeo de Loacutecride na Itaacutelia tendo ali ocupado altos cargos na administraccedilatildeo poliacutetica e por isso recebido grandes louvores por parte dos

6 Natildeo confundir com o historiador homoacutenimo que viveu cerca de um seacuteculo depois

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habitantes locais (20a) De facto dadas as seacuterias duacutevidas em relaccedilatildeo ao Timeu histoacuterico haacute quem veja nele uma maacutescara de outra personalidade Ciacutecero refere nos Academica (11016) que Platatildeo quando foi pela primeira vez agrave Siciacutelia conviveu muito de perto com Timeu de Loacutecride e tambeacutem com Arquitas de Tarento Se a existecircncia do primeiro eacute duvidosa quanto agrave do segundo natildeo restam duacutevidas aleacutem de um poliacutetico exemplar Arquitas foi um matemaacutetico brilhante7 e mestre de ilustres matemaacuteticos como o proacuteprio Eudoxo conforme atesta Dioacutegenes Laeacutercio (8861) Por isso eacute possiacutevel que Timeu represente Arquitas contudo os dados disponiacuteveis natildeo permitem mais do que simples conjecturas

Por outro lado este caraacutecter fictiacutecio da personagem leva os estudiosos a questionar se Timeu natildeo seraacute um simples pseudoacutenimo de Platatildeo como fora inicialmente proposto por Wilamowitz-Moellendorff (1920 pp 591-592) e mais tarde desenvolvido por Cornford (1937 p 3) que sustentava esta argumentaccedilatildeo com o facto de ser impossiacutevel apontar algueacutem daquela eacutepoca que reunisse conhecimentos tatildeo aprofundados sobre tantas aacutereas do saber

Quanto a Criacutetias personagem responsaacutevel por narrar o episoacutedio da guerra que opocircs a Atenas primeva agrave Atlacircntida eacute sem duacutevida a figura que levanta mais dificuldades de ordem histoacuterica O principal problema eacute que a aacutervore genealoacutegica desta famiacutelia conta com quatro

7 Eacute-lhe por exemplo atribuiacuteda a duplicaccedilatildeo do cubo (DK 47A14)

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figuras com o nome ldquoCriacutetiasrdquo o I filho de Dropidas I e irmatildeo de Dropidas II (a quem Soacutelon teraacute transmitido o relato trazido do Egipto vide 20e) o II filho de Dropidas II um III neto do II e tio-avocirc de Platatildeo e um IV8 o dos Trinta Tiranos neto do III e primo do autor

A teoria tradicional proposta desde logo por Burnet (1914 p 338) e seguida por Cornford (1937 p 2) sustentava que se tratava do Criacutetias III tratava-se no fundo de fazer feacute nas palavras de Platatildeo Em todo o caso faltava ainda preencher o enorme fosso geracional entre este e Dropidas II Finalmente em 1949 surgiu num ostrakon encontrado na aacutegora de Atenas um registo que demonstrava a existecircncia histoacuterica de Ledas pai do Criacutetias III e filho de Dropidas II (vide Nails 2002 pp 106-107) Assim se confirmou com dados concretos a suspeita de Burnet

No que respeita a Hermoacutecrates o autor do suposto diaacutelogo pensado para seguir o Criacutetias a sua participaccedilatildeo limita-se a duas breves intervenccedilotildees (20d 108c) Quanto agrave sua existecircncia histoacuterica ela eacute inegaacutevel segundo Tuciacutedides (472) tratava-se de um homem de admiraacutevel inteligecircncia e coragem aleacutem de muitiacutessimo experiente em assuntos militares e notabilizou-se por ter previsto os planos expansionistas de Atenas logo em 424 aC (452) jaacute Proclo seguindo a mesma ideia de Tuciacutedides sublinha o seu protagonismo na vitoacuteria contra os Atenienses aquando da invasatildeo de Siracusa (Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo 17119-sqq)9 Note-

8 Participante no Caacutermides no Protaacutegoras e referido indirectamente na Carta VII (324c-d)

9 Sobre esta expediccedilatildeo militar vide infra pp 64-65

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se poreacutem que esta expediccedilatildeo foi posterior agrave data dramaacutetica do diaacutelogo

ii aspectos temaacutetico-estruturais

1 Antecedentes cosmoloacutegicosO texto do Timeu estabelece a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel e posteriormente dos seres que o habitam com particular evidecircncia para o Homem Considerando que este seraacute o eixo temaacutetico em torno do qual gira toda a narrativa eacute forccediloso que o diaacutelogo seja contextualizado num movimento que comeccedilara nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos A relaccedilatildeo de Platatildeo com esta tradiccedilatildeo eacute quase sempre ambiacutegua se por um lado a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes por outro importa dela vaacuterios elementos cuja autoria propositadamente silencia Daquela primeira inclinaccedilatildeo datildeo-nos testemunho vaacuterias passagens no Feacutedon (97c-99a) Soacutecrates confessa-se bastante desiludido com Anaxaacutegoras pelo facto de este inicialmente ter proposto o Intelecto (Nous) como causa de todas as coisas e posteriormente o ter trocado por princiacutepios naturais (ar aacutegua etc) nas Leis (889a-890a) onde o Estrangeiro de Atenas critica a tradiccedilatildeo dizendo que aquelas investigaccedilotildees estavam presas ao mundo do devir e por isso eram impassiacuteveis de constituir conhecimento estaacutevel ndash a principal censura eacute como no Feacutedon natildeo considerar o Intelecto como causa (889c5 ou de dia noun)

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Assim o Timeu surge como resposta ou proposta de substituiccedilatildeo das abordagens naturalistas a que segundo Platatildeo se tinham dedicado os preacute-socraacuteticos (cf Santos 2003 pp 18-22 47-50) Inscreve-se pois nessa tradiccedilatildeo como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade O exemplo mais claro desta dupla relaccedilatildeo ndash adaptaccedilatildeo e ruptura ndash eacute justamente o caso do Intelecto como veremos a sua concepccedilatildeo enquanto princiacutepio de racionalidade seraacute um dos elementos centrais da cosmologia platoacutenica

Quanto aos elementos que dela retira eles satildeo apenas acessiacuteveis por meio de reconstituiccedilotildees hermenecircuticas porquanto permanecem no anonimato No caso do Timeu os mais flagrantes e fundamentais seratildeo os adaptados de Empeacutedocles e do pitagorismo enquanto que os restantes se resumem a alguns aspectos pontuais10

Aleacutem das oacutebvias semelhanccedilas entre os quatro elementos e as ldquoraiacutezesrdquo (rhizocircmata) de Empeacutedocles (DK 31B6) haacute diversos pontos de contacto entre os quais poderemos citar alguns exemplos Contudo como veremos eacute incorrecto supor que Platatildeo tenha simplesmente decalcado esses dados doutrinas ou teorias pois na maior parte dos casos essa importaccedilatildeo implicou uma evidente adaptaccedilatildeo motivada por um dos pressupostos mais importantes do diaacutelogo a clara e absoluta distinccedilatildeo entre uma dimensatildeo preacute-coacutesmica e outra poacutes-criaccedilatildeo

10 Por esse motivo seratildeo apenas referidos em nota ao longo da traduccedilatildeo

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No passo em que se diz que o mundo foi constituiacutedo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atraveacutes da proporccedilatildeo para que como sumo fim obtivesse amizade (philia 32c) eacute muitiacutessimo convidativa a coincidecircncia entre este termo e o Amor (Philotecircs) de Empeacutedocles (DK 31B17) Contudo deveremos ter em conta que enquanto neste autor se trata de uma forccedila dinacircmica que de certo modo unifica as raiacutezes no texto de Platatildeo eacute claramente um resultado em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo isto eacute uma finalidade ou seja ainda que estejamos perante o mesmo conceito conveacutem ter em conta que cada um daqueles contextos tem implicaccedilotildees de ordem pragmaacutetica muito distintas um eacute processo (no caso de Empeacutedocles) outro seraacute fim ou resultado (no caso de Platatildeo)

Ainda assim haacute outras ocasiotildees em que embora crivadas por um processo de adaptaccedilatildeo as doutrinas do primeiro se espelham no segundo Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera Timeu evoca claramente a Esfera de Empeacutedocles muito embora a daquele resulte de um processo criativo enquanto que a deste se situa numa fase preacute-coacutesmica as semelhanccedilas satildeo evidentes particularmente a niacutevel vocabular tal como a esfera do preacute-socraacutetico o mundo de Timeu eacute uacutenico (33a1 ad DK 31B28) esfeacuterico (33b4 ad idem) razatildeo pela qual natildeo teria necessidade de membros (33d3-34a1 ad DK 31B29) e todos os pontos da sua superfiacutecie estavam a igual distacircncia do centro (34b2 ad idem) Embora por vezes as palavras utilizadas natildeo sejam

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exactamente as mesmas eacute bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semacircntico insistindo por outro lado a caracterizaccedilatildeo nos mesmos pormenores e inclusivamente no mesmo princiacutepio geomeacutetrico se a forma eacute esfeacuterica todos os pontos da superfiacutecie seratildeo equidistantes do centro

De um ponto de vista estrutural a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante proacuteximo do que descreve Empeacutedocles principalmente no que concerne ao modo como o seu equiliacutebrio eacute garantido Quando o demiurgo fabrica a alma do mundo faacute-lo atraveacutes de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo agraves quais atribui dois movimentos distintos contudo complementares

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente (36c5-7)

Tal como acontece com o Amor e a Discoacuterdia de Empeacutedocles que actuam com os elementos de um modo diametralmente oposto promovendo ainda assim o intercacircmbio ciacuteclico entre si (cf DK 31B17) eacute tambeacutem a concomitacircncia dos movimentos contraacuterios de entidades igualmente contraacuterias como o Mesmo e o Outro que no Timeu garantem o equiliacutebrio do mundo natural a colocaccedilatildeo destas naturezas na oacuterbita da alma do mundo cuja funccedilatildeo primordial seraacute governar o seu corpo (34c) garante-lhe essa funccedilatildeo decisiva Eacute evidente que se poderia admitir que esta noccedilatildeo de equiliacutebrio enquanto

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negociaccedilatildeo paciacutefica de forccedilas opostas tenha outra matriz que natildeo a de Empeacutedocles ndash por exemplo a teoria dos opostos Heraclito (eg DK22B67) ndash ou mesmo que se trata de uma concepccedilatildeo transversal impassiacutevel de ser identificada com um autor em particular Contudo o caraacutecter estrutural que a convivecircncia destas forccedilas assume no equiliacutebrio global do mundo pois natildeo se trata de um princiacutepio que afecta vaacuterias entidades como acontece em Heraclito aliado ao facto de essa relaccedilatildeo ter como sumo fim a amizade como foi referido anteriormente far-nos-aacute reconhecer a estreita ligaccedilatildeo

A par de Empeacutedocles a outra grande influecircncia na composiccedilatildeo do Timeu foi conforme dissemos o pitagorismo Eacute de tal modo acentuada que durante a Antiguidade alguns comentadores neoplatoacutenicos acreditavam que Platatildeo se baseara na obra Sobre a Alma do Mundo da autoria do suposto filoacutesofo pitagoacuterico Timeu de Loacutecride Embora hoje se saiba que se trata apenas de uma versatildeo doacuterica do texto de Platatildeo datada do seacuteculo I dC esta curiosidade eacute bem ilustrativa do quatildeo acentuada eacute a presenccedila do pitagorismo no diaacutelogo

Em primeiro lugar o ambiente ritual em que decorre o diaacutelogo faz lembrar o espiacuterito cientiacutefico-religioso que definia o pitagorismo natildeo esqueccedilamos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso (27c-d) e torna a invocaacute-los quando tem necessidade de forjar um novo comeccedilo agrave narrativa (48d) Desta tendecircncia jaacute alguns autores antigos tinham dado notiacutecia diz Proclo nos seus Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo

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(1303-18) que tal como pensam outros11 tambeacutem ele considera o proeacutemio inicial uma preparaccedilatildeo simboacutelica para a exposiccedilatildeo propriamente dita como era costume dos Pitagoacutericos

Aleacutem de definir a estrutura esta influecircncia funciona tambeacutem como acircncora teoacuterica a que toda a exposiccedilatildeo se fixa Como sabemos o conteuacutedo e a orientaccedilatildeo da fiacutesica pitagoacuterica tinham um caraacutecter profundamente teoloacutegico isso por si soacute seria suficiente para que Platatildeo adaptasse tal modelo ao seu sistema filosoacutefico Contudo mais do que adaptar preferiu incluir essa perspectiva e promovecirc-la a parte integrante criando aquilo a que podemos chamar ldquouma fiacutesica pitagoacuterica de Platatildeordquo Ao tornar teoloacutegica a sua filosofia natural garante a possibilidade de cumprir o principal objectivo do diaacutelogo dar a conhecer o processo de constituiccedilatildeo do mundo ou seja revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino Ora para estabelecer esse contacto entre divino e humano seria imprescindiacutevel esta vertente teoloacutegica e Platatildeo viu nos ensinamentos do pitagorismo essa preciosa ferramenta pois combinavam o saber fiacutesico com a atitude teoloacutegica ndash orientaccedilotildees verdadeiramente imprescindiacuteveis para o caso particular deste diaacutelogo

Essa vertente religiosa que determinaraacute a orientaccedilatildeo teoloacutegica deveraacute ser procurada um pouco para aleacutem de Pitaacutegoras nos Misteacuterios Oacuterficos Como

11 Refere-se muito provavelmente a Iacircmblico (apud Lernould 2000 p 65) cuja Sobre a Vida Pitagoacuterica tem por principal finalidade demonstrar a subordinaccedilatildeo das doutrinas de Platatildeo a Pitaacutegoras

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observa o proacuteprio Proclo na Teologia Platoacutenica (12526) Pitaacutegoras recebeu os rituais de Aglaofemo um iniciado de Orfeu e Platatildeo recebeu de Pitaacutegoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento Ainda que esta passagem de testemunho natildeo tenha sido assim tatildeo linear mas valha sobretudo numa dimensatildeo simboacutelica eacute por intermeacutedio de Pitaacutegoras que Platatildeo tem acesso agraves ferramentas teoacutericas oacuterficas que lhe permitiratildeo sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o Homem foram constituiacutedos e partir do que tem diante dos olhos para chegar regressivamente agrave sua criaccedilatildeo

Essas ferramentas satildeo fundamentalmente a matemaacutetica ndash sobretudo as suas vertentes geomeacutetrica e estereomeacutetrica ndash a muacutesica e a astronomia que utilizadas em conjunto permitiratildeo uma observaccedilatildeo do mundo fenomeacutenico de que se poderatildeo retirar conclusotildees com valor filosoacutefico Eacute por exemplo atraveacutes da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos atribuindo a cada um a figura correspondente de acordo com as suas propriedades cineacuteticas o cubo agrave terra pois eacute de entre os elementos o que se move mais lentamente (55d) o icosaedro agrave aacutegua (55b 56a) o octaedro ao ar (55a 56a) a piracircmide ao fogo (55d) De forma anaacuteloga a deduccedilatildeo destas figuras depende tambeacutem de um raciociacutenio matemaacutetico atraveacutes da combinaccedilatildeo dos triacircngulos-base (rectacircngulo equilaacutetero e isoacutesceles) mediada pela proporccedilatildeo a geometria em plano passa a estereometria tridimensional (54d-sqq) dando assim corpo agraves formas representaacuteveis mentalmente e de forma abstracta Em suma ao apoiar-se nos ramos matemaacuteticos

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da aritmeacutetica e da geometria a mensagem teoloacutegica pode tomar corpo e tornar-se uma fiacutesica filosoacutefica pois permite representar aquilo que natildeo pode ser alcanccedilado pelos olhos trata-se de uma matemaacutetica teoloacutegica

Aleacutem disso eacute atraveacutes da harmonia proporcionada pela muacutesica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes na medida em que ambas obedecem a um mesmo princiacutepio cineacutetico

na segunda [oacuterbita pocircs] o Sol por cima da Terra a Estrela da Manhatilde e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente (38d1-6)

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De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento (80a6-80b1)

Os astros tal como os sons circulam juntos a diferentes distacircncias uns dos outros ndash os astros em espaccedilo os sons em tempo mas de acordo com uma mesma relaccedilatildeo numeacuterica que determina a harmonia do conjunto eacute a este raciociacutenio que segundo Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 291a10-11) os Pitagoacutericos chamavam ldquoa muacutesica das esferasrdquo cuja adaptaccedilatildeo eacute evidente no sistema

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que propotildee o Timeu Neste diaacutelogo Platatildeo parece recuperar a identificaccedilatildeo que Soacutecrates faz na Repuacuteblica (531a-c) entre muacutesica e astronomia Ao distinguir os muacutesicos que se dedicam agrave demanda do intervalo miacutenimo mensuraacutevel condenaacuteveis por se aterem em demasia agrave percepccedilatildeo sensiacutevel do som daqueles que procuram os nuacutemeros nos acordes que escutam diz que satildeo estes uacuteltimos que se aparentam aos que estudam os astros Esta teoria da muacutesica que Soacutecrates elogia eacute a pitagoacuterica

2 O discurso de TimeuComo dissemos a intervenccedilatildeo de Timeu versa

sobre o processo de criaccedilatildeo do mundo e de todas as coisas que o habitam Homem restantes animais deuses e ateacute as plantas Trata-se pois de uma tentativa de estabelecer um modelo explicativo do mundo assente em axiomas e pressupostos soacutelidos uma cosmologia Mas desta prerrogativa inicial nasce uma inevitaacutevel aporia como produzir uma cosmologia a partir da observaccedilatildeo do mundo do devir o reino da mudanccedila ininterrupta sendo por isso impassiacutevel de constituir objecto de verdadeiro saber Em uacuteltima anaacutelise como produzir saber a partir do sensiacutevel se soacute as Ideias (inteligiacuteveis) podem ser objecto de saber (cf Santos 2003 pp 13-15)

Para responder a estas questotildees nucleares Platatildeo recorre a um artifiacutecio deveras surpreendente pautar o discurso pela verosimilhanccedila mais do que pela certeza e assim apresentar uma proposta plausiacutevel em vez de um tratado dogmaacutetico e vinculativo o que de facto

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tambeacutem aproxima o projecto da tradiccedilatildeo cosmogoacutenica Ao mesmo tempo a validade desta proposta dependeraacute do estabelecimento preacutevio de axiomas estanques e estaacuteveis que forneccedilam um ponto de partida para a narrativa especulativa

21 Pressupostos iniciaisNa minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre [to on aei] e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem [to gignomenon] sem nunca ser Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo pois eacute imutaacutevel Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca (27d5-28a4)

Eacute fulcral que antes de tudo Timeu distinga aquilo que eacute sempre daquilo que estaacute sempre sujeito ao devir e por isso nunca chega a ser trata-se da ceacutelebre diferenccedila entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao sensiacutevel ndash um dos pilares do platonismo A esta distinccedilatildeo surge associada uma outra de caraacutecter epistemoloacutegico que tem que ver com a forma como cada um desses niacuteveis ontoloacutegicos pode ser apreendido se o que eacute cabe ao pensamento e agrave razatildeo jaacute o que pertence ao niacutevel do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos Toda esta argumentaccedilatildeo em torno da distinccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel faria adivinhar a ceacutelebre oposiccedilatildeo platoacutenica entre opiniatildeo (doxa) e saber (epistecircmecirc) estando a primeira destinada ao que deveacutem e a segunda ao que eacute sempre e visto que o propoacutesito do diaacutelogo eacute apresentar

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um discurso (logos) sobre o mundo implicando por isso a obediecircncia agrave verdade teria que se situar no acircmbito do saber No entanto ao comeccedilar a descrever os atributos do objecto em estudo Timeu daacute-se conta de que o mundo pertence agrave ordem do devir pois apresenta todas as caracteriacutesticas do sensiacutevel eacute visiacutevel (oratos 28b7) tangiacutevel (aptos 28b7) e tem corpo (socircma echocircn 28b7) Ora se o mundo eacute deveniente como produzir um discurso verdadeiro e estaacutevel sobre ele Eacute da resposta a esta pergunta que depende a validade de toda a proposta cosmoloacutegica

Sabendo entatildeo que o mundo pertence agrave ordem do devir o proacuteximo passo seraacute averiguar qual a sua causa pois de acordo com o preceito platoacutenico todas as coisas devenientes satildeo geradas por uma causa12 No caso do mundo a sua causa foi uma divindade (o demiurgo) que o fabricou por meio de um acto intelectivo de contemplaccedilatildeo do arqueacutetipo imutaacutevel (29a) Natildeo querendo antecipar as questotildees que esta personagem levanta e que seratildeo analisadas posteriormente digamos apenas que seraacute o centro das atenccedilotildees do discurso do protagonista Perante a falibilidade da descriccedilatildeo das coisas sensiacuteveis tentaraacute reconstituir a acccedilatildeo demiuacutergica a partir da observaccedilatildeo directa do que tem perante os olhos ndash a obra dessa divindade Ou seja se o mundo consiste numa entidade fabricada a partir de um arqueacutetipo significa que esse mesmo mundo eacute jaacute por si uma representaccedilatildeo portanto o meacutetodo para descrever

12 Cf Feacutedon 98c 99b Filebo 27b Leis 891e Timeu 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e

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a forma como foi fabricado poderaacute tambeacutem ele ser uma representaccedilatildeo sem que com isso ponha em causa a sua validade pois como diz Timeu

Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere (29b3-5)

Como muito bem nota Johansen (2004 p 50) aquilo que determina o estatuto do discurso eacute o facto de esse discurso ser congeacutenere ao seu assunto ou seja um discurso sobre uma representaccedilatildeo teraacute tambeacutem ele proacuteprio um teor representativo Ao mesmo tempo ele constitui o instrumento que nos permite situar o acircmbito do conteuacutedo a que se refere visto que transparece a sua natureza eacute nesta medida que os discursos ldquoexplicamrdquo E Timeu sublinha esta relaccedilatildeo ao qualificar com adjectivos semanticamente muito proacuteximos ambos referente e referido diz ele que o que eacute estaacutevel e fixo (monimou kai bebaiou 29b6) eacute interpretado por discursos estaacuteveis e invariaacuteveis (monimous kai ametaptocirctous 29b7) ao passo que aqueles que interpretam algo produzido como representaccedilatildeo (apeikasthentos 29c1) por serem eles proacuteprios tambeacutem representaccedilotildees (29c2) estabelecem com aquilo que representam uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia (29c2)

22 Intelecto e NecessidadeNum determinado momento da narrativa

(48e-49a) Timeu interrompe a descriccedilatildeo da criaccedilatildeo do

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mundo para esclarecer que tudo quanto referira ateacute aiacute tinha sido fabricado pelo Intelecto Era entatildeo altura de justapor ao discurso o que havia sido gerado pela Necessidade

Estes dois conceitos muito embora sejam decisivos no processo cosmoloacutegico natildeo satildeo curiosamente objecto de uma reflexatildeo metanarrativa como acontece por exemplo com o demiurgo Apenas eacute dito que a Necessidade eacute uma ldquocausa erranterdquo (to tecircs planocircmenecircs aitias 48c7) que foi persuadida pelo Intelecto a ldquoorientar para o melhor a maioria das coisas devenientesrdquo (48a) Esta informaccedilatildeo aleacutem de natildeo esclarecer a natureza daquelas entidades implica apenas que a cedecircncia da Necessidade foi apenas parcial (ldquoa maioria das coisasrdquo) Mas vejamos primeiro que tudo de que modo poderemos entender em que consistem

Quanto ao Intelecto eacute bastante convidativo fazecirc-lo coincidir com o demiurgo pois Timeu sublinha que o que acaba de descrever fora fabricado por este agente se no princiacutepio eacute dito que o demiurgo eacute a causa que originou o mundo a identificaccedilatildeo eacute oacutebvia Na verdade nas Leis Platatildeo define-o como responsaacutevel por governar tudo (875c-d) e por ter ordenado o mundo (966e) manifesta-se no movimento dos corpos celestes os quais os homens devem observar e seguir como paradigma (897d-898a) Transpondo esta descriccedilatildeo para o nosso contexto a identificaccedilatildeo do Intelecto com o demiurgo parece fazer sentido no entanto carece de explicaccedilatildeo o atributo de

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ldquogovernar tudordquo pois a divindade criadora retira-se logo apoacutes ter concluiacutedo a sua tarefa ndash tanto que entrega parte da sua ldquoobrardquo (a parte mortal da alma humana por exemplo) agraves divindades geradas por si Por esse motivo este Intelecto poderaacute por outro lado coincidir com a alma do mundo como pensa Cherniss (1944 pp 407-411 425 606-607) Ainda assim essa opccedilatildeo tambeacutem natildeo deixa de levantar problemas jaacute que como diz Brisson (1998 p 84) o demiurgo soacute pode ser independente pois constitui a causa de todas as coisas do mundo razatildeo pela qual natildeo poderaacute estar incluiacutedo naquilo que foi criado por si proacuteprio Independentemente de coincidir ou natildeo com o demiurgo o Intelecto corresponde a um princiacutepio de racionalidade teleoloacutegica pois visa acima de tudo ldquoorientar tudo para o melhorrdquo no fundo a vertente inteligente da criaccedilatildeo

Por oposiccedilatildeo a Necessidade seraacute algo cujo funcionamento se opotildee ao do Intelecto primeiro Timeu chama-lhe ldquocausa erranterdquo isto eacute sem finalidade (natildeo teleoloacutegica) segundo se a Necessidade cede a uma ldquopersuasatildeo racionalrdquo (peithous emphronos 48a) eacute evidente que a sua natureza seraacute de algum modo irracional Mas retomando a questatildeo deixada em suspenso acerca da cedecircncia unicamente parcial da Necessidade ela seraacute mais facilmente esclarecida se tomarmos em consideraccedilatildeo o seguinte

Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende

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constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade (69d3-6)

A consequecircncia de a Necessidade natildeo ter cedido senatildeo parcialmente implica que a proacutepria estrutura humana tenha sido tambeacutem parcialmente composta por ela Ao participar no processo de criaccedilatildeo o produto que dela resulta (o mundo e o Homem) partilharaacute da sua caracteriacutestica mais iacutentima a irracionalidade traduzida nas partes mortais da alma no caso do Homem no proacuteprio Homem no caso do mundo Corresponde no fundo agrave vertente mecacircnica e corpoacuterea da criaccedilatildeo que como tal natildeo dispotildee de racionalidade nem finalidade Como oportunamente sugere Santos (2003 p 28 n 32) a noccedilatildeo de ldquocausa erranterdquo pode perfeitamente ser equacionada com a passagem do Feacutedon (98c-99b) onde Soacutecrates esclarece que natildeo satildeo os seus muacutesculos e tendotildees a causa de estar na prisatildeo mas sim o Bem isto eacute a corporalidade mecacircnica natildeo pode constituir a causa primeira das coisas porquanto estaacute desprovida de qualquer razatildeo

No fundo a distinccedilatildeo entre estas duas entidades pode ser entendida agrave luz de um modelo dualista o Intelecto representa a vertente teleoloacutegica e inteligente e a Necessidade corresponde agrave corpoacuterea e irracional Sabendo que actuam como princiacutepios de criaccedilatildeo na medida em que determinam as duas faces do devir podem com justeza ser entendidos como condiccedilotildees de possibilidade do dualismo cosmoloacutegico

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23 O demiurgoLogo no iniacutecio da narrativa apoacutes a anuecircncia

de Soacutecrates Timeu comeccedila por definir o agente que constituiu o mundo como um deus (theos 31a2) bom (agathos 29e1) e absolutamente livre de inveja (peri oudenos oudepote phthonos 29e2) a melhor das causas (o drsquoaristos tocircn aitiocircn 29a6) daiacute que o que produza seja o mais belo (to kalliston 30a7) Como eacute evidente o estatuto divino do demiurgo natildeo coincide de forma alguma com o das divindades tradicionais do Olimpo grego Ao contraacuterio destes que protagonizam episoacutedios de adulteacuterio (Afrodite e Ares) guerras (a revolta dos Gigantes) e manifestam atributos opostos agrave bondade como a ganacircncia (de Cronos e posteriormente de Zeus) bem como interferem em certa medida com a acccedilatildeo quotidiana dos homens ndash os Poemas Homeacutericos satildeo bom exemplo disso ndash o demiurgo eacute todo ele bom e apoacutes ter criado a sua obra retira-se natildeo interferindo mais Eacute pois um agente divino que se situa num patamar superior ao das outras divindades tradicionais Isso eacute bastante evidente tendo em conta os dois tipos de demiurgia que a narrativa apresenta a primeira que diz respeito ao mundo e agrave parte divina do Homem eacute da autoria do demiurgo jaacute a segunda que trata das coisas mortais (a parte mortal da alma do Homem inclusive) foi delegada agraves divindades criadas por si

Em sentido inverso o demiurgo aparece caracterizado no texto mais como um homem do que como um deus Chega a ter emoccedilotildees quando se apercebe de que a sua obra estava a tomar o rumo certo jaacute que

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representava com bastante verosimilhanccedila o arqueacutetipo rejubilou e ficou satisfeito (37c7) Aleacutem disso tambeacutem a sua metodologia eacute descrita agrave luz de criteacuterios humanos pois descobre por meio de um raciociacutenio (logismos 30b1) e obedece a uma estrutura matemaacutetica (47b 87c)

Como ldquoconstrutorrdquo o demiurgo empreende uma actividade mimeacutetica Ao criar o mundo sensiacutevel por meio da imitaccedilatildeo do arqueacutetipo assemelha-se em grande medida a um artiacutefice que antes de produzir alguma coisa tem em conta uma forma da qual assimilaraacute as propriedades que faraacute corresponder no material que trabalha Assim potildee os olhos nas coisas que se mantecircm sempre iguais (as Ideias) Partindo deste conhecimento preacutevio age sobre o material de modo a dotaacute-lo de ordem pois que antes estava desordenado (30a3-5)

Levando mais longe a caracterizaccedilatildeo da obra do demiurgo como uma actividade mimeacutetica tenhamos em conta antes de mais que esta figura em termos muito gerais eacute um fabricador Este seu caraacutecter eacute desde logo confessado por Timeu no iniacutecio da sua narrativa pois a palavra que utiliza para o definir eacute muito simplesmente poiecirctecircs (28c3) Embora fosse demasiado forccedilado traduzi-la por ldquopoetardquo em virtude das contradiccedilotildees que essa opccedilatildeo levantaria natildeo eacute de todo inconcebiacutevel que ainda assim procuremos nele alguns atributos que o possam caracterizar como tal e a sua actividade como algo semelhante agrave criaccedilatildeo poeacutetica Jaacute foi dito que ela eacute mimeacutetica o que a situa num acircmbito muito proacuteximo do poeacutetico vejamos em que medida podemos aproximaacute-la ainda mais convocando para o efeito a forma como

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Platatildeo descreve a actividade dos poetas e comparando-a com a forma como no Timeu caracteriza o processo criativo levado a cabo pelo demiurgo

Primeiro que tudo eacute exactamente a mesma palavra ndash poiecirctecircs ndash que eacute usada para definir quer o fabricador do mundo neste diaacutelogo (28c3) quer os poetas um pouco por todo o corpus platoacutenico13 mas as semelhanccedilas natildeo se resumem a este pormenor vocabular Na Repuacuteblica numa altura em que se fala sobre o papel dos poetas na educaccedilatildeo a sua actividade (e tambeacutem o produto dessa actividade) eacute descrita como uma fabricaccedilatildeo (plassocirc 377b6) criaccedilatildeo (poieocirc 377c1 379a3) e composiccedilatildeo (syntithecircmi 377d6) No Timeu tambeacutem a acccedilatildeo da divindade eacute descrita com estes trecircs verbos14

Enquanto artiacutefice o demiurgo estaacute ligado agraves mais diversas artes de acordo com o que Platatildeo estabelecera na Repuacuteblica acerca da terceira classe de cidadatildeos como ferreiro quando fabrica a alma do mundo (35a-40d) e lhe daacute a forma de uma esfera armilar como pintor desenha os animais no mundo (55c5-6) isto eacute os corpos celestes associados aos animais do Zodiacuteaco eacute tambeacutem um modelador de cera (74c6) como oleiro para originar a massa oacutessea do corpo humano primeiro peneira a terra (73e1) em seguida mistura-a com o elemento liacutequido ndash a medula humedecida (73e2) ndash e finalmente daacute-lhe a forma num torno (73e7) como tecelatildeo quando fabrica os sistemas respiratoacuterio e circulatoacuterio num entranccedilado (78c1) semelhante a uma nassa (78b4) como agricultor

13 Eg Goacutergias 485d Iacuteon 534b Leis 935e Repuacuteblica 379a14 plassocirc 42d 73c 74a 78c poieocirc 31b 31c 34b 35b 36c

37d 38c 45b 71d 76c 91a syntithecircmi 33d 69d 72e

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ao semear (41e4) implantar (42a3) e enraizar (73b4) as almas nos corpos ou ainda quando a medula eacute comparada a um solo araacutevel (73c7) que deve receber a semente (73c7)

Contudo se no caso do artiacutefice ldquoconvencionalrdquo o material que trabalha eacute bastante oacutebvio no que trata ao demiurgo essa questatildeo eacute bastante mais delicada Eacute dito que a sua actividade consiste em contemplar o arqueacutetipo para trabalhar o material de modo a dotaacute-lo de ordem ele que antes estava desordenado (30a3-5) mas natildeo eacute especificada a natureza desse material Ora se a sua funccedilatildeo eacute ordenar organizar e impor medida e proporccedilatildeo onde as natildeo havia (69b) por meio da geometria e da matemaacutetica (53b-c) a mateacuteria-prima de que parte seraacute obviamente o substrato preacute-coacutesmico que existia no caos anterior agrave demiurgia Vejamos o exemplo dos elementos

Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros (53a7-b5)

O trabalho produtivo natildeo consiste numa criaccedilatildeo ex nihilo porquanto modela um material preacute-existente tem antes que ver com uma configuraccedilatildeo de acordo com uma matriz (a matemaacutetica) do substrato preacute-coacutesmico

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Ao agir como ordenadororganizador assemelha-se bastante a um administrador ou em uacuteltima anaacutelise a um poliacutetico se a sua tarefa pretende impor a ordem onde ela natildeo existia metaforicamente transmuta a anarquia do caos em sociedade coacutesmica A este respeito a proacutepria palavra decircmiourgos confirma essa orientaccedilatildeo semacircntica pois noutros contextos pode significar precisamente ldquomagistradordquo15 Deste modo quando Timeu lhe chama ldquocriador e pai do mundordquo (28c3-4) devemos entender esses epiacutetetos em primeiro lugar agrave luz do caraacutecter mimeacutetico da demiurgia e por outro lado de acordo com esta funccedilatildeo ordenadora ou seja seraacute ldquopairdquo como educador e natildeo como princiacutepio de geraccedilatildeo Tambeacutem como pai neste sentido de educador o demiurgo eacute para os homens um exemplo a seguir tal como Platatildeo diz no Teeteto (176b) acerca da necessidade de o Homem se tornar o mais semelhante possiacutevel agrave divindade ele eacute o arqueacutetipo a que o filoacutesofo deve aspirar

24 O terceiro niacutevel ontoloacutegicoNo momento em que acaba de descrever as obras

do Intelecto e passa agraves da Necessidade (48a) Timeu sente-se obrigado a reiniciar a narrativa e a desfazer a dicotomia ontoloacutegica inicial ser-devir acrescentando a estes dois tipos (dyo eidecirc 48e3) aquilo a que chama ldquoum terceiro de outra espeacutecierdquo (triton allo genos 48e4)

Ao contraacuterio do que acontece com os anteriores o modo de referir este terceiro tipo carece de clareza

15 Eg Aristoacuteteles Poliacutetica 1275b29 Poliacutebio 23516 Tuciacutedides 547 Cf Brisson (1998 p 50)

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e estabilidade epistemoloacutegica porquanto eacute acessiacutevel por meio de ldquoum certo raciociacutenio bastardordquo (logismocirc tini nothocirc 52b2) que carece de credibilidade (mogis piston 52b2) Ora seraacute inevitaacutevel o este caraacutecter hiacutebrido da explicaccedilatildeo se aplique tambeacutem ao assunto a que se reporta em trecircs ocasiotildees distintas Timeu caracteriza-o como ldquoum tipo difiacutecil e obscurordquo (chalepon kai amydron 49a3) ldquoinvisiacutevel e amorfordquo (anoraton kai amorphon 51a7) que ldquoparticipa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevelrdquo (metalambanon aporocirctata tou noecirctou 51a7-b1) Deixando de parte os problemas de interpretaccedilatildeo que esta descriccedilatildeo levanta a questatildeo que ocorre levantar eacute como formular um discurso que se reporta a algo imperscrutaacutevel

A dificuldade eacute desde logo anunciada pela incapacidade de o objectivar na linguagem Isso eacute evidente tanto nas palavras do protagonista como nas interpretaccedilotildees produzidas ao longo dos seacuteculos eacute que o termo chocircra eacute apenas uma das designaccedilotildees que recebe no texto aquela que a tradiccedilatildeo fixou Aleacutem desta que vertemos por ldquolugarrdquo (52a8) o terceiro tipo eacute tambeacutem chamado ldquoreceptaacuteculordquo (hypodochecirc 49a6) ldquosuporte de impressatildeordquo (ekmageion 50c2) ldquomatildeerdquo (mecirctecircr 50d3 51a5 88d7) ldquoaquilo em querdquo (to en ocirc 49e7 50d1 50d6) ldquolocalizaccedilatildeordquo (edra 52b1) e ldquolocalrdquo (topos 52a6 52b4) mais indirectamente eacute comparaacutevel a uma matildee (proseikasai mecirctri 50d2-3) e a uma ama (oion tithecircnecircn 49a6) Todas elas que de um modo geral se enquadram numa descriccedilatildeo da chocircra como suporte de alguma coisa parecem conferir-lhe uma concepccedilatildeo espacial contudo

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a flutuaccedilatildeo de termos como ldquolugarrdquo ldquolocalrdquo e ldquoaquilo em querdquo denuncia a impossibilidade de apontar onde eacute exactamente

A chocircra evidencia caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel eacute invisiacutevel e amorfa ao mesmo tempo que tangiacutevel mas apenas pensaacutevel por um raciociacutenio bastardo A esta constituiccedilatildeo ontoloacutegica hiacutebrida acresce o facto de em termos espaciais ser caracterizada de modo ambiacuteguo eacute extensatildeo ou espaccedilo como condiccedilatildeo de localizaccedilatildeo (ldquoprovidencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devirrdquo 52b6) e ao mesmo tempo o proacuteprio local ocupado por um determinado corpo (ldquoa natureza que recebe todos os corposrdquo 50b6) isto eacute a realizaccedilatildeo daquela extensatildeo (apud Mesquita 2009 p 91) A impossibilidade de associaacute-la em definitivo a uma das categorias ontoloacutegicas e a uma das acepccedilotildees espaciais por partilhar caracteriacutesticas que se aplicam a ambos os membros da equaccedilatildeo convida-nos a considerar que se possa situar no plano da abstracccedilatildeo Isto eacute se natildeo pertence ao inteligiacutevel nem ao sensiacutevel bem como natildeo admite por inteiro o local de contacto entre os dois niacuteveis resta considerar esse lugar uma abstracccedilatildeo do espaccedilo de particularizaccedilatildeo ldquonatildeo eacute senatildeo o particular pensado eideticamenterdquo (Mesquita 1995 p 146) No entanto se prescindirmos daquela distinccedilatildeo aceitando para tal a fusatildeo entre espaccedilo como extensatildeo e espaccedilo como concretizaccedilatildeo pontual e pegarmos no problema a partir das suas condiccedilotildees discursivas esta ideia de lugar de participaccedilatildeo abstraiacutedo pode tornar-se ligeiramente mais clara

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A descriccedilatildeo natildeo se processa de modo inequiacutevoco nem sequer toma corpo num discurso minimamente demonstrativo que pretenda tornar transparente a natureza da chocircra Em vez disso eacute comparada a uma matildee ou a uma ama equivalendo a forma como interage com o arqueacutetipo e com os particulares a um processo de impressatildeo de que ela eacute o suporte

() recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel () (50b8-c6)

Na medida em que se afigura como uacutenica alternativa possiacutevel o recurso ao metafoacuterico parece assim agravar o caraacutecter ldquodifiacutecil e obscurordquo tanto do assunto como da sua explicaccedilatildeo Mas se aceitarmos a premissa de que um discurso e o seu objecto partilham da mesma natureza seraacute de esperar que a natureza da proacutepria chocircra haacute-de tambeacutem ser metafoacuterica

Tomada na sua estrutura mais baacutesica a metaacutefora consiste na coligaccedilatildeo de dois termos atraveacutes de um elemento intermeacutedio que permite uma transferecircncia de sentido bidireccional isto eacute as duas extremidades do aparelho conceptual estatildeo co-implicadas porquanto unidas pelo terceiro termo aquele em que se consubstancia a relaccedilatildeo De modo anaacutelogo a chocircra

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representaraacute o ponto intermeacutedio de coligaccedilatildeo entre o arqueacutetipo e os particulares ou seja o lugar em que se consuma o processo de participaccedilatildeo Tambeacutem nesta perspectiva parece inscrever-se o caraacutecter mimeacutetico da chocircra ldquotudo o que nela entra e dela sai satildeo imitaccedilotildees (mimecircmata) do que eacute semprerdquo Por um lado natildeo eacute o proacuteprio arqueacutetipo que entra no lugar de participaccedilatildeo mas apenas as suas imitaccedilotildees por outro o particular e a proacutepria particularizaccedilatildeo resultam como imitaccedilotildees do proacuteprio arqueacutetipo mediadas justamente pela chocircra16

A exposiccedilatildeo deste terceiro tipo insiste nas constantes transformaccedilotildees a que todas as coisas estatildeo sujeitas e que erradamente designamos por ldquoistordquo (touto 49d5) quando deveriacuteamos optar por ldquoo que em determinadas circunstacircncias estaacute assimrdquo (to toiouton ekastote 49d5) Por exemplo aplicamos o termo ldquoaacuteguardquo independentemente de aquilo que referimos estar em estado liacutequido soacutelido ou gasoso Conclui-se que a chocircra pode ser ldquoistordquo ao passo que as coisas que nela entram e dela saem satildeo apenas ldquoque estaacute assimrdquo (49d-e) O recurso agrave linguagem como repositoacuterio metafoacuterico natildeo nos parece acidental nem inconsequente na medida em que ajuda a esclarecer a distinccedilatildeo ontoloacutegica fundamental entre as duas dimensotildees enquanto ldquoistordquo a (e soacute a) chocircra tem um sentido substantival e por conseguinte uma natureza substancial jaacute os particulares enquanto ldquoaquilo que estaacute assimrdquo estatildeo limitados ao acircmbito adjectival e natildeo podem ser mais do que qualificativos

16 Para uma discussatildeo mais detalhada do problema vide Mesquita 1995 pp 132-133

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circunstanciais Esta ldquoontologia qualitativardquo do mundo do devir atribui aos particulares um estatuto de meras entidades relacionais (apud Ferrari 2007 p 14) e como tal diametralmente opostos da substancialidade do arqueacutetipo Por conseguinte a relaccedilatildeo entre ambos os niacuteveis isto eacute a participaccedilatildeo natildeo poderaacute ser reduzida a um decalque biuniacutevoco caracteriacutestico da estrutura sujeito-predicado A nosso ver ela soacute pode ser mimeacutetica

Aleacutem desta linha de interpretaccedilatildeo espacial da chocircra existe uma outra a que podemos chamar ldquomaterialrdquo Decorre da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles que numa passagem da Fiacutesica (42 209b11-16) em que comenta esta secccedilatildeo do Timeu atribui a Platatildeo a identificaccedilatildeo entre espaccedilo (chocircra) e mateacuteria (hylecirc) Apesar de convidativa enferma de dois problemas fundamentais Em primeiro lugar esta categoria eacute absolutamente estranha ao sistema platoacutenico tanto assim eacute que o termo hylecirc soacute comeccedila a ter este sentido filosoacutefico justamente a partir de Aristoacuteteles Em segundo e natildeo menos importante o facto de aquela passagem da Fiacutesica assentar em grande parte nas chamadas doutrinas natildeo escritas ndash um grupo de postulados que Platatildeo teraacute sustentado oralmente mas de que natildeo deixou registo nos diaacutelogos Ora ainda que a sua reconstituiccedilatildeo seja possiacutevel e ateacute verosiacutemil (vide Ferrari 2007 pp 22-23) esta linha de interpretaccedilatildeo parece-nos exclusivamente vocacionada para esclarecer o Platatildeo hipoteacutetico e natildeo o dos diaacutelogos O nosso propoacutesito esgota-se nesta segunda orientaccedilatildeo

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25 O estatuto do discursoPortanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil e natildeo procurar nada aleacutem disso (29c4-29d3)

Esta curiosa afirmaccedilatildeo do narrador faz referecircncia a duas questotildees de extrema importacircncia para o entendimento do tipo de mensagem que o diaacutelogo pretende fazer passar e tambeacutem da forma como o faz o facto de toda ela ser aceite por Soacutecrates sem quaisquer reservas coloca-a num plano de acrescida importacircncia Em primeiro lugar Timeu refere que tanto ele como quem o ouve satildeo apenas seres humanos e por isso nem lhe eacute permitido a ele aflorar determinadas questotildees nem lhes seria possiacutevel a eles compreendecirc-las Em segundo lugar e mais importante ao apontar o acircmbito do verosiacutemil como uacutenica alternativa distingue muito claramente dois niacuteveis discursivos o dos ldquodiscursos verosiacutemeisrdquo (29c8 [logous] eikotas) e o da ldquonarrativa verosiacutemilrdquo (29d2 eikota mython) desta concorrecircncia ressalta obviamente a partilha do termo eikos que vertemos por ldquoverosiacutemilrdquo mas tambeacutem a associaccedilatildeo deste termo a mythos num caso e a logos noutro caso

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Aleacutem deste preluacutedio a expressatildeo eikos mythos aparece mais duas vezes no texto Na primeira insere-se no contexto da descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo das cores (67c-68d) apoacutes dar alguns exemplos do modo como se misturam Timeu diz que para os outros casos que natildeo referiu basta seguir o mesmo raciociacutenio de modo a que fique ldquosalvaguardada a narrativa verosiacutemilrdquo (68d) Na segunda ocorrecircncia as circunstacircncias satildeo muito semelhantes ao abordar os vaacuterios compostos que os elementos primaacuterios podem formar diz que para os casos que natildeo referiu deve ser aplicada a mesma metodologia desde que seja ldquoinvestigada a modalidade da narrativa verosiacutemilrdquo (59c) O estatuto de modalidade (idea) discursiva que reconhece ao eikos mythos coloca a narrativa como ponto de partida para a investigaccedilatildeo satildeo os dados nela implicados que devem ser discutidos Ao dizer que essa narrativa eacute uma modalidade Timeu parece dar a entender que haveraacute uma outra pois se eacute essa que deve ser investigada entatildeo a forma como essa investigaccedilatildeo se formaliza deveraacute obedecer a uma modalidade diferente o eikos logos

Ao longo do seu discurso Timeu por vezes suspende o papel de narrador de uma acccedilatildeo e assume o de criacutetico daquilo que ele proacuteprio disse comentando analisando e explicando alguns pormenores Enquanto descreve a transiccedilatildeo dos elementos como entidades amorfas para o estatuto de corpos recorre agraves relaccedilotildees matemaacuteticas e geomeacutetricas para esclarecer o modelo pelo qual o demiurgo se guiou e assim dar a conhecer o modo

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como atingiram a proporccedilatildeo (53b-54a) Eacute este um dos casos mais evidentes em que deixa de ser um narrador e passa a ser um demonstrador de uma teoria Eacute bastante evidente igualmente do ponto de vista estiliacutestico a insistecircncia no teor explicativo e tambeacutem especulativo das suas observaccedilotildees tenta ldquoesclarecerrdquo (decircloun 53c1) e ldquoafirmardquo na primeira pessoa (legocirc 47b2) ou por outra engloba tambeacutem os ouvintes nessa missatildeo ao preferir a primeira pessoa do plural (47b1 47b5 53e5) Ainda assim confessa uma certa falibilidade em relaccedilatildeo agravequilo que diz (53e3) por ser fruto da sua opiniatildeo (47a) No entanto ao reportar-se agrave narrativa verosiacutemil que por sua vez se refere ao mundo do sensiacutevel qual seraacute a natureza das suas observaccedilotildees

Logo apoacutes a anuecircncia de Soacutecrates ao acircmbito verosiacutemil da sua narrativa Timeu comeccedila por descrever em linhas gerais o processo de fabricaccedilatildeo do mundo durante o qual diz que o demiurgo estabeleceu o intelecto na alma do mundo e por sua vez colocou a alma no corpo (30b) Daqui retira a primeira conclusatildeo o mundo eacute um ser-vivo com alma e pensamento (30c) mas faz questatildeo de referir que esta deduccedilatildeo eacute conforme a um discurso verosiacutemil (kata logon ton eikota 30b7) De igual modo numa das suas uacuteltimas conclusotildees apoacutes ter discorrido desde o mundo ateacute agrave geraccedilatildeo do Homem o acircmbito verosiacutemil das observaccedilotildees agrave narrativa manteacutem-se (90e8) quando relembra o que dissera anteriormente sobre a degenerescecircncia em mulheres dos homens que levam uma vida injusta (90e 42b)

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Quando trata de abordar ldquoa terceira forma de serrdquo ndash a chocircra ndash manteacutem essa atitude especulativa embora admita reservas acrescidas impostas pela dificuldade do assunto Enquanto que na descriccedilatildeo da acccedilatildeo demiuacutergica eacute apenas um narrador que por isso fala na terceira pessoa assumindo somente o papel de intermediaacuterio entre acccedilatildeo e discurso neste caso eacute ele quem protagoniza Nesta altura em que deve passar agrave apresentaccedilatildeo de algo tatildeo complicado de conceber e formular como aquele terceiro niacutevel ontoloacutegico ldquotentaraacute ser ainda mais verosiacutemilrdquo (peirasomai ecirctton eikota 48d2-3) pois neste caso as suas observaccedilotildees partiratildeo de uma ldquoexposiccedilatildeo estranha e inusitadardquo (ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs 48d5-6) O objectivo eacute portanto chegar a uma conclusatildeo ndash apresentar um resultado ndash a partir do que diz a narrativa Poreacutem neste caso o eikos mythos a que as suas observaccedilotildees se reportaratildeo tem um caraacutecter diferente mais complexo e imbricado pois tambeacutem o objecto a que se refere eacute dessa natureza daiacute que o discurso que produza acerca dessa narrativa seja tambeacutem ele ldquoinusitadordquo (aecircthei 53c1)

Ao longo das suas intervenccedilotildees acerca da narrativa verosiacutemil Timeu demonstra constantemente uma preocupaccedilatildeo em fixar um ponto de vista pois tenta fornecer uma ldquoexposiccedilatildeordquo (diecircgecircsis 48d6) uma ldquoconclusatildeordquo (dogma 48d6) e aspira a ldquoapontar a causardquo (aitiateon 57c9) No entanto tem consciecircncia de que pode estar errado (53e3) e por isso admite a existecircncia de outra opiniatildeo divergente (55d6) Pelo facto de natildeo poder ser definitivamente validado o seu juiacutezo situa-se

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no campo do hipoteacutetico e do especulativo porquanto resultante da exploraccedilatildeo de possibilidades aproximaacuteveis ou provisoacuterias que apenas garantem coerecircncia e plausibilidade Ainda assim natildeo carece de validade filosoacutefica porque acima de tudo pretende representar o mundo pelo recurso a ferramentas fiaacuteveis como a matemaacutetica e a geometria

Torna-se entatildeo evidente que as duas modalidades discursivas eikos mythos e eikos logos desempenham papeacuteis bastante distintos o primeiro tem um caraacutecter narrativo expositivo natildeo-analiacutetico e natildeo aspira a uma conclusatildeo o segundo pretende partir do que resulta do primeiro e analisaacute-lo e por outro lado estabelecer tambeacutem os pressupostos sob os quais se desenrolaraacute a exposiccedilatildeo Em uacuteltima instacircncia a proacutepria enunciaccedilatildeo inicial dos dois niacuteveis ontoloacutegicos (ser e devir) e posteriormente a introduccedilatildeo do um terceiro eacute por si soacute um logos pois estabelececirc-los implica uma reflexatildeo ulterior

Resta ainda esclarecer a natureza (apenas) verosiacutemil do texto em ambas as suas dimensotildees discursivas pois que mythos e logos satildeo sempre qualificados como eikos Para tal conveacutem recuperar novamente o pressuposto onto-episteacutemico desde logo estabelecido no proeacutemio os discursos satildeo congeacuteneres daquilo que explicam Visto que o mundo criado eacute uma imagem (eikocircn) o discurso ou narrativa sobre ele teraacute necessariamente esta mesma natureza Num primeiro niacutevel mimeacutetico o demiurgo imita um modelo de inteligibilidade externo (as Ideias) cujas propriedades enforma na mateacuteria preacute-coacutesmica

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No outro o discursivo eacute o filoacutesofo que produz uma explicaccedilatildeo atraveacutes da observaccedilatildeo esquemaacutetica do real isto eacute da imitaccedilatildeo da ordem estabelecida pelo demiurgo Entatildeo a manifestaccedilatildeo discursiva da criaccedilatildeo haacute-de ser tambeacutem ela de caraacutecter mimeacutetico isto eacute do acircmbito do verosiacutemil posto que o resultado (o mundo) eacute igualmente de natureza mimeacutetica a soma dos particulares em processo isto eacute o devir consiste numa constante imitaccedilatildeo do modelo inteligiacutevel (as Ideias) cujo padratildeo de racionalidade espelha o plano cosmoloacutegico original e se desvela agrave observaccedilatildeo analiacutetica do filoacutesofo

3 o discurso de crIacutetias

O tema da narrativa de Criacutetias foi alvo de muacuteltiplas interpretaccedilotildees praticamente desde pouco tempo depois da morte de Platatildeo ateacute aos nossos dias A abordagem agrave famosa questatildeo da Atlacircntida seduz natildeo soacute acadeacutemicos das mais vaacuterias aacutereas do saber como tambeacutem autores de ficccedilatildeo Como se torna impossiacutevel circunscrever tudo quanto tenha sido feito a este respeito bem como englobar todos os possiacuteveis vectores de anaacutelise tentaremos de um modo tatildeo breve quanto geneacuterico tocar os pontos fundamentais do problema insistindo sobretudo no estatuto que cabe a esta narrativa e inevitavelmente no acircmbito em que se inscreve

Muito sucintamente a intervenccedilatildeo de Criacutetias resume-se agrave descriccedilatildeo de dois mundos antagoacutenicos a Atenas primeva e a Atlacircntida mais propriamente trata do conflito em sentido literal que travaram entre si Seria este o assunto principal do diaacutelogo segundo podemos

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deduzir a partir de alguns dados do texto embora dele tenha sobrado apenas uma descriccedilatildeo inicial que termina abruptamente O que restou desta diegese arquitectada pela dicotomia de dois mundos opostos comeccedila por dar conta do territoacuterio da populaccedilatildeo e da organizaccedilatildeo social de uma Atenas situada num tempo primordial (9000 anos antes de Platatildeo) e termina com um ensaio corograacutefico mais desenvolvido sobre uma monumental ilha situada para aleacutem das Colunas de Heacuteracles (Estreito de Gibraltar) cujos habitantes a dada altura decidiram dominar os povos e cidades do Mediterracircneo incluindo Atenas Agrave partida estariacuteamos inclinados a identificar este episoacutedio com uma determinada guerra travada entre Atenas e um invasor que mediada pela pena criativa de Platatildeo se situaria algures entre histoacuteria e mito mas o problema eacute bem mais complexo Eacute que a ilha da Atlacircntida nunca foi localizada geograficamente e natildeo existe qualquer vestiacutegio histoacuterico quer dela quer dos seus habitantes

Deste modo podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas reconhecer-lhe um fundo histoacuterico ou consideraacute-la uma ficccedilatildeo forjada pelo proacuteprio Platatildeo Aleacutem destas duas hipoacuteteses alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegoacuterico Em nosso entender esta via natildeo estaacute no mesmo plano que as anteriores na medida em que eacute compatiacutevel com ambas constituiraacute pois o segundo niacutevel de intencionalidade da narrativa seja ela histoacuterica ou ficcional

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31 A historicidade da narrativa sobre a AtlacircntidaA hipoacutetese histoacuterica foi a primeira a ser ensaiada

Segundo diz Proclo nos Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo Crantor (o precursor dos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo) atribuiacutea ao discurso de Criacutetias o estatuto de ldquohistoacuteria purardquo (historia psilecirc 1761) Decorrente deste arrojo hermenecircutico foi-se criando e consolidando a ideia de que a Atlacircntida existiria de facto em algum lugar Sobretudo a partir dos Descobrimentos portugueses e espanhoacuteis dos seacuteculos XV e XVI surgiram variadiacutessimas tentativas de identificar geograficamente o territoacuterio No entanto o uacutenico resultado que todas essas demandas (mais ou menos cientiacuteficas) obtiveram foi uma disparidade de opiniotildees tal que tornou qualquer ponto do globo passiacutevel de ser identificado com a ilha

Especial atenccedilatildeo mereceu a hipoacutetese ldquoCretardquo que inicialmente granjeou alguma credibilidade No seguimento de exploraccedilotildees arqueoloacutegicas naquela zona foi forjada uma teoria segundo a qual a civilizaccedilatildeo referida no texto de Platatildeo correspondia agrave que habitava aquela ilha durante o Periacuteodo Minoacuteico a qual tinha sido destruiacuteda por uma violenta erupccedilatildeo do vulcatildeo de Thera (actual Santorini) no entanto com base em novas investigaccedilotildees arqueoloacutegicas e geoloacutegicas essa hipoacutetese acabou por ser refutada (vide Brisson 2001 p 318) Antes destas as outras possibilidades ateacute agora adiantadas satildeo o Continente Americano a Sueacutecia os Mares do Sul (junto ao actual Peru) os arquipeacutelagos dos Accedilores

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e da Madeira entre outras17 Por conseguinte a crenccedila de que a civilizaccedilatildeo representada no discurso de Criacutetias teraacute um referente histoacuterico eacute cada vez mais residual no acircmbito da comunidade cientiacutefica na verdade a grande maioria dos tiacutetulos que tecircm sido publicados sobre a Atlacircntida ou que de algum modo a abordam tomam como princiacutepio a sua anistoricidade

32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de PlatatildeoA segunda hipoacutetese de acordo com a qual toda

a narrativa foi integralmente inventada por Platatildeo eacute aquela que teve menos aceitaccedilatildeo durante a Antiguidade Na verdade restou apenas uma referecircncia que apontava neste sentido na Geografia Estrabatildeo cita em duas ocasiotildees (236 13136) a sentenccedila ldquoo poeta que a forjou fecirc-la desaparecerrdquo na primeira natildeo explicita a sua autoria e na segunda aponta Aristoacuteteles o qual nunca refere a Atlacircntida em nenhum dos textos conservados18 Em segundo lugar porque esta orientaccedilatildeo natildeo se compatibiliza com a intenccedilatildeo do narrador que insiste em classificar o seu discurso como histoacuterico Se o primeiro aspecto natildeo permite concluir rigorosamente nada pois apenas constata uma evidecircncia jaacute o segundo seraacute mais difiacutecil de justificar

17 Para uma descriccedilatildeo mais pormenorizada das possibilidades de localizaccedilatildeo geograacutefica da Atlacircntida vide Azevedo (2009 pp 102-105) Matteacutei (2002 pp 255-256) e Brisson (2001 pp 314-319)

18 Eacute referido o Oceano Atlacircntico mas apenas em textos considerados espuacuterios (Sobre o Mundo 3 392b20-393a16 Problemas [Fiacutesicos] 2652 946a16-32)

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No breve resumo antecipado no Timeu Criacutetias refere que aquilo que estaacute prestes a contar eacute absolutamente verdadeiro (pantapasi alecircthous 20d7) ou seja o seu discurso eacute histoacuterico Na verdade a sua intervenccedilatildeo deixa transparecer vaacuterias caracteriacutesticas e preocupaccedilotildees proacuteprias de um historiador o facto de descrever (geograacutefica social e politicamente) as duas forccedilas antes de entrarem em combate tal como faz Tuciacutedides (189-sqq) a necessidade de fundamentar a argumentaccedilatildeo com evidecircncias19 o modo como o proacuteprio Soacutelon obteacutem as informaccedilotildees no Egipto faz lembrar o meacutetodo de Heroacutedoto20 ou mesmo o recurso a determinadas expressotildees formulares caracteriacutesticas do registo histoacuterico21

Todavia a fonte que sustenta o relato eacute no miacutenimo problemaacutetica Em virtude do tempo decorrido desde a eacutepoca a que Criacutetias se refere e do inevitaacutevel desaparecimento dos homens que nela viveram natildeo sobraram na Greacutecia mais do que nomes isolados que os que viviam nas montanhas ndash iletrados ndash puseram aos seus descendentes (109b-c) Perante a inexistecircncia de testemunhos heleacutenicos que dessem conta daquele episoacutedio a fundamentaccedilatildeo da narrativa remonta ao Egipto onde Soacutelon recolheu os dados junto de sacerdotes locais No entanto a dita transmissatildeo carece

19 O termo utilizado para ldquoevidecircnciardquo (tekmecircrion) eacute muitiacutessimo recorrente nos escritos de Heroacutedoto (2131 33810 72384) e Tuciacutedides (113 2392 31046)

20 Eg 244 53 10021 Por exemplo megala kai thaumasta (ldquograndes e admiraacuteveis

feitosrdquo) em 20e uma expressatildeo tipicamente historiograacutefica (eg Heroacutedoto 111 Diodoro Siacuteculo 1319 Dioniacutesio de Halicarnasso 581)

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de validade histoacuterica pelo facto de ser cronologicamente impossiacutevel que Soacutelon tenha estado no Egipto na eacutepoca do rei Amaacutesis como eacute sugerido pelo texto (21e) razatildeo pela qual o episoacutedio deve ter sido manipulado por Platatildeo (apud Leatildeo 2001 pp 249 275)

Assim a intenccedilatildeo historicista do narrador torna-se extremamente difiacutecil de compatibilizar com a evidente precariedade das fontes de que parte bem como com a impossibilidade de depois de mais de dois mileacutenios de exegese sequer se esboccedilar uma teoria minimamente vaacutelida que sustente esta posiccedilatildeo Aleacutem disso haacute outro pormenor que agrave partida parece complicar ainda mais o esclarecimento de tal contradiccedilatildeo Quando ainda no Timeu Soacutecrates elogia a intenccedilatildeo de Criacutetias oferecer um ldquodiscurso do realrdquo (alecircthinon logon 26e4-5) e natildeo uma narrativa forjada (mecirc plasthenta mython 26e4) parece subscrever o estatuto de histoacuteria pura Contudo esta aparente conivecircncia deve ser entendida agrave luz do que o proacuteprio dissera em relaccedilatildeo agrave cidade descrita ldquono dia anteriorrdquo isto eacute o Estado arquetiacutepico da Repuacuteblica (cf Pina 2010 pp 148-149)

Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos (19b-c)

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Isto eacute aquele jogo entre mythos e logos narrativa e discurso parece indiciar natildeo uma oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso antes uma tentativa de transpocircr para o real e concreto (apud Azevedo 2009 p 96) algo que fora formulado em abstracto No entanto visto que esta questatildeo entronca numa das possibilidades de interpretaccedilatildeo a abordar posteriormente deixemo-la para jaacute em suspenso

Abandonando entatildeo os pontos de vista dos participantes do diaacutelogo sobre a natureza do relato e focando um pouco mais o que podemos deduzir por meio de algumas relaccedilotildees intertextuais verificamos que o texto de Platatildeo evidencia a presenccedila de muitas fontes a que natildeo faz referecircncia directa A diversidade desses materiais usados como ldquoingredientesrdquo eacute tal que facilmente poderemos estabelecer um conjunto de substratos inerentes ao discurso os quais forccedilosamente lhe vinculam um estatuto compoacutesito e ao mesmo tempo o afastam da reclamada historicidade

Por um lado o texto ecoa em diversas ocasiotildees vozes de alguns autores gregos como nota Gill (1980 xii-xiii) Por exemplo a incomensuraacutevel fertilidade das terras da Aacutetica primeva que reduzia ao miacutenimo o trabalho agriacutecola (110e) relembra inevitavelmente a Idade do Ouro de Hesiacuteodo (Trabalhos e Dias 109-126) ou o proacuteprio nome ldquoAtlacircntidardquo e a sua localizaccedilatildeo para aleacutem dos confins do mundo conhecido (isto eacute o Estreito de Gibraltar) que recupera a ilha da filha de Atlas referida na Odisseia (151-54) No domiacutenio da histoacuteria a presenccedila de Heroacutedoto eacute tambeacutem evidente

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os aneacuteis que estruturam a principal cidade da Atlacircntida (113d-e) evocam a descriccedilatildeo do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana (198) o modo como os canais da planiacutecie daquela ilha estavam arquitectados (118c-e) traz agrave memoacuteria a descriccedilatildeo da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia (3117) a assembleia dos reis tem muitas semelhanccedilas com um ritual caracteriacutestico de uma monarquia egiacutepcia (2147-sqq) Aleacutem disso encontramos tambeacutem elementos da proacutepria cultura aacutetica na construccedilatildeo da Atlacircntida como bem observa Vidal-Naquet (1964 pp 429-432) a divisatildeo decimal do territoacuterio (113e) os edifiacutecios defensivos que fazem lembrar o Pireu (117d-f ) e ateacute o proacuteprio templo de Posiacutedon muito semelhante ao Paacutertenon (116d-f ) Finalmente satildeo tambeacutem sugestivas as semelhanccedilas entre a estaacutetua de Posiacutedon que estava dentro do seu templo e a Estaacutetua de Zeus em Oliacutempia22

Por outro lado haacute na narrativa de Criacutetias elementos pertencentes a outras culturas ou civilizaccedilotildees como Cartago a Creta do Periacuteodo Minoacuteico ou o proacuteprio Egipto No primeiro caso os paralelos que possamos estabelecer satildeo pontuais os vorazes elefantes (114e) caracteriacutesticos daquela zona do Mediterracircneo e por exemplo os nomes Gadiro e Gadiacuterica (114b) de origem semita23 O mesmo acontece com o segundo o facto de ser uma grande potecircncia mariacutetima e sobretudo o culto do touro24 Mas no terceiro caso a questatildeo eacute de

22 Sobre esta relaccedilatildeo vide nota 68 agrave traduccedilatildeo23 Para um desenvolvimento mais pormenorizado desta questatildeo

vide Dusanic (1982 pp 27-28)24 Apesar de natildeo ser exclusivo de Creta o culto do touro era

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outra ordem pois tudo aponta para que este substrato represente o fundo histoacuterico que deu origem agrave narrativa Eacute bastante provaacutevel que o conflito entre a Atenas primeva e a Atlacircntida seja uma adaptaccedilatildeo de uma batalha travada pelos Egiacutepcios no tempo de Ramseacutes III contra os chamados ldquoPovos do Marrdquo Esta designaccedilatildeo ndash muitiacutessimo sugestiva ndash sugere uma confederaccedilatildeo de gentes oriundas de vaacuterias ilhas do Mediterracircneo que unidas tentaram atacar vaacuterias zonas continentais como o Norte da Palestina a Siacuteria e mesmo o Egipto Neste paiacutes a vitoacuteria foi particularmente celebrada e por isso registada e tornada objecto de narrativas vaacuterias que perduraram ao longo dos tempos daiacute que provavelmente Platatildeo se tenha baseado neste episoacutedio (apud Griffiths 1985 pp 13-14)

A recolha de todos estes elementos disponiacuteveis em textos e lugares conhecidos pelo autor parece assim indiciar um processo de representaccedilatildeo do outro atraveacutes dos olhos de um grego uma geografia imaginaacuteria de um mundo tambeacutem ele imaginaacuterio e sobretudo imaginado mas sempre a partir do repositoacuterio cultural de que emerge o sujeito

Tidas em conta estas evidecircncias somos obrigados a confessar que a narrativa de Criacutetias tem um caraacutecter marcadamente compoacutesito No entanto natildeo se trata apenas de uma mistura de dados histoacutericos oriundos de contextos espaacutecio-temporais bastante distintos ndash como que um pastiche25 ndash dado que tambeacutem comporta uma para os Atenienses uma caracteriacutestica identitaacuteria desta ilha veja-se por exemplo o mito de Teseu e Ariadne

25 A expressatildeo eacute de Naddaf (1997 p 190)

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forte componente poeacutetico-mitoloacutegica De um modo algo iroacutenico esta natureza estaacute latente no proacuteprio texto Logo no iniacutecio do diaacutelogo Criacutetias faz questatildeo de sublinhar que a linguagem eacute em si imitaccedilatildeo e representaccedilatildeo (mimecircsin () kai apeikasian 107b4-5) A advertecircncia preliminar indicia antes de tudo uma salvaguarda que o narrador pretende marcar aleacutem disso aproxima inevitavelmente o seu relato do registo ficcional logo anistoacuterico

Dito isto a incompatibilidade entre o estatuto que o narrador atribui ao seu discurso e o estatuto que somos obrigados a reconhecer-lhe manteacutem-se inalteraacutevel se eacute que natildeo se acentuou ainda mais No entanto a soluccedilatildeo definitiva do problema encontra-se precisamente numa das intervenccedilotildees metaliteraacuterias destinadas a certificar o caraacutecter real do discurso

Quanto aos cidadatildeos e agrave cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade () (26c8-26d1)

Esta fala de Criacutetias tem lugar precisamente quando se prepara para comeccedilar a descriccedilatildeo da guerra entre a Atlacircntida e Atenas e a cidade a que se refere eacute aquela que o resumo de Soacutecrates abordara anteriormente o arqueacutetipo de Estado delineado na Repuacuteblica Tal como naquele diaacutelogo a projecccedilatildeo teoacuterica da cidade eacute formulada no acircmbito do mito (501e4) mas ao contraacuterio da Repuacuteblica diaacutelogo em que essa teorizaccedilatildeo natildeo eacute posta em praacutetica o Criacutetias pretende dar corpo ao que fora formulado em abstracto isto eacute trazecirc-lo para a realidade (epi talecircthes)

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Deste modo em vez de verdadeiro como oposto de falso o discurso de Criacutetias pretende ser concreto ou melhor concretizar o que fora teorizado Eacute aliaacutes este o desiacutegnio de Soacutecrates quando diz que pretende ver em movimento a cidade e os cidadatildeos de que falavam bem como seraacute neste sentido que devemos entender a sua preferecircncia por um discurso do real em vez de uma narrativa forjada Deste modo estaremos em condiccedilotildees de assegurar que o discurso de Criacutetias se trata de uma narrativa ficcional forjada pelo proacuteprio Platatildeo a partir de elementos diversos quer (pseudo-)histoacutericos quer poeacutetico-mitoloacutegicos

Ainda assim resta esclarecer o passo em que Criacutetias diz que o seu discurso eacute ldquoabsolutamente verdadeirordquo (pantapasi () alecircthous 20d7) ou seja por que motivo Platatildeo insiste em chamar ldquoverdadeirardquo a uma narrativa que monta com elementos ficcionais A esta questatildeo responde Morgan de um modo tatildeo vaacutelido quanto eficaz o discurso de Criacutetias consiste numa dramatizaccedilatildeo praacutetica da ldquonobre mentirardquo da Repuacuteblica26

33 Leituras alegoacutericasDeste modo entramos na primeira das possiacuteveis

leituras alegoacutericas que o discurso de Criacutetias pode assumir a narrativa sobre a guerra entre a Atlacircntida e

26 Vide Morgan (2000 pp 263-265) cf Pina (2010 pp 155-156) Na Repuacuteblica (414b-sqq) Platatildeo equaciona a possibilidade de introduzir uma crenccedila falsa na sociedade desde que com isso se consiga fazer aumentar o afecto dos cidadatildeos para com a cidade A esse tipo de narrativas chamou ldquonobre mentirardquo (pseudocircn gennaion 414b8-9)

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a Atenas primeva tem como objectivo despertar nos Atenienses um maior afecto em relaccedilatildeo agrave sua cidade Numa linha semelhante Azevedo (2006 p 295 2009 p 95) sugere que a Atlacircntida soacute faz sentido enquanto modelo distoacutepico que contrasta com a Atenas primeva esta um modelo de supremacia civilizacional e com o papel de guardiatilde da Europa Satildeo portanto duas leituras que enquadram a narrativa numa evocaccedilatildeo saudosista de um passado glorioso que pretende acima de tudo revitalizar a imagem de uma cidade desgastada por sucessivos desaires militares e poliacuteticos como era a Atenas de Platatildeo

Ao longo dos tempos foram surgindo outras propostas de leituras alegoacutericas mais individualizadas com uma evidente vertente poliacutetica A primeira tambeacutem de natureza saudosista pretende transpor a narrativa de Criacutetias para o contexto das Guerras Medo-Persas ou seja a Atenas primeva coincide com a Atenas que expulsou o inimigo oriental a qual cultivava ainda os seus costumes e tradiccedilotildees ancestrais e a dada altura tambeacutem ficou praticamente sozinha na frente de batalha em sentido inverso a civilizaccedilatildeo atlante siacutembolo da ganacircncia de domiacutenio forccedila invasora arrasadora e ao mesmo tempo superpotecircncia econoacutemica corresponderaacute aos Persas Quanto agrave segunda leitura possiacutevel ela eacute diametralmente oposta a Atlacircntida representaria a Atenas contemporacircnea de Platatildeo enquanto que a Atenas primeva simbolizaria Esparta ou seja como pano de fundo estaria a Guerra do Peloponeso e de modo subliminar uma criacutetica aguda agrave postura de Atenas durante esse conturbado periacuteodo

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ndash criacutetica essa que assumiria um caraacutecter particularmente incisivo pelo facto de o diaacutelogo se desenrolar pelo menos do ponto de vista dramaacutetico durante as Panateneias a principal festa da cidade De acordo com esta proposta o objectivo seria entatildeo vincar os ldquopecadosrdquo atenienses como a desmedida supremacia mariacutetima ou a atitude agressiva perante as naccedilotildees vizinhas e inversamente enaltecer as ldquovirtudesrdquo tradicionalmente espartanas uma classe militar extremamente forte e demarcada organizaccedilatildeo poliacutetica tradicional e a relativa desvalorizaccedilatildeo das riquezas materiais

Com efeito o que podemos afirmar com toda a certeza independentemente da posiccedilatildeo que queiramos assumir eacute que a narrativa de Criacutetias descreve os dois movimentos comuns a todas as civilizaccedilotildees ascensatildeo e queda

4 estrutura dos diaacutelogos

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias (17a-27c)1 Contexto dramaacutetico (17a-17b)2 Resumo da conversa do dia anterior (17b-20c)3 Resumo do discurso de Criacutetias (20c-26e)4 Programa dos discursos (26e-27c)

II Discurso de Timeu (27c-92c)A Preluacutedio1 Invocaccedilatildeo dos deuses (27c-27d)2 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ser e devir (27d-28b)21 Implicaccedilotildees epistemoloacutegicas (28c-29d)3 Pressupostos iniciais (29d-31b)

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31 O demiurgo (29d-30c)32 O Ser-Vivo (30c-d)33 O mundo eacute um ser-vivo (30d-31a)34 O mundo eacute uacutenico (31a-31b)

B Obras do Intelecto1 Constituiccedilatildeo do mundo (31b-40d)11 O corpo do mundo (31b-34a)12 A alma do mundo (34a-40d)2 Constituiccedilatildeo do Homem (40d-47e)21 A alma do Homem (40d-44c)22 O corpo do Homem (44c-47e)

C O acircmbito da Necessidade1 A causa errante (47e-48b)2 Novo comeccedilo da narrativa nova invocaccedilatildeo dos deuses (48b-48e)3 Terceiro princiacutepio ontoloacutegico a chocircra (48e-51e)4 Recapitulaccedilatildeo dos trecircs princiacutepios ontoloacutegicos (51e-52c)5 Os elementos (52d-61c)51 Estado preacute-coacutesmico (52d-53c)52 Formaccedilatildeo dos soacutelidos a partir dos triacircngulos elementares (53c-56c)53 Transmutaccedilatildeo e variedades dos compostos (56c-57d)54 Movimentos dos elementos (57d-61c)6 As sensaccedilotildees e as impressotildees (61c-69a)61 O tacto (61c-64a)62 O prazer e a dor (64a-65b)

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63 Os sabores (65b-66c)64 Os odores (66c-67a)65 Os sons (67a-67c)66 As cores (67c-68d)

D Cooperaccedilatildeo entre Intelecto e Necessidade (68e-81e)1 Recapitulaccedilatildeo da acccedilatildeo do demiurgo (68e-69c)2 Introduccedilatildeo das divindades menores (69c-69d)3 Constituiccedilatildeo da parte mortal da alma humana (69d-73b)4 Constituiccedilatildeo das restantes partes do corpo humano (73b-76e)5 Criaccedilatildeo dos seres vegetais (76e-77c)6 Constituiccedilatildeo dos aparelhos funcionais do corpo humano (77c-81e)7 Doenccedilas do corpo humano (81e-86a)8 Doenccedilas da alma humana (86b-92c)

E Conclusatildeo (92c)

III Discurso de Criacutetias (106a-121c)

A Introduccedilatildeo (106a-109a)1 Excurso metaliteraacuterio (106a-108a)2 Invocaccedilatildeo dos deuses (108a-d)3 Resumo do discurso (108e-109a)

B Descriccedilatildeo da Atenas primeva (109b-112b)1 Origem miacutetica dos Atenienses (109b-d)

Rodolfo Lopes

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2 Populaccedilatildeo (109d-110d)3 Territoacuterio (110d-112e)31 Regiatildeo da Aacutetica (110e-111e)32 Cidade de Atenas (111e-112e)

C Descriccedilatildeo da Atlacircntida (113a-121c)1 Advertecircncia sobre as condiccedilotildees de transmissatildeo da narrativa (113a-b)2 Origem miacutetica dos Atlantes (113c-114d)3 Territoacuterio (114d-119b)31 Recursos naturais da ilha (114d-115b)32 A metroacutepole (115b-117e)33 Recursos forjados pelos habitantes (117e-119b)4 Organizaccedilatildeo poliacutetica (119b-121c)

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Soacutecrates Um dois trecircs mas onde estaacute meu caro Timeu o quarto dos nossos convidados1 de ontem nossos anfitriotildees de hoje

Timeu Alguma doenccedila o atingiu oacute Soacutecrates pois se dependesse de si proacuteprio natildeo faltaria a este encontro

Soacutecrates Entatildeo a tarefa de preencher o lugar do que estaacute ausente cabe-te a ti e a estes aqui natildeo eacute verdade

Timeu Sem duacutevida e dentro dos possiacuteveis natildeo falharemos na nossa tarefa De facto natildeo seria justo se depois de nos teres recebido como eacute adequado fazecirc-lo com os hoacutespedes noacutes ndash os que restamos ndash natildeo te retribuiacutessemos de bom grado o festim

Soacutecrates Entatildeo e vocecircs ainda se lembram de qual era o teor e o assunto que vos propus para a nossa conversa

1 Natildeo eacute possiacutevel sequer supor quem seja esta personagem anoacutenima Quanto aos restantes vide Introduccedilatildeo pp 20-23

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Timeu Lembramo-nos de alguns temas e os que nos tiverem escapado tu estaraacutes caacute para no-los relembrar ou melhor ainda se natildeo achares inconveniente passa-os em revista de forma breve e desde o princiacutepio de modo a que fiquem mais clarificados entre noacutes

Soacutecrates Assim seja O essencial das minhas palavras de ontem tinha que ver com o tipo de Estado2 que me parece ser o melhor e a partir de que tipo de homens havia de ser composto

Timeu E de facto Soacutecrates o que nos disseste estaacute perfeitamente de acordo com o que todos noacutes pensamos

Soacutecrates E natildeo comeccedilaacutemos por dividir a classe dos que trabalham a terra em si e por separar este e os outros ofiacutecios de artesatildeos da classe daqueles que defendem a cidade3

Timeu Sim

Soacutecrates E quando atribuiacutemos de acordo com a sua natureza especiacutefica uma uacutenica profissatildeo e ocupaccedilatildeo

2 politeia Embora ldquoEstadordquo seja um conceito medieval eacute o uacutenico termo portuguecircs que engloba as instituiccedilotildees poliacuteticas e a forma de governo eacute o que estaacute implicado em politeia Trata-se evidentemente do assunto principal da Repuacuteblica (Politeia) cujo resumo parcial (sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo pp 16-17 62-63) os participantes traratildeo agrave memoacuteria nesta secccedilatildeo inicial por esse motivo remeteremos em nota para uma das passagens daquele diaacutelogo aludidas ao longo dos proacuteximos paraacutegrafos

3 Cf Repuacuteblica 374a-d

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a cada cidadatildeo que lhe fosse adequada4 dissemos que aqueles que tivessem de lutar em favor de todos deviam ser exclusivamente guardiotildees da cidade em relaccedilatildeo a algueacutem de fora ou de dentro que cometesse algum crime Deviam ainda aplicar a justiccedila com moderaccedilatildeo sobre aqueles que satildeo regidos por eles e que por natureza satildeo seus amigos e de tratar com aspereza os inimigos a defrontar no campo de batalha5

Timeu Sem qualquer duacutevida

Soacutecrates Com efeito diziacuteamos segundo creio que a natureza da alma dos guardiotildees devia ser eneacutergica e ao mesmo tempo particularmente inclinada para a sabedoria de modo a que conseguissem ser em igual medida moderados para uns e aacutesperos para os outros6

Timeu Sim

Soacutecrates E quanto agrave formaccedilatildeo Natildeo haviam de ter formaccedilatildeo no acircmbito da ginaacutestica e da muacutesica e de todas as mateacuterias adequadas para eles7

Timeu Com certeza

Soacutecrates Aleacutem disso foi dito que os homens assim formados natildeo deviam nunca considerar sua pertenccedila

4 Cf Repuacuteblica 369e-370c 423d5 Cf Repuacuteblica 375c 414b 415d-e6 Cf Repuacuteblica 374e-376c7 Cf Repuacuteblica 376e-sqq 403c-sqq 410c-sqq

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nem ouro nem prata nem qualquer outro bem antes como guardas deveriam receber daqueles que protegem um pagamento pela sua guarniccedilatildeo para ser gasto numa vida de partilha e convivecircncia entre si em permanente exerciacutecio da excelecircncia e dispensados do desempenho de outras funccedilotildees8

Timeu Tambeacutem isso foi dito desse modo

Soacutecrates E no que respeita agraves mulheres tambeacutem mencionaacutemos que a natureza delas devia ser concordante com a dos homens e com a deles harmonizado e lhes deviam ser atribuiacutedas as mesmas funccedilotildees que a eles na guerra e nos restantes assuntos do dia-a-dia9

Timeu Tambeacutem isso se disse desse modo

Soacutecrates E no que respeita agrave procriaccedilatildeo Seraacute que o caraacutecter inusitado dessas consideraccedilotildees faz com que seja recordado facilmente porque estabelecemos que todos os casamentos e os filhos seriam comuns Deste modo se conseguia que ningueacutem reconhecesse como seus filhos o engendrado por si antes que todos considerariam todos como sendo da mesma famiacutelia tendo por irmatildes e irmatildeos aqueles que fossem de idade aproximada por pais ou avoacutes dos pais os mais velhos e por filhos gerados pelos filhos os mais novos10

8 Cf Repuacuteblica 416d-417b 464b-c9 Cf Repuacuteblica 456a-sqq10 Cf Repuacuteblica 460c-461e

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Timeu Sim tambeacutem isto eacute faacutecil de relembrar como dizes

Soacutecrates E para que as crianccedilas na medida do possiacutevel fossem agrave partida de natureza excelente lembraacutemos o que tiacutenhamos dito sobre os governantes e as governantes que deviam celebrar contratos de casamento em segredo por meio de uma espeacutecie de sorteio para que os piores e os melhores se unissem separada e respectivamente com as suas semelhantes de modo a que natildeo se criasse entre eles qualquer inimizade por causa disso uma vez convencidos de que o acaso era o motivo da sua uniatildeo

Timeu Lembraacutemos

Soacutecrates E tambeacutem que tiacutenhamos dito que deveriam ser criados os filhos dos naturalmente bons enquanto que os dos piores deveriam ser dispersos pelo resto da cidade11 Mantidos todos sob observaccedilatildeo durante o seu crescimento deviam ser trazidos sempre de volta aqueles que se mostrassem dignos de tal e ser remetidos os inaptos para o local de onde aqueles tinham vindo

Timeu Assim foi

Soacutecrates Seraacute que jaacute passaacutemos em revista exactamente o que ontem dissemos na medida do que

11 eis tecircn allecircn polin Porque precedido de artigo o pronome allos deve traduzir-se por ldquoo restordquo por isso seria descabida a versatildeo ldquopara outra cidaderdquo

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se pode recuperar dos assuntos principais meu caro Timeu ou querem regressar ainda a algum dos assuntos de que falaacutemos e que eu tenha deixado para traacutes

Timeu De modo algum pois isto foi exactamente o que dissemos oacute Soacutecrates

Soacutecrates Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos De facto com prazer ouviria de algueacutem o relato sobre as disputas que uma cidade trava as que ela manteacutem contra outras cidades a forma correcta como chega agrave guerra e como no seu decurso se apresenta de acordo com a sua educaccedilatildeo e formaccedilatildeo natildeo soacute nas praacuteticas de combate como tambeacutem na negociaccedilatildeo de tratados com as outras cidades Reconheccedilo Criacutetias e Hermoacutecrates que eu proacuteprio natildeo serei capaz de elogiar os homens e a cidade convenientemente E esta minha posiccedilatildeo nada tem de surpreendente pelo contraacuterio mantenho a mesma opiniatildeo em relaccedilatildeo aos poetas antigos e contemporacircneos Natildeo eacute que eu desconsidere a estirpe dos poetas mas eacute perfeitamente evidente que a raccedila dos imitadores imitaraacute com facilidade e de modo

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excelente aquilo em que foi educada poreacutem torna-se difiacutecil para qualquer um imitar bem o que natildeo pertence agrave sua educaccedilatildeo sendo ainda mais difiacutecil se a imitaccedilatildeo for feita por meio de palavras

Penso que a casta dos sofistas se destaca por ter muita experiecircncia em variados tipos de discurso e noutras coisas belas No entanto tendo em conta que ela vagueia de cidade em cidade e pelas casas sem dispor de uma morada proacutepria eu temo que natildeo atinja12 o que homens simultaneamente filoacutesofos e poliacuteticos fazem na guerra e no campo de batalha por meio de actos e palavras e como se relacionam entre si a falar e a agir Sobra portanto a classe de pessoas da vossa condiccedilatildeo que por natureza e formaccedilatildeo toma parte de ambas as categorias Eacute que Timeu que aqui temos cidadatildeo de Loacutecride a cidade na Itaacutelia com melhor organizaccedilatildeo poliacutetica13 que natildeo fica atraacutes de nenhum dos outros em riqueza e linhagem ocupou os mais altos cargos e recebeu as maiores das honras naquela cidade e na minha opiniatildeo alcanccedilou o ponto mais alto de toda a filosofia Suponho que todos noacutes sabemos que Criacutetias natildeo eacute um desconhecedor em qualquer das mateacuterias de que falamos Aleacutem disso visto que muitos o testemunham devemos acreditar que Hermoacutecrates em virtude da sua natureza e formaccedilatildeo eacute competente em todos estes assuntos Foi por isso que ontem quando vocecircs pediram para discursar sobre o Estado acedi de

12 astochon literalmente ldquoalgo que falha o alvordquo13 O sistema poliacutetico-administrativo de Loacutecride eacute elogiado

nas Leis (638b) e tambeacutem por Piacutendaro numa das Odes Oliacutempicas (1013)

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bom grado porque depois de ter reflectido percebi que ningueacutem seria mais adequado do que vocecircs para dar seguimento a esse discurso se assim quiserem Eacute que entre os nossos contemporacircneos vocecircs satildeo os uacutenicos que depois de preparar a cidade para uma guerra justificaacutevel podem proporcionar-lhe tudo quanto lhe eacute conveniente Uma vez que dissertei sobre o assunto que me tinha sido atribuiacutedo a vosso cargo deixo aquilo a que agora me refiro Tinham acordado que depois de terem reflectido em conjunto me seria retribuiacutedo por vocecircs mesmos o banquete de discursos14 Aqui estou entatildeo preparado para tal e mais do que ningueacutem pronto para recebecirc-los

Hermoacutecrates De facto Soacutecrates tal como disse Timeu15 nem faltaraacute boa-vontade nem haveraacute qualquer motivo a impedir que tal se cumpra De igual modo tambeacutem noacutes ontem logo depois de nos termos retirado daqui e chegado agrave casa de Criacutetias o nosso anfitriatildeo e ainda antes disso enquanto percorriacuteamos o caminho faziacuteamos observaccedilotildees sobre isto mesmo Este contou-nos uma estoacuteria de antiga tradiccedilatildeo Conta-a agora tambeacutem a Soacutecrates oacute Criacutetias para que ele considere se eacute adequada ou desadequada ao fim em vista

14 Embora xenia signifique simplesmente ldquopresentes de hospitalidaderdquo pode tambeacutem representar a cerimoacutenia comensal com que o anfitriatildeo recebia os convidados Neste caso parece que Soacutecrates usa a palavra com esse sentido repetindo a metaacutefora do banquete de palavras que usara neste (27b) e noutros diaacutelogos (Goacutergias 447a Repuacuteblica 352b 354a-b)

15 Cf supra 17a-b

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Criacutetias Faacute-lo-ei se igualmente parecer bem a Timeu o nosso terceiro conviva

Timeu Parece-me bem pois

Criacutetias Escuta entatildeo Soacutecrates uma estoacuteria deveras iacutempar e contudo absolutamente verdadeira como uma vez a contou Soacutelon o mais saacutebio de entre os Sete Saacutebios que era familiar e muito amigo do meu bisavocirc Dropidas tal como ele afirma com frequecircncia na sua obra poeacutetica16 Contou-a a Criacutetias nosso avocirc que jaacute velho nos narrava de memoacuteria que grandes e admiraacuteveis feitos17 dos tempos antigos desta cidade que tinham sido esquecidos graccedilas ao tempo e agrave destruiccedilatildeo da humanidade18 e a mais grandiosa de todas seria conveniente que ta deacutessemos a conhecer agora para te oferecer um agradecimento e ao mesmo tempo em jeito de hino para elogiar neste louvor a deusa de forma justa e autecircntica no dia da sua festa19

Soacutecrates Falas correctamente Mas que feito eacute esse de que natildeo temos notiacutecia e que foi realmente cumprido

16 No que sobrou da obra de Soacutelon natildeo haacute qualquer referecircncia a este nome Sobre esta figura vide Introduccedilatildeo pp 21-22

17 megala kai thaumasta eacute curiosamente uma expressatildeo formular proacutepria do discurso histoacuterico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 57-sqq esp n 21

18 Trata-se dos vaacuterios diluacutevios que quase extinguiram a espeacutecie humana (21d 22c-sqq) cf Criacutetias 109d 111a-sqq Leis 677A-sqq Poliacutetico 270c-d Entre eles conta-se evidentemente o que vai ser descrito de seguida

19 O Festival das Panateneias dedicado agrave deusa Atena durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica

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pela nossa cidade em tempos antigos o qual Criacutetias vai narrar de acordo com o testemunho de Soacutelon

Criacutetias Passo a contaacute-lo ainda que sob a forma de relato antigo que ouvi da boca de um homem entrado em anos Eacute que Criacutetias20 como dizia tinha jaacute perto de 90 anos enquanto que eu ainda natildeo teria bem dez Por acaso era o dia de Cureoacutetis o terceiro das Apatuacuterias21 Para as crianccedilas estava reservado o que tambeacutem nessa altura era costume por ocasiatildeo de cada uma dessas festas os nossos pais organizavam-nos concursos de recitaccedilatildeo Foram declamados muitos poemas de muitos poetas mas como naquele tempo os de Soacutelon constituiacuteam ainda novidade muitos de noacutes crianccedilas cantaacutemo-los Um dos elementos da fratria22 fosse por realmente pensar desse modo fosse para prestar como que uma homenagem a Criacutetias disse considerar que aleacutem de Soacutelon ser o homem mais saacutebio noutros assuntos no que respeitava agrave poesia considerava-o o mais independente de todos os poetas23 Entatildeo o anciatildeo ndash lembro-me bem ndash muito

20 Este Criacutetias natildeo eacute o participante no diaacutelogo mas sim o seu avocirc Sobre esta relaccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp 21-22

21 Festival que decorria em todas as cidades ioacutenicas agrave excepccedilatildeo de Eacutefeso e Coacutelofon segundo Heroacutedoto 1147 O terceiro e uacuteltimo dia (dito ldquode Cureoacutetisrdquo) estava reservado agrave apresentaccedilatildeo das crianccedilas que tinham nascido nos 12 meses precedentes

22 Uma fratria era um grupo de cidadatildeos unidos por uma mesma ascendecircncia Era considerada uma marca da tradiccedilatildeo ioacutenica e como tal frequente em muitas cidades desta origem entre as quais Atenas A cerimoacutenia que celebrava esta tradiccedilatildeo era justamente as Apatuacuterias que segundo Heroacutedoto (1147) consistiam no criteacuterio de identidade desta heranccedila cultural

23 Cremos que eleutheriocirctaton natildeo se refere ao conteuacutedo temaacutetico ou qualquer outro aspecto literaacuterio da obra de Soacutelon mas

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agradado disse a sorrir ldquooacute Aminandro24 era bom que ele natildeo tivesse usado a poesia como passatempo mas sim que se tivesse empenhado como os outros e dado corpo ao relato que para aqui trouxe do Egipto Se as revoltas entre outros males que encontrou quando caacute chegou25 natildeo o tivessem obrigado a descurar a poesia nem Hesiacuteodo nem Homero nem qualquer outro poeta se teria tornado mais ceacutelebre do que elerdquo ldquoMas que relato eacute esse Criacutetiasrdquo ndash perguntou o outro ldquondash O relato era sobre o feito mais grandioso e com toda a justiccedila mais notaacutevel de todos quantos a nossa cidade praticou mas que natildeo perdurou ateacute agora por causa do tempo e da morte daqueles que nele participaramrdquo ndash respondeu ele ldquoConta desde o princiacutepio o que relatou e como o relatou Soacutelon e da boca de quem o ouviu como sendo verdadeirordquo ndash pediu o outro

ldquoHaacute no Egipto ndash comeccedilou Criacutetias ndash no extremo inferior do Delta em redor da zona onde se divide a corrente do Nilo uma regiatildeo chamada Saiticos26 e da maior cidade dessa regiatildeo Sais27 ndash precisamente de onde era natural o rei Amaacutesis28 ndash foi fundadora uma deusa

sim ao proacuteprio homem ndash de facto a palavra tem uma conotaccedilatildeo principalmente socioloacutegica e poliacutetica Eacute que ao contraacuterio da maioria dos poetas do seu tempo Soacutelon natildeo compunha por indicaccedilatildeo de um patrono

24 Personagem totalmente desconhecida25 Referecircncia provaacutevel agraves revoltas que nos finais do seacuteculo VI

aC afrontaram Atenas antes de Soacutelon ter tomado o poder26 Sobre esta regiatildeo vide Heroacutedoto 2152 165 17227 Sobre esta cidade vide Heroacutedoto 228 59 62 130-132

163 169-171 31628 Heroacutedoto refere que Soacutelon depois de ter composto as leis

para os Atenienses se ausentou durante dez anos e esteve em casa de

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cujo nome em Egiacutepcio eacute Neith e em Grego segundo dizem os que laacute vivem Atena29 Eles nutrem profunda simpatia pelos Atenienses e dizem que de certo modo com estes tecircm afinidades

Dizia Soacutelon que enquanto por ali andou era muitiacutessimo respeitado por eles e que a certa altura ao questionar os sacerdotes30 mais versados sobre acontecimentos antigos descobriu que nem ele nem nenhum outro grego sabia por assim dizer quase nada sobre aquele assunto Como ele pretendia induzir os anciatildeos a conversarem sobre acontecimentos antigos pocircs-se a contar as tradiccedilotildees ancestrais que haacute entre noacutes Falou de Foroneu que se diz ter sido o primeiro homem31 e de Niacuteobe32 de como Deucaliatildeo e Pirra sobreviveram ao diluacutevio33 e discorreu sobre a genealogia dos que lhes sucederam e tentou calcular haacute quantos anos tinha acontecido aquilo que contara trazendo agrave memoacuteria as Amaacutesis (cf 129-30) Ainda que seja quase certa a estadia de Soacutelon no Egipto eacute cronologicamente impossiacutevel que tenha acontecido no tempo de Amaacutesis cf Introduccedilatildeo pp 57-58

29 Tambeacutem Heroacutedoto estabelece esta relaccedilatildeo entre Atena e Neith e chega a referir um grande festival religioso que os egiacutepcios organizavam em honra da deusa (cf 259)

30 Plutarco na Vida de Soacutelon (261) tambeacutem refere este episoacutedio e adianta os nomes dos sacerdotes Socircnquis de Sais e Pseacutenopis de Helioacutepolis

31 As uacutenicas referecircncias a Foroneu como primeiro homem satildeo bastante posteriores (Clemente de Alexandria Stromata 1102 Pausacircnias 2155) Por isso natildeo eacute possiacutevel perceber a que tradiccedilatildeo Platatildeo se refere

32 Filha de Foroneu33 Deucaliatildeo filho de Prometeu e a esposa Pirra filha de

Epimeteu correspondem na mitologia grega ao arqueacutetipo biacuteblico de Noeacute avisados pelos deuses de um diluacutevio contruiacuteram uma arca para sobreviver e posteriormente repovoar a Terra

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suas idades Foi entatildeo que um dos sacerdotes jaacute de muita idade lhe disse ldquoOacute Soacutelon Soacutelon34 voacutes Gregos sois todos umas crianccedilas natildeo haacute um grego que seja velhordquo Ouvindo tais palavras Soacutelon indagou ldquoO que queres dizer com issordquo ldquoQuanto agrave alma35 sois todos novos ndash disse ele Eacute que nela natildeo tendes nenhuma crenccedila antiga transmitida pela tradiccedilatildeo nem nenhum saber encanecido pelo tempo A causa exacta eacute a seguinte muitas foram as destruiccedilotildees que a humanidade sofreu e muitas mais haveraacute as maiores pelo fogo e pela aacutegua mas tambeacutem outras menores por outras causas incontaacuteveis Tomemos um exemplo como o de Faetonte filho de Heacutelios que um dia atrelou o carro do pai mas por natildeo ser capaz de seguir a rota do pai lanccedilou o fogo sobre a terra e ele proacuteprio morreu fulminado Isto eacute contado sob a forma de um mito36 pois a verdade eacute que os corpos que no ceacuteu giram agrave volta da terra sofrem uma variaccedilatildeo e de muito em muito tempo sobreveacutem a destruiccedilatildeo na terra por causa do excesso de fogo Nessa altura aqueles que vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior nuacutemero do que os que vivem junto de rios ou do mar Quanto a noacutes eacute o Nilo nosso salvador tambeacutem em outras ocasiotildees que nos livra de tais apuros com as suas cheias Por outro lado sempre que os deuses provocam um diluacutevio para purificar a

34 Note-se que a repeticcedilatildeo da palavra ldquoSoacutelonrdquo eacute propositada35 psychecirc Neste caso ldquoalmardquo natildeo tem um sentido cosmoloacutegico

nem psicoloacutegico mas sim cultural36 mythou men schecircma echon Segundo a concepccedilatildeo do sacerdote

ldquomitordquo tem o sentido mais tradicional estoacuteria falsa Tornar-se-aacute evidente que a de Timeu eacute diametralmente oposta e bastante mais elaborada

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terra com aacutegua satildeo os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas37 enquanto que os que entre voacutes vivem nas cidades satildeo arrastados para o mar pelos rios Mas aqui nesta terra nem num caso nem no outro as aacuteguas correm pelos nossos campos mas pelo contraacuterio irrompem naturalmente do fundo da terra Daiacute que seja este o motivo pelo qual se diz que as tradiccedilotildees mais antigas se conservam nesta regiatildeo Em boa verdade em todos os locais onde nem o frio geacutelido nem o calor ardente perturbam aiacute estaacute sempre em maior ou menor nuacutemero a raccedila humana Assim desde tempos remotos que de tudo quanto se passa na vossa terra aqui ou em qualquer outro local de que noacutes tomemos conhecimento pelo que ouvimos dizer se porventura se tratar de qualquer coisa de belo grandioso ou de qualquer outra natureza isso fica gravado nos nossos templos e manteacutem-se conservado Por outro lado acontece que em relaccedilatildeo ao que se passa entre voacutes e entre outros mal acaba de se ordenar o sistema de escrita e tudo o resto que faz falta a uma cidade recai novamente sobre voacutes durante o habitual nuacutemero de anos uma torrente vinda do ceacuteu semelhante a uma doenccedila e apenas deixa entre voacutes os analfabetos e os que satildeo estranhos agraves Musas de tal forma que nasceis de novo do princiacutepio tal como crianccedilas sem saber nada do que aconteceu em tempos remotos quer aqui quer entre voacutes

37 Como Criacutetias faraacute questatildeo de referir no seu discurso (Criacutetias 109d) soacute as populaccedilotildees que vivem nas montanhas escapam aos diluacutevios O facto de estas pessoas desconhecerem a escrita justifica a inexistecircncia de registos posteriores a essas calamidades

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Em todo o caso oacute Soacutelon as genealogias sobre as figuras de que acabas de nos falar diferem em pouco dos contos para crianccedilas pois eles recuperam apenas um uacutenico diluacutevio na terra ao passo que houve muitos antes desse Mas aleacutem disso voacutes natildeo sabeis que foi na vossa regiatildeo que apareceu a mais bela e grandiosa casta de homens da qual descendes tu e toda a cidade que eacute agora vossa por ter restado desse tempo uma pequena semente Eacute que voacutes perdestes a memoacuteria pois morreram os sobreviventes sem terem legado o seu depoimento agrave escrita durante muitas geraccedilotildees E de facto oacute Soacutelon na eacutepoca anterior agrave maior destruiccedilatildeo causada pela aacutegua a cidade que agora eacute dos Atenienses era a mais brava na guerra e incomparavelmente a mais bem governada em todos os aspectos Dizem que deu origem aos mais belos feitos e agraves mais belas instituiccedilotildees poliacuteticas38 de entre todas as que debaixo do ceacuteu obtivemos notiacuteciardquo

Soacutelon disse ter ficado surpreendido pelo que tinha ouvido e absolutamente desejoso de pedir aos sacerdotes que discorressem com pormenor e exactidatildeo sobre tudo o que soubessem acerca dos seus concidadatildeos de outrora Entatildeo o sacerdote respondeu o seguinte ldquoEacute sem reserva alguma que to contarei oacute Soacutelon por consideraccedilatildeo a ti e agrave vossa cidade e acima de tudo por gratidatildeo agrave deusa a quem coube em sorte a vossa cidade e tambeacutem esta que ela criou e educou ndash primeiro a vossa mil anos antes da nossa depois de ter recebido de Geia e de Hefesto

38 politeia Note-se que a palavra estaacute no plural por isto e tambeacutem pelo que sugere o contexto natildeo diraacute respeito a todo o Estado mas apenas agraves instituiccedilotildees

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a semente de onde voacutes nascestes39 e depois esta aqui Segundo os nuacutemeros gravados nos escritos sagrados a nossa cidade foi organizada haacute oito mil anos Portanto vou falar-te brevemente sobre as leis dos cidadatildeos que viveram haacute nove mil anos e tambeacutem do mais nobre dos feitos que levaram a cabo Posteriormente discorreremos sobre os pormenores referentes a todas estas questotildees e em seguida com vagar pegaremos nos proacuteprios textos

Quanto agraves leis observa-as agrave luz das daqui pois encontraraacutes caacute muitos exemplos de leis que vigoravam naquele tempo entre voacutes em primeiro lugar a classe dos sacerdotes estaacute separada agrave parte das outras em seguida no que respeita aos artesatildeos a cada um cabe uma funccedilatildeo sem que se misturem umas com as outras (uma aos pastores outra aos caccediladores e outra aos agricultores) Jaacute a classe dos guerreiros conforme reparaste estaacute separada de todas as outras classes estando obrigados por lei a natildeo se dedicarem a nada mais aleacutem do que diz respeito agrave guerra40 aleacutem disso em relaccedilatildeo ao seu armamento fomos noacutes os primeiros na Aacutesia41 a equipaacute-los com escudos e lanccedilas Eacute que a deusa

39 Esta referecircncia miacutetica estaacute intimamente relacionada com o Festival das Panateneias durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica Segundo o mito quando Atena se dirigiu junto de Hefesto para lhe pedir que fabricasse as suas armas este tentou violaacute-la tendo Atena escapado o seacutemen caiu agrave terra ndash Geia ndash da qual nasceu Erictoacutenio um dos fundadores da cidade de Atenas As Panateneias celebravam precisamente o nascimento de Erictoacutenio

40 Sobre o sistema de castas que vigoraria no Egipto vide Heroacutedoto 2164-168 As semelhanccedilas com o arqueacutetipo ateniense proposto na Repuacuteblica e concretizado no discurso de Criacutetias satildeo evidentes

41 Segundo os relatos do Timeu e do Criacutetias a Aacutesia estendia-se

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o ensinou tal como a voacutes que fostes os primeiros a fazecirc-lo nesta regiatildeo Vecircs tambeacutem quatildeo diligente foi a nossa lei no que diz respeito agrave sabedoria42 e desde o princiacutepio estabeleceu harmoniosamente a ordem das coisas pois tudo descobriu a partir dos deuses em favor da acccedilatildeo humana incluindo a arte da divinaccedilatildeo e a medicina em benefiacutecio da sauacutede e adquiriu todos os outros saberes que derivam daqueles43 Toda esta ordem e sistematizaccedilatildeo partilhou a deusa convosco nesse tempo e fixou-vos uma paacutetria antes de o fazer a outros por aiacute ter identificado um equiliacutebrio de estaccedilotildees que haveria de dar origem aos homens mais inteligentes Visto que a deusa era amante simultaneamente da guerra e da sabedoria escolheu esse lugar e povoou-o antes de outros porque era propiacutecio para criar os homens que mais se lhe assemelhassem Viviacuteeis pois regidos por aquelas leis ainda melhores do que as nossas e aleacutem disso com uma boa organizaccedilatildeo poliacutetica e eacutereis melhores do que todos os homens em virtude como eacute de esperar de rebentos e disciacutepulos dos deuses

Muitos e grandes foram os feitos da vossa cidade que satildeo motivo de admiraccedilatildeo nos registos que deles aqui ficaram Mas entre todos eles destaca-se um em grandeza e beleza os nossos escritos referem como a vossa cidade um dia extinguiu uma potecircncia que marchava insolente em toda a Europa e na Aacutesia depois de ter partido do Oceano Atlacircntico Em tempos este

da margem direita do Rio Nilo para Este42 phronecircsis43 Sobre a praacutetica da medicina pelos Egiacutepcios vide Aristoacuteteles

Poliacutetica 1286a10-22 Diodoro Siacuteculo 1823

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mar podia ser atravessado pois havia uma ilha junto ao estreito a que voacutes chamais Colunas de Heacuteracles44 ndash como voacutes dizeis ilha essa que era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia juntas a partir da qual havia um acesso para os homens daquele tempo irem agraves outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o territoacuterio continental que se encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano De facto aquilo que estaacute aqueacutem do estreito de que falamos parece um porto com uma entrada apertada No lado de laacute eacute que estaacute o verdadeiro mar e eacute a terra que o rodeia por completo que deve ser chamada com absoluta exactidatildeo ldquocontinenterdquo45

Nesta ilha a Atlacircntida havia uma enorme confederaccedilatildeo de reis com uma autoridade admiraacutevel que dominava toda a ilha bem como vaacuterias outras ilhas e algumas partes do continente aleacutem desses dominavam ainda alguns locais aqueacutem da desembocadura desde a Liacutebia46 ao Egipto e na Europa ateacute agrave Tirreacutenia47 Esta potecircncia tentou toda unida escravizar com uma soacute ofensiva toda a vossa regiatildeo a nossa e tambeacutem todos os locais aqueacutem do estreito Foi nessa altura oacute Soacutelon que pela valentia e pela forccedila se revelou a todos os homens o poderio da vossa cidade pois sobrepocircs-se a todos em

44 O Estreito de Gibraltar45 Segundo esta descriccedilatildeo que recupera alguns elementos do

Feacutedon (108c-114c) a bacia mediterracircnica eacute apenas a parte central da superfiacutecie terrestre e natildeo a sua totalidade eacute circundada pelo Oceano onde se situa a Atlacircntida e eacute aleacutem deste que se situa o territoacuterio continental No fundo a zona do mediterracircneo equivale a um conjunto de ilhas desse verdadeiro mar

46 Todo territoacuterio entre o Egipto e a costa ocidental de Aacutefrica47 Parte ocidental da Peniacutensula Itaacutelica

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coragem e nas artes da guerra quando liderou o exeacutercito grego e depois quando foi deixada agrave sua proacutepria mercecirc por forccedila da desistecircncia dos outros povos e correu riscos extremos Mas veio a erigir o monumento da vitoacuteria ao dominar quem nos atacava impediu que escravizassem entre outros quem nunca tinha sido escravizado bem como todos os que habitavam aqueacutem das Colunas de Heacuteracles e libertou-os a todos sem qualquer reserva48 Posteriormente por causa de um sismo incomensuraacutevel e de um diluacutevio que sobreveio num soacute dia e numa noite terriacuteveis49 toda a vossa classe guerreira foi de uma soacute vez engolida pela terra e a ilha da Atlacircntida desapareceu da mesma maneira afundada no mar Eacute por isso que nesse local o oceano eacute intransitaacutevel e imperscrutaacutevel em virtude da lama que aiacute existe em grande quantidade e da pouca profundidade provocada pela ilha que submergiu50rdquo

Acabas de ouvir oacute Soacutecrates o essencial do relato de Criacutetias o anciatildeo segundo o que ele ouviu de Soacutelon Ontem enquanto tu falavas sobre o Estado e dos homens que referias eu fiquei atoacutenito ao recordar-me disto de que agora vos falo por me aperceber de que miraculosamente e por obra de um acaso sem que fosse tua intenccedilatildeo tinhas coligido muito do que Soacutelon dissera Ainda assim natildeo quis falar de improviso pois natildeo me

48 No Meneacutexeno (239a-sqq) eacute descrita em termos muito semelhantes a prestaccedilatildeo ateniense contra a invasatildeo dos Persas

49 Este diluacutevio eacute igualmente referido no Criacutetias (112a) e tambeacutem por outros autores (Aristoacuteteles Meteoroloacutegicos 28 368a33-b13 Pausacircnias 724)

50 Semelhante testemunho daacute Aristoacuteteles nos Meteoroloacutegicos (21 354a11-31)

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lembrava o suficiente em virtude do tempo decorrido Portanto decidi que seria preciso que eu proacuteprio recuperasse adequadamente tudo isto antes de vo-lo contar deste modo Por isso concordei prontamente com as tuas determinaccedilotildees de ontem acreditando que em todos os casos como este o encargo mais importante eacute propor um discurso que seja adequado aos objectivos e possa ser suficientemente vantajoso para noacutes Assim tal como Hermoacutecrates disse mal ontem saiacute daqui repeti-lhes aquilo de que me lembrava e depois de me ter ido embora reflecti durante a noite e recuperei quase tudo Em boa verdade o que se aprende na infacircncia segundo se diz fica admiravelmente retido na memoacuteria Com efeito o que ouvi ontem natildeo sei se eu o conseguirei trazer de novo agrave memoacuteria por completo mas em relaccedilatildeo ao que apreendi haacute jaacute muito tempo ficaria absolutamente admirado se me escapasse alguma coisa De facto era com tanto prazer e entusiasmo infantil que as escutava aleacutem de o anciatildeo mas contar de bom grado (enquanto lhe fazia perguntas repetidamente) que tal como aquele tipo de escrita em pintura encaacuteustica51 que subsiste se tornaram para mim indeleacuteveis Assim logo ao amanhecer contei-lhes isto de modo a que me acompanhassem no relato E agora pois foi por causa disso que referi tudo isto estou preparado oacute Soacutecrates a relataacute-lo natildeo soacute no que se refere aos seus aspectos principais mas tambeacutem ao pormenor tal como o ouvi Quanto aos cidadatildeos e agrave

51 Meacutetodo de pintura que consistia em aplicar cera aquecida numa base metaacutelica pelo que garantia grande durabilidade Pliacutenio na sua Histoacuteria Natural (35149) daacute uma descriccedilatildeo deste procedimento

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cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade52 como se aquela cidade fosse esta aqui e suponhamos que aqueles cidadatildeos que tu tinhas em mente satildeo os nossos antepassados ndash os reais aqueles de que falava o sacerdote Estaratildeo em absoluta harmonia e noacutes natildeo estaremos fora de tom se dissermos que eles satildeo os que existiram naquele tempo Assim dentro dos possiacuteveis tentaremos todos em conjunto ocupar-nos da tarefa que nos entregaste Portanto oacute Soacutecrates eacute preciso ter em atenccedilatildeo se este discurso estaacute de acordo com o nosso propoacutesito ou se devemos procurar um outro em substituiccedilatildeo dele

Soacutecrates E que outro discurso oacute Criacutetias poderiacuteamos noacutes preferir melhor que este que seja ainda mais adequado ao festival da deusa que celebramos pois estaacute-lhe intimamente ligado e aleacutem disso eacute muito relevante o facto de natildeo se tratar de uma narrativa forjada mas sim de um discurso real Na verdade como e onde encontrariacuteamos outros caso deixaacutessemos este de lado Natildeo eacute possiacutevel Agora boa sorte pois eacute a voacutes que compete falar Quanto a mim em troca dos discursos de ontem mantenho-me em silecircncio e retribuo o papel de ouvinte

Criacutetias Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito

52 epi talecircthes Sobre este sentido de ldquorealidaderdquo vide Introduccedilatildeo pp 62-63

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pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo53 deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada Entatildeo de acordo com as palavras e a lei de Soacutelon depois de os trazer agrave nossa presenccedila como se estivessem perante juiacutezes faacute-los-ei cidadatildeos desta cidade como se fossem os Atenienses de outrora cuja existecircncia permanece esquecida e foi agora desvelada pelo testemunho dos escritos sagrados Daqui em diante farei o meu discurso como se na verdade se tratasse de cidadatildeos e de Atenienses

Soacutecrates Perfeito e brilhante me parece o banquete de discursos que vou receber em troca do que ofereci Eacute entatildeo a tua vez de discursar segundo me parece oacute Timeu depois de invocares os deuses de acordo com o costume54

Timeu Eacute bem certo oacute Soacutecrates que todos quantos partilhem o miacutenimo de bom-senso55 sempre que iniciam algum empreendimento pequeno ou grande invocam sempre de algum modo um deus Quanto a noacutes que nos preparamos para produzir discursos sobre o

53 kosmos54 Eacute comum em Platatildeo a invocaccedilatildeo de uma divindade antes de

iniciar um discurso (Filebo 25b Leis 887c)55 socircphrosynecirc

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universo ndash sobre como deveio ou se de facto nem o toca o devir56 ndash caso natildeo tenhamos perdido por completo o discernimento eacute inevitaacutevel que invoquemos deuses e deusas bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto57 e esteja em concordacircncia com o nosso E no que respeita aos deuses seja esta a nossa invocaccedilatildeo No que nos toca conveacutem que os invoquemos para que vocecircs aprendam com facilidade e que eu exponha da melhor forma possiacutevel o que penso sobre o assunto que tenho perante mim

Na minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem58 sem nunca ser59 Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo60

56 Traduzimos gignomai por ldquodevirrdquo sempre que a oposiccedilatildeo ontoloacutegico ser-devir estiver patente Nos outros casos optaacutemos por ldquogerarrdquo um termo complementar que manteacutem a noccedilatildeo de pertenccedila ao devir (Santos 2003 p 16 n 13) ao mesmo tempo que garante a proximidade semacircntica com o original principalmente no que respeita agrave acccedilatildeo demiuacutergica a qual no fundo consiste num processo de geraccedilatildeo

57 nous Trata-se da faculdade de inteligir as Ideias eacute partilhada por deuses daimones homens e inclusivamente pela alma do mundo Esta mesma designaccedilatildeo eacute aplicada agrave sede humana dessa faculdade a parte racional e imortal da alma razatildeo pela qual a traduziremos do mesmo modo

58 ti to gignomenon A ediccedilatildeo de Burnet regista tambeacutem aei (ldquosemprerdquo) implicando a traduccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute sempre em devirrdquo Apesar de compatiacutevel com os conteuacutedos do texto trata-se de um acrescento posterior como claramente demonstrou Whittaker (1969 1973) Seguimos pois neste ponto a omissatildeo de aei

59 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ldquoo que eacuterdquo (to on) e ldquoo que deveacutemrdquo (to gignomenon) isto eacute entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao mundo sensiacutevel Eacute agrave luz deste axioma que se vai desenvolver todo o discurso de Timeu

60 noecircsei meta logou perilecircpton

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pois eacute imutaacutevel61 Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos62 e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca Ora tudo aquilo que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa pois eacute impossiacutevel que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa63 Deste modo o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel e que utiliza como arqueacutetipo64 quando daacute a forma e as propriedades ao que cria Eacute inevitaacutevel que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo Se pelo contraacuterio pusesse os olhos no que deveacutem e tomasse como arqueacutetipo algo deveniente a sua obra natildeo seria bela

Quanto ao conjunto do ceacuteu ou mundo ndash ou ainda se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado chamemos-lhe esse ndash temos que apurar primeiro no que lhe diz respeito aquilo que subjaz a todas as questotildees e deve ser apurado logo no princiacutepio

61 aei kata tauta on literalmente ldquoaquilo que eacute sempre de acordo com o mesmordquo Trata-se das Ideias que satildeo imutaacuteveis porquanto isentas das oscilaccedilotildees do devir (vide Feacutedon 78d)

62 metrsquoaisthecircseocircs alogou doxaston literalmente ldquoopinaacutevel com o auxiacutelio da percepccedilatildeo sensiacutevel privada de razatildeordquo Ao contraacuterio ldquodo que eacuterdquo ldquoo que deveacutemrdquo natildeo eacute fonte de saber estaacutevel pois aleacutem de se encontrar em constante mutaccedilatildeo soacute pode ser apreendido pela falibilidade dos sentidos e natildeo por meio da razatildeo

63 Tal como eacute referido em muitos outros diaacutelogos de Platatildeo (Leis 891e Feacutedon 98c 99b Filebo 27b) tambeacutem no Timeu natildeo soacute neste ponto como tambeacutem noutras ocasiotildees (29d 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e) o que pertence agrave dimensatildeo do devir depende de uma causa

64 paradeigma No Timeu as Ideias satildeo tomadas na sua totalidade sob o conceito de ldquoarqueacutetipordquo este representa pois a soma de todas elas que serve de modelo inteligiacutevel de racionalidade para a criaccedilatildeo

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se sempre foi sem ter tido origem no devir ou se deveio originado a partir de algum princiacutepio Deveio pois eacute visiacutevel e tangiacutevel e tem corpo assumindo todas as propriedades do que eacute sensiacutevel65 e o que eacute sensiacutevel que pode ser compreendido por uma opiniatildeo fundamentada na percepccedilatildeo dos sentidos deveacutem e eacute deveniente como jaacute foi dito66 Dissemos tambeacutem que o que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa Poreacutem descobrir o criador e pai do mundo eacute uma tarefa difiacutecil e a descobri-lo eacute impossiacutevel falar sobre ele a toda a gente67 Mas ainda quanto ao mundo temos que apurar o seguinte aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arqueacutetipos daquele que eacute imutaacutevel e inalteraacutevel68 ou do que deveacutem Ora se o mundo eacute belo e o demiurgo eacute bom eacute evidente que pocircs os olhos que eacute eterno se fosse ao contraacuterio ndash o que nem eacute correcto supor ndash teria posto os olhos no que deveacutem Portanto eacute evidente para todos que pocircs os olhos no que eacute eterno pois o mundo eacute a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo eacute a mais perfeita das causas Deste modo

65 aisthecircton66 Cf supra 27d-28a67 Este passo em que Timeu chama ao demiurgo ldquopai e criador

do mundordquo foi extensivamente citada e discutida ao longo dos seacuteculos por autores de todas as orientaccedilotildees filosoacuteficas e religiosas especificamente por teoacutelogos judeus e cristatildeos que o utilizaram para fundamentar a crenccedila monoteiacutesta Sobre este assunto vide Nock (1962 pp 79-83)

68 ocircsautocircs Isto eacute que nunca se torna ldquooutrordquo Aleacutem de isento de corrupccedilatildeo por acccedilatildeo do devir e por isso imutaacutevel (cf supra n 70) o arqueacutetipo eacute sempre idecircntico a si mesmo nunca assumindo atributos de outra coisa Trata-se no fundo do princiacutepio de identidade que define as Ideias (vide Feacutedon 78d)

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o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pocircs os olhos no que eacute imutaacutevel e apreensiacutevel pela razatildeo e pelo pensamento69

Assim sendo de acordo com estes pressupostos eacute absolutamente inevitaacutevel que este mundo seja uma imagem de algo70 Mas em tudo o mais importante eacute comeccedilar pelo princiacutepio de acordo com a natureza Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere71 Por isso os discursos claros estaacuteveis e invariaacuteveis explicam com a colaboraccedilatildeo do intelecto o que eacute estaacutevel e fixo ndash e tanto quanto conveacutem aos discursos serem irrefutaacuteveis e insuperaacuteveis em nada devem afrouxar esta relaccedilatildeo Em relaccedilatildeo aos que se reportam ao que eacute copiado do arqueacutetipo por se tratar de uma coacutepia estabelecem com essa coacutepia uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia conforme o ser72 estaacute para o devir73 assim a verdade estaacute para a crenccedila74 Portanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum

69 pros to logocirc kai phronecircsei perilecircpton70 ton kosmon eikona tinos71 Sobre as implicaccedilotildees desta proposiccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp

33-3472 ousia73 genesis74 Conclusatildeo da alegoria episteacutemico-ontoloacutegica da linha dividida

formulada na Repuacuteblica (509d-511e)

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outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil75 e natildeo procurar nada aleacutem disso

Soacutecrates Excelente oacute Timeu Devemos sem duacutevida alguma aceitaacute-lo tal como propotildees Acolhemos o teu preluacutedio com admiraccedilatildeo mas agora termina a aacuteria sem interrupccedilatildeo76

Timeu Digamos pois por que motivo aquele que constituiu o devir e o mundo os constituiu Ele era bom e no que eacute bom jamais nasce inveja de qualquer espeacutecie77 Porque estava livre de inveja quis que tudo fosse o mais semelhante a si possiacutevel Quem aceitar de homens sensatos que esta eacute a origem mais vaacutelida do devir e do mundo estaraacute a aceitar o raciociacutenio mais acertado Na verdade o deus quis que todas as coisas fossem boas e que no que estivesse agrave medida do seu poder78 natildeo existisse nada imperfeito Deste modo pegando em tudo quanto havia de visiacutevel que natildeo estava em repouso mas se movia irregular e desordenadamente da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que

75 eikota mython Sobre as implicaccedilotildees desta expressatildeo vide Introduccedilatildeo pp 48-53

76 A mesma metaacutefora eacute utilizada na Repuacuteblica (531d)77 Para Platatildeo um deus eacute sempre bom e tudo o que eacute bom estaacute

livre de inveja (cf Fedro 247a Repuacuteblica 379b)78 Esta noccedilatildeo de limitaccedilatildeo relativa associada ao demiurgo eacute

muitiacutessimo frequente ao longo do texto (32b 37d 38c 42e 53b 65c 71d 89d)

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esta eacute sem duacutevida melhor do que aquela Com efeito a ele sendo supremo foi e eacute de justiccedila que outra coisa natildeo faccedila senatildeo o mais belo

Reflectindo descobriu que a partir do que eacute visiacutevel por natureza de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto e que seria impossiacutevel que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma79 Por meio deste raciociacutenio80 fabricou o mundo estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza Assim de acordo com um discurso verosiacutemil eacute necessaacuterio dizer que este mundo que eacute na verdade um ser dotado de alma e de intelecto81 foi gerado pela providecircncia82 do deus

Dito isto devemos agora ocupar-nos do que se deu a seguir agrave semelhanccedila de qual dos seres constituiu o mundo aquele que o constituiu Assumamos que natildeo foi agrave semelhanccedila de qualquer um daqueles seres que por natureza formam uma espeacutecie particular ndash pois nada do que se assemelha ao que eacute incompleto pode tornar-se belo Estabeleccedilamos em vez disso que o universo se

79 Reafirmaccedilatildeo do postulado jaacute referido na Repuacuteblica (478a-b) e no Sofista (249a) segundo o qual todo o acto intelectivo soacute pode ter lugar na alma

80 logismos81 zocircon empsychon ennoun te82 pronoia Note-se que nesta e nas restantes ocorrecircncias

(44c7 45b1) ldquoprovidecircnciardquo implica apenas presciecircncia enquanto capacidade de antecipar necessidades futuras natildeo tendo pois o sentido religioso de ldquogoverno do mundordquo tanto que o demiurgo se retira apoacutes a criaccedilatildeo

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assemelha o mais possiacutevel agravequele ser de que os outros satildeo parte quer individualmente quer como classe De facto esse ser compreende em si mesmo e encerra todos os seres inteligiacuteveis83 tal como este mundo nos compreende a noacutes e a todas as outras criaturas visiacuteveis Assim por querer assemelhaacute-lo ao mais belo de entre os seres inteligiacuteveis ao mais perfeito de todos o deus constituiu um ser uacutenico que contivesse em si mesmo todos os seres que se lhe assemelhassem por natureza

Entatildeo seraacute correcto declarar que haacute um uacutenico ceacuteu ou seraacute mais correcto dizer que haacute vaacuterios ou ateacute infinitos Haacute um uacutenico jaacute que foi fabricado pelo demiurgo de acordo com o arqueacutetipo84 Eacute que aquele que abrange todos os seres inteligiacuteveis natildeo pode de modo algum vir em segundo lugar a seguir a outro Caso contraacuterio deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois do qual esses dois seriam uma parte e seria mais correcto dizer que o mundo natildeo se assemelharia a esses dois mas sim agravequele que os abrangia Portanto foi para que se assemelhasse ao ser absoluto na sua singularidade85

83 noecircta zocirca84 Nas secccedilotildees subsequentes seratildeo implicitamente refutadas

duas teses centrais do atomismo a pluralidade de mundos (eg DK 67A1 68A40) e a existecircncia do vazio (eg DK 67A6-7 DK 68A37) Ambos os problemas estatildeo interligados e a sua explicaccedilatildeo depende das mesmas razotildees visto que foi necessaacuteria a totalidade dos elementos na criaccedilatildeo eacute impossiacutevel que os mundos sejam inumeraacuteveis posto que natildeo sobrou qualquer mateacuteria de que fossem ou viessem a ser formados (31a-33b) de modo a que o mundo englobasse todos os seres foi-lhe dada a forma que engloba todas as formas (a esfeacuterica) natildeo restando pois nada mais para ocupar (33b-34a)

85 monocircsis

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que aquele que fez o mundo natildeo fez dois nem uma infinidade de mundos deste modo o ceacuteu foi gerado como unigeacutenito ndash assim eacute e assim continuaraacute a ser

Eacute forccediloso que aquilo que deveio seja corpoacutereo visiacutevel e tangiacutevel mas separado do fogo sem duacutevida que nada pode ser visiacutevel nem nada pode ser tangiacutevel sem qualquer coisa soacutelida e nada pode ser soacutelido sem terra Daiacute que o deus quando comeccedilou a constituir o corpo do mundo o tenha feito a partir de fogo e de terra Todavia natildeo eacute possiacutevel que somente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira pois eacute necessaacuterio gerar entre ambas um elo que as una O mais belo dos elos seraacute aquele que faccedila a melhor uniatildeo entre si mesmo e aquilo a que se liga o que eacute por natureza alcanccedilado da forma mais bela atraveacutes da proporccedilatildeo86 Sempre que de trecircs nuacutemeros sejam eles inteiros ou em potecircncia87 o do meio tenha um caraacutecter tal que o primeiro estaacute para ele como ele estaacute para o uacuteltimo e em sentido inverso o uacuteltimo estaacute para o do meio como o do meio estaacute para o primeiro o do meio torna-se primeiro e uacuteltimo e o uacuteltimo e o primeiro passam ambos a estar no meio sendo deste modo obrigatoacuterio que se ajustem entre si e tendo-se assim ajustado uns aos outros entre si seratildeo todos um soacute Ora se o corpo do mundo tivesse sido gerado como uma superfiacutecie plana sem nenhuma

86 analogia A formaccedilatildeo do mundo organizado a partir dos quatro elementos obedece inevitavelmente agrave proporccedilatildeo isto eacute agrave relaccedilatildeo matemaacutetica Como se tornaraacute evidente ateacute o proacuteprio demiurgo estaacute atido agraves imposiccedilotildees da proporccedilatildeo matemaacutetica

87 A distinccedilatildeo entre nuacutemeros inteiros e em potecircncia eacute tambeacutem referida no Teeteto (148a-b) e nas Leis (737c)

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profundidade um soacute elemento intermeacutedio teria sido suficiente para o unir aos outros termos88 Poreacutem convinha que o mundo fosse de natureza soacutelida e para harmonizar o que eacute soacutelido natildeo basta um soacute elemento intermeacutedio mas sim sempre dois Foi por isso que tendo colocado a aacutegua e o ar entre o fogo e a terra e na medida do possiacutevel produzido entre eles a mesma proporccedilatildeo de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar estava para a aacutegua e o ar estivesse para a aacutegua como a aacutegua estava para a terra o deus uniu estes elementos e constituiu um ceacuteu visiacutevel e tangiacutevel Foi por causa disto e a partir destes elementos ndash elementos esses que satildeo em nuacutemero de quatro ndash que o corpo do mundo foi engendrado posto em concordacircncia atraveacutes de uma proporccedilatildeo e a partir destes elementos obteve a amizade89 de tal forma que tornando-se idecircntico a si mesmo eacute indissoluacutevel por outra entidade que natildeo aquela que o uniu

Assim a constituiccedilatildeo do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade Foi a partir da totalidade do fogo da aacutegua do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu natildeo deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma pois este era o seu desiacutegnio90 em primeiro lugar que fosse acima

88 Referecircncia ao problema da duplicaccedilatildeo do quadrado que estaria jaacute resolvido no tempo de Platatildeo (vide Meacutenon 81e-84b)

89 A noccedilatildeo de amizade (philia) que Timeu introduz neste ponto em que aborda a combinaccedilatildeo dos quatro elementos convida a uma relaccedilatildeo intertextual com a Philia de que fala Empeacutedocles como entidade mediadora desses mesmos elementos Sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo p 25

90 dianoeocirc

Platatildeo

102 103102 103

33a

b

c

d

34a

de tudo um ser-vivo completo e perfeito91 constituiacutedo a partir de partes perfeitas em seguida que fosse uacutenico posto que natildeo sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza e ainda que estivesse imune ao envelhecimento e agrave doenccedila pois ele92 tinha perfeita consciecircncia de que o calor o frio e outras forccedilas violentas cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele dissolvem-no e impondo-lhe doenccedilas e envelhecimento causam a sua destruiccedilatildeo Foi por este motivo e com base neste raciociacutenio que a partir da globalidade dos todos produziu um soacute todo perfeito imune ao envelhecimento e agrave doenccedila

Aleacutem disso deu-lhe a figura adequada e congeacutenere De facto a forma adequada ao ser-vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres-vivos seraacute aquela que compreenda em si mesma todas as formas93 Por isso para o arredondar como que por meio de um torno deu-lhe uma forma esfeacuterica cujo centro estaacute agrave mesma distacircncia de todos os pontos do extremo envolvente ndash e de todas as figuras eacute essa a mais perfeita e semelhante a si proacutepria ndash considerando que o semelhante eacute infinitamente mais belo do que o dissemelhante

Rematou o lado exterior de forma completamente lisa e arredondada por vaacuterias razotildees Eacute que este ser-vivo natildeo tinha necessidade de olhos pois fora dele natildeo restava

91 holon () zocircon teleon92 O demiurgo93 A possibilidade de a esfera englobar todas as formas

estereomeacutetricas seraacute mais tarde desenvolvida por Euclides (1313-17)

102 103

Timeu

102 103

33a

b

c

d

34a

nada para ver nem de ouvidos pois natildeo havia nada para ouvir natildeo havia ar agrave sua volta que fosse preciso respirar nem precisava de ter qualquer oacutergatildeo atraveacutes do qual absorvesse alimentos para si proacuteprio nem por outro lado que segregasse o que tinha anteriormente filtrado Na verdade nada entrava nele nem nada saiacutea dali pois natildeo havia mais nada Ele fora gerado de tal forma que o seu alimento seria garantido pela sua proacutepria consumpccedilatildeo94 de modo que tudo quanto sofre resulta de si mesmo e tudo quanto faz eacute em si mesmo Aquele que o compocircs achou que para ser mais forte seria melhor que fosse auto-suficiente95 do que tivesse necessidade de outros Quanto a matildeos natildeo sendo preciso que com elas pegasse em nada ou afastasse algo considerou que natildeo seria necessaacuterio aplicar-lhas nem peacutes nem de um modo geral nenhum apetrecho para andar Quanto ao movimento atribuiu-lhe aquele que eacute caracteriacutestico do corpo dos sete aquele que mais tem que ver com o intelecto e com o pensamento96 Foi por isso que ao pocirc-lo girar em torno de si mesmo e no mesmo local fez com que se movimentasse num ciacuterculo em rotaccedilatildeo tendo-o despojado de todos os outros seis movimentos e tornado imoacutevel em relaccedilatildeo a

94 phtisis95 autarkecircs Eacute inevitaacutevel ler neste passo um eco da autarkeia

de Demoacutecrito (eg DK 68B176) Poreacutem como oportunamente observa Taylor (1928 pp 105-106) conveacutem ter em conta que algo deveniente natildeo eacute absolutamente auto-suficiente porquanto deve a sua causa agraves Ideias o mundo secirc-lo-aacute na medida em que natildeo tem interacccedilotildees com outro deveniente

96 phronecircsis

Platatildeo

104 105104 105

b

c

35a

b

eles97 Como para esse percurso natildeo eram precisos peacutes engendrou-o sem pernas nem peacutes

Este foi de um modo global o desiacutegnio98 do deus que eacute eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia99 tendo assim raciocinado fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos Depois no centro pocircs uma alma que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora cobrindo-o com ela Constituiu um uacutenico ceacuteu solitaacuterio e redondo a girar em ciacuterculos com capacidade pela sua proacutepria virtude de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado

No que respeita agrave alma ainda que soacute agora vamos tratar de falar dela natildeo eacute posterior ao corpo O deus natildeo os estruturou desse modo como se ela fosse mais nova ndash ao constituiacute-los natildeo permitiu que o mais velho pudesse ser governado pelo mais novo Ao passo que noacutes somos muito afectados pela casualidade e consequentemente falamos tambeacutem ao acaso100 jaacute

97 Trata-se dos seis movimentos rectiliacuteneos ldquopara cimardquo ldquopara baixordquo ldquopara a frenterdquo ldquopara traacutesrdquo ldquopara a direitardquo e ldquopara a esquerdardquo Quanto ao seacutetimo a rotaccedilatildeo sobre si mesmo seraacute aquele mais afim agrave razatildeo (cf supra 40a Leis 897c-sqq) e por isso o apropriado para o corpo do mundo

98 logismos99 Isto eacute o corpo do mundo Apesar de utilizar em ambos os

casos o verbo eimi (ldquoserrdquo) parece-nos que a distinccedilatildeo entre ldquoserrdquo (enquanto eterno e atemporal) e ldquoexistirrdquo (enquanto corruptiacutevel) eacute evidente e deve ser marcada deste modo

100 Timeu recorda a imprecisatildeo da linguagem humana ndash um

104 105

Timeu

104 105

b

c

35a

b

o deus graccedilas agrave sua condiccedilatildeo e virtude constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele para o dominar e governar ndash sendo ele o governado ndash a partir dos seguintes recursos e do modo que se expotildee entre o ser101 indivisiacutevel que eacute imutaacutevel102 e o ser divisiacutevel que eacute gerado nos corpos misturou uma terceira forma103 de ser feita a partir daquelas duas E quanto agrave natureza do Mesmo e do Outro104 estabeleceu de igual modo uma outra natureza entre o indivisiacutevel e o divisiacutevel dos seus corpos Tomando as trecircs naturezas misturou-as todas numa soacute forma e pela forccedila harmonizou a natureza do Outro ndash que eacute difiacutecil de misturar ndash com o Mesmo Procedendo agrave mistura de acordo com o ser formou uma unidade a partir das trecircs e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo de Outro e de

tema a que voltaraacute mais tarde (46e) e que tambeacutem Criacutetias retomaraacute (107b-108a) Sobre esta questatildeo vide supra pp 55-59

101 ousia102 aei kata tauta103 eidos Embora seja esta a palavra (em concorrecircncia com

idea) que Platatildeo usa em muitos diaacutelogos para definir as Ideias no Timeu isso acontece apenas uma vez (51c-d) em todas as outras ocorrecircncias tem o sentido de ldquotipo espeacutecierdquo (42d2 48a7 48b6 48e6 49a4 51a7 51c4 etc)

104 Os conceitos ldquoMesmordquo (tauton) ldquoOutrordquo (to heteron) e neste contexto ldquoserrdquo (ousia) soacute se esclarecem pelo Sofista Neste diaacutelogo (254d-259b) eacute estabelecido que uma Ideia comporta encerra outros dois elementos constitutivos aleacutem do ser o Mesmo (a sua identidade) resulta de ela ser o que ldquoaquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo natildeo eacute o Outro (a sua alteridade) representa o outro lado desta implicaccedilatildeo pois uma Ideia difere de ldquotudo aquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo Sobre esta questatildeo vide Dixsaut (2003 pp 158-165) Mesquita (1995 pp 262-265)

Platatildeo

106 107106 107

c

36a

b

c

d

e

ser105 Entatildeo comeccedilou a dividir do seguinte modo em primeiro lugar retirou uma parte do todo em seguida retirou outra que era o dobro da primeira uma terceira que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira uma quarta que era o dobro da segunda uma quinta o triplo da terceira uma sexta oito vezes a primeira e uma seacutetima que corresponde a vinte e sete vezes a primeira Depois disto preencheu os intervalos106 duplos e triplos subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros um que transpotildee um dos extremos e eacute transposto pelo outro na mesma fracccedilatildeo e outro que transpotildee o extremo que lhe eacute numericamente idecircntico e tambeacutem ele eacute transposto Destas ligaccedilotildees foram gerados nos intervalos atraacutes referidos outros intervalos de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo Atraveacutes do intervalo de um e um oitavo preencheu todos os de um e um terccedilo e deixou uma parte de cada um deles tendo este intervalo sobrante sido definido pela relaccedilatildeo entre o nuacutemero duzentos e cinquenta e seis e o nuacutemero duzentos e quarenta e trecircs Foi deste modo que a mistura da qual retirou aquelas partes foi utilizada na sua plenitude Entatildeo cortou toda esta composiccedilatildeo em duas partes no sentido do comprimento e sobrepondo-as ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra

105 Ou seja a alma do mundo foi formada com os mesmos trecircs elementos que constituem as Ideias ser Mesmo e Outro Sobre as implicaccedilotildees desta equivalecircncia constitutiva vide Johansen (2004 pp 138-142)

106 diastecircma Aleacutem de espacial este termo tem tambeacutem uma aplicaccedilatildeo musical designando nesse caso os intervalos entre os sons (Filebo 17c-d Repuacuteblica 531a)

106 107

Timeu

106 107

c

36a

b

c

d

e

(semelhante a um X) dobrou-as em ciacuterculo juntando-as uma agrave outra pelo ponto oposto agravequele pelo qual tinham sido ligadas e impocircs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local destes dois ciacuterculos fez um exterior e outro interior Entatildeo determinou que o movimento exterior corresponderia agrave natureza do Mesmo e o interior agrave do Outro Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente e deu preeminecircncia agrave oacuterbita do Mesmo e do Semelhante pois a ela soacute deixou ficar indivisa Por outro lado a oacuterbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete ciacuterculos desiguais fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo de tal forma que havia trecircs tipos de intervalos Definiu que os ciacuterculos andariam em sentido contraacuterio uns aos outros trecircs dos quais com velocidade semelhante e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros trecircs mas movendo-se uniformemente

Logo que a constituiccedilatildeo da alma foi gerada de acordo com o intelecto107 de quem a constituiu este passou agrave fabricaccedilatildeo de tudo quanto dentro dela eacute corpoacutereo e ajustando o centro de um ao centro do outro uniu-os Deste modo entrelaccedilada em todas as direcccedilotildees desde o centro ateacute agrave extremidade do ceacuteu abarcando-o do exterior num ciacuterculo e ela girando em torno de si mesma a alma deu iniacutecio ao comeccedilo divino de uma vida inextinguiacutevel e racional108 para todo o sempre Assim foi

107 nous Neste caso trata-se obviamente do intelecto do demiurgo

108 emphron ldquoRacionalrdquo no sentido em que manteraacute ao

Platatildeo

108 109108 109

37a

b

c

d

e

gerado o corpo do ceacuteu que eacute visiacutevel e a alma invisiacutevel e que participa da razatildeo109 e da harmonia e eacute a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que satildeo eternamente Constituiacuteda pela mistura dessas trecircs partes da natureza do Mesmo do Outro e do ser dividida e unida segundo a proporccedilatildeo ela gira em torno de si proacutepria e sempre que contacta com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser natildeo pode ser dividido eacute movimentada na sua totalidade ela informa a que entidade isso eacute semelhante de que entidade eacute diferente e principalmente em relaccedilatildeo a que entidade e em que circunstacircncias acontece afectar o que deveacutem e o que eacute eternamente e por cada um destes eacute afectada110

Este discurso que eacute ele proacuteprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro sempre que eacute levado sem voz nem som para aquele que eacute movimentado por si proacuteprio converte-se num discurso sobre o sensiacutevel111 e o ciacuterculo do Outro que se move em linha recta dissemina-o por toda a alma e geram-se opiniotildees e crenccedilas firmes e verdadeiras112 Todavia sempre que se aplica ao racional e sempre que o ciacuterculo do Mesmo que se movimenta com destreza revela isto

longo dos tempos a conformidade ao arqueacutetipo (um modelo de racionalidade)

109 logismos110 Esta passagem marcada por uma sintaxe imbricada daacute conta

das funccedilotildees cognitivas da alma do mundo Sobre este assunto vide Brisson (1998 pp 340-352)

111 peri to aisthecircton112 doxai kai pisteis gignontai bebaioi kai alecirctheis

108 109

Timeu

108 109

37a

b

c

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e

eacute forccediloso que daiacute resulte saber113 e intelecccedilatildeo114 No que respeita agravequilo em que se geram estes dois modos de conhecer se alguma vez algueacutem disser que eacute outra coisa que natildeo a alma esse algueacutem estaraacute a dizer tudo menos a verdade115

Ora quando o pai que o engendrou se deu conta de que tinha gerado uma representaccedilatildeo dos deuses eternos animada e dotada de movimento rejubilou por estar tatildeo satisfeito pensou como tornaacute-la ainda mais semelhante ao arqueacutetipo Como acontece que este eacute um ser eterno tentou na medida do possiacutevel tornar o mundo tambeacutem ele eterno Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna e natildeo era possiacutevel ajustaacute-la por completo ao ser gerado Entatildeo pensou em construir uma imagem moacutevel da eternidade116 e quando ordenou o ceacuteu construiu a partir da eternidade que permanece uma unidade uma imagem eterna que avanccedila de acordo com o nuacutemero eacute aquilo a que chamamos tempo117 De facto os dias as noites os meses e os anos natildeo existiam antes de o ceacuteu ter sido gerado pois ele preparou a geraccedilatildeo daqueles ao mesmo tempo que este era constituiacutedo Todos eles satildeo partes do tempo

113 epistecircmecirc114 nous Neste caso natildeo se trata da faculdade de inteligir nem

tampouco da sede dessa faculdade trata-se sim da sua actividade isto eacute da intelecccedilatildeo sendo o saber (epistecircmecirc) o resultado desse processo Neste contexto particular nous equivale em absoluto a noecircsis o termo mais frequente para designar a actividade intelectiva

115 De acordo com a doutrina formulada no Sofista (249a) a alma aleacutem de intelecccedilatildeo (cf supra n 79) eacute tambeacutem a uacutenica sede de actividade cognitiva (cf supra 30b infra 46d Filebo 30c)

116 eikocirc kinecircton tina aiocircnos117 Sobre esta concepccedilatildeo de tempo vide Fialho (1990)

Platatildeo

110 111110 111

38a

b

c

d

e ldquoo que erardquo e ldquoo que seraacuterdquo satildeo modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignoracircncia Dizemos que ldquoeacuterdquo que ldquofoirdquo e que ldquoseraacuterdquo mas ldquoeacuterdquo eacute a uacutenica palavra que lhe eacute proacutepria de acordo com a verdade ao passo que ldquoerardquo e ldquoseraacuterdquo satildeo adequadas para referir aquilo que deveacutem ao longo do tempo ndash pois ambos satildeo movimentos No entanto aquilo que eacute sempre imutaacutevel e imoacutevel118 natildeo eacute passiacutevel de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que eacute agora nem no que seraacute no futuro) bem como em nada daquilo que o devir atribui agraves coisas que os sentidos trazem jaacute que elas satildeo modalidades devenientes119 do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo com o nuacutemero Aleacutem destas haacute ainda as seguintes o que aconteceu ldquoeacuterdquo o que aconteceu o que estaacute a acontecer ldquoeacuterdquo o que estaacute a acontecer o que aconteceraacute ldquoeacuterdquo o que aconteceraacute e o que natildeo eacute ldquoeacuterdquo o que natildeo eacute120 sendo que nenhuma destas afirmaccedilotildees eacute exacta Mas este natildeo seraacute o momento oportuno e adequado para nos determos nestas questotildees

Assim o tempo foi pois gerado ao mesmo tempo que o ceacuteu para que engendrados simultaneamente

118 to de aei kata tauta echon akinecirctocircs119 gegonen eidecirc120 Neste caso particular optaacutemos por traduzir gignomai por

ldquoacontecerrdquo em vez de por ldquodevirrdquo porque a oposiccedilatildeo estabelecida com eimi natildeo se prende directamente com o axioma ontoloacutegico ser-devir Em vez disso Timeu pretende sublinhar um defeito da linguagem designar algo que ocorre num determinado momento cronoloacutegico (na dimensatildeo do sensiacutevel) nos mesmos termos em que refere aquilo que eacute atemporal (e por isso inteligiacutevel)

110 111

Timeu

110 111

38a

b

c

d

tambeacutem simultaneamente sejam dissolvidos121 ndash se eacute que alguma vez a dissoluccedilatildeo122 surja nalgum deles Foram gerados tambeacutem de acordo com o arqueacutetipo da natureza eterna para que lhe fossem o mais semelhantes possiacutevel eacute que o arqueacutetipo eacute ser para toda a eternidade enquanto que a representaccedilatildeo foi eacute e seraacute continuamente e para todo o sempre deveniente

A partir do raciociacutenio e do desiacutegnio de um deus123 em relaccedilatildeo agrave geraccedilatildeo do tempo para que ele fosse engendrado gerou o Sol a Lua e cinco astros que tecircm o nome ldquoplanetasrdquo124 para definirem e guardarem os nuacutemeros do tempo Tendo construiacutedo os corpos de cada um deles ndash sete ao todo ndash o deus estabeleceu-os nas oacuterbitas que o percurso do Outro seguia em nuacutemero de sete delas na primeira a Lua agrave volta da Terra na segunda o Sol por cima da Terra125 a Estrela da Manhatilde126 e o astro que dizem ser consagrado a Hermes127 na rota circular128 que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o

121 lyocirc122 lysis123 ex oun logou kai dianoias124 planecirctos Literalmente ldquoerranterdquo A metaacutefora deve-se ao

facto de os planetas terem uma oacuterbita proacutepria (39d-40b) como se ldquovagueassemrdquo pelo universo

125 Tenhamos em conta que este modelo eacute geocecircntrico126 Veacutenus127 Mercuacuterio128 Para Platatildeo as oacuterbitas dos planetas e do Sol em torno da

Terra descreviam ciacuterculos perfeitos Esta teoria que hoje sabemos ser errada perdurou como paradigma cientiacutefico ateacute ao seacuteculo XVI quando Kepler demonstrou que as oacuterbitas dos astros eram eliacutepticas e natildeo circulares

Platatildeo

112 113112 113

e

39a

b

c

d

astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente Quanto aos outros astros se algueacutem quisesse precisar onde e por que motivos o deus os estabeleceu sem deixar de lado nenhum deles esse discurso que eacute secundaacuterio causaria mais dificuldades do que o objectivo principal em funccedilatildeo do qual seria desenvolvido Quanto a este assunto pode ser que mais tarde o abordemos com a atenccedilatildeo que merece129

Assim logo que cada um dos astros que eram necessaacuterios para constituir o tempo obteve o movimento que lhe era adequado e depois de terem sido engendrados como corpos vivos vinculados agraves almas130 aprenderam aquilo que lhes estava prescrito a oacuterbita do Outro que por ser obliacutequa atravessa a oacuterbita do Mesmo e eacute dominada por ele Alguns astros deslocam-se em ciacuterculos maiores e outros em ciacuterculos mais pequenos os que estatildeo nos ciacuterculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estatildeo nos ciacuterculos maiores deslocam-se mais lentamente E por causa da oacuterbita do Mesmo parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcanccedilados pelos que se deslocavam mais lentamente quando eram aqueles que alcanccedilavam estes Com efeito o deus ao fazer girar em torno do eixo todos os ciacuterculos dos astros como uma espiral fazia parecer que o movimento era duplo e em sentidos opostos e que o que se afastava mais lentamente do que era mais raacutepido era o que estava mais perto Para que houvesse uma

129 Infelizmente o assunto natildeo chega a ser retomado130 Tambeacutem os astros satildeo entidades duais com uma alma

aprisionada num corpo (cf Leis 898)

112 113

Timeu

112 113

e

39a

b

c

d

medida evidente para a lentidatildeo e para a rapidez com que se cumprissem as oito oacuterbitas o deus instalou uma luz na segunda oacuterbita a contar da Terra a que agora chamamos Sol de modo a que o ceacuteu brilhasse ainda mais para todos e que os seres-vivos aos quais isso dissesse respeito participassem do nuacutemero de modo a ficarem a conhecer a oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Deste modo e por estas razotildees foram gerados a noite e o dia ndash o percurso circular uniforme e regular Temos um mecircs quando a Lua depois de ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo alcanccedila o Sol temos um ano depois de o Sol ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo Agrave excepccedilatildeo de uma minoria131 a maior parte dos homens natildeo teve em conta os ciacuterculos dos outros astros nem lhes deu nomes nem observando-os estudou atraveacutes dos nuacutemeros as relaccedilotildees entre eles de tal forma que por assim dizer natildeo sabe que haacute um tempo definido para os seus cursos errantes132 nem que satildeo inconcebivelmente numerosos e admiravelmente variegados Em todo o caso eacute pelo menos possiacutevel perceber que o nuacutemero perfeito do tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da totalidade das oito oacuterbitas medidas pelo ciacuterculo do Mesmo em progressatildeo uniforme se completam e voltam ao iniacutecio Foi deste modo e por estas razotildees que esses astros engendrados que percorrem o ceacuteu assumiram um ponto de retorno para que o mundo fosse o mais semelhante possiacutevel ao ser

131 Este grupo restrito seraacute o nuacutemero de homens versados em astronomia isto eacute os filoacutesofos

132 planas Cf supra n XXX

Platatildeo

114 115114 115

e

40a

b

c

d

perfeito e inteligiacutevel133 bem como para que constituiacutesse uma imitaccedilatildeo da sua natureza eterna

Tudo o resto ateacute agrave geraccedilatildeo do tempo tinha sido feito dentro da maior semelhanccedila ao que lhe tinha servido de modelo Todavia o mundo ainda natildeo englobava todos os seres-vivos que dentro dele seriam gerados pelo que ainda denunciava dissemelhanccedilas Por isso o demiurgo completou a parte que lhe restava fazer agrave imagem da natureza do arqueacutetipo Assim tal como o intelecto percebe as formas do ser que eacute ndash tantas quantas haacute nele ndash o demiurgo olhou para baixo e decidiu que o mundo deveria ter tantas formas quantas aquele tem E eles satildeo quatro a primeira eacute a espeacutecie celeste dos deuses outra eacute a alada e anda pelo ar a terceira eacute a forma aquaacutetica e a quarta eacute a que caminha sobre a terra Tratando-se da divina o deus construiu-a na sua maioria a partir do fogo para que fosse a mais brilhante e a mais agradaacutevel agrave vista e de modo a ser semelhante ao universo fecirc-la redonda Atribuiu-a agrave inteligecircncia do supremo134 de modo a segui-lo e distribuiu-a em ciacuterculo por todo o ceacuteu a fim de que fosse um verdadeiro adorno bordado em toda a sua extensatildeo Atribuiu dois movimentos a cada uma das divindades um uniforme e no mesmo local para que cada uma reflectisse sempre da mesma forma sobre o mesmo e outro dirigido para a frente pois cada uma delas eacute dominada pela oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Em relaccedilatildeo aos outros cinco movimentos as divindades mantecircm-se imoacuteveis e em

133 teleocirc kai noecirctocirc134 eis tecircn tou kratistou phronecircsin Trata-se da oacuterbita do Mesmo

onde foram fixas as estrelas

114 115

Timeu

114 115

e

40a

b

c

d

repouso para que cada uma delas seja o mais perfeita possiacutevel

Foram estes os motivos pelos quais foram gerados todos os astros natildeo errantes seres-vivos divinos e eternos que permanecem para sempre imutaacuteveis e a girar sobre si mesmos Jaacute os que mudam de direcccedilatildeo e se mantecircm assim errantes tal como foi dito atraacutes135 foram gerados ao mesmo tempo que estes Quanto agrave Terra o nosso sustento a qual roda136 em torno do eixo que atravessa o universo foi estabelecida como guardiatilde e produtora da noite e do dia ela que eacute a primeira e a mais velha das divindades geradas dentro do ceacuteu Explicar as danccedilas destes astros e as confluecircncias que mantecircm uns com os outros os recuos e os avanccedilos dos seus ciacuterculos uns em relaccedilatildeo aos outros quais satildeo os deuses que se encontram em conjunccedilatildeo e quantos estatildeo opostos uns aos outros e ainda quais se colocam uns diante dos outros e durante quanto tempo se escondem de noacutes para tornarem a aparecer e enviam maus pressaacutegios e sinais de eventos que hatildeo-de acontecer agravequeles que natildeo conseguem entendecirc-los agrave luz da razatildeo sem ter diante dos olhos uma imitaccedilatildeo destes fenoacutemenos essa explicaccedilatildeo seria

135 Cf supra 39c136 illomenecircn Desde os primeiros disciacutepulos de Platatildeo que se

tem discutido o sentido desta palavra O verbo eilocirc pode significar entre outras coisas ldquocomprimirrdquo ou ldquorodarrdquo de acordo com o primeiro a Terra estaria comprimida pelo eixo do universo e pela segunda hipoacutetese giraria em torno dele Seguimos a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 213 293b30-31) que faz equivaler eilocirc a kineocirc implicando um movimento da Terra em torno de si proacutepria Cf Cornford 1937 pp 120-134 Brisson 1998 p 395 n 1 Dillon 1989 p 67

Platatildeo

116 117116 117

e

41a

b

c

d

um encargo vatildeo No entanto isto eacute suficiente para noacutes pelo que seja este o fim da narrativa sobre a natureza dos deuses visiacuteveis e engendrados

No que respeita agraves outras divindades dizer e conhecer a sua geraccedilatildeo eacute algo que nos supera devemos portanto confiar nos que falaram outrora pois satildeo descendentes dos deuses segundo dizem e conhecem distintamente os seus ascendentes Eacute de facto impossiacutevel desconfiar dos filhos dos deuses mesmo que falem sem recurso a argumentos verosiacutemeis ou rigorosos Quando tratam de dar conta dos episoacutedios que dizem respeito agrave famiacutelia devemos entatildeo confiar neles de acordo com o costume Deste modo reproduzamos o discurso deles e faccedilamos o nosso sobre o que foi a geacutenese dos deuses De Geia e Urano foram gerados Oceano e Teacutetis seus filhos e destes foram gerados Foacutercis Cronos e Reia e todos aqueles que os seguiram de Cronos e de Reia foram gerados Zeus e Hera e todos aqueles que segundo a tradiccedilatildeo sabemos serem seus irmatildeos e ainda outros descendentes destes foram gerados137 Quando foram gerados todos os deuses quer os que se movimentam em ciacuterculos e satildeo visiacuteveis quer os que se mostram soacute quando desejam aquele que engendrou o universo disse-lhes o seguinte

ldquoDeuses gerados de deuses de quem e de cujas obras eu sou pai e demiurgo por terem sido gerados por mim natildeo podem ser dissolvidos enquanto eu natildeo

137 Esta teogenealogia difere bastante da que Hesiacuteodo estabeleceu na Teogonia eacute provaacutevel que misture elementos de tradiccedilotildees variadas nomeadamente da oacuterfica (vide Brisson 2001 p 239 n 229)

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quiser Na verdade embora o que tenha sido unido seja dissoluacutevel eacute uma maldade querer dissolver aquilo que pelo bem foi composto em harmonia Por isso mesmo que tenhais sido gerados e ainda que natildeo sejais imortais nem completamente impassiacuteveis de dissoluccedilatildeo de modo algum sereis dissolvidos nem tomareis parte na morte porque fostes unidos pela minha vontade que eacute mais forte e mais poderosa do que os elos que vos couberam em sorte e com os quais fostes gerados Agora aprendei aquilo que vos vou dizer e mostrar

Restam trecircs espeacutecies mortais que ainda natildeo foram engendradas Se elas natildeo chegarem a ser geradas o ceacuteu ficaraacute incompleto pois natildeo conteraacute em si todas as espeacutecies de seres-vivos mas eacute forccediloso que as tenha para que fique efectivamente perfeito Todavia se elas fossem geradas por mim e tomassem parte na vida atraveacutes de mim seriam equivalentes aos deuses Portanto para que sejam mortais e que o universo seja realmente um todo tratai de acordo com a vossa natureza de fabricar estes seres-vivos imitando o meu poder de quando vos gerei E no que respeita agrave parte desses seres a que pertence ter o mesmo nome que os imortais a parte a que chamamos divina e que comanda os que entre eles praticam sempre a justiccedila e vos querem servir que eu semeei e quis que se originasse essa vo-la confio Quanto ao resto entretecei uma parte mortal nessa parte imortal formai e engendrai seres-vivos fazei-os crescer providenciando-lhes o alimento e quando perecerem recebei-os outra vezrdquo138

138 Referecircncia agrave teoria da transmigraccedilatildeo das almas formulada no

Platatildeo

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Assim falou e voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira poreacutem comparativamente agrave primeira mistura esta natildeo ficou com o mesmo teor de pureza mas sim com um segundo ou terceiro grau Depois de ter constituiacutedo o todo dividiu-o em nuacutemero de almas igual ao de astros e atribuiu uma a cada um Fazendo-as embarcar como num carro mostrou-lhes a natureza do universo e deu-lhes a conhecer as leis que lhes estavam destinadas a saber a primeira geacutenese seria estabelecida como idecircntica para todas de modo a que nenhuma fosse depreciada por ele Era obrigatoacuterio que uma vez disseminadas pelos instrumentos do tempo adequados a cada uma gerassem dos seres-vivos o que mais venerasse os deuses e por a natureza humana ser dupla139 aquela espeacutecie mais forte seria a que posteriormente se chamaria macho Sempre que fossem implantadas nos corpos por necessidade e lhes fossem acrescentadas partes enquanto outras seriam retiradas do corpo em todas elas surgiria necessariamente e em primeiro lugar uma sensaccedilatildeo uacutenica e congeacutenita gerada por impressotildees violentas140 em segundo lugar o desejo amoroso que

Fedro (246a-250c)139 Isto eacute masculina e feminina140 Uma sensaccedilatildeo (aisthecircsis) eacute uma manifestaccedilatildeo somaacutetica de uma

impressatildeo (pathecircma) sofrida ou seja uma resposta a um estiacutemulo externo Por sensaccedilatildeo Timeu entende tanto os sentimentos como a coacutelera ou o temor (42a) como os sentidos por exemplo a visatildeo eacute uma aisthecircsis cujo pathecircma eacute o fogo exterior que contacta com os olhos (45b-c)

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eacute uma mistura de prazer e sofrimento depois destes o temor a coacutelera e todas as sensaccedilotildees que se lhes seguem e todas as que por natureza satildeo contraacuterias e se diferenciam destas Se as dominarem viveratildeo de forma justa mas se forem comandados por elas viveratildeo de forma injusta Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe regressaraacute agrave morada do astro que lhe estaacute associado para aiacute ter uma vida feliz e conforme Mas se se extraviar recairaacute sobre si a natureza de mulher na segunda geraccedilatildeo e se mesmo nessa condiccedilatildeo natildeo cessar de praticar o mal seraacute sempre gerado com uma natureza de animal assumindo uma ou outra forma conforme o tipo de mal que pratique141 Ao mudar o seu estado anterior natildeo se veraacute livre destes sofrimentos enquanto for arrastado pelo percurso do Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo aacutegua ar e terra que depois se juntou a ele soacute quando dominasse por meio da razatildeo essa massa turbulenta e irracional142 voltaria agrave forma do seu estado primeiro e ideal Assim o deus depois de lhes ter dado todas as prescriccedilotildees para que natildeo fosse responsaacutevel pelo mal que pudesse existir entre elas semeou algumas na terra e outras na Lua e ainda outras nos restantes instrumentos do tempo Depois da sementeira concedeu aos jovens deuses a tarefa de formar os corpos mortais e de adicionar o que restava e era necessaacuterio agrave alma humana e depois de terem

141 Como seraacute desenvolvido mais adiante (90e-sqq) os homens que levem a vida de forma indigna assumiratildeo formas animais em nascimentos futuros Cf Feacutedon 81e-82b Fedro 249a-c Repuacuteblica 614b-sqq

142 thorubocircdecirc kai alogon onta logocirc kratecircsas

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completado tudo quanto restava fazer concedeu-lhes a tarefa de governaacute-la na medida do possiacutevel para que orientassem este ser-vivo mortal da forma melhor e mais bela de modo a que natildeo fosse a causa dos seus proacuteprios males

Depois de ter disposto tudo isto manteve-se no estado que lhe eacute proacuteprio e habitual E assim se mantendo os filhos reflectiam sobre as disposiccedilotildees do pai e obedeceram-lhe Pegando no princiacutepio imortal do ser-vivo mortal e imitando o seu demiurgo tomaram de empreacutestimo ao mundo partes de fogo terra aacutegua e ar que depois seriam devolvidas Colaram numa soacute entidade os elementos que haviam tomado natildeo com os laccedilos insoluacuteveis com que eles proacuteprios haviam sido apertados mas fundiram-nas com cavilhas apertadas que graccedilas ao seu reduzido tamanho eram invisiacuteveis A partir de tudo isto fabricaram cada corpo introduzindo as oacuterbitas da alma imortal num corpo submetido a fluxos e refluxos Presas a um rio impetuoso natildeo dominavam nem eram dominadas pelo rio mas ora o moviam ora eram movidas pela forccedila dele de tal forma que o ser-vivo se movia globalmente ndash mas fazia-o de forma desordenada irracional e ao acaso pois tinha em si todos os seis movimentos Com efeito andava para a frente e para traacutes e ainda para a direita e para a esquerda e para baixo e para cima errante avanccedilava em todas as direcccedilotildees Eacute que por ser abundante a torrente de fluxo e refluxo que transportava o alimento as impressotildees que com eles chocavam causavam um tumulto ainda maior sempre que o corpo de algum colidia com um

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fogo externo que por acaso encontrasse no exterior ou com a dureza e firmeza da terra ou com a humidade deslizante da aacutegua ou apanhado pela tempestade dos ventos transportados pelo ar ou seja quando causados por todas essas entidades os movimentos imprimidos ao corpo recaiacuteam sobre a alma Por causa disso esses movimentos foram chamados sensaccedilotildees e ainda agora no seu conjunto satildeo assim chamados Visto que no momento em que ocorrem elas provocam um movimento muito poderoso e intenso que se junta ao do canal em que segue uma torrente de forma contiacutenua e agitando com violecircncia as oacuterbitas da alma bloqueiam por completo a oacuterbita do Mesmo por correrem em sentido oposto ao dele impedindo-o de progredir e de governar o que chega a desestabilizar a oacuterbita do Outro de tal forma que cada um dos trecircs intervalos duplos e triplos os intervalos e as ligaccedilotildees de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo que de modo algum eram resoluacuteveis a natildeo ser por aquele que as ligou fizeram-nas girar todas em ciacuterculos criando todo o tipo de rupturas e desordens nos ciacuterculos ndash tantas quantas conseguiram Deste modo a custo se mantiveram ligados uns com os outros movendo-se irracionalmente ora voltadas ao contraacuterio ora de forma obliacutequa ora invertidas Por exemplo quando algueacutem se coloca em posiccedilatildeo invertida com a cabeccedila para o chatildeo e projectando os peacutes para cima contra qualquer coisa enquanto assim estaacute tanto do ponto de vista de quem nela se encontra como de quem estaacute a observaacute-lo parece-lhes tanto a uns como a outros que a direita eacute a esquerda e a esquerda

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eacute a direita Eacute exactamente isto e algo do mesmo geacutenero que as oacuterbitas sofrem violentamente sempre que por acaso encontram algum elemento do exterior quer seja da espeacutecie do Mesmo quer seja da do Outro atribuem ao Mesmo e ao Outro designaccedilotildees contraacuterias agrave verdade tornando-se mentirosas e dementes visto que nenhuma das oacuterbitas que haacute nelas governa ou orienta Poreacutem quando nelas recaem certas sensaccedilotildees vindas do exterior143 arrastando consigo todo o invoacutelucro da alma as oacuterbitas aparentam estar no comando quando satildeo elas as comandadas Eacute por causa de todas estas impressotildees que agora e tal como na sua origem a alma eacute primeiro gerada sem intelecto144 cada vez que eacute aprisionada num corpo mortal Mas logo que diminui o fluxo do que alimenta e faz crescer as oacuterbitas retomam a acalmia e seguem o caminho que lhes eacute proacuteprio e vatildeo adquirindo maior estabilidade com o passar do tempo entatildeo as oacuterbitas de cada um dos ciacuterculos que seguem a sua trajectoacuteria natural acertam-se atribuindo correctamente as designaccedilotildees de Outro e de Mesmo e acabam por tornar racional145 quem os possui Se depois algum alimento correcto servir de complemento agrave educaccedilatildeo este tornar-se-aacute completamente perfeito e saudaacutevel pois escapou agrave doenccedila mais grave146 Mas se for negligente levando ao longo da vida uma existecircncia desequilibrada iraacute novamente para o Hades em estado de imperfeiccedilatildeo

143 Isto eacute provocadas por uma impressatildeo Cf supra n 140144 anous145 emphrocircn146 Isto eacute a ignoracircncia (cf supra 44a infra 86b 88b)

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e demente Isto acontece numa altura posterior147 mas no que respeita ao que temos agora diante de noacutes eacute necessaacuterio empreendermos uma explicaccedilatildeo mais apurada e quanto aos assuntos anteriores ndash a geraccedilatildeo de cada parte dos corpos o que respeita agrave alma o que concerne agraves causas e agrave providecircncia dos deuses pelas quais foi gerada ndash temos que os descrever apoiando-nos no que eacute mais verosiacutemil seguindo o nosso caminho deste modo e de acordo com estas prerrogativas

Agrave imagem da figura do universo que eacute esfeacuterica as divindades prenderam as oacuterbitas divinas que satildeo duas num corpo esfeacuterico este a que chamamos cabeccedila que eacute a parte mais divina e domina todas as outras partes que haacute em noacutes a ela os deuses entregaram todo o corpo como servo ao qual a juntaram percebendo que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse Para que natildeo rolasse sobre a terra que tem altos e depressotildees de todo o tipo e natildeo tivesse dificuldade em transpor umas e sair de outras deram-lhe este veiacuteculo para faacutecil deslocaccedilatildeo daiacute que o corpo seja comprido e tenha por natureza quatro membros extensiacuteveis e flexiacuteveis fabricados pelo deus para a deslocaccedilatildeo Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar era capaz de se deslocar por todos os locais enquanto transportava no topo a morada daquilo que em noacutes eacute mais divino e sagrado Foi por este motivo e deste modo que a todos foram anexadas pernas e matildeos

Considerando que a parte da frente eacute mais nobre e proacutepria para governar do que a de traacutes os deuses

147 Cf infra 87b 89d

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deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido Portanto era preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante Foi por isso que em primeiro lugar estabeleceram neste lado da parte exterior da cabeccedila o siacutetio do rosto e em seguida firmaram os instrumentos relacionados com todas as capacidades de providecircncia da alma e estabeleceram que de acordo com a natureza seria na parte anterior que ficariam situados os oacutergatildeos que tomam parte na governaccedilatildeo

Entre os instrumentos fabricaram em primeiro lugar os olhos portadores da luz tendo-os ali fixado pela seguinte razatildeo essa espeacutecie de fogo que natildeo arde antes oferece uma luz suave os deuses engendraram-no de modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado O fogo puro que haacute dentro de noacutes irmatildeo do outro fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo contiacutenuo pelo que comprimiram ao maacuteximo o centro dos olhos de tal forma que sustivesse a outra espeacutecie mais espessa na sua totalidade e filtrasse apenas esta espeacutecie pura Deste modo quando a luz do dia cerca o fluxo da visatildeo o semelhante recai sobre o semelhante tornam-se compactos unindo-se e conciliando-se num soacute corpo ao longo do eixo da visatildeo o que acontece onde quer que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior Assim gera-se uma homogeneidade de impressotildees pois o todo eacute muito semelhante se esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele distribui os seus movimentos por todo o corpo ateacute agrave alma e produz a sensaccedilatildeo a que

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noacutes chamamos ldquoverrdquo Quando o fogo se afasta ao cair da noite separa-se do fogo de que eacute congeacutenere148 por cair sobre algo que lhe eacute dissemelhante ele altera-se e extingue-se pois a sua natureza natildeo eacute congeacutenere agrave do ar que o rodeia jaacute que este natildeo tem fogo Entatildeo a visatildeo acaba e gera-se o convite ao sono De facto quando se cerra a protecccedilatildeo que os deuses engendraram para a visatildeo ndash as paacutelpebras ndash essa protecccedilatildeo susteacutem o poder do fogo interno Este dispersa-se e acalma os movimentos do interior Uma vez acalmados gera-se o sossego e uma vez gerado um sossego profundo abate-se um sono com poucos sonhos mas quando restam alguns movimentos fortes conforme a sua natureza e os locais onde ficam produzem no interior simulacros que se assemelham quanto agrave natureza e ao nuacutemero ao exterior e que seratildeo recordados ao acordar Assim jaacute natildeo eacute difiacutecil perceber a formaccedilatildeo de imagens em espelhos e em todas as superfiacutecies reflectoras e lisas Por causa da relaccedilatildeo reciacuteproca que o fogo interior e o fogo exterior mantecircm entre si cada vez que um deles encontra uma superfiacutecie lisa mudando constantemente de forma todas estas imagens aparecem por necessidade graccedilas agrave conjunccedilatildeo entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda a visatildeo quando se deparam com uma superfiacutecie lisa e brilhante Aquilo que estaacute agrave direita aparece agrave esquerda porque eacute com as partes contraacuterias da visatildeo que as partes contraacuterias do fogo exterior estabelecem contacto em oposiccedilatildeo ao que habitualmente acontece quando chocam entre si Pelo contraacuterio a direita estaacute agrave direita e

148 sungenecircs

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a esquerda agrave esquerda quando a luz muda de direcccedilatildeo por se fundir com o objecto com que se funde o que acontece sempre que a superfiacutecie lisa dos espelhos por adquirir uma saliecircncia de um lado e de outro empurra para o lado esquerdo da visatildeo a luz que vem do lado direito e vice-versa Mas se o espelho for redondo transversalmente em relaccedilatildeo ao rosto faraacute com que tudo apareccedila invertido porque empurra para cima a luz que vem de baixo e para baixo a que vem de cima

Todas estas satildeo causas acessoacuterias149 que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete conforme pode a ideia do melhor150 No entanto a maioria considera que natildeo satildeo causas acessoacuterias mas sim as causas de tudo visto que produzem o arrefecimento e o aquecimento a solidificaccedilatildeo e a fusatildeo e efeitos desse tipo Mas natildeo eacute possiacutevel que tais causas possuam razatildeo ou intelecto151 em relaccedilatildeo ao que quer que seja Temos que dizer que entre todos os seres o uacutenico ao qual eacute adequado possuir intelecto eacute a alma152 ndash pois esta eacute invisiacutevel enquanto que o fogo a aacutegua a terra e o ar foram todos gerados como corpos visiacuteveis ndash e que o amante da intelecccedilatildeo153 e do saber154 persegue por necessidade as causas primeiras do que na natureza

149 synaitiai150 tecircn you aristou kata to dynaton idean apotelocircn Eacute bastante

evidente a orientaccedilatildeo teleoloacutegica da acccedilatildeo demiuacutergica o mundo eacute criado para o bem

151 logon de oudena oude noun152 Sobre a alma como uacutenica sede possiacutevel do nous vide supra

n 115153 Sobre este sentido particular de nous vide supra n 114154 epistecircmecirc

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eacute racional aquelas que satildeo movimentadas por outros seres e que por necessidade transmitem o movimento a outras essas satildeo causas secundaacuterias Tambeacutem noacutes devemos fazer isso devemos falar de ambos os geacuteneros de causas distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das que isentas de intelecccedilatildeo155 cada vez que produzem algo o fazem ao acaso e sem ordem156 Coube-nos entatildeo falar das causas acessoacuterias pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora tecircm Da obra mais importante do ponto de vista da sua utilidade razatildeo pela qual o deus no-la ofereceu eacute sobre ela que noacutes devemos falar

Em meu entender a visatildeo foi gerada como causa de maior utilidade para noacutes visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros o Sol e o ceacuteu Foi o facto de vermos o dia e a noite os meses o circuito dos anos os equinoacutecios e os solstiacutecios que deu origem aos nuacutemeros que nos proporcionam a noccedilatildeo de tempo e a investigaccedilatildeo sobre a natureza do universo A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espeacutecie mortal oferecido pelos deuses Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos Por que razatildeo havemos de celebrar os outros que satildeo inferiores a estes pelos quais soacute um natildeo-filoacutesofo choraria se ficasse cego com lamentos em vatildeo Quanto a noacutes declaremos que

155 phronecircsis156 to tychon atakton

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esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo o deus descobriu e concedeu-nos a visatildeo em nosso favor para que ao contemplar as oacuterbitas do Intelecto no ceacuteu as aplicaacutessemos agraves oacuterbitas da nossa actividade intelectiva157 que satildeo congeacuteneres daquele ainda que as nossas tenham perturbaccedilotildees e as deles sejam imperturbaacuteveis Soacute depois de termos analisado aqueles movimentos calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza e de termos imitado esses movimentos do deus absolutamente impassiacuteveis de errar podemos estabilizar os que em noacutes satildeo errantes Quanto agrave voz e agrave audiccedilatildeo o raciociacutenio eacute mais uma vez o mesmo os deuses concederam-no-las pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins Na verdade foi com o mesmo fim que nos foi atribuiacuteda a fala que tem um papel fundamental na nossa interacccedilatildeo tudo quanto eacute uacutetil agrave voz no contexto da muacutesica isso nos foi dado por causa da harmonia da audiccedilatildeo Com efeito para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto a harmonia feita de movimentos congeacuteneres das oacuterbitas da nossa alma natildeo eacute um instrumento para um prazer irracional ndash como agora se julga ser158 ndash mas em virtude de as oacuterbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geraccedilatildeo aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pocircr em ordem e em concordacircncia159 E

157 dianoecircsis158 A criacutetica ao senso-comum que concebe a muacutesica unicamente

como fonte de prazer eacute tambeacutem referida nas Leis (656c) De igual modo pensa Aristoacuteteles o qual considera que soacute acidentalmente a muacutesica pode ser causadora de prazer (85 Poliacutetica 1339b11-1340b19)

159 Sobre a muacutesica como agente harmonizador da alma vide

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o ritmo por a maioria de noacutes ser privada de medida e falta de graccedila foi-nos concedido como auxiliar pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins

O que acabaacutemos de passar em revista agrave excepccedilatildeo de pequenos aspectos ilustra o que foi fabricado pelo Intelecto Eacute necessaacuterio que justaponhamos ao discurso aquilo que foi gerado pela Necessidade160 De facto a geraccedilatildeo deste mundo resulta de uma mistura engendrada por uma combinaccedilatildeo de Necessidade e Intelecto Mas como o Intelecto dominava a Necessidade persuadindo-a a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes foi deste modo (atraveacutes da cedecircncia da Necessidade a uma persuasatildeo racional161) que o universo foi constituiacutedo desde a sua origem Portanto se algueacutem quiser dizer como foi realmente gerado de acordo com estes pressupostos teraacute que incluir tambeacutem a espeacutecie da causa errante162 tanto quanto a sua natureza o admita163 Portanto recuando um pouco atraacutes

Repuacuteblica 530d-532b160 Aleacutem da intervenccedilatildeo do Intelecto ndash racional matematicamente

estruturada e teleoloacutegica ndash o mundo sensiacutevel eacute formado tambeacutem com o contributo da Necessidade um princiacutepio de causalidade marcado pelo acidental casual material e exclusivamente mecacircnico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 34-37

161 hypo peithous emphronos162 to tecircs planocircmenecircs eidos aitias163 ecirc pherein pephyken Passagem bastante obscura e por isso

muitiacutessimo discutida A principal dificuldade reside no sentido de pherein que pode ser traduzido tanto por ldquomovimentar pocircr em movimentordquo (Cornford 1937 p 160 n 2 Brisson 1998 p 145) como por ldquopermitir admitirrdquo (Taylor 1928 p 304) Pensamos que a segunda opccedilatildeo eacute mais acertada na medida em que neste paraacutegrafo se insiste bastante nas limitaccedilotildees epistemoloacutegicas aleacutem de que em todo ele natildeo satildeo mencionados os movimentos

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teremos que comeccedilar do iniacutecio tomando para o mesmo assunto um outro ponto de partida anterior que lhe seja adequado tal como fizemos em relaccedilatildeo aos assuntos que abordaacutemos ateacute agora Antes da geraccedilatildeo do ceacuteu teremos que rever a natureza do fogo do ar da aacutegua e da terra bem como os comportamentos que tinham antes disso na verdade ateacute agora ningueacutem revelou a sua origem mas discursamos como se nos dirigiacutessemos a quem soubesse o que possa ser o fogo e cada um dos outros elementos dispondo-os como princiacutepios e164 letras do universo Ora eacute prudente que com um miacutenimo de verosimilhanccedila nem sequer agraves siacutelabas sejam comparados por quem tenha um pouco de inteligecircncia165 Quanto a noacutes agora diremos o seguinte seja qual for o que achamos sobre o princiacutepio ou princiacutepios do universo conveacutem que natildeo nos pronunciemos sobre isso agora por nenhum outro motivo que natildeo por ser difiacutecil expressar as nossas opiniotildees de acordo com o tipo de exposiccedilatildeo que nos estaacute disponiacutevel nem voacutes esperais que seja da minha obrigaccedilatildeo dizecirc-lo nem eu proacuteprio me tentarei convencer de que eu seja capaz de me atirar a uma tarefa dessa natureza Mas prestando atenccedilatildeo ao que foi dito no iniacutecio e ao

164 O texto de Burnet natildeo regista qualquer indiacutecio de coordenaccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiosrdquo (archecirc) e ldquoletrasrdquo (stoicheion) Seguimos a emenda de West (1977 p 301) que introduz kai entre as duas palavras

165 Mais que provaacutevel reacccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo atomista que compara os aacutetomos agraves letras que formam as palavras (DK 68A38) Segundo Platatildeo os quatro elementos satildeo soacutelidos que obedecem a figuras e estas a triacircngulos daiacute que as letras sejam sim os triacircngulos (54d) Dentro deste quadro metafoacuterico as siacutelabas seriam as figuras e os elementos seriam as palavras Sobre esta questatildeo vide Hershbell (1974 pp 153-sqq)

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poder dos discursos verosiacutemeis voltando ao princiacutepio tentarei abordar de forma natildeo menos verosiacutemil mas ateacute mais cada pormenor e tambeacutem a totalidade do que dissemos Voltando agora ao princiacutepio dos discursos invoquemos o deus para que nos assista novamente e a partir de uma exposiccedilatildeo estranha e inusitada166 nos guie numa conclusatildeo verosiacutemil

Assim no que respeita ao universo o novo ponto de partida deve ser mais diferenciado do que anteriormente Na verdade noacutes tiacutenhamos distinguido dois tipos de ser mas agora temos que estabelecer um terceiro de outra espeacutecie167 Decerto que aqueles dois eram suficientes para o que expusemos anteriormente um foi proposto como sendo o tipo do arqueacutetipo inteligiacutevel e que eacute sempre imutaacutevel168 e o segundo como uma imitaccedilatildeo do arqueacutetipo sujeito ao devir169 e visiacutevel Nesse momento natildeo distinguimos o terceiro por considerarmos que os dois seriam suficientes Mas agora o discurso parece obrigar-nos a empreender uma exposiccedilatildeo que esclareccedila um tipo difiacutecil e obscuro Que propriedade temos noacutes de supor que ele teraacute de acordo com a natureza Seraacute sobretudo a seguinte ser o receptaacuteculo e por assim dizer a ama de tudo quanto deveacutem Falaacutemos agora com verdade mas eacute forccediloso que digamos algo mais expliacutecito acerca dele o que poreacutem eacute difiacutecil pelo facto de ser inevitaacutevel esclarecer algumas

166 ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs167 Sobre o terceiro princiacutepio ontoloacutegico vide Introduccedilatildeo pp

XXX168 paradeigmatos eidos () noecircton kai aei kata tauta on169 mimecircma de paradeigmatos deuteron genesin echon

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questotildees preacutevias relacionadas com o fogo e com os outros elementos aleacutem do fogo Destes elementos eacute difiacutecil dizer que qualidade cada um deve ter para lhe chamarmos ldquoaacuteguardquo em vez de ldquofogordquo ou que qualidade deve ter para lhe chamarmos qualquer outra coisa em vez de todas ao mesmo tempo ou cada uma em especial e deste modo utilizar um discurso fidedigno e soacutelido Como de que modo e com que dificuldade razoavelmente superada poderemos noacutes dizer uma coisa dessas

Primeiro em relaccedilatildeo agravequilo a que chamamos aacutegua quando congela parece-nos estar a olhar para algo que se tornou pedra ou terra mas quando derrete e se dispersa esta torna-se bafo e ar o ar quando eacute queimado torna-se fogo e inversamente o fogo quando se contrai e se extingue regressa agrave forma do ar o ar novamente concentrado e contraiacutedo torna-se nuvem e nevoeiro mas a partir destes estados se for ainda mais comprimido torna-se aacutegua corrente e de aacutegua torna-se novamente terra e pedras e deste modo como nos parece datildeo geraccedilatildeo uns aos outros de forma ciacuteclica Por isso visto que nenhum de todos eles nos aparece do mesmo modo qual deles podemos afirmar com firmeza que eacute uma coisa seja ela qual for e natildeo outra sem nos sentirmos envergonhados Natildeo eacute viaacutevel mas para os estabelecer da forma mais segura possiacutevel conveacutem falar sobre eles do seguinte modo sobre o que por vezes vemos tornar-se em outra coisa como o fogo natildeo podemos dizer que fogo eacute ldquoistordquo mas sim que eacute ldquoaquilo que em determinadas circunstacircncias estaacute

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assimrdquo170 nem que aacutegua eacute ldquoistordquo mas sim ldquoaquilo que estaacute sempre assimrdquo nem nenhuma outra coisa como se algum tivesse algo de estaacutevel usando palavras como ldquoistordquo ou ldquoaquilordquo para dar a conhecer tais realidades quando cremos estar a esclarecer alguma coisa Eacute que eles escapam ao ldquoistordquo ao ldquoaquilordquo e ao ldquopara istordquo e natildeo os admitem nem qualquer outra designaccedilatildeo que os apresente como realidades estaacuteveis Mas natildeo se deve falar delas como realidades distintas ndash antes sim chamar ldquoo que estaacute assimrdquo ao que perdura sempre igual em todos os casos e em cada um em particular chamar ldquofogordquo ao que permanece como tal apesar do que quer que seja e assim sucessivamente a tudo quanto devenha Mas aquilo em que cada coisa deveniente aparece171 e daiacute torna a desaparecer soacute isso referiremos usando as designaccedilotildees ldquoistordquo e ldquoaquilordquo enquanto que o que for de um certo tipo seja quente seja branco ou seja qualquer um dos seus opostos bem como tudo o que deles se origine nenhum deles o referiremos deste modo

Mas esforcemo-nos por explicar novamente este assunto de forma ainda mais clara Se algueacutem forjasse todas as formas possiacuteveis de ouro e nunca cessasse de as transformar a todas elas em outras e lhe fosse mostrada uma de entre elas e lhe fosse perguntado o que era com toda a certeza responderia em abono da

170 A oposiccedilatildeo entre ldquoistordquo (touto) e ldquoque estaacute assimrdquo (to toiouton) pretende esclarecer a diferenccedila constitutiva entre a chocircra que natildeo se altera e por isso merece a designaccedilatildeo touto e o que nela entra a que por estar em constante mutaccedilatildeo soacute poderemos chamar to toiouton A criacutetica de Soacutecrates agrave teoria do fluxo no Teeteto (157b) eacute formulada em termos semelhantes

171 en ocirc de engignomena aei ekasta autocircn phantazetai

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verdade que era ouro No entanto de modo algum se pode dizer que o triacircngulo e quantas outras figuras que foram plasmadas no ouro satildeo ldquoistordquo pois logo que lhes eacute aplicado esse termo comeccedilam a sofrer mudanccedilas Contentemo-nos se todas elas consentirem receber com alguma seguranccedila a designaccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute assimrdquo O mesmo discurso deve ser feito acerca da natureza que recebe todos os corpos A ela se haacute-de designar sempre do mesmo modo pois ela natildeo perde de modo algum as suas propriedades recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre172 impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel que investigaremos posteriormente Por enquanto eacute necessaacuterio que tenhamos em mente que haacute trecircs geacuteneros aquilo que deveacutem aquilo em que algo deveacutem e aquilo agrave semelhanccedila do qual se cria o que deveacutem173

Eacute adequado assemelhar o receptaacuteculo a uma matildee o ponto de partida a um pai e a natureza do que nasce entre eles a um filho e compreender ainda que se a marca de impressatildeo for diversificada e se apresentar agrave vista essa diversidade em todos os aspectos o suporte que recebe o que vai ser impresso natildeo estaria bem preparado se natildeo fosse completamente amorfo e

172 tocircn ontocircn aei mimecircmata173 to men gignomenon to drsquoen ocirc gignetai to drsquoen ocirc gignetai to

drsquohothen aphomoioumenon phyetai to gignomenon

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desprovido de todos aqueles tipos que esteja destinado a receber Se o receptaacuteculo fosse semelhante a alguma das figuras que entra nele cada vez que entrasse alguma figura de natureza contraacuteria ou heterogeacutenea assumiria mal a sua semelhanccedila na medida em que estava a exibir a sua proacutepria aparecircncia Por isso eacute necessaacuterio que aquele que recebe em si todos os geacuteneros esteja desprovido de todas as formas Eacute o que se passa de modo idecircntico com os oacuteleos que satildeo perfumados artificialmente Para fabricaacute-los em primeiro lugar eacute necessaacuterio que se comece por tornar o mais inodoros possiacutevel os liacutequidos que vatildeo receber as fragracircncias Eacute como aqueles que se dedicam a modelar figuras em superfiacutecies moldaacuteveis natildeo permitem que fique visiacutevel figura alguma que jaacute laacute estivesse nivelando-as de antematildeo para que fiquem o mais lisas que lhes seja possiacutevel O mesmo se passa com aquilo que deve receber vaacuterias vezes e de forma adequada e bela as representaccedilotildees de todos os seres eternos eacute-lhe conveniente por natureza que seja desprovido de todas as formas Eacute por isso que dizemos que a matildee do devir do que eacute visiacutevel e de todo sensiacutevel que eacute o receptaacuteculo natildeo eacute terra nem ar nem fogo nem aacutegua nem nada que provenha dos elementos nem nada deveniente a partir deles Mas se dissermos que ela eacute uma certa espeacutecie invisiacutevel e amorfa174 que tudo recebe e que participa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevel e difiacutecil de compreender175 natildeo estaremos a mentir E visto que a partir do que foi dito eacute possiacutevel alcanccedilar a sua natureza

174 anoraton eidos ti kai amorphon175 metalambanon de aporocirctata pecirc tou noecirctou kai dysalocirctotaton

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eis o modo mais correcto de falar dela a sua parte que estaacute a arder aparece sempre como fogo a que estaacute huacutemida aparece como aacutegua e a que aparece como terra e como ar faacute-lo de acordo com as imitaccedilotildees que recebe de cada um

Tendo noacutes estabelecido estes limites mais precisos no nosso discurso temos que tecer consideraccedilotildees sobre esses assuntos Seraacute que algum fogo eacute em si e quanto a todas as coisas de que sempre falamos seraacute que alguma delas eacute em si176 ou seraacute aquilo que vemos e tudo o resto que sentimos atraveacutes do corpo a uacutenica coisa que eacute real e natildeo existe outra aleacutem dessa de modo nenhum e em nenhuma circunstacircncia mas seraacute em vatildeo cada vez que dizemos que haacute uma Ideia inteligiacutevel177 de cada coisa natildeo sendo tudo isto nada senatildeo palavras Por um lado natildeo nos eacute permitido deixar a questatildeo que temos agrave nossa frente por julgar e por decidir pois merece que o faccedilamos nem abandonaacute-la afirmando com certeza que eacute assim mas por outro lado natildeo podemos inserir um longo discurso acessoacuterio ao lado de outro que jaacute eacute longo Poreacutem se ao estipularmos um limite focaacutessemos aspectos decisivos em pouco tempo seria extremamente oportuno No que me diz respeito eacute esse o sentido do meu voto

Se a intelecccedilatildeo178 e a opiniatildeo verdadeira satildeo dois geacuteneros pois tecircm em si modos de existir independentes teremos Ideias que natildeo podem por noacutes sentidas

176 kathrsquoauta onta Esta mesma foacutermula eacute usada no Feacutedon (66a) tambeacutem para caracterizar as Ideias

177 eidos noecircton178 nous Sobre este sentido do termo vide supra n XXX

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mas somente inteligidas179 Mas se como a alguns parece a opiniatildeo verdadeira natildeo difere em nada da intelecccedilatildeo devemos estabelecer que tudo quanto eacute apreendido pelos sentidos do nosso corpo eacute o que de mais seguro existe Ainda assim temos que afirmar que se trata de duas coisas distintas pois eles satildeo gerados separadamente e tecircm uma existecircncia dissemelhante um deles eacute gerado em noacutes atraveacutes da aprendizagem e o outro eacute-o pela persuasatildeo180 Aleacutem disso o primeiro eacute sempre acompanhado de uma justificaccedilatildeo verdadeira enquanto que o segundo eacute desprovido de justificaccedilatildeo181 Um natildeo se move pela persuasatildeo enquanto que o outro estaacute aberto agrave persuasatildeo Devemos tambeacutem dizer que todos os homens tomam parte em um mas na intelecccedilatildeo soacute tomam parte os deuses e um reduzido tipo de homens182 Sendo assim convenhamos que haacute uma primeira espeacutecie que eacute imutaacutevel natildeo estaacute sujeita ao devir nem agrave destruiccedilatildeo183 que natildeo recebe em si nada vindo de parte alguma nem entra em nada seja o que for natildeo eacute visiacutevel nem de outro modo sensiacutevel e cabe ao pensamento184 examinaacute-la Haacute uma segunda que tem

179 Tal como fora estabelecido na Repuacuteblica (478a-b) se eacute verdade que as faculdades intelectiva e sensiacutevel satildeo distintas tambeacutem os seus objectos hatildeo-de ser distintos

180 Cf Goacutergias 454c-455a Teeteto 200e-201c181 metrsquoalecircthous logou Formulaccedilatildeo aproximada da terceira

definiccedilatildeo de epistecircmecirc do Teeteto (200c9-201d1 meta logou alecircthecirc doxan) difere no facto de associar a verdade agrave justificaccedilatildeo (logos) e natildeo agrave opiniatildeo (doxa) pois que prescinde desta Cf Banquete 202a Feacutedon 76b 97d-99d Meacutenon 97c-98b Repuacuteblica 534b

182 Isto eacute os filoacutesofos183 to kata tauta eidos echon agennecircton kai anocirclethron184 noecircsis

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um nome igual agravequela que eacute sensiacutevel eacute deveniente estaacute sempre em movimento eacute gerada num determinado local para de seguida se dissolver de novo aleacutem de que eacute apreendida pela opiniatildeo e pelos sentidos Haacute um terceiro geacutenero que eacute sempre o do lugar185 natildeo admite destruiccedilatildeo e providencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devir eacute acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo186 sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel Quando olhamos para ele como em sonhos dizemos que eacute inevitaacutevel que tudo quanto eacute seja num determinado local e lhes caiba um determinado lugar e que aquilo que natildeo eacute em nenhum siacutetio da Terra nem no ceacuteu natildeo eacute Todas estas coisas e outras que satildeo irmatildes daquelas que pertencem agrave natureza do que eacute privado de sono e eacute verdadeiro por causa de estarmos a sonhar natildeo as conseguimos definir enquanto estamos acordados nem dizer a verdade Eacute que uma imagem que natildeo tem em si mesma nada daquilo a partir do qual se gerou (eacute um simulacro que estaacute sempre a fugir de outra coisa) assenta por estes motivos o seu devir numa outra coisa aderindo assim a uma existecircncia qualquer que ela seja caso contraacuterio ela natildeo seraacute absolutamente nada No que diz respeito ao que realmente eacute o discurso verdadeiro atraveacutes da exactidatildeo vai em seu auxiacutelio porque enquanto alguma coisa for uma outra e essa for outra ainda nenhuma das duas poderaacute nascer na outra pois

185 chocircra A traduccedilatildeo deste termo seraacute sempre insuficiente em virtude das dificuldades hermenecircuticas que esta secccedilatildeo levanta A versatildeo por ldquolugarrdquo deve ser entendida agrave luz do que foi dito sobre a chocircra na Introduccedilatildeo pp 42-44

186 logismocirc tini nothocirc

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uma coisa natildeo pode ser uma soacute e a mesma e ao mesmo tempo ser duas diversas

Esta eacute portanto a explicaccedilatildeo que vai ao encontro do meu voto concedamos uma descriccedilatildeo em jeito de siacutentese o ser o lugar e o devir187 satildeo trecircs coisas distintas de trecircs maneiras diversas e anteriores agrave geraccedilatildeo do ceacuteu A ama do devir188 por ficar humedecida e ardente e receber as formas da terra e do ar e por sofrer todas as impressotildees que as acompanham aparece agrave visatildeo sob muacuteltiplas feiccedilotildees mas por causa de estar plena de propriedades que natildeo satildeo semelhantes nem equilibradas natildeo estando ela proacutepria nada equilibrada a balanccedilar irregularmente para todos os lados eacute sacudida pelos elementos e ao ser movimentada ela proacutepria novamente os sacode Sendo os elementos assim postos em movimento separam-se por serem movimentados de um lado para o outro tal como acontece com as sementes quando satildeo agitadas e peneiradas por meio de joeiras ou de outros instrumentos usados para a depuraccedilatildeo dos cereais as partes densas e pesadas vatildeo para um lado enquanto que as esparsas e leves satildeo transportadas e assentam noutro local Assim os quatro elementos satildeo ao mesmo tempo sacudidos pelo receptaacuteculo Ele proacuteprio produzindo um movimento semelhante ao de um instrumento para sacudir separou ao maacuteximo esses elementos dissemelhantes dos outros e comprimiu o mais que pocircde os semelhantes num soacute por isso uns ocuparam um lugar e os outros outro ainda antes de o universo ser organizado e gerado a partir deles

187 on te kai chocircran kai genesin188 Outra das designaccedilotildees para chocircra

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Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros Como eacute possiacutevel que o deus os tenha composto de forma tatildeo bela e excelente a partir de elementos que natildeo satildeo assim isto seraacute antes de tudo e como sempre o que comeccedilaremos por explicar Agora devo entatildeo tentar esclarecer para voacutes a ordenaccedilatildeo e a geacutenese destes elementos por meio de um discurso insoacutelito mas como graccedilas agrave educaccedilatildeo partilhais dos meacutetodos pelos quais se demonstra o que eacute necessaacuterio ser explicado voacutes ireis acompanhar-me

Em primeiro lugar que o fogo a terra a aacutegua e o ar satildeo corpos isso eacute claro para todos tudo o que eacute da espeacutecie do corpo tem profundidade Mas a profundidade envolve necessariamente e por natureza a superfiacutecie e uma superfiacutecie plana eacute composta a partir de triacircngulos Todos os triacircngulos tecircm origem em dois triacircngulos cada um dos quais com um acircngulo recto e com os outros agudos Destes um tem em cada lado uma parte do acircngulo recto dividido em lados iguais enquanto que o outro tem partes desiguais do acircngulo recto dividas por lados desiguais Este eacute o princiacutepio que supomos aplicar-se ao fogo e aos outros corpos ao seguirmos uma explicaccedilatildeo que combina necessidade e

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verosimilhanccedila quanto aos princiacutepios ainda anteriores agravequeles conhece-os o deus e aqueles de quem entre os homens ele for amigo Eacute necessaacuterio que se diga entatildeo como satildeo esses quatro corpos mais belos dissemelhantes uns em relaccedilatildeo aos outros e que tecircm a capacidade de se gerarem uns aos outros se porventura forem dissolvidos Se o conseguirmos obteremos a verdade sobre a geraccedilatildeo da terra do fogo e dos elementos intermediaacuterios que estatildeo entre eles segundo a proporccedilatildeo E natildeo aceitaremos a ningueacutem a seguinte argumentaccedilatildeo que existem e podem ser observados corpos mais belos do que estes cada um correspondendo a um soacute geacutenero Devemos portanto empenhar-nos em estabelecer uma relaccedilatildeo harmoacutenica entre os quatro geacuteneros de corpos que se distinguem pela beleza e demonstrar que compreendemos satisfatoriamente a sua natureza

Dos dois triacircngulos o isoacutesceles encerra uma soacute espeacutecie ao passo que o escaleno encerra uma infinidade delas entre esta infinidade temos que escolher a mais bela se quisermos comeccedilar pelo siacutetio certo Se algueacutem conseguir referir uma mais bela que tenha escolhido em funccedilatildeo da sua composiccedilatildeo seraacute ele quem prevalece natildeo como antagonista mas sim como aliado Estabeleccedilamos portanto que de entre os vaacuterios triacircngulos haacute um que eacute o mais belo e deixemos de parte os outros

Trata-se daquele a partir do qual se pode constituir um triacircngulo equilaacutetero Dizer por que razatildeo eacute assim exigiria um discurso muito longo poreacutem a quem refute esta afirmaccedilatildeo e descubra que natildeo eacute deste modo seraacute atribuiacutedo o preacutemio com amizade Seleccionemos entatildeo

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dois triacircngulos a partir dos quais o fogo e os outros corpos foram engendrados um eacute isoacutesceles e quanto ao outro o seu lado maior seraacute sempre o quadrado do triplo do mais pequeno189 Agora devemos esclarecer melhor o que anteriormente dissemos de forma nada clara Parecia-nos que os quatro geacuteneros de corpos tinham sido todos gerados uns pelos outros mas isso eacute uma concepccedilatildeo que natildeo estaacute correcta pois em boa verdade os quatro geacuteneros satildeo gerados a partir dos triacircngulos que elegecircramos trecircs dos quais a partir do uacutenico que tem os lados desiguais e o quarto foi o uacutenico harmonicamente constituiacutedo a partir do triacircngulo isoacutesceles Portanto natildeo eacute possiacutevel que todos eles se decomponham uns nos outros que poucos grandes se gerem a partir de muitos pequenos e vice-versa Todavia trecircs podem visto que todos eles provecircm de um soacute triacircngulo se os maiores forem decompostos muitos pequenos seratildeo compostos a partir deles recebendo o aspecto que eacute adequado a cada um e quando um grande nuacutemero de pequenos se difunde pelos triacircngulos sendo gerado um nuacutemero uacutenico num uacutenico todo ele produziraacute uma outra forma uacutenica e grande Eis o que fica dito acerca da sua geraccedilatildeo reciacuteproca O tipo de forma em que cada um deles foi gerado e a partir de que combinaccedilotildees numeacutericas constituiraacute o objecto da exposiccedilatildeo que se segue

Comeccedilaremos pela primeira espeacutecie constituiacuteda como a mais pequena o seu elemento eacute o triacircngulo cujo comprimento da sua hipotenusa eacute o dobro do do lado

189 A noccedilatildeo de ldquoquadradordquo isto eacute x2 estaacute contida no termo dynamis tambeacutem com este sentido aparece no Teeteto (147d)

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mais pequeno190 Se justapusermos dois destes triacircngulos pela sua diagonal fazendo isto trecircs vezes fixando no mesmo ponto ndash que serviraacute de centro ndash as diagonais e os lados mais pequenos seraacute gerado um uacutenico triacircngulo equilaacutetero a partir de um nuacutemero de seis triacircngulos Quatro desses triacircngulos constituiacutedos por quatro lados iguais unidos a trecircs acircngulos planos191 formam um uacutenico acircngulo soacutelido192 que eacute gerado imediatamente a seguir ao mais obtuso dos acircngulos planos Uma vez formados quatro acircngulos desse tipo estaacute composta a primeira figura soacutelida193 que divide um todo esfeacuterico em partes iguais e semelhantes A segunda figura eacute formada a partir dos mesmos triacircngulos combinando-se oito triacircngulos equilaacuteteros que produzem um soacute acircngulo soacutelido a partir de quatro acircngulos planos e quando se geram seis acircngulos deste tipo o segundo corpo194 estaacute deste modo terminado A terceira figura eacute constituiacuteda pela conjunccedilatildeo de cento e vinte triacircngulos elementares e de doze acircngulos soacutelidos cada um dos quais envolvido por cinco triacircngulos planos equilaacuteteros e eacute gerada com

190 Triacircngulo rectacircngulo escaleno191 Isto eacute trecircs acircngulos de 60o192 Acircngulo raso de 180o193 Tetraedro regular (piracircmide) Comeccedila aqui a descriccedilatildeo

da formaccedilatildeo dos cinco soacutelidos elementares que se combinam na esfera final Mais tarde Euclides partiraacute deste passo do Timeu para abordar estas figuras Dedica-lhes todo o Livro XIII onde descreve as suas propriedades e constituiccedilatildeo bem como as caracteriza matematicamente determinando a proporccedilatildeo existente entre cada uma delas e a esfera Conclui que natildeo existe mais nenhum soacutelido regular aleacutem destes

194 Octaedro regular

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vinte bases que satildeo triacircngulos equilaacuteteros195 Engendrados estes soacutelidos o outro triacircngulo elementar foi deixado de parte e o triacircngulo isoacutesceles engendrou a natureza do quarto constituindo quatro triacircngulos que coincidiram no centro os seus acircngulos rectos formando um uacutenico quadrilaacutetero equilateral Quando foram conjugados seis deste tipo produziu oito acircngulos soacutelidos sendo cada um deles constituiacutedo pela harmonia de trecircs acircngulos planos rectos a figura do corpo constituiacutedo foi a do cubo que tem seis faces planas quadrangulares e equilaterais196 Visto que havia ainda uma quinta combinaccedilatildeo197 o deus utilizou-a para pintar animais no universo198

Quem considerar tudo isto de forma adequada pode encontrar dificuldades quanto ao que se deve dizer

195 Icosaedro regular196 Hexaedro regular197 Dodecaedro Esta figura geomeacutetrica constituiacuteda por 12

faces sendo cada uma delas um pentaacutegono (cf Euclides 1128) aproxima-se bastante da forma da esfera Sabendo que no Feacutedon (110b) o formato esfeacuterico da Terra eacute comparado agraves lsquodoze esferasrsquo (uma espeacutecie de bolas feitas com doze pedaccedilos de pele cosidos uns com os outros) e que os siacutembolos do Zodiacuteaco satildeo tambeacutem 12 e representados de forma geometricamente semelhante a relaccedilatildeo parece-nos oacutebvia na verdade Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1003C-D) citando este passo do Timeu diz que a representaccedilatildeo do Zodiacuteaco se deve precisamente a esta relaccedilatildeo

198 Eacute bastante complicado apurar o sentido exacto de diazocircgrapheocirc pois o elemento zocirc- ainda que originalmente siginificasse ldquoanimalrdquo pelo uso passou tambeacutem a ter o sentido de ldquofigurardquo daiacute que este verbo possa tambeacutem significar ldquopintar de vaacuterias coresrdquo Contudo sabendo que o universo visto a olho nu como era observado no tempo de Platatildeo natildeo apresenta quaisquer variaccedilotildees cromaacuteticas e de acordo com o que dissemos na nota anterior pensamos que este sentido de ldquopintar animaisrdquo estaacute relacionado com o Zodiacuteaco maioritariamente formado por animais

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se haacute uma infinidade de mundos ou em nuacutemero limitado Pode considerar que dizer que haacute uma infinidade de universos eacute um parecer de algueacutem que eacute inexperiente num um assunto sobre o qual deveria ser experiente199 mas entatildeo o que eacute adequado dizer em abono da verdade Que haacute soacute um mundo ou que haacute cinco ndash eacute uma questatildeo em que eacute razoaacutevel que possamos ter muita dificuldade Ora bem em nosso parecer de acordo com o discurso verosiacutemil o deus indica que um soacute mundo foi gerado poreacutem outra pessoa ao analisar outros pressupostos teraacute outra opiniatildeo Mas deixemos agora esse assunto e distribuamos os geacuteneros que foram gerados pelo nosso discurso em fogo terra aacutegua e ar Atribuamos agrave terra a forma cuacutebica pois a terra dos quatro elementos eacute o que tem mais dificuldade em mover-se e dos corpos o mais adequado para ser moldado ndash inevitavelmente e com certeza que foi gerado deste modo para que tivesse as bases mais estaacuteveis De entre os triacircngulos que estabelecemos no princiacutepio200 a base de lados iguais eacute mais estaacutevel de acordo com a natureza do que a de lados desiguais e quanto agrave superfiacutecie quadrangular equilateral composta a partir de cada um daqueles201 estaacute assente de um modo necessariamente mais estaacutevel em relaccedilatildeo quer agraves partes quer ao todo do que o triacircngulo equilaacutetero Por isso manteremos a salvo o discurso verosiacutemil se atribuirmos esta forma agrave terra e das que restam a forma mais difiacutecil de movimentar agrave aacutegua a que se movimenta melhor ao

199 Note-se o jogo de palavras provocado entre apeiros (ldquoilimitadordquo) empeiros (ldquoexperienterdquo) e apeiros (ldquoinexperienterdquo)

200 Cf supra 53c-55c201 Triacircngulos rectacircngulo isoacutesceles e escaleno

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fogo e a intermeacutedia ao ar o corpo mais pequeno ao fogo o maior agrave aacutegua e o meacutedio ao ar o que eacute mais agudo ao fogo o segundo mais agudo ao ar e o terceiro agrave aacutegua Considerando todos estes corpos aquele que tem as bases mais pequenas seraacute por natureza necessariamente o que melhor se movimenta pois de todos eles eacute absolutamente o mais pungente e mais agudo e ainda o mais leve pelo facto de ser constituiacutedo por um menor nuacutemero de partes iguais O segundo corpo deveraacute vir em segundo lugar de acordo com estes pressupostos e o terceiro em terceiro Portanto de acordo com o raciociacutenio correcto e verosiacutemil estabeleccedilamos que a figura soacutelida da piracircmide eacute o elemento que gerou o fogo e a sua semente digamos que na ordem de geraccedilatildeo o ar eacute o segundo e a aacutegua o terceiro Eacute necessaacuterio ter em mente que todos os corpos satildeo de tal forma pequenos que tomando cada um deles de acordo com o seu geacutenero nenhum pode ser observado por noacutes por causa da sua pequenez mas soacute satildeo visiacuteveis quando reunidos em grande nuacutemero numa massa consistente E quanto agraves proporccedilotildees que determinam as suas quantidades aos movimentos e agraves outras propriedades em geral eacute loacutegico que o deus tanto quanto a natureza da Necessidade cedeu ao deixar-se persuadir de bom grado harmonizou isto de acordo com a proporccedilatildeo de modo a que em cada caso tudo fosse produzido por ele com precisatildeo

A partir de tudo quanto acabaacutemos de dizer sobre os geacuteneros eis o que deve ter ocorrido de acordo com o maacuteximo de verosimilhanccedila quando a terra encontra o fogo e eacute dividida pelo que nela haacute de cortante pode ser

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arrastada por dissoluccedilatildeo no proacuteprio fogo ou ao deparar-se com uma massa de ar ou de aacutegua ateacute que as suas partes se reencontrem e se harmonizem novamente umas com as outras tornando-se terra outra vez ndash pois jamais pode passar a outra espeacutecie Mas quando a aacutegua eacute dividida pelo fogo ou ateacute pelo ar eacute possiacutevel que decirc origem a um corpo uacutenico constituiacutedo de fogo e a dois de ar a partir da dissoluccedilatildeo de uma partiacutecula de ar os seus segmentos podem dar origem a dois corpos de fogo E por outro lado quando o fogo eacute envolvido em ar em aacutegua ou numa porccedilatildeo de terra posto em movimento pelos elementos que o arrastam entra em conflito com eles eacute castigado e desfeito em pedaccedilos Entatildeo dois corpos de fogo combinam-se num elemento de ar e quando o ar eacute dominado e cortado em pedaccedilos a partir de duas partes e meia uma forma de ar eacute compactada num soacute corpuacutesculo de aacutegua

Mas calculemos novamente estas questotildees do seguinte modo logo que um dos outros elementos ao ser envolvido em fogo e cortado pela agudeza dos seus acircngulos e das suas arestas eacute constituiacutedo na natureza do fogo o corte acaba Eacute que cada geacutenero eacute semelhante e idecircntico a si proacuteprio e natildeo eacute possiacutevel produzir qualquer alteraccedilatildeo num outro que tem uma condiccedilatildeo semelhante agrave sua nem dele sofrer nenhuma mas se se tornar num outro geacutenero haveraacute um mais fraco a combater com um mais forte e natildeo paacutera de ser dissolvido Quando as partiacuteculas mais pequenas e em menor nuacutemero satildeo envolvidas pelas maiores e mais numerosas satildeo dissolvidas e extinguem-se mas se se

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deixarem constituir na forma do elemento dominante param de se extinguir e do fogo eacute gerado ar e do ar eacute gerada aacutegua Todavia se enquanto os corpuacutesculos se estiverem a unir num todo uma massa de outros elementos entrar em conflito com eles natildeo param de se dissolver ateacute que sejam completamente afastados e dissolvidos refugiando-se junto do que eacute seu congeacutenere ou sendo vencidos se convertam numa massa uacutenica semelhante agrave que os dominou e permaneccedilam com ela Decerto que estas impressotildees originam mudanccedilas de lugar eacute que as massas de cada geacutenero estatildeo separadas cada uma no siacutetio que lhe compete em virtude do movimento do receptaacuteculo mas as que por vezes se tornam dissemelhantes de si proacuteprias e semelhantes a outras satildeo levadas por via das agitaccedilotildees para o lugar daquelas a que se tornaram semelhantes

Eis as causas por que foram gerados os corpos primeiros e puros mas quanto ao motivo por que nascerem outros geacuteneros nas suas formas devemos apontar como causa a constituiccedilatildeo dos elementos de cada corpo pois cada uma delas natildeo foi feita desde o princiacutepio de modo a que o seu triacircngulo fosse uacutenico e de um tamanho soacute ndash jaacute que havia uns mais pequenos e outros maiores ndash com um nuacutemero de variaccedilotildees tatildeo grande quanto o de geacuteneros que haacute dentro das formas Por isso eacute que quando esses triacircngulos se misturam entre si ou com outros decorre daiacute uma variedade infinita Essa variedade deve merecer a atenccedilatildeo daqueles que tencionam fazer uso de um discurso verosiacutemil sobre a natureza

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No que respeita ao movimento e ao repouso se natildeo chegarmos a um acordo sobre a forma e em que condiccedilotildees se geram haveraacute vaacuterios impedimentos ao raciociacutenio que se segue Decerto que jaacute se falou sobre este assunto202 mas acrescentemos ainda o seguinte de modo algum o movimento consente existir na uniformidade Eacute difiacutecil ndash ou melhor impossiacutevel ndash haver um movido203 sem um movente204 ou um movente sem um movido natildeo eacute possiacutevel haver movimento sem a existecircncia destes termos mas eacute impossiacutevel que de algum modo eles sejam uniformes Assim estabeleccedilamos definitivamente que o repouso existe na uniformidade205 e o movimento na natildeo-uniformidade a causa da natureza do que eacute natildeo-uniforme eacute a desigualdade Noacutes jaacute discorremos sobre a geraccedilatildeo da desigualdade206 mas natildeo dissemos como se separaram os elementos uns dos outros de acordo com o seu geacutenero e desse modo cessaram de se mover e passar uns pelos outros Eis o que diremos novamente a oacuterbita do universo visto que engloba todos os geacuteneros e eacute circular tende por natureza a querer concentrar-se em si mesma e comprime todas as coisas natildeo permitindo que lugar algum permaneccedila vazio Foi por isso que o fogo principalmente penetrou em tudo e em seguida o ar que eacute por natureza o segundo em subtileza e assim sucessivamente para os restantes De facto os corpos gerados a partir de partiacuteculas maiores satildeo os que deixam

202 Cf supra 52d-53a 57a-c203 to kinecircsomenon204 to kinecircson205 stasin men en omalotecircti206 Cf supra 57c-d

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maiores interstiacutecios durante a sua composiccedilatildeo enquanto que os mais pequenos deixam interstiacutecios muito pequenos O processo de compressatildeo impele os mais pequenos para os interstiacutecios dos maiores Quando os pequenos se encontram estabelecidos entre os grandes separando entre si os maiores e os maiores comprimem os mais pequenos todos satildeo levados para cima e para baixo em direcccedilatildeo aos lugares que lhes satildeo proacuteprios Eacute que cada um ao mudar de tamanho eacute levado igualmente a mudar de posiccedilatildeo Eacute deste modo e por estes motivos que se gera e perdura a natildeo-uniformidade fornecendo a esses corpos este movimento que existe sempre de forma contiacutenua

Aleacutem dos mencionados eacute necessaacuterio ter em conta que existem outros geacuteneros de fogo como a chama e aquilo que emana da chama que natildeo queima mas fornece aos olhos a luz e aquilo que quando a chama se extingue dela subsiste nos corpos inflamados O mesmo se aplica ao ar a que naquela forma mais pura nos referimos com o termo ldquoeacuteterrdquo enquanto que para mais turva designamos por ldquonevoeirordquo e ldquoescuridatildeordquo existindo tambeacutem noutras formas que natildeo tecircm nome e que satildeo geradas por causa da desigualdade dos triacircngulos Quanto aos tipos de aacutegua em primeira instacircncia dividem-se em dois geacuteneros o liacutequido e o passiacutevel de se liquefazer O liacutequido que tem partes dos mais pequenos compostos de aacutegua (os quais satildeo desiguais) eacute moviacutevel por si mesmo ou por outro elemento em virtude da sua irregularidade e da forma da sua figura Por outro lado o que eacute feito a partir de compostos grandes e uniformes eacute mais estaacutevel do que

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aquele e mais pesado pois foi compactado por causa da uniformidade Mas sob efeito do fogo que o penetra e dissolve perde a uniformidade e depois de a perder participa mais do movimento ao tornar-se facilmente moviacutevel eacute impregnado pelo ar circundante e espalhado sobre a terra Cada uma destas impressotildees recebeu um nome ldquoderreterrdquo para a decomposiccedilatildeo das suas massas e ldquofluirrdquo para a sua dispersatildeo sobre a terra Mas quando o fogo se precipita novamente e de forma espontacircnea visto que natildeo se precipita para o vazio o ar circundante repele a massa huacutemida que ainda eacute faacutecil de mover em direcccedilatildeo aos lugares que o fogo ocupava obrigando-a a misturar-se com ela proacutepria Sendo o liacutequido assim comprimido recupera a sua homogeneidade visto que o fogo que criara esta irregularidade tinha-se retirado assim eacute restabelecido ao seu estado original E porque o afastamento do fogo eacute ldquocongelamentordquo a constriccedilatildeo subsequente ao seu afastamento significa o que chamamos ldquoestado soacutelidordquo Dentre todos os tipos de aacutegua a que chamaacutemos ldquopassiacutevel de se liquefazerrdquo uma que eacute muito densa por ser gerada atraveacutes de partiacuteculas muito finas e uniformes (uacutenica na sua espeacutecie) foi tingida com uma cor brilhante e amarela e que eacute o bem mais precioso o ouro ndash filtrado atraveacutes das pedras solidificou-se Quanto ao rebento do ouro que eacute muito duro em virtude da sua densidade e de cor negra eacute chamado ldquoadamanterdquo207

207 adamas Pelo facto de lhe ser atribuiacuteda uma cor negra e ser chamada ldquorebento do ourordquo esta misteriosa substacircncia tambeacutem referida no Poliacutetico (303e) e na Repuacuteblica (616c) corresponderaacute muito provavelmente agrave hematite Sobre este assunto vide Lopes (2009 pp 29-30)

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Afim ao ouro por causa das partiacuteculas mas tendo mais do que uma espeacutecie mais compacto em densidade do que o ouro e com pequenas e poucas partiacuteculas de terra de tal modo que eacute mais duro embora seja mais leve por ter em si interstiacutecios maiores eacute o geacutenero do cobre ndash uma combinaccedilatildeo gerada a partir de aacuteguas liacutempidas e densas Quanto agrave porccedilatildeo de terra aiacute misturada logo que se torna a separar deste com o passar do tempo torna-se visiacutevel por si soacute e gera-se aquilo a que se chama ldquoverdeterdquo

No que respeita agraves outras substacircncias deste tipo natildeo seraacute complicado discorrer sobre elas se investigarmos a modalidade da narrativa verosiacutemil Algueacutem que ponha de parte os discursos relativos ao que eacute eternamente e analise o verosiacutemil que diz respeito ao devir obteacutem como que um prazer de que natildeo se arrepende e produziraacute na sua vida uma recriaccedilatildeo comedida e prudente Por isso deixemos tambeacutem noacutes agora aqueles assuntos e prossigamos a buscar a verosimilhanccedila nestas questotildees e do seguinte modo

A aacutegua misturada com fogo toda ela fina e liacutequida em virtude do seu movimento e do seu percurso eacute chamada ldquoliacutequidardquo208 Ela rola macia sobre a terra e por as suas bases menos estaacuteveis do que as da terra cederem a aacutegua quando eacute separada do fogo e do ar fica sozinha e eacute mais uniforme e comprimida sobre si mesma por aquilo que dela sai Solidificada deste modo a que eacute mais afectada pelo que estaacute por cima da terra chama-se ldquogranizordquo e sobre a terra chama-se ldquogelordquo

208Caracterizaccedilatildeo tipicamente homeacuterica do percurso da aacutegua (Odisseia 371)

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aquela que ficou menos afectada se natildeo for mais do que meio congelada chama-se ldquoneverdquo e se condensar sobre a terra a partir do orvalho chama-se ldquogeadardquo No que respeita agraves espeacutecies de aacutegua mais numerosas por estarem misturadas umas com as outras ndash a todo esse geacutenero por ter sido filtrado pelas plantas da terra chamamos sucos ndash todas elas por causa das misturas tecircm dissemelhanccedilas Muitos geacuteneros seus foram produzidos que ficaram sem nome Mas haacute quatro espeacutecies que contecircm fogo tendo sido as mais conspiacutecuas as que receberam nomes a que consegue aquecer tanto a alma como o corpo eacute o vinho a que eacute suave e divide o raio visual e por estas razotildees eacute brilhante e reluzente para a visatildeo e tem uma aparecircncia lustrosa eacute o oacuteleo o pez o oacuteleo de riacutecino o proacuteprio azeite e todos os outros produtos que tecircm esta mesma propriedade E o que tem a capacidade de dissolver nos limites da sua natureza as partes compactas agrave volta da boca proporcionando a doccedilura atraveacutes dessa propriedade tem a designaccedilatildeo geral de ldquomelrdquo a espeacutecie que dissolve a carne por queimaacute-la um geacutenero espumoso que estaacute aparte de todos os outros sucos recebeu o nome ldquofermentordquo

Quanto agraves espeacutecies de terra a que foi filtrada pela aacutegua torna-se num corpo pedregoso do seguinte modo Quando a aacutegua que estava misturada se separa durante a mistura torna-se numa espeacutecie de ar transformada em ar vai disparada para o lugar que lhe eacute proacuteprio Como natildeo havia nenhum vazio em redor deles empurrou o ar circundante Visto que ele eacute pesado quando eacute empurrado e espalhado na massa da terra comprime-a

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atirando-a com forccedila para os locais de onde saiacutera o novo ar comprimida pelo ar e insoluacutevel pela aacutegua209 a terra constitui a pedra que eacute mais bela quando eacute brilhante (pois tem origem em partes iguais e uniformes) e mais feia quando acontece o contraacuterio Quando toda a humidade eacute retirada por causa da rapidez do fogo e se constitui um corpo mais seco do que a pedra gera-se aquele geacutenero a que chamamos ldquobarrordquo Mas acontece que se restar humidade a terra torna-se passiacutevel de fusatildeo por acccedilatildeo do fogo e quando arrefece gera-se uma pedra de cor negra210 Restam dois geacuteneros que igualmente resultam de uma mistura com muita aacutegua Sendo constituiacutedos por partes mais pequenas de terra e ambos salgados tornam-se semicondensados e novamente dissoluacuteveis pela aacutegua um eacute o geacutenero do salitre que limpa o azeite e a terra o outro que se mistura harmoniosamente em combinaccedilotildees de sabores eacute o sal que segundo a tradiccedilatildeo eacute considerado um corpo amado pelos deuses211 Quanto aos que satildeo compostos de ambos soluacuteveis natildeo em aacutegua mas sim no fogo solidificam-se do seguinte modo e pelos seguintes motivos nem o fogo nem o ar dissolvem as massas de terra pois as suas partiacuteculas satildeo por natureza mais pequenas do que os interstiacutecios da estrutura da terra e como haacute muito espaccedilo por onde podem passar sem ser pela forccedila permitem que ela fique

209 Questatildeo que seraacute detalhadamente analisada por Aristoacuteteles (Meteoroloacutegicos 383b19-sqq)

210 A lava depois de seca211 Esta concepccedilatildeo remonta a Homero Plutarco em No

Banquete (684F-sqq) citando este passo do Timeu dedica-lhe uma quaestio inteira

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indissoluacutevel e indissociaacutevel por outro lado as partiacuteculas de aacutegua que satildeo por natureza maiores forccedilam a passagem e ao fazecirc-lo dissociam a terra dissolvendo-a De facto quando a terra natildeo se solidifica pela forccedila soacute a aacutegua a dissolve deste modo mas se se solidificar dessa forma nada a natildeo ser o fogo a pode dissolver pois natildeo resta entrada para nada a natildeo ser para o fogo Quanto agrave estrutura da aacutegua extremamente forte soacute o fogo a pode destruir poreacutem quando enfraquece ambos os elementos a podem destruir o fogo pelos triacircngulos e o ar pelos interstiacutecios Quanto ao ar comprimido pela forccedila nada o dissolve a natildeo ser que dissolva o elemento propriamente dito e quando foi comprimido sem forccedila soacute o fogo o dissolve No que respeita aos corpos misturados a partir de terra e de aacutegua enquanto a aacutegua ocupar os interstiacutecios da terra que satildeo comprimidos pela forccedila as partes de aacutegua que vecircm do exterior natildeo tecircm entrada pelo que correm em torno de toda a massa sem que ela permita ser dissolvida mas as partes do fogo entram pelos interstiacutecios de aacutegua e o que a aacutegua faz agrave terra o fogo o faz ao ar ndash satildeo as uacutenicas causas que levam este corpo composto a dissolver-se e a fluir Acontece que entre estes seres uns tecircm menos aacutegua do que terra geacutenero a que diz respeito todo o tipo de vidro e as pedras a que chamamos ldquofundiacuteveisrdquo mas outros tecircm mais aacutegua satildeo todos os corpos constituiacutedos de cera e incenso

Estatildeo entatildeo mais ou menos demonstradas as variedades de espeacutecies em funccedilatildeo das figuras combinaccedilotildees e alteraccedilotildees de uns para os outros Temos agora que tentar esclarecer por que causas se geram essas

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impressotildees Primeiro eacute obrigatoacuterio que pressuponhamos sempre nos nossos discursos a existecircncia de sensaccedilotildees mesmo que ainda natildeo tenhamos discorrido sobre o que respeita agrave carne e agrave geraccedilatildeo da carne212 nem sobre a parte mortal da alma213 Acontece que natildeo eacute possiacutevel falar-se disso satisfatoriamente sem que se aborde as impressotildees sensiacuteveis nem falar daquela separadamente destas todavia tratar dos dois assuntos ao mesmo tempo eacute quase impossiacutevel Assim temos que pressupor que um dos dois jaacute foi tratado anteriormente mas regressaremos mais tarde ao que supusemos tratado

Portanto para que falemos sobre as propriedades a seguir ao que as gera tenhamos em conta o que respeita agrave existecircncia do corpo e da alma Em primeiro lugar procuremos saber por que dizemos que o fogo eacute quente tendo em conta que ele gera dissociaccedilatildeo e corte no nosso corpo Todos noacutes temos mais ou menos noccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo que provoca eacute como qualquer coisa aguda no que trata agrave fineza das suas arestas agrave agudeza dos seus acircngulos agrave pequenez das suas partiacuteculas e agrave rapidez dos seus movimentos que em todos os sentidos fazem do fogo algo veemente e cortante que corta de forma pungente o que quer que lhe apareccedila devemos consideraacute-las relembrando a origem da sua figura e sobretudo que essa e natildeo outra a natureza que divide os nossos corpos e os fragmenta em pequenas partes eacute justamente o que deu o nome e a sensaccedilatildeo ao que noacutes agora chamamos ldquoquenterdquo

212 Vide infra 73b-sqq213 Vide infra 69a-sqq

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O contraacuterio disto eacute evidente todavia que natildeo fique privada de explicaccedilatildeo Dentre os liacutequidos que circundam o corpo quando aqueles que tecircm partiacuteculas maiores se aproximam para expelirem os de partiacuteculas mais pequenas (como natildeo lhes eacute possiacutevel ocupar os lugares deles comprimem a humidade que haacute em noacutes) fazem uma coisa inamoviacutevel a partir de uma que eacute dotada de um movimento irregular atraveacutes de homogeneizaccedilatildeo compressatildeo e solidificaccedilatildeo Poreacutem aquilo que eacute unido de forma contraacuteria agrave natureza luta de acordo com a sua natureza para se afastar no sentido contraacuterio que eacute o seu estado proacuteprio A este embate e a este abalo pusemos os nomes ldquotremorrdquo e ldquoarrepiordquo enquanto que esta impressatildeo em geral e aquilo que a provoca tem o nome ldquofriordquo

Duro eacute aquilo a que a nossa carne cede e mole eacute aquilo que cede agrave carne determinam-se relativamente uns aos outros Cede aquilo que estaacute assente numa base pequena Aquele que tem uma base de quadrados estando assente firmemente eacute a forma mais resistente porque pode reunir grande densidade e tem muita firmeza

Para que se explique com o maacuteximo de clareza o ldquopesadordquo e o ldquoleverdquo examinemo-los juntamente com aquilo a que chamamos ldquopor baixordquo e ldquopor cimardquo Natildeo eacute nada acertado pensar que haacute por natureza dois lugares determinados e opostos que dividem o universo em duas partes a de baixo para onde eacute levado tudo quanto tenha uma massa corpoacuterea e a de cima para onde tudo se dirige contrariado Sabendo que o ceacuteu tem todo ele uma forma esfeacuterica todos os pontos que satildeo extremos

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por estarem agrave mesma distacircncia do centro devem ser em igual medida extremidades e quanto ao centro afastado agrave mesma distacircncia das extremidades eacute forccediloso acreditar que seja o oposto de todas as extremidades Visto que o mundo eacute por natureza formado deste modo qual dos pontos se diga estar no alto ou em baixo para que natildeo pareccedila com justiccedila que se estaacute a aplicar designaccedilotildees nada adequadas Com efeito natildeo eacute certo dizer que o local que estaacute no centro do mundo seja por natureza em baixo ou em cima mas sim no centro jaacute a periferia natildeo estaacute no centro nem tem em si nenhuma parte mais diferenciada do que outra em relaccedilatildeo ao centro ou a qualquer outro dos opostos Portanto que tipo de designaccedilotildees contraacuterias se poderaacute aplicar agravequilo que eacute em si mesmo semelhante em todos os aspectos e como se pode acreditar que estaacute a falar correctamente Se houver um soacutelido em equiliacutebrio no centro do universo de modo algum seraacute levado em direcccedilatildeo a qualquer das extremidades em virtude de serem semelhantes em todas as direcccedilotildees Mas se algo andasse em ciacuterculos agrave volta dele achar-se-ia frequentemente nos antiacutepodas e referir-se-ia ao mesmo ponto como ldquoem baixordquo e ldquoem cimardquo214 Portanto se o universo eacute todo esfeacuterico tal como acabo de dizer natildeo faz sentido dizer que um siacutetio eacute em baixo e outro eacute em cima de onde provecircm estas designaccedilotildees e aquilo a que elas se aplicam por causa das quais nos acostumaacutemos a descrever o ceacuteu como um todo e a dividi-lo deste modo eis aquilo em que devemos estar de acordo ao supormos o que se segue

214 No Sobre o Ceacuteu (42 308a34-b28) Aristoacuteteles parafraseia esta secccedilatildeo do texto para especular sobre a esfericidade da Terra e a sua posiccedilatildeo central no universo

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No siacutetio do universo de que a natureza do fogo mais participa e onde haacute mais quantidade acumulada daquilo a que ele se dirige se algueacutem aiacute se aproximasse dele supondo que tinha esse poder e tirasse partes de fogo para as pesar numa balanccedila e erguendo a balanccedila arrastasse agrave forccedila o fogo para o ar que lhe eacute dissemelhante eacute evidente que as partes mais pequenas cederiam mais facilmente do que as maiores ndash eacute que quando dois corpos satildeo levantados por uma soacute forccedila torna-se inevitaacutevel que o mais pequeno anua mais facilmente agrave forccedila e o maior menos pois resiste ateacute um certo ponto Ao maior que eacute levado para baixo chamemos ldquopesadordquo e ao pequeno que eacute levado para cima chamemos ldquoleverdquo Eacute forccediloso que noacutes sejamos levados a fazer isto mesmo em relaccedilatildeo a este local Por andarmos sobre a terra separamos geacuteneros teacuterreos agraves vezes ateacute a proacutepria terra e contra a natureza atiramo-los com violecircncia para o ar que eacute dissemelhante pois ambos se mantecircm naquilo de que satildeo congeacuteneres mas o mais pequeno acompanha mais facilmente o arrastamento para o dissemelhante do que o maior Por isso lhe atribuiacutemos a propriedade ldquoleverdquo a ele e ldquoem cimardquo ao local para onde foi arrastado e ao oposto ldquopesadordquo e ldquoem baixordquo Consequentemente eacute inevitaacutevel que essas propriedades se relacionem umas com as outras de maneiras diversas em virtude de as massas destes geacuteneros ocuparem um local oposto umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash se compararmos o que eacute leve num lugar com o que eacute leve no lugar oposto o que eacute pesado com aquilo que eacute pesado o que estaacute em baixo com o que estaacute em baixo o que estaacute em cima com o

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que estaacute em cima descobriremos que todos se tornam e satildeo opostos obliacutequos e em tudo diferentes uns dos outros Mas o aspecto particular que devemos ter em mente em relaccedilatildeo a todos eles eacute que para cada corpo eacute o trajecto que conduz ao congeacutenere que torna ldquopesadordquo aquele que o percorre e ldquoem baixordquo o lugar para onde se dirige e o contraacuterio eacute vaacutelido para os opostos destes215 Estatildeo estabelecidas as causas que dizem respeito a estas propriedades No que respeita agrave causa da impressatildeo do ldquolisordquo e do ldquorugosordquo qualquer pessoa pode percebecirc-la e explicaacute-la a outra pessoa um resulta da dureza misturada com a irregularidade o outro eacute produzido pela homogeneidade combinada com densidade

No que respeita agraves questotildees que satildeo comuns a todo o corpo resta uma importantiacutessima que eacute a causa dos prazeres e das dores devidos agraves impressotildees sobre as quais temos discorrido que por receberem as sensaccedilotildees atraveacutes de todas as partes do corpo trazem consigo mesmas dor e prazer simultaneamente216 Tomemos pois as causas que tecircm que ver com todas as impressotildees sensiacuteveis ou natildeo sensiacuteveis relembrando a distinccedilatildeo que estabelecemos anteriormente217 entre a natureza do que se move facilmente e do que se move a custo Eacute de acordo com ela que devemos procurar tudo aquilo que temos a intenccedilatildeo de perceber

Quando ao que por natureza se movimenta facilmente sobreveacutem uma impressatildeo por mais

215 Isto eacute aplica-se o mesmo princiacutepio agraves noccedilotildees ldquoleverdquo e ldquoem cimardquo

216 Sobre a relaccedilatildeo entre prazer e dor vide Feacutedon 60b-c Filebo 51a-sqq Leis 732d-734e Repuacuteblica 584b

217Cf supra 55e-56a

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brevemente que seja as suas partiacuteculas diferentes espalham-se em ciacuterculo pelas outras partiacuteculas produzindo nelas essa mesma impressatildeo ateacute que ao atingirem o discernimento218 datildeo a conhecer a propriedade do agente Pelo contraacuterio o que eacute estaacutetico e natildeo tem nenhum movimento em ciacuterculo apenas sofre a impressatildeo e natildeo movimenta nenhuma das partiacuteculas circundantes de tal forma que em virtude de as partiacuteculas natildeo a transmitirem umas agraves outras a impressatildeo inicial permanece neles imoacutevel sem que esteja na totalidade do ser-vivo nem proporcione nenhuma sensaccedilatildeo agrave parte afectada Isto eacute o que acontece aos ossos aos cabelos e a todas as outras partes maioritariamente teacuterreas que temos em noacutes Mas o que dissemos anteriormente tem que ver sobretudo com a visatildeo e com a audiccedilatildeo porque eacute o fogo e o ar que exercem sobre eles uma influecircncia mais importante Quanto ao prazer e agrave dor eacute necessaacuterio que tenhamos em mente o seguinte uma impressatildeo violenta e em desacordo com a natureza que se gera em noacutes de forma suacutebita eacute dolorosa mas pelo contraacuterio o regresso ao estado natural de forma suacutebita eacute apraziacutevel jaacute uma impressatildeo moderada e faseada natildeo eacute sentida aplicando-se o oposto aos seus opostos Mas todas as impressotildees que se geram com facilidade satildeo extremamente sensiacuteveis poreacutem delas natildeo participam nem dor nem prazer como por exemplo as impressotildees que dizem respeito agrave visatildeo em si que como foi dito anteriormente eacute um corpo que durante o dia nos eacute aparentado De facto os cortes as queimaduras e tudo

218 to phronimon

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o resto que a afectam natildeo lhes provocam dor nem prazer quando regressa novamente agrave sua forma original embora cause sensaccedilotildees intensas e manifestas em funccedilatildeo das impressotildees que sofra e dos corpos com que de certo modo contacta quando contra eles colide pois natildeo haacute qualquer violecircncia na sua dissociaccedilatildeo e associaccedilatildeo Mas os corpos com partes maiores que cedem com relutacircncia ao que age sobre eles e transmitem os movimentos ao todo sofrem prazer e dor ndash dor quando satildeo alterados prazer quando regressam novamente ao estado original Todos os que se desvanecem a si proacuteprios gradualmente e se esvaziam mas que se enchem de forma suacutebita e em larga escala tornam-se insensiacuteveis quando se esvaziam e sensiacuteveis quando se enchem e natildeo provocam dores agrave parte mortal da alma mas sim prazeres intensos Isto eacute evidente em relaccedilatildeo a substacircncias fragrantes219 Mas todos os que satildeo alterados de forma suacutebita e regressam gradualmente e com relutacircncia ao seu estado original proporcionam sensaccedilotildees absolutamente contraacuterias agraves que atraacutes referimos eacute evidente que eacute o que acontece em relaccedilatildeo agraves queimaduras e aos cortes no corpo

Eis uma explicaccedilatildeo razoaacutevel das impressotildees comuns a todo o corpo e dos nomes que foram dados aos agentes que as geram Devemos agora tentar falar tanto quanto nos for possiacutevel do que se gera nas partes especiacuteficas do nosso corpo das suas impressotildees e mais uma vez das causas dos seus agentes Primeiro devemos esclarecer na medida do possiacutevel tudo quanto deixaacutemos

219 Semelhante ideia surge tambeacutem no Filebo (51b) e na Repuacuteblica (584b)

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por dizer nos discursos anteriores acerca dos sucos220 e das impressotildees particulares da liacutengua Eacute evidente que tambeacutem estas tal como outras se geram por meio de algumas associaccedilotildees e dissociaccedilotildees mas aleacutem disso estatildeo mais do que qualquer outra coisa relacionadas com a rugosidade e a lisura Com efeito todas as partiacuteculas terrosas que entram pelos vasos sanguiacuteneos que se prolongam ateacute ao coraccedilatildeo satildeo para a liacutengua uma espeacutecie de instrumentos de teste colidem com as partes huacutemidas e tenras da carne e ao dissolverem-se contraem e secam os vasos sanguiacuteneos221 As mais rugosas apresentam-se-nos como amargas e as que satildeo menos rugosas como azedas De entre elas as que limpam os vasos sanguiacuteneos lavam toda a superfiacutecie da liacutengua Fazem-no aleacutem da justa medida e excedem-se a ponto de dissolver parte da proacutepria natureza da liacutengua (tal como os salitres) e satildeo todas chamadas ldquopicantesrdquo ao passo que as que satildeo mais fracas do que o salitre e tecircm uma acccedilatildeo de limpeza na medida justa satildeo ldquosalgadasrdquo ndash sem amargor aacutespero e evidenciando uma sensaccedilatildeo mais amistosa

Outras que por terem partilhado do calor da boca e sido trituradas por ela satildeo inflamadas em conjunto e em sentido inverso queimam aquilo que as sobreaqueceu satildeo levadas para cima (em virtude da sua leveza) para junto da parte sensorial da cabeccedila cortando tudo o que lhes sobrevenha graccedilas agrave natureza das propriedades que

220 Cf supra 60a221 Posteriormente Aristoacuteteles defenderaacute a mesma concepccedilatildeo o

paladar estaacute sempre dependente de substacircncias em estado liacutequido (Sobre a Alma 210 422a8-35)

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todas estas substacircncias tecircm elas foram chamadas ldquoacresrdquo Por outro lado haacute partiacuteculas que foram diminuiacutedas por putrefacccedilatildeo Elas imiscuiacuteram-se nos vasos sanguiacuteneos estreitos por terem a mesma dimensatildeo que as partiacuteculas terrosas e a mesma quantidade de ar que existe nos vasos sanguiacuteneos de tal forma que fazem com que eles se movimentem e misturem uns com os outros quando estatildeo misturadas formam uma cerca e como as de um tipo se imiscuem nas de outro tipo datildeo origem a espaccedilos vazios que satildeo distendidos pelas partiacuteculas que entram Quando um espaccedilo vazio huacutemido seja terroso ou em estado puro se distende em torno do ar forma um reservatoacuterio huacutemido com ar e gera-se um espaccedilo vazio de aacutegua arredondado os que satildeo de aacutegua pura e transluacutecidos em toda a volta receberam o nome ldquobolhardquo enquanto que os que satildeo terrosos e ao mesmo tempo movimentados e efervescentes satildeo referidos com as designaccedilotildees ldquoebuliccedilatildeordquo e ldquofermentaccedilatildeordquo O responsaacutevel por estas impressotildees eacute chamado ldquoaacutecidordquo

Uma impressatildeo que seja contraacuteria ao conjunto das que acabaacutemos de falar eacute fruto de uma causa contraacuteria Sempre que a estrutura das partiacuteculas que entram em algo liacutequido eacute de natureza afim agrave da liacutengua aquelas alisam-na lubrificando as rugosidades relaxando aquilo que foi comprimido em desacordo com a natureza e comprimindo aquilo que foi relaxado em desacordo com a natureza e restabelecendo tudo tanto quanto possiacutevel de acordo com a natureza por todos estes remeacutedios para as impressotildees violentas serem em tudo apraziacuteveis e amigaacuteveis eles foram chamados ldquodocesrdquo

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Eis o que haacute a dizer sobre estes assuntos Em relaccedilatildeo agrave propriedade que diz respeito agraves narinas natildeo haacute formas a definir Eacute que todos os odores satildeo semigerados e acontece que natildeo haacute qualquer forma com dimensatildeo para ter um cheiro Pelo contraacuterio os nossos vasos sanguiacuteneos tecircm uma constituiccedilatildeo demasiado estreita para os geacuteneros de terra e de aacutegua e demasiado larga para os de fogo e ar razatildeo pela qual ningueacutem nunca sentiu nenhum cheiro destes corpos pois os cheiros satildeo gerados a partir daquilo que se liquefaz apodrece se dissolve ou evapora Com efeito os cheiros satildeo gerados durante o estado intermeacutedio em que a aacutegua se estaacute a transformar em ar ou o ar em aacutegua e todos eles satildeo vapor ou nevoeiro Entre eles o nevoeiro eacute o que passa de ar para aacutegua e o vapor eacute o que passa de aacutegua para ar daiacute que todos os cheiros sejam mais finos do que a aacutegua e mais espessos do que o ar Isso eacute evidente quando um obstaacuteculo se interpotildee agrave respiraccedilatildeo de algueacutem e outra pessoa lhe aspira o sopro respiratoacuterio com forccedila Nenhum cheiro eacute filtrado juntamente com ele e passa somente um sopro respiratoacuterio livre de cheiros Deste modo as suas variedades formam dois grupos desprovidos de nome visto que natildeo advecircm de uma determinada quantidade de espeacutecies simples entatildeo agraves uacutenicas duas que com justiccedila satildeo manifestas chamemos-lhes ldquoapraziacutevelrdquo e ldquodesagradaacutevelrdquo uma exaspera e constringe toda a cavidade que em noacutes estaacute situada entre a cabeccedila e o umbigo a outra amacia esta zona e devolve-lhe alegremente o seu estado natural

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Analisemos agora a terceira parte sensiacutevel que haacute em noacutes a que diz respeito agrave audiccedilatildeo Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressotildees que lhe dizem respeito Estabeleccedilamos que de um modo geral o som eacute uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos ceacuterebro e sangue ateacute agrave alma enquanto que a audiccedilatildeo eacute o movimento dessa pancada que comeccedila na cabeccedila e termina na regiatildeo do fiacutegado Quando o movimento eacute raacutepido o som eacute agudo quando eacute mais lento o som eacute mais grave222 se o movimento for constante o som eacute uniforme e suave no caso contraacuterio seraacute aacutespero Se o movimento for possante o som seraacute amplo caso contraacuterio seraacute breve No que trata agrave harmonia entre os sons eacute inevitaacutevel que falemos dela em discursos posteriores223

Resta-nos ainda um quarto geacutenero de sensaccedilatildeo que eacute forccediloso que determinemos pois envolve em si mesmo um grande nuacutemero de variedades a todas elas chamaacutemos ldquocoresrdquo Trata-se de uma chama que emana de todos os corpos cujas partiacuteculas tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de visatildeo de modo a produzir a sensaccedilatildeo nos discursos anteriores dissemos algo sobre as causas da origem da visatildeo224 No que respeita agraves cores eis a explicaccedilatildeo que estaacute mais de acordo com a verosimilhanccedila e que parece ser adequada para expor detalhadamente As partiacuteculas que vecircm de outros corpos e chocam com o raio de visatildeo satildeo por vezes mais pequenas por vezes maiores e por outras tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de

222 Princiacutepio atribuiacutedo a Arquitas de Tarento (DK 47B1)223 Cf infra 79e-80c224 Cf supra 45b-46c

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visatildeo As que satildeo do mesmo tamanho satildeo insensiacuteveis e a essas chamamos-lhe ldquotransparentesrdquo mas as maiores que associam o raio de visatildeo e as mais pequenas que o dissociam satildeo irmatildes das que parecem quentes e frias agrave carne e amargas agrave liacutengua assim chamamos-lhes ldquoacresrdquo porque aquecem Quanto ao branco e ao preto satildeo impressotildees semelhantes agravequelas mas satildeo geradas noutro oacutergatildeo motivo pelo qual aparecem de um modo diferente Eis o modo como devemos nomeaacute-las o ldquobrancordquo eacute o que dilata o raio visual e o ldquopretordquo eacute o que faz o contraacuterio Quando se trata de um movimento mais pungente e de um outro geacutenero de fogo que chocam com o raio de visatildeo e o dissociam ateacute aos olhos irrompendo com violecircncia pelas entradas dos olhos dissolvendo-as fazem correr delas essa torrente de aacutegua e fogo a que chamamos ldquolaacutegrimasrdquo Quando este movimento que eacute proacuteprio fogo se encontra com o fogo que vem no sentido oposto um deles salta como um relacircmpago e o outro entra e extingue-se entre a humidade gerando-se neste alvoroccedilo todo o tipo de cores a esta impressatildeo chamamos ldquoofuscaccedilatildeordquo e agravequilo que a produz damos os nomes ldquobrilhanterdquo e ldquoresplandecenterdquo Poreacutem quando o geacutenero de fogo intermeacutedio entre estes dois chega agrave parte huacutemida dos olhos e se mistura com ela natildeo eacute resplandecente em virtude de a humidade se misturar com o claratildeo do fogo produz-se uma cor sanguiacutenea a que damos o nome ldquoencarnadordquo Misturando o encarnado com o brilhante e o branco gera-se o amarelo em que proporccedilatildeo satildeo misturados natildeo seria prudente explicaacute-lo mesmo que algueacutem soubesse pois a partir deles

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natildeo seria possiacutevel expressar razoavelmente nem uma necessidade nem um discurso verosiacutemil O encarnado misturado com o preto e o branco daacute puacuterpura ou bistre quando esta mistura eacute queimada e lhe eacute acrescentado mais preto O fulvo gera-se com a mistura de amarelo e cinzento o cinzento com a mistura de branco e preto e o ocre de branco misturado com amarelo Quando se combina branco com brilhante e se mergulha esta mistura em preto carregado produz-se o azul-escuro o azul-escuro misturado com branco daacute azul-claro e o fulvo misturado com preto daacute verde225

Quanto agraves restantes cores eacute relativamente evidente a partir destes exemplos a que misturas se devem assemelhar de modo a salvaguardar a narrativa verosiacutemil Mas se algueacutem quiser examinaacute-las por meio de um teste praacutetico estaria a ignorar a distinccedilatildeo entre a natureza humana e a divina porque enquanto um deus eacute suficientemente conhecedor e ao mesmo tempo capaz226 de fazer a mistura de muitas coisas em conjunto numa soacute e novamente de dissolver o que eacute uno em muacuteltiplas coisas nenhum homem eacute neste momento nem alguma vez seraacute capaz de fazer qualquer das duas operaccedilotildees

Uma vez criadas todas estas coisas deste modo e de acordo com a necessidade o demiurgo do que eacute mais belo e melhor colocou-as como acessoacuterias naquilo que eacute gerado de modo a engendrar o deus auto-suficiente e mais perfeito servindo-se a esse respeito das causas

225 Sobre as relaccedilotildees entre estas e outras cores vide Teofrasto Histoacuteria das Plantas 625

226 hikanocircs epistamenos ama kai dynatos

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instrumentais mas foi ele proacuteprio que forjou o bom funcionamento em tudo o que eacute deveniente Por isso eacute necessaacuterio distinguir duas espeacutecies de causas a necessaacuteria e a divina E eacute a divina que devemos procurar em tudo com vista agrave obtenccedilatildeo de uma vida feliz na medida em que a nossa natureza o admita quanto agrave necessaacuteria eacute em funccedilatildeo da divina que a procuramos tendo em mente que sem as causas necessaacuterias natildeo nos podemos ocupar das proacuteprias causas divinas as uacutenicas com que nos preocupamos nem apreendecirc-las nem participar delas de qualquer modo

Assim tal como os carpinteiros tecircm a madeira jaacute preparada para trabalhar temos noacutes agora tambeacutem agrave nossa disposiccedilatildeo os geacuteneros das causas jaacute filtrados a partir dos quais eacute forccediloso que teccedilamos o resto do discurso Regressemos por um breve instante de novo ao princiacutepio do discurso e voltemos rapidamente ao ponto a partir do qual aqui chegaacutemos tentemos providenciar uma cabeccedila (como final) agrave nossa narrativa227 que esteja em harmonia com o que dissemos ateacute aqui Eacute que tal como foi dito de princiacutepio228 em virtude de estas coisas estarem desordenadas o deus criou em cada uma delas uma medida que servisse de referecircncia tanto a cada uma em relaccedilatildeo a si mesma como tambeacutem em relaccedilatildeo agraves outras de modo a serem proporcionais Essas proporccedilotildees eram tantas quantas podiam ser e possuiacuteam analogia e proporcionalidade Eacute que ateacute agravequele momento nenhuma delas tomava parte

227 A mesma imagem eacute utilizada no Goacutergias (505c-d) e nas Leis (752a)

228 Cf 30a 53a-b 56c

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na ordem a natildeo ser que fosse por acaso e nenhuma era inteiramente digna de ser chamada do modo que agora satildeo chamadas como ldquofogordquo ldquoaacuteguardquo e qualquer um dos outros Mas tudo isto o deus comeccedilou por organizar e em seguida constituiu o universo a partir delas ndash um ser-vivo uacutenico que conteacutem em si mesmo todos os outros seres-vivos mortais e imortais E ele mesmo se tornou demiurgo dos seres divinos enquanto que atribuiu o encargo de fabricar os mortais agravequeles que tinham sido gerados por si Estes imitando-o depois de terem recebido o princiacutepio imortal da alma tornearam para ele um corpo mortal a que deram como veiacuteculo todo o corpo e nele construiacuteram uma outra forma de alma mortal que conteacutem em si mesma impressotildees terriacuteveis e inevitaacuteveis primeiro o prazer o maior engodo do mal em seguida as dores que fogem do bem e ainda a audaacutecia e o temor dois conselheiros insensatos a paixatildeo difiacutecil de apaziguar e a esperanccedila que induz em erro Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade229

Por este motivo temendo conspurcar a parte divina o que natildeo era de todo inevitaacutevel estabeleceram a parte mortal numa outra morada do corpo separada daquela e construiacuteram um istmo e um limite entre

229 Tal como Brisson (2001 p 266 n 599) cremos que seraacute este o sentido na medida em que a estrutura humana foi formada com uma parte de Necessidade que apesar de irracional se revela essencial agrave sua sobrevivecircncia neste caso trata-se do desejo amoroso que potencia a procriaccedilatildeo e garante a perenidade da espeacutecie

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a cabeccedila e o peito ao estabelecerem no meio deles o pescoccedilo para que fosse um separador No peito tambeacutem chamado toacuterax sediaram a parte mortal da alma Visto que uma parte dela eacute por natureza mais forte e outra mais fraca construiacuteram uma divisoacuteria na cavidade do toacuterax (70a) como se delimitam os aposentos das mulheres separados dos dos homens Entre elas puseram o diafragma a servir de barreira Assim estabeleceram a parte da alma que participa da coragem e do fervor que eacute adepta da vitoacuteria230 mais perto da cabeccedila entre o diafragma e o pescoccedilo para que escutasse a razatildeo231 e em conjunto com ela refreasse pela forccedila a espeacutecie dos desejos sempre que estes natildeo quisessem de modo algum obedecer prontamente agraves ordens e aos decretos da cidadela do alto Quanto ao coraccedilatildeo o entroncamento dos vasos sanguiacuteneos e a fonte do sangue que circula com energia por todos os membros estabeleceram-no na morada dos guardiotildees para que quando o sentimento de coacutelera fervilhasse por a razatildeo anunciar que uma acccedilatildeo injusta a partir de causas exteriores ou que alguma se prepara a partir do iacutentimo causada pelos desejos tudo aquilo que no corpo haacute de sensiacutevel apreendesse imediatamente atraveacutes de todos os canais estreitos as advertecircncias e ameaccedilas estivesse atento obedecesse em absoluto e desta forma permitisse que a parte mais nobre prevalecesse sobre tudo No que respeita ao bater do coraccedilatildeo perante a expectativa de perigos e o despertar de paixotildees jaacute que sabiam de antematildeo que era por causa

230 Trata-se do thymos a parte passional da alma231 logos

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do fogo que toda esta dilataccedilatildeo se produzia nas pessoas encolerizadas os deuses engendraram um reforccedilo implantando a forma do pulmatildeo que primeiro que tudo eacute mole e exangue e por outro lado tem no seu interior cavidades perfuradas como as de uma esponja para que ao receberem o ar e as bebidas232 arrefecessem o coraccedilatildeo e o dotassem de focirclego e acalmia quando aquece Por isso talharam um canal desde a traqueia ateacute ao pulmatildeo e estabeleceram-no em volta do coraccedilatildeo como uma almofada para que quando a paixatildeo se desencadeasse dentro dele ressaltasse contra algo que amortece e arrefece para que se esforccedilasse menos e juntamente com as paixotildees pudesse submeter-se mais facilmente agrave razatildeo233

Quanto agrave parte da alma que deseja comida e bebida e tudo aquilo de que o corpo tem necessidade por natureza essa parte eles estabeleceram entre o diafragma e o limite do umbigo fabricando em toda esta regiatildeo uma espeacutecie de manjedoura para o sustento do corpo Foi nesse lugar que aprisionaram esta parte da alma como se fosse uma criatura selvagem234 mas que era necessaacuterio alimentar para que no futuro pudesse existir uma espeacutecie mortal De modo a que estivesse sempre situada junto agrave manjedoura e estabelecida bem mais longe do centro de decisotildees provocando nele o menos possiacutevel de distuacuterbios e clamores e a parte

232 Note-se que o sistema digestivo descrito por Timeu prevecirc que os alimentos e os liacutequidos ingeridos passem pelos pulmotildees

233 logos234 Sobre a necessidade de aprisionar a alma vide Repuacuteblica

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mais poderosa pudesse deliberar com tranquilidade sobre tudo o que respeita ao conjunto e a cada parte atribuiacuteram-lhe esta arrumaccedilatildeo espacial Estavam conscientes de que ela natildeo conseguia compreender a razatildeo e se de algum modo apreendesse alguma das sensaccedilotildees natildeo estaria na sua natureza a capacidade de perceber algo que pertencesse agrave razatildeo em vez disso de noite e de dia seria extremamente influenciada por representaccedilotildees e simulacros235 De acordo com isto um deus delineou um plano conforme agrave sua intenccedilatildeo constituiu a espeacutecie do fiacutegado e estabeleceu-o na morada desta parte da alma Fabricou-o espesso liso e brilhante e contendo doce e amargor para que a potecircncia das noccedilotildees ao transportaacute-las do intelecto ateacute ele como num espelho que recebe impressotildees e fornece reflexos a quem o contemplar o atemorizasse ao trazer-lhe ameaccedilas terriacuteveis e fazendo uso da sua parte congeacutenere que tem amargor espalhasse o amargo por todo ele e fizesse aparecer as cores da biacutelis contraindo-o ateacute se fazer aacutespero e todo rugoso vergando e contraindo o lobo a partir da posiccedilatildeo correcta e obstruindo e fechando a vesiacutecula e as entradas de modo a provocar dores e naacuteuseas Em sentido oposto quando algum movimento inspiratoacuterio reflecte do pensamento236 simulacros de suavidade converte o amargor em tranquilidade pois esse movimento natildeo quer ser anexado a uma natureza contraacuteria agrave sua Em vez disso com recurso agrave doccedilura que estaacute por natureza presente no fiacutegado corrige tudo

235 hypo de eidocirclocircn kai phantasmatocircn236 dianoia

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para ficar correcto liso e livre tornando agradaacutevel e de bom humor a parte da alma que estaacute estabelecida junto do fiacutegado passando a noite de forma tranquila e fazendo uso da divinaccedilatildeo durante o sono dado que natildeo participa da razatildeo nem do pensamento237 Aqueles que nos constituiacuteram ao lembrarem-se da ordem do seu pai que lhes tinha mandado fazer o geacutenero mortal da melhor forma possiacutevel dentro das suas capacidades rectificaram as suas deficiecircncias deste modo (com o estabelecimento da divinaccedilatildeo) para que de algum modo ele tivesse ligaccedilatildeo agrave verdade Eis um indiacutecio suficiente de que o deus concedeu a divinaccedilatildeo agrave insensatez humana eacute que ningueacutem participa da divinaccedilatildeo inspirada e verdadeira em consciecircncia mas sim quando o seu pensamento238 eacute suspenso durante o sono ou pela doenccedila ou se for adulterado por qualquer tipo de deliacuterio Por outro lado eacute em consciecircncia que o Homem deve compreender o que foi dito ndash depois de o trazer de novo agrave memoacuteria ndash em sonhos ou em estado de vigiacutelia sob o efeito da natureza da divinaccedilatildeo e do deliacuterio quanto aos simulacros que tenha visto deve por meio da reflexatildeo explicar de que modo e por que motivo cada um deles possa significar algo de mau ou de bom quer pertenccedila ao futuro ao passado ou ao presente Enquanto aquele que estaacute possuiacutedo se mantiver neste estado natildeo cumpriraacute a tarefa de distinguir por si proacuteprio o que lhe foi dado a conhecer ou a ouvir pois estaacute certo o velho dito ldquoPertence somente ao saacutebio cumprir a sua tarefa de se conhecer a si mesmordquo239 Daiacute

237 logou kai phronecircseocircs ou meteiche238 phronecircsis239 Eacute logo no Caacutermides (161b 164d) que eacute referida a

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que a norma tenha estabelecido que o geacutenero dos profetas seja inteacuterprete das divinaccedilotildees inspiradas Haacute quem lhes chame ldquoadivinhosrdquo ignorando por completo que eles interpretam revelaccedilotildees e apariccedilotildees por meio de enigmas e de modo algum satildeo adivinhos pelo que seraacute mais justo chamar-lhes ldquoprofetas de assuntos divinatoacuteriosrdquo

Eacute por isto que a natureza do fiacutegado eacute assim e foi graccedilas agrave divinaccedilatildeo que lhe foi atribuiacutedo este lugar que descrevemos Aleacutem disso eacute ainda enquanto cada criatura estaacute viva que este oacutergatildeo fornece os sinais mais visiacuteveis jaacute que depois de lhe ter sido privada a vida torna-se cego e os sinais que fornece satildeo muito obscuros para terem uma significaccedilatildeo evidente Mas a estrutura do oacutergatildeo vizinho240 e o facto de o lugar desta entranha ser agrave esquerda eacute em favor do fiacutegado para o manter sempre brilhante e limpo como se fosse um trapo de limpar o espelho que estaacute sempre agrave matildeo e disponiacutevel para ser utilizado Por isso sempre que por causa de uma doenccedila do corpo se geram impurezas junto do fiacutegado a porosidade do baccedilo depura-as e absorve-as todas pois eacute feito de uma trama permeaacutevel e exangue Daiacute que quando fica preenchido por aquilo que filtra aumenta de tamanho e fica ulcerado poreacutem quando o corpo eacute purgado diminui de tamanho e retoma a sua forma original

Portanto no que diz respeito agrave alma se noacutes falaacutemos com verdade sobre a sua parte mortal sobre a divina de que modo com a colaboraccedilatildeo de quecirc e por que razatildeo obrigatoriedade de o filoacutesofo procurar cumprir a maacutexima deacutelfica ldquoconhece-te a ti mesmordquo

240 O baccedilo

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foi estabelecida separadamente somente o poderemos afirmar com certeza depois de um deus o confirmar Que o que noacutes dissemos eacute verosiacutemil devemos arriscar a declaraacute-lo agora e mais ainda quando reflectirmos sobre essa mateacuteria E declaremo-lo entatildeo

De acordo com os mesmos pressupostos devemos abordar agora o que se segue como foi gerado o resto do corpo Seraacute mais adequado seguir este raciociacutenio em vez de qualquer outro para explicar a sua constituiccedilatildeo Os que constituiacuteram a nossa espeacutecie estavam a par da licenciosidade que haveria em noacutes em relaccedilatildeo agrave bebida e agrave comida e que por causa da gula consumiriacuteamos muito mais do que a medida necessaacuteria Para que natildeo tiveacutessemos uma morte raacutepida por causa das doenccedilas e para que a espeacutecie dos mortais ainda incompleta natildeo acabasse de imediato ndash uma vez previstas estas coisas ndash os deuses estabeleceram o chamado baixo ventre como receptaacuteculo da bebida e da comida supeacuterfluas e enrolaram em volta dele os intestinos para que os alimentos natildeo passassem pelo corpo rapidamente e isso obrigasse a que ele tivesse necessidade de outro alimento tornando-se insaciaacutevel Por causa da gula a espeacutecie humana tornar-se-ia completamente estranha agrave filosofia e agraves Musas e seria desobediente agrave parte mais divina que haacute em noacutes

No que respeita aos ossos agrave carne e agrave natureza deste tipo de elementos orgacircnicos eis o que se passou Para todas as estruturas o ponto de partida foi a geraccedilatildeo da medula De facto os laccedilos da vida desde que a alma estaacute unida ao corpo foram presos a ela e constituiacuteram a raiz da espeacutecie mortal mas a medula em si foi gerada

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a partir de outras substacircncias Com efeito de entre os triacircngulos os primeiros em regularidade e lisura que em virtude da sua precisatildeo eram mais capazes de produzir fogo aacutegua ar e terra o deus escolheu-os separadamente dos outros geacuteneros misturou-os uns com os outros na medida certa concebendo uma mistura de sementes para todo a espeacutecie mortal e produziu a medula a partir deles Em seguida plantou e aprisionou nela os geacuteneros de alma e na sua distribuiccedilatildeo inicial dividiu imediatamente a medula em figuras equivalentes em nuacutemero e qualidade aos das figuras que estava destinado que cada espeacutecie tivesse Depois moldou em forma de ciacuterculo perfeito essa parte da medula a qual semelhante a um terreno lavrado havia de receber a semente divina e chamou-lhe ldquoenceacutefalordquo de tal forma que quando cada ser-vivo estivesse acabado o recipiente que o contivesse seria a cabeccedila Aquilo que era suposto conter o resto da alma (a sua parte mortal) dividiu-o em figuras redondas e ao mesmo tempo alongadas a este conjunto deu o nome ldquomedulardquo e lanccedilando a partir delas os laccedilos de toda a alma como a partir de acircncoras formou em torno dela todo o nosso corpo tendo primeiro construiacutedo agrave volta de todo o conjunto uma protecccedilatildeo feita de osso

Quanto agrave constituiccedilatildeo do osso ela processou-se do seguinte modo depois de ter peneirado terra pura e lisa misturou-a e humedeceu-a com medula em seguida pocirc-la no fogo depois mergulhou-a em aacutegua pocirc-la novamente no fogo e outra vez em aacutegua Repassando-a vaacuterias vezes deste modo num e noutro tornou-a impassiacutevel de ser dissolvida por ambos Foi desta mistura

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que se serviu para tornear uma esfera oacutessea agrave volta da cabeccedila na qual deixou ficar uma saiacuteda estreita Em redor da medula do pescoccedilo e do dorso estendeu as veacutertebras semelhantes a gonzos que moldou a partir da mesma mistura comeccedilando pela cabeccedila e atravessando todo o dorso Cercou toda a semente para deste modo a manter a salvo com uma vedaccedilatildeo peacutetrea onde criou articulaccedilotildees servindo-se das propriedades do Outro que colocou no meio deles em virtude do movimento e da flexibilidade Mas prevendo que a condiccedilatildeo da natureza oacutessea seria mais fragmentaacutevel do que devia ser e muito inflexiacutevel ndash se fosse aquecida e novamente arrefecida gangrenaria rapidamente ndash e que a semente dentro dela se destruiria concebeu deste modo e por estes motivos o geacutenero dos tendotildees e da carne para que unindo todos os membros com os tendotildees que distendem e contraem em torno das veacutertebras o corpo se pudesse dobrar e estender A carne seria uma protecccedilatildeo contra as queimaduras e um obstaacuteculo para o frio e ainda para as quedas semelhante a uma almofada que cede de forma mole e suave ao peso dos corpos Por conter dentro de si proacutepria uma humidade quente que durante o Veratildeo seria exsudada produziria no exterior de todo o corpo uma agradaacutevel frescura e durante o Inverno novamente por meio deste fogo repeliria adequadamente as investidas do frio que o cerca do exterior Tendo isto em consideraccedilatildeo aquele que nos moldou como se trabalhasse a cera fez uma mistura e uma combinaccedilatildeo harmoniosa de aacutegua fogo e terra aos quais acrescentou um fermento composto de

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aacutecido e de sal e constituiu a carne mole e suculenta No que respeita agrave natureza dos tendotildees de osso e

de carne sem fermento misturou-os num soacute composto com propriedades intermeacutedias agravequeles dois servindo-se da cor amarela Daiacute que os tendotildees apresentem a propriedade de serem mais compactos e viscosos do que a carne mas mais moles e huacutemidos do que os ossos Com eles o deus envolveu os ossos e a medula depois de ter unido os ossos uns com os outros aos tendotildees de seguida cobriu todos eles com carne por cima Os ossos que continham mais alma envolveu-os com muito menos carne e os que tinham menos alma dentro de si envolveu-os com muita e mais compacta Junto agraves articulaccedilotildees dos ossos onde a razatildeo241 mostrava que natildeo havia qualquer necessidade de carne ele fez crescer a carne com pouca espessura para que os corpos natildeo se fizessem difiacuteceis de carregar e se tornassem avessos ao movimento pois impediriam as flexotildees e por outro lado para que as carnes abundantes e excessivamente densas compactadas umas com as outras natildeo causassem insensibilidade em virtude da sua firmeza nem fizessem os corpos muito avessos agrave memoacuteria e torpes de pensamento242 Eacute por isso que as coxas as pernas e a zona das ancas os ossos da zona do braccedilo e do antebraccedilo e todos os que em noacutes satildeo desprovidos de articulaccedilatildeo isto eacute todos os ossos que por terem pouca alma na sua medula satildeo vazios de pensamento243 todas estas zonas estatildeo completamente preenchidas de carne Pelo contraacuterio as partes com

241 logos242 dysmnecircmoneutotera kai kocircphotera ta peri tecircn dianoian243 phronecircsis

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pensamento tecircm menos carne ndash excepto quando o deus constituiu alguma parte de carne autoacutenoma por causa dos sentidos como a espeacutecie da liacutengua por exemplo mas na maior parte dos casos passou-se daquele modo Eacute que a natureza gerada da Necessidade e por ela criada de modo algum admite ao mesmo tempo uma estrutura oacutessea compacta muita carne e acuidade sensorial Mais do que todas seria a estrutura que circunda a cabeccedila que teria estes atributos contanto que elas pudessem ocorrer ao mesmo tempo e por outro lado se o geacutenero dos homens tivesse uma cabeccedila coberta de carne e tendotildees ndash isto eacute forte ndash granjearia uma vida duas ou mais vezes maior mais saudaacutevel e mais livre de dores do que agora Nesse momento os demiurgos da nossa geraccedilatildeo ao reflectirem sobre se o geacutenero que estavam para criar havia de ter uma vida mais longa e pior se uma mais breve e melhor e decidiram que por todos os motivos deviam preferir uma vida mais curta que fosse melhor a uma mais longa que seria mais trivial Daiacute que natildeo tenham recobrido a cabeccedila com carne e tendotildees mas sim com um osso fino pois ela natildeo se destinava a fazer qualquer flexatildeo Foi por todas estas razotildees que a cabeccedila aplicada a todos os homens eacute mais proacutepria para sentir e mais dada ao pensamento e por outro lado muito fraacutegil No que respeita aos tendotildees foi deste modo e por estes motivos que o deus os pocircs em ciacuterculo ao fundo da cabeccedila colando-os uniformemente agrave volta do pescoccedilo e lhes uniu as extremidades dos maxilares por baixo da natureza do rosto Quanto aos outros distribuiu-os por todos os membros unindo cada articulaccedilatildeo agrave sua articulaccedilatildeo contiacutegua

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Em relaccedilatildeo agraves propriedades da nossa boca foi com vista ao que eacute necessaacuterio e melhor que aqueles que a apetrecharam a apetrecharam de dentes liacutengua e laacutebios segundo a forma como hoje estaacute disposta concebendo a entrada com vista agrave necessidade e a saiacuteda com vista ao melhor eacute que tudo quanto entra dado ao corpo como alimento diz respeito ao necessaacuterio e o fluxo de palavras que corre para o exterior e auxilia o pensamento244 eacute o mais belo e excelente de todos os fluxos

Natildeo era possiacutevel deixar a cabeccedila calva soacute com o osso por causa das intempeacuteries de cada uma das estaccedilotildees nem por outro lado consentir que ela ficasse oculta por uma massa de carne que a tornaria muda e insensiacutevel Como a natureza do que tem carne natildeo secasse foi separada dela uma grande camada superficial a que agora chamamos pele Esta camada em virtude da humidade que circunda o ceacuterebro uniu-se a si mesma e propagou-se em ciacuterculos ateacute que cobriu a cabeccedila a humidade que irrompia sob as costuras irrigou-a e encerrou a camada no cume da cabeccedila como se tivesse dado um noacute Haacute variadas formas de sutura em funccedilatildeo da acccedilatildeo das oacuterbitas da alma e do alimento essas suturas satildeo em maior nuacutemero quando essas forccedilas se opotildeem muito umas agraves outras e em menor quando se opotildeem menos Atraveacutes do fogo a divindade perfurou toda a pele em ciacuterculos e as secreccedilotildees eram expelidas ao passarem pela pele para o exterior tudo quanto fosse huacutemido e quente em estado puro saiacutea Por outro lado a mistura constituiacuteda pelos mesmos elementos que a pele

244 phronecircsis

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elevou-se pelo movimento e estendeu-se muito para fora pois tinha uma finura igual agrave das perfuraccedilotildees Mas em virtude da sua lentidatildeo foi empurrada novamente do exterior para o interior pelo ar circundante Encheu a pele e ganhou raiacutezes debaixo dela

Foi por causa destes fenoacutemenos que nasceu na pele o geacutenero do cabelo fibroso e congeacutenere da pele mas mais soacutelido e mais denso por causa da compressatildeo provocada pelo arrefecimento esse processo de compressatildeo ocorre quando cada cabelo eacute separado da pele e arrefece Foi deste modo que aquele que nos fez produziu uma cabeccedila cabeluda servindo-se das causas que referimos por considerar que em vez de carne era necessaacuterio haver uma cobertura agrave volta do ceacuterebro (tendo em vista a sua seguranccedila) que fosse leve e capaz de lhe garantir sombra no Veratildeo e abrigo no Inverno sem que se gerasse qualquer obstaacuteculo que impedisse a capacidade sensorial No local agrave volta dos dedos onde se entrecruza o tendatildeo a pele e o osso a mistura destes trecircs quando secou por completo deu origem a uma uacutenica pele dura que reunia todos os outros ndash fabricada com estas causas acessoacuterias mas produzida com o pensamento como causa principal245 e tendo em vista aqueles que viriam a seguir Eacute que aqueles que nos constituiacuteram tinham conhecimento de que um dia as mulheres e os outros animais selvagens seriam gerados a partir dos homens e tambeacutem sabiam que muitas dessas criaturas teriam que se servir das garras para muitos fins daiacute que ao mesmo tempo que eram gerados os homens

245 tecirc de aitiocirctatecirc dianoia eirgasmenon

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eles fizeram um esboccedilo das garras Foi deste modo e por estes motivos que criaram a pele os pecirclos e as unhas nas extremidades dos membros

Logo que todas as partes e todos os membros do ser-vivo mortal ficaram naturalmente combinados seria forccediloso que este tivesse uma vida exposta ao fogo e ao ar Visto que ele seria consumido e desgastado e por causa disso pereceria entatildeo os deuses conceberam um auxiacutelio para ele Criaram uma natureza congeacutenita da humana tendo misturado outras sensaccedilotildees com outras figuras de modo a que resultasse um outro ser Trata-se das aacutervores das plantas e das sementes actualmente educadas entre noacutes e domesticadas pela agricultura poreacutem antigamente existiam somente geacuteneros bravios os quais eram mais velhos do que os dos nossos dias A tudo quanto participe da vida podemos chamar-lhe correctamente ser-vivo segundo parece Poreacutem esta espeacutecie de que falamos participa da terceira forma de alma246 que estaacute estabelecida entre o diafragma e o umbigo como dissemos e nada tem que ver com a opiniatildeo com o raciociacutenio ou com o intelecto mas sim com a sensaccedilatildeo de prazer ou de dor que acompanha os apetites247 De facto manteacutem-se passiva em relaccedilatildeo a tudo rodando ela proacutepria em si mesma e em torno de si mesma248 repelindo o movimento do exterior e fazendo

246 Trata-se da parte apetitiva (epithymia)247 Ao fazer derivar a alma das plantas da terceira forma de

alma Timeu justifica assim o facto de os seres vegetais estarem desprovidos de pensamento ainda que sejam duais

248 Tambeacutem no Fedro (245c-d) eacute sublinhado o movimento da alma em torno de si mesma

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uso do que eacute seu congeacutenere pois a sua geraccedilatildeo natildeo lhe permitiu perceber por natureza nada de si proacutepria nem raciocinar Por isso ainda que tenha vida e natildeo seja nada senatildeo um ser-vivo manteacutem-se estaacutetica e enraizada privada de movimento proacuteprio

Depois de os seres mais poderosos plantarem todos estes geacuteneros como alimento para os mais fracos (noacutes) equiparam o nosso proacuteprio corpo com canais tal como se talham regos nos jardins para que fosse como que irrigado por uma torrente que o inunda Primeiro talharam dois canais escondidos por baixo do ponto onde se juntam a pele e a carne os vasos sanguiacuteneos dorsais249 (que satildeo dois) porque acontece que o corpo eacute duplo tem um lado direito e um esquerdo Lanccedilaram estes vasos sanguiacuteneos ao longo da coluna encerrando entre eles a medula geratriz250 para que se desenvolvesse ao maacuteximo e fluindo em abundacircncia dali para os outros locais a corrente gerada pudesse providenciar uma irrigaccedilatildeo uniforme Em seguida dividiram os vasos sanguiacuteneos agrave volta da cabeccedila e enlaccedilaram as extremidades de modo a ficarem enrolados uns nos outros flectindo os do lado direito para o lado esquerdo do corpo e os do lado esquerdo para o lado direito de modo a que fizessem uma ligaccedilatildeo com a pele entre a cabeccedila e o corpo jaacute que esta natildeo estava envolvida com tendotildees em ciacuterculo no topo e para que todo o corpo distinguisse o efeito das sensaccedilotildees provenientes de cada uma das partes

249 A arteacuteria aorta e a veia cava (inferior e superior)250 Espinal medula

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Logo de seguida os deuses prepararam a irrigaccedilatildeo da forma que se segue perceberemo-la mais facilmente se concordarmos de antematildeo com isto todos os corpos constituiacutedos a partir de partiacuteculas mais pequenas satildeo impermeaacuteveis aos de partiacuteculas maiores e os de partiacuteculas maiores natildeo conseguem ser impermeaacuteveis aos de partiacuteculas mais pequenas de todos os geacuteneros o fogo eacute o que eacute constituiacutedo por partiacuteculas mais pequenas daiacute que atravesse a estrutura da aacutegua da terra e do ar enquanto nada eacute impermeaacutevel a ele Devemos ter em mente que se passa o mesmo com o nosso abdoacutemen251 quando a comida e a bebida caem dentro dele ficam retidos no entanto o sopro respiratoacuterio e o fogo natildeo conseguem pois satildeo constituiacutedos por partes mais pequenas do que as da constituiccedilatildeo do abdoacutemen Portanto o deus serviu-se deles para fazer a irrigaccedilatildeo desde o toacuterax ateacute aos vasos sanguiacuteneos tecendo uma tranccedila de ar e de fogo semelhante a uma nassa252 com dois funis agrave entrada e fez um desses dois bifurcado a partir destes funis estendeu uma espeacutecie de junco em ciacuterculos por toda a tranccedila ateacute agraves extremidades Todo o interior do entranccedilado era constituiacutedo por fogo enquanto que os funis e o invoacutelucro tinham a forma do ar Pegando nele colocou-o da seguinte forma no interior do ser-vivo que moldava Um dos funis largou-o na boca Como esse era o bifurcado esticou uma das ramificaccedilotildees ateacute ao pulmatildeo pela traqueia abaixo e a outra ateacute ao abdoacutemen ao longo da

251 koilia Este termo designa toda a cavidade toraacutexica que inclui os sistemas digestivo e respiratoacuterio

252 Uma espeacutecie de camaroeiro utilizado pelos pescadores para reter o peixe

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traqueia a outra dividiu-a e fez passar cada uma das duas partes em conjunto pelos canais do nariz de tal forma que visto que a segunda natildeo passa pela boca todos os fluxos daquela satildeo cumpridos por esta Quanto ao resto da nassa o invoacutelucro ele fecirc-la crescer agrave volta de toda a cavidade do nosso corpo e fez tudo de forma a que umas vezes todo ele fluiacutesse docemente pelos funis ndash os quais satildeo feitos de ar ndash e outras vezes os funis se esvaziassem Visto que o corpo eacute permeaacutevel fez por outro lado que a tranccedila entrasse por ele e novamente saiacutesse Jaacute os raios de fogo encerrados dentro dele eles seguiriam o ar de um lado para o outro e isto natildeo cessaria enquanto o ser-vivo mortal mantivesse a sua constituiccedilatildeo Foi por isso que aquele que estabeleceu as designaccedilotildees se referiu a isto pondo-lhes os nomes ldquoinspiraccedilatildeordquo e ldquoexpiraccedilatildeordquo Todas estas acccedilotildees e impressotildees foram geradas no nosso corpo para que ele sendo irrigado e refrescado se alimentasse e vivesse Eacute que sempre que a respiraccedilatildeo se dirige de dentro para fora e de fora para dentro o fogo unido ao seu interior segue-a Neste constante vaiveacutem entra pelo abdoacutemen e apropria-se da comida e da bebida dissolve-os dividindo-os em pequenas partes leva-os pelos poros por onde se desloca e despeja-os nos vasos sanguiacuteneos como a aacutegua de uma fonte em canais e faz fluir pelo corpo as torrentes dos vasos sanguiacuteneos como num aqueduto

Vejamos novamente as impressotildees da respiraccedilatildeo e de que causas se serve para ser do modo como eacute agora Passa-se o seguinte quando jaacute natildeo haacute nenhum vazio em que possa entrar alguma das coisas que se movimentam

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e como o sopro respiratoacuterio sai de dentro de noacutes o que se sucede eacute evidente para todos ele natildeo vai para o vazio mas empurra o ar que estaacute proacuteximo de si para fora do seu lugar este ao ser empurrado desloca incessantemente o ar proacuteximo de si e de acordo com esta necessidade todo ele se desloca num movimento circular em direcccedilatildeo ao lugar de onde sai o sopro respiratoacuterio Entra nesse lugar e preenche-o seguindo o sopro respiratoacuterio E tudo isto ocorre em simultacircneo semelhante ao girar de uma roda por natildeo existir qualquer vazio Eacute por isso que a zona do peito e do pulmatildeo quando expele o sopro respiratoacuterio para o exterior fica novamente cheia do ar que circunda o corpo pois este entra atraveacutes da carne porosa e circula dentro dele quando o ar regressa e se dirige para o exterior atraveacutes do corpo forccedila o ar inspirado a entrar pela passagem das narinas e pela boca Devemos estabelecer que a causa deste princiacutepio eacute a seguinte em todos os seres vivos as partes interiores que circundam o sangue e os vasos sanguiacuteneos satildeo as mais quentes como se dentro do proacuteprio corpo houvesse uma fonte de fogo foi isto que comparaacutemos agrave tranccedila da nassa quando foi dito que toda ela estava entretecida com fogo no centro e as outras partes do exterior com ar Portanto devemos admitir que o que eacute quente se dirige por natureza para o exterior em direcccedilatildeo ao lugar de que eacute congeacutenere Como haacute duas saiacutedas ndash uma atraveacutes do corpo para o exterior outra atraveacutes das boca e das narinas ndash quando corre para uma empurra o ar em ciacuterculos na outra o ar empurrado em ciacuterculos choca contra o fogo e eacute aquecido o que sai eacute arrefecido Agrave medida que se daacute o intercacircmbio de calor

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e o ar que transita pela outra saiacuteda fica mais quente este por ser mais quente eacute o que estaacute mais inclinado a voltar agravequela saiacuteda movimentando-se por natureza na sua direcccedilatildeo empurra em ciacuterculos o ar que vai para a outra Por receber sempre os mesmos impulsos e reagir sempre da mesma maneira ao oscilar de um lado para o outro e ao produzir este movimento circular provoca por meio desta duplicidade a formaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo e expiraccedilatildeo

Devemos em igual medida procurar tambeacutem a explicaccedilatildeo para os efeitos relacionados com as ventosas medicinais253 com a degluticcedilatildeo e com os projeacutecteis ndash quer os que satildeo lanccedilados para o ar quer os que satildeo lanccedilados para a terra ndash e tambeacutem de todos os sons raacutepidos ou lentos que nos aparecem como agudos e graves os quais recebemos como estando desprovidos de harmonia por causa da dissemelhanccedila do movimento que geram em noacutes ou como sendo harmoniosos em virtude da semelhanccedila De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento Contudo quando os apanham natildeo lhes incutem um outro movimento que os transtorne Ao ajustar a origem do movimento mais lento e o termo do mais raacutepido quando este estaacute a abrandar na altura em que atingiu a semelhanccedila o deus misturou o agudo e o grave em conjunto numa

253 Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1004D-1006D) fornece uma explicaccedilatildeo pormenorizada deste meacutetodo terapecircutico

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soacute impressatildeo daiacute que cause prazer aos insensatos e boa-disposiccedilatildeo aos intelectuais254 por representar a harmonia divina em movimentos mortais

O mesmo se passa com todos os fluxos de aacutegua a queda de raios as maravilhas da atracccedilatildeo do acircmbar e da pedra de Heacuteracles255 A atracccedilatildeo natildeo interveacutem de qualquer modo em nenhum de todos estes objectos mas seraacute evidente para quem os investigar adequadamente que eacute por causa destes acidentes (em virtude de natildeo existir o vazio e de eles se empurrarem em ciacuterculos entre si por vezes separando-se e por vezes combinando-se trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes eacute proacuteprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenoacutemenos admiraacuteveis

Tambeacutem o processo de respiraccedilatildeo a partir de onde este discurso comeccedilou eacute gerado de acordo com estes pressupostos e pelas mesmas causas como foi dito em discursos anteriores256 O fogo desfaz os alimentos e eacute elevado dentro de noacutes ao acompanhar o sopro respiratoacuterio e por meio dessa oscilaccedilatildeo enche os vasos sanguiacuteneos desde o abdoacutemen irrigando-os com o que nele desfez eacute por isto que em todos os seres-vivos a corrente de alimentos circula deste modo por todo o corpo Estas partiacuteculas acabadas de ser cortadas das suas congeacuteneres umas de frutas outras de vegetais que o deus plantou para noacutes com esta finalidade ndash ser alimento

254 Este duplo efeito da muacutesica em funccedilatildeo da natureza do ouvinte fora jaacute abordado em 47d

255 Magnetite Esta concepccedilatildeo eacute tambeacutem atribuiacuteda a Empeacutedocles (DK 31A89)

256 Cf supra 79a-e

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ndash assumem cores variadas por terem sido misturadas conjuntamente poreacutem o encarnado eacute a cor que mais as envolve pois consiste na aparecircncia produzida no liacutequido pelo corte do fogo Daiacute que o fluido que corre pelo nosso corpo ndash a que chamamos ldquosanguerdquo e que eacute o alimento da carne e da totalidade do corpo graccedilas ao qual cada parte irrigada enche o siacutetio que se esvazia ndash tenha a cor e o aspecto que descrevemos O mecanismo de enchimento e esvaziamento eacute gerado tal como o movimento de todo o universo foi gerado segundo o qual tudo o que eacute seu congeacutenere se movimenta em direcccedilatildeo a si proacuteprio Aquilo que nos rodeia no exterior dissolve-nos e decompotildee-nos incessantemente remetendo cada espeacutecie para aquilo que lhe eacute aparentado mas as partiacuteculas de sangue fragmentadas dentro de noacutes e envolvidas pela estrutura de cada um dos seres-vivos como por um ceacuteu satildeo obrigadas a imitar o movimento do universo como cada uma das partiacuteculas divididas dentro de noacutes se dirige ao que eacute nosso congeacutenere o vazio deixado eacute novamente preenchido Quando desprendem mais do que recebem todos os seres perecem mas quando desprendem menos crescem No tempo em que toda a estrutura do ser-vivo eacute jovem quando os seus triacircngulos satildeo novos como acabados de acabados de sair da oficina257 mantecircm-se resistentes e coesos mutuamente embora todo o corpo seja uma composiccedilatildeo delicada visto que foi acabada de gerar a partir da medula e alimenta-se de leite Quanto aos triacircngulos que envolve em si mesma e que provecircm do exterior (aqueles de que se hatildeo-de formar o alimento

257 Metaacutefora importada de Aristoacutefanes (Tesmofoacuterias 52)

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e a bebida) por serem mais velhos e mais fraacutegeis do que os triacircngulos dela domina-os e corta-os com os seus que satildeo novos e o ser-vivo faz-se maior por ser alimentado por muitas substacircncias semelhantes258 Mas quando o sustentaacuteculo dos triacircngulos relaxa em virtude de eles terem disputado muitos confrontos durante muito tempo e contra muitos inimigos eles jaacute natildeo conseguem cortar e assimilar nenhum dos triacircngulos do alimento que entram mas pelo contraacuterio os seus satildeo facilmente divididos pelos que entram do exterior ndash todo o ser-vivo perece ao ser deste modo dominado e a esta impressatildeo chamamos ldquovelhicerdquo Por fim quando os elos dos triacircngulos que estatildeo unidos em torno da medula jaacute natildeo aguentam e satildeo separados pelo esforccedilo desprendem os laccedilos da alma que ao ser libertada de acordo com a natureza desvanece-se de forma apraziacutevel eacute que tudo o que acontece em desacordo com a natureza eacute doloroso mas o que se gera de forma natural eacute agradaacutevel Por isso de acordo com este pressuposto a morte eacute dolorosa e violenta se for causada por ferimentos ou decorrente de doenccedilas e a morte que ocorre na sequecircncia da velhice ndash de que eacute por natureza o culminar ndash eacute a menos penosa e tem mais prazer do que dor

De onde provecircm as doenccedilas isso eacute evidente para todos Visto que o corpo eacute composto de quatro elementos ndash terra fogo aacutegua e ar ndash uma doenccedila eacute gerada pelo excesso ou pela falta (contra a natureza) de algum deles ou por uma mudanccedila de lugar quando um elemento

258 A ideia de que as substacircncias se alimentam daquilo que lhes eacute afim seraacute tambeacutem partilhada por Aristoacuteteles (Sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo 333a36-b16)

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abandona o lugar que lhe corresponde por natureza para ocupar um que lhe eacute estranho ou entatildeo pois acontece que existe mais do que um geacutenero de fogo e de outros elementos quando um deles toma para si mesmo algo que natildeo lhe eacute adequado ndash todos os fenoacutemenos desta natureza provocam distuacuterbios e doenccedilas Quando cada um deles eacute gerado ou deslocado contra a natureza torna-se quente o que outrora fora frio o que eacute seco vai tornar-se huacutemido o que eacute leve torna-se pesado e eles sofrem toda a espeacutecie de mudanccedilas Eacute que segundo dizemos soacute se o mesmo for adicionado ou subtraiacutedo ao mesmo na mesma medida e da mesma maneira segundo a proporccedilatildeo correcta eacute que o mesmo poderaacute ser ele proacuteprio satildeo e saudaacutevel mas aquele que transgredir algum destes limites separando-se ou adicionando-se produziraacute todo o tipo de alteraccedilotildees doenccedilas e destruiccedilotildees incontaacuteveis

Visto que foram constituiacutedas estruturas secundaacuterias de acordo com a natureza haacute uma segunda ordem de consideraccedilotildees a fazer sobre as doenccedilas por aquele que quer percebecirc-las Eacute que a medula o osso a carne e o tendatildeo satildeo compostos a partir daquelas estruturas ndash tambeacutem o sangue embora de um modo diferente foi gerado a partir dos mesmos elementos A maioria das doenccedilas sobreveacutem do modo que foi descrito mas com as mais graves de entre elas as mais difiacuteceis de suportar passa-se o seguinte quando a geacutenese daquelas estruturas sofre uma inflexatildeo em relaccedilatildeo ao que lhe eacute natural elas corrompem-se De acordo com a natureza a carne e os tendotildees satildeo gerados a partir do sangue ndash os

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tendotildees a partir das fibras de natureza idecircntica agrave sua e a carne a partir do coaacutegulo que se forma quando se separa das fibras A partir dos tendotildees e da carne escorre uma substacircncia viscosa e brilhante que cola a carne agrave natureza dos ossos e ao alimentar os ossos que estatildeo em torno da medula faacute-lo crescer enquanto que o geacutenero mais puro mais liso e mais brilhante dos triacircngulos ao ser filtrado pela espessura dos ossos e liquefeito vai pingando dos ossos e irriga a medula Quando cada etapa se processa desta maneira surge em grande parte dos casos a sauacutede mas ocorre a doenccedila quando se passa o contraacuterio Eacute que quando a carne se liquefaz e inversamente expele para os vasos sanguiacuteneos o resultado da dissoluccedilatildeo entatildeo nos vasos sanguiacuteneos fica muito sangue diacutespar pois estaacute multiplamente alterado por cores e azedumes e ainda por propriedades aacutecidas e salinas aleacutem de que conteacutem toda a espeacutecie de biacutelis259 soros e fleumas Depois de todos serem reconstituiacutedos e corrompidos comeccedilam por deteriorar o proacuteprio sangue e sem que eles forneccedilam qualquer alimento ao corpo circulam por todo lado atraveacutes dos vasos sanguiacuteneos sem obedecerem agrave ordem natural das oacuterbitas hostis a si mesmos por natildeo retirarem qualquer proveito de si proacuteprios e inimigos das estruturas do corpo que se mantecircm no lugar que lhes compete as quais por seu turno deterioram e dissolvem

Quando a parte da carne que se vai dissolver eacute muito velha torna-se difiacutecil de assimilar entatildeo eacute enegrecida

259 Haacute dois tipos de biacutelis a branca e a negra (cf infra 82e 83c)

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por um incecircndio prolongado e por ser completamente consumida torna-se amarga e ataca de forma terriacutevel por todo o corpo ndash mesmo aquilo que ainda natildeo foi consumido Por vezes quando a parte amarga eacute reduzida a partes mais pequenas em vez de amargor a cor negra faz-se acompanhar de acidez outras vezes quando o amargor eacute mergulhado no sangue adquire uma cor mais avermelhada e como o negro se mistura com ele adquire a cor biliosa ou ainda a cor amarela mistura-se com o azedume quando a carne nova eacute dissolvida com a chama do fogo E o nome comum a todas as substacircncias desta natureza eacute ldquobiacutelisrdquo atribuiacutedo por alguns meacutedicos ou por algueacutem que eacute capaz de observar muitas coisas dissemelhantes e de identificar entre todas elas um geacutenero uacutenico merecedor de uma designaccedilatildeo comum Quanto a todos os outros fluidos que dizemos serem formas de biacutelis cada um tem uma designaccedilatildeo proacutepria em funccedilatildeo da sua cor No que respeita ao soro eacute brando quando se trata da parte aquosa do sangue mas eacute rude quando se trata da biacutelis negra e aacutecida porque se mistura por meio do calor com uma potecircncia salgada ao que eacute misturado deste modo chama-se ldquofleuma aacutecidardquo Aquilo que combinado com o ar resulta da dissoluccedilatildeo de carne nova e tenra isto eacute quando eacute preenchida por ar e envolvida por liacutequido e quando se constituem bolhas a partir deste processo ndash cada uma delas torna-se invisiacutevel em virtude da sua pequenez mas o conjunto apresenta-se como uma massa visiacutevel que por gerar espuma tem uma cor branca aos nossos olhos ndash dizemos que toda esta dissoluccedilatildeo de carne tenra entretecida com o sopro

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respiratoacuterio eacute fleuma branca A parte aquosa da fleuma constituiacuteda recentemente eacute o suor as laacutegrimas e tudo o mais que os corpos segregam todos os dias para se purificarem Todos eles se tornam agentes causadores de doenccedilas quando o sangue em vez de estar preenchido por comida e bebida de acordo com a natureza recebe uma massa de substacircncias que estatildeo em desacordo com as leis da natureza Mesmo que os vaacuterios tipos de carne sejam desfeitos pelas doenccedilas enquanto as suas fundaccedilotildees aguentarem a gravidade do problema seraacute meacutedia para elas ndash ainda eacute possiacutevel uma recuperaccedilatildeo com facilidade Mas se aquilo que liga a carne aos ossos chegar a adoecer e se ela proacutepria se separar simultaneamente das fibras e dos tendotildees e natildeo alimentar os ossos nem mantiver a ligaccedilatildeo entre a carne e os ossos e de brilhante lisa e viscosa passe a aacutespera salgada e ressequida por um regime prejudicial tudo o que eacute afectado deste modo eacute mais uma vez desagregado sob a carne e os tendotildees Ao separar-se dos ossos a carne eacute arrancada do sustentaacuteculo e deixa os tendotildees nus e cheios de salinidade ela proacutepria remetida novamente para o sangue torna ainda piores as doenccedilas de que falaacutemos anteriormente260

Mesmo que se trate de impressotildees graves para o corpo ainda mais graves satildeo as que se geram numa camada anterior quando o osso que em virtude da espessura da carne natildeo toma ar suficiente e eacute aquecido pelo bolor fica gangrenado natildeo recebe o alimento e segue pelo sentido contraacuterio desfazendo-se ele proacuteprio em alimento eacute remetido para a carne e a carne eacute

260 Cf supra 82e-83a

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remetida para o sangue o que produz doenccedilas todas elas mais severas do que as anteriores O caso mais extremo de todos daacute-se quando a natureza da medula adoece por falta ou excesso de algo o que provoca os maiores e mais poderosos distuacuterbios que podem levar agrave morte dado que toda a natureza do corpo eacute obrigada a fluir em sentido contraacuterio

Haacute uma terceira espeacutecie de doenccedilas que eacute necessaacuterio considerar as quais satildeo geradas a partir de trecircs causas do sopro respiratoacuterio da fleuma e da biacutelis Quando o pulmatildeo que eacute o controlador dos sopros respiratoacuterios no corpo natildeo consegue manter limpas as vias de saiacuteda que estatildeo bloqueadas por secreccedilotildees o sopro respiratoacuterio natildeo chega a certas partes mas chega a outras mais do que o necessaacuterio o que as faz apodrecer por natildeo conseguirem o arrefecimento enquanto que invadindo outros vasos sanguiacuteneos retorcendo-os e destruindo-os dissolve o corpo ateacute ao seu centro ndash laacute onde o diafragma o refreia e intercepta Por este motivo produz-se uma infinidade de distuacuterbios dolorosos muitas vezes acompanhados de uma abundacircncia de suores Frequentemente quando a carne eacute dissolvida forma-se ar dentro do corpo e eacute impossiacutevel levaacute-lo para o exterior o que causa os mesmos tormentos que quando vem do exterior Satildeo maiores quando o ar afecta os tendotildees e os vasos sanguiacuteneos mais proacuteximos e os faz inchar retesando deste modo para traacutes o extensor e os tendotildees contiacuteguos eacute desta tensatildeo e por este motivo que estas doenccedilas foram chamadas ldquoteacutetanordquo e ldquoopistoacutetonordquo261 Satildeo difiacuteceis de tratar e as febres que

261 opisthotonos Trata-se muito provavelmente do espasmo

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nelas tecircm origem satildeo o factor que leva agrave sua extinccedilatildeo A fleuma branca eacute dolorosa quando o ar das bolhas fica retido mas se for exalada para fora do corpo torna-se mais suave embora peje o corpo com erupccedilotildees brancas e crie distuacuterbios congeacuteneres Mas quando estaacute misturada com biacutelis negra e eacute difundida ateacute agraves oacuterbitas na cabeccedila que satildeo as mais divinas potildee-as em desordem quando acontece durante o sono eacute mais suave mas se se instala enquanto se estaacute acordado torna-se mais difiacutecil de nos vermos livres dela Enquanto distuacuterbio da parte divina eacute com toda a justiccedila que se lhe chama ldquosagradardquo262

A fleuma aacutecida e salgada eacute a fonte de todas as doenccedilas que o catarro gera mas em virtude de os lugares para os quais corre serem variados tomam todo o tipo de nomes Sempre que se diz que haacute uma inflamaccedilatildeo no corpo por causa de ele estar a arder e inflamado tudo isso eacute gerado pela biacutelis Quando ela encontra uma via respiratoacuteria para o exterior entra em ebuliccedilatildeo e expele todo o tipo de abcessos mas se ficar encerrada no interior cria muacuteltiplos distuacuterbios inflamatoacuterios e o mais grave ocorre quando ao misturar-se com o sangue puro altera a organizaccedilatildeo natural do geacutenero das fibras as quais estatildeo espalhadas pelo sangue para que este mantenha a relaccedilatildeo correcta entre fluidez e espessura e natildeo escorra

opistoacutetono (arqueamento suacutebito do corpo que faz projectar a cabeccedila e as pernas para traacutes) que consiste num dos sintomas do teacutetano ou de meningite No entanto o contexto parece sugerir que ldquoopistoacutetonordquo designaria a doenccedila em si e natildeo um sintoma

262 Timeu refere-se agrave epilepsia O facto de lhe chamar ldquosagradardquo deve-se a um tratado do Corpus Hippocraticum dedicado a esta doenccedila cujo tiacutetulo (Sobre a Doenccedila Sagrada) e conteuacutedo lhe apontam causas divinas

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pelos poros do corpo em virtude de ser liquefeito pelo calor nem por outro lado se mantenha sempre nos vasos sanguiacuteneos fluindo a custo por se tornar espesso As fibras graccedilas agrave sua constituiccedilatildeo natural preservam este equiliacutebrio mesmo depois de o sangue ter morrido e comeccedilar a arrefecer se juntarmos as fibras umas com as outras tudo o que resta do sangue fica liquefeito mas se deixarmos ficar as fibras como estatildeo rapidamente o sangue coagula com a colaboraccedilatildeo do frio circundante Como as fibras tecircm esta propriedade sobre o sangue a biacutelis (que por natureza tem a sua origem em sangue velho e volta novamente dissolvida da carne para o sangue) quando primeiro entra em estado liacutequido e quente em pequenas quantidades coagula por causa da propriedade das fibras enquanto coagula e arrefece agrave forccedila causa calafrios e arrepios no interior do corpo Mas quando corre em maior quantidade ao dominar as fibras com o calor que traz consigo sacode-as ateacute agrave desordem ao entrar em ebuliccedilatildeo e se for capaz de dominaacute-las por completo penetra na medula e depois de a incendiar desata daiacute os viacutenculos da alma como se fossem as amarras de um barco e solta-a para a liberdade No entanto quando vem em menor quantidade o corpo resiste a ser dissolvido e ela eacute dominada ou eacute dispersa por todo o corpo ou eacute forccedilada pelos vasos sanguiacuteneos a ir para a parte inferior ou para a parte superior do abdoacutemen Eacute entatildeo expulsa do corpo como os exilados de uma cidade em revolta porque causa diarreias e disenterias e todos os distuacuterbios dessa natureza Quando o corpo adoece sobretudo por um excesso de fogo produzem-se

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inflamaccedilotildees e febres constantes por um excesso de ar tem febres quotidianas por um excesso de aacutegua tem febres terccedilatildes pois a aacutegua eacute mais lenta do que o ar e do que o fogo e por um excesso de terra que eacute a quarta mais lenta deles o corpo eacute purgado durante um periacuteodo de tempo de quatro dias e criam-se febres quartatildes que custam muito a desaparecer

Eacute deste modo que se geram os distuacuterbios que afectam o corpo enquanto que os que afectam a alma e que resultam da condiccedilatildeo do corpo ocorrem do modo que se segue Temos que admitir que a doenccedila da alma eacute a demecircncia e haacute dois geacuteneros de demecircncia a loucura e a ignoracircncia A todas a impressotildees que algueacutem sofra e que englobem uma das duas devemos chamar ldquodoenccedilardquo Devemos tambeacutem estabelecer que os prazeres e as dores em excesso satildeo as mais graves das doenccedilas para a alma Eacute que quando um homem estaacute excessivamente contente ou pelo contraacuterio sofre por causa da dor apressando-se a arrebatar inoportunamente algum objecto ou a fugir do outro natildeo eacute capaz de ver nem de ouvir nada correctamente pois estaacute louco e a sua capacidade de participar do raciociacutenio encontra-se reduzida ao miacutenimo Aquele em quem se gera uma semente abundante que corre livremente pela medula como se fosse uma aacutervore com uma carga de frutos superior agrave medida estipulada pela natureza adquire repetidamente muacuteltiplas anguacutestias e muacuteltiplos prazeres nos seus apetites e nos frutos que nascem dessa condiccedilatildeo Torna-se louco durante a maior parte da vida por causa dos prazeres e dores extremos pois tem a alma doente e eacute mantida na

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insensatez por via do corpo ele eacute tido natildeo por doente mas por propositadamente mau263 A verdade eacute que esta licenciosidade em relaccedilatildeo aos prazeres sexuais eacute uma doenccedila da alma que se deve em grande medida a uma soacute substacircncia que por causa da porosidade dos ossos corre pelo corpo e humedece-o De um modo geral natildeo eacute correcto repreender tudo quanto respeita agrave incontinecircncia de prazeres e ao que eacute considerado digno de repreensatildeo como se os maus o fossem propositadamente ningueacutem eacute mau propositadamente pois o mau torna-se mau por causa de alguma disposiccedilatildeo maligna do corpo ou de uma educaccedilatildeo mal dirigida ndash estas satildeo inimigas de todos e acontecem contra a nossa vontade Novamente no que respeita agraves dores a alma adquire do mesmo modo uma grande quantidade de males atraveacutes do corpo Quando as fleumas aacutecidas e salinas e todos os sucos amargos e biliosos que vagueiam pelo corpo natildeo tomam um fluxo respiratoacuterio para o exterior mas ficam agraves voltas no interior se cruzam com o movimento da alma misturando com ela os seus proacuteprios vapores e introduzem na alma distuacuterbios de toda a espeacutecie mais ou menos graves em menor ou maior quantidade Faz-se transportar ateacute agraves trecircs regiotildees da alma e conforme qual delas ataquem pejam tudo de todas as formas e variedades de mau-humor de

263 Esta concepccedilatildeo assenta no famoso postulado platoacutenico segundo o qual a virtude eacute identificada com o conhecimento e inversamente o viacutecio com a ignoracircncia A sua formulaccedilatildeo eacute amplamente discutida um pouco por todo o corpus platoacutenico (Apologia de Soacutecrates 26a Goacutergias 467c-468c Leis 731c 734b 860d Protaacutegoras 345d-e 357c-e 358c-d Sofista 230a)

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desgosto e pejam tudo de audaacutecia de cobardia e ainda de esquecimento e dificuldade em aprender Aleacutem disto quando haacute homens assim mal constituiacutedos pelas cidades as instituiccedilotildees poliacuteticas264 e os discursos produzidos em privado ou em puacuteblico satildeo maus e quando ainda por cima natildeo existem ensinamentos aprendidos por estes homens desde a infacircncia que de nenhum modo curam destes males entatildeo todos os maus os tornaram maus por via de duas coisas completamente alheias agrave sua vontade Entre eles devemos lanccedilar a acusaccedilatildeo muito mais sobre os que concebem do que os que satildeo concebidos muito mais sobre os que educam do que os que satildeo educados Todavia devemos esforccedilar-nos na medida do possiacutevel atraveacutes da educaccedilatildeo e de haacutebitos de aprendizagem a fugir do mal e a alcanccedilar o seu contraacuterio Mas estes assuntos pertencem a outro tipo de discussatildeo265

No entanto eacute adequado proceder a reflexotildees inversas agravequelas por acccedilatildeo de que meios a sauacutede do corpo e do intelecto266 pode ser cuidada e conservada eacute mais justo atermo-nos a um discurso sobre o bem do que sobre o mal Tudo o que eacute bom eacute belo e o que eacute belo natildeo eacute assimeacutetrico267 estabeleccedilamos que um ser-vivo para ter estes atributos teraacute que ser simeacutetrico Mas entre essas simetrias reconhecemos e distinguimos as

264 politeia Sobre esta traduccedilatildeo do termo vide supra n 38265 O paralelo com a degeneraccedilatildeo dos regimes poliacuteticos no Livro

VIII da Repuacuteblica eacute inevitaacutevel266 dianoecircsis Neste contexto natildeo se trata da actividade

intelectiva mas sim e apenas do proacuteprio intelecto como faculdade que tal como o corpo deve ser exercitada e salvaguardada

267 Sobre a necessidade de algo belo ser simeacutetrico vide Filebo 64e-65a Repuacuteblica 402d

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pequenas enquanto que as mais importantes e as mais grandiosas mantemo-las indefinidas No que respeita agrave sauacutede e agrave doenccedila agrave virtude e agrave maldade natildeo haacute simetria ou assimetria maior do que a da proacutepria alma em relaccedilatildeo ao proacuteprio corpo natildeo temos nada disto em mente nem supomos que quando uma estrutura fraacutegil e pequena carrega uma alma forte e em tudo grandiosa e quando os dois satildeo unidos de acordo com a relaccedilatildeo inversa o conjunto do ser-vivo natildeo seraacute belo ndash eacute assimeacutetrico em relaccedilatildeo agraves simetrias principais No entanto quando estaacute na situaccedilatildeo inversa mostra a quem consegue ver a mais bela e mais agradaacutevel de todas as maravilhas Um corpo com as pernas demasiadamente compridas ou com qualquer outro excesso eacute em si mesmo simultaneamente aberrante e assimeacutetrico ao mesmo tempo quando conjuga esforccedilos provoca muitos sofrimentos muitas roturas e quedas em virtude do seu movimento cambaleante o que eacute uma causa de incontaacuteveis males para si proacuteprio

Devemos pensar o mesmo acerca do composto dual a que chamamos ser-vivo porque quando nele a alma por ser mais poderosa do que o corpo se apresenta irasciacutevel sacode-o violentamente e inunda-o todo de doenccedilas por todo o lado e consome-o quando se debruccedila intensamente sobre algum ensinamento ou investigaccedilatildeo quando ela se dedica agrave aprendizagem ou a discussotildees oratoacuterias em puacuteblico ou em privado agita-o e torna-o ardente nas disputas e rivalidades que se geram Ao induzir fluxos engana a maioria dos chamados meacutedicos e faacute-los responsabilizar as causas contraacuterias

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Quando um corpo demasiado grande e demasiado forte para a alma eacute congeminado com uma actividade intelectual268 diminuta e fraacutegil como nos homens existem dois tipos de apetites ndash um de alimento que proveacutem do corpo e outro de pensamento269 que proveacutem da parte mais divina que haacute em noacutes ndash e visto que os movimentos da parte mais poderosa dominam e aumentam o seu poder tornam a alma obtusa avessa agrave aprendizagem e privada de memoacuteria e produzem a pior doenccedila a ignoracircncia270 Haacute uma soacute salvaccedilatildeo para estas duas doenccedilas natildeo movimentar a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma para que defendendo-se um ao outro mantenham equiliacutebrio e sauacutede Por isso o matemaacutetico ou qualquer outra pessoa que se dedique intensamente a uma actividade intelectual271 deve compensaacute-la com o movimento do seu corpo associando-lhe ginaacutestica em sentido inverso aquele que molda o corpo cuidadosamente deve compensar com os movimentos da alma servindo-se da muacutesica e de tudo quanto diz respeito agrave filosofia se espera que se diga com justiccedila e correctamente que eacute simultaneamente belo e bom272 Eacute tambeacutem deste modo que devemos tratar estas partes imitando o padratildeo do universo

268 dianoia269 phronecircsis270 amathia ldquoIgnoracircnciardquo no sentido mais literal de ldquodificuldade

em aprenderrdquo271 dianoia272 Referecircncia ao homem kalos kagathos o estado de perfeiccedilatildeo

educativa discutido e desenvolvido em vaacuterios diaacutelogos (Protaacutegoras 315d Repuacuteblica 376c 396c Teeteto 185e)

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Na verdade o corpo eacute aquecido e arrefecido por aquilo que nele entra e novamente eacute seco e humedecido pelo que vem do exterior Ele eacute afectado por este duplo movimento e por aquilo que dele decorre Assim quando algueacutem abandona o corpo em repouso ao sabor destes movimentos eacute dominado e destruiacutedo por eles Mas se algueacutem imitar aquilo a que chamaacutemos ldquoama e sustento do universordquo273 antes de mais natildeo pode deixar de modo algum o corpo em repouso antes o deve manter sempre em movimento e imprimir-lhe uma certa agitaccedilatildeo constante o que o protegeraacute normalmente dos movimentos interiores e exteriores No entanto se agitarmos na justa medida as propriedades e as partes em desordem no corpo ordenaremos as partes umas em relaccedilatildeo agraves outras seguindo a disposiccedilatildeo que lhes eacute congeacutenere de acordo com o discurso que fizemos anteriormente sobre o universo274 impedindo que o inimigo sendo posto ao lado do inimigo crie guerras e doenccedilas para o corpo antes fazendo com que o amigo posto ao lado do amigo ofereccedila sauacutede O melhor dos movimentos do corpo eacute aquele que eacute produzido por ele proacuteprio e nele proacuteprio ndash pois eacute o movimento de natureza mais proacutexima do pensamento e do do universo ndash e os produzidos por outra coisa satildeo inferiores mas de todos o pior eacute aquele que por meio de causas externas move algumas partes de um corpo em repouso que se manteacutem estaacutetico Eacute por isso que entre as formas de purificaccedilatildeo e reforccedilo do corpo a melhor eacute a que se alcanccedila atraveacutes

273 Cf supra 52d-sqq274 Cf supra 53a-b 69b

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da ginaacutestica A segunda eacute a que se consegue atraveacutes das oscilaccedilotildees ritmadas nas viagens de barco ou noutro meio de transporte que nos mantenha livres de fadiga A terceira forma de movimento uacutetil para quem em certas alturas tenha extrema necessidade mas que natildeo deve ser empregue em nenhuma outra circunstacircncia por quem tenha bom-senso275 trata-se do tratamento meacutedico de purificaccedilatildeo farmacecircutica eacute que natildeo devemos irritar com faacutermacos as doenccedilas que natildeo constituem grandes perigos

Toda a estrutura das doenccedilas se assemelha de algum modo agrave natureza dos seres-vivos Eacute que a constituiccedilatildeo dos seres-vivos em todo o conjunto das espeacutecies tem uma duraccedilatildeo de vida preacute-definida e cada ser-vivo nasce com a existecircncia que lhe foi destinada agrave parte as impressotildees produzidas pela Necessidade pois desde a origem de cada um os triacircngulos conseguem guardar a propriedade que possuem de se manterem constituiacutedos ateacute um determinado tempo altura aleacutem da qual a vida natildeo pode de modo algum prolongar-se Passa-se o mesmo com a constituiccedilatildeo das doenccedilas quando algueacutem potildee fim a uma doenccedila por meio de faacutermacos antes da duraccedilatildeo que lhe foi destinada eacute frequente gerarem-se graves doenccedilas a partir de doenccedilas fracas e um grande nuacutemero a partir de poucas Por isso eacute que eacute necessaacuterio educar todas as manifestaccedilotildees desta natureza atraveacutes de haacutebitos de vida quando se tiver tempo para isso e natildeo se deve irritar um mal coleacuterico com a aplicaccedilatildeo de faacutermacos

275 nous

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Fica assim descrito o que respeita ao conjunto do ser-vivo no que respeita agrave sua parte corporal e ao modo como algueacutem deve governar e ser governado por si mesmo para que tenha uma existecircncia em maacuteximo acordo com a razatildeo276 Quanto agrave parte que governa devemos preparaacute-la para que dentro dos possiacuteveis seja a mais bela e melhor para governar Discorrer com exactidatildeo sobre este assunto seria por si soacute suficiente para dar origem a uma obra exclusiva mas como assunto acessoacuterio no seguimento do que dissemos anteriormente natildeo seria despropositado retomar e concluir o discurso do seguinte modo Como jaacute dissemos muitas vezes277 foram estabelecidas em noacutes trecircs espeacutecies de alma em trecircs regiotildees e aconteceu que cada uma ficou com um movimento Deste modo de acordo com estes pressupostos temos que mencionar do modo mais breve possiacutevel que aquela das espeacutecies que se manteacutem em descanso e em repouso em relaccedilatildeo aos movimentos que lhe satildeo proacuteprios torna-se necessariamente mais fraca enquanto que aquela que se manteacutem em exerciacutecio fica mais forte por isso devemos zelar para que possam manter os movimentos coordenados umas com as outras

Quanto agrave espeacutecie de alma que nos domina eacute necessaacuterio ter em conta o seguinte um deus deu a cada um de noacutes um daimon278 aquilo que dizemos habitar no

276 logos277 Cf supra 69d-sqq278 Toda esta secccedilatildeo faz lembrar o mito escatoloacutegico com que

termina a Repuacuteblica (614b-621b) segundo o qual as almas satildeo redistribuiacutedas pelos novos corpos em funccedilatildeo da orientaccedilatildeo seguida

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alto do nosso corpo ndash e dizemo-lo muito correctamente ndash e nos eleva desde a terra ateacute agravequilo que eacute nosso congeacutenere no ceacuteu porque somos uma planta celeste e natildeo terrena Foi desse lugar onde se engendrou a primeira geacutenese da alma que a parte divina fez depender a nossa cabeccedila que eacute como uma raiz e manteacutem todo o nosso corpo da posiccedilatildeo erecta Assim quando algueacutem se entregou aos apetites e agraves ambiccedilotildees e cultivou excessivamente esses viacutecios eacute inevitaacutevel que todos os seus pensamentos sejam mortais em tudo se tornou mortal tanto quanto possiacutevel e nada nele deixa de ser mortal pois foi essa a natureza que desenvolveu Por outro lado para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos verdadeiros279 exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo eacute absolutamente inevitaacutevel que nele surjam pensamentos imortais e divinos jaacute que se ateve ao que eacute verdadeiro E tanto quanto eacute permitido agrave natureza humana participar da imortalidade dessa condiccedilatildeo natildeo deixe de lado nem a miacutenima parte Ao cuidar sempre da parte divina que conteacutem em si tenha em ordem o daimon que habita dentro de si bem como seja particularmente feliz

Para todos os seres haacute somente um cuidado a ter em atenccedilatildeo atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes satildeo proacuteprios Os movimentos congeacuteneres do que haacute de divino em noacutes satildeo os pensamentos280 e as oacuterbitas do universo Eacute necessaacuterio que cada um os acompanhe corrigindo atraveacutes da nas vidas anteriores

279 peri philomathian kai peri tas alecirctheis phronecircseis280 dianoecircsis

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aprendizagem das harmonias e das oacuterbitas do universo as oacuterbitas destruiacutedas nas nossas cabeccedilas na altura da geraccedilatildeo tornando aquilo que pensa semelhante ao objecto pensado281 de acordo com a natureza original e depois de ter feito esta assimilaccedilatildeo atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro

Parece que agora estaacute perto do fim aquilo que desde o princiacutepio estaacutevamos obrigados a fazer discorrer sobre o universo ateacute agrave geraccedilatildeo do homem282 Quanto aos outros seres vivos no que toca ao modo como foram gerados devemos mencionaacute-lo ainda que de forma breve pois natildeo haacute qualquer necessidade de nos demorarmos sobre esse assunto Se fosse esse o caso poderia algueacutem achar que eu estava a ser mais minucioso em relaccedilatildeo a estes assuntos do que agravequeles

Eis o que iremos dizer Entre os que foram gerados machos todos os que satildeo cobardes e levaram a vida de forma injusta de acordo com o discurso verosiacutemil renascem mulheres na segunda geraccedilatildeo Por esse motivo e nessa altura os deuses conceberam o desejo da copulaccedilatildeo constituindo dentro de noacutes e dentro das mulheres um ser-vivo animado e criaram cada um deles do seguinte modo A via de saiacuteda da bebida onde o liacutequido chega depois passar pelo pulmatildeo e pelos rins ateacute agrave bexiga que ao ser pressionado pelo sopro respiratoacuterio283 ela recebe e expele juntaram-na por meio de uma perfuraccedilatildeo agrave medula ndash a que nos discursos anteriores chamaacutemos

281 tocirc katanooumenocirc to katanooun exomoiocircsai282 Cf supra 27a283 pneuma

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semente284 ndash que da cabeccedila desce ateacute ao pescoccedilo e passa pela espinha A medula que eacute dotada de alma e recebe respiraccedilatildeo ao criar no oacutergatildeo por onde se ventila um apetite vital de ejaculaccedilatildeo engendra o desejo amoroso criador Eacute por isso que a natureza das partes iacutentimas dos homens eacute desobediente e autoacutenoma semelhante a um ser-vivo desobediente da razatildeo285 e empreende dominaacute-lo por meio destes apetites acutilantes Pelas mesmas razotildees aquilo a que nas mulheres se chama ldquomatrizrdquo ou ldquouacuteterordquo um ser-vivo aacutevido de criaccedilatildeo quando estaacute infrutiacutefero durante muito tempo aleacutem da eacutepoca torna-se irritado ndash um estado em que sofre terrivelmente Em virtude de vaguear por todo o lado no corpo e bloquear as vias de saiacuteda do sopro respiratoacuterio natildeo o deixando respirar atira-o para extremas dificuldades e provoca-lhe outras doenccedilas de toda a espeacutecie ateacute que o apetite e o desejo amoroso de cada um deles se reuacutenam para colherem o fruto como de uma aacutervore e semearem na matriz como num campo lavrado os seres-vivos invisiacuteveis (por causa da sua extrema pequenez) e ainda informes os quais depois separam e alimentam dentro de si tornando-os grandes depois disto datildeo-nos agrave luz e completam a geraccedilatildeo dos seres-vivos

Assim nasceram as mulheres e todas as fecircmeas Quanto agrave raccedila das aves eacute produzida de uma forma diferente pois tem por natureza penas em vez de pecirclos a partir de homens sem maldade e leves conhecedores dos fenoacutemenos celestes mas que na sua ingenuidade

284 sperma Cf supra 74a 77d 86c-d285 logos

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acreditam que as evidecircncias mais seguras sobre estes assuntos satildeo as fornecidas pela visatildeo Quanto agrave espeacutecie dos animais terrestres e das feras ela gera-se daqueles que natildeo fazem uso da filosofia nem prestam qualquer atenccedilatildeo agrave natureza do que diz respeito ao ceacuteu por jamais se servirem das oacuterbitas que tecircm dentro da cabeccedila mas seguem os conselhos das partes da alma que estatildeo em torno do peito Por causa destes haacutebitos os seus membros anteriores e as suas cabeccedilas foram arrastados em direcccedilatildeo agrave terra para se fixarem naquilo de que satildeo congeacuteneres Tecircm o topo da cabeccedila alongado e multiforme em funccedilatildeo do modo como as oacuterbitas de cada um foram esmagadas pela preguiccedila (92a)O seu geacutenero foi criado com quatro ou mais patas pelo seguinte motivo o deus apocircs mais suportes aos mais irracionais porque iriam ser mais arrastados para a terra Aos mais irracionais de entre eles e aos que tecircm o corpo completamente estendido pela terra visto natildeo terem qualquer necessidade de patas engendraram-nos privados de patas e a rastejar sobre a terra (92b) A quarta espeacutecie a que estaacute na aacutegua foi gerada a partir daqueles que eram mais desprovidos de intelecto e ignorantes aqueles que os tornaram a moldar nem sequer os acharam dignos de respirar ar puro porque graccedilas aos erros tinham a alma completamente conspurcada pelo que em vez de uma respiraccedilatildeo de ar leve e puro obrigaram-nos a respirar um ar turvo e pesado na aacutegua Por isso se gerou a raccedila dos peixes e de todos os crustaacuteceos que vivem na aacutegua como pena pelo grau de ignoracircncia a que desceram coube-lhes a mais baixa morada Eacute de acordo com todos estes pressupostos

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que outrora e agora os seres-vivos se transformam uns nos outros de acordo com o facto de perderem ou ganharem em intelecto ou em demecircncia

Agora declaremos que o nosso discurso sobre o universo chegou ao fim tendo recebido seres-vivos mortais e imortais ndash ficando deste modo preenchido ndash assim foi gerado o mundo como um ser-vivo visiacutevel que engloba todas as coisas visiacuteveis deus sensiacutevel imagem do inteligiacutevel286 o mais grandioso o melhor o mais belo e mais perfeito o ceacuteu que eacute uacutenico e unigeacutenito

286 eikocircn tou noecirctou theos aisthecirctos

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Timeu Como estou feliz oacute Soacutecrates agora que termino com regozijo a viagem do meu discurso tal como se descansasse de uma longa caminhada1 Ao deus que foi gerado outrora na realidade e agora mesmo em palavras2 eu rogo que de entre aquilo que dissemos garanta a perenidade do que foi mencionado correctamente mas se em relaccedilatildeo a algum assunto proferimos inadvertidamente algo fora de tom que nos aplique a pena que seja adequada Ora a pena acertada para quem daacute uma nota em falso eacute entrar no tom portanto para que exponhamos correctamente os discursos relativos ao que resta dizer sobre a geraccedilatildeo dos deuses rogamos-lhe que nos forneccedila o remeacutedio mais

1 A metaacutefora do discurso como viagem eacute bastante recorrente em Platatildeo (eg Filebo 14a Leis 645a)

2 Trata-se do mundo sensiacutevel que por diversas vezes eacute chamado ldquodeusrdquo (34a-b 68e 92c) A oposiccedilatildeo ldquona realidadeem palavrasrdquo e ldquooutroraagorardquo acentua os planos absolutamente distintos em que se encontram os dois ldquofabricadoresrdquo em causa o demiurgo gerou (literalmente) o mundo num tempo anterior ao humano e natildeo cronoloacutegico ao passo que Timeu o reconstituiu em palavras obedecendo a um ldquoagorardquo cronoloacutegico e diegeacutetico

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perfeito e excelente de entre os remeacutedios ndash o saber Feitas as preces entreguemos o discurso seguinte a Criacutetias de acordo com o combinado3

Criacutetias E eu aceito-o oacute Timeu mas tal como tambeacutem tu o abordaste no iniacutecio quando pediste toleracircncia4 porque estavas prestes a falar sobre assuntos de grande importacircncia igualmente eu neste momento apelo a isso mesmo pois considero-me merecedor de obter ainda mais toleracircncia em virtude dos assuntos sobre os quais estou prestes a falar Com efeito tenho noccedilatildeo de que o pedido que vos vou dirigir eacute bastante ambicioso e mais indelicado do que eacute devido mas ainda assim tenho que dizecirc-lo Quanto ao que foi referido por ti quem no seu juiacutezo perfeito ousaria dizer que isso natildeo eacute acertado Mas que aquilo de que eu vou falar carece de mais toleracircncia por ser mais problemaacutetico isso terei que explicar de uma maneira ou de outra

Na verdade oacute Timeu sempre que dizemos aos homens algo sobre os deuses eacute mais faacutecil parecer falar adequadamente do que quando dizemos a noacutes homens algo sobre os mortais Eacute que a inexperiecircncia e a ignoracircncia extremas dos ouvintes em relaccedilatildeo aos assuntos a tratar proporcionam uma destreza acrescida agravequele que estaacute prestes a dizer algo sobre eles no que diz respeito aos deuses sabemos que eacute essa a nossa condiccedilatildeo

3 O programa dos discursos fora estabelecido logo no iniacutecio do Timeu (27a-b) Eacute provaacutevel que se trate dos astros como sugere Brisson (2001 p 380 n 8) mas natildeo existem quaisquer dados que confirmem essa suspeita

4 Cf Timeu 29c-d

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Mas para que explique com maior clareza aquilo que digo acompanhem-me no seguinte raciociacutenio Aquilo que todos noacutes pronunciamos eacute necessariamente uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo5 No que trata agrave reproduccedilatildeo de imagens de corpos humanos ou divinos produzida pelos pintores apercebemo-nos de que no apuramento da facilidade ou dificuldade do processo imitativo para quem as observa a aparecircncia eacute suficiente Tambeacutem reparamos que no que diz respeito agrave terra a montanhas rios uma floresta ao ceacuteu e a tudo quanto existe e circula em torno dele ficamos satisfeitos acima de tudo se algueacutem for capaz de os reproduzir com um miacutenimo de semelhanccedila Aleacutem disso como natildeo sabemos nada de rigoroso sobre assuntos dessa natureza natildeo examinamos nem pomos agrave prova o que foi pintado e apreciamos uma pintura de sombreados indistinta e ilusoacuteria6 Por outro lado sempre que algueacutem tenta representar os nossos corpos em virtude de nos apercebermos com acuidade daquilo que foi negligenciado graccedilas agrave constante observaccedilatildeo iacutentima tornamo-nos juiacutezes implacaacuteveis de tudo aquilo que natildeo esteja absolutamente dotado de semelhanccedila

Eacute forccediloso que compreendamos que acontece o mesmo com os discursos jaacute que devemos ficar satisfeitos

5 Criacutetias propotildee uma teoria da linguagem muito proacutexima da concepccedilatildeo platoacutenica da arte em geral que fora estabelecida na Repuacuteblica (597a-e) e no final do Sofista Tanto que o exemplo a que vai recorrer para ilustrar esta sua posiccedilatildeo releva precisamente do acircmbito da pintura

6 A teacutecnica da pintura com sombreados (skiagraphia) era considerada por Platatildeo uma forma de ilusatildeo propositada (cf Repuacuteblica 602c-e)

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se o que dissermos sobre assuntos celestes e divinos for minimamente verosiacutemil ao passo que podemos examinar minuciosamente os mortais e humanos7 Quanto ao discurso que agora faremos fruto do improviso se natildeo conseguirmos dotaacute-lo de clareza em relaccedilatildeo a todos os aspectos teremos necessariamente que ser condescendentes eacute que eacute preciso ter em conta que natildeo eacute nada faacutecil senatildeo extremamente difiacutecil produzir representaccedilotildees dos assuntos mortais que relevam do acircmbito da opiniatildeo

108a Eacute disto que eu vos quero recordar e foi pelo facto de vos pedir natildeo menos mas sim mais toleracircncia em relaccedilatildeo ao que estou prestes a dizer que mencionei tudo isto oacute Soacutecrates Se vos pareccedilo pedir justificadamente a oferenda concedei-me-la de bom grado

Soacutecrates E por que motivo natildeo ta haveriacuteamos de conceder oacute Criacutetias Tambeacutem ao terceiro Hermoacutecrates noacutes havemos de lhe conceder a mesma toleracircncia De facto eacute evidente que um pouco mais tarde quando lhe competir a ele discursar a pediraacute tal como vocecircs8 Deste modo para que planeie um iniacutecio diferente e natildeo esteja compelido a dizer o mesmo ele que discurse partindo do princiacutepio que deste modo e neste momento lhe foi garantida a toleracircncia Quanto a ti meu caro Criacutetias dir-te-ei de antematildeo qual eacute a disposiccedilatildeo do puacuteblico o

7 Note-se que tambeacutem no discurso de Criacutetias a verosimilhanccedila eacute tida por exigecircncia racional

8 Hermoacutecrates seria o terceiro (a seguir a Criacutetias) a intervir (vide Introduccedilatildeo pp 14-15)

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poeta anterior a ti9 granjeou diante dele grande estima de tal forma que precisaraacutes de toleracircncia ilimitada a teu favor se te consideras capaz de a obter

Hermoacutecrates Daacutes-me a mesma recomendaccedilatildeo que a este aqui oacute Soacutecrates Mas com efeito oacute Criacutetias nunca homens sem valor obtiveram um trofeacuteu10 Por isso conveacutem que avances corajosamente com o teu discurso invocando o Salvador11 e as Musas para dares a conhecer os ilustres cidadatildeos antepassados e lhes dedicares um hino12

Criacutetias Oacute caro Hermoacutecrates por teres sido posicionado na linha mais recuada e teres outra pessoa agrave tua frente estaacutes ainda cheio de coragem O que eacute estar nesta situaccedilatildeo isso em breve te seraacute revelado mas tenho que obedecer ao teu incentivo e estiacutemulo e aleacutem dos deuses que mencionaste temos que invocar ainda outros principalmente Mnemoacutesine13 Eacute que quase todos os assuntos do nosso discurso dizem respeito a

9 Refere-se a Timeu10 Neste contexto a metaacutefora eacute puramente beacutelica sendo que o

trofeacuteu (tropaion) refere um pequeno monumento que era erigido no campo de batalha como siacutembolo de vitoacuteria O acircmbito semacircntico militar vai manter-se pelas proacuteximas linhas como que anunciando o longo discurso de Criacutetias sobre o confronto militar

11 Epiacuteteto de Apolo12 Foi referido ainda no resumo do Timeu (21a) que a narrativa

sobre a lendaacuteria guerra visava glorificar a cidade de Atenas no dia da sua festa (as Panateneias durante as quais se desenvolve a acccedilatildeo)

13 Personificaccedilatildeo divinizada da memoacuteria de quem eram filhas as Musas Esta invocaccedilatildeo era bastante comum nos poetas e historiadores

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essa deusa pois se lembrarmos o suficiente do que foi dito pelos sacerdotes de outrora trazido ateacute aqui por Soacutelon14 e o dermos a conhecer creio que aos olhos do puacuteblico pareceremos cumprir razoavelmente aquilo a que nos comprometecircramos Eacute isso que devemos fazer de imediato e natildeo podemos demorar nem mais um pouco

Primeiro que tudo recordemos o principal15 passaram nove mil anos desde a referida guerra entre os que habitavam aleacutem das Colunas de Heacuteracles16 e todos aqueles que estavam para aqueacutem conveacutem agora que discorramos sobre ela em pormenor De um lado segundo se diz estava a nossa cidade que comandou e travou a guerra ateacute ao fim enquanto que do outro estavam os reis da Ilha da Atlacircntida ilha essa que como dissemos haacute pouco era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia17 juntas Mas actualmente por estar submersa graccedilas aos tremores de terra constitui um obstaacuteculo de lama intransitaacutevel para aqueles que querem navegar dali para o alto-mar de tal forma que nunca mais pode ser ultrapassado

Quanto aos vaacuterios povos baacuterbaros e tambeacutem todos os que de entre os Gregos existiam naquele tempo a exposiccedilatildeo do relato no seu desenrolar revelaraacute o que diz respeito a cada um deles sucessivamente e caso a

14 Cf Timeu 21c-sqq15 O essencial do discurso Criacutetias vai iniciar fora jaacute referido no

Timeu (20d-26d)16 O Estreito de Gibraltar17 A Liacutebia corresponde actualmente a todo o Norte de Aacutefrica

e a Aacutesia ao territoacuterio que se estende desde a Peniacutensula Araacutebica ateacute ao Norte da Iacutendia

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caso18 No que diz respeito aos Atenienses de entatildeo e aos seus opositores contra os quais entraram em guerra eacute necessaacuterio que comece por analisar em primeiro lugar o poderio beacutelico e a forma de governo19 de cada um deles De entre eles devemos optar por falar primeiro deste daqui

Em determinada altura os deuses dividiram toda a terra em regiotildees ndash sem recurso a disputa nem seria correcto dizer que os deuses ignoravam o que era apropriado a cada um deles nem tampouco que apesar de saberem o que era mais adequado para os outros tentavam entre si apropriar-se disso para si proacuteprios por meio de disputas ndash e havendo obtido a regiatildeo que lhes agradava de acordo com as sortes da Justiccedila povoaram esses lugares Depois de os terem povoado criaram-nos como se fossem bens ou animais agrave semelhanccedila de pastores com o gado soacute que natildeo subjugavam corpos com corpos como os pastores que orientam os rebanhos agrave pancada mas da melhor maneira para lidar com uma criatura que eacute guiaacute-la pela proa tomando de acordo com o seu proacuteprio desiacutegnio a alma como um leme por meio da persuasatildeo conduziam e governavam deste modo todos os seres mortais20

18 A descriccedilatildeo das forccedilas em conflito antes do combate propriamente dito era um costume dos historiadores (cf Tuciacutedides 189-sqq) Visto que Criacutetias refere que falaraacute detalhadamente de todos os povos envolvidos (Atlantes Gregos e respectivos aliados) descrevendo depois o confronto propriamente dito eacute certo que o diaacutelogo completo era bastante extenso Contudo termina como sabemos quando aborda o iniacutecio da degenerescecircncia social e moral do povo atlante

19 politeia20 Esta metaacutefora do estadista como timoneiro de uma nau

bastante utilizada na trageacutedia remonta aos versos de Arquiacuteloco

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Enquanto que aos outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de um modo diferente Hefesto e Atena por terem uma natureza comum ndash por um lado eram irmatildeos de um mesmo pai e por outro em virtude do gosto pelo saber e pela arte tinham a mesma orientaccedilatildeo21 ndash a ambos assim coube em sorte uma uacutenica porccedilatildeo que eacute este lugar aqui porque era por natureza afim e adequado agrave virtude e agrave sabedoria22 Entatildeo colocaram aqui homens bons os autoacutectones e introduziram-lhes a ordem poliacutetica no intelecto23

Os nomes deles foram conservados mas os feitos graccedilas ao facto de terem perecido aqueles que os herdaram e agrave vastidatildeo do tempo desapareceram Eacute que o geacutenero de pessoas que sempre sobrevive tal como foi dito anteriormente24 manteacutem-se serrano25 e analfabeto estas apenas tinham ouvido falar dos nomes dos governantes daquele lugar e aleacutem disso do pouco que haviam feito Assim eles punham esses nomes aos seus descendentes

(poeta do seacutec VII aC) que compara uma tempestade a uma crise poliacutetica e o timoneiro ao poliacutetico que a pode superar (fr 106 West) Aparece com um sentido anaacutelogo na passagem da Repuacuteblica sobre a nau do estado (488a-499a) e tambeacutem no Poliacutetico onde Cronos eacute chamado ldquotimoneiro do universordquo (272e4)

21 Ambos Atena e Hefesto eram filhos de Zeus bem como se dedicavam a assuntos muito semelhantes Atena nutria especial apreccedilo pelas artes e letras (o saber em geral) e Hefesto dominava a metalurgia como artesatildeo bem como era o deus do fogo (o fogo era siacutembolo da ciecircncia como disso eacute exemplo o famoso mito de Prometeu)

22 aretecirc kai phronecircsis23 nous24 Cf Timeu 22c-d25 O termo oreios (lit ldquoque vive nas montanhasrdquo) eacute neste

contexto usado com um sentido pejorativo

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por isso os agradar mas natildeo conheciam as virtudes e as leis dos antepassados a natildeo ser alguns relatos obscuros em relaccedilatildeo a certos aspectos Por viverem com carecircncia e necessitados durante muitas geraccedilotildees eles e os seus filhos tinham apenas em mente aquilo de que careciam e conversavam apenas sobre isso negligenciando aquilo que acontecera outrora num tempo anterior ao seu Na verdade a mitologia e a investigaccedilatildeo de dados do passado chegam agraves cidades juntamente com o oacutecio apenas quando os habitantes se apercebem de que as necessidades baacutesicas estatildeo garantidas para um certo nuacutemero de pessoas e natildeo antes Foi por este motivo que mantiveram conservados os nomes dos antepassados agrave parte dos feitos Digo isto baseando-me em Soacutelon que referia que os sacerdotes enquanto narravam a guerra de outrora mencionavam com muita frequecircncia os nomes de Ceacutecrope Erecteu Erictoacutenio Erisiacutecton26 e a maior parte daqueles que antecederam Teseu cujos nomes permaneceram recordados e o mesmo no que respeita agraves mulheres ndash de facto visto que naquele tempo as ocupaccedilotildees respeitantes agrave guerra eram comuns agraves mulheres e aos homens a estaacutetua da deusa era por isso representada pelos de entatildeo com armas de acordo com aquele costume como tributo agrave deusa isso eacute uma prova27 de que todos os seres-vivos da mesma condiccedilatildeo

26 Personagens lendaacuterias associadas agrave fundaccedilatildeo da cidade de Atenas Ceacutecrope teria sido o primeiro rei Erecteu o seu pai Erictoacutenio avocirc de Erecteu Erisiacutecton filho de Ceacutecrope

27 Endeigma Embora esta palavra em concreto natildeo seja usada por Heroacutedoto nem por Tuciacutedides daacute igualmente conta da preocupaccedilatildeo historicista no narrador A este propoacutesito vide Introduccedilatildeo pp 57-63

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ndash tanto fecircmeas quanto machos ndash satildeo por natureza capazes de praticar em comum a virtude respeitante a cada espeacutecie28

Por outro lado naquele tempo os outros grupos de cidadatildeos ligados aos ofiacutecios e ao sustento que provinha da terra viviam neste lugar aqui enquanto que o dos combatentes separados desde o princiacutepio por homens divinos viviam agrave parte tendo acesso a tudo o que fosse adequado agrave sua subsistecircncia e educaccedilatildeo Nenhum deles possuiacutea nada a tiacutetulo particular pois todos eles consideravam tudo comum a todos eles e natildeo se achavam no direito de receber dos outros cidadatildeos nada aleacutem do necessaacuterio agrave sua subsistecircncia atarefados que estavam com todas as ocupaccedilotildees de que ontem falaacutemos ndash aquelas que foram referidas a propoacutesito dos guardiotildees que propusemos29

Na verdade ateacute era plausiacutevel e mesmo verdadeiro o que se dizia a propoacutesito da nossa terra30 em primeiro

28 A igualdade de geacuteneros eacute tambeacutem referida no Timeu (18c-sqq) e na Repuacuteblica (456a-sqq)

29 Quando refere que as ocupaccedilotildees destes cidadatildeos satildeo as que descreveram no dia anterior Criacutetias remete para o que foi dito acerca das funccedilotildees da classe dos guardiotildees da cidade ideal descritas na Repuacuteblica (395b-d) e tambeacutem no iniacutecio do Timeu (17d) deviam dedicar-se exclusivamente agrave defesa do Estado Aleacutem disso satildeo tambeacutem evidentes outras semelhanccedilas natildeo possuiacuteam bens a tiacutetulo particular recebiam o sustento dos outros cidadatildeos bem como viviam em comunidade (Repuacuteblica 416e Timeu 18b)

30 Segundo Brisson (2001 p 383 nn 60 64) a descriccedilatildeo que se segue pretende fundamentar algumas reivindicaccedilotildees territoriais atenienses da eacutepoca de Platatildeo Ao alargar as fronteiras da Aacutetica ateacute ao Istmo de Corinto a sudoeste inclui a cidade de Meacutegara (causa de diversos confrontos com os Coriacutentios) e quando aponta o Rio Asopo como fronteira a norte engloba a Oroacutepia cuja principal

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lugar que nessa altura as fronteiras que a circunscreviam se estendiam ateacute ao Istmo [de Corinto] de um lado31 e na direcccedilatildeo da regiatildeo continental ateacute aos cumes do Citeacuteron e do Parnaso32 que essas fronteiras continuavam pelas encostas do lado direito (incluindo a Oroacutepia33) ateacute ao Asopo34 e do lado esquerdo estavam delimitadas pelo mar que toda esta terra superava em fertilidade o restante territoacuterio pelo que na altura este lugar era capaz de manter alimentado um vasto exeacutercito e livre de trabalhos com a terra35 Eis uma grande evidecircncia36 dessa fertilidade o que dela ainda agora resta eacute equiparaacutevel a qualquer outra por ter muita variedade de cultivo e riqueza de colheitas bem como boas pastagens para todo o tipo de animais Aleacutem da qualidade de entatildeo comportava tudo isso em abundacircncia Mas como pode isso ser crediacutevel e com base em quecirc se poderaacute dizer acertadamente que satildeo os restos da terra daquele tempo

Todo o territoacuterio que se estende a partir do resto do continente e desemboca no mar eacute semelhante a um cidade (Oropo) era continuamente disputada com os Beoacutecios

31 Isto eacute para sudoeste32 O Citeacuteron e o Parnaso eram dois montes que se encontravam

entre a Beoacutecia e a Aacutetica33 Vide supra n 3034 Um rio a norte dos Montes Parnaso e Citeacuteron Vide supra

n 3235 Natildeo podemos deixar de notar nesta secccedilatildeo um eco da Idade

do Ouro (periacuteodo em que a Natureza proporcionava todos os bens estando os homens livres de trabalhos agriacutecolas) que Hesiacuteodo descreve nos Trabalhos e Dias (vv 109-126)

36 Tekmecircrion Trata-se de um termo muito usado pelos historiadores para fundamentar o seu discurso (Heroacutedoto 2131 33810 72384 Tuciacutedides 113 2392 31046)

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grande promontoacuterio e acontece que o invoacutelucro de mar que a circunda eacute profundo em todos os pontos da costa Graccedilas a muitos e grandes diluacutevios que ocorreram nestes nove mil anos ndash este foi o nuacutemero de anos que passou desde esse tempo ateacute agora ndash a terra que em virtude do que aconteceu durante essas ocasiotildees deslizou das terras altas natildeo se empilhou num morro digno de menccedilatildeo como acontece noutros locais antes ao escorregar continuamente semelhante a uma roda desapareceu no fundo do mar Comparado ao de entatildeo o que agora restou ndash tal como aconteceu nas pequenas ilhas ndash eacute semelhante aos ossos de um corpo que adoeceu pois tudo o que a terra tinha de gordo e mole escorregou tendo somente restado desse lugar o corpo descascado Mas naquele tempo enquanto esteve intacta tinha montanhas altas e encristadas de terra e quanto agraves planiacutecies a que agora chamamos solo rochoso tinha-as cheias de terra feacutertil Tinha tambeacutem numerosas florestas nas montanhas de que ainda hoje haacute evidecircncias manifestas pois eacute nestas montanhas que actualmente existe o uacutenico alimento para as abelhas e natildeo haacute muito tempo que se cortava aacutervores nesse local para construir os tectos das grandes edificaccedilotildees ndash coberturas essas que ainda estatildeo conservadas Havia tambeacutem muitas e grandes aacutervores benignas bem como a terra providenciava pastos maravilhosos para o gado Aleacutem disso fruiacutea a cada ano de aacutegua vinda de Zeus e natildeo a perdia ao contraacuterio de agora que corre da terra nua ateacute ao mar em vez disso por ter muita terra recebia-a dentro de si e armazenava-a num solo argiloso que a sustinha Ao descarregar a aacutegua dos pontos altos

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para os vales garantia fluxos abundantes de fontes e rios a todos os lugares os templos que outrora foram estabelecidos nessas fontes e ainda hoje laacute permanecem satildeo um indiacutecio37 de que o que agora dizemos sobre ela eacute verdadeiro

Tambeacutem assim era a natureza do resto da regiatildeo que era provavelmente cultivada por agricultores autecircnticos isto eacute que faziam apenas isto ndash vocacionados para as coisas caras agrave beleza e tinham agrave disposiccedilatildeo a melhor terra e aacutegua em muita abundacircncia bem como estaccedilotildees temperadas da forma mais moderada que havia sobre a terra

Quanto agrave cidade nesta altura ela estava estabelecida do seguinte modo em primeiro lugar naquela altura a zona da Acroacutepole natildeo estava como estaacute hoje eacute que uma soacute noite de chuva deixou-a completamente nua pois dissolveu a terra por completo e ao mesmo tempo geraram-se terramotos e um violento diluacutevio ndash o terceiro antes da calamidade da eacutepoca de Deucaliatildeo38 Quanto ao tamanho que tinha outrora noutro tempo chegava ateacute ao Eriacutedano e ao Ilisso39 compreendia em si a Pnix40 e tinha como limite do lado oposto agrave Pnix o Licabeto41 toda ela era terra e excepto em poucos siacutetios formava uma planiacutecie nos pontos mais altos

37 Vide supra n 3638 Trata-se do diluacutevio com que Zeus decidiu destruir a raccedila

humana Escaparam Deucaliatildeo e Pirra sua esposa por meio de uma arca que haviam construiacutedo de antematildeo depois de terem sido avisados pelo deus

39 Dois rios da Aacutetica40 Colina a oeste da Acroacutepole onde desde os iniacutecios do seacuteculo

V aC se reunia a Assembleia41 Um monte a nordeste da Acroacutepole

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A parte exterior junto aos seus proacuteprios vertentes era habitada por artesatildeos e pelos agricultores que cultivavam as imediaccedilotildees Quanto agrave parte superior habitava-a a classe dos guerreiros de forma autoacutenoma e isolada junto ao templo de Atena e Hefesto que eles tinham vedado com uma uacutenica cerca como se fosse uma soacute casa Habitavam em aposentos comuns a parte que dava para norte que equiparam com uma messe para as noites de Inverno e tinham tudo quanto fosse adequado agrave vida em comunidade42 fossem residecircncias ou templos excepto ouro ou prata43 ndash pois natildeo faziam qualquer uso disso para nada mas por buscarem o ponto intermeacutedio entre a arrogacircncia e a subserviecircncia habitavam em residecircncias organizadas em que envelheciam eles proacuteprios e tambeacutem os netos dos seus netos as quais iam ininterruptamente entregando aos outros seus semelhantes Na parte que dava para sul fizeram jardins ginaacutesios e messes para o Veratildeo e usavam-na para isso No lugar onde actualmente estaacute a Acroacutepole havia uma fonte uacutenica que foi destruiacuteda pelos terramotos da qual actualmente restam apenas pequenas linhas de aacutegua em ciacuterculo mas que naquele tempo providenciava a toda a gente uma corrente abundante mantendo a mesma temperatura de Veratildeo e de Inverno E assim viviam eles como guardiotildees dos seus proacuteprios cidadatildeos e comandantes reconhecidos dos outros gregos e garantiam a todo o custo que o

42 tecirc koinecirci politeiai43 Curiosamente a privaccedilatildeo de ouro e prata especificamente

eacute tambeacutem referida na Repuacuteblica (417a) a propoacutesito classe dos guardiotildees

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nuacutemero de homens e mulheres que eram ou viriam a ser capazes de combater fosse sempre o mesmo cerca de vinte mil

Visto que eles eram desta natureza e administravam sempre com a mesma orientaccedilatildeo ndash agrave luz da justiccedila ndash a sua cidade e o resto da Heacutelade gozavam de alta reputaccedilatildeo em toda a Europa e em toda a Aacutesia graccedilas agrave beleza dos seus corpos e a todo o tipo de virtude das suas almas bem como eram famosos entre todos os homens daquele tempo

No que trata agrave condiccedilatildeo daqueles contra quem combateram e ao modo como de princiacutepio se gerou essa condiccedilatildeo se natildeo estiver privado da memoacuteria visto que o ouvi quando ainda era crianccedila restituiacute-lo-ei no meio de voacutes para que seja comum entre amigos

Mas antes ainda do meu discurso impotildee-se um breve esclarecimento para que natildeo fiqueis admirados por muitas vezes ouvirdes nomes gregos aplicados a homens estrangeiros ouvi entatildeo a razatildeo Soacutelon por ter pensado em utilizar esta narrativa na sua poesia procurou o significado destes nomes e descobriu que aqueles primeiros egiacutepcios os tinham redigido vertidos na sua proacutepria liacutengua entatildeo ele por sua vez depois de ter assimilado o sentido de cada um desses nomes registou-os e traduziu-os para a nossa liacutengua Estes escritos estiveram na posse do meu avocirc e neste momento estatildeo ainda comigo com os quais me exercitei enquanto era crianccedila Portanto que natildeo vos cause nenhuma admiraccedilatildeo se ouvirdes alguns nomes como estes aiacute tendes portanto a razatildeo Mas vejamos agora como era o princiacutepio daquela grande narrativa

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Tal como foi dito anteriormente44 acerca da partilha que ocorreu entre os deuses eles dividiram toda a terra aqui em porccedilotildees maiores e acolaacute em mais pequenas onde estabeleceram templos e sacrifiacutecios em seu proacuteprio benefiacutecio Deste modo Posiacutedon quando lhe coube em sorte a Ilha da Atlacircntida estabeleceu aiacute os filhos que gerou de uma mulher mortal num certo local da ilha

Existia ao longo de toda a ilha em direcccedilatildeo ao mar uma planiacutecie central a qual se diz que seria a mais bela de todas as planiacutecies e com uma fertilidade consideraacutevel Nesta planiacutecie havia ainda na parte central uma montanha baixa em todos os pontos que distava cinquenta estaacutedios45 do mar Neste local estava um habitante de entre os homens que aiacute tinham nascido dessa terra em tempos primordiais o seu nome era Evenor e vivia juntamente com a sua mulher Leucipe tiveram uma filha uacutenica Clito Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido a sua matildee e o seu pai morreram e entatildeo Posiacutedon desejou-a e uniu-se a ela Entatildeo de modo a construir uma cerca segura desfez num ciacuterculo o monte em que ela habitava e construiu agrave volta aneacuteis de terra alternados com outros de mar uns maiores uns mais pequenos ndash dois de terra e trecircs de mar no total torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos para que fosse inacessiacutevel aos homens46 com efeito naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava

44 Cf supra 109b-c45 8880m46 O sistema de aneacuteis atlante traz agrave memoacuteria uma descriccedilatildeo

do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana registada por Heroacutedoto (Histoacuterias 198)

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Foi o proacuteprio Posiacutedon que organizou o centro da ilha ndash facilmente pois era um deus ndash fazendo surgir de debaixo da terra duas nascentes de aacutegua ndash uma quente outra fria ndash que corriam de uma fonte e fez brotar da terra alimentos variados e suficientes Engendrou e criou cinco geraccedilotildees de varotildees geacutemeos e dividiu toda a Ilha da Atlacircntida em dez partes entregou a residecircncia materna ao que de entre os mais velhos nascera primeiro juntamente com a porccedilatildeo que a circundava que era a maior e a melhor e nomeou-o rei dos restantes ao passo que fez destes governantes bem como atribuiu a cada um o governo de muitos homens e uma regiatildeo com vastos territoacuterios A todos eles atribuiu nomes ao mais velho ndash o rei ndash deu-lhe o nome do qual toda a ilha e tambeacutem o mar chamado Atlacircntico receberam uma designaccedilatildeo derivada ndash o primeiro que reinou tinha entatildeo o nome Atlas47 Ao segundo geacutemeo ndash o que nasceu depois deste ndash a quem havia cabido em sorte uma porccedilatildeo na extremidade da ilha na direcccedilatildeo das Colunas de Heacuteracles ateacute agrave regiatildeo aleacutem daquele ponto que hoje eacute chamada Gadiacuterica deu o nome Eumelo em grego e Gadiro na liacutengua do paiacutes sendo esta designaccedilatildeo a que deu o nome agravequela zona48 Aos dois que nasceram depois

47 Titatilde que em virtude de ter tentado usurpar o poder de Zeus foi punido com a obrigaccedilatildeo de suster sobre os ombros o ceacuteu Eacute apresentado neste contexto como primeiro rei da Atlacircntida O facto de Atlas (e natildeo Posiacutedon) ser apontado como primeiro rei da Atlacircntida pode estar ligado agrave localizaccedilatildeo miacutetica da ilha de uma filha sua nos confins dos Jardins das Hespeacuterides que segundo Hesiacuteodo (Teogonia vv 215-216 517-518) se situavam precisamente naquela zona

48 Gadiro estaacute na origem do nome da actual cidade de Caacutediz e

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chamou Anferes e Eveacutemon aos terceiros Mneacuteseas ao que nasceu primeiro e Autoacutecton ao que nasceu a seguir ao primeiro dos quartos Elasipo e Mestor ao seguinte aos quintos pocircs o nome Azais ao que nasceu antes e Diaprepes ao seguinte E assim todos eles e os seus descendentes ali viveram durante muitas geraccedilotildees governando sobre todas as outras ilhas do mar e ainda tal conforme dito anteriormente49 como senhores dos territoacuterios aqueacutem das Colunas de Heacuteracles ateacute ao Egipto e a Tirreacutenia50

De Atlas nasceu uma linhagem numerosa e honrada o rei que era o mais velho transmitia a monarquia sempre ao mais velho dos descendentes e assim se preservaram durante muitas geraccedilotildees Aleacutem disso detinham riquezas em nuacutemero tatildeo elevado como nunca houve em quaisquer dinastias de reis anteriores nem eacute faacutecil que haja nas que se sigam pois estavam providos de tudo do que havia necessidade garantir agrave cidade e ao resto do territoacuterio Com efeito ainda que muito viesse de fora por causa do impeacuterio a proacutepria ilha fornecia a grande maioria dos bens essenciais Em primeiro lugar tudo quanto fosse soacutelido e fundiacutevel era extraiacutedo pelo ofiacutecio mineiro bem como aquilo que actualmente apenas nomeamos ndash naquela altura mais do que um nome existia a substacircncia o oricalco51 que a Gadiacuterica seria toda aquela zona circundante

49 Cf Timeu 25a-b50 A Tirreacutenia ou Etruacuteria era a paacutetria dos Etruscos localizada na

parte central da Peniacutensula Itaacutelica51 A letra oreichalcos significa ldquoo cobre das montanhasrdquo Era usado

pelos Atlantes como elemento decorativo para o revestimento de superfiacutecies (as muralhas da muralha central da ilha 116c os tectos

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era extraiacutedo em vaacuterios locais da ilha o qual naquela altura era agrave parte o ouro o material mais valioso ndash e a floresta fornecia tudo quanto pudesse ser trabalhado pelos carpinteiros

A ilha produzia tudo em abundacircncia e no que respeita aos animais alimentava convenientemente os domesticados e os selvagens incluindo a raccedila dos elefantes que nela existia em grande nuacutemero No entanto havia tambeacutem pastagens para os outros seres-vivos tanto os que viviam nos pacircntanos nos lagos e nos rios quanto os que pastavam nas montanhas e nas planiacutecies ndash havia em abundacircncia para todos eles e tambeacutem na mesma medida para este animal52 que era por natureza o maior e o mais voraz Aleacutem disto criava tambeacutem diversos aromas que actualmente a terra tem aqui e ali de raiacutezes folhagens madeiras ou sucos destilados de flores ou de frutos ndash isto produzia e criava a ilha em abundacircncia Mais ainda frutos cultivados secos e tudo quanto usamos na alimentaccedilatildeo e de que aproveitamos o gratildeo ndash chamamos leguminosas a todas as suas variedades ndash os frutos das aacutervores que nos fornecem bebida comida e oacuteleo53 os frutos que crescem em ramos altos os quais satildeo difiacuteceis de armazenar e

paredes colunas e pavimento do templo de Posiacutedon) aleacutem disso tambeacutem a estela que continha gravadas as leis dos primeiros reis era deste material (119d) Embora se tenha tentado identificar esta substacircncia com ldquoum reluzir semelhante ao fogordquo (116c) propondo hipoacuteteses como o latatildeo ou uma liga composta entre ouro e cobre (como sugere a falsa etimologia latina aurichalcum) eacute provaacutevel que se trate de uma substacircncia mitoloacutegica Sobre este assunto vide Halleux (1973)

52 Isto eacute o elefante53 Azeitonas

Platatildeo

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que usamos apenas por prazer e divertimento54 e tudo quanto oferecemos como estimulante desejaacutevel depois da ceia a quem sofre por estar cheio55 ndash naquela altura a extraordinaacuteria ilha que entatildeo estava sob o Sol56 fornecia todas estas coisas belas e admiraacuteveis em quantidade ilimitada

Por receberem da terra tudo isto construiacuteram templos residecircncias reais portos estaleiros navais e melhoraram todo o restante territoacuterio organizando tudo do modo que se segue Primeiro fizeram pontes sobre os aneacuteis de mar que estavam agrave volta da metroacutepole antiga criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real Esta zona real fizeram-na logo de princiacutepio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados Como cada um quando o recebia do outro adornava aquilo que jaacute estava adornado superava sempre na medida do possiacutevel o anterior ateacute que tornaram o edifiacutecio espantoso de ver graccedilas agrave magnificecircncia e beleza das suas obras

Escavaram um canal com trecircs pletros57 de largura cem peacutes58 de profundidade e cinquenta estaacutedios59 de comprimento que comeccedilaram a partir do mar ateacute ao anel mais exterior e naquele local construiacuteram uma via de acesso do mar agravequele ponto como a um porto

54 Tratar-se-aacute provavelmente de romatildes55 Seraacute com bastante certeza o limatildeo que naquela altura era

utilizado com este fim56 Isto eacute que ainda natildeo tinha sido engolida pelo mar (vide supra

25c-d 108e)57 888m58 296m59 8880m

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tambeacutem abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito grandes Tambeacutem abriram os aneacuteis de terra que separavam os de mar obedecendo agrave direcccedilatildeo das pontes de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma soacute trirreme e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo eacute que as bordas dos aneacuteis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar

O maior dos aneacuteis aquele pelo qual passava o mar tinha trecircs estaacutedios60 de largura e o anel de terra contiacuteguo tinha a mesma largura Dos segundos o de aacutegua tinha dois estaacutedios61 de largura enquanto que o seco era mais uma vez igual ao anterior de aacutegua aquele que circulava no centro da ilha tinha um estaacutedio62 Quanto agrave ilha onde estava a zona real ela tinha cinco estaacutedios63 de diacircmetro Agrave volta dela a partir dos aneacuteis e de um lado e de outro da ponte que tinha um pletro64 de largura lanccedilaram uma muralha de pedra e colocaram torres e portas em cada um dos lados das pontes vedando o acesso a partir do mar A pedra que era branca negra e vermelha extraiacuteram-na debaixo da ilha do centro e debaixo dos aneacuteis quer da parte de fora quer da de dentro Ao mesmo tempo que a extraiacuteam iam construindo no interior do espaccedilo vazio docas duplas que cobriam com a mesma pedra Algumas das estruturas fizeram-nas simples mas noutras misturaram as pedras e assim

60 5328m61 3552m62 1776m63 888m64 296m

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produziram por divertimento um entranccedilado colorido tornando-as naturalmente apraziacuteveis As muralhas que circundavam a parte exterior do anel a toda a volta do periacutemetro revestiram-nas com cobre que usaram como pintura as da parte interior com estanho fundido e as que circundavam a Acroacutepole com oricalco que tinha um reluzir semelhante ao fogo

Quanto ao modo como estava disposta a zona real no interior da Acroacutepole era o seguinte No centro ndash ali mesmo ndash estava um templo sagrado dedicado a Clito e a Posiacutedon o qual tornaram inacessiacutevel envolvendo-o numa cerca de ouro ndash foi naquele siacutetio que no princiacutepio estes deuses conceberam e geraram a linhagem dos dez priacutencipes era tambeacutem naquele mesmo siacutetio que todos os anos entregavam a cada um deles as primiacutecias sagradas provindas das dez partes da ilha Ali estava o naos65 soacute de Posiacutedon que tinha um estaacutedio66 de comprimento e trecircs pletros67 de largura ndash em altura parecia proporcional a estas medidas mas a aparecircncia era de certa forma baacuterbara Toda a parte exterior do naos tinha sido coberta com prata agrave excepccedilatildeo das extremidades (as extremidades foram cobertas com ouro)

Quanto agrave parte interior o tecto era de marfim maciccedilo com ouro prata e oricalco o que lhe dava uma aparecircncia variegada enquanto que revestiram todas as outras partes ndash paredes colunas e pavimento ndash com oricalco Erigiram estaacutetuas de ouro o deus erguido num

65 Parte interior do templo onde se encontrava a estaacutetua do deus ao qual o edifiacutecio era consagrado

66 1776m67 888m

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carro segurando as reacutedeas de seis cavalos alados que graccedilas agrave sua altura tocava no tecto com a cabeccedila agrave volta dele estavam cem Nereides montadas em golfinhos ndash naquele tempo julgavam que elas eram assim tantas68 no interior havia ainda muitas outras estaacutetuas que tinham sido oferecidas por particulares Em torno do naos no exterior estavam erguidas representaccedilotildees de ouro de todas as mulheres e dos descendentes dos dez reis e muitas outras grandes estaacutetuas de reis e tambeacutem de particulares da proacutepria cidade e de quantos territoacuterios no exterior eles governavam Concordante em grandeza e construccedilatildeo com esta edificaccedilatildeo havia um altar bem como a zona real estava tambeacutem de acordo com a grandeza do impeacuterio e com a organizaccedilatildeo que rodeava estes locais sagrados

Quanto agraves fontes a que tinha uma corrente fria e a que tinha uma quente abundantes e inesgotaacuteveis sendo cada uma das quais de uma admiraacutevel utilidade em virtude do sabor e da excelecircncia das suas aacuteguas aproveitavam para construir edifiacutecios em torno delas para plantar aacutervores adequadas agraves suas aacuteguas e para instalar reservatoacuterios ndash uns a ceacuteu aberto outros cobertos tendo em vista os banhos quentes durante o Inverno

68 As Nereides filhas de Nereu e ninfas marinhas associadas ao culto de Posiacutedon eram no tempo de Platatildeo apenas 50 Quanto agrave estaacutetua em si o facto de Criacutetias dizer que quase tocava no tecto do templo que a albergava traz agrave memoacuteria a estaacutetua de Zeus em Oliacutempia uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo Diz Estrabatildeo (Geografia 8330 a traduccedilatildeo deste passo pode ser consultada em Ferreira amp Ferreira 2009 pp 182-184) que se o deus se levantasse (estava representado sentado) arrancaria seguramente o telhado do edifiacutecio

Platatildeo

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De um lado estavam os reais do outro os particulares outros ainda para as mulheres e os restantes para os cavalos e para os outros animais de jugo atribuindo a cada um deles a organizaccedilatildeo que lhe era adequada De modo a dirigir a corrente para o bosque sagrado de Posiacutedon que tinha todo o tipo de aacutervores de uma beleza e uma altura divinas graccedilas agrave fertilidade da terra e para os territoacuterios perifeacutericos canalizaram-na por meio de condutas ao longo das pontes Ali construiacuteram vaacuterios templos de muitos deuses vaacuterios jardins e ginaacutesios uns para os homens outros agrave parte para os cavalos em cada uma das ilhas dos aneacuteis

Entre outras coisas havia no centro da ilha grande um hipoacutedromo agrave parte com um estaacutedio69 de largura cujo comprimento compreendia a totalidade do periacutemetro do anel para a competiccedilatildeo dos cavalos Em toda a volta havia por toda a parte aquartelamentos para um grande nuacutemero de guarda-costas ndash a guarniccedilatildeo dos que eram mais fieacuteis estava disposta no anel mais pequeno no ponto mais proacuteximo da Acroacutepole e aos que de entre todos estes se distinguiam em fidelidade foram concedidas residecircncias no interior da Acroacutepole junto agraves proacuteprias residecircncias reais Os estaleiros navais estavam preenchidos de trirremes e de quantos acessoacuterios satildeo adequados agraves trirremes tudo preparado de forma capaz

Quanto agraves periferias da residecircncia dos reis elas estavam dispostas do seguinte modo quando se atravessava os portos ndash que eram trecircs ndash vindo do exterior

69 1776m

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uma muralha estendia-se em ciacuterculo que comeccedilava no mar distando em todos os pontos cinquenta estaacutedios70 do maior anel e do porto e fechava-se na barra do canal que dava para o lado do mar Todo este local estava povoado por edifiacutecios numerosos e concentrados ao passo que o canal e o porto maior estavam preenchidos por naus e comerciantes que vinham de todo o lado que por serem em grande nuacutemero causavam um clamor e um ruiacutedo produzido por toda a espeacutecie de barulhos tanto de dia quanto durante a noite

Temos agora na memoacuteria uma aproximaccedilatildeo daquilo que foi narrado naquele tempo sobre a cidade e a zona circundante das antigas edificaccedilotildees devemos entatildeo tentar relembrar qual era a natureza do resto da regiatildeo e o tipo de organizaccedilatildeo que tinha Primeiro todo este lugar segundo se dizia era muitiacutessimo alto e escarpado desde o mar mas a periferia da cidade era toda plana Esta zona que rodeava a cidade era ela proacutepria rodeada por montanhas em ciacuterculo que se estendiam ateacute ao mar ndash aleacutem disso era plana e nivelada toda ela oblonga com trecircs mil estaacutedios71 numa direcccedilatildeo e pela parte central dois mil estaacutedios72 do mar ateacute ao topo Esta regiatildeo da ilha estava orientada para Sul abrigada do Norte As montanhas que a circunscreviam naquele tempo eram famosas pelo nuacutemero grandeza e beleza superando todas as que hoje existem nelas havia aldeias ricas e numerosas rios lagos prados que forneciam alimento suficiente para todos os animais domeacutesticos

70 8880m71 5328km72 3552km

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e selvagens e uma floresta toda ela abundante e com grande variedade de espeacutecies ndash uma fonte inesgotaacutevel para todo o tipo de obras em geral e para cada uma em particular

A planiacutecie foi mantida pela natureza e tambeacutem por muitos reis durante muito tempo do seguinte modo A maior parte da sua aacuterea formava um quadrilaacutetero rectangular e oblongo e o restante aplanaram-no por meio de uma vala que escavaram em ciacuterculo Na medida em que se tratava de uma obra feita agrave matildeo a profundidade largura e comprimento desta fossa de que se fala satildeo duvidosos se a compararmos aos outros empreendimentos mas devemos dar a conhecer aquilo que ouvimos dizer foi escavada com um pletro73 de profundidade um estaacutedio de largura em todos os pontos e visto que tinha sido escavada agrave volta de toda a planiacutecie a largura era coincidente 10000 estaacutedios74 Como recebia as correntes de aacutegua que desciam das montanhas e sabendo que rodeava a planiacutecie chegava agrave cidade por ambos os lados descarregava deste modo o fluxo no mar Assim talharam vaacuterios canais perpendiculares com 100 peacutes75 de largura e cada um dos quais 100 estaacutedios76 afastado dos outros dispostos transversalmente ao longo da planiacutecie desde as montanhas que iam por seu turno desaguar na outra ponta da vala na direcccedilatildeo do mar Era deste modo que transportavam a madeira das montanhas ateacute agrave cidade

73 296m74 1776km75 296m76 1776km

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e expediam os restantes produtos da eacutepoca por meio de barcos visto que haviam talhado vias de navegaccedilatildeo transversais de uns canais para outros e para a cidade ndash colhiam os frutos da terra duas vezes por ano Usavam no Inverno a aacutegua que vinha de Zeus e no Veratildeo a que a terra fornecesse e os fluxos que faziam correr dos canais77

No que respeita agrave populaccedilatildeo foi estabelecido que na planiacutecie cada distrito forneceria um homem que comandasse aqueles que pudessem servir para a guerra sendo que o tamanho de cada regiatildeo era de dez por dez estaacutedios78 e no total havia sessenta mil distritos Dizia-se que o nuacutemero de homens das montanhas e do resto do territoacuterio era infinito e todos eles em funccedilatildeo dos lugares e das aldeias estavam distribuiacutedos pelos distritos e adscritos a quem as comandava conforme o lugar e a aldeia

Estava prescrito que caso houvesse guerra cada comandante fornecesse uma sexta parte de um carro de guerra para um total de dez mil carros dois cavalos e respectivos cavaleiros mais um par de cavalos sem carro um soldado que combatesse com um pequeno escudo a peacute e tambeacutem dentro do carro bem como pudesse conduzir ambos os cavalos dois hoplitas79 arqueiros e fundeiros80 ndash tambeacutem dois de cada soldados

77 Este sistema de irrigaccedilatildeo faz lembrar descriccedilatildeo de Heroacutedoto (Histoacuterias 3117) da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia

78 1776m por 1776m79 Soldados de infantaria pesada que usavam uma lanccedila

comprida e estavam munidos de uma pesada armadura80 Atiradores que manejavam a funda ndash uma arma constituiacuteda

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de infantaria ligeira uns que lanccedilassem pedras e outros dardos ndash trecircs de cada quatro marinheiros para formar tripulaccedilatildeo de mil e duzentas naus Assim estavam organizadas as tarefas militares da cidade real quanto agraves restantes nove regiotildees era de outro modo mas isso levaria muito tempo para explicar

Quanto agrave organizaccedilatildeo inicial das instituiccedilotildees de governo e dos cargos processou-se do seguinte modo Cada um dos dez reis na sua regiatildeo e na sua cidade detinha um poder absoluto sobre as leis e sobre os homens pois castigava e condenava agrave morte quem quer que quisesse Por outro lado a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relaccedilotildees muacutetuas dependiam das determinaccedilotildees de Posiacutedon tal como lhes transmitira a lei que havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco que se encontrava no centro da ilha num templo de Posiacutedon Nesse local os reis reuniam-se de cinco em cinco e de seis em seis anos alternadamente distribuindo assim equitativamente ciclos de anos pares e iacutempares durante essas reuniotildees deliberavam sobre assuntos de interesse comum verificavam se algum deles tinha transgredido alguma norma e julgavam-no Quando chegava a altura de julgar trocavam antes votos de boa feacute entre si do seguinte modo81 Depois de terem

por um entranccedilado de couro ou corda para arremessar pedras81 O ritual que Criacutetias estaacute prestes a descrever tinha por objectivo

um contacto com o deus Posiacutedon que ao escolher um touro para sacrificar inspiraria os dez reis nas suas decisotildees e reforccedilaria a obediecircncia agraves leis divinas Na origem deste sacrifiacutecio poderaacute estar um episoacutedio relatado por Heroacutedoto (Histoacuterias 2 147-sqq) segundo este autor foi estabelecida uma monarquia no Egipto cujos moldes eram muito semelhantes previa uma divisatildeo territorial sendo

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sido largados os touros no templo de Posiacutedon os dez reis que estavam sozinhos faziam imprecaccedilotildees ao deus para que eles capturassem a viacutetima que lhe agradasse depois perseguiam-na sem armas de ferro mas sim com paus e laccedilos Desses touros aquele que tivessem capturado levavam-no para junto da estela e degolavam-no no topo dela para que o sangue corresse pelas letras ndash na estela junto agraves leis estava um juramento que imprecava grandes maldiccedilotildees para aqueles que o violassem Entatildeo depois de sacrificarem o touro de acordo com as suas leis queimavam todos os seus membros enchiam um kratecircr82 de vinho misturado e deitavam um pedaccedilo de sangue coagulado sobre cada um em seguida limpavam a estela e lanccedilavam o restante para o fogo Depois disto retirando vinho do kratecircr com phiales83 de ouro e fazendo libaccedilotildees na direcccedilatildeo do fogo juravam julgar de acordo com as leis que estavam na estela punir quem anteriormente as tivesse transgredido em algum ponto natildeo transgredir propositadamente nenhuma daquelas escrituras no futuro e natildeo governar nem obedecer a nenhum governante a natildeo ser ao que estava estabelecido de acordo com as leis do pai Depois de fazer estas

cada regiatildeo (12 em vez de 10) administrada por um rei esses reis reuniam-se em assembleia em ambiente ritual e tambeacutem junto a um templo e durante esse encontro faziam sacrifiacutecios libaccedilotildees bem como ingeriam uma bebida sacrificial Aleacutem disso faziam juramentos de fidelidade e entreajuda e elegiam um dos reis como soberano Curiosamente esta civilizaccedilatildeo tambeacutem cultivava uma arquitectura rica e monumental

82 Recipiente utilizado para misturar o vinho com aacutegua antes de ser servido

83 Espeacutecie de copo ndash largo baixo sem asa nem peacute ndash utilizado para retirar o vinho do kratecircr durante as libaccedilotildees

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imprecaccedilotildees para si proacuteprio e para aqueles que de si nascessem cada rei bebia e oferecia como ex-voto a phiale ao templo do deus e dedicava-se ao jantar e a tudo o resto de que tinha necessidade Quando chegava a escuridatildeo e o fogo do sacrifiacutecio se extinguia entatildeo todos eles vestidos com um beliacutessimo manto azul-escuro sentavam-se no chatildeo junto agraves cinzas sacrificiais Agrave noite depois de apagarem por completo o fogo junto ao templo eram julgados e julgavam caso algum deles acusasse outro de ter transgredido algum ponto Depois de julgarem quando chegava a claridade registavam as determinaccedilotildees numa placa de ouro que vestidos com o manto ofereciam como monumento

Havia muitas outras leis particulares sobre as prerrogativas de cada rei mas as mais importantes eram as seguintes nunca em circunstacircncia alguma lutarem entre si ajudarem-se todos uns aos outros caso algum deles tentasse alguma vez destituir a famiacutelia real numa cidade e tal como os antepassados deliberar em comunhatildeo as resoluccedilotildees respeitantes agrave guerra e a outros assuntos atribuindo o comando agrave estirpe de Atlas Natildeo era liacutecito que um rei determinasse a morte de nenhum membro da sua famiacutelia se natildeo tivesse o voto de metade dos dez reis

Esta era segundo o relato a natureza e o poderio que outrora existia naquelas terras e que o deus84 por sua vez organizou e dali trouxe aqui para estas terras pelo seguinte motivo Durante vaacuterias geraccedilotildees

84 Tratar-se-aacute provavelmente de Zeus pois na uacuteltima secccedilatildeo que resta do diaacutelogo (121c) eacute dito que este deus decide aplicar uma puniccedilatildeo aos Atlantes

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enquanto a natureza do deus85 os engrandecia foram obedientes agraves leis e mantiveram-se indulgentes agrave ascendecircncia divina em todos os aspectos aspiravam a pensamentos verdadeiros e grandiosos e faziam sempre uso da delicadeza86 juntamente com a prudecircncia87 perante as vicissitudes e nas relaccedilotildees entre si ndash daiacute que desprezavam tudo menos a virtude pouco apreciavam a sua condiccedilatildeo e suportavam com facilidade tal como um fardo o peso do ouro e das outras riquezas Assim por natildeo se inebriarem pela sumptuosidade causada pela riqueza nem se descontrolarem natildeo capitulavam Pelo contraacuterio mantendo-se soacutebrios percebiam com acuidade que tudo isso aumentava graccedilas agrave amizade muacutetua acompanhada da virtude mas que isso mesmo decaiacutea por causa da acircnsia e da veneraccedilatildeo bem como a virtude era destruiacuteda pelo mesmo motivo

Foi graccedilas a esta maneira de pensar e agrave natureza divina que mantinham em si que aumentavam todas estas riquezas de que temos falado Mas quando a parte divina neles se comeccedilou a extinguir em virtude de ter sido excessivamente misturada com o elemento mortal passando o caraacutecter humano a dominar entatildeo incapazes de suportar a sua condiccedilatildeo caiacuteram em desgraccedila e aos olhos de quem tem discernimento pareciam desavergonhados pois haviam destruiacutedo os bens mais nobres que advecircm da honra88 Mas aos olhos

85 Neste caso o deus seraacute Posiacutedon pois era dele que descendiam os Atlantes

86 praotecircs87 phronecircsis88 Note-se a ideia da condiccedilatildeo humana enquanto degeneraccedilatildeo

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daqueles que natildeo conseguem discernir a conduta que corresponde agrave verdadeira felicidade davam a impressatildeo de ser extremamente belos e felizes mas estavam impregnados de uma arrogacircncia injuriosa e de poder89

O deus dos deuses ndash Zeus ndash que reina por meio de leis como tem capacidade para discernir este tipo de acontecimentos apercebeu-se de que uma estirpe iacutentegra estava organizada de um modo lastimoso Entatildeo decidiu aplicar-lhes uma puniccedilatildeo de modo a que eles se tornassem razoaacuteveis e moderados Reuniu todos os deuses na sua nobiliacutessima morada que se encontra estabelecida no centro do mundo e contempla tudo quanto participa no devir90 e depois de os ter reunido disse91

progressiva de uma origem divina89 O processo de queda da civilizaccedilatildeo atlante motivado por

uma degenerescecircncia moral faz lembrar a anaacutelise histoacuterica que Platatildeo dedica ao desmembramento do impeacuterio persa nas Leis Neste diaacutelogo o Estrangeiro de Atenas estabelece um contraste entre o reinado de Ciro eacutepoca em que este povo vivia ldquona justa medida entre a servidatildeo e a liberdaderdquo (694a) e o tempo dos seus descendentes que preferiam a luxuacuteria a desmesura e a licenciosidade (695a-b) para explicar a perdiccedilatildeo persa culminada nos exageros de Xerxes (695d-696b)

90 Ao colocar os deuses liderados por Zeus no centro do mundo criado o discurso de Criacutetias confirma a transmissatildeo de poderes por parte do demiurgo jaacute adianta durante o discurso de Timeu Quando o demiurgo entrega agraves divindades menores a tarefa de fabricar as partes mortais da espeacutecie humana (69c) delega-lhes ao mesmo tempo a tarefa de os governar (42e)

91 O texto termina abruptamente neste ponto por motivos que natildeo se conhecem

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Apecircndices

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254 255

Iacutendice analiacutetico

254 255

Iacutendice analIacutetico1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

abdoacutemen 78a-e 80d 85eaacutecido 66b 74cactividade intelectual 88a cadamante 59badivinhaccedilatildeo v divinaccedilatildeoagudeza 53d 56a 57a 61e

67b 80a-balma 18a 22b 38e 69c

do homem [36-38 41] 27c n57 42d 43a-d 44a-c 45a d 46d 47d 60a 61c-d 65a 67b 69e 72d 73b-d 74e-75a 76a 81d 85e 86b-88c 89e 90a 91b e 92b 109c 112e 121c n90

parte desiderante 70d-e 71b d 77bparte passional 70aparte racional v intelecto

do mundo [26-27 36 40 50] 30b-c 34b-c 36d-e 37b-c 41d

acircnguloagudo 53d 57a 61eplano (60ordm) 54e-55a crecto 53d 55b-csoacutelido (180ordm) 54e-55b

aquilo em que (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar re-ceptaacuteculo suporte) [43-44] 49e 50c

armas 24b 119a-b e 110barqueacutetipo (cf Ideia ser) [33-

34 39 41-42 45-47] 28a-b e 29b 31a 37c 38b 39e 48e

associaccedilatildeo (cf dissociaccedilatildeo) 64e 65c

biacutelis 71b 82e 83b-c 84d 85a-d

bom-senso 89bcausa [23-24 33-38 51] 22c

28a c 29a 44c 46e-47a 57c-d 58a 61b-c 63e-64a

Iacutendice analiacutetico

256 257256 257

65b 66b 67b-c 69a 70b 76c 79a c 80d 84b 85b n262 87e-88a 89a

acessoacuteria 46c-e 68e 76ddivina 69aerrante 48ainstrumental 68enecessaacuteria 68e-69aprimeira 46dprincipal 76dsecundaacuteria 46e

ceacuterebro 67b 76a ccomposiccedilatildeo (cf decomposi-

ccedilatildeo) [40 49] 33a d 36b 41a d 53b 54a c 55a e 58b e 60e 61b 74c-d 81b e 82c 87e

congeacutenere [34 52] 29b 33b 45d 47b d 57b 63c e 71b 76c 77c 79d 80d 81a-b 85a 88e 90a c 91e

coacutepia 29b-ccores 67c-68dcorpo [37 44 49 58] 19c

33a 34b 35a 36d 43c 45c 46d 50b 53c-e 54b 55c-d 56a-e 57c-d 58b-c 60b-c 61b-d 63c-64a d-e 66d 67c-d 92a 109bceleste [30 35 40] 22d 38c edo homem [40 41] 42a d 43a c 44b-47e 51c-d 53c 60a 61d 62a 65b 69c-e 70b-e 72c-76e 77c-86a 87c-89a 90a 91c 107b d 111b 112edo mundo [25 27 33 50]

28b 30b 31b-40d 44ddaimon 27c n57 90a cdecomposiccedilatildeo (cf composi-

ccedilatildeo) 54c 58edemiurgo [26 33 35-36 38-

42 49-50 52-53] 28a 29a-30c 31a 33a 36d n107 39e 41a 42e 68e-69c 106a n2 121c n90

densidade 59b 62c 64adesejo amoroso [37] 42a

69d 91a-cdevir [24 31-33 37 42 44 47

52-53] 27c 28b 29c-e 38a 49a 51a 52a-d 59d 121c

diluacutevio 20e n18 22b d 23b 25c 111a 112a

discurso verosiacutemil (cf verosi-milhanccedila narrativa verosiacute-mil) [48-53] 30b 55d-e 57d 68b 90e

dissemelhanccedila 33b 39e 45a d 51e 53a e 57c 60a 63b-d 80a 83c

dissociaccedilatildeo (cf associaccedilatildeo) 61d 64e 65c

dissoluccedilatildeo 33a 38b 41a-b 52a 53e 56c-d 57a-b 58e 60b-61b 65d 66d 67e 68d 73e 79a 81a 82e-83d 84d-e 85d-e 111e

divinaccedilatildeo 24c 71d-72bdoce v doccediluradoccedilura 60b 66c 71b-c 78ddoenccedila 17a 23a 71e

da alma 44c 86b-92cdo corpo 33a 72c e 81e-86a

256 257

Iacutendice analiacutetico

256 257

dor (cf prazer) 42a 64a-65b 69d 71c 75b 77b 81e 86b d-e

duplicaccedilatildeodo cubo [21 n7]do quadrado 32a-b

dureza 43c 59b 62b 63e 76d

elementos [24-26 29 41 49] 32a-c 43a 44a 48b-c 49b 51a 52d-61c 73a 76b 81e-82c 121aaacutegua [23 29 41 46] 32b-c 42c e 43c 46d 48b 49b-d 51a-b 53b-c 55d 56a-e 57b 58d 59b-61c 66b-e 68a 69b 73b e 74c 78a 79a 80b 82a 86a 92bar [23 29 41] 32b-c 33c 42d-e 45d 46d 48b 49c 51a-b 52d 53b-c 55d-61c 63b-c 64c 66a-67b 73b 77a 78a-d 79b-80a 82a 83c 84b-85a 86a 92bfogo [29 41] 31b 32b-c 40a 42c-e 43c 45b-46d 48b 49b-2 51a-b 53b-54b 55d-61e 63b 64c-d 67e-68b 69b 70c 73b-e 74c 76b 77a 78a-e 79d-e 80d-e 82a 83b 86aterra [29 40-41] 31b 32b-c 42d-43c 44d 46d 48b 49c 51a-b 52d-53e 55d-e 56d-e 58e-61b 63c 66d 73b-e 74c 78a 82a 86a

epilepsia 85b n262

esfera [25 40] 33b 44d 55a c n197 62c 63a 73e

espelho 46a-c 71b 72cEstado [15-16 58 62] 17c

19b 20b 25e 110d n29estaacutedio (medida) 113c 115d-

116c 117c-119aestaleiro naval 115c 117devidecircncia [57] 91e 110e

111cfebre 84e 86afleuma 82e 83c-d 84d-85b

86efluxo (cf refluxo) 43a-b 44b

45c 75e 78c 80b 86e 88a

frio 22e 33a 62b 74b-c 82a 85d

guerra [22 38 54 62 64] 18c 19c-20b 23c 24b d 25b 88e 108c n12 108e-109a 110a-b 119a 120d 121c n90

harmonia [25 30-31] 26d 37a 41a 47c-d 55c 67c 69b 80a-b 90d

hipotenusa 54dhumidade v huacutemidohuacutemido 43c 51b 59a 60c-d

62a 65d-66b 68a-b 74c-d 76a-b 82b

Ideia (cf arqueacutetipo ser) [18-20 31 39 52-53] 27c n57 28a nn 61 64 29a n68 33d n95 35a nn103 104 51c-d

imagem [34 52] 29b 37d 52c 92c

Iacutendice analiacutetico

258 259258 259

imitaccedilatildeo [39 45-46 52-53 62] 19d 38a 39e 40d 41c 42e 47c 48e 50c 51b 69c 81b 88c 107b-c

impressatildeo 42a 43b 44a 45c 52d 57c 58e 61c

instituiccedilatildeo poliacutetica 23c 87aintelecccedilatildeo 37c 46d-e 51d-eintelecto [50] 27c 29b-30c

34a 36d-37a 39e 44a 46d 47d 71b 77b 87c 92b-c 109d 121c n90

Intelecto [23-24 35-37 42] 47b-48a

inteligiacutevel [31-33 43-44 53] 28a nn59 64 30c-31a 38b n120 39e 48e 51a c 92c

interstiacutecio 58b 59c-61birracionalidade [32 36-37]

28a 42d 43b e 47d 69dirregularidade 30a 52e 58d

59a 62b 63ejusticcedila 17d 41c 112ekratecircr 120alei 21e n28 23e-24d 27b

41e 83e 109e 114e n51 119c-120e 121b

limite 51b-c 55c d n199 60b 69e-70e 82b 112a

localizaccedilatildeo (cf aquilo em que lugar receptaacuteculo suporte) [42-47] 52b

loucura 86b-clugar (cf aquilo em que locali-

zaccedilatildeo receptaacuteculo suporte) [42-47] 52a-d

medula [40-41] 73b-75a 77d 81c-d 82c-d 84b 85e

86c 91a-bMesmo [26] 35a-b 36c-40b

42d 43d-44b 83e-84bmito [54 61 n24 62-63]

22b n33 22c 23e n39 26c 90a n278 109c n21 110a

movimento [26 30 35 58 63] 19b 34a 36c 37c 38a 38e-39a 40a-b 43b-c 44d 45d-e 46e 47c-d 48a n163 52a-53a 56c e 57c-58e 59d 61e 62b 64b e 67b-68a 71c 74a e 76b 77c 79b-80b 81a-b 86e 87e 88b-90c

mulher [50] 18c 42b 70a 76d 90e-91d 110b 112d 113c-d 116e 117b

muacutesica [29-31] 18a 35c n106 47c 80b n254 88c

naos 116cnarrativa verosiacutemil (cf discurso

verosiacutemil verosimilhanccedila) [48-53] 29c 59c 68d

nassa [40] 78b-d 79dNecessidade [35-37] 47e

56c 69d 75a 89bordem [35 39 41-42 53]

24b-c 30a 37d 46e 47e 53b 69b 83a 88e 90c 109c-d

organizaccedilatildeo [41-42 54 65] 20a 21b 23e 24d 53a 69c 85c 112c 113e 115c 117a-b 118a 119b-c 120d 121b

oricalco 114e 116c-d 119d

258 259

Iacutendice analiacutetico

258 259

osso 64c 73a-e 74d-75e 76d 82c-d 83d-84b 86d 111b

ouro 18b 50a-b 59b 112c 114e 116c-e 120a c 121a

Outro [26] 35a-b 36c 37a-b 38c-e 43d-44b 74a

pai [22 42] 22c 28c 37c 41a 42e 50d 71d 109c 110b n26 113d 120b

peacute (medida) 115d 118dpensamento 47b 87c 90cpercepccedilatildeo [31] 28bpintura [58] 19b 116b

encaacuteustica 26cde sombreados 107d

phiale 120a-bplanta [31] 59e 77a-c 90apletro 115d 116a d 118cpoesia 21b-c 113apoeta [39-40 56] 19d 21b-d

108bpoliedros regulares

dodecaedro 55c n297hexaedro 55c n196icosaedro [29] 55b n195octaedro [29] 55a n194tetraedro 55a n 193

poro v porosidadeporosidade 72c 79a-c 85c

86dporto 25a 115c-d 117d-epotecircncia (sentido filosoacutefico)

71b 83c (sentido matemaacute-tico) 31c (sentido poliacutetico-militar) [60 64] 24e 25b

prata 18b 112c 116dprazer (cf dor) 42a 47d 59d

64a-65b 69d 77b 80b

81e 86b-e 115bproporccedilatildeo [25 30 41 49]

31c-32c 37a 53a e 56c 68b 69b 82b 116d

providecircncia 30c 44c 45aquente 50a 61d-62a 67d

74c 76b 79d-e 82a 85d 113e 117a-b

raciociacutenio [29 39 43-44 49] 29e 30b 33a 34a 38c 47c 52b 56b 57d 72e 77b-c 86c 107b

receptaacuteculo (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar suporte) [43] 49a 50d-51a 53a 57c

refluxo (cf fluxo) 43a-brepresentaccedilatildeo [34 61-62]

37c 38c 51a 71a 107b e 116e

sabedoria 18a 24b d 109csangue 67b 70b 79d 80e-

81a 82c-84c 85c-d 119e-120a

seco 22d 60c 76d 82b 88d 115a e

sensaccedilatildeo v sensiacutevelsensiacutevel [23 31-33 37 39 44

50] 28b 37b 38b n120 42a 43c 44a 45d 47e n160 51a d 52a-b 61c-62a 64a-65e 67a-d 69d 70b 71a e 74e 75b e 76d 77a-e 80b 92c 106a n2

sentidos [32] 28a-b 38a 42a n140 75aaudiccedilatildeo 47c 64c 67a-colfacto 66c-67a

Iacutendice analiacutetico

260 261260 261

paladar 65b-66ctacto 61c-64avisatildeo 45b-47a 52d 60a 64c-d 67c-68d 91e

ser (op devir cf arqueacutetipo Ideia) [32 42 51-52] 27c n56 27d-28d 29c 34e-35b 37a-38c 48e 52d

sonho 45e 52b 71esopro respiratoacuterio 66e 78a

79b-c 80d 83d 84d 91a c

soro 82e 83csuor 83d 84esuporte (cf aquilo em que lo-

calizaccedilatildeo lugar receptaacuteculo) [43 45] 50c-d

templo [60] 23a 111d 112b-c 113c 114e n51 115b 116c 117c 119d 120b-c

teacutetano 84etouro [60] 119d-etriacircngulo [30] 48c n165 50b

53c 54a-55e 57d 58d 61a 73b 81b-d 82d 89cequilaacutetero [30] 54a-55eisoacutesceles [30] 54a-c 55brectacircngulo [30] 54d

verosimilhanccedila (cf discurso ve-rosiacutemil narrativa verosiacutemil) [32 35 39] 29c 44c 48b d 53d 56b-c 59d 67d 72d 107d

virtude [65] 24d 34b-c 86d n263 87d 109c 110c 112e 120e-121a

260 261

Iacutendice de nomes e lugares

260 261

Iacutendice de nomes e lugares1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

Anferes 114bApatuacuterias 21bApolo 108cAacutesia [60] 24b e 112e 118eAsopo 110eAtena [16 n2] 20e n19 21e

23e n39 109c 112bAtenas [16 22-23 53-54 61-

62 64-65 67-68] 21b n22 c n25 23e n39 108c n13 110b n27 121b n90

Atenienses [23 61 n24 64-65 68] 21e 23c 24b n40 27b 109a 121c n90

Aacutetica [59 68] 110eAtlantes [68] 109a n18 114e

n51 120d nn84 85Atlacircntida [16 22 53-56 59-

62 64 68] 25a-sqq 108e 113c e 114b n47

Atlas [59] 114b d 120dAutoacutecton 114c

Azais 114cCiteacuteron 110eColunas de Heacuteracles (Estrei-

to de Gibraltar) 24e 25c 108e 114b-c

Cureoacutetis 21bDeucaliatildeo 22b 112aDiaprepes 114cEgipto [22 57-58 60-61]

21c e 24b n40 25b 114c 119d n81

Elasipo 114cErictoacutenio 23e n39 110bErisiacutecton 110bEriacutedano 112aEumelo 114bEuropa [64] 24e 25b 112eEveacutemon 114bFaetonte 22cFoacutercis 40eForoneu 22aGadiacuterica [60] 114b

Iacutendice de nomes e lugares

262 263262 263

Gadiro [60] 114bGeia 23e 40eHefesto 23e 109c 112bHeacutelios 22cHera 40eHesiacuteodo 21cHomero 21cIstmo de Corinto 110dItaacutelia [21] 20aJusticcedila (divindade) 109bLiacutebia 24e 25b 108eLoacutecride [21 27] 20aMestor 114cMnemoacutesine 108dMneacuteseas 114bMusas 23a 47d-e 73a 108cNeith (Atena) 21eNereides 116eNilo 21e 22d 24b n41Niacuteobe 22aOceano (divindade) 40eOceano Atlacircntico [56 n18]

24e 114aOroacutepia 110eOropo 110d n30Panateneias [16-17 65] 21a

n19 23e n39 108c n12Parnaso 110ePirra 22b 112a n38Posiacutedon [60] 113c-e 114b

n47 e n51 116c 117b 119c-d 119d n81 120e n85

Pseacutenopis de Helioacutepolis 22a n30

Reia 40eSais 21e 22a n30Saiticos 21e

Soacutelon [22 57-58] 20e 21a-22b 23b-c 25b e 27b 110a 113a

Socircnquis de Sais 22a n30Teacutetis 40eTirreacutenia 25b 114cZeus [38 60] 40e 109c n21

111d 114b n47 116e n68 118e 120d n84 121b c n90

262 263

Glossaacuterio

262 263

glossaacuterio

agalma representaccedilatildeoagnoia ignoracircnciaaisthecircsis sensaccedilatildeo percepccedilatildeoaitia causaalogos irracionalamathia ignoracircnciaanankecirc Necessidadeanalogia proporccedilatildeoanocircmalos irregularanomoiotecircs dissemelhanccedilaapeikasia representaccedilatildeoapollymenon corruptiacutevel (sujei-

to agrave corrupccedilatildeo)aretecirc virtudeblepocirc contemplar (ldquopocircr os

olhos emrdquo)chocircra lugar(to) diakenon interstiacuteciodiakosmecircsis organizaccedilatildeodiakrisis dissociaccedilatildeodialyocirc desintegrardianoecircsis actividade intelecti-

va intelecto

dianoia actividade intelectual desiacutegnio disposiccedilatildeo pensa-mento

diataxis ordenaccedilatildeodynamis potecircncia proprieda-

deeidos Ideia formaeikocircn coacutepia imagemeikos verosiacutemileikos logos discurso verosiacutemileikos mythos narrativa verosiacute-

milekmageion suporte(to) en ocirc aquilo em queepistecircmecirc saberepithymia parte desiderante da

alma (v alma)erocircs desejo amorosogenesis devir geraccedilatildeogenos espeacutecie linhagemgignomai gerar(to) gignomenon deveniente (v

devir)

Glossaacuterio

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harmonia harmoniahedra localizaccedilatildeo(to) heteron Outrohypodochecirc receptaacuteculokoilia abdoacutemenkata tauta aei imutaacutevelkenos vaziokenocircsis esvaziamentokerannymi misturar (v mistu-

ra)kinecircsis movimentokosmos mundologismos desiacutegnio raciociacuteniologos discursolysis dissoluccedilatildeolyocirc dissolvermania loucurameignymi misturar (v mistu-

ra)meixis misturamimecircma mimecircsis imitaccedilatildeomonimos estaacutevelmonocircsis singularidadenoecirctos inteligiacutevelnous intelecto intelecccedilatildeo pro-

poacutesito bom-sensohomoiotecircs semelhanccedila(to) on o que eacute (v ser)ousia ser (to) pan universopathecircma afecccedilatildeoparadeigma arqueacutetipo exem-

plopaideia paideusis educaccedilatildeophronecircsis inteligecircncia pensa-

mento sabedoriaphthora destruiccedilatildeophysis natureza

plecircrocircsis enchimentopneuma sopro respiratoacuteriopoliteia Estado instituiccedilatildeo

poliacutetica (p koinecirc) vida em comunidade

praotecircs delicadezapronoia providecircncia (divina)

capacidade de antecipaccedilatildeo (da alma humana)

syngenecircs congeacuteneresynkrisis associaccedilatildeosynaitia causa acessoacuteriasynisthecircmi constituirsyntithecircmi comporsymmetria proporcionalidadesystasis constituiccedilatildeo estruturasyntaxis sistematizaccedilatildeotaxis ordemtauton Mesmotekmecircrion evidecircnciatecirckocirc derreter dissolverthymos parte passional da alma

(v alma)zocircon ser-vivo

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volumes puBlicados na ColeCccedilatildeo Autores GreGos e lAtinos ndash seacuterie textos GreGos

1 Delfim F Leatildeo e Maria do Ceacuteu Fialho Plutarco Vidas Paralelas ndash Teseu e Roacutemulo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

2 Delfim F Leatildeo Plutarco Obras Morais ndash O banquete dos Sete Saacutebios Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

3 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Banquete Apologia de Soacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

4 Carlos de Jesus Joseacute Luiacutes Brandatildeo Martinho Soares Rodolfo Lopes Plutarco Obras Morais ndash No Banquete I ndash Livros I-IV Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

5 Aacutelia Rodrigues Ana Elias Pinheiro Acircndrea Seiccedila Carlos de Jesus Joseacute Ribeiro Ferreira Plutarco Obras Morais ndash No Banquete II ndash Livros V-IX Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

6 Joaquim Pinheiro Plutarco Obras Morais ndash Da Educaccedilatildeo das Crianccedilas Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

7 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Memoraacuteveis Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

8 Carlos de Jesus Plutarco Diaacutelogo sobre o Amor Relatos de Amor Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

9 Ana Maria Guedes Ferreira e Aacutelia Rosa Conceiccedilatildeo Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Peacutericles e Faacutebio Maacuteximo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

10 Paula Barata Dias Plutarco Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo Como Retirar Benefiacutecio dos Inimigos Acerca do Nuacutemero Excessivo de Amigos Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

11 Bernardo Mota Plutarco Obras Morais - Sobre a Face Visiacutevel no Orbe da Lua Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

12 J A Segurado e Campos Licurgo Oraccedilatildeo Contra Leoacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH CEC 2010)

13 Carmen Soares e Roosevelt Rocha Plutarco Obras Morais - Sobre o Afecto aos Filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

14 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Plutarco Vidas de Galba e Otatildeo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

15 Marta Vaacuterzeas Plutarco Vidas Paralelas ndash Demoacutestenes e Ciacutecero Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

16 Maria do Ceacuteu Fialho e Nuno Simotildees Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Alcibiacuteades e Coriolano Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

17 Gloacuteria Onelley e Ana Luacutecia Curado Apolodoro Contra Neera [Demoacutestenes] 59 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2011)

18 Rodolfo Lopes Platatildeo Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices (Coimbra CECH 2011)

ImpressatildeoSimotildees amp Linhares Lda

Av Fernando Namora nordm 83 - Loja 43000 Coimbra

O projecto Timeu-Criacutetias circula todo ele em torno dos conceitos de origem criaccedilatildeo e constituiccedilatildeo ordenada num primeiro momento cosmoloacutegicas e num segundo soacutecio‑poliacuteticas ou mesmo civilizacionaisNo Timeu um princiacutepio divino inteligente (o demiurgo) molda como um artiacutefice a mateacuteria preacute‑coacutesmica em obediecircncia a um modelo de racionalidade externo (o arqueacutetipo) O resultado eacute o mundo uma imagem do modelo e o Homem um microcosmosNo Criacutetias depois de suposta a cosmologia encena‑se uma guerra entre duas civilizaccedilotildees contrastantes (e tambeacutem elas arquetiacutepicas) que serve de paradigma para a constituiccedilatildeo originaacuteria das sociedades e tambeacutem para a natureza ciacuteclica da supremacia poliacutetica Deste breve texto natildeo resta senatildeo a parte inicial que permite natildeo mais do que suposiccedilotildees instaacuteveis Sobreviveu poreacutem um patrimoacutenio ficcional riquiacutessimo em tudo o que se tem criado sobre a suposta Ilha da Atlacircntida e o mito a que deu origem

  • Capa
  • Folha de rosto
  • Ficha teacutecnica
  • Iacutendice
  • Nota preacutevia
  • Introduccedilatildeo
    • I Aspectos extratextuais
      • 1 O projecto Timeu-Criacutetias
      • 2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo
      • 3 Personagens
        • II Aspectos temaacutetico-estruturais
          • 1 Antecedentes cosmoloacutegicos
          • 2 O discurso de Timeu
          • 21 Pressupostos iniciais
          • 22 Intelecto e Necessidade
          • 23 O demiurgo
          • 24 O terceiro niacutevel ontoloacutegico
          • 25 O estatuto do discurso
          • 3 O discurso de Criacutetias
          • 31 A historicidade da narrativa sobre aAtlacircntida
          • 32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeode Platatildeo
          • 33 Leituras alegoacutericas
          • 4 Estrutura dos diaacutelogos
              • Timeu
              • Criacutetias
              • Apecircndices
                • Bibliografia
                • Iacutendice analiacutetico
                • Iacutendice de nomes e lugares
                • Glossaacuterio
                  • Volumes publicados na Colecccedilatildeo Autores Gregos e Latinos ndash Seacuterie Textos Gregos
                  • Coacutelofon
                  • Contracapa
Page 3: Timeu-Crítias · 2018. 8. 8. · 6 7 no t a p r é v i a O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova tradução do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira

Autor PlatatildeoTiacutetulo Timeu-Criacutetias

Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices Rodolfo Lopes Editor Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Ediccedilatildeo 1ordf2011

Coordenador cientiacutefico do plano de ediccedilatildeo Maria do Ceacuteu FialhoConselho editorial Joseacute Ribeiro Ferreira Maria de Faacutetima Silva

Francisco de Oliveira Nair Castro SoaresDirector teacutecnico da colecccedilatildeo Delfim F Leatildeo

Concepccedilatildeo Graacutefica Rodolfo Lopes

Obra realizada no acircmbito das actividades da UIampDCentro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos

Universidade de CoimbraFaculdade de Letras

Tel 239 859 981 | Fax 239 836 7333000-447 Coimbra

ISBN 978-989-8281-83-8ISBN Digital 978-989-8281-84-5

Depoacutesito Legal 32599511

Obra publicada com o apoio de

copy Classica Digitalia Vniversitatis Conimbrigensiscopy Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos da Universidade de Coimbra

Reservados todos os direitos Nos termos legais fica expressamente proibida a reproduccedilatildeo total ou parcial por qualquer meio em papel ou em ediccedilatildeo electroacutenica sem autorizaccedilatildeo expressa dos titulares dos direitos Eacute desde jaacute excepcionada a utilizaccedilatildeo em circuitos acadeacutemicos fechados para apoio a leccionaccedilatildeo ou extensatildeo cultural por via de e‑learning

Todos os volumes desta seacuterie satildeo sujeitos a arbitragem cientiacutefica independente

Iacutendice

Nota preacutevia 7

Introduccedilatildeo 11I Aspectos extratextuais 131 O projecto Timeu-CriacuteTias 132 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo 153 Personagens 20II Aspectos temaacutetico-estruturais 231 Antecedentes cosmoloacutegicos 232 O discurso de Timeu 3121 Pressupostos iniciais 3222 Intelecto e Necessidade 3423 O demiurgo 3824 O terceiro niacutevel ontoloacutegico 4225 O estatuto do discurso 483 O discurso de Criacutetias 5331 A historicidade da narrativa sobre a Atlacircntida 5532 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de Platatildeo 5633 Leituras alegoacutericas 634 Estrutura dos diaacutelogos 65

Timeu 69

CriacuteTias 213

ApecircndicesBibliografia 249Iacutendice analiacutetico 255Iacutendice de nomes e lugares 261Glossaacuterio 263

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nota preacutevia

O volume que se segue pretende por um lado apresentar uma nova traduccedilatildeo do Timeu e por outro disponibilizar a primeira versatildeo do texto do Criacutetias em portuguecircs Pelas razotildees que exporemos posteriormente (vide infra pp 13-15) a nossa proposta assenta em considerar ambos os diaacutelogos como um bloco uno tanto a niacutevel dramaacutetico como narrativo

Em relaccedilatildeo agraves duas traduccedilotildees do Timeu jaacute existentes no seguimento das quais esta forccedilosamente se inscreve cumpre esclarecer alguns aspectos A primeira de Manuel Maia Pinto (Porto Imprensa Moderna 1951) aleacutem do facto de contar com quase 50 anos denuncia bastantes fragilidades inexplicavelmente omite a secccedilatildeo inicial do texto (17a-20c) e assenta em pressupostos no miacutenimo discutiacuteveis como por exemplo a identificaccedilatildeo do demiurgo com Eros (eg pp 44 46) ou das Ideias com Deus na sua versatildeo judaico-cristatilde (eg pp 42 47) Jaacute a segunda da autoria de Maria Joseacute Figueiredo (Lisboa

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Instituto Piaget 2003) situa-se num niacutevel diferente na medida em que se manteacutem fiel ao texto grego ao seu autor e ao contexto histoacuterico-filosoacutefico que os enquadram bem como conta com uma excelente introduccedilatildeo da autoria de Joseacute Trindade Santos Em relaccedilatildeo a esta a nossa procuraraacute oferecer interpretaccedilotildees alternativas de alguns passos e uma anotaccedilatildeo mais vocacionada a por um lado esclarecer certas secccedilotildees do texto (principalmente as meta-narrativas) e por outro a propor algumas relaccedilotildees intertextuais As grandes diferenccedilas satildeo a ediccedilatildeo de base (a autora segue a de Rivaud) e a inclusatildeo na nossa versatildeo de iacutendices remissivos e glossaacuterio

Quanto agrave introduccedilatildeo procuraacutemos esclarecer alguns aspectos extratextuais (I) (1) a unidade dos dois diaacutelogos (2) a dataccedilatildeo e (3) as personagens Em relaccedilatildeo ao conteuacutedo tentaacutemos explicar com mais detalhe algumas questotildees que natildeo poderiam ser abrangidos nas notas em virtude da sua complexidade ou simplesmente porque pretendem acima de tudo situar o texto num quadro histoacuterico-filosoacutefico mais abrangente (II) (1) os antecedentes cosmoloacutegicos (2) o estatuto e estrutura da intervenccedilatildeo de Timeu e tambeacutem (3) da de Criacutetias Finalmente providenciaacutemos uma esquematizaccedilatildeo analiacutetica dos assuntos tratados nos diaacutelogos Como apensos agrave traduccedilatildeo incluiacutemos a lista da bibliografia citada um glossaacuterio dos termos mais importantes e respectivas traduccedilotildees seguido de um iacutendice analiacutetico e outro de nomes e lugares

Para a traduccedilatildeo seguimos a ediccedilatildeo estabelecida por Burnet salvo nalguns casos isolados em que se

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impunham alteraccedilotildees sugeridas e justificadas por novos dados entretanto aduzidos Em todos estes casos a divergecircncia foi devidamente assinalada em nota

Resta agradecer a todos quantos de algum modo participaram neste trabalho Maria do Ceacuteu Fialho e Maria Luiacutesa Portocarrero pela diligente orientaccedilatildeo da dissertaccedilatildeo da qual foi extraiacuteda grande parte dos elementos deste volume (toda a traduccedilatildeo do Timeu e cerca de dois terccedilos da introduccedilatildeo) Aacutelia Rodrigues Antoacutenio Pedro Mesquita Carlos A Martins de Jesus Delfim F Leatildeo Gabriele Cornelli Joatildeo Diogo Loureiro Maria Teresa Schiappa de Azevedo pela leitura criacutetica do manuscrito e tambeacutem ao Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos por ter acolhido com interesse a publicaccedilatildeo

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i aspectos extratextuais

1 O projecto Timeu-CriacutetiasA unidade entre os dois diaacutelogos verifica-se tanto

ao niacutevel dramaacutetico quanto ao temaacutetico Mas aleacutem de impliacutecita nestes duas dimensotildees a sequecircncia diegeacutetica eacute confessada pelos proacuteprios participantes Logo no iniacutecio do Timeu Criacutetias ao anunciar a Soacutecrates qual seraacute o programa (diathesis) de conversaccedilotildees para aquela ocasiatildeo diz muito claramente que a seguir a Timeu discursaraacute ele proacuteprio

Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada (27a2-27b1)

Rodolfo Lopes

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A inclusatildeo de ambos os discursos no mesmo programa aliada ao gesto de Timeu passar a palavra a Criacutetias depois de terminar a sua intervenccedilatildeo tal como fora combinado (106b6-7) eacute motivo suficiente para considerar que haacute uma clara continuidade Para aleacutem disso uma leitura superficial de ambos seraacute com certeza bastante para perceber que eacute notoacuteria a intenccedilatildeo de Platatildeo em consideraacute-los partes de um todo em termos gerais o Timeu ocupa-se da constituiccedilatildeo do mundo e do Homem enquanto que o Criacutetias daacute seguimento a esse projecto ao apresentar a constituiccedilatildeo da dimensatildeo social ou seja da sua integraccedilatildeo em comunidade no mundo criado

Desta indissociabilidade datildeo tambeacutem conta as orientaccedilotildees dos estudos platonistas que cada vez mais tendem a considerar os dois como um soacute Aleacutem da uacuteltima grande monografia sobre estas obras (Johansen 2004) o congresso que lhes dedicou a International Plato Society aborda-as igualmente como um todo e natildeo como diaacutelogos separados (Calvo amp Brisson 1997) Ainda assim ao longo dos seacuteculos as atenccedilotildees sempre estiveram mais voltadas para o Timeu em virtude das questotildees filosoacuteficas nele abordadas Por esse motivo grande parte do que se trataraacute nesta Introduccedilatildeo diraacute respeito a esse diaacutelogo mas tendo sempre em conta que a ligaccedilatildeo com o Criacutetias eacute de tal forma estreita que nos permite encaraacute-los como uma obra soacute

De acordo com algumas breves referecircncias de que dispomos era provaacutevel que este projecto de Platatildeo incluiacutesse um terceiro diaacutelogo ndash o Hermoacutecrates ndash formando assim uma trilogia Logo no iniacutecio do Timeu

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quando Soacutecrates refere Hermoacutecrates faz questatildeo de o declarar competente em todos aqueles assuntos (20a8) e ao apresentaacute-lo nos mesmos moldes que as outras duas personagens parece implicar que tambeacutem uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele Essa possibilidade esclarece-se jaacute no Criacutetias quando Soacutecrates diz que Hermoacutecrates seraacute o terceiro a falar (108a) Contudo eacute muitiacutessimo provaacutevel que esse projecto nunca tenha sido consumado

2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeoAo abordarmos a data de uma obra com uma

estrutura desta natureza deveremos antes de mais ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista distintos o da data dramaacutetica isto eacute a altura ou eacutepoca a que se reporta a acccedilatildeo narrada por outro lado o da data real de composiccedilatildeo o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra

No que respeita agrave data dramaacutetica o seu estabelecimento dependeraacute da escolha de uma de duas vias Se considerarmos que Soacutecrates em 17c se refere agrave Repuacuteblica quando alude ao diaacutelogo que tinha travado com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor entatildeo a data dramaacutetica situar-se-aacute no dia a seguir agrave daquele outro diaacutelogo ndash por volta do ano 420 ou 421 aC durante as Bendideias1 Poreacutem se nos ativermos unicamente agravequilo que diz o texto sobre este aspecto a data apontada eacute um

1 Apud Pereira 2001 p XIII As Bendideias eram um festival religioso realizado no mecircs de Thargeleion (Junho)

Rodolfo Lopes

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pouco diferente pois em 26e Soacutecrates refere de forma indirecta que aquele encontro se processa durante as Panateneias2 Quanto ao ano teraacute sido entre 430 e 425 aC (apud Taylor 1928 p 15 Duraacuten 1992 p 134 Brisson 2001 p 72) portanto alguns anos antes da Repuacuteblica

Aquela associaccedilatildeo com a Repuacuteblica de que depende a primeira via carece de alguma consistecircncia podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razotildees Nota muito bem Cornford (1937 pp 4-5) que o ldquoontemrdquo a que Soacutecrates se refere natildeo tem forccedilosamente que ser o dia do encontro na casa de Ceacutefalo mas poderaacute ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questotildees que nesse diaacutelogo satildeo tambeacutem discutidas Em segundo lugar a referecircncia agraves Panateneias natildeo eacute de todo inocente pois coaduna-se com o elogio de Criacutetias agrave vitoacuteria de Atenas sobre a Atlacircntida (20d-26c) bem como justifica a presenccedila de Hermoacutecrates (um estrangeiro) na cidade Aleacutem disso o resumo que Soacutecrates faz da conversa que tinham tido no dia anterior sobre o Estado ideal natildeo inclui todos os assuntos tratados na Repuacuteblica o que entra em contradiccedilatildeo com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais (to kephalaion 17c2) Por outro lado deve tambeacutem sublinhar-se que Soacutecrates inclui todos os presentes na dita conversa do dia anterior (17a1-2)3 Ora sabemos que nenhuma das personagens

2 O festival dedicado agrave deusa Atena tradicionalmente celebrado no 28ordm dia do mecircs de Hecatombeon (meados de Julho)

3 Note-se inclusivamente o uso da primeira pessoa do plural quando eacute referido o tal encontro do dia anterior (eg 17c7

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do Timeu excepto Soacutecrates participa na Repuacuteblica Deste modo seraacute porventura mais prudente optar pela segunda hipoacutetese e estabelecer a data dramaacutetica na altura das Panateneias

Quanto agrave data real de composiccedilatildeo eacute tradicionalmente situada nos uacuteltimos anos da vida de Platatildeo poreacutem houve algumas tentativas de a fazer recuar um pouco Segundo a primeira hipoacutetese (a mais antiga) o diaacutelogo pertence agrave uacuteltima fase da qual fazem parte tambeacutem o Sofista o Poliacutetico o Filebo e as Leis de acordo com a segunda ele deveraacute pelo contraacuterio ser incluiacutedo na fase meacutedia juntamente com Craacutetilo Feacutedon Banquete Repuacuteblica Fedro Parmeacutenides e Teeteto

A hipoacutetese tradicional foi postulada ainda na Antiguidade Plutarco por exemplo acreditava que o Criacutetias natildeo tinha sido acabado porque Platatildeo morrera enquanto o escrevia4 No entanto jaacute no seacuteculo XIX comeccedilaram a surgir algumas opiniotildees que apontavam para a inclusatildeo do diaacutelogo na fase meacutedia (vide Cherniss 1957 p 226 n 3) e jaacute na primeira metade do seacuteculo XX Taylor (1928 pp 4-5) admite no seu comentaacuterio ao Timeu que essa possibilidade devia ser tida em conta Alguns anos mais tarde esta hipoacutetese atinge o estatuto de tese quando Owen (1953) publica um artigo em que defende a sua validade com base em dois argumentos ndash um mais formal outro temaacutetico Por um lado partindo das anaacutelises estilomeacutetricas de Billig5 conclui

dieilometha 17d2 eipomen 18c1 epemnecircsthecircmen)4 Vida de Soacutelon 325 Billig (1920) Este autor fixar a cronologia do corpus Platonicum

atraveacutes de estudos estatiacutesticos baseados em padrotildees de frequecircncia de

Rodolfo Lopes

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que o estilo do Timeu (e do Criacutetias) nada tem que ver com o dos diaacutelogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista Poliacutetico Filebo e Leis) mas que pelo contraacuterio estava muito proacuteximo do dos diaacutelogos meacutedios particularmente da Repuacuteblica do Fedro do Parmeacutenides e do Teeteto (Owen 1953 pp 80-82) Por outro lado Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Platatildeo aparecem no Timeu e noutros diaacutelogos da fase meacutedia no sentido de demonstrar que este seraacute obrigatoriamente anterior a alguns daqueles Diz por exemplo que o modo admiravelmente estaacutevel como a doutrina das Ideias aparece no Timeu eacute uma evidecircncia de que a obra seraacute mais anterior do que defende a hipoacutetese tradicional pois soacute no Parmeacutenides foi submetida a uma refutaccedilatildeo de tal forma irrepreensiacutevel que seria impensaacutevel que Platatildeo tivesse redigido o Timeu apoacutes o Parmeacutenides (Owen 1953 pp 82-83)

O artigo de Owen em virtude das ousadas conclusotildees que apresentava obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso Eacute Cherniss que quatro anos mais tarde vem desconstruir toda a sua argumentaccedilatildeo reforccedilando assim a posiccedilatildeo da teoria tradicional As suas conclusotildees muito bem fundamentadas apontam para que Craacutetilo Parmeacutenides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e

palavras e construccedilotildees sintaacutecticas Depois de recolhidos estes dados eram cruzados e analisados de forma a permitir um agrupamento estanque e inequiacutevoco dos diaacutelogos Este tipo de anaacutelise foi posteriormente alargado e ateacute melhorado com o contributo da informaacutetica mas continuou a carecer de alguma fiabilidade em virtude dos anacronismos resultantes

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que mais importante as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos diaacutelogos da fase tardia (Cherniss 1957 p 266)

Com efeito parece-nos que as teses de Owen natildeo se baseiam em dados suficientemente soacutelidos para abandonar a hipoacutetese tradicional Por um lado as anaacutelises estilomeacutetricas constituem um perigo metodoloacutegico que ameaccedila contaminar a coerecircncia da tarefa pois baseiam-se numa recolha ndash e posterior tratamento ndash de dados de um modo estatiacutestico que por se tratar de um processo linear e mecanizado pode aduzir agrave investigaccedilatildeo um sem nuacutemero de pequenos erros os quais imperceptivelmente multiplicados de um modo quase exponencial podem resultar em conclusotildees bastante problemaacuteticas Num desses estudos em que Owen se baseou o Criacutetias aparece muito distante do Timeu ainda que seja o proacuteprio autor a confessar e a corrigir esse erro (Owen 1953 p 80) acaba por denunciar as fragilidades daquele tipo de ferramenta Por outro lado a forma como lecirc o confronto das doutrinas de Platatildeo eacute tambeacutem faliacutevel pois admite uma perspectiva contraacuteria e igualmente vaacutelida Por exemplo o referido caso da doutrina das Ideias poderaacute ser interpretado do modo oposto apoacutes ter sido refutada no Parmeacutenides Platatildeo reformulou-a no Timeu ao acrescentar o terceiro princiacutepio ontoloacutegico ao processo de participaccedilatildeo ainda que como veremos a sua contribuiccedilatildeo se processe em contornos muitiacutessimo particulares

Rodolfo Lopes

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3 PersonagensNos diaacutelogos participam quatro personagens

aleacutem de uma outra que eacute referida logo na primeira frase mas da qual natildeo resta qualquer notiacutecia Soacutecrates Timeu Hermoacutecrates e Criacutetias

Quanto ao primeiro que teria entre 40 a 45 anos agrave data dramaacutetica (apud Brisson 2001 p 72) pouco haveraacute a acrescentar aos milhares de paacuteginas que tecircm sido escritos ao longo dos tempos a natildeo ser o pormenor que muito bem notou Vlastos (1991 p 264) acerca da evoluccedilatildeo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cacircnone platoacutenico o facto de Soacutecrates se interessar por filosofia natural ou melhor por ciecircncias naturais como a biologia a fiacutesica a astronomia ou a quiacutemica ao contraacuterio do que acontecia em fases anteriores em que as suas preferecircncias cientiacuteficas estavam limitadas agraves ciecircncias matemaacuteticas como sugere a Repuacuteblica (vide 522b-sqq) No que respeita agraves restantes personagens cumpre dizer algumas palavras

Comeccedilando pelo primeiro protagonista Timeu cuja intervenccedilatildeo ocupa a grande maioria do que resta do texto (27c-106c) natildeo haacute evidecircncias concretas de que tenha realmente existido6 Com efeito todas as referecircncias a este suposto filoacutesofo pitagoacuterico satildeo posteriores ao diaacutelogo seu homoacutenimo no qual se diz ser um abastado cidadatildeo de Loacutecride na Itaacutelia tendo ali ocupado altos cargos na administraccedilatildeo poliacutetica e por isso recebido grandes louvores por parte dos

6 Natildeo confundir com o historiador homoacutenimo que viveu cerca de um seacuteculo depois

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habitantes locais (20a) De facto dadas as seacuterias duacutevidas em relaccedilatildeo ao Timeu histoacuterico haacute quem veja nele uma maacutescara de outra personalidade Ciacutecero refere nos Academica (11016) que Platatildeo quando foi pela primeira vez agrave Siciacutelia conviveu muito de perto com Timeu de Loacutecride e tambeacutem com Arquitas de Tarento Se a existecircncia do primeiro eacute duvidosa quanto agrave do segundo natildeo restam duacutevidas aleacutem de um poliacutetico exemplar Arquitas foi um matemaacutetico brilhante7 e mestre de ilustres matemaacuteticos como o proacuteprio Eudoxo conforme atesta Dioacutegenes Laeacutercio (8861) Por isso eacute possiacutevel que Timeu represente Arquitas contudo os dados disponiacuteveis natildeo permitem mais do que simples conjecturas

Por outro lado este caraacutecter fictiacutecio da personagem leva os estudiosos a questionar se Timeu natildeo seraacute um simples pseudoacutenimo de Platatildeo como fora inicialmente proposto por Wilamowitz-Moellendorff (1920 pp 591-592) e mais tarde desenvolvido por Cornford (1937 p 3) que sustentava esta argumentaccedilatildeo com o facto de ser impossiacutevel apontar algueacutem daquela eacutepoca que reunisse conhecimentos tatildeo aprofundados sobre tantas aacutereas do saber

Quanto a Criacutetias personagem responsaacutevel por narrar o episoacutedio da guerra que opocircs a Atenas primeva agrave Atlacircntida eacute sem duacutevida a figura que levanta mais dificuldades de ordem histoacuterica O principal problema eacute que a aacutervore genealoacutegica desta famiacutelia conta com quatro

7 Eacute-lhe por exemplo atribuiacuteda a duplicaccedilatildeo do cubo (DK 47A14)

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figuras com o nome ldquoCriacutetiasrdquo o I filho de Dropidas I e irmatildeo de Dropidas II (a quem Soacutelon teraacute transmitido o relato trazido do Egipto vide 20e) o II filho de Dropidas II um III neto do II e tio-avocirc de Platatildeo e um IV8 o dos Trinta Tiranos neto do III e primo do autor

A teoria tradicional proposta desde logo por Burnet (1914 p 338) e seguida por Cornford (1937 p 2) sustentava que se tratava do Criacutetias III tratava-se no fundo de fazer feacute nas palavras de Platatildeo Em todo o caso faltava ainda preencher o enorme fosso geracional entre este e Dropidas II Finalmente em 1949 surgiu num ostrakon encontrado na aacutegora de Atenas um registo que demonstrava a existecircncia histoacuterica de Ledas pai do Criacutetias III e filho de Dropidas II (vide Nails 2002 pp 106-107) Assim se confirmou com dados concretos a suspeita de Burnet

No que respeita a Hermoacutecrates o autor do suposto diaacutelogo pensado para seguir o Criacutetias a sua participaccedilatildeo limita-se a duas breves intervenccedilotildees (20d 108c) Quanto agrave sua existecircncia histoacuterica ela eacute inegaacutevel segundo Tuciacutedides (472) tratava-se de um homem de admiraacutevel inteligecircncia e coragem aleacutem de muitiacutessimo experiente em assuntos militares e notabilizou-se por ter previsto os planos expansionistas de Atenas logo em 424 aC (452) jaacute Proclo seguindo a mesma ideia de Tuciacutedides sublinha o seu protagonismo na vitoacuteria contra os Atenienses aquando da invasatildeo de Siracusa (Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo 17119-sqq)9 Note-

8 Participante no Caacutermides no Protaacutegoras e referido indirectamente na Carta VII (324c-d)

9 Sobre esta expediccedilatildeo militar vide infra pp 64-65

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se poreacutem que esta expediccedilatildeo foi posterior agrave data dramaacutetica do diaacutelogo

ii aspectos temaacutetico-estruturais

1 Antecedentes cosmoloacutegicosO texto do Timeu estabelece a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel e posteriormente dos seres que o habitam com particular evidecircncia para o Homem Considerando que este seraacute o eixo temaacutetico em torno do qual gira toda a narrativa eacute forccediloso que o diaacutelogo seja contextualizado num movimento que comeccedilara nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos A relaccedilatildeo de Platatildeo com esta tradiccedilatildeo eacute quase sempre ambiacutegua se por um lado a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes por outro importa dela vaacuterios elementos cuja autoria propositadamente silencia Daquela primeira inclinaccedilatildeo datildeo-nos testemunho vaacuterias passagens no Feacutedon (97c-99a) Soacutecrates confessa-se bastante desiludido com Anaxaacutegoras pelo facto de este inicialmente ter proposto o Intelecto (Nous) como causa de todas as coisas e posteriormente o ter trocado por princiacutepios naturais (ar aacutegua etc) nas Leis (889a-890a) onde o Estrangeiro de Atenas critica a tradiccedilatildeo dizendo que aquelas investigaccedilotildees estavam presas ao mundo do devir e por isso eram impassiacuteveis de constituir conhecimento estaacutevel ndash a principal censura eacute como no Feacutedon natildeo considerar o Intelecto como causa (889c5 ou de dia noun)

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Assim o Timeu surge como resposta ou proposta de substituiccedilatildeo das abordagens naturalistas a que segundo Platatildeo se tinham dedicado os preacute-socraacuteticos (cf Santos 2003 pp 18-22 47-50) Inscreve-se pois nessa tradiccedilatildeo como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade O exemplo mais claro desta dupla relaccedilatildeo ndash adaptaccedilatildeo e ruptura ndash eacute justamente o caso do Intelecto como veremos a sua concepccedilatildeo enquanto princiacutepio de racionalidade seraacute um dos elementos centrais da cosmologia platoacutenica

Quanto aos elementos que dela retira eles satildeo apenas acessiacuteveis por meio de reconstituiccedilotildees hermenecircuticas porquanto permanecem no anonimato No caso do Timeu os mais flagrantes e fundamentais seratildeo os adaptados de Empeacutedocles e do pitagorismo enquanto que os restantes se resumem a alguns aspectos pontuais10

Aleacutem das oacutebvias semelhanccedilas entre os quatro elementos e as ldquoraiacutezesrdquo (rhizocircmata) de Empeacutedocles (DK 31B6) haacute diversos pontos de contacto entre os quais poderemos citar alguns exemplos Contudo como veremos eacute incorrecto supor que Platatildeo tenha simplesmente decalcado esses dados doutrinas ou teorias pois na maior parte dos casos essa importaccedilatildeo implicou uma evidente adaptaccedilatildeo motivada por um dos pressupostos mais importantes do diaacutelogo a clara e absoluta distinccedilatildeo entre uma dimensatildeo preacute-coacutesmica e outra poacutes-criaccedilatildeo

10 Por esse motivo seratildeo apenas referidos em nota ao longo da traduccedilatildeo

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No passo em que se diz que o mundo foi constituiacutedo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atraveacutes da proporccedilatildeo para que como sumo fim obtivesse amizade (philia 32c) eacute muitiacutessimo convidativa a coincidecircncia entre este termo e o Amor (Philotecircs) de Empeacutedocles (DK 31B17) Contudo deveremos ter em conta que enquanto neste autor se trata de uma forccedila dinacircmica que de certo modo unifica as raiacutezes no texto de Platatildeo eacute claramente um resultado em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo isto eacute uma finalidade ou seja ainda que estejamos perante o mesmo conceito conveacutem ter em conta que cada um daqueles contextos tem implicaccedilotildees de ordem pragmaacutetica muito distintas um eacute processo (no caso de Empeacutedocles) outro seraacute fim ou resultado (no caso de Platatildeo)

Ainda assim haacute outras ocasiotildees em que embora crivadas por um processo de adaptaccedilatildeo as doutrinas do primeiro se espelham no segundo Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera Timeu evoca claramente a Esfera de Empeacutedocles muito embora a daquele resulte de um processo criativo enquanto que a deste se situa numa fase preacute-coacutesmica as semelhanccedilas satildeo evidentes particularmente a niacutevel vocabular tal como a esfera do preacute-socraacutetico o mundo de Timeu eacute uacutenico (33a1 ad DK 31B28) esfeacuterico (33b4 ad idem) razatildeo pela qual natildeo teria necessidade de membros (33d3-34a1 ad DK 31B29) e todos os pontos da sua superfiacutecie estavam a igual distacircncia do centro (34b2 ad idem) Embora por vezes as palavras utilizadas natildeo sejam

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exactamente as mesmas eacute bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semacircntico insistindo por outro lado a caracterizaccedilatildeo nos mesmos pormenores e inclusivamente no mesmo princiacutepio geomeacutetrico se a forma eacute esfeacuterica todos os pontos da superfiacutecie seratildeo equidistantes do centro

De um ponto de vista estrutural a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante proacuteximo do que descreve Empeacutedocles principalmente no que concerne ao modo como o seu equiliacutebrio eacute garantido Quando o demiurgo fabrica a alma do mundo faacute-lo atraveacutes de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo agraves quais atribui dois movimentos distintos contudo complementares

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente (36c5-7)

Tal como acontece com o Amor e a Discoacuterdia de Empeacutedocles que actuam com os elementos de um modo diametralmente oposto promovendo ainda assim o intercacircmbio ciacuteclico entre si (cf DK 31B17) eacute tambeacutem a concomitacircncia dos movimentos contraacuterios de entidades igualmente contraacuterias como o Mesmo e o Outro que no Timeu garantem o equiliacutebrio do mundo natural a colocaccedilatildeo destas naturezas na oacuterbita da alma do mundo cuja funccedilatildeo primordial seraacute governar o seu corpo (34c) garante-lhe essa funccedilatildeo decisiva Eacute evidente que se poderia admitir que esta noccedilatildeo de equiliacutebrio enquanto

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negociaccedilatildeo paciacutefica de forccedilas opostas tenha outra matriz que natildeo a de Empeacutedocles ndash por exemplo a teoria dos opostos Heraclito (eg DK22B67) ndash ou mesmo que se trata de uma concepccedilatildeo transversal impassiacutevel de ser identificada com um autor em particular Contudo o caraacutecter estrutural que a convivecircncia destas forccedilas assume no equiliacutebrio global do mundo pois natildeo se trata de um princiacutepio que afecta vaacuterias entidades como acontece em Heraclito aliado ao facto de essa relaccedilatildeo ter como sumo fim a amizade como foi referido anteriormente far-nos-aacute reconhecer a estreita ligaccedilatildeo

A par de Empeacutedocles a outra grande influecircncia na composiccedilatildeo do Timeu foi conforme dissemos o pitagorismo Eacute de tal modo acentuada que durante a Antiguidade alguns comentadores neoplatoacutenicos acreditavam que Platatildeo se baseara na obra Sobre a Alma do Mundo da autoria do suposto filoacutesofo pitagoacuterico Timeu de Loacutecride Embora hoje se saiba que se trata apenas de uma versatildeo doacuterica do texto de Platatildeo datada do seacuteculo I dC esta curiosidade eacute bem ilustrativa do quatildeo acentuada eacute a presenccedila do pitagorismo no diaacutelogo

Em primeiro lugar o ambiente ritual em que decorre o diaacutelogo faz lembrar o espiacuterito cientiacutefico-religioso que definia o pitagorismo natildeo esqueccedilamos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso (27c-d) e torna a invocaacute-los quando tem necessidade de forjar um novo comeccedilo agrave narrativa (48d) Desta tendecircncia jaacute alguns autores antigos tinham dado notiacutecia diz Proclo nos seus Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo

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(1303-18) que tal como pensam outros11 tambeacutem ele considera o proeacutemio inicial uma preparaccedilatildeo simboacutelica para a exposiccedilatildeo propriamente dita como era costume dos Pitagoacutericos

Aleacutem de definir a estrutura esta influecircncia funciona tambeacutem como acircncora teoacuterica a que toda a exposiccedilatildeo se fixa Como sabemos o conteuacutedo e a orientaccedilatildeo da fiacutesica pitagoacuterica tinham um caraacutecter profundamente teoloacutegico isso por si soacute seria suficiente para que Platatildeo adaptasse tal modelo ao seu sistema filosoacutefico Contudo mais do que adaptar preferiu incluir essa perspectiva e promovecirc-la a parte integrante criando aquilo a que podemos chamar ldquouma fiacutesica pitagoacuterica de Platatildeordquo Ao tornar teoloacutegica a sua filosofia natural garante a possibilidade de cumprir o principal objectivo do diaacutelogo dar a conhecer o processo de constituiccedilatildeo do mundo ou seja revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino Ora para estabelecer esse contacto entre divino e humano seria imprescindiacutevel esta vertente teoloacutegica e Platatildeo viu nos ensinamentos do pitagorismo essa preciosa ferramenta pois combinavam o saber fiacutesico com a atitude teoloacutegica ndash orientaccedilotildees verdadeiramente imprescindiacuteveis para o caso particular deste diaacutelogo

Essa vertente religiosa que determinaraacute a orientaccedilatildeo teoloacutegica deveraacute ser procurada um pouco para aleacutem de Pitaacutegoras nos Misteacuterios Oacuterficos Como

11 Refere-se muito provavelmente a Iacircmblico (apud Lernould 2000 p 65) cuja Sobre a Vida Pitagoacuterica tem por principal finalidade demonstrar a subordinaccedilatildeo das doutrinas de Platatildeo a Pitaacutegoras

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observa o proacuteprio Proclo na Teologia Platoacutenica (12526) Pitaacutegoras recebeu os rituais de Aglaofemo um iniciado de Orfeu e Platatildeo recebeu de Pitaacutegoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento Ainda que esta passagem de testemunho natildeo tenha sido assim tatildeo linear mas valha sobretudo numa dimensatildeo simboacutelica eacute por intermeacutedio de Pitaacutegoras que Platatildeo tem acesso agraves ferramentas teoacutericas oacuterficas que lhe permitiratildeo sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o Homem foram constituiacutedos e partir do que tem diante dos olhos para chegar regressivamente agrave sua criaccedilatildeo

Essas ferramentas satildeo fundamentalmente a matemaacutetica ndash sobretudo as suas vertentes geomeacutetrica e estereomeacutetrica ndash a muacutesica e a astronomia que utilizadas em conjunto permitiratildeo uma observaccedilatildeo do mundo fenomeacutenico de que se poderatildeo retirar conclusotildees com valor filosoacutefico Eacute por exemplo atraveacutes da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos atribuindo a cada um a figura correspondente de acordo com as suas propriedades cineacuteticas o cubo agrave terra pois eacute de entre os elementos o que se move mais lentamente (55d) o icosaedro agrave aacutegua (55b 56a) o octaedro ao ar (55a 56a) a piracircmide ao fogo (55d) De forma anaacuteloga a deduccedilatildeo destas figuras depende tambeacutem de um raciociacutenio matemaacutetico atraveacutes da combinaccedilatildeo dos triacircngulos-base (rectacircngulo equilaacutetero e isoacutesceles) mediada pela proporccedilatildeo a geometria em plano passa a estereometria tridimensional (54d-sqq) dando assim corpo agraves formas representaacuteveis mentalmente e de forma abstracta Em suma ao apoiar-se nos ramos matemaacuteticos

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da aritmeacutetica e da geometria a mensagem teoloacutegica pode tomar corpo e tornar-se uma fiacutesica filosoacutefica pois permite representar aquilo que natildeo pode ser alcanccedilado pelos olhos trata-se de uma matemaacutetica teoloacutegica

Aleacutem disso eacute atraveacutes da harmonia proporcionada pela muacutesica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes na medida em que ambas obedecem a um mesmo princiacutepio cineacutetico

na segunda [oacuterbita pocircs] o Sol por cima da Terra a Estrela da Manhatilde e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente (38d1-6)

()

De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento (80a6-80b1)

Os astros tal como os sons circulam juntos a diferentes distacircncias uns dos outros ndash os astros em espaccedilo os sons em tempo mas de acordo com uma mesma relaccedilatildeo numeacuterica que determina a harmonia do conjunto eacute a este raciociacutenio que segundo Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 291a10-11) os Pitagoacutericos chamavam ldquoa muacutesica das esferasrdquo cuja adaptaccedilatildeo eacute evidente no sistema

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que propotildee o Timeu Neste diaacutelogo Platatildeo parece recuperar a identificaccedilatildeo que Soacutecrates faz na Repuacuteblica (531a-c) entre muacutesica e astronomia Ao distinguir os muacutesicos que se dedicam agrave demanda do intervalo miacutenimo mensuraacutevel condenaacuteveis por se aterem em demasia agrave percepccedilatildeo sensiacutevel do som daqueles que procuram os nuacutemeros nos acordes que escutam diz que satildeo estes uacuteltimos que se aparentam aos que estudam os astros Esta teoria da muacutesica que Soacutecrates elogia eacute a pitagoacuterica

2 O discurso de TimeuComo dissemos a intervenccedilatildeo de Timeu versa

sobre o processo de criaccedilatildeo do mundo e de todas as coisas que o habitam Homem restantes animais deuses e ateacute as plantas Trata-se pois de uma tentativa de estabelecer um modelo explicativo do mundo assente em axiomas e pressupostos soacutelidos uma cosmologia Mas desta prerrogativa inicial nasce uma inevitaacutevel aporia como produzir uma cosmologia a partir da observaccedilatildeo do mundo do devir o reino da mudanccedila ininterrupta sendo por isso impassiacutevel de constituir objecto de verdadeiro saber Em uacuteltima anaacutelise como produzir saber a partir do sensiacutevel se soacute as Ideias (inteligiacuteveis) podem ser objecto de saber (cf Santos 2003 pp 13-15)

Para responder a estas questotildees nucleares Platatildeo recorre a um artifiacutecio deveras surpreendente pautar o discurso pela verosimilhanccedila mais do que pela certeza e assim apresentar uma proposta plausiacutevel em vez de um tratado dogmaacutetico e vinculativo o que de facto

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tambeacutem aproxima o projecto da tradiccedilatildeo cosmogoacutenica Ao mesmo tempo a validade desta proposta dependeraacute do estabelecimento preacutevio de axiomas estanques e estaacuteveis que forneccedilam um ponto de partida para a narrativa especulativa

21 Pressupostos iniciaisNa minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre [to on aei] e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem [to gignomenon] sem nunca ser Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo pois eacute imutaacutevel Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca (27d5-28a4)

Eacute fulcral que antes de tudo Timeu distinga aquilo que eacute sempre daquilo que estaacute sempre sujeito ao devir e por isso nunca chega a ser trata-se da ceacutelebre diferenccedila entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao sensiacutevel ndash um dos pilares do platonismo A esta distinccedilatildeo surge associada uma outra de caraacutecter epistemoloacutegico que tem que ver com a forma como cada um desses niacuteveis ontoloacutegicos pode ser apreendido se o que eacute cabe ao pensamento e agrave razatildeo jaacute o que pertence ao niacutevel do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos Toda esta argumentaccedilatildeo em torno da distinccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel faria adivinhar a ceacutelebre oposiccedilatildeo platoacutenica entre opiniatildeo (doxa) e saber (epistecircmecirc) estando a primeira destinada ao que deveacutem e a segunda ao que eacute sempre e visto que o propoacutesito do diaacutelogo eacute apresentar

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um discurso (logos) sobre o mundo implicando por isso a obediecircncia agrave verdade teria que se situar no acircmbito do saber No entanto ao comeccedilar a descrever os atributos do objecto em estudo Timeu daacute-se conta de que o mundo pertence agrave ordem do devir pois apresenta todas as caracteriacutesticas do sensiacutevel eacute visiacutevel (oratos 28b7) tangiacutevel (aptos 28b7) e tem corpo (socircma echocircn 28b7) Ora se o mundo eacute deveniente como produzir um discurso verdadeiro e estaacutevel sobre ele Eacute da resposta a esta pergunta que depende a validade de toda a proposta cosmoloacutegica

Sabendo entatildeo que o mundo pertence agrave ordem do devir o proacuteximo passo seraacute averiguar qual a sua causa pois de acordo com o preceito platoacutenico todas as coisas devenientes satildeo geradas por uma causa12 No caso do mundo a sua causa foi uma divindade (o demiurgo) que o fabricou por meio de um acto intelectivo de contemplaccedilatildeo do arqueacutetipo imutaacutevel (29a) Natildeo querendo antecipar as questotildees que esta personagem levanta e que seratildeo analisadas posteriormente digamos apenas que seraacute o centro das atenccedilotildees do discurso do protagonista Perante a falibilidade da descriccedilatildeo das coisas sensiacuteveis tentaraacute reconstituir a acccedilatildeo demiuacutergica a partir da observaccedilatildeo directa do que tem perante os olhos ndash a obra dessa divindade Ou seja se o mundo consiste numa entidade fabricada a partir de um arqueacutetipo significa que esse mesmo mundo eacute jaacute por si uma representaccedilatildeo portanto o meacutetodo para descrever

12 Cf Feacutedon 98c 99b Filebo 27b Leis 891e Timeu 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e

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a forma como foi fabricado poderaacute tambeacutem ele ser uma representaccedilatildeo sem que com isso ponha em causa a sua validade pois como diz Timeu

Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere (29b3-5)

Como muito bem nota Johansen (2004 p 50) aquilo que determina o estatuto do discurso eacute o facto de esse discurso ser congeacutenere ao seu assunto ou seja um discurso sobre uma representaccedilatildeo teraacute tambeacutem ele proacuteprio um teor representativo Ao mesmo tempo ele constitui o instrumento que nos permite situar o acircmbito do conteuacutedo a que se refere visto que transparece a sua natureza eacute nesta medida que os discursos ldquoexplicamrdquo E Timeu sublinha esta relaccedilatildeo ao qualificar com adjectivos semanticamente muito proacuteximos ambos referente e referido diz ele que o que eacute estaacutevel e fixo (monimou kai bebaiou 29b6) eacute interpretado por discursos estaacuteveis e invariaacuteveis (monimous kai ametaptocirctous 29b7) ao passo que aqueles que interpretam algo produzido como representaccedilatildeo (apeikasthentos 29c1) por serem eles proacuteprios tambeacutem representaccedilotildees (29c2) estabelecem com aquilo que representam uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia (29c2)

22 Intelecto e NecessidadeNum determinado momento da narrativa

(48e-49a) Timeu interrompe a descriccedilatildeo da criaccedilatildeo do

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mundo para esclarecer que tudo quanto referira ateacute aiacute tinha sido fabricado pelo Intelecto Era entatildeo altura de justapor ao discurso o que havia sido gerado pela Necessidade

Estes dois conceitos muito embora sejam decisivos no processo cosmoloacutegico natildeo satildeo curiosamente objecto de uma reflexatildeo metanarrativa como acontece por exemplo com o demiurgo Apenas eacute dito que a Necessidade eacute uma ldquocausa erranterdquo (to tecircs planocircmenecircs aitias 48c7) que foi persuadida pelo Intelecto a ldquoorientar para o melhor a maioria das coisas devenientesrdquo (48a) Esta informaccedilatildeo aleacutem de natildeo esclarecer a natureza daquelas entidades implica apenas que a cedecircncia da Necessidade foi apenas parcial (ldquoa maioria das coisasrdquo) Mas vejamos primeiro que tudo de que modo poderemos entender em que consistem

Quanto ao Intelecto eacute bastante convidativo fazecirc-lo coincidir com o demiurgo pois Timeu sublinha que o que acaba de descrever fora fabricado por este agente se no princiacutepio eacute dito que o demiurgo eacute a causa que originou o mundo a identificaccedilatildeo eacute oacutebvia Na verdade nas Leis Platatildeo define-o como responsaacutevel por governar tudo (875c-d) e por ter ordenado o mundo (966e) manifesta-se no movimento dos corpos celestes os quais os homens devem observar e seguir como paradigma (897d-898a) Transpondo esta descriccedilatildeo para o nosso contexto a identificaccedilatildeo do Intelecto com o demiurgo parece fazer sentido no entanto carece de explicaccedilatildeo o atributo de

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ldquogovernar tudordquo pois a divindade criadora retira-se logo apoacutes ter concluiacutedo a sua tarefa ndash tanto que entrega parte da sua ldquoobrardquo (a parte mortal da alma humana por exemplo) agraves divindades geradas por si Por esse motivo este Intelecto poderaacute por outro lado coincidir com a alma do mundo como pensa Cherniss (1944 pp 407-411 425 606-607) Ainda assim essa opccedilatildeo tambeacutem natildeo deixa de levantar problemas jaacute que como diz Brisson (1998 p 84) o demiurgo soacute pode ser independente pois constitui a causa de todas as coisas do mundo razatildeo pela qual natildeo poderaacute estar incluiacutedo naquilo que foi criado por si proacuteprio Independentemente de coincidir ou natildeo com o demiurgo o Intelecto corresponde a um princiacutepio de racionalidade teleoloacutegica pois visa acima de tudo ldquoorientar tudo para o melhorrdquo no fundo a vertente inteligente da criaccedilatildeo

Por oposiccedilatildeo a Necessidade seraacute algo cujo funcionamento se opotildee ao do Intelecto primeiro Timeu chama-lhe ldquocausa erranterdquo isto eacute sem finalidade (natildeo teleoloacutegica) segundo se a Necessidade cede a uma ldquopersuasatildeo racionalrdquo (peithous emphronos 48a) eacute evidente que a sua natureza seraacute de algum modo irracional Mas retomando a questatildeo deixada em suspenso acerca da cedecircncia unicamente parcial da Necessidade ela seraacute mais facilmente esclarecida se tomarmos em consideraccedilatildeo o seguinte

Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende

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constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade (69d3-6)

A consequecircncia de a Necessidade natildeo ter cedido senatildeo parcialmente implica que a proacutepria estrutura humana tenha sido tambeacutem parcialmente composta por ela Ao participar no processo de criaccedilatildeo o produto que dela resulta (o mundo e o Homem) partilharaacute da sua caracteriacutestica mais iacutentima a irracionalidade traduzida nas partes mortais da alma no caso do Homem no proacuteprio Homem no caso do mundo Corresponde no fundo agrave vertente mecacircnica e corpoacuterea da criaccedilatildeo que como tal natildeo dispotildee de racionalidade nem finalidade Como oportunamente sugere Santos (2003 p 28 n 32) a noccedilatildeo de ldquocausa erranterdquo pode perfeitamente ser equacionada com a passagem do Feacutedon (98c-99b) onde Soacutecrates esclarece que natildeo satildeo os seus muacutesculos e tendotildees a causa de estar na prisatildeo mas sim o Bem isto eacute a corporalidade mecacircnica natildeo pode constituir a causa primeira das coisas porquanto estaacute desprovida de qualquer razatildeo

No fundo a distinccedilatildeo entre estas duas entidades pode ser entendida agrave luz de um modelo dualista o Intelecto representa a vertente teleoloacutegica e inteligente e a Necessidade corresponde agrave corpoacuterea e irracional Sabendo que actuam como princiacutepios de criaccedilatildeo na medida em que determinam as duas faces do devir podem com justeza ser entendidos como condiccedilotildees de possibilidade do dualismo cosmoloacutegico

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23 O demiurgoLogo no iniacutecio da narrativa apoacutes a anuecircncia

de Soacutecrates Timeu comeccedila por definir o agente que constituiu o mundo como um deus (theos 31a2) bom (agathos 29e1) e absolutamente livre de inveja (peri oudenos oudepote phthonos 29e2) a melhor das causas (o drsquoaristos tocircn aitiocircn 29a6) daiacute que o que produza seja o mais belo (to kalliston 30a7) Como eacute evidente o estatuto divino do demiurgo natildeo coincide de forma alguma com o das divindades tradicionais do Olimpo grego Ao contraacuterio destes que protagonizam episoacutedios de adulteacuterio (Afrodite e Ares) guerras (a revolta dos Gigantes) e manifestam atributos opostos agrave bondade como a ganacircncia (de Cronos e posteriormente de Zeus) bem como interferem em certa medida com a acccedilatildeo quotidiana dos homens ndash os Poemas Homeacutericos satildeo bom exemplo disso ndash o demiurgo eacute todo ele bom e apoacutes ter criado a sua obra retira-se natildeo interferindo mais Eacute pois um agente divino que se situa num patamar superior ao das outras divindades tradicionais Isso eacute bastante evidente tendo em conta os dois tipos de demiurgia que a narrativa apresenta a primeira que diz respeito ao mundo e agrave parte divina do Homem eacute da autoria do demiurgo jaacute a segunda que trata das coisas mortais (a parte mortal da alma do Homem inclusive) foi delegada agraves divindades criadas por si

Em sentido inverso o demiurgo aparece caracterizado no texto mais como um homem do que como um deus Chega a ter emoccedilotildees quando se apercebe de que a sua obra estava a tomar o rumo certo jaacute que

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representava com bastante verosimilhanccedila o arqueacutetipo rejubilou e ficou satisfeito (37c7) Aleacutem disso tambeacutem a sua metodologia eacute descrita agrave luz de criteacuterios humanos pois descobre por meio de um raciociacutenio (logismos 30b1) e obedece a uma estrutura matemaacutetica (47b 87c)

Como ldquoconstrutorrdquo o demiurgo empreende uma actividade mimeacutetica Ao criar o mundo sensiacutevel por meio da imitaccedilatildeo do arqueacutetipo assemelha-se em grande medida a um artiacutefice que antes de produzir alguma coisa tem em conta uma forma da qual assimilaraacute as propriedades que faraacute corresponder no material que trabalha Assim potildee os olhos nas coisas que se mantecircm sempre iguais (as Ideias) Partindo deste conhecimento preacutevio age sobre o material de modo a dotaacute-lo de ordem pois que antes estava desordenado (30a3-5)

Levando mais longe a caracterizaccedilatildeo da obra do demiurgo como uma actividade mimeacutetica tenhamos em conta antes de mais que esta figura em termos muito gerais eacute um fabricador Este seu caraacutecter eacute desde logo confessado por Timeu no iniacutecio da sua narrativa pois a palavra que utiliza para o definir eacute muito simplesmente poiecirctecircs (28c3) Embora fosse demasiado forccedilado traduzi-la por ldquopoetardquo em virtude das contradiccedilotildees que essa opccedilatildeo levantaria natildeo eacute de todo inconcebiacutevel que ainda assim procuremos nele alguns atributos que o possam caracterizar como tal e a sua actividade como algo semelhante agrave criaccedilatildeo poeacutetica Jaacute foi dito que ela eacute mimeacutetica o que a situa num acircmbito muito proacuteximo do poeacutetico vejamos em que medida podemos aproximaacute-la ainda mais convocando para o efeito a forma como

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Platatildeo descreve a actividade dos poetas e comparando-a com a forma como no Timeu caracteriza o processo criativo levado a cabo pelo demiurgo

Primeiro que tudo eacute exactamente a mesma palavra ndash poiecirctecircs ndash que eacute usada para definir quer o fabricador do mundo neste diaacutelogo (28c3) quer os poetas um pouco por todo o corpus platoacutenico13 mas as semelhanccedilas natildeo se resumem a este pormenor vocabular Na Repuacuteblica numa altura em que se fala sobre o papel dos poetas na educaccedilatildeo a sua actividade (e tambeacutem o produto dessa actividade) eacute descrita como uma fabricaccedilatildeo (plassocirc 377b6) criaccedilatildeo (poieocirc 377c1 379a3) e composiccedilatildeo (syntithecircmi 377d6) No Timeu tambeacutem a acccedilatildeo da divindade eacute descrita com estes trecircs verbos14

Enquanto artiacutefice o demiurgo estaacute ligado agraves mais diversas artes de acordo com o que Platatildeo estabelecera na Repuacuteblica acerca da terceira classe de cidadatildeos como ferreiro quando fabrica a alma do mundo (35a-40d) e lhe daacute a forma de uma esfera armilar como pintor desenha os animais no mundo (55c5-6) isto eacute os corpos celestes associados aos animais do Zodiacuteaco eacute tambeacutem um modelador de cera (74c6) como oleiro para originar a massa oacutessea do corpo humano primeiro peneira a terra (73e1) em seguida mistura-a com o elemento liacutequido ndash a medula humedecida (73e2) ndash e finalmente daacute-lhe a forma num torno (73e7) como tecelatildeo quando fabrica os sistemas respiratoacuterio e circulatoacuterio num entranccedilado (78c1) semelhante a uma nassa (78b4) como agricultor

13 Eg Goacutergias 485d Iacuteon 534b Leis 935e Repuacuteblica 379a14 plassocirc 42d 73c 74a 78c poieocirc 31b 31c 34b 35b 36c

37d 38c 45b 71d 76c 91a syntithecircmi 33d 69d 72e

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ao semear (41e4) implantar (42a3) e enraizar (73b4) as almas nos corpos ou ainda quando a medula eacute comparada a um solo araacutevel (73c7) que deve receber a semente (73c7)

Contudo se no caso do artiacutefice ldquoconvencionalrdquo o material que trabalha eacute bastante oacutebvio no que trata ao demiurgo essa questatildeo eacute bastante mais delicada Eacute dito que a sua actividade consiste em contemplar o arqueacutetipo para trabalhar o material de modo a dotaacute-lo de ordem ele que antes estava desordenado (30a3-5) mas natildeo eacute especificada a natureza desse material Ora se a sua funccedilatildeo eacute ordenar organizar e impor medida e proporccedilatildeo onde as natildeo havia (69b) por meio da geometria e da matemaacutetica (53b-c) a mateacuteria-prima de que parte seraacute obviamente o substrato preacute-coacutesmico que existia no caos anterior agrave demiurgia Vejamos o exemplo dos elementos

Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros (53a7-b5)

O trabalho produtivo natildeo consiste numa criaccedilatildeo ex nihilo porquanto modela um material preacute-existente tem antes que ver com uma configuraccedilatildeo de acordo com uma matriz (a matemaacutetica) do substrato preacute-coacutesmico

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Ao agir como ordenadororganizador assemelha-se bastante a um administrador ou em uacuteltima anaacutelise a um poliacutetico se a sua tarefa pretende impor a ordem onde ela natildeo existia metaforicamente transmuta a anarquia do caos em sociedade coacutesmica A este respeito a proacutepria palavra decircmiourgos confirma essa orientaccedilatildeo semacircntica pois noutros contextos pode significar precisamente ldquomagistradordquo15 Deste modo quando Timeu lhe chama ldquocriador e pai do mundordquo (28c3-4) devemos entender esses epiacutetetos em primeiro lugar agrave luz do caraacutecter mimeacutetico da demiurgia e por outro lado de acordo com esta funccedilatildeo ordenadora ou seja seraacute ldquopairdquo como educador e natildeo como princiacutepio de geraccedilatildeo Tambeacutem como pai neste sentido de educador o demiurgo eacute para os homens um exemplo a seguir tal como Platatildeo diz no Teeteto (176b) acerca da necessidade de o Homem se tornar o mais semelhante possiacutevel agrave divindade ele eacute o arqueacutetipo a que o filoacutesofo deve aspirar

24 O terceiro niacutevel ontoloacutegicoNo momento em que acaba de descrever as obras

do Intelecto e passa agraves da Necessidade (48a) Timeu sente-se obrigado a reiniciar a narrativa e a desfazer a dicotomia ontoloacutegica inicial ser-devir acrescentando a estes dois tipos (dyo eidecirc 48e3) aquilo a que chama ldquoum terceiro de outra espeacutecierdquo (triton allo genos 48e4)

Ao contraacuterio do que acontece com os anteriores o modo de referir este terceiro tipo carece de clareza

15 Eg Aristoacuteteles Poliacutetica 1275b29 Poliacutebio 23516 Tuciacutedides 547 Cf Brisson (1998 p 50)

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e estabilidade epistemoloacutegica porquanto eacute acessiacutevel por meio de ldquoum certo raciociacutenio bastardordquo (logismocirc tini nothocirc 52b2) que carece de credibilidade (mogis piston 52b2) Ora seraacute inevitaacutevel o este caraacutecter hiacutebrido da explicaccedilatildeo se aplique tambeacutem ao assunto a que se reporta em trecircs ocasiotildees distintas Timeu caracteriza-o como ldquoum tipo difiacutecil e obscurordquo (chalepon kai amydron 49a3) ldquoinvisiacutevel e amorfordquo (anoraton kai amorphon 51a7) que ldquoparticipa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevelrdquo (metalambanon aporocirctata tou noecirctou 51a7-b1) Deixando de parte os problemas de interpretaccedilatildeo que esta descriccedilatildeo levanta a questatildeo que ocorre levantar eacute como formular um discurso que se reporta a algo imperscrutaacutevel

A dificuldade eacute desde logo anunciada pela incapacidade de o objectivar na linguagem Isso eacute evidente tanto nas palavras do protagonista como nas interpretaccedilotildees produzidas ao longo dos seacuteculos eacute que o termo chocircra eacute apenas uma das designaccedilotildees que recebe no texto aquela que a tradiccedilatildeo fixou Aleacutem desta que vertemos por ldquolugarrdquo (52a8) o terceiro tipo eacute tambeacutem chamado ldquoreceptaacuteculordquo (hypodochecirc 49a6) ldquosuporte de impressatildeordquo (ekmageion 50c2) ldquomatildeerdquo (mecirctecircr 50d3 51a5 88d7) ldquoaquilo em querdquo (to en ocirc 49e7 50d1 50d6) ldquolocalizaccedilatildeordquo (edra 52b1) e ldquolocalrdquo (topos 52a6 52b4) mais indirectamente eacute comparaacutevel a uma matildee (proseikasai mecirctri 50d2-3) e a uma ama (oion tithecircnecircn 49a6) Todas elas que de um modo geral se enquadram numa descriccedilatildeo da chocircra como suporte de alguma coisa parecem conferir-lhe uma concepccedilatildeo espacial contudo

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a flutuaccedilatildeo de termos como ldquolugarrdquo ldquolocalrdquo e ldquoaquilo em querdquo denuncia a impossibilidade de apontar onde eacute exactamente

A chocircra evidencia caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel eacute invisiacutevel e amorfa ao mesmo tempo que tangiacutevel mas apenas pensaacutevel por um raciociacutenio bastardo A esta constituiccedilatildeo ontoloacutegica hiacutebrida acresce o facto de em termos espaciais ser caracterizada de modo ambiacuteguo eacute extensatildeo ou espaccedilo como condiccedilatildeo de localizaccedilatildeo (ldquoprovidencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devirrdquo 52b6) e ao mesmo tempo o proacuteprio local ocupado por um determinado corpo (ldquoa natureza que recebe todos os corposrdquo 50b6) isto eacute a realizaccedilatildeo daquela extensatildeo (apud Mesquita 2009 p 91) A impossibilidade de associaacute-la em definitivo a uma das categorias ontoloacutegicas e a uma das acepccedilotildees espaciais por partilhar caracteriacutesticas que se aplicam a ambos os membros da equaccedilatildeo convida-nos a considerar que se possa situar no plano da abstracccedilatildeo Isto eacute se natildeo pertence ao inteligiacutevel nem ao sensiacutevel bem como natildeo admite por inteiro o local de contacto entre os dois niacuteveis resta considerar esse lugar uma abstracccedilatildeo do espaccedilo de particularizaccedilatildeo ldquonatildeo eacute senatildeo o particular pensado eideticamenterdquo (Mesquita 1995 p 146) No entanto se prescindirmos daquela distinccedilatildeo aceitando para tal a fusatildeo entre espaccedilo como extensatildeo e espaccedilo como concretizaccedilatildeo pontual e pegarmos no problema a partir das suas condiccedilotildees discursivas esta ideia de lugar de participaccedilatildeo abstraiacutedo pode tornar-se ligeiramente mais clara

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A descriccedilatildeo natildeo se processa de modo inequiacutevoco nem sequer toma corpo num discurso minimamente demonstrativo que pretenda tornar transparente a natureza da chocircra Em vez disso eacute comparada a uma matildee ou a uma ama equivalendo a forma como interage com o arqueacutetipo e com os particulares a um processo de impressatildeo de que ela eacute o suporte

() recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel () (50b8-c6)

Na medida em que se afigura como uacutenica alternativa possiacutevel o recurso ao metafoacuterico parece assim agravar o caraacutecter ldquodifiacutecil e obscurordquo tanto do assunto como da sua explicaccedilatildeo Mas se aceitarmos a premissa de que um discurso e o seu objecto partilham da mesma natureza seraacute de esperar que a natureza da proacutepria chocircra haacute-de tambeacutem ser metafoacuterica

Tomada na sua estrutura mais baacutesica a metaacutefora consiste na coligaccedilatildeo de dois termos atraveacutes de um elemento intermeacutedio que permite uma transferecircncia de sentido bidireccional isto eacute as duas extremidades do aparelho conceptual estatildeo co-implicadas porquanto unidas pelo terceiro termo aquele em que se consubstancia a relaccedilatildeo De modo anaacutelogo a chocircra

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representaraacute o ponto intermeacutedio de coligaccedilatildeo entre o arqueacutetipo e os particulares ou seja o lugar em que se consuma o processo de participaccedilatildeo Tambeacutem nesta perspectiva parece inscrever-se o caraacutecter mimeacutetico da chocircra ldquotudo o que nela entra e dela sai satildeo imitaccedilotildees (mimecircmata) do que eacute semprerdquo Por um lado natildeo eacute o proacuteprio arqueacutetipo que entra no lugar de participaccedilatildeo mas apenas as suas imitaccedilotildees por outro o particular e a proacutepria particularizaccedilatildeo resultam como imitaccedilotildees do proacuteprio arqueacutetipo mediadas justamente pela chocircra16

A exposiccedilatildeo deste terceiro tipo insiste nas constantes transformaccedilotildees a que todas as coisas estatildeo sujeitas e que erradamente designamos por ldquoistordquo (touto 49d5) quando deveriacuteamos optar por ldquoo que em determinadas circunstacircncias estaacute assimrdquo (to toiouton ekastote 49d5) Por exemplo aplicamos o termo ldquoaacuteguardquo independentemente de aquilo que referimos estar em estado liacutequido soacutelido ou gasoso Conclui-se que a chocircra pode ser ldquoistordquo ao passo que as coisas que nela entram e dela saem satildeo apenas ldquoque estaacute assimrdquo (49d-e) O recurso agrave linguagem como repositoacuterio metafoacuterico natildeo nos parece acidental nem inconsequente na medida em que ajuda a esclarecer a distinccedilatildeo ontoloacutegica fundamental entre as duas dimensotildees enquanto ldquoistordquo a (e soacute a) chocircra tem um sentido substantival e por conseguinte uma natureza substancial jaacute os particulares enquanto ldquoaquilo que estaacute assimrdquo estatildeo limitados ao acircmbito adjectival e natildeo podem ser mais do que qualificativos

16 Para uma discussatildeo mais detalhada do problema vide Mesquita 1995 pp 132-133

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circunstanciais Esta ldquoontologia qualitativardquo do mundo do devir atribui aos particulares um estatuto de meras entidades relacionais (apud Ferrari 2007 p 14) e como tal diametralmente opostos da substancialidade do arqueacutetipo Por conseguinte a relaccedilatildeo entre ambos os niacuteveis isto eacute a participaccedilatildeo natildeo poderaacute ser reduzida a um decalque biuniacutevoco caracteriacutestico da estrutura sujeito-predicado A nosso ver ela soacute pode ser mimeacutetica

Aleacutem desta linha de interpretaccedilatildeo espacial da chocircra existe uma outra a que podemos chamar ldquomaterialrdquo Decorre da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles que numa passagem da Fiacutesica (42 209b11-16) em que comenta esta secccedilatildeo do Timeu atribui a Platatildeo a identificaccedilatildeo entre espaccedilo (chocircra) e mateacuteria (hylecirc) Apesar de convidativa enferma de dois problemas fundamentais Em primeiro lugar esta categoria eacute absolutamente estranha ao sistema platoacutenico tanto assim eacute que o termo hylecirc soacute comeccedila a ter este sentido filosoacutefico justamente a partir de Aristoacuteteles Em segundo e natildeo menos importante o facto de aquela passagem da Fiacutesica assentar em grande parte nas chamadas doutrinas natildeo escritas ndash um grupo de postulados que Platatildeo teraacute sustentado oralmente mas de que natildeo deixou registo nos diaacutelogos Ora ainda que a sua reconstituiccedilatildeo seja possiacutevel e ateacute verosiacutemil (vide Ferrari 2007 pp 22-23) esta linha de interpretaccedilatildeo parece-nos exclusivamente vocacionada para esclarecer o Platatildeo hipoteacutetico e natildeo o dos diaacutelogos O nosso propoacutesito esgota-se nesta segunda orientaccedilatildeo

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25 O estatuto do discursoPortanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil e natildeo procurar nada aleacutem disso (29c4-29d3)

Esta curiosa afirmaccedilatildeo do narrador faz referecircncia a duas questotildees de extrema importacircncia para o entendimento do tipo de mensagem que o diaacutelogo pretende fazer passar e tambeacutem da forma como o faz o facto de toda ela ser aceite por Soacutecrates sem quaisquer reservas coloca-a num plano de acrescida importacircncia Em primeiro lugar Timeu refere que tanto ele como quem o ouve satildeo apenas seres humanos e por isso nem lhe eacute permitido a ele aflorar determinadas questotildees nem lhes seria possiacutevel a eles compreendecirc-las Em segundo lugar e mais importante ao apontar o acircmbito do verosiacutemil como uacutenica alternativa distingue muito claramente dois niacuteveis discursivos o dos ldquodiscursos verosiacutemeisrdquo (29c8 [logous] eikotas) e o da ldquonarrativa verosiacutemilrdquo (29d2 eikota mython) desta concorrecircncia ressalta obviamente a partilha do termo eikos que vertemos por ldquoverosiacutemilrdquo mas tambeacutem a associaccedilatildeo deste termo a mythos num caso e a logos noutro caso

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Aleacutem deste preluacutedio a expressatildeo eikos mythos aparece mais duas vezes no texto Na primeira insere-se no contexto da descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo das cores (67c-68d) apoacutes dar alguns exemplos do modo como se misturam Timeu diz que para os outros casos que natildeo referiu basta seguir o mesmo raciociacutenio de modo a que fique ldquosalvaguardada a narrativa verosiacutemilrdquo (68d) Na segunda ocorrecircncia as circunstacircncias satildeo muito semelhantes ao abordar os vaacuterios compostos que os elementos primaacuterios podem formar diz que para os casos que natildeo referiu deve ser aplicada a mesma metodologia desde que seja ldquoinvestigada a modalidade da narrativa verosiacutemilrdquo (59c) O estatuto de modalidade (idea) discursiva que reconhece ao eikos mythos coloca a narrativa como ponto de partida para a investigaccedilatildeo satildeo os dados nela implicados que devem ser discutidos Ao dizer que essa narrativa eacute uma modalidade Timeu parece dar a entender que haveraacute uma outra pois se eacute essa que deve ser investigada entatildeo a forma como essa investigaccedilatildeo se formaliza deveraacute obedecer a uma modalidade diferente o eikos logos

Ao longo do seu discurso Timeu por vezes suspende o papel de narrador de uma acccedilatildeo e assume o de criacutetico daquilo que ele proacuteprio disse comentando analisando e explicando alguns pormenores Enquanto descreve a transiccedilatildeo dos elementos como entidades amorfas para o estatuto de corpos recorre agraves relaccedilotildees matemaacuteticas e geomeacutetricas para esclarecer o modelo pelo qual o demiurgo se guiou e assim dar a conhecer o modo

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como atingiram a proporccedilatildeo (53b-54a) Eacute este um dos casos mais evidentes em que deixa de ser um narrador e passa a ser um demonstrador de uma teoria Eacute bastante evidente igualmente do ponto de vista estiliacutestico a insistecircncia no teor explicativo e tambeacutem especulativo das suas observaccedilotildees tenta ldquoesclarecerrdquo (decircloun 53c1) e ldquoafirmardquo na primeira pessoa (legocirc 47b2) ou por outra engloba tambeacutem os ouvintes nessa missatildeo ao preferir a primeira pessoa do plural (47b1 47b5 53e5) Ainda assim confessa uma certa falibilidade em relaccedilatildeo agravequilo que diz (53e3) por ser fruto da sua opiniatildeo (47a) No entanto ao reportar-se agrave narrativa verosiacutemil que por sua vez se refere ao mundo do sensiacutevel qual seraacute a natureza das suas observaccedilotildees

Logo apoacutes a anuecircncia de Soacutecrates ao acircmbito verosiacutemil da sua narrativa Timeu comeccedila por descrever em linhas gerais o processo de fabricaccedilatildeo do mundo durante o qual diz que o demiurgo estabeleceu o intelecto na alma do mundo e por sua vez colocou a alma no corpo (30b) Daqui retira a primeira conclusatildeo o mundo eacute um ser-vivo com alma e pensamento (30c) mas faz questatildeo de referir que esta deduccedilatildeo eacute conforme a um discurso verosiacutemil (kata logon ton eikota 30b7) De igual modo numa das suas uacuteltimas conclusotildees apoacutes ter discorrido desde o mundo ateacute agrave geraccedilatildeo do Homem o acircmbito verosiacutemil das observaccedilotildees agrave narrativa manteacutem-se (90e8) quando relembra o que dissera anteriormente sobre a degenerescecircncia em mulheres dos homens que levam uma vida injusta (90e 42b)

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Quando trata de abordar ldquoa terceira forma de serrdquo ndash a chocircra ndash manteacutem essa atitude especulativa embora admita reservas acrescidas impostas pela dificuldade do assunto Enquanto que na descriccedilatildeo da acccedilatildeo demiuacutergica eacute apenas um narrador que por isso fala na terceira pessoa assumindo somente o papel de intermediaacuterio entre acccedilatildeo e discurso neste caso eacute ele quem protagoniza Nesta altura em que deve passar agrave apresentaccedilatildeo de algo tatildeo complicado de conceber e formular como aquele terceiro niacutevel ontoloacutegico ldquotentaraacute ser ainda mais verosiacutemilrdquo (peirasomai ecirctton eikota 48d2-3) pois neste caso as suas observaccedilotildees partiratildeo de uma ldquoexposiccedilatildeo estranha e inusitadardquo (ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs 48d5-6) O objectivo eacute portanto chegar a uma conclusatildeo ndash apresentar um resultado ndash a partir do que diz a narrativa Poreacutem neste caso o eikos mythos a que as suas observaccedilotildees se reportaratildeo tem um caraacutecter diferente mais complexo e imbricado pois tambeacutem o objecto a que se refere eacute dessa natureza daiacute que o discurso que produza acerca dessa narrativa seja tambeacutem ele ldquoinusitadordquo (aecircthei 53c1)

Ao longo das suas intervenccedilotildees acerca da narrativa verosiacutemil Timeu demonstra constantemente uma preocupaccedilatildeo em fixar um ponto de vista pois tenta fornecer uma ldquoexposiccedilatildeordquo (diecircgecircsis 48d6) uma ldquoconclusatildeordquo (dogma 48d6) e aspira a ldquoapontar a causardquo (aitiateon 57c9) No entanto tem consciecircncia de que pode estar errado (53e3) e por isso admite a existecircncia de outra opiniatildeo divergente (55d6) Pelo facto de natildeo poder ser definitivamente validado o seu juiacutezo situa-se

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no campo do hipoteacutetico e do especulativo porquanto resultante da exploraccedilatildeo de possibilidades aproximaacuteveis ou provisoacuterias que apenas garantem coerecircncia e plausibilidade Ainda assim natildeo carece de validade filosoacutefica porque acima de tudo pretende representar o mundo pelo recurso a ferramentas fiaacuteveis como a matemaacutetica e a geometria

Torna-se entatildeo evidente que as duas modalidades discursivas eikos mythos e eikos logos desempenham papeacuteis bastante distintos o primeiro tem um caraacutecter narrativo expositivo natildeo-analiacutetico e natildeo aspira a uma conclusatildeo o segundo pretende partir do que resulta do primeiro e analisaacute-lo e por outro lado estabelecer tambeacutem os pressupostos sob os quais se desenrolaraacute a exposiccedilatildeo Em uacuteltima instacircncia a proacutepria enunciaccedilatildeo inicial dos dois niacuteveis ontoloacutegicos (ser e devir) e posteriormente a introduccedilatildeo do um terceiro eacute por si soacute um logos pois estabelececirc-los implica uma reflexatildeo ulterior

Resta ainda esclarecer a natureza (apenas) verosiacutemil do texto em ambas as suas dimensotildees discursivas pois que mythos e logos satildeo sempre qualificados como eikos Para tal conveacutem recuperar novamente o pressuposto onto-episteacutemico desde logo estabelecido no proeacutemio os discursos satildeo congeacuteneres daquilo que explicam Visto que o mundo criado eacute uma imagem (eikocircn) o discurso ou narrativa sobre ele teraacute necessariamente esta mesma natureza Num primeiro niacutevel mimeacutetico o demiurgo imita um modelo de inteligibilidade externo (as Ideias) cujas propriedades enforma na mateacuteria preacute-coacutesmica

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No outro o discursivo eacute o filoacutesofo que produz uma explicaccedilatildeo atraveacutes da observaccedilatildeo esquemaacutetica do real isto eacute da imitaccedilatildeo da ordem estabelecida pelo demiurgo Entatildeo a manifestaccedilatildeo discursiva da criaccedilatildeo haacute-de ser tambeacutem ela de caraacutecter mimeacutetico isto eacute do acircmbito do verosiacutemil posto que o resultado (o mundo) eacute igualmente de natureza mimeacutetica a soma dos particulares em processo isto eacute o devir consiste numa constante imitaccedilatildeo do modelo inteligiacutevel (as Ideias) cujo padratildeo de racionalidade espelha o plano cosmoloacutegico original e se desvela agrave observaccedilatildeo analiacutetica do filoacutesofo

3 o discurso de crIacutetias

O tema da narrativa de Criacutetias foi alvo de muacuteltiplas interpretaccedilotildees praticamente desde pouco tempo depois da morte de Platatildeo ateacute aos nossos dias A abordagem agrave famosa questatildeo da Atlacircntida seduz natildeo soacute acadeacutemicos das mais vaacuterias aacutereas do saber como tambeacutem autores de ficccedilatildeo Como se torna impossiacutevel circunscrever tudo quanto tenha sido feito a este respeito bem como englobar todos os possiacuteveis vectores de anaacutelise tentaremos de um modo tatildeo breve quanto geneacuterico tocar os pontos fundamentais do problema insistindo sobretudo no estatuto que cabe a esta narrativa e inevitavelmente no acircmbito em que se inscreve

Muito sucintamente a intervenccedilatildeo de Criacutetias resume-se agrave descriccedilatildeo de dois mundos antagoacutenicos a Atenas primeva e a Atlacircntida mais propriamente trata do conflito em sentido literal que travaram entre si Seria este o assunto principal do diaacutelogo segundo podemos

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deduzir a partir de alguns dados do texto embora dele tenha sobrado apenas uma descriccedilatildeo inicial que termina abruptamente O que restou desta diegese arquitectada pela dicotomia de dois mundos opostos comeccedila por dar conta do territoacuterio da populaccedilatildeo e da organizaccedilatildeo social de uma Atenas situada num tempo primordial (9000 anos antes de Platatildeo) e termina com um ensaio corograacutefico mais desenvolvido sobre uma monumental ilha situada para aleacutem das Colunas de Heacuteracles (Estreito de Gibraltar) cujos habitantes a dada altura decidiram dominar os povos e cidades do Mediterracircneo incluindo Atenas Agrave partida estariacuteamos inclinados a identificar este episoacutedio com uma determinada guerra travada entre Atenas e um invasor que mediada pela pena criativa de Platatildeo se situaria algures entre histoacuteria e mito mas o problema eacute bem mais complexo Eacute que a ilha da Atlacircntida nunca foi localizada geograficamente e natildeo existe qualquer vestiacutegio histoacuterico quer dela quer dos seus habitantes

Deste modo podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas reconhecer-lhe um fundo histoacuterico ou consideraacute-la uma ficccedilatildeo forjada pelo proacuteprio Platatildeo Aleacutem destas duas hipoacuteteses alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegoacuterico Em nosso entender esta via natildeo estaacute no mesmo plano que as anteriores na medida em que eacute compatiacutevel com ambas constituiraacute pois o segundo niacutevel de intencionalidade da narrativa seja ela histoacuterica ou ficcional

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31 A historicidade da narrativa sobre a AtlacircntidaA hipoacutetese histoacuterica foi a primeira a ser ensaiada

Segundo diz Proclo nos Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo Crantor (o precursor dos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo) atribuiacutea ao discurso de Criacutetias o estatuto de ldquohistoacuteria purardquo (historia psilecirc 1761) Decorrente deste arrojo hermenecircutico foi-se criando e consolidando a ideia de que a Atlacircntida existiria de facto em algum lugar Sobretudo a partir dos Descobrimentos portugueses e espanhoacuteis dos seacuteculos XV e XVI surgiram variadiacutessimas tentativas de identificar geograficamente o territoacuterio No entanto o uacutenico resultado que todas essas demandas (mais ou menos cientiacuteficas) obtiveram foi uma disparidade de opiniotildees tal que tornou qualquer ponto do globo passiacutevel de ser identificado com a ilha

Especial atenccedilatildeo mereceu a hipoacutetese ldquoCretardquo que inicialmente granjeou alguma credibilidade No seguimento de exploraccedilotildees arqueoloacutegicas naquela zona foi forjada uma teoria segundo a qual a civilizaccedilatildeo referida no texto de Platatildeo correspondia agrave que habitava aquela ilha durante o Periacuteodo Minoacuteico a qual tinha sido destruiacuteda por uma violenta erupccedilatildeo do vulcatildeo de Thera (actual Santorini) no entanto com base em novas investigaccedilotildees arqueoloacutegicas e geoloacutegicas essa hipoacutetese acabou por ser refutada (vide Brisson 2001 p 318) Antes destas as outras possibilidades ateacute agora adiantadas satildeo o Continente Americano a Sueacutecia os Mares do Sul (junto ao actual Peru) os arquipeacutelagos dos Accedilores

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e da Madeira entre outras17 Por conseguinte a crenccedila de que a civilizaccedilatildeo representada no discurso de Criacutetias teraacute um referente histoacuterico eacute cada vez mais residual no acircmbito da comunidade cientiacutefica na verdade a grande maioria dos tiacutetulos que tecircm sido publicados sobre a Atlacircntida ou que de algum modo a abordam tomam como princiacutepio a sua anistoricidade

32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de PlatatildeoA segunda hipoacutetese de acordo com a qual toda

a narrativa foi integralmente inventada por Platatildeo eacute aquela que teve menos aceitaccedilatildeo durante a Antiguidade Na verdade restou apenas uma referecircncia que apontava neste sentido na Geografia Estrabatildeo cita em duas ocasiotildees (236 13136) a sentenccedila ldquoo poeta que a forjou fecirc-la desaparecerrdquo na primeira natildeo explicita a sua autoria e na segunda aponta Aristoacuteteles o qual nunca refere a Atlacircntida em nenhum dos textos conservados18 Em segundo lugar porque esta orientaccedilatildeo natildeo se compatibiliza com a intenccedilatildeo do narrador que insiste em classificar o seu discurso como histoacuterico Se o primeiro aspecto natildeo permite concluir rigorosamente nada pois apenas constata uma evidecircncia jaacute o segundo seraacute mais difiacutecil de justificar

17 Para uma descriccedilatildeo mais pormenorizada das possibilidades de localizaccedilatildeo geograacutefica da Atlacircntida vide Azevedo (2009 pp 102-105) Matteacutei (2002 pp 255-256) e Brisson (2001 pp 314-319)

18 Eacute referido o Oceano Atlacircntico mas apenas em textos considerados espuacuterios (Sobre o Mundo 3 392b20-393a16 Problemas [Fiacutesicos] 2652 946a16-32)

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No breve resumo antecipado no Timeu Criacutetias refere que aquilo que estaacute prestes a contar eacute absolutamente verdadeiro (pantapasi alecircthous 20d7) ou seja o seu discurso eacute histoacuterico Na verdade a sua intervenccedilatildeo deixa transparecer vaacuterias caracteriacutesticas e preocupaccedilotildees proacuteprias de um historiador o facto de descrever (geograacutefica social e politicamente) as duas forccedilas antes de entrarem em combate tal como faz Tuciacutedides (189-sqq) a necessidade de fundamentar a argumentaccedilatildeo com evidecircncias19 o modo como o proacuteprio Soacutelon obteacutem as informaccedilotildees no Egipto faz lembrar o meacutetodo de Heroacutedoto20 ou mesmo o recurso a determinadas expressotildees formulares caracteriacutesticas do registo histoacuterico21

Todavia a fonte que sustenta o relato eacute no miacutenimo problemaacutetica Em virtude do tempo decorrido desde a eacutepoca a que Criacutetias se refere e do inevitaacutevel desaparecimento dos homens que nela viveram natildeo sobraram na Greacutecia mais do que nomes isolados que os que viviam nas montanhas ndash iletrados ndash puseram aos seus descendentes (109b-c) Perante a inexistecircncia de testemunhos heleacutenicos que dessem conta daquele episoacutedio a fundamentaccedilatildeo da narrativa remonta ao Egipto onde Soacutelon recolheu os dados junto de sacerdotes locais No entanto a dita transmissatildeo carece

19 O termo utilizado para ldquoevidecircnciardquo (tekmecircrion) eacute muitiacutessimo recorrente nos escritos de Heroacutedoto (2131 33810 72384) e Tuciacutedides (113 2392 31046)

20 Eg 244 53 10021 Por exemplo megala kai thaumasta (ldquograndes e admiraacuteveis

feitosrdquo) em 20e uma expressatildeo tipicamente historiograacutefica (eg Heroacutedoto 111 Diodoro Siacuteculo 1319 Dioniacutesio de Halicarnasso 581)

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de validade histoacuterica pelo facto de ser cronologicamente impossiacutevel que Soacutelon tenha estado no Egipto na eacutepoca do rei Amaacutesis como eacute sugerido pelo texto (21e) razatildeo pela qual o episoacutedio deve ter sido manipulado por Platatildeo (apud Leatildeo 2001 pp 249 275)

Assim a intenccedilatildeo historicista do narrador torna-se extremamente difiacutecil de compatibilizar com a evidente precariedade das fontes de que parte bem como com a impossibilidade de depois de mais de dois mileacutenios de exegese sequer se esboccedilar uma teoria minimamente vaacutelida que sustente esta posiccedilatildeo Aleacutem disso haacute outro pormenor que agrave partida parece complicar ainda mais o esclarecimento de tal contradiccedilatildeo Quando ainda no Timeu Soacutecrates elogia a intenccedilatildeo de Criacutetias oferecer um ldquodiscurso do realrdquo (alecircthinon logon 26e4-5) e natildeo uma narrativa forjada (mecirc plasthenta mython 26e4) parece subscrever o estatuto de histoacuteria pura Contudo esta aparente conivecircncia deve ser entendida agrave luz do que o proacuteprio dissera em relaccedilatildeo agrave cidade descrita ldquono dia anteriorrdquo isto eacute o Estado arquetiacutepico da Repuacuteblica (cf Pina 2010 pp 148-149)

Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos (19b-c)

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Isto eacute aquele jogo entre mythos e logos narrativa e discurso parece indiciar natildeo uma oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso antes uma tentativa de transpocircr para o real e concreto (apud Azevedo 2009 p 96) algo que fora formulado em abstracto No entanto visto que esta questatildeo entronca numa das possibilidades de interpretaccedilatildeo a abordar posteriormente deixemo-la para jaacute em suspenso

Abandonando entatildeo os pontos de vista dos participantes do diaacutelogo sobre a natureza do relato e focando um pouco mais o que podemos deduzir por meio de algumas relaccedilotildees intertextuais verificamos que o texto de Platatildeo evidencia a presenccedila de muitas fontes a que natildeo faz referecircncia directa A diversidade desses materiais usados como ldquoingredientesrdquo eacute tal que facilmente poderemos estabelecer um conjunto de substratos inerentes ao discurso os quais forccedilosamente lhe vinculam um estatuto compoacutesito e ao mesmo tempo o afastam da reclamada historicidade

Por um lado o texto ecoa em diversas ocasiotildees vozes de alguns autores gregos como nota Gill (1980 xii-xiii) Por exemplo a incomensuraacutevel fertilidade das terras da Aacutetica primeva que reduzia ao miacutenimo o trabalho agriacutecola (110e) relembra inevitavelmente a Idade do Ouro de Hesiacuteodo (Trabalhos e Dias 109-126) ou o proacuteprio nome ldquoAtlacircntidardquo e a sua localizaccedilatildeo para aleacutem dos confins do mundo conhecido (isto eacute o Estreito de Gibraltar) que recupera a ilha da filha de Atlas referida na Odisseia (151-54) No domiacutenio da histoacuteria a presenccedila de Heroacutedoto eacute tambeacutem evidente

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os aneacuteis que estruturam a principal cidade da Atlacircntida (113d-e) evocam a descriccedilatildeo do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana (198) o modo como os canais da planiacutecie daquela ilha estavam arquitectados (118c-e) traz agrave memoacuteria a descriccedilatildeo da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia (3117) a assembleia dos reis tem muitas semelhanccedilas com um ritual caracteriacutestico de uma monarquia egiacutepcia (2147-sqq) Aleacutem disso encontramos tambeacutem elementos da proacutepria cultura aacutetica na construccedilatildeo da Atlacircntida como bem observa Vidal-Naquet (1964 pp 429-432) a divisatildeo decimal do territoacuterio (113e) os edifiacutecios defensivos que fazem lembrar o Pireu (117d-f ) e ateacute o proacuteprio templo de Posiacutedon muito semelhante ao Paacutertenon (116d-f ) Finalmente satildeo tambeacutem sugestivas as semelhanccedilas entre a estaacutetua de Posiacutedon que estava dentro do seu templo e a Estaacutetua de Zeus em Oliacutempia22

Por outro lado haacute na narrativa de Criacutetias elementos pertencentes a outras culturas ou civilizaccedilotildees como Cartago a Creta do Periacuteodo Minoacuteico ou o proacuteprio Egipto No primeiro caso os paralelos que possamos estabelecer satildeo pontuais os vorazes elefantes (114e) caracteriacutesticos daquela zona do Mediterracircneo e por exemplo os nomes Gadiro e Gadiacuterica (114b) de origem semita23 O mesmo acontece com o segundo o facto de ser uma grande potecircncia mariacutetima e sobretudo o culto do touro24 Mas no terceiro caso a questatildeo eacute de

22 Sobre esta relaccedilatildeo vide nota 68 agrave traduccedilatildeo23 Para um desenvolvimento mais pormenorizado desta questatildeo

vide Dusanic (1982 pp 27-28)24 Apesar de natildeo ser exclusivo de Creta o culto do touro era

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outra ordem pois tudo aponta para que este substrato represente o fundo histoacuterico que deu origem agrave narrativa Eacute bastante provaacutevel que o conflito entre a Atenas primeva e a Atlacircntida seja uma adaptaccedilatildeo de uma batalha travada pelos Egiacutepcios no tempo de Ramseacutes III contra os chamados ldquoPovos do Marrdquo Esta designaccedilatildeo ndash muitiacutessimo sugestiva ndash sugere uma confederaccedilatildeo de gentes oriundas de vaacuterias ilhas do Mediterracircneo que unidas tentaram atacar vaacuterias zonas continentais como o Norte da Palestina a Siacuteria e mesmo o Egipto Neste paiacutes a vitoacuteria foi particularmente celebrada e por isso registada e tornada objecto de narrativas vaacuterias que perduraram ao longo dos tempos daiacute que provavelmente Platatildeo se tenha baseado neste episoacutedio (apud Griffiths 1985 pp 13-14)

A recolha de todos estes elementos disponiacuteveis em textos e lugares conhecidos pelo autor parece assim indiciar um processo de representaccedilatildeo do outro atraveacutes dos olhos de um grego uma geografia imaginaacuteria de um mundo tambeacutem ele imaginaacuterio e sobretudo imaginado mas sempre a partir do repositoacuterio cultural de que emerge o sujeito

Tidas em conta estas evidecircncias somos obrigados a confessar que a narrativa de Criacutetias tem um caraacutecter marcadamente compoacutesito No entanto natildeo se trata apenas de uma mistura de dados histoacutericos oriundos de contextos espaacutecio-temporais bastante distintos ndash como que um pastiche25 ndash dado que tambeacutem comporta uma para os Atenienses uma caracteriacutestica identitaacuteria desta ilha veja-se por exemplo o mito de Teseu e Ariadne

25 A expressatildeo eacute de Naddaf (1997 p 190)

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forte componente poeacutetico-mitoloacutegica De um modo algo iroacutenico esta natureza estaacute latente no proacuteprio texto Logo no iniacutecio do diaacutelogo Criacutetias faz questatildeo de sublinhar que a linguagem eacute em si imitaccedilatildeo e representaccedilatildeo (mimecircsin () kai apeikasian 107b4-5) A advertecircncia preliminar indicia antes de tudo uma salvaguarda que o narrador pretende marcar aleacutem disso aproxima inevitavelmente o seu relato do registo ficcional logo anistoacuterico

Dito isto a incompatibilidade entre o estatuto que o narrador atribui ao seu discurso e o estatuto que somos obrigados a reconhecer-lhe manteacutem-se inalteraacutevel se eacute que natildeo se acentuou ainda mais No entanto a soluccedilatildeo definitiva do problema encontra-se precisamente numa das intervenccedilotildees metaliteraacuterias destinadas a certificar o caraacutecter real do discurso

Quanto aos cidadatildeos e agrave cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade () (26c8-26d1)

Esta fala de Criacutetias tem lugar precisamente quando se prepara para comeccedilar a descriccedilatildeo da guerra entre a Atlacircntida e Atenas e a cidade a que se refere eacute aquela que o resumo de Soacutecrates abordara anteriormente o arqueacutetipo de Estado delineado na Repuacuteblica Tal como naquele diaacutelogo a projecccedilatildeo teoacuterica da cidade eacute formulada no acircmbito do mito (501e4) mas ao contraacuterio da Repuacuteblica diaacutelogo em que essa teorizaccedilatildeo natildeo eacute posta em praacutetica o Criacutetias pretende dar corpo ao que fora formulado em abstracto isto eacute trazecirc-lo para a realidade (epi talecircthes)

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Deste modo em vez de verdadeiro como oposto de falso o discurso de Criacutetias pretende ser concreto ou melhor concretizar o que fora teorizado Eacute aliaacutes este o desiacutegnio de Soacutecrates quando diz que pretende ver em movimento a cidade e os cidadatildeos de que falavam bem como seraacute neste sentido que devemos entender a sua preferecircncia por um discurso do real em vez de uma narrativa forjada Deste modo estaremos em condiccedilotildees de assegurar que o discurso de Criacutetias se trata de uma narrativa ficcional forjada pelo proacuteprio Platatildeo a partir de elementos diversos quer (pseudo-)histoacutericos quer poeacutetico-mitoloacutegicos

Ainda assim resta esclarecer o passo em que Criacutetias diz que o seu discurso eacute ldquoabsolutamente verdadeirordquo (pantapasi () alecircthous 20d7) ou seja por que motivo Platatildeo insiste em chamar ldquoverdadeirardquo a uma narrativa que monta com elementos ficcionais A esta questatildeo responde Morgan de um modo tatildeo vaacutelido quanto eficaz o discurso de Criacutetias consiste numa dramatizaccedilatildeo praacutetica da ldquonobre mentirardquo da Repuacuteblica26

33 Leituras alegoacutericasDeste modo entramos na primeira das possiacuteveis

leituras alegoacutericas que o discurso de Criacutetias pode assumir a narrativa sobre a guerra entre a Atlacircntida e

26 Vide Morgan (2000 pp 263-265) cf Pina (2010 pp 155-156) Na Repuacuteblica (414b-sqq) Platatildeo equaciona a possibilidade de introduzir uma crenccedila falsa na sociedade desde que com isso se consiga fazer aumentar o afecto dos cidadatildeos para com a cidade A esse tipo de narrativas chamou ldquonobre mentirardquo (pseudocircn gennaion 414b8-9)

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a Atenas primeva tem como objectivo despertar nos Atenienses um maior afecto em relaccedilatildeo agrave sua cidade Numa linha semelhante Azevedo (2006 p 295 2009 p 95) sugere que a Atlacircntida soacute faz sentido enquanto modelo distoacutepico que contrasta com a Atenas primeva esta um modelo de supremacia civilizacional e com o papel de guardiatilde da Europa Satildeo portanto duas leituras que enquadram a narrativa numa evocaccedilatildeo saudosista de um passado glorioso que pretende acima de tudo revitalizar a imagem de uma cidade desgastada por sucessivos desaires militares e poliacuteticos como era a Atenas de Platatildeo

Ao longo dos tempos foram surgindo outras propostas de leituras alegoacutericas mais individualizadas com uma evidente vertente poliacutetica A primeira tambeacutem de natureza saudosista pretende transpor a narrativa de Criacutetias para o contexto das Guerras Medo-Persas ou seja a Atenas primeva coincide com a Atenas que expulsou o inimigo oriental a qual cultivava ainda os seus costumes e tradiccedilotildees ancestrais e a dada altura tambeacutem ficou praticamente sozinha na frente de batalha em sentido inverso a civilizaccedilatildeo atlante siacutembolo da ganacircncia de domiacutenio forccedila invasora arrasadora e ao mesmo tempo superpotecircncia econoacutemica corresponderaacute aos Persas Quanto agrave segunda leitura possiacutevel ela eacute diametralmente oposta a Atlacircntida representaria a Atenas contemporacircnea de Platatildeo enquanto que a Atenas primeva simbolizaria Esparta ou seja como pano de fundo estaria a Guerra do Peloponeso e de modo subliminar uma criacutetica aguda agrave postura de Atenas durante esse conturbado periacuteodo

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ndash criacutetica essa que assumiria um caraacutecter particularmente incisivo pelo facto de o diaacutelogo se desenrolar pelo menos do ponto de vista dramaacutetico durante as Panateneias a principal festa da cidade De acordo com esta proposta o objectivo seria entatildeo vincar os ldquopecadosrdquo atenienses como a desmedida supremacia mariacutetima ou a atitude agressiva perante as naccedilotildees vizinhas e inversamente enaltecer as ldquovirtudesrdquo tradicionalmente espartanas uma classe militar extremamente forte e demarcada organizaccedilatildeo poliacutetica tradicional e a relativa desvalorizaccedilatildeo das riquezas materiais

Com efeito o que podemos afirmar com toda a certeza independentemente da posiccedilatildeo que queiramos assumir eacute que a narrativa de Criacutetias descreve os dois movimentos comuns a todas as civilizaccedilotildees ascensatildeo e queda

4 estrutura dos diaacutelogos

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias (17a-27c)1 Contexto dramaacutetico (17a-17b)2 Resumo da conversa do dia anterior (17b-20c)3 Resumo do discurso de Criacutetias (20c-26e)4 Programa dos discursos (26e-27c)

II Discurso de Timeu (27c-92c)A Preluacutedio1 Invocaccedilatildeo dos deuses (27c-27d)2 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ser e devir (27d-28b)21 Implicaccedilotildees epistemoloacutegicas (28c-29d)3 Pressupostos iniciais (29d-31b)

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31 O demiurgo (29d-30c)32 O Ser-Vivo (30c-d)33 O mundo eacute um ser-vivo (30d-31a)34 O mundo eacute uacutenico (31a-31b)

B Obras do Intelecto1 Constituiccedilatildeo do mundo (31b-40d)11 O corpo do mundo (31b-34a)12 A alma do mundo (34a-40d)2 Constituiccedilatildeo do Homem (40d-47e)21 A alma do Homem (40d-44c)22 O corpo do Homem (44c-47e)

C O acircmbito da Necessidade1 A causa errante (47e-48b)2 Novo comeccedilo da narrativa nova invocaccedilatildeo dos deuses (48b-48e)3 Terceiro princiacutepio ontoloacutegico a chocircra (48e-51e)4 Recapitulaccedilatildeo dos trecircs princiacutepios ontoloacutegicos (51e-52c)5 Os elementos (52d-61c)51 Estado preacute-coacutesmico (52d-53c)52 Formaccedilatildeo dos soacutelidos a partir dos triacircngulos elementares (53c-56c)53 Transmutaccedilatildeo e variedades dos compostos (56c-57d)54 Movimentos dos elementos (57d-61c)6 As sensaccedilotildees e as impressotildees (61c-69a)61 O tacto (61c-64a)62 O prazer e a dor (64a-65b)

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63 Os sabores (65b-66c)64 Os odores (66c-67a)65 Os sons (67a-67c)66 As cores (67c-68d)

D Cooperaccedilatildeo entre Intelecto e Necessidade (68e-81e)1 Recapitulaccedilatildeo da acccedilatildeo do demiurgo (68e-69c)2 Introduccedilatildeo das divindades menores (69c-69d)3 Constituiccedilatildeo da parte mortal da alma humana (69d-73b)4 Constituiccedilatildeo das restantes partes do corpo humano (73b-76e)5 Criaccedilatildeo dos seres vegetais (76e-77c)6 Constituiccedilatildeo dos aparelhos funcionais do corpo humano (77c-81e)7 Doenccedilas do corpo humano (81e-86a)8 Doenccedilas da alma humana (86b-92c)

E Conclusatildeo (92c)

III Discurso de Criacutetias (106a-121c)

A Introduccedilatildeo (106a-109a)1 Excurso metaliteraacuterio (106a-108a)2 Invocaccedilatildeo dos deuses (108a-d)3 Resumo do discurso (108e-109a)

B Descriccedilatildeo da Atenas primeva (109b-112b)1 Origem miacutetica dos Atenienses (109b-d)

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2 Populaccedilatildeo (109d-110d)3 Territoacuterio (110d-112e)31 Regiatildeo da Aacutetica (110e-111e)32 Cidade de Atenas (111e-112e)

C Descriccedilatildeo da Atlacircntida (113a-121c)1 Advertecircncia sobre as condiccedilotildees de transmissatildeo da narrativa (113a-b)2 Origem miacutetica dos Atlantes (113c-114d)3 Territoacuterio (114d-119b)31 Recursos naturais da ilha (114d-115b)32 A metroacutepole (115b-117e)33 Recursos forjados pelos habitantes (117e-119b)4 Organizaccedilatildeo poliacutetica (119b-121c)

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Soacutecrates Um dois trecircs mas onde estaacute meu caro Timeu o quarto dos nossos convidados1 de ontem nossos anfitriotildees de hoje

Timeu Alguma doenccedila o atingiu oacute Soacutecrates pois se dependesse de si proacuteprio natildeo faltaria a este encontro

Soacutecrates Entatildeo a tarefa de preencher o lugar do que estaacute ausente cabe-te a ti e a estes aqui natildeo eacute verdade

Timeu Sem duacutevida e dentro dos possiacuteveis natildeo falharemos na nossa tarefa De facto natildeo seria justo se depois de nos teres recebido como eacute adequado fazecirc-lo com os hoacutespedes noacutes ndash os que restamos ndash natildeo te retribuiacutessemos de bom grado o festim

Soacutecrates Entatildeo e vocecircs ainda se lembram de qual era o teor e o assunto que vos propus para a nossa conversa

1 Natildeo eacute possiacutevel sequer supor quem seja esta personagem anoacutenima Quanto aos restantes vide Introduccedilatildeo pp 20-23

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Timeu Lembramo-nos de alguns temas e os que nos tiverem escapado tu estaraacutes caacute para no-los relembrar ou melhor ainda se natildeo achares inconveniente passa-os em revista de forma breve e desde o princiacutepio de modo a que fiquem mais clarificados entre noacutes

Soacutecrates Assim seja O essencial das minhas palavras de ontem tinha que ver com o tipo de Estado2 que me parece ser o melhor e a partir de que tipo de homens havia de ser composto

Timeu E de facto Soacutecrates o que nos disseste estaacute perfeitamente de acordo com o que todos noacutes pensamos

Soacutecrates E natildeo comeccedilaacutemos por dividir a classe dos que trabalham a terra em si e por separar este e os outros ofiacutecios de artesatildeos da classe daqueles que defendem a cidade3

Timeu Sim

Soacutecrates E quando atribuiacutemos de acordo com a sua natureza especiacutefica uma uacutenica profissatildeo e ocupaccedilatildeo

2 politeia Embora ldquoEstadordquo seja um conceito medieval eacute o uacutenico termo portuguecircs que engloba as instituiccedilotildees poliacuteticas e a forma de governo eacute o que estaacute implicado em politeia Trata-se evidentemente do assunto principal da Repuacuteblica (Politeia) cujo resumo parcial (sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo pp 16-17 62-63) os participantes traratildeo agrave memoacuteria nesta secccedilatildeo inicial por esse motivo remeteremos em nota para uma das passagens daquele diaacutelogo aludidas ao longo dos proacuteximos paraacutegrafos

3 Cf Repuacuteblica 374a-d

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a cada cidadatildeo que lhe fosse adequada4 dissemos que aqueles que tivessem de lutar em favor de todos deviam ser exclusivamente guardiotildees da cidade em relaccedilatildeo a algueacutem de fora ou de dentro que cometesse algum crime Deviam ainda aplicar a justiccedila com moderaccedilatildeo sobre aqueles que satildeo regidos por eles e que por natureza satildeo seus amigos e de tratar com aspereza os inimigos a defrontar no campo de batalha5

Timeu Sem qualquer duacutevida

Soacutecrates Com efeito diziacuteamos segundo creio que a natureza da alma dos guardiotildees devia ser eneacutergica e ao mesmo tempo particularmente inclinada para a sabedoria de modo a que conseguissem ser em igual medida moderados para uns e aacutesperos para os outros6

Timeu Sim

Soacutecrates E quanto agrave formaccedilatildeo Natildeo haviam de ter formaccedilatildeo no acircmbito da ginaacutestica e da muacutesica e de todas as mateacuterias adequadas para eles7

Timeu Com certeza

Soacutecrates Aleacutem disso foi dito que os homens assim formados natildeo deviam nunca considerar sua pertenccedila

4 Cf Repuacuteblica 369e-370c 423d5 Cf Repuacuteblica 375c 414b 415d-e6 Cf Repuacuteblica 374e-376c7 Cf Repuacuteblica 376e-sqq 403c-sqq 410c-sqq

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nem ouro nem prata nem qualquer outro bem antes como guardas deveriam receber daqueles que protegem um pagamento pela sua guarniccedilatildeo para ser gasto numa vida de partilha e convivecircncia entre si em permanente exerciacutecio da excelecircncia e dispensados do desempenho de outras funccedilotildees8

Timeu Tambeacutem isso foi dito desse modo

Soacutecrates E no que respeita agraves mulheres tambeacutem mencionaacutemos que a natureza delas devia ser concordante com a dos homens e com a deles harmonizado e lhes deviam ser atribuiacutedas as mesmas funccedilotildees que a eles na guerra e nos restantes assuntos do dia-a-dia9

Timeu Tambeacutem isso se disse desse modo

Soacutecrates E no que respeita agrave procriaccedilatildeo Seraacute que o caraacutecter inusitado dessas consideraccedilotildees faz com que seja recordado facilmente porque estabelecemos que todos os casamentos e os filhos seriam comuns Deste modo se conseguia que ningueacutem reconhecesse como seus filhos o engendrado por si antes que todos considerariam todos como sendo da mesma famiacutelia tendo por irmatildes e irmatildeos aqueles que fossem de idade aproximada por pais ou avoacutes dos pais os mais velhos e por filhos gerados pelos filhos os mais novos10

8 Cf Repuacuteblica 416d-417b 464b-c9 Cf Repuacuteblica 456a-sqq10 Cf Repuacuteblica 460c-461e

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Timeu Sim tambeacutem isto eacute faacutecil de relembrar como dizes

Soacutecrates E para que as crianccedilas na medida do possiacutevel fossem agrave partida de natureza excelente lembraacutemos o que tiacutenhamos dito sobre os governantes e as governantes que deviam celebrar contratos de casamento em segredo por meio de uma espeacutecie de sorteio para que os piores e os melhores se unissem separada e respectivamente com as suas semelhantes de modo a que natildeo se criasse entre eles qualquer inimizade por causa disso uma vez convencidos de que o acaso era o motivo da sua uniatildeo

Timeu Lembraacutemos

Soacutecrates E tambeacutem que tiacutenhamos dito que deveriam ser criados os filhos dos naturalmente bons enquanto que os dos piores deveriam ser dispersos pelo resto da cidade11 Mantidos todos sob observaccedilatildeo durante o seu crescimento deviam ser trazidos sempre de volta aqueles que se mostrassem dignos de tal e ser remetidos os inaptos para o local de onde aqueles tinham vindo

Timeu Assim foi

Soacutecrates Seraacute que jaacute passaacutemos em revista exactamente o que ontem dissemos na medida do que

11 eis tecircn allecircn polin Porque precedido de artigo o pronome allos deve traduzir-se por ldquoo restordquo por isso seria descabida a versatildeo ldquopara outra cidaderdquo

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se pode recuperar dos assuntos principais meu caro Timeu ou querem regressar ainda a algum dos assuntos de que falaacutemos e que eu tenha deixado para traacutes

Timeu De modo algum pois isto foi exactamente o que dissemos oacute Soacutecrates

Soacutecrates Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos De facto com prazer ouviria de algueacutem o relato sobre as disputas que uma cidade trava as que ela manteacutem contra outras cidades a forma correcta como chega agrave guerra e como no seu decurso se apresenta de acordo com a sua educaccedilatildeo e formaccedilatildeo natildeo soacute nas praacuteticas de combate como tambeacutem na negociaccedilatildeo de tratados com as outras cidades Reconheccedilo Criacutetias e Hermoacutecrates que eu proacuteprio natildeo serei capaz de elogiar os homens e a cidade convenientemente E esta minha posiccedilatildeo nada tem de surpreendente pelo contraacuterio mantenho a mesma opiniatildeo em relaccedilatildeo aos poetas antigos e contemporacircneos Natildeo eacute que eu desconsidere a estirpe dos poetas mas eacute perfeitamente evidente que a raccedila dos imitadores imitaraacute com facilidade e de modo

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excelente aquilo em que foi educada poreacutem torna-se difiacutecil para qualquer um imitar bem o que natildeo pertence agrave sua educaccedilatildeo sendo ainda mais difiacutecil se a imitaccedilatildeo for feita por meio de palavras

Penso que a casta dos sofistas se destaca por ter muita experiecircncia em variados tipos de discurso e noutras coisas belas No entanto tendo em conta que ela vagueia de cidade em cidade e pelas casas sem dispor de uma morada proacutepria eu temo que natildeo atinja12 o que homens simultaneamente filoacutesofos e poliacuteticos fazem na guerra e no campo de batalha por meio de actos e palavras e como se relacionam entre si a falar e a agir Sobra portanto a classe de pessoas da vossa condiccedilatildeo que por natureza e formaccedilatildeo toma parte de ambas as categorias Eacute que Timeu que aqui temos cidadatildeo de Loacutecride a cidade na Itaacutelia com melhor organizaccedilatildeo poliacutetica13 que natildeo fica atraacutes de nenhum dos outros em riqueza e linhagem ocupou os mais altos cargos e recebeu as maiores das honras naquela cidade e na minha opiniatildeo alcanccedilou o ponto mais alto de toda a filosofia Suponho que todos noacutes sabemos que Criacutetias natildeo eacute um desconhecedor em qualquer das mateacuterias de que falamos Aleacutem disso visto que muitos o testemunham devemos acreditar que Hermoacutecrates em virtude da sua natureza e formaccedilatildeo eacute competente em todos estes assuntos Foi por isso que ontem quando vocecircs pediram para discursar sobre o Estado acedi de

12 astochon literalmente ldquoalgo que falha o alvordquo13 O sistema poliacutetico-administrativo de Loacutecride eacute elogiado

nas Leis (638b) e tambeacutem por Piacutendaro numa das Odes Oliacutempicas (1013)

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bom grado porque depois de ter reflectido percebi que ningueacutem seria mais adequado do que vocecircs para dar seguimento a esse discurso se assim quiserem Eacute que entre os nossos contemporacircneos vocecircs satildeo os uacutenicos que depois de preparar a cidade para uma guerra justificaacutevel podem proporcionar-lhe tudo quanto lhe eacute conveniente Uma vez que dissertei sobre o assunto que me tinha sido atribuiacutedo a vosso cargo deixo aquilo a que agora me refiro Tinham acordado que depois de terem reflectido em conjunto me seria retribuiacutedo por vocecircs mesmos o banquete de discursos14 Aqui estou entatildeo preparado para tal e mais do que ningueacutem pronto para recebecirc-los

Hermoacutecrates De facto Soacutecrates tal como disse Timeu15 nem faltaraacute boa-vontade nem haveraacute qualquer motivo a impedir que tal se cumpra De igual modo tambeacutem noacutes ontem logo depois de nos termos retirado daqui e chegado agrave casa de Criacutetias o nosso anfitriatildeo e ainda antes disso enquanto percorriacuteamos o caminho faziacuteamos observaccedilotildees sobre isto mesmo Este contou-nos uma estoacuteria de antiga tradiccedilatildeo Conta-a agora tambeacutem a Soacutecrates oacute Criacutetias para que ele considere se eacute adequada ou desadequada ao fim em vista

14 Embora xenia signifique simplesmente ldquopresentes de hospitalidaderdquo pode tambeacutem representar a cerimoacutenia comensal com que o anfitriatildeo recebia os convidados Neste caso parece que Soacutecrates usa a palavra com esse sentido repetindo a metaacutefora do banquete de palavras que usara neste (27b) e noutros diaacutelogos (Goacutergias 447a Repuacuteblica 352b 354a-b)

15 Cf supra 17a-b

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Criacutetias Faacute-lo-ei se igualmente parecer bem a Timeu o nosso terceiro conviva

Timeu Parece-me bem pois

Criacutetias Escuta entatildeo Soacutecrates uma estoacuteria deveras iacutempar e contudo absolutamente verdadeira como uma vez a contou Soacutelon o mais saacutebio de entre os Sete Saacutebios que era familiar e muito amigo do meu bisavocirc Dropidas tal como ele afirma com frequecircncia na sua obra poeacutetica16 Contou-a a Criacutetias nosso avocirc que jaacute velho nos narrava de memoacuteria que grandes e admiraacuteveis feitos17 dos tempos antigos desta cidade que tinham sido esquecidos graccedilas ao tempo e agrave destruiccedilatildeo da humanidade18 e a mais grandiosa de todas seria conveniente que ta deacutessemos a conhecer agora para te oferecer um agradecimento e ao mesmo tempo em jeito de hino para elogiar neste louvor a deusa de forma justa e autecircntica no dia da sua festa19

Soacutecrates Falas correctamente Mas que feito eacute esse de que natildeo temos notiacutecia e que foi realmente cumprido

16 No que sobrou da obra de Soacutelon natildeo haacute qualquer referecircncia a este nome Sobre esta figura vide Introduccedilatildeo pp 21-22

17 megala kai thaumasta eacute curiosamente uma expressatildeo formular proacutepria do discurso histoacuterico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 57-sqq esp n 21

18 Trata-se dos vaacuterios diluacutevios que quase extinguiram a espeacutecie humana (21d 22c-sqq) cf Criacutetias 109d 111a-sqq Leis 677A-sqq Poliacutetico 270c-d Entre eles conta-se evidentemente o que vai ser descrito de seguida

19 O Festival das Panateneias dedicado agrave deusa Atena durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica

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pela nossa cidade em tempos antigos o qual Criacutetias vai narrar de acordo com o testemunho de Soacutelon

Criacutetias Passo a contaacute-lo ainda que sob a forma de relato antigo que ouvi da boca de um homem entrado em anos Eacute que Criacutetias20 como dizia tinha jaacute perto de 90 anos enquanto que eu ainda natildeo teria bem dez Por acaso era o dia de Cureoacutetis o terceiro das Apatuacuterias21 Para as crianccedilas estava reservado o que tambeacutem nessa altura era costume por ocasiatildeo de cada uma dessas festas os nossos pais organizavam-nos concursos de recitaccedilatildeo Foram declamados muitos poemas de muitos poetas mas como naquele tempo os de Soacutelon constituiacuteam ainda novidade muitos de noacutes crianccedilas cantaacutemo-los Um dos elementos da fratria22 fosse por realmente pensar desse modo fosse para prestar como que uma homenagem a Criacutetias disse considerar que aleacutem de Soacutelon ser o homem mais saacutebio noutros assuntos no que respeitava agrave poesia considerava-o o mais independente de todos os poetas23 Entatildeo o anciatildeo ndash lembro-me bem ndash muito

20 Este Criacutetias natildeo eacute o participante no diaacutelogo mas sim o seu avocirc Sobre esta relaccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp 21-22

21 Festival que decorria em todas as cidades ioacutenicas agrave excepccedilatildeo de Eacutefeso e Coacutelofon segundo Heroacutedoto 1147 O terceiro e uacuteltimo dia (dito ldquode Cureoacutetisrdquo) estava reservado agrave apresentaccedilatildeo das crianccedilas que tinham nascido nos 12 meses precedentes

22 Uma fratria era um grupo de cidadatildeos unidos por uma mesma ascendecircncia Era considerada uma marca da tradiccedilatildeo ioacutenica e como tal frequente em muitas cidades desta origem entre as quais Atenas A cerimoacutenia que celebrava esta tradiccedilatildeo era justamente as Apatuacuterias que segundo Heroacutedoto (1147) consistiam no criteacuterio de identidade desta heranccedila cultural

23 Cremos que eleutheriocirctaton natildeo se refere ao conteuacutedo temaacutetico ou qualquer outro aspecto literaacuterio da obra de Soacutelon mas

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agradado disse a sorrir ldquooacute Aminandro24 era bom que ele natildeo tivesse usado a poesia como passatempo mas sim que se tivesse empenhado como os outros e dado corpo ao relato que para aqui trouxe do Egipto Se as revoltas entre outros males que encontrou quando caacute chegou25 natildeo o tivessem obrigado a descurar a poesia nem Hesiacuteodo nem Homero nem qualquer outro poeta se teria tornado mais ceacutelebre do que elerdquo ldquoMas que relato eacute esse Criacutetiasrdquo ndash perguntou o outro ldquondash O relato era sobre o feito mais grandioso e com toda a justiccedila mais notaacutevel de todos quantos a nossa cidade praticou mas que natildeo perdurou ateacute agora por causa do tempo e da morte daqueles que nele participaramrdquo ndash respondeu ele ldquoConta desde o princiacutepio o que relatou e como o relatou Soacutelon e da boca de quem o ouviu como sendo verdadeirordquo ndash pediu o outro

ldquoHaacute no Egipto ndash comeccedilou Criacutetias ndash no extremo inferior do Delta em redor da zona onde se divide a corrente do Nilo uma regiatildeo chamada Saiticos26 e da maior cidade dessa regiatildeo Sais27 ndash precisamente de onde era natural o rei Amaacutesis28 ndash foi fundadora uma deusa

sim ao proacuteprio homem ndash de facto a palavra tem uma conotaccedilatildeo principalmente socioloacutegica e poliacutetica Eacute que ao contraacuterio da maioria dos poetas do seu tempo Soacutelon natildeo compunha por indicaccedilatildeo de um patrono

24 Personagem totalmente desconhecida25 Referecircncia provaacutevel agraves revoltas que nos finais do seacuteculo VI

aC afrontaram Atenas antes de Soacutelon ter tomado o poder26 Sobre esta regiatildeo vide Heroacutedoto 2152 165 17227 Sobre esta cidade vide Heroacutedoto 228 59 62 130-132

163 169-171 31628 Heroacutedoto refere que Soacutelon depois de ter composto as leis

para os Atenienses se ausentou durante dez anos e esteve em casa de

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cujo nome em Egiacutepcio eacute Neith e em Grego segundo dizem os que laacute vivem Atena29 Eles nutrem profunda simpatia pelos Atenienses e dizem que de certo modo com estes tecircm afinidades

Dizia Soacutelon que enquanto por ali andou era muitiacutessimo respeitado por eles e que a certa altura ao questionar os sacerdotes30 mais versados sobre acontecimentos antigos descobriu que nem ele nem nenhum outro grego sabia por assim dizer quase nada sobre aquele assunto Como ele pretendia induzir os anciatildeos a conversarem sobre acontecimentos antigos pocircs-se a contar as tradiccedilotildees ancestrais que haacute entre noacutes Falou de Foroneu que se diz ter sido o primeiro homem31 e de Niacuteobe32 de como Deucaliatildeo e Pirra sobreviveram ao diluacutevio33 e discorreu sobre a genealogia dos que lhes sucederam e tentou calcular haacute quantos anos tinha acontecido aquilo que contara trazendo agrave memoacuteria as Amaacutesis (cf 129-30) Ainda que seja quase certa a estadia de Soacutelon no Egipto eacute cronologicamente impossiacutevel que tenha acontecido no tempo de Amaacutesis cf Introduccedilatildeo pp 57-58

29 Tambeacutem Heroacutedoto estabelece esta relaccedilatildeo entre Atena e Neith e chega a referir um grande festival religioso que os egiacutepcios organizavam em honra da deusa (cf 259)

30 Plutarco na Vida de Soacutelon (261) tambeacutem refere este episoacutedio e adianta os nomes dos sacerdotes Socircnquis de Sais e Pseacutenopis de Helioacutepolis

31 As uacutenicas referecircncias a Foroneu como primeiro homem satildeo bastante posteriores (Clemente de Alexandria Stromata 1102 Pausacircnias 2155) Por isso natildeo eacute possiacutevel perceber a que tradiccedilatildeo Platatildeo se refere

32 Filha de Foroneu33 Deucaliatildeo filho de Prometeu e a esposa Pirra filha de

Epimeteu correspondem na mitologia grega ao arqueacutetipo biacuteblico de Noeacute avisados pelos deuses de um diluacutevio contruiacuteram uma arca para sobreviver e posteriormente repovoar a Terra

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suas idades Foi entatildeo que um dos sacerdotes jaacute de muita idade lhe disse ldquoOacute Soacutelon Soacutelon34 voacutes Gregos sois todos umas crianccedilas natildeo haacute um grego que seja velhordquo Ouvindo tais palavras Soacutelon indagou ldquoO que queres dizer com issordquo ldquoQuanto agrave alma35 sois todos novos ndash disse ele Eacute que nela natildeo tendes nenhuma crenccedila antiga transmitida pela tradiccedilatildeo nem nenhum saber encanecido pelo tempo A causa exacta eacute a seguinte muitas foram as destruiccedilotildees que a humanidade sofreu e muitas mais haveraacute as maiores pelo fogo e pela aacutegua mas tambeacutem outras menores por outras causas incontaacuteveis Tomemos um exemplo como o de Faetonte filho de Heacutelios que um dia atrelou o carro do pai mas por natildeo ser capaz de seguir a rota do pai lanccedilou o fogo sobre a terra e ele proacuteprio morreu fulminado Isto eacute contado sob a forma de um mito36 pois a verdade eacute que os corpos que no ceacuteu giram agrave volta da terra sofrem uma variaccedilatildeo e de muito em muito tempo sobreveacutem a destruiccedilatildeo na terra por causa do excesso de fogo Nessa altura aqueles que vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior nuacutemero do que os que vivem junto de rios ou do mar Quanto a noacutes eacute o Nilo nosso salvador tambeacutem em outras ocasiotildees que nos livra de tais apuros com as suas cheias Por outro lado sempre que os deuses provocam um diluacutevio para purificar a

34 Note-se que a repeticcedilatildeo da palavra ldquoSoacutelonrdquo eacute propositada35 psychecirc Neste caso ldquoalmardquo natildeo tem um sentido cosmoloacutegico

nem psicoloacutegico mas sim cultural36 mythou men schecircma echon Segundo a concepccedilatildeo do sacerdote

ldquomitordquo tem o sentido mais tradicional estoacuteria falsa Tornar-se-aacute evidente que a de Timeu eacute diametralmente oposta e bastante mais elaborada

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terra com aacutegua satildeo os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas37 enquanto que os que entre voacutes vivem nas cidades satildeo arrastados para o mar pelos rios Mas aqui nesta terra nem num caso nem no outro as aacuteguas correm pelos nossos campos mas pelo contraacuterio irrompem naturalmente do fundo da terra Daiacute que seja este o motivo pelo qual se diz que as tradiccedilotildees mais antigas se conservam nesta regiatildeo Em boa verdade em todos os locais onde nem o frio geacutelido nem o calor ardente perturbam aiacute estaacute sempre em maior ou menor nuacutemero a raccedila humana Assim desde tempos remotos que de tudo quanto se passa na vossa terra aqui ou em qualquer outro local de que noacutes tomemos conhecimento pelo que ouvimos dizer se porventura se tratar de qualquer coisa de belo grandioso ou de qualquer outra natureza isso fica gravado nos nossos templos e manteacutem-se conservado Por outro lado acontece que em relaccedilatildeo ao que se passa entre voacutes e entre outros mal acaba de se ordenar o sistema de escrita e tudo o resto que faz falta a uma cidade recai novamente sobre voacutes durante o habitual nuacutemero de anos uma torrente vinda do ceacuteu semelhante a uma doenccedila e apenas deixa entre voacutes os analfabetos e os que satildeo estranhos agraves Musas de tal forma que nasceis de novo do princiacutepio tal como crianccedilas sem saber nada do que aconteceu em tempos remotos quer aqui quer entre voacutes

37 Como Criacutetias faraacute questatildeo de referir no seu discurso (Criacutetias 109d) soacute as populaccedilotildees que vivem nas montanhas escapam aos diluacutevios O facto de estas pessoas desconhecerem a escrita justifica a inexistecircncia de registos posteriores a essas calamidades

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Em todo o caso oacute Soacutelon as genealogias sobre as figuras de que acabas de nos falar diferem em pouco dos contos para crianccedilas pois eles recuperam apenas um uacutenico diluacutevio na terra ao passo que houve muitos antes desse Mas aleacutem disso voacutes natildeo sabeis que foi na vossa regiatildeo que apareceu a mais bela e grandiosa casta de homens da qual descendes tu e toda a cidade que eacute agora vossa por ter restado desse tempo uma pequena semente Eacute que voacutes perdestes a memoacuteria pois morreram os sobreviventes sem terem legado o seu depoimento agrave escrita durante muitas geraccedilotildees E de facto oacute Soacutelon na eacutepoca anterior agrave maior destruiccedilatildeo causada pela aacutegua a cidade que agora eacute dos Atenienses era a mais brava na guerra e incomparavelmente a mais bem governada em todos os aspectos Dizem que deu origem aos mais belos feitos e agraves mais belas instituiccedilotildees poliacuteticas38 de entre todas as que debaixo do ceacuteu obtivemos notiacuteciardquo

Soacutelon disse ter ficado surpreendido pelo que tinha ouvido e absolutamente desejoso de pedir aos sacerdotes que discorressem com pormenor e exactidatildeo sobre tudo o que soubessem acerca dos seus concidadatildeos de outrora Entatildeo o sacerdote respondeu o seguinte ldquoEacute sem reserva alguma que to contarei oacute Soacutelon por consideraccedilatildeo a ti e agrave vossa cidade e acima de tudo por gratidatildeo agrave deusa a quem coube em sorte a vossa cidade e tambeacutem esta que ela criou e educou ndash primeiro a vossa mil anos antes da nossa depois de ter recebido de Geia e de Hefesto

38 politeia Note-se que a palavra estaacute no plural por isto e tambeacutem pelo que sugere o contexto natildeo diraacute respeito a todo o Estado mas apenas agraves instituiccedilotildees

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a semente de onde voacutes nascestes39 e depois esta aqui Segundo os nuacutemeros gravados nos escritos sagrados a nossa cidade foi organizada haacute oito mil anos Portanto vou falar-te brevemente sobre as leis dos cidadatildeos que viveram haacute nove mil anos e tambeacutem do mais nobre dos feitos que levaram a cabo Posteriormente discorreremos sobre os pormenores referentes a todas estas questotildees e em seguida com vagar pegaremos nos proacuteprios textos

Quanto agraves leis observa-as agrave luz das daqui pois encontraraacutes caacute muitos exemplos de leis que vigoravam naquele tempo entre voacutes em primeiro lugar a classe dos sacerdotes estaacute separada agrave parte das outras em seguida no que respeita aos artesatildeos a cada um cabe uma funccedilatildeo sem que se misturem umas com as outras (uma aos pastores outra aos caccediladores e outra aos agricultores) Jaacute a classe dos guerreiros conforme reparaste estaacute separada de todas as outras classes estando obrigados por lei a natildeo se dedicarem a nada mais aleacutem do que diz respeito agrave guerra40 aleacutem disso em relaccedilatildeo ao seu armamento fomos noacutes os primeiros na Aacutesia41 a equipaacute-los com escudos e lanccedilas Eacute que a deusa

39 Esta referecircncia miacutetica estaacute intimamente relacionada com o Festival das Panateneias durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica Segundo o mito quando Atena se dirigiu junto de Hefesto para lhe pedir que fabricasse as suas armas este tentou violaacute-la tendo Atena escapado o seacutemen caiu agrave terra ndash Geia ndash da qual nasceu Erictoacutenio um dos fundadores da cidade de Atenas As Panateneias celebravam precisamente o nascimento de Erictoacutenio

40 Sobre o sistema de castas que vigoraria no Egipto vide Heroacutedoto 2164-168 As semelhanccedilas com o arqueacutetipo ateniense proposto na Repuacuteblica e concretizado no discurso de Criacutetias satildeo evidentes

41 Segundo os relatos do Timeu e do Criacutetias a Aacutesia estendia-se

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o ensinou tal como a voacutes que fostes os primeiros a fazecirc-lo nesta regiatildeo Vecircs tambeacutem quatildeo diligente foi a nossa lei no que diz respeito agrave sabedoria42 e desde o princiacutepio estabeleceu harmoniosamente a ordem das coisas pois tudo descobriu a partir dos deuses em favor da acccedilatildeo humana incluindo a arte da divinaccedilatildeo e a medicina em benefiacutecio da sauacutede e adquiriu todos os outros saberes que derivam daqueles43 Toda esta ordem e sistematizaccedilatildeo partilhou a deusa convosco nesse tempo e fixou-vos uma paacutetria antes de o fazer a outros por aiacute ter identificado um equiliacutebrio de estaccedilotildees que haveria de dar origem aos homens mais inteligentes Visto que a deusa era amante simultaneamente da guerra e da sabedoria escolheu esse lugar e povoou-o antes de outros porque era propiacutecio para criar os homens que mais se lhe assemelhassem Viviacuteeis pois regidos por aquelas leis ainda melhores do que as nossas e aleacutem disso com uma boa organizaccedilatildeo poliacutetica e eacutereis melhores do que todos os homens em virtude como eacute de esperar de rebentos e disciacutepulos dos deuses

Muitos e grandes foram os feitos da vossa cidade que satildeo motivo de admiraccedilatildeo nos registos que deles aqui ficaram Mas entre todos eles destaca-se um em grandeza e beleza os nossos escritos referem como a vossa cidade um dia extinguiu uma potecircncia que marchava insolente em toda a Europa e na Aacutesia depois de ter partido do Oceano Atlacircntico Em tempos este

da margem direita do Rio Nilo para Este42 phronecircsis43 Sobre a praacutetica da medicina pelos Egiacutepcios vide Aristoacuteteles

Poliacutetica 1286a10-22 Diodoro Siacuteculo 1823

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mar podia ser atravessado pois havia uma ilha junto ao estreito a que voacutes chamais Colunas de Heacuteracles44 ndash como voacutes dizeis ilha essa que era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia juntas a partir da qual havia um acesso para os homens daquele tempo irem agraves outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o territoacuterio continental que se encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano De facto aquilo que estaacute aqueacutem do estreito de que falamos parece um porto com uma entrada apertada No lado de laacute eacute que estaacute o verdadeiro mar e eacute a terra que o rodeia por completo que deve ser chamada com absoluta exactidatildeo ldquocontinenterdquo45

Nesta ilha a Atlacircntida havia uma enorme confederaccedilatildeo de reis com uma autoridade admiraacutevel que dominava toda a ilha bem como vaacuterias outras ilhas e algumas partes do continente aleacutem desses dominavam ainda alguns locais aqueacutem da desembocadura desde a Liacutebia46 ao Egipto e na Europa ateacute agrave Tirreacutenia47 Esta potecircncia tentou toda unida escravizar com uma soacute ofensiva toda a vossa regiatildeo a nossa e tambeacutem todos os locais aqueacutem do estreito Foi nessa altura oacute Soacutelon que pela valentia e pela forccedila se revelou a todos os homens o poderio da vossa cidade pois sobrepocircs-se a todos em

44 O Estreito de Gibraltar45 Segundo esta descriccedilatildeo que recupera alguns elementos do

Feacutedon (108c-114c) a bacia mediterracircnica eacute apenas a parte central da superfiacutecie terrestre e natildeo a sua totalidade eacute circundada pelo Oceano onde se situa a Atlacircntida e eacute aleacutem deste que se situa o territoacuterio continental No fundo a zona do mediterracircneo equivale a um conjunto de ilhas desse verdadeiro mar

46 Todo territoacuterio entre o Egipto e a costa ocidental de Aacutefrica47 Parte ocidental da Peniacutensula Itaacutelica

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coragem e nas artes da guerra quando liderou o exeacutercito grego e depois quando foi deixada agrave sua proacutepria mercecirc por forccedila da desistecircncia dos outros povos e correu riscos extremos Mas veio a erigir o monumento da vitoacuteria ao dominar quem nos atacava impediu que escravizassem entre outros quem nunca tinha sido escravizado bem como todos os que habitavam aqueacutem das Colunas de Heacuteracles e libertou-os a todos sem qualquer reserva48 Posteriormente por causa de um sismo incomensuraacutevel e de um diluacutevio que sobreveio num soacute dia e numa noite terriacuteveis49 toda a vossa classe guerreira foi de uma soacute vez engolida pela terra e a ilha da Atlacircntida desapareceu da mesma maneira afundada no mar Eacute por isso que nesse local o oceano eacute intransitaacutevel e imperscrutaacutevel em virtude da lama que aiacute existe em grande quantidade e da pouca profundidade provocada pela ilha que submergiu50rdquo

Acabas de ouvir oacute Soacutecrates o essencial do relato de Criacutetias o anciatildeo segundo o que ele ouviu de Soacutelon Ontem enquanto tu falavas sobre o Estado e dos homens que referias eu fiquei atoacutenito ao recordar-me disto de que agora vos falo por me aperceber de que miraculosamente e por obra de um acaso sem que fosse tua intenccedilatildeo tinhas coligido muito do que Soacutelon dissera Ainda assim natildeo quis falar de improviso pois natildeo me

48 No Meneacutexeno (239a-sqq) eacute descrita em termos muito semelhantes a prestaccedilatildeo ateniense contra a invasatildeo dos Persas

49 Este diluacutevio eacute igualmente referido no Criacutetias (112a) e tambeacutem por outros autores (Aristoacuteteles Meteoroloacutegicos 28 368a33-b13 Pausacircnias 724)

50 Semelhante testemunho daacute Aristoacuteteles nos Meteoroloacutegicos (21 354a11-31)

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lembrava o suficiente em virtude do tempo decorrido Portanto decidi que seria preciso que eu proacuteprio recuperasse adequadamente tudo isto antes de vo-lo contar deste modo Por isso concordei prontamente com as tuas determinaccedilotildees de ontem acreditando que em todos os casos como este o encargo mais importante eacute propor um discurso que seja adequado aos objectivos e possa ser suficientemente vantajoso para noacutes Assim tal como Hermoacutecrates disse mal ontem saiacute daqui repeti-lhes aquilo de que me lembrava e depois de me ter ido embora reflecti durante a noite e recuperei quase tudo Em boa verdade o que se aprende na infacircncia segundo se diz fica admiravelmente retido na memoacuteria Com efeito o que ouvi ontem natildeo sei se eu o conseguirei trazer de novo agrave memoacuteria por completo mas em relaccedilatildeo ao que apreendi haacute jaacute muito tempo ficaria absolutamente admirado se me escapasse alguma coisa De facto era com tanto prazer e entusiasmo infantil que as escutava aleacutem de o anciatildeo mas contar de bom grado (enquanto lhe fazia perguntas repetidamente) que tal como aquele tipo de escrita em pintura encaacuteustica51 que subsiste se tornaram para mim indeleacuteveis Assim logo ao amanhecer contei-lhes isto de modo a que me acompanhassem no relato E agora pois foi por causa disso que referi tudo isto estou preparado oacute Soacutecrates a relataacute-lo natildeo soacute no que se refere aos seus aspectos principais mas tambeacutem ao pormenor tal como o ouvi Quanto aos cidadatildeos e agrave

51 Meacutetodo de pintura que consistia em aplicar cera aquecida numa base metaacutelica pelo que garantia grande durabilidade Pliacutenio na sua Histoacuteria Natural (35149) daacute uma descriccedilatildeo deste procedimento

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cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade52 como se aquela cidade fosse esta aqui e suponhamos que aqueles cidadatildeos que tu tinhas em mente satildeo os nossos antepassados ndash os reais aqueles de que falava o sacerdote Estaratildeo em absoluta harmonia e noacutes natildeo estaremos fora de tom se dissermos que eles satildeo os que existiram naquele tempo Assim dentro dos possiacuteveis tentaremos todos em conjunto ocupar-nos da tarefa que nos entregaste Portanto oacute Soacutecrates eacute preciso ter em atenccedilatildeo se este discurso estaacute de acordo com o nosso propoacutesito ou se devemos procurar um outro em substituiccedilatildeo dele

Soacutecrates E que outro discurso oacute Criacutetias poderiacuteamos noacutes preferir melhor que este que seja ainda mais adequado ao festival da deusa que celebramos pois estaacute-lhe intimamente ligado e aleacutem disso eacute muito relevante o facto de natildeo se tratar de uma narrativa forjada mas sim de um discurso real Na verdade como e onde encontrariacuteamos outros caso deixaacutessemos este de lado Natildeo eacute possiacutevel Agora boa sorte pois eacute a voacutes que compete falar Quanto a mim em troca dos discursos de ontem mantenho-me em silecircncio e retribuo o papel de ouvinte

Criacutetias Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito

52 epi talecircthes Sobre este sentido de ldquorealidaderdquo vide Introduccedilatildeo pp 62-63

Platatildeo

92 9392 93

b

c

d

28a

pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo53 deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada Entatildeo de acordo com as palavras e a lei de Soacutelon depois de os trazer agrave nossa presenccedila como se estivessem perante juiacutezes faacute-los-ei cidadatildeos desta cidade como se fossem os Atenienses de outrora cuja existecircncia permanece esquecida e foi agora desvelada pelo testemunho dos escritos sagrados Daqui em diante farei o meu discurso como se na verdade se tratasse de cidadatildeos e de Atenienses

Soacutecrates Perfeito e brilhante me parece o banquete de discursos que vou receber em troca do que ofereci Eacute entatildeo a tua vez de discursar segundo me parece oacute Timeu depois de invocares os deuses de acordo com o costume54

Timeu Eacute bem certo oacute Soacutecrates que todos quantos partilhem o miacutenimo de bom-senso55 sempre que iniciam algum empreendimento pequeno ou grande invocam sempre de algum modo um deus Quanto a noacutes que nos preparamos para produzir discursos sobre o

53 kosmos54 Eacute comum em Platatildeo a invocaccedilatildeo de uma divindade antes de

iniciar um discurso (Filebo 25b Leis 887c)55 socircphrosynecirc

92 93

Timeu

92 93

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c

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28a

universo ndash sobre como deveio ou se de facto nem o toca o devir56 ndash caso natildeo tenhamos perdido por completo o discernimento eacute inevitaacutevel que invoquemos deuses e deusas bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto57 e esteja em concordacircncia com o nosso E no que respeita aos deuses seja esta a nossa invocaccedilatildeo No que nos toca conveacutem que os invoquemos para que vocecircs aprendam com facilidade e que eu exponha da melhor forma possiacutevel o que penso sobre o assunto que tenho perante mim

Na minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem58 sem nunca ser59 Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo60

56 Traduzimos gignomai por ldquodevirrdquo sempre que a oposiccedilatildeo ontoloacutegico ser-devir estiver patente Nos outros casos optaacutemos por ldquogerarrdquo um termo complementar que manteacutem a noccedilatildeo de pertenccedila ao devir (Santos 2003 p 16 n 13) ao mesmo tempo que garante a proximidade semacircntica com o original principalmente no que respeita agrave acccedilatildeo demiuacutergica a qual no fundo consiste num processo de geraccedilatildeo

57 nous Trata-se da faculdade de inteligir as Ideias eacute partilhada por deuses daimones homens e inclusivamente pela alma do mundo Esta mesma designaccedilatildeo eacute aplicada agrave sede humana dessa faculdade a parte racional e imortal da alma razatildeo pela qual a traduziremos do mesmo modo

58 ti to gignomenon A ediccedilatildeo de Burnet regista tambeacutem aei (ldquosemprerdquo) implicando a traduccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute sempre em devirrdquo Apesar de compatiacutevel com os conteuacutedos do texto trata-se de um acrescento posterior como claramente demonstrou Whittaker (1969 1973) Seguimos pois neste ponto a omissatildeo de aei

59 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ldquoo que eacuterdquo (to on) e ldquoo que deveacutemrdquo (to gignomenon) isto eacute entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao mundo sensiacutevel Eacute agrave luz deste axioma que se vai desenvolver todo o discurso de Timeu

60 noecircsei meta logou perilecircpton

Platatildeo

94 9594 95

b

c

29a

pois eacute imutaacutevel61 Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos62 e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca Ora tudo aquilo que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa pois eacute impossiacutevel que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa63 Deste modo o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel e que utiliza como arqueacutetipo64 quando daacute a forma e as propriedades ao que cria Eacute inevitaacutevel que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo Se pelo contraacuterio pusesse os olhos no que deveacutem e tomasse como arqueacutetipo algo deveniente a sua obra natildeo seria bela

Quanto ao conjunto do ceacuteu ou mundo ndash ou ainda se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado chamemos-lhe esse ndash temos que apurar primeiro no que lhe diz respeito aquilo que subjaz a todas as questotildees e deve ser apurado logo no princiacutepio

61 aei kata tauta on literalmente ldquoaquilo que eacute sempre de acordo com o mesmordquo Trata-se das Ideias que satildeo imutaacuteveis porquanto isentas das oscilaccedilotildees do devir (vide Feacutedon 78d)

62 metrsquoaisthecircseocircs alogou doxaston literalmente ldquoopinaacutevel com o auxiacutelio da percepccedilatildeo sensiacutevel privada de razatildeordquo Ao contraacuterio ldquodo que eacuterdquo ldquoo que deveacutemrdquo natildeo eacute fonte de saber estaacutevel pois aleacutem de se encontrar em constante mutaccedilatildeo soacute pode ser apreendido pela falibilidade dos sentidos e natildeo por meio da razatildeo

63 Tal como eacute referido em muitos outros diaacutelogos de Platatildeo (Leis 891e Feacutedon 98c 99b Filebo 27b) tambeacutem no Timeu natildeo soacute neste ponto como tambeacutem noutras ocasiotildees (29d 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e) o que pertence agrave dimensatildeo do devir depende de uma causa

64 paradeigma No Timeu as Ideias satildeo tomadas na sua totalidade sob o conceito de ldquoarqueacutetipordquo este representa pois a soma de todas elas que serve de modelo inteligiacutevel de racionalidade para a criaccedilatildeo

94 95

Timeu

94 95

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29a

se sempre foi sem ter tido origem no devir ou se deveio originado a partir de algum princiacutepio Deveio pois eacute visiacutevel e tangiacutevel e tem corpo assumindo todas as propriedades do que eacute sensiacutevel65 e o que eacute sensiacutevel que pode ser compreendido por uma opiniatildeo fundamentada na percepccedilatildeo dos sentidos deveacutem e eacute deveniente como jaacute foi dito66 Dissemos tambeacutem que o que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa Poreacutem descobrir o criador e pai do mundo eacute uma tarefa difiacutecil e a descobri-lo eacute impossiacutevel falar sobre ele a toda a gente67 Mas ainda quanto ao mundo temos que apurar o seguinte aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arqueacutetipos daquele que eacute imutaacutevel e inalteraacutevel68 ou do que deveacutem Ora se o mundo eacute belo e o demiurgo eacute bom eacute evidente que pocircs os olhos que eacute eterno se fosse ao contraacuterio ndash o que nem eacute correcto supor ndash teria posto os olhos no que deveacutem Portanto eacute evidente para todos que pocircs os olhos no que eacute eterno pois o mundo eacute a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo eacute a mais perfeita das causas Deste modo

65 aisthecircton66 Cf supra 27d-28a67 Este passo em que Timeu chama ao demiurgo ldquopai e criador

do mundordquo foi extensivamente citada e discutida ao longo dos seacuteculos por autores de todas as orientaccedilotildees filosoacuteficas e religiosas especificamente por teoacutelogos judeus e cristatildeos que o utilizaram para fundamentar a crenccedila monoteiacutesta Sobre este assunto vide Nock (1962 pp 79-83)

68 ocircsautocircs Isto eacute que nunca se torna ldquooutrordquo Aleacutem de isento de corrupccedilatildeo por acccedilatildeo do devir e por isso imutaacutevel (cf supra n 70) o arqueacutetipo eacute sempre idecircntico a si mesmo nunca assumindo atributos de outra coisa Trata-se no fundo do princiacutepio de identidade que define as Ideias (vide Feacutedon 78d)

Platatildeo

96 9796 97

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30a

o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pocircs os olhos no que eacute imutaacutevel e apreensiacutevel pela razatildeo e pelo pensamento69

Assim sendo de acordo com estes pressupostos eacute absolutamente inevitaacutevel que este mundo seja uma imagem de algo70 Mas em tudo o mais importante eacute comeccedilar pelo princiacutepio de acordo com a natureza Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere71 Por isso os discursos claros estaacuteveis e invariaacuteveis explicam com a colaboraccedilatildeo do intelecto o que eacute estaacutevel e fixo ndash e tanto quanto conveacutem aos discursos serem irrefutaacuteveis e insuperaacuteveis em nada devem afrouxar esta relaccedilatildeo Em relaccedilatildeo aos que se reportam ao que eacute copiado do arqueacutetipo por se tratar de uma coacutepia estabelecem com essa coacutepia uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia conforme o ser72 estaacute para o devir73 assim a verdade estaacute para a crenccedila74 Portanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum

69 pros to logocirc kai phronecircsei perilecircpton70 ton kosmon eikona tinos71 Sobre as implicaccedilotildees desta proposiccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp

33-3472 ousia73 genesis74 Conclusatildeo da alegoria episteacutemico-ontoloacutegica da linha dividida

formulada na Repuacuteblica (509d-511e)

96 97

Timeu

96 97

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30a

outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil75 e natildeo procurar nada aleacutem disso

Soacutecrates Excelente oacute Timeu Devemos sem duacutevida alguma aceitaacute-lo tal como propotildees Acolhemos o teu preluacutedio com admiraccedilatildeo mas agora termina a aacuteria sem interrupccedilatildeo76

Timeu Digamos pois por que motivo aquele que constituiu o devir e o mundo os constituiu Ele era bom e no que eacute bom jamais nasce inveja de qualquer espeacutecie77 Porque estava livre de inveja quis que tudo fosse o mais semelhante a si possiacutevel Quem aceitar de homens sensatos que esta eacute a origem mais vaacutelida do devir e do mundo estaraacute a aceitar o raciociacutenio mais acertado Na verdade o deus quis que todas as coisas fossem boas e que no que estivesse agrave medida do seu poder78 natildeo existisse nada imperfeito Deste modo pegando em tudo quanto havia de visiacutevel que natildeo estava em repouso mas se movia irregular e desordenadamente da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que

75 eikota mython Sobre as implicaccedilotildees desta expressatildeo vide Introduccedilatildeo pp 48-53

76 A mesma metaacutefora eacute utilizada na Repuacuteblica (531d)77 Para Platatildeo um deus eacute sempre bom e tudo o que eacute bom estaacute

livre de inveja (cf Fedro 247a Repuacuteblica 379b)78 Esta noccedilatildeo de limitaccedilatildeo relativa associada ao demiurgo eacute

muitiacutessimo frequente ao longo do texto (32b 37d 38c 42e 53b 65c 71d 89d)

Platatildeo

98 9998 99

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31a

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esta eacute sem duacutevida melhor do que aquela Com efeito a ele sendo supremo foi e eacute de justiccedila que outra coisa natildeo faccedila senatildeo o mais belo

Reflectindo descobriu que a partir do que eacute visiacutevel por natureza de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto e que seria impossiacutevel que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma79 Por meio deste raciociacutenio80 fabricou o mundo estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza Assim de acordo com um discurso verosiacutemil eacute necessaacuterio dizer que este mundo que eacute na verdade um ser dotado de alma e de intelecto81 foi gerado pela providecircncia82 do deus

Dito isto devemos agora ocupar-nos do que se deu a seguir agrave semelhanccedila de qual dos seres constituiu o mundo aquele que o constituiu Assumamos que natildeo foi agrave semelhanccedila de qualquer um daqueles seres que por natureza formam uma espeacutecie particular ndash pois nada do que se assemelha ao que eacute incompleto pode tornar-se belo Estabeleccedilamos em vez disso que o universo se

79 Reafirmaccedilatildeo do postulado jaacute referido na Repuacuteblica (478a-b) e no Sofista (249a) segundo o qual todo o acto intelectivo soacute pode ter lugar na alma

80 logismos81 zocircon empsychon ennoun te82 pronoia Note-se que nesta e nas restantes ocorrecircncias

(44c7 45b1) ldquoprovidecircnciardquo implica apenas presciecircncia enquanto capacidade de antecipar necessidades futuras natildeo tendo pois o sentido religioso de ldquogoverno do mundordquo tanto que o demiurgo se retira apoacutes a criaccedilatildeo

98 99

Timeu

98 99

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31a

b

assemelha o mais possiacutevel agravequele ser de que os outros satildeo parte quer individualmente quer como classe De facto esse ser compreende em si mesmo e encerra todos os seres inteligiacuteveis83 tal como este mundo nos compreende a noacutes e a todas as outras criaturas visiacuteveis Assim por querer assemelhaacute-lo ao mais belo de entre os seres inteligiacuteveis ao mais perfeito de todos o deus constituiu um ser uacutenico que contivesse em si mesmo todos os seres que se lhe assemelhassem por natureza

Entatildeo seraacute correcto declarar que haacute um uacutenico ceacuteu ou seraacute mais correcto dizer que haacute vaacuterios ou ateacute infinitos Haacute um uacutenico jaacute que foi fabricado pelo demiurgo de acordo com o arqueacutetipo84 Eacute que aquele que abrange todos os seres inteligiacuteveis natildeo pode de modo algum vir em segundo lugar a seguir a outro Caso contraacuterio deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois do qual esses dois seriam uma parte e seria mais correcto dizer que o mundo natildeo se assemelharia a esses dois mas sim agravequele que os abrangia Portanto foi para que se assemelhasse ao ser absoluto na sua singularidade85

83 noecircta zocirca84 Nas secccedilotildees subsequentes seratildeo implicitamente refutadas

duas teses centrais do atomismo a pluralidade de mundos (eg DK 67A1 68A40) e a existecircncia do vazio (eg DK 67A6-7 DK 68A37) Ambos os problemas estatildeo interligados e a sua explicaccedilatildeo depende das mesmas razotildees visto que foi necessaacuteria a totalidade dos elementos na criaccedilatildeo eacute impossiacutevel que os mundos sejam inumeraacuteveis posto que natildeo sobrou qualquer mateacuteria de que fossem ou viessem a ser formados (31a-33b) de modo a que o mundo englobasse todos os seres foi-lhe dada a forma que engloba todas as formas (a esfeacuterica) natildeo restando pois nada mais para ocupar (33b-34a)

85 monocircsis

Platatildeo

100 101100 101

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32a

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que aquele que fez o mundo natildeo fez dois nem uma infinidade de mundos deste modo o ceacuteu foi gerado como unigeacutenito ndash assim eacute e assim continuaraacute a ser

Eacute forccediloso que aquilo que deveio seja corpoacutereo visiacutevel e tangiacutevel mas separado do fogo sem duacutevida que nada pode ser visiacutevel nem nada pode ser tangiacutevel sem qualquer coisa soacutelida e nada pode ser soacutelido sem terra Daiacute que o deus quando comeccedilou a constituir o corpo do mundo o tenha feito a partir de fogo e de terra Todavia natildeo eacute possiacutevel que somente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira pois eacute necessaacuterio gerar entre ambas um elo que as una O mais belo dos elos seraacute aquele que faccedila a melhor uniatildeo entre si mesmo e aquilo a que se liga o que eacute por natureza alcanccedilado da forma mais bela atraveacutes da proporccedilatildeo86 Sempre que de trecircs nuacutemeros sejam eles inteiros ou em potecircncia87 o do meio tenha um caraacutecter tal que o primeiro estaacute para ele como ele estaacute para o uacuteltimo e em sentido inverso o uacuteltimo estaacute para o do meio como o do meio estaacute para o primeiro o do meio torna-se primeiro e uacuteltimo e o uacuteltimo e o primeiro passam ambos a estar no meio sendo deste modo obrigatoacuterio que se ajustem entre si e tendo-se assim ajustado uns aos outros entre si seratildeo todos um soacute Ora se o corpo do mundo tivesse sido gerado como uma superfiacutecie plana sem nenhuma

86 analogia A formaccedilatildeo do mundo organizado a partir dos quatro elementos obedece inevitavelmente agrave proporccedilatildeo isto eacute agrave relaccedilatildeo matemaacutetica Como se tornaraacute evidente ateacute o proacuteprio demiurgo estaacute atido agraves imposiccedilotildees da proporccedilatildeo matemaacutetica

87 A distinccedilatildeo entre nuacutemeros inteiros e em potecircncia eacute tambeacutem referida no Teeteto (148a-b) e nas Leis (737c)

100 101

Timeu

100 101

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profundidade um soacute elemento intermeacutedio teria sido suficiente para o unir aos outros termos88 Poreacutem convinha que o mundo fosse de natureza soacutelida e para harmonizar o que eacute soacutelido natildeo basta um soacute elemento intermeacutedio mas sim sempre dois Foi por isso que tendo colocado a aacutegua e o ar entre o fogo e a terra e na medida do possiacutevel produzido entre eles a mesma proporccedilatildeo de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar estava para a aacutegua e o ar estivesse para a aacutegua como a aacutegua estava para a terra o deus uniu estes elementos e constituiu um ceacuteu visiacutevel e tangiacutevel Foi por causa disto e a partir destes elementos ndash elementos esses que satildeo em nuacutemero de quatro ndash que o corpo do mundo foi engendrado posto em concordacircncia atraveacutes de uma proporccedilatildeo e a partir destes elementos obteve a amizade89 de tal forma que tornando-se idecircntico a si mesmo eacute indissoluacutevel por outra entidade que natildeo aquela que o uniu

Assim a constituiccedilatildeo do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade Foi a partir da totalidade do fogo da aacutegua do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu natildeo deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma pois este era o seu desiacutegnio90 em primeiro lugar que fosse acima

88 Referecircncia ao problema da duplicaccedilatildeo do quadrado que estaria jaacute resolvido no tempo de Platatildeo (vide Meacutenon 81e-84b)

89 A noccedilatildeo de amizade (philia) que Timeu introduz neste ponto em que aborda a combinaccedilatildeo dos quatro elementos convida a uma relaccedilatildeo intertextual com a Philia de que fala Empeacutedocles como entidade mediadora desses mesmos elementos Sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo p 25

90 dianoeocirc

Platatildeo

102 103102 103

33a

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34a

de tudo um ser-vivo completo e perfeito91 constituiacutedo a partir de partes perfeitas em seguida que fosse uacutenico posto que natildeo sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza e ainda que estivesse imune ao envelhecimento e agrave doenccedila pois ele92 tinha perfeita consciecircncia de que o calor o frio e outras forccedilas violentas cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele dissolvem-no e impondo-lhe doenccedilas e envelhecimento causam a sua destruiccedilatildeo Foi por este motivo e com base neste raciociacutenio que a partir da globalidade dos todos produziu um soacute todo perfeito imune ao envelhecimento e agrave doenccedila

Aleacutem disso deu-lhe a figura adequada e congeacutenere De facto a forma adequada ao ser-vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres-vivos seraacute aquela que compreenda em si mesma todas as formas93 Por isso para o arredondar como que por meio de um torno deu-lhe uma forma esfeacuterica cujo centro estaacute agrave mesma distacircncia de todos os pontos do extremo envolvente ndash e de todas as figuras eacute essa a mais perfeita e semelhante a si proacutepria ndash considerando que o semelhante eacute infinitamente mais belo do que o dissemelhante

Rematou o lado exterior de forma completamente lisa e arredondada por vaacuterias razotildees Eacute que este ser-vivo natildeo tinha necessidade de olhos pois fora dele natildeo restava

91 holon () zocircon teleon92 O demiurgo93 A possibilidade de a esfera englobar todas as formas

estereomeacutetricas seraacute mais tarde desenvolvida por Euclides (1313-17)

102 103

Timeu

102 103

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34a

nada para ver nem de ouvidos pois natildeo havia nada para ouvir natildeo havia ar agrave sua volta que fosse preciso respirar nem precisava de ter qualquer oacutergatildeo atraveacutes do qual absorvesse alimentos para si proacuteprio nem por outro lado que segregasse o que tinha anteriormente filtrado Na verdade nada entrava nele nem nada saiacutea dali pois natildeo havia mais nada Ele fora gerado de tal forma que o seu alimento seria garantido pela sua proacutepria consumpccedilatildeo94 de modo que tudo quanto sofre resulta de si mesmo e tudo quanto faz eacute em si mesmo Aquele que o compocircs achou que para ser mais forte seria melhor que fosse auto-suficiente95 do que tivesse necessidade de outros Quanto a matildeos natildeo sendo preciso que com elas pegasse em nada ou afastasse algo considerou que natildeo seria necessaacuterio aplicar-lhas nem peacutes nem de um modo geral nenhum apetrecho para andar Quanto ao movimento atribuiu-lhe aquele que eacute caracteriacutestico do corpo dos sete aquele que mais tem que ver com o intelecto e com o pensamento96 Foi por isso que ao pocirc-lo girar em torno de si mesmo e no mesmo local fez com que se movimentasse num ciacuterculo em rotaccedilatildeo tendo-o despojado de todos os outros seis movimentos e tornado imoacutevel em relaccedilatildeo a

94 phtisis95 autarkecircs Eacute inevitaacutevel ler neste passo um eco da autarkeia

de Demoacutecrito (eg DK 68B176) Poreacutem como oportunamente observa Taylor (1928 pp 105-106) conveacutem ter em conta que algo deveniente natildeo eacute absolutamente auto-suficiente porquanto deve a sua causa agraves Ideias o mundo secirc-lo-aacute na medida em que natildeo tem interacccedilotildees com outro deveniente

96 phronecircsis

Platatildeo

104 105104 105

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35a

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eles97 Como para esse percurso natildeo eram precisos peacutes engendrou-o sem pernas nem peacutes

Este foi de um modo global o desiacutegnio98 do deus que eacute eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia99 tendo assim raciocinado fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos Depois no centro pocircs uma alma que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora cobrindo-o com ela Constituiu um uacutenico ceacuteu solitaacuterio e redondo a girar em ciacuterculos com capacidade pela sua proacutepria virtude de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado

No que respeita agrave alma ainda que soacute agora vamos tratar de falar dela natildeo eacute posterior ao corpo O deus natildeo os estruturou desse modo como se ela fosse mais nova ndash ao constituiacute-los natildeo permitiu que o mais velho pudesse ser governado pelo mais novo Ao passo que noacutes somos muito afectados pela casualidade e consequentemente falamos tambeacutem ao acaso100 jaacute

97 Trata-se dos seis movimentos rectiliacuteneos ldquopara cimardquo ldquopara baixordquo ldquopara a frenterdquo ldquopara traacutesrdquo ldquopara a direitardquo e ldquopara a esquerdardquo Quanto ao seacutetimo a rotaccedilatildeo sobre si mesmo seraacute aquele mais afim agrave razatildeo (cf supra 40a Leis 897c-sqq) e por isso o apropriado para o corpo do mundo

98 logismos99 Isto eacute o corpo do mundo Apesar de utilizar em ambos os

casos o verbo eimi (ldquoserrdquo) parece-nos que a distinccedilatildeo entre ldquoserrdquo (enquanto eterno e atemporal) e ldquoexistirrdquo (enquanto corruptiacutevel) eacute evidente e deve ser marcada deste modo

100 Timeu recorda a imprecisatildeo da linguagem humana ndash um

104 105

Timeu

104 105

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35a

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o deus graccedilas agrave sua condiccedilatildeo e virtude constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele para o dominar e governar ndash sendo ele o governado ndash a partir dos seguintes recursos e do modo que se expotildee entre o ser101 indivisiacutevel que eacute imutaacutevel102 e o ser divisiacutevel que eacute gerado nos corpos misturou uma terceira forma103 de ser feita a partir daquelas duas E quanto agrave natureza do Mesmo e do Outro104 estabeleceu de igual modo uma outra natureza entre o indivisiacutevel e o divisiacutevel dos seus corpos Tomando as trecircs naturezas misturou-as todas numa soacute forma e pela forccedila harmonizou a natureza do Outro ndash que eacute difiacutecil de misturar ndash com o Mesmo Procedendo agrave mistura de acordo com o ser formou uma unidade a partir das trecircs e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo de Outro e de

tema a que voltaraacute mais tarde (46e) e que tambeacutem Criacutetias retomaraacute (107b-108a) Sobre esta questatildeo vide supra pp 55-59

101 ousia102 aei kata tauta103 eidos Embora seja esta a palavra (em concorrecircncia com

idea) que Platatildeo usa em muitos diaacutelogos para definir as Ideias no Timeu isso acontece apenas uma vez (51c-d) em todas as outras ocorrecircncias tem o sentido de ldquotipo espeacutecierdquo (42d2 48a7 48b6 48e6 49a4 51a7 51c4 etc)

104 Os conceitos ldquoMesmordquo (tauton) ldquoOutrordquo (to heteron) e neste contexto ldquoserrdquo (ousia) soacute se esclarecem pelo Sofista Neste diaacutelogo (254d-259b) eacute estabelecido que uma Ideia comporta encerra outros dois elementos constitutivos aleacutem do ser o Mesmo (a sua identidade) resulta de ela ser o que ldquoaquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo natildeo eacute o Outro (a sua alteridade) representa o outro lado desta implicaccedilatildeo pois uma Ideia difere de ldquotudo aquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo Sobre esta questatildeo vide Dixsaut (2003 pp 158-165) Mesquita (1995 pp 262-265)

Platatildeo

106 107106 107

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ser105 Entatildeo comeccedilou a dividir do seguinte modo em primeiro lugar retirou uma parte do todo em seguida retirou outra que era o dobro da primeira uma terceira que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira uma quarta que era o dobro da segunda uma quinta o triplo da terceira uma sexta oito vezes a primeira e uma seacutetima que corresponde a vinte e sete vezes a primeira Depois disto preencheu os intervalos106 duplos e triplos subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros um que transpotildee um dos extremos e eacute transposto pelo outro na mesma fracccedilatildeo e outro que transpotildee o extremo que lhe eacute numericamente idecircntico e tambeacutem ele eacute transposto Destas ligaccedilotildees foram gerados nos intervalos atraacutes referidos outros intervalos de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo Atraveacutes do intervalo de um e um oitavo preencheu todos os de um e um terccedilo e deixou uma parte de cada um deles tendo este intervalo sobrante sido definido pela relaccedilatildeo entre o nuacutemero duzentos e cinquenta e seis e o nuacutemero duzentos e quarenta e trecircs Foi deste modo que a mistura da qual retirou aquelas partes foi utilizada na sua plenitude Entatildeo cortou toda esta composiccedilatildeo em duas partes no sentido do comprimento e sobrepondo-as ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra

105 Ou seja a alma do mundo foi formada com os mesmos trecircs elementos que constituem as Ideias ser Mesmo e Outro Sobre as implicaccedilotildees desta equivalecircncia constitutiva vide Johansen (2004 pp 138-142)

106 diastecircma Aleacutem de espacial este termo tem tambeacutem uma aplicaccedilatildeo musical designando nesse caso os intervalos entre os sons (Filebo 17c-d Repuacuteblica 531a)

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(semelhante a um X) dobrou-as em ciacuterculo juntando-as uma agrave outra pelo ponto oposto agravequele pelo qual tinham sido ligadas e impocircs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local destes dois ciacuterculos fez um exterior e outro interior Entatildeo determinou que o movimento exterior corresponderia agrave natureza do Mesmo e o interior agrave do Outro Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente e deu preeminecircncia agrave oacuterbita do Mesmo e do Semelhante pois a ela soacute deixou ficar indivisa Por outro lado a oacuterbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete ciacuterculos desiguais fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo de tal forma que havia trecircs tipos de intervalos Definiu que os ciacuterculos andariam em sentido contraacuterio uns aos outros trecircs dos quais com velocidade semelhante e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros trecircs mas movendo-se uniformemente

Logo que a constituiccedilatildeo da alma foi gerada de acordo com o intelecto107 de quem a constituiu este passou agrave fabricaccedilatildeo de tudo quanto dentro dela eacute corpoacutereo e ajustando o centro de um ao centro do outro uniu-os Deste modo entrelaccedilada em todas as direcccedilotildees desde o centro ateacute agrave extremidade do ceacuteu abarcando-o do exterior num ciacuterculo e ela girando em torno de si mesma a alma deu iniacutecio ao comeccedilo divino de uma vida inextinguiacutevel e racional108 para todo o sempre Assim foi

107 nous Neste caso trata-se obviamente do intelecto do demiurgo

108 emphron ldquoRacionalrdquo no sentido em que manteraacute ao

Platatildeo

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gerado o corpo do ceacuteu que eacute visiacutevel e a alma invisiacutevel e que participa da razatildeo109 e da harmonia e eacute a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que satildeo eternamente Constituiacuteda pela mistura dessas trecircs partes da natureza do Mesmo do Outro e do ser dividida e unida segundo a proporccedilatildeo ela gira em torno de si proacutepria e sempre que contacta com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser natildeo pode ser dividido eacute movimentada na sua totalidade ela informa a que entidade isso eacute semelhante de que entidade eacute diferente e principalmente em relaccedilatildeo a que entidade e em que circunstacircncias acontece afectar o que deveacutem e o que eacute eternamente e por cada um destes eacute afectada110

Este discurso que eacute ele proacuteprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro sempre que eacute levado sem voz nem som para aquele que eacute movimentado por si proacuteprio converte-se num discurso sobre o sensiacutevel111 e o ciacuterculo do Outro que se move em linha recta dissemina-o por toda a alma e geram-se opiniotildees e crenccedilas firmes e verdadeiras112 Todavia sempre que se aplica ao racional e sempre que o ciacuterculo do Mesmo que se movimenta com destreza revela isto

longo dos tempos a conformidade ao arqueacutetipo (um modelo de racionalidade)

109 logismos110 Esta passagem marcada por uma sintaxe imbricada daacute conta

das funccedilotildees cognitivas da alma do mundo Sobre este assunto vide Brisson (1998 pp 340-352)

111 peri to aisthecircton112 doxai kai pisteis gignontai bebaioi kai alecirctheis

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eacute forccediloso que daiacute resulte saber113 e intelecccedilatildeo114 No que respeita agravequilo em que se geram estes dois modos de conhecer se alguma vez algueacutem disser que eacute outra coisa que natildeo a alma esse algueacutem estaraacute a dizer tudo menos a verdade115

Ora quando o pai que o engendrou se deu conta de que tinha gerado uma representaccedilatildeo dos deuses eternos animada e dotada de movimento rejubilou por estar tatildeo satisfeito pensou como tornaacute-la ainda mais semelhante ao arqueacutetipo Como acontece que este eacute um ser eterno tentou na medida do possiacutevel tornar o mundo tambeacutem ele eterno Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna e natildeo era possiacutevel ajustaacute-la por completo ao ser gerado Entatildeo pensou em construir uma imagem moacutevel da eternidade116 e quando ordenou o ceacuteu construiu a partir da eternidade que permanece uma unidade uma imagem eterna que avanccedila de acordo com o nuacutemero eacute aquilo a que chamamos tempo117 De facto os dias as noites os meses e os anos natildeo existiam antes de o ceacuteu ter sido gerado pois ele preparou a geraccedilatildeo daqueles ao mesmo tempo que este era constituiacutedo Todos eles satildeo partes do tempo

113 epistecircmecirc114 nous Neste caso natildeo se trata da faculdade de inteligir nem

tampouco da sede dessa faculdade trata-se sim da sua actividade isto eacute da intelecccedilatildeo sendo o saber (epistecircmecirc) o resultado desse processo Neste contexto particular nous equivale em absoluto a noecircsis o termo mais frequente para designar a actividade intelectiva

115 De acordo com a doutrina formulada no Sofista (249a) a alma aleacutem de intelecccedilatildeo (cf supra n 79) eacute tambeacutem a uacutenica sede de actividade cognitiva (cf supra 30b infra 46d Filebo 30c)

116 eikocirc kinecircton tina aiocircnos117 Sobre esta concepccedilatildeo de tempo vide Fialho (1990)

Platatildeo

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e ldquoo que erardquo e ldquoo que seraacuterdquo satildeo modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignoracircncia Dizemos que ldquoeacuterdquo que ldquofoirdquo e que ldquoseraacuterdquo mas ldquoeacuterdquo eacute a uacutenica palavra que lhe eacute proacutepria de acordo com a verdade ao passo que ldquoerardquo e ldquoseraacuterdquo satildeo adequadas para referir aquilo que deveacutem ao longo do tempo ndash pois ambos satildeo movimentos No entanto aquilo que eacute sempre imutaacutevel e imoacutevel118 natildeo eacute passiacutevel de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que eacute agora nem no que seraacute no futuro) bem como em nada daquilo que o devir atribui agraves coisas que os sentidos trazem jaacute que elas satildeo modalidades devenientes119 do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo com o nuacutemero Aleacutem destas haacute ainda as seguintes o que aconteceu ldquoeacuterdquo o que aconteceu o que estaacute a acontecer ldquoeacuterdquo o que estaacute a acontecer o que aconteceraacute ldquoeacuterdquo o que aconteceraacute e o que natildeo eacute ldquoeacuterdquo o que natildeo eacute120 sendo que nenhuma destas afirmaccedilotildees eacute exacta Mas este natildeo seraacute o momento oportuno e adequado para nos determos nestas questotildees

Assim o tempo foi pois gerado ao mesmo tempo que o ceacuteu para que engendrados simultaneamente

118 to de aei kata tauta echon akinecirctocircs119 gegonen eidecirc120 Neste caso particular optaacutemos por traduzir gignomai por

ldquoacontecerrdquo em vez de por ldquodevirrdquo porque a oposiccedilatildeo estabelecida com eimi natildeo se prende directamente com o axioma ontoloacutegico ser-devir Em vez disso Timeu pretende sublinhar um defeito da linguagem designar algo que ocorre num determinado momento cronoloacutegico (na dimensatildeo do sensiacutevel) nos mesmos termos em que refere aquilo que eacute atemporal (e por isso inteligiacutevel)

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tambeacutem simultaneamente sejam dissolvidos121 ndash se eacute que alguma vez a dissoluccedilatildeo122 surja nalgum deles Foram gerados tambeacutem de acordo com o arqueacutetipo da natureza eterna para que lhe fossem o mais semelhantes possiacutevel eacute que o arqueacutetipo eacute ser para toda a eternidade enquanto que a representaccedilatildeo foi eacute e seraacute continuamente e para todo o sempre deveniente

A partir do raciociacutenio e do desiacutegnio de um deus123 em relaccedilatildeo agrave geraccedilatildeo do tempo para que ele fosse engendrado gerou o Sol a Lua e cinco astros que tecircm o nome ldquoplanetasrdquo124 para definirem e guardarem os nuacutemeros do tempo Tendo construiacutedo os corpos de cada um deles ndash sete ao todo ndash o deus estabeleceu-os nas oacuterbitas que o percurso do Outro seguia em nuacutemero de sete delas na primeira a Lua agrave volta da Terra na segunda o Sol por cima da Terra125 a Estrela da Manhatilde126 e o astro que dizem ser consagrado a Hermes127 na rota circular128 que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o

121 lyocirc122 lysis123 ex oun logou kai dianoias124 planecirctos Literalmente ldquoerranterdquo A metaacutefora deve-se ao

facto de os planetas terem uma oacuterbita proacutepria (39d-40b) como se ldquovagueassemrdquo pelo universo

125 Tenhamos em conta que este modelo eacute geocecircntrico126 Veacutenus127 Mercuacuterio128 Para Platatildeo as oacuterbitas dos planetas e do Sol em torno da

Terra descreviam ciacuterculos perfeitos Esta teoria que hoje sabemos ser errada perdurou como paradigma cientiacutefico ateacute ao seacuteculo XVI quando Kepler demonstrou que as oacuterbitas dos astros eram eliacutepticas e natildeo circulares

Platatildeo

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astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente Quanto aos outros astros se algueacutem quisesse precisar onde e por que motivos o deus os estabeleceu sem deixar de lado nenhum deles esse discurso que eacute secundaacuterio causaria mais dificuldades do que o objectivo principal em funccedilatildeo do qual seria desenvolvido Quanto a este assunto pode ser que mais tarde o abordemos com a atenccedilatildeo que merece129

Assim logo que cada um dos astros que eram necessaacuterios para constituir o tempo obteve o movimento que lhe era adequado e depois de terem sido engendrados como corpos vivos vinculados agraves almas130 aprenderam aquilo que lhes estava prescrito a oacuterbita do Outro que por ser obliacutequa atravessa a oacuterbita do Mesmo e eacute dominada por ele Alguns astros deslocam-se em ciacuterculos maiores e outros em ciacuterculos mais pequenos os que estatildeo nos ciacuterculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estatildeo nos ciacuterculos maiores deslocam-se mais lentamente E por causa da oacuterbita do Mesmo parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcanccedilados pelos que se deslocavam mais lentamente quando eram aqueles que alcanccedilavam estes Com efeito o deus ao fazer girar em torno do eixo todos os ciacuterculos dos astros como uma espiral fazia parecer que o movimento era duplo e em sentidos opostos e que o que se afastava mais lentamente do que era mais raacutepido era o que estava mais perto Para que houvesse uma

129 Infelizmente o assunto natildeo chega a ser retomado130 Tambeacutem os astros satildeo entidades duais com uma alma

aprisionada num corpo (cf Leis 898)

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medida evidente para a lentidatildeo e para a rapidez com que se cumprissem as oito oacuterbitas o deus instalou uma luz na segunda oacuterbita a contar da Terra a que agora chamamos Sol de modo a que o ceacuteu brilhasse ainda mais para todos e que os seres-vivos aos quais isso dissesse respeito participassem do nuacutemero de modo a ficarem a conhecer a oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Deste modo e por estas razotildees foram gerados a noite e o dia ndash o percurso circular uniforme e regular Temos um mecircs quando a Lua depois de ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo alcanccedila o Sol temos um ano depois de o Sol ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo Agrave excepccedilatildeo de uma minoria131 a maior parte dos homens natildeo teve em conta os ciacuterculos dos outros astros nem lhes deu nomes nem observando-os estudou atraveacutes dos nuacutemeros as relaccedilotildees entre eles de tal forma que por assim dizer natildeo sabe que haacute um tempo definido para os seus cursos errantes132 nem que satildeo inconcebivelmente numerosos e admiravelmente variegados Em todo o caso eacute pelo menos possiacutevel perceber que o nuacutemero perfeito do tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da totalidade das oito oacuterbitas medidas pelo ciacuterculo do Mesmo em progressatildeo uniforme se completam e voltam ao iniacutecio Foi deste modo e por estas razotildees que esses astros engendrados que percorrem o ceacuteu assumiram um ponto de retorno para que o mundo fosse o mais semelhante possiacutevel ao ser

131 Este grupo restrito seraacute o nuacutemero de homens versados em astronomia isto eacute os filoacutesofos

132 planas Cf supra n XXX

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perfeito e inteligiacutevel133 bem como para que constituiacutesse uma imitaccedilatildeo da sua natureza eterna

Tudo o resto ateacute agrave geraccedilatildeo do tempo tinha sido feito dentro da maior semelhanccedila ao que lhe tinha servido de modelo Todavia o mundo ainda natildeo englobava todos os seres-vivos que dentro dele seriam gerados pelo que ainda denunciava dissemelhanccedilas Por isso o demiurgo completou a parte que lhe restava fazer agrave imagem da natureza do arqueacutetipo Assim tal como o intelecto percebe as formas do ser que eacute ndash tantas quantas haacute nele ndash o demiurgo olhou para baixo e decidiu que o mundo deveria ter tantas formas quantas aquele tem E eles satildeo quatro a primeira eacute a espeacutecie celeste dos deuses outra eacute a alada e anda pelo ar a terceira eacute a forma aquaacutetica e a quarta eacute a que caminha sobre a terra Tratando-se da divina o deus construiu-a na sua maioria a partir do fogo para que fosse a mais brilhante e a mais agradaacutevel agrave vista e de modo a ser semelhante ao universo fecirc-la redonda Atribuiu-a agrave inteligecircncia do supremo134 de modo a segui-lo e distribuiu-a em ciacuterculo por todo o ceacuteu a fim de que fosse um verdadeiro adorno bordado em toda a sua extensatildeo Atribuiu dois movimentos a cada uma das divindades um uniforme e no mesmo local para que cada uma reflectisse sempre da mesma forma sobre o mesmo e outro dirigido para a frente pois cada uma delas eacute dominada pela oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Em relaccedilatildeo aos outros cinco movimentos as divindades mantecircm-se imoacuteveis e em

133 teleocirc kai noecirctocirc134 eis tecircn tou kratistou phronecircsin Trata-se da oacuterbita do Mesmo

onde foram fixas as estrelas

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repouso para que cada uma delas seja o mais perfeita possiacutevel

Foram estes os motivos pelos quais foram gerados todos os astros natildeo errantes seres-vivos divinos e eternos que permanecem para sempre imutaacuteveis e a girar sobre si mesmos Jaacute os que mudam de direcccedilatildeo e se mantecircm assim errantes tal como foi dito atraacutes135 foram gerados ao mesmo tempo que estes Quanto agrave Terra o nosso sustento a qual roda136 em torno do eixo que atravessa o universo foi estabelecida como guardiatilde e produtora da noite e do dia ela que eacute a primeira e a mais velha das divindades geradas dentro do ceacuteu Explicar as danccedilas destes astros e as confluecircncias que mantecircm uns com os outros os recuos e os avanccedilos dos seus ciacuterculos uns em relaccedilatildeo aos outros quais satildeo os deuses que se encontram em conjunccedilatildeo e quantos estatildeo opostos uns aos outros e ainda quais se colocam uns diante dos outros e durante quanto tempo se escondem de noacutes para tornarem a aparecer e enviam maus pressaacutegios e sinais de eventos que hatildeo-de acontecer agravequeles que natildeo conseguem entendecirc-los agrave luz da razatildeo sem ter diante dos olhos uma imitaccedilatildeo destes fenoacutemenos essa explicaccedilatildeo seria

135 Cf supra 39c136 illomenecircn Desde os primeiros disciacutepulos de Platatildeo que se

tem discutido o sentido desta palavra O verbo eilocirc pode significar entre outras coisas ldquocomprimirrdquo ou ldquorodarrdquo de acordo com o primeiro a Terra estaria comprimida pelo eixo do universo e pela segunda hipoacutetese giraria em torno dele Seguimos a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 213 293b30-31) que faz equivaler eilocirc a kineocirc implicando um movimento da Terra em torno de si proacutepria Cf Cornford 1937 pp 120-134 Brisson 1998 p 395 n 1 Dillon 1989 p 67

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um encargo vatildeo No entanto isto eacute suficiente para noacutes pelo que seja este o fim da narrativa sobre a natureza dos deuses visiacuteveis e engendrados

No que respeita agraves outras divindades dizer e conhecer a sua geraccedilatildeo eacute algo que nos supera devemos portanto confiar nos que falaram outrora pois satildeo descendentes dos deuses segundo dizem e conhecem distintamente os seus ascendentes Eacute de facto impossiacutevel desconfiar dos filhos dos deuses mesmo que falem sem recurso a argumentos verosiacutemeis ou rigorosos Quando tratam de dar conta dos episoacutedios que dizem respeito agrave famiacutelia devemos entatildeo confiar neles de acordo com o costume Deste modo reproduzamos o discurso deles e faccedilamos o nosso sobre o que foi a geacutenese dos deuses De Geia e Urano foram gerados Oceano e Teacutetis seus filhos e destes foram gerados Foacutercis Cronos e Reia e todos aqueles que os seguiram de Cronos e de Reia foram gerados Zeus e Hera e todos aqueles que segundo a tradiccedilatildeo sabemos serem seus irmatildeos e ainda outros descendentes destes foram gerados137 Quando foram gerados todos os deuses quer os que se movimentam em ciacuterculos e satildeo visiacuteveis quer os que se mostram soacute quando desejam aquele que engendrou o universo disse-lhes o seguinte

ldquoDeuses gerados de deuses de quem e de cujas obras eu sou pai e demiurgo por terem sido gerados por mim natildeo podem ser dissolvidos enquanto eu natildeo

137 Esta teogenealogia difere bastante da que Hesiacuteodo estabeleceu na Teogonia eacute provaacutevel que misture elementos de tradiccedilotildees variadas nomeadamente da oacuterfica (vide Brisson 2001 p 239 n 229)

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quiser Na verdade embora o que tenha sido unido seja dissoluacutevel eacute uma maldade querer dissolver aquilo que pelo bem foi composto em harmonia Por isso mesmo que tenhais sido gerados e ainda que natildeo sejais imortais nem completamente impassiacuteveis de dissoluccedilatildeo de modo algum sereis dissolvidos nem tomareis parte na morte porque fostes unidos pela minha vontade que eacute mais forte e mais poderosa do que os elos que vos couberam em sorte e com os quais fostes gerados Agora aprendei aquilo que vos vou dizer e mostrar

Restam trecircs espeacutecies mortais que ainda natildeo foram engendradas Se elas natildeo chegarem a ser geradas o ceacuteu ficaraacute incompleto pois natildeo conteraacute em si todas as espeacutecies de seres-vivos mas eacute forccediloso que as tenha para que fique efectivamente perfeito Todavia se elas fossem geradas por mim e tomassem parte na vida atraveacutes de mim seriam equivalentes aos deuses Portanto para que sejam mortais e que o universo seja realmente um todo tratai de acordo com a vossa natureza de fabricar estes seres-vivos imitando o meu poder de quando vos gerei E no que respeita agrave parte desses seres a que pertence ter o mesmo nome que os imortais a parte a que chamamos divina e que comanda os que entre eles praticam sempre a justiccedila e vos querem servir que eu semeei e quis que se originasse essa vo-la confio Quanto ao resto entretecei uma parte mortal nessa parte imortal formai e engendrai seres-vivos fazei-os crescer providenciando-lhes o alimento e quando perecerem recebei-os outra vezrdquo138

138 Referecircncia agrave teoria da transmigraccedilatildeo das almas formulada no

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Assim falou e voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira poreacutem comparativamente agrave primeira mistura esta natildeo ficou com o mesmo teor de pureza mas sim com um segundo ou terceiro grau Depois de ter constituiacutedo o todo dividiu-o em nuacutemero de almas igual ao de astros e atribuiu uma a cada um Fazendo-as embarcar como num carro mostrou-lhes a natureza do universo e deu-lhes a conhecer as leis que lhes estavam destinadas a saber a primeira geacutenese seria estabelecida como idecircntica para todas de modo a que nenhuma fosse depreciada por ele Era obrigatoacuterio que uma vez disseminadas pelos instrumentos do tempo adequados a cada uma gerassem dos seres-vivos o que mais venerasse os deuses e por a natureza humana ser dupla139 aquela espeacutecie mais forte seria a que posteriormente se chamaria macho Sempre que fossem implantadas nos corpos por necessidade e lhes fossem acrescentadas partes enquanto outras seriam retiradas do corpo em todas elas surgiria necessariamente e em primeiro lugar uma sensaccedilatildeo uacutenica e congeacutenita gerada por impressotildees violentas140 em segundo lugar o desejo amoroso que

Fedro (246a-250c)139 Isto eacute masculina e feminina140 Uma sensaccedilatildeo (aisthecircsis) eacute uma manifestaccedilatildeo somaacutetica de uma

impressatildeo (pathecircma) sofrida ou seja uma resposta a um estiacutemulo externo Por sensaccedilatildeo Timeu entende tanto os sentimentos como a coacutelera ou o temor (42a) como os sentidos por exemplo a visatildeo eacute uma aisthecircsis cujo pathecircma eacute o fogo exterior que contacta com os olhos (45b-c)

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eacute uma mistura de prazer e sofrimento depois destes o temor a coacutelera e todas as sensaccedilotildees que se lhes seguem e todas as que por natureza satildeo contraacuterias e se diferenciam destas Se as dominarem viveratildeo de forma justa mas se forem comandados por elas viveratildeo de forma injusta Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe regressaraacute agrave morada do astro que lhe estaacute associado para aiacute ter uma vida feliz e conforme Mas se se extraviar recairaacute sobre si a natureza de mulher na segunda geraccedilatildeo e se mesmo nessa condiccedilatildeo natildeo cessar de praticar o mal seraacute sempre gerado com uma natureza de animal assumindo uma ou outra forma conforme o tipo de mal que pratique141 Ao mudar o seu estado anterior natildeo se veraacute livre destes sofrimentos enquanto for arrastado pelo percurso do Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo aacutegua ar e terra que depois se juntou a ele soacute quando dominasse por meio da razatildeo essa massa turbulenta e irracional142 voltaria agrave forma do seu estado primeiro e ideal Assim o deus depois de lhes ter dado todas as prescriccedilotildees para que natildeo fosse responsaacutevel pelo mal que pudesse existir entre elas semeou algumas na terra e outras na Lua e ainda outras nos restantes instrumentos do tempo Depois da sementeira concedeu aos jovens deuses a tarefa de formar os corpos mortais e de adicionar o que restava e era necessaacuterio agrave alma humana e depois de terem

141 Como seraacute desenvolvido mais adiante (90e-sqq) os homens que levem a vida de forma indigna assumiratildeo formas animais em nascimentos futuros Cf Feacutedon 81e-82b Fedro 249a-c Repuacuteblica 614b-sqq

142 thorubocircdecirc kai alogon onta logocirc kratecircsas

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completado tudo quanto restava fazer concedeu-lhes a tarefa de governaacute-la na medida do possiacutevel para que orientassem este ser-vivo mortal da forma melhor e mais bela de modo a que natildeo fosse a causa dos seus proacuteprios males

Depois de ter disposto tudo isto manteve-se no estado que lhe eacute proacuteprio e habitual E assim se mantendo os filhos reflectiam sobre as disposiccedilotildees do pai e obedeceram-lhe Pegando no princiacutepio imortal do ser-vivo mortal e imitando o seu demiurgo tomaram de empreacutestimo ao mundo partes de fogo terra aacutegua e ar que depois seriam devolvidas Colaram numa soacute entidade os elementos que haviam tomado natildeo com os laccedilos insoluacuteveis com que eles proacuteprios haviam sido apertados mas fundiram-nas com cavilhas apertadas que graccedilas ao seu reduzido tamanho eram invisiacuteveis A partir de tudo isto fabricaram cada corpo introduzindo as oacuterbitas da alma imortal num corpo submetido a fluxos e refluxos Presas a um rio impetuoso natildeo dominavam nem eram dominadas pelo rio mas ora o moviam ora eram movidas pela forccedila dele de tal forma que o ser-vivo se movia globalmente ndash mas fazia-o de forma desordenada irracional e ao acaso pois tinha em si todos os seis movimentos Com efeito andava para a frente e para traacutes e ainda para a direita e para a esquerda e para baixo e para cima errante avanccedilava em todas as direcccedilotildees Eacute que por ser abundante a torrente de fluxo e refluxo que transportava o alimento as impressotildees que com eles chocavam causavam um tumulto ainda maior sempre que o corpo de algum colidia com um

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fogo externo que por acaso encontrasse no exterior ou com a dureza e firmeza da terra ou com a humidade deslizante da aacutegua ou apanhado pela tempestade dos ventos transportados pelo ar ou seja quando causados por todas essas entidades os movimentos imprimidos ao corpo recaiacuteam sobre a alma Por causa disso esses movimentos foram chamados sensaccedilotildees e ainda agora no seu conjunto satildeo assim chamados Visto que no momento em que ocorrem elas provocam um movimento muito poderoso e intenso que se junta ao do canal em que segue uma torrente de forma contiacutenua e agitando com violecircncia as oacuterbitas da alma bloqueiam por completo a oacuterbita do Mesmo por correrem em sentido oposto ao dele impedindo-o de progredir e de governar o que chega a desestabilizar a oacuterbita do Outro de tal forma que cada um dos trecircs intervalos duplos e triplos os intervalos e as ligaccedilotildees de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo que de modo algum eram resoluacuteveis a natildeo ser por aquele que as ligou fizeram-nas girar todas em ciacuterculos criando todo o tipo de rupturas e desordens nos ciacuterculos ndash tantas quantas conseguiram Deste modo a custo se mantiveram ligados uns com os outros movendo-se irracionalmente ora voltadas ao contraacuterio ora de forma obliacutequa ora invertidas Por exemplo quando algueacutem se coloca em posiccedilatildeo invertida com a cabeccedila para o chatildeo e projectando os peacutes para cima contra qualquer coisa enquanto assim estaacute tanto do ponto de vista de quem nela se encontra como de quem estaacute a observaacute-lo parece-lhes tanto a uns como a outros que a direita eacute a esquerda e a esquerda

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eacute a direita Eacute exactamente isto e algo do mesmo geacutenero que as oacuterbitas sofrem violentamente sempre que por acaso encontram algum elemento do exterior quer seja da espeacutecie do Mesmo quer seja da do Outro atribuem ao Mesmo e ao Outro designaccedilotildees contraacuterias agrave verdade tornando-se mentirosas e dementes visto que nenhuma das oacuterbitas que haacute nelas governa ou orienta Poreacutem quando nelas recaem certas sensaccedilotildees vindas do exterior143 arrastando consigo todo o invoacutelucro da alma as oacuterbitas aparentam estar no comando quando satildeo elas as comandadas Eacute por causa de todas estas impressotildees que agora e tal como na sua origem a alma eacute primeiro gerada sem intelecto144 cada vez que eacute aprisionada num corpo mortal Mas logo que diminui o fluxo do que alimenta e faz crescer as oacuterbitas retomam a acalmia e seguem o caminho que lhes eacute proacuteprio e vatildeo adquirindo maior estabilidade com o passar do tempo entatildeo as oacuterbitas de cada um dos ciacuterculos que seguem a sua trajectoacuteria natural acertam-se atribuindo correctamente as designaccedilotildees de Outro e de Mesmo e acabam por tornar racional145 quem os possui Se depois algum alimento correcto servir de complemento agrave educaccedilatildeo este tornar-se-aacute completamente perfeito e saudaacutevel pois escapou agrave doenccedila mais grave146 Mas se for negligente levando ao longo da vida uma existecircncia desequilibrada iraacute novamente para o Hades em estado de imperfeiccedilatildeo

143 Isto eacute provocadas por uma impressatildeo Cf supra n 140144 anous145 emphrocircn146 Isto eacute a ignoracircncia (cf supra 44a infra 86b 88b)

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e demente Isto acontece numa altura posterior147 mas no que respeita ao que temos agora diante de noacutes eacute necessaacuterio empreendermos uma explicaccedilatildeo mais apurada e quanto aos assuntos anteriores ndash a geraccedilatildeo de cada parte dos corpos o que respeita agrave alma o que concerne agraves causas e agrave providecircncia dos deuses pelas quais foi gerada ndash temos que os descrever apoiando-nos no que eacute mais verosiacutemil seguindo o nosso caminho deste modo e de acordo com estas prerrogativas

Agrave imagem da figura do universo que eacute esfeacuterica as divindades prenderam as oacuterbitas divinas que satildeo duas num corpo esfeacuterico este a que chamamos cabeccedila que eacute a parte mais divina e domina todas as outras partes que haacute em noacutes a ela os deuses entregaram todo o corpo como servo ao qual a juntaram percebendo que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse Para que natildeo rolasse sobre a terra que tem altos e depressotildees de todo o tipo e natildeo tivesse dificuldade em transpor umas e sair de outras deram-lhe este veiacuteculo para faacutecil deslocaccedilatildeo daiacute que o corpo seja comprido e tenha por natureza quatro membros extensiacuteveis e flexiacuteveis fabricados pelo deus para a deslocaccedilatildeo Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar era capaz de se deslocar por todos os locais enquanto transportava no topo a morada daquilo que em noacutes eacute mais divino e sagrado Foi por este motivo e deste modo que a todos foram anexadas pernas e matildeos

Considerando que a parte da frente eacute mais nobre e proacutepria para governar do que a de traacutes os deuses

147 Cf infra 87b 89d

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deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido Portanto era preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante Foi por isso que em primeiro lugar estabeleceram neste lado da parte exterior da cabeccedila o siacutetio do rosto e em seguida firmaram os instrumentos relacionados com todas as capacidades de providecircncia da alma e estabeleceram que de acordo com a natureza seria na parte anterior que ficariam situados os oacutergatildeos que tomam parte na governaccedilatildeo

Entre os instrumentos fabricaram em primeiro lugar os olhos portadores da luz tendo-os ali fixado pela seguinte razatildeo essa espeacutecie de fogo que natildeo arde antes oferece uma luz suave os deuses engendraram-no de modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado O fogo puro que haacute dentro de noacutes irmatildeo do outro fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo contiacutenuo pelo que comprimiram ao maacuteximo o centro dos olhos de tal forma que sustivesse a outra espeacutecie mais espessa na sua totalidade e filtrasse apenas esta espeacutecie pura Deste modo quando a luz do dia cerca o fluxo da visatildeo o semelhante recai sobre o semelhante tornam-se compactos unindo-se e conciliando-se num soacute corpo ao longo do eixo da visatildeo o que acontece onde quer que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior Assim gera-se uma homogeneidade de impressotildees pois o todo eacute muito semelhante se esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele distribui os seus movimentos por todo o corpo ateacute agrave alma e produz a sensaccedilatildeo a que

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noacutes chamamos ldquoverrdquo Quando o fogo se afasta ao cair da noite separa-se do fogo de que eacute congeacutenere148 por cair sobre algo que lhe eacute dissemelhante ele altera-se e extingue-se pois a sua natureza natildeo eacute congeacutenere agrave do ar que o rodeia jaacute que este natildeo tem fogo Entatildeo a visatildeo acaba e gera-se o convite ao sono De facto quando se cerra a protecccedilatildeo que os deuses engendraram para a visatildeo ndash as paacutelpebras ndash essa protecccedilatildeo susteacutem o poder do fogo interno Este dispersa-se e acalma os movimentos do interior Uma vez acalmados gera-se o sossego e uma vez gerado um sossego profundo abate-se um sono com poucos sonhos mas quando restam alguns movimentos fortes conforme a sua natureza e os locais onde ficam produzem no interior simulacros que se assemelham quanto agrave natureza e ao nuacutemero ao exterior e que seratildeo recordados ao acordar Assim jaacute natildeo eacute difiacutecil perceber a formaccedilatildeo de imagens em espelhos e em todas as superfiacutecies reflectoras e lisas Por causa da relaccedilatildeo reciacuteproca que o fogo interior e o fogo exterior mantecircm entre si cada vez que um deles encontra uma superfiacutecie lisa mudando constantemente de forma todas estas imagens aparecem por necessidade graccedilas agrave conjunccedilatildeo entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda a visatildeo quando se deparam com uma superfiacutecie lisa e brilhante Aquilo que estaacute agrave direita aparece agrave esquerda porque eacute com as partes contraacuterias da visatildeo que as partes contraacuterias do fogo exterior estabelecem contacto em oposiccedilatildeo ao que habitualmente acontece quando chocam entre si Pelo contraacuterio a direita estaacute agrave direita e

148 sungenecircs

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a esquerda agrave esquerda quando a luz muda de direcccedilatildeo por se fundir com o objecto com que se funde o que acontece sempre que a superfiacutecie lisa dos espelhos por adquirir uma saliecircncia de um lado e de outro empurra para o lado esquerdo da visatildeo a luz que vem do lado direito e vice-versa Mas se o espelho for redondo transversalmente em relaccedilatildeo ao rosto faraacute com que tudo apareccedila invertido porque empurra para cima a luz que vem de baixo e para baixo a que vem de cima

Todas estas satildeo causas acessoacuterias149 que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete conforme pode a ideia do melhor150 No entanto a maioria considera que natildeo satildeo causas acessoacuterias mas sim as causas de tudo visto que produzem o arrefecimento e o aquecimento a solidificaccedilatildeo e a fusatildeo e efeitos desse tipo Mas natildeo eacute possiacutevel que tais causas possuam razatildeo ou intelecto151 em relaccedilatildeo ao que quer que seja Temos que dizer que entre todos os seres o uacutenico ao qual eacute adequado possuir intelecto eacute a alma152 ndash pois esta eacute invisiacutevel enquanto que o fogo a aacutegua a terra e o ar foram todos gerados como corpos visiacuteveis ndash e que o amante da intelecccedilatildeo153 e do saber154 persegue por necessidade as causas primeiras do que na natureza

149 synaitiai150 tecircn you aristou kata to dynaton idean apotelocircn Eacute bastante

evidente a orientaccedilatildeo teleoloacutegica da acccedilatildeo demiuacutergica o mundo eacute criado para o bem

151 logon de oudena oude noun152 Sobre a alma como uacutenica sede possiacutevel do nous vide supra

n 115153 Sobre este sentido particular de nous vide supra n 114154 epistecircmecirc

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eacute racional aquelas que satildeo movimentadas por outros seres e que por necessidade transmitem o movimento a outras essas satildeo causas secundaacuterias Tambeacutem noacutes devemos fazer isso devemos falar de ambos os geacuteneros de causas distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das que isentas de intelecccedilatildeo155 cada vez que produzem algo o fazem ao acaso e sem ordem156 Coube-nos entatildeo falar das causas acessoacuterias pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora tecircm Da obra mais importante do ponto de vista da sua utilidade razatildeo pela qual o deus no-la ofereceu eacute sobre ela que noacutes devemos falar

Em meu entender a visatildeo foi gerada como causa de maior utilidade para noacutes visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros o Sol e o ceacuteu Foi o facto de vermos o dia e a noite os meses o circuito dos anos os equinoacutecios e os solstiacutecios que deu origem aos nuacutemeros que nos proporcionam a noccedilatildeo de tempo e a investigaccedilatildeo sobre a natureza do universo A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espeacutecie mortal oferecido pelos deuses Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos Por que razatildeo havemos de celebrar os outros que satildeo inferiores a estes pelos quais soacute um natildeo-filoacutesofo choraria se ficasse cego com lamentos em vatildeo Quanto a noacutes declaremos que

155 phronecircsis156 to tychon atakton

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esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo o deus descobriu e concedeu-nos a visatildeo em nosso favor para que ao contemplar as oacuterbitas do Intelecto no ceacuteu as aplicaacutessemos agraves oacuterbitas da nossa actividade intelectiva157 que satildeo congeacuteneres daquele ainda que as nossas tenham perturbaccedilotildees e as deles sejam imperturbaacuteveis Soacute depois de termos analisado aqueles movimentos calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza e de termos imitado esses movimentos do deus absolutamente impassiacuteveis de errar podemos estabilizar os que em noacutes satildeo errantes Quanto agrave voz e agrave audiccedilatildeo o raciociacutenio eacute mais uma vez o mesmo os deuses concederam-no-las pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins Na verdade foi com o mesmo fim que nos foi atribuiacuteda a fala que tem um papel fundamental na nossa interacccedilatildeo tudo quanto eacute uacutetil agrave voz no contexto da muacutesica isso nos foi dado por causa da harmonia da audiccedilatildeo Com efeito para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto a harmonia feita de movimentos congeacuteneres das oacuterbitas da nossa alma natildeo eacute um instrumento para um prazer irracional ndash como agora se julga ser158 ndash mas em virtude de as oacuterbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geraccedilatildeo aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pocircr em ordem e em concordacircncia159 E

157 dianoecircsis158 A criacutetica ao senso-comum que concebe a muacutesica unicamente

como fonte de prazer eacute tambeacutem referida nas Leis (656c) De igual modo pensa Aristoacuteteles o qual considera que soacute acidentalmente a muacutesica pode ser causadora de prazer (85 Poliacutetica 1339b11-1340b19)

159 Sobre a muacutesica como agente harmonizador da alma vide

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o ritmo por a maioria de noacutes ser privada de medida e falta de graccedila foi-nos concedido como auxiliar pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins

O que acabaacutemos de passar em revista agrave excepccedilatildeo de pequenos aspectos ilustra o que foi fabricado pelo Intelecto Eacute necessaacuterio que justaponhamos ao discurso aquilo que foi gerado pela Necessidade160 De facto a geraccedilatildeo deste mundo resulta de uma mistura engendrada por uma combinaccedilatildeo de Necessidade e Intelecto Mas como o Intelecto dominava a Necessidade persuadindo-a a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes foi deste modo (atraveacutes da cedecircncia da Necessidade a uma persuasatildeo racional161) que o universo foi constituiacutedo desde a sua origem Portanto se algueacutem quiser dizer como foi realmente gerado de acordo com estes pressupostos teraacute que incluir tambeacutem a espeacutecie da causa errante162 tanto quanto a sua natureza o admita163 Portanto recuando um pouco atraacutes

Repuacuteblica 530d-532b160 Aleacutem da intervenccedilatildeo do Intelecto ndash racional matematicamente

estruturada e teleoloacutegica ndash o mundo sensiacutevel eacute formado tambeacutem com o contributo da Necessidade um princiacutepio de causalidade marcado pelo acidental casual material e exclusivamente mecacircnico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 34-37

161 hypo peithous emphronos162 to tecircs planocircmenecircs eidos aitias163 ecirc pherein pephyken Passagem bastante obscura e por isso

muitiacutessimo discutida A principal dificuldade reside no sentido de pherein que pode ser traduzido tanto por ldquomovimentar pocircr em movimentordquo (Cornford 1937 p 160 n 2 Brisson 1998 p 145) como por ldquopermitir admitirrdquo (Taylor 1928 p 304) Pensamos que a segunda opccedilatildeo eacute mais acertada na medida em que neste paraacutegrafo se insiste bastante nas limitaccedilotildees epistemoloacutegicas aleacutem de que em todo ele natildeo satildeo mencionados os movimentos

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teremos que comeccedilar do iniacutecio tomando para o mesmo assunto um outro ponto de partida anterior que lhe seja adequado tal como fizemos em relaccedilatildeo aos assuntos que abordaacutemos ateacute agora Antes da geraccedilatildeo do ceacuteu teremos que rever a natureza do fogo do ar da aacutegua e da terra bem como os comportamentos que tinham antes disso na verdade ateacute agora ningueacutem revelou a sua origem mas discursamos como se nos dirigiacutessemos a quem soubesse o que possa ser o fogo e cada um dos outros elementos dispondo-os como princiacutepios e164 letras do universo Ora eacute prudente que com um miacutenimo de verosimilhanccedila nem sequer agraves siacutelabas sejam comparados por quem tenha um pouco de inteligecircncia165 Quanto a noacutes agora diremos o seguinte seja qual for o que achamos sobre o princiacutepio ou princiacutepios do universo conveacutem que natildeo nos pronunciemos sobre isso agora por nenhum outro motivo que natildeo por ser difiacutecil expressar as nossas opiniotildees de acordo com o tipo de exposiccedilatildeo que nos estaacute disponiacutevel nem voacutes esperais que seja da minha obrigaccedilatildeo dizecirc-lo nem eu proacuteprio me tentarei convencer de que eu seja capaz de me atirar a uma tarefa dessa natureza Mas prestando atenccedilatildeo ao que foi dito no iniacutecio e ao

164 O texto de Burnet natildeo regista qualquer indiacutecio de coordenaccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiosrdquo (archecirc) e ldquoletrasrdquo (stoicheion) Seguimos a emenda de West (1977 p 301) que introduz kai entre as duas palavras

165 Mais que provaacutevel reacccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo atomista que compara os aacutetomos agraves letras que formam as palavras (DK 68A38) Segundo Platatildeo os quatro elementos satildeo soacutelidos que obedecem a figuras e estas a triacircngulos daiacute que as letras sejam sim os triacircngulos (54d) Dentro deste quadro metafoacuterico as siacutelabas seriam as figuras e os elementos seriam as palavras Sobre esta questatildeo vide Hershbell (1974 pp 153-sqq)

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poder dos discursos verosiacutemeis voltando ao princiacutepio tentarei abordar de forma natildeo menos verosiacutemil mas ateacute mais cada pormenor e tambeacutem a totalidade do que dissemos Voltando agora ao princiacutepio dos discursos invoquemos o deus para que nos assista novamente e a partir de uma exposiccedilatildeo estranha e inusitada166 nos guie numa conclusatildeo verosiacutemil

Assim no que respeita ao universo o novo ponto de partida deve ser mais diferenciado do que anteriormente Na verdade noacutes tiacutenhamos distinguido dois tipos de ser mas agora temos que estabelecer um terceiro de outra espeacutecie167 Decerto que aqueles dois eram suficientes para o que expusemos anteriormente um foi proposto como sendo o tipo do arqueacutetipo inteligiacutevel e que eacute sempre imutaacutevel168 e o segundo como uma imitaccedilatildeo do arqueacutetipo sujeito ao devir169 e visiacutevel Nesse momento natildeo distinguimos o terceiro por considerarmos que os dois seriam suficientes Mas agora o discurso parece obrigar-nos a empreender uma exposiccedilatildeo que esclareccedila um tipo difiacutecil e obscuro Que propriedade temos noacutes de supor que ele teraacute de acordo com a natureza Seraacute sobretudo a seguinte ser o receptaacuteculo e por assim dizer a ama de tudo quanto deveacutem Falaacutemos agora com verdade mas eacute forccediloso que digamos algo mais expliacutecito acerca dele o que poreacutem eacute difiacutecil pelo facto de ser inevitaacutevel esclarecer algumas

166 ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs167 Sobre o terceiro princiacutepio ontoloacutegico vide Introduccedilatildeo pp

XXX168 paradeigmatos eidos () noecircton kai aei kata tauta on169 mimecircma de paradeigmatos deuteron genesin echon

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questotildees preacutevias relacionadas com o fogo e com os outros elementos aleacutem do fogo Destes elementos eacute difiacutecil dizer que qualidade cada um deve ter para lhe chamarmos ldquoaacuteguardquo em vez de ldquofogordquo ou que qualidade deve ter para lhe chamarmos qualquer outra coisa em vez de todas ao mesmo tempo ou cada uma em especial e deste modo utilizar um discurso fidedigno e soacutelido Como de que modo e com que dificuldade razoavelmente superada poderemos noacutes dizer uma coisa dessas

Primeiro em relaccedilatildeo agravequilo a que chamamos aacutegua quando congela parece-nos estar a olhar para algo que se tornou pedra ou terra mas quando derrete e se dispersa esta torna-se bafo e ar o ar quando eacute queimado torna-se fogo e inversamente o fogo quando se contrai e se extingue regressa agrave forma do ar o ar novamente concentrado e contraiacutedo torna-se nuvem e nevoeiro mas a partir destes estados se for ainda mais comprimido torna-se aacutegua corrente e de aacutegua torna-se novamente terra e pedras e deste modo como nos parece datildeo geraccedilatildeo uns aos outros de forma ciacuteclica Por isso visto que nenhum de todos eles nos aparece do mesmo modo qual deles podemos afirmar com firmeza que eacute uma coisa seja ela qual for e natildeo outra sem nos sentirmos envergonhados Natildeo eacute viaacutevel mas para os estabelecer da forma mais segura possiacutevel conveacutem falar sobre eles do seguinte modo sobre o que por vezes vemos tornar-se em outra coisa como o fogo natildeo podemos dizer que fogo eacute ldquoistordquo mas sim que eacute ldquoaquilo que em determinadas circunstacircncias estaacute

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assimrdquo170 nem que aacutegua eacute ldquoistordquo mas sim ldquoaquilo que estaacute sempre assimrdquo nem nenhuma outra coisa como se algum tivesse algo de estaacutevel usando palavras como ldquoistordquo ou ldquoaquilordquo para dar a conhecer tais realidades quando cremos estar a esclarecer alguma coisa Eacute que eles escapam ao ldquoistordquo ao ldquoaquilordquo e ao ldquopara istordquo e natildeo os admitem nem qualquer outra designaccedilatildeo que os apresente como realidades estaacuteveis Mas natildeo se deve falar delas como realidades distintas ndash antes sim chamar ldquoo que estaacute assimrdquo ao que perdura sempre igual em todos os casos e em cada um em particular chamar ldquofogordquo ao que permanece como tal apesar do que quer que seja e assim sucessivamente a tudo quanto devenha Mas aquilo em que cada coisa deveniente aparece171 e daiacute torna a desaparecer soacute isso referiremos usando as designaccedilotildees ldquoistordquo e ldquoaquilordquo enquanto que o que for de um certo tipo seja quente seja branco ou seja qualquer um dos seus opostos bem como tudo o que deles se origine nenhum deles o referiremos deste modo

Mas esforcemo-nos por explicar novamente este assunto de forma ainda mais clara Se algueacutem forjasse todas as formas possiacuteveis de ouro e nunca cessasse de as transformar a todas elas em outras e lhe fosse mostrada uma de entre elas e lhe fosse perguntado o que era com toda a certeza responderia em abono da

170 A oposiccedilatildeo entre ldquoistordquo (touto) e ldquoque estaacute assimrdquo (to toiouton) pretende esclarecer a diferenccedila constitutiva entre a chocircra que natildeo se altera e por isso merece a designaccedilatildeo touto e o que nela entra a que por estar em constante mutaccedilatildeo soacute poderemos chamar to toiouton A criacutetica de Soacutecrates agrave teoria do fluxo no Teeteto (157b) eacute formulada em termos semelhantes

171 en ocirc de engignomena aei ekasta autocircn phantazetai

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verdade que era ouro No entanto de modo algum se pode dizer que o triacircngulo e quantas outras figuras que foram plasmadas no ouro satildeo ldquoistordquo pois logo que lhes eacute aplicado esse termo comeccedilam a sofrer mudanccedilas Contentemo-nos se todas elas consentirem receber com alguma seguranccedila a designaccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute assimrdquo O mesmo discurso deve ser feito acerca da natureza que recebe todos os corpos A ela se haacute-de designar sempre do mesmo modo pois ela natildeo perde de modo algum as suas propriedades recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre172 impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel que investigaremos posteriormente Por enquanto eacute necessaacuterio que tenhamos em mente que haacute trecircs geacuteneros aquilo que deveacutem aquilo em que algo deveacutem e aquilo agrave semelhanccedila do qual se cria o que deveacutem173

Eacute adequado assemelhar o receptaacuteculo a uma matildee o ponto de partida a um pai e a natureza do que nasce entre eles a um filho e compreender ainda que se a marca de impressatildeo for diversificada e se apresentar agrave vista essa diversidade em todos os aspectos o suporte que recebe o que vai ser impresso natildeo estaria bem preparado se natildeo fosse completamente amorfo e

172 tocircn ontocircn aei mimecircmata173 to men gignomenon to drsquoen ocirc gignetai to drsquoen ocirc gignetai to

drsquohothen aphomoioumenon phyetai to gignomenon

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desprovido de todos aqueles tipos que esteja destinado a receber Se o receptaacuteculo fosse semelhante a alguma das figuras que entra nele cada vez que entrasse alguma figura de natureza contraacuteria ou heterogeacutenea assumiria mal a sua semelhanccedila na medida em que estava a exibir a sua proacutepria aparecircncia Por isso eacute necessaacuterio que aquele que recebe em si todos os geacuteneros esteja desprovido de todas as formas Eacute o que se passa de modo idecircntico com os oacuteleos que satildeo perfumados artificialmente Para fabricaacute-los em primeiro lugar eacute necessaacuterio que se comece por tornar o mais inodoros possiacutevel os liacutequidos que vatildeo receber as fragracircncias Eacute como aqueles que se dedicam a modelar figuras em superfiacutecies moldaacuteveis natildeo permitem que fique visiacutevel figura alguma que jaacute laacute estivesse nivelando-as de antematildeo para que fiquem o mais lisas que lhes seja possiacutevel O mesmo se passa com aquilo que deve receber vaacuterias vezes e de forma adequada e bela as representaccedilotildees de todos os seres eternos eacute-lhe conveniente por natureza que seja desprovido de todas as formas Eacute por isso que dizemos que a matildee do devir do que eacute visiacutevel e de todo sensiacutevel que eacute o receptaacuteculo natildeo eacute terra nem ar nem fogo nem aacutegua nem nada que provenha dos elementos nem nada deveniente a partir deles Mas se dissermos que ela eacute uma certa espeacutecie invisiacutevel e amorfa174 que tudo recebe e que participa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevel e difiacutecil de compreender175 natildeo estaremos a mentir E visto que a partir do que foi dito eacute possiacutevel alcanccedilar a sua natureza

174 anoraton eidos ti kai amorphon175 metalambanon de aporocirctata pecirc tou noecirctou kai dysalocirctotaton

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eis o modo mais correcto de falar dela a sua parte que estaacute a arder aparece sempre como fogo a que estaacute huacutemida aparece como aacutegua e a que aparece como terra e como ar faacute-lo de acordo com as imitaccedilotildees que recebe de cada um

Tendo noacutes estabelecido estes limites mais precisos no nosso discurso temos que tecer consideraccedilotildees sobre esses assuntos Seraacute que algum fogo eacute em si e quanto a todas as coisas de que sempre falamos seraacute que alguma delas eacute em si176 ou seraacute aquilo que vemos e tudo o resto que sentimos atraveacutes do corpo a uacutenica coisa que eacute real e natildeo existe outra aleacutem dessa de modo nenhum e em nenhuma circunstacircncia mas seraacute em vatildeo cada vez que dizemos que haacute uma Ideia inteligiacutevel177 de cada coisa natildeo sendo tudo isto nada senatildeo palavras Por um lado natildeo nos eacute permitido deixar a questatildeo que temos agrave nossa frente por julgar e por decidir pois merece que o faccedilamos nem abandonaacute-la afirmando com certeza que eacute assim mas por outro lado natildeo podemos inserir um longo discurso acessoacuterio ao lado de outro que jaacute eacute longo Poreacutem se ao estipularmos um limite focaacutessemos aspectos decisivos em pouco tempo seria extremamente oportuno No que me diz respeito eacute esse o sentido do meu voto

Se a intelecccedilatildeo178 e a opiniatildeo verdadeira satildeo dois geacuteneros pois tecircm em si modos de existir independentes teremos Ideias que natildeo podem por noacutes sentidas

176 kathrsquoauta onta Esta mesma foacutermula eacute usada no Feacutedon (66a) tambeacutem para caracterizar as Ideias

177 eidos noecircton178 nous Sobre este sentido do termo vide supra n XXX

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mas somente inteligidas179 Mas se como a alguns parece a opiniatildeo verdadeira natildeo difere em nada da intelecccedilatildeo devemos estabelecer que tudo quanto eacute apreendido pelos sentidos do nosso corpo eacute o que de mais seguro existe Ainda assim temos que afirmar que se trata de duas coisas distintas pois eles satildeo gerados separadamente e tecircm uma existecircncia dissemelhante um deles eacute gerado em noacutes atraveacutes da aprendizagem e o outro eacute-o pela persuasatildeo180 Aleacutem disso o primeiro eacute sempre acompanhado de uma justificaccedilatildeo verdadeira enquanto que o segundo eacute desprovido de justificaccedilatildeo181 Um natildeo se move pela persuasatildeo enquanto que o outro estaacute aberto agrave persuasatildeo Devemos tambeacutem dizer que todos os homens tomam parte em um mas na intelecccedilatildeo soacute tomam parte os deuses e um reduzido tipo de homens182 Sendo assim convenhamos que haacute uma primeira espeacutecie que eacute imutaacutevel natildeo estaacute sujeita ao devir nem agrave destruiccedilatildeo183 que natildeo recebe em si nada vindo de parte alguma nem entra em nada seja o que for natildeo eacute visiacutevel nem de outro modo sensiacutevel e cabe ao pensamento184 examinaacute-la Haacute uma segunda que tem

179 Tal como fora estabelecido na Repuacuteblica (478a-b) se eacute verdade que as faculdades intelectiva e sensiacutevel satildeo distintas tambeacutem os seus objectos hatildeo-de ser distintos

180 Cf Goacutergias 454c-455a Teeteto 200e-201c181 metrsquoalecircthous logou Formulaccedilatildeo aproximada da terceira

definiccedilatildeo de epistecircmecirc do Teeteto (200c9-201d1 meta logou alecircthecirc doxan) difere no facto de associar a verdade agrave justificaccedilatildeo (logos) e natildeo agrave opiniatildeo (doxa) pois que prescinde desta Cf Banquete 202a Feacutedon 76b 97d-99d Meacutenon 97c-98b Repuacuteblica 534b

182 Isto eacute os filoacutesofos183 to kata tauta eidos echon agennecircton kai anocirclethron184 noecircsis

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um nome igual agravequela que eacute sensiacutevel eacute deveniente estaacute sempre em movimento eacute gerada num determinado local para de seguida se dissolver de novo aleacutem de que eacute apreendida pela opiniatildeo e pelos sentidos Haacute um terceiro geacutenero que eacute sempre o do lugar185 natildeo admite destruiccedilatildeo e providencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devir eacute acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo186 sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel Quando olhamos para ele como em sonhos dizemos que eacute inevitaacutevel que tudo quanto eacute seja num determinado local e lhes caiba um determinado lugar e que aquilo que natildeo eacute em nenhum siacutetio da Terra nem no ceacuteu natildeo eacute Todas estas coisas e outras que satildeo irmatildes daquelas que pertencem agrave natureza do que eacute privado de sono e eacute verdadeiro por causa de estarmos a sonhar natildeo as conseguimos definir enquanto estamos acordados nem dizer a verdade Eacute que uma imagem que natildeo tem em si mesma nada daquilo a partir do qual se gerou (eacute um simulacro que estaacute sempre a fugir de outra coisa) assenta por estes motivos o seu devir numa outra coisa aderindo assim a uma existecircncia qualquer que ela seja caso contraacuterio ela natildeo seraacute absolutamente nada No que diz respeito ao que realmente eacute o discurso verdadeiro atraveacutes da exactidatildeo vai em seu auxiacutelio porque enquanto alguma coisa for uma outra e essa for outra ainda nenhuma das duas poderaacute nascer na outra pois

185 chocircra A traduccedilatildeo deste termo seraacute sempre insuficiente em virtude das dificuldades hermenecircuticas que esta secccedilatildeo levanta A versatildeo por ldquolugarrdquo deve ser entendida agrave luz do que foi dito sobre a chocircra na Introduccedilatildeo pp 42-44

186 logismocirc tini nothocirc

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uma coisa natildeo pode ser uma soacute e a mesma e ao mesmo tempo ser duas diversas

Esta eacute portanto a explicaccedilatildeo que vai ao encontro do meu voto concedamos uma descriccedilatildeo em jeito de siacutentese o ser o lugar e o devir187 satildeo trecircs coisas distintas de trecircs maneiras diversas e anteriores agrave geraccedilatildeo do ceacuteu A ama do devir188 por ficar humedecida e ardente e receber as formas da terra e do ar e por sofrer todas as impressotildees que as acompanham aparece agrave visatildeo sob muacuteltiplas feiccedilotildees mas por causa de estar plena de propriedades que natildeo satildeo semelhantes nem equilibradas natildeo estando ela proacutepria nada equilibrada a balanccedilar irregularmente para todos os lados eacute sacudida pelos elementos e ao ser movimentada ela proacutepria novamente os sacode Sendo os elementos assim postos em movimento separam-se por serem movimentados de um lado para o outro tal como acontece com as sementes quando satildeo agitadas e peneiradas por meio de joeiras ou de outros instrumentos usados para a depuraccedilatildeo dos cereais as partes densas e pesadas vatildeo para um lado enquanto que as esparsas e leves satildeo transportadas e assentam noutro local Assim os quatro elementos satildeo ao mesmo tempo sacudidos pelo receptaacuteculo Ele proacuteprio produzindo um movimento semelhante ao de um instrumento para sacudir separou ao maacuteximo esses elementos dissemelhantes dos outros e comprimiu o mais que pocircde os semelhantes num soacute por isso uns ocuparam um lugar e os outros outro ainda antes de o universo ser organizado e gerado a partir deles

187 on te kai chocircran kai genesin188 Outra das designaccedilotildees para chocircra

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Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros Como eacute possiacutevel que o deus os tenha composto de forma tatildeo bela e excelente a partir de elementos que natildeo satildeo assim isto seraacute antes de tudo e como sempre o que comeccedilaremos por explicar Agora devo entatildeo tentar esclarecer para voacutes a ordenaccedilatildeo e a geacutenese destes elementos por meio de um discurso insoacutelito mas como graccedilas agrave educaccedilatildeo partilhais dos meacutetodos pelos quais se demonstra o que eacute necessaacuterio ser explicado voacutes ireis acompanhar-me

Em primeiro lugar que o fogo a terra a aacutegua e o ar satildeo corpos isso eacute claro para todos tudo o que eacute da espeacutecie do corpo tem profundidade Mas a profundidade envolve necessariamente e por natureza a superfiacutecie e uma superfiacutecie plana eacute composta a partir de triacircngulos Todos os triacircngulos tecircm origem em dois triacircngulos cada um dos quais com um acircngulo recto e com os outros agudos Destes um tem em cada lado uma parte do acircngulo recto dividido em lados iguais enquanto que o outro tem partes desiguais do acircngulo recto dividas por lados desiguais Este eacute o princiacutepio que supomos aplicar-se ao fogo e aos outros corpos ao seguirmos uma explicaccedilatildeo que combina necessidade e

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verosimilhanccedila quanto aos princiacutepios ainda anteriores agravequeles conhece-os o deus e aqueles de quem entre os homens ele for amigo Eacute necessaacuterio que se diga entatildeo como satildeo esses quatro corpos mais belos dissemelhantes uns em relaccedilatildeo aos outros e que tecircm a capacidade de se gerarem uns aos outros se porventura forem dissolvidos Se o conseguirmos obteremos a verdade sobre a geraccedilatildeo da terra do fogo e dos elementos intermediaacuterios que estatildeo entre eles segundo a proporccedilatildeo E natildeo aceitaremos a ningueacutem a seguinte argumentaccedilatildeo que existem e podem ser observados corpos mais belos do que estes cada um correspondendo a um soacute geacutenero Devemos portanto empenhar-nos em estabelecer uma relaccedilatildeo harmoacutenica entre os quatro geacuteneros de corpos que se distinguem pela beleza e demonstrar que compreendemos satisfatoriamente a sua natureza

Dos dois triacircngulos o isoacutesceles encerra uma soacute espeacutecie ao passo que o escaleno encerra uma infinidade delas entre esta infinidade temos que escolher a mais bela se quisermos comeccedilar pelo siacutetio certo Se algueacutem conseguir referir uma mais bela que tenha escolhido em funccedilatildeo da sua composiccedilatildeo seraacute ele quem prevalece natildeo como antagonista mas sim como aliado Estabeleccedilamos portanto que de entre os vaacuterios triacircngulos haacute um que eacute o mais belo e deixemos de parte os outros

Trata-se daquele a partir do qual se pode constituir um triacircngulo equilaacutetero Dizer por que razatildeo eacute assim exigiria um discurso muito longo poreacutem a quem refute esta afirmaccedilatildeo e descubra que natildeo eacute deste modo seraacute atribuiacutedo o preacutemio com amizade Seleccionemos entatildeo

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dois triacircngulos a partir dos quais o fogo e os outros corpos foram engendrados um eacute isoacutesceles e quanto ao outro o seu lado maior seraacute sempre o quadrado do triplo do mais pequeno189 Agora devemos esclarecer melhor o que anteriormente dissemos de forma nada clara Parecia-nos que os quatro geacuteneros de corpos tinham sido todos gerados uns pelos outros mas isso eacute uma concepccedilatildeo que natildeo estaacute correcta pois em boa verdade os quatro geacuteneros satildeo gerados a partir dos triacircngulos que elegecircramos trecircs dos quais a partir do uacutenico que tem os lados desiguais e o quarto foi o uacutenico harmonicamente constituiacutedo a partir do triacircngulo isoacutesceles Portanto natildeo eacute possiacutevel que todos eles se decomponham uns nos outros que poucos grandes se gerem a partir de muitos pequenos e vice-versa Todavia trecircs podem visto que todos eles provecircm de um soacute triacircngulo se os maiores forem decompostos muitos pequenos seratildeo compostos a partir deles recebendo o aspecto que eacute adequado a cada um e quando um grande nuacutemero de pequenos se difunde pelos triacircngulos sendo gerado um nuacutemero uacutenico num uacutenico todo ele produziraacute uma outra forma uacutenica e grande Eis o que fica dito acerca da sua geraccedilatildeo reciacuteproca O tipo de forma em que cada um deles foi gerado e a partir de que combinaccedilotildees numeacutericas constituiraacute o objecto da exposiccedilatildeo que se segue

Comeccedilaremos pela primeira espeacutecie constituiacuteda como a mais pequena o seu elemento eacute o triacircngulo cujo comprimento da sua hipotenusa eacute o dobro do do lado

189 A noccedilatildeo de ldquoquadradordquo isto eacute x2 estaacute contida no termo dynamis tambeacutem com este sentido aparece no Teeteto (147d)

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mais pequeno190 Se justapusermos dois destes triacircngulos pela sua diagonal fazendo isto trecircs vezes fixando no mesmo ponto ndash que serviraacute de centro ndash as diagonais e os lados mais pequenos seraacute gerado um uacutenico triacircngulo equilaacutetero a partir de um nuacutemero de seis triacircngulos Quatro desses triacircngulos constituiacutedos por quatro lados iguais unidos a trecircs acircngulos planos191 formam um uacutenico acircngulo soacutelido192 que eacute gerado imediatamente a seguir ao mais obtuso dos acircngulos planos Uma vez formados quatro acircngulos desse tipo estaacute composta a primeira figura soacutelida193 que divide um todo esfeacuterico em partes iguais e semelhantes A segunda figura eacute formada a partir dos mesmos triacircngulos combinando-se oito triacircngulos equilaacuteteros que produzem um soacute acircngulo soacutelido a partir de quatro acircngulos planos e quando se geram seis acircngulos deste tipo o segundo corpo194 estaacute deste modo terminado A terceira figura eacute constituiacuteda pela conjunccedilatildeo de cento e vinte triacircngulos elementares e de doze acircngulos soacutelidos cada um dos quais envolvido por cinco triacircngulos planos equilaacuteteros e eacute gerada com

190 Triacircngulo rectacircngulo escaleno191 Isto eacute trecircs acircngulos de 60o192 Acircngulo raso de 180o193 Tetraedro regular (piracircmide) Comeccedila aqui a descriccedilatildeo

da formaccedilatildeo dos cinco soacutelidos elementares que se combinam na esfera final Mais tarde Euclides partiraacute deste passo do Timeu para abordar estas figuras Dedica-lhes todo o Livro XIII onde descreve as suas propriedades e constituiccedilatildeo bem como as caracteriza matematicamente determinando a proporccedilatildeo existente entre cada uma delas e a esfera Conclui que natildeo existe mais nenhum soacutelido regular aleacutem destes

194 Octaedro regular

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vinte bases que satildeo triacircngulos equilaacuteteros195 Engendrados estes soacutelidos o outro triacircngulo elementar foi deixado de parte e o triacircngulo isoacutesceles engendrou a natureza do quarto constituindo quatro triacircngulos que coincidiram no centro os seus acircngulos rectos formando um uacutenico quadrilaacutetero equilateral Quando foram conjugados seis deste tipo produziu oito acircngulos soacutelidos sendo cada um deles constituiacutedo pela harmonia de trecircs acircngulos planos rectos a figura do corpo constituiacutedo foi a do cubo que tem seis faces planas quadrangulares e equilaterais196 Visto que havia ainda uma quinta combinaccedilatildeo197 o deus utilizou-a para pintar animais no universo198

Quem considerar tudo isto de forma adequada pode encontrar dificuldades quanto ao que se deve dizer

195 Icosaedro regular196 Hexaedro regular197 Dodecaedro Esta figura geomeacutetrica constituiacuteda por 12

faces sendo cada uma delas um pentaacutegono (cf Euclides 1128) aproxima-se bastante da forma da esfera Sabendo que no Feacutedon (110b) o formato esfeacuterico da Terra eacute comparado agraves lsquodoze esferasrsquo (uma espeacutecie de bolas feitas com doze pedaccedilos de pele cosidos uns com os outros) e que os siacutembolos do Zodiacuteaco satildeo tambeacutem 12 e representados de forma geometricamente semelhante a relaccedilatildeo parece-nos oacutebvia na verdade Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1003C-D) citando este passo do Timeu diz que a representaccedilatildeo do Zodiacuteaco se deve precisamente a esta relaccedilatildeo

198 Eacute bastante complicado apurar o sentido exacto de diazocircgrapheocirc pois o elemento zocirc- ainda que originalmente siginificasse ldquoanimalrdquo pelo uso passou tambeacutem a ter o sentido de ldquofigurardquo daiacute que este verbo possa tambeacutem significar ldquopintar de vaacuterias coresrdquo Contudo sabendo que o universo visto a olho nu como era observado no tempo de Platatildeo natildeo apresenta quaisquer variaccedilotildees cromaacuteticas e de acordo com o que dissemos na nota anterior pensamos que este sentido de ldquopintar animaisrdquo estaacute relacionado com o Zodiacuteaco maioritariamente formado por animais

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se haacute uma infinidade de mundos ou em nuacutemero limitado Pode considerar que dizer que haacute uma infinidade de universos eacute um parecer de algueacutem que eacute inexperiente num um assunto sobre o qual deveria ser experiente199 mas entatildeo o que eacute adequado dizer em abono da verdade Que haacute soacute um mundo ou que haacute cinco ndash eacute uma questatildeo em que eacute razoaacutevel que possamos ter muita dificuldade Ora bem em nosso parecer de acordo com o discurso verosiacutemil o deus indica que um soacute mundo foi gerado poreacutem outra pessoa ao analisar outros pressupostos teraacute outra opiniatildeo Mas deixemos agora esse assunto e distribuamos os geacuteneros que foram gerados pelo nosso discurso em fogo terra aacutegua e ar Atribuamos agrave terra a forma cuacutebica pois a terra dos quatro elementos eacute o que tem mais dificuldade em mover-se e dos corpos o mais adequado para ser moldado ndash inevitavelmente e com certeza que foi gerado deste modo para que tivesse as bases mais estaacuteveis De entre os triacircngulos que estabelecemos no princiacutepio200 a base de lados iguais eacute mais estaacutevel de acordo com a natureza do que a de lados desiguais e quanto agrave superfiacutecie quadrangular equilateral composta a partir de cada um daqueles201 estaacute assente de um modo necessariamente mais estaacutevel em relaccedilatildeo quer agraves partes quer ao todo do que o triacircngulo equilaacutetero Por isso manteremos a salvo o discurso verosiacutemil se atribuirmos esta forma agrave terra e das que restam a forma mais difiacutecil de movimentar agrave aacutegua a que se movimenta melhor ao

199 Note-se o jogo de palavras provocado entre apeiros (ldquoilimitadordquo) empeiros (ldquoexperienterdquo) e apeiros (ldquoinexperienterdquo)

200 Cf supra 53c-55c201 Triacircngulos rectacircngulo isoacutesceles e escaleno

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fogo e a intermeacutedia ao ar o corpo mais pequeno ao fogo o maior agrave aacutegua e o meacutedio ao ar o que eacute mais agudo ao fogo o segundo mais agudo ao ar e o terceiro agrave aacutegua Considerando todos estes corpos aquele que tem as bases mais pequenas seraacute por natureza necessariamente o que melhor se movimenta pois de todos eles eacute absolutamente o mais pungente e mais agudo e ainda o mais leve pelo facto de ser constituiacutedo por um menor nuacutemero de partes iguais O segundo corpo deveraacute vir em segundo lugar de acordo com estes pressupostos e o terceiro em terceiro Portanto de acordo com o raciociacutenio correcto e verosiacutemil estabeleccedilamos que a figura soacutelida da piracircmide eacute o elemento que gerou o fogo e a sua semente digamos que na ordem de geraccedilatildeo o ar eacute o segundo e a aacutegua o terceiro Eacute necessaacuterio ter em mente que todos os corpos satildeo de tal forma pequenos que tomando cada um deles de acordo com o seu geacutenero nenhum pode ser observado por noacutes por causa da sua pequenez mas soacute satildeo visiacuteveis quando reunidos em grande nuacutemero numa massa consistente E quanto agraves proporccedilotildees que determinam as suas quantidades aos movimentos e agraves outras propriedades em geral eacute loacutegico que o deus tanto quanto a natureza da Necessidade cedeu ao deixar-se persuadir de bom grado harmonizou isto de acordo com a proporccedilatildeo de modo a que em cada caso tudo fosse produzido por ele com precisatildeo

A partir de tudo quanto acabaacutemos de dizer sobre os geacuteneros eis o que deve ter ocorrido de acordo com o maacuteximo de verosimilhanccedila quando a terra encontra o fogo e eacute dividida pelo que nela haacute de cortante pode ser

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arrastada por dissoluccedilatildeo no proacuteprio fogo ou ao deparar-se com uma massa de ar ou de aacutegua ateacute que as suas partes se reencontrem e se harmonizem novamente umas com as outras tornando-se terra outra vez ndash pois jamais pode passar a outra espeacutecie Mas quando a aacutegua eacute dividida pelo fogo ou ateacute pelo ar eacute possiacutevel que decirc origem a um corpo uacutenico constituiacutedo de fogo e a dois de ar a partir da dissoluccedilatildeo de uma partiacutecula de ar os seus segmentos podem dar origem a dois corpos de fogo E por outro lado quando o fogo eacute envolvido em ar em aacutegua ou numa porccedilatildeo de terra posto em movimento pelos elementos que o arrastam entra em conflito com eles eacute castigado e desfeito em pedaccedilos Entatildeo dois corpos de fogo combinam-se num elemento de ar e quando o ar eacute dominado e cortado em pedaccedilos a partir de duas partes e meia uma forma de ar eacute compactada num soacute corpuacutesculo de aacutegua

Mas calculemos novamente estas questotildees do seguinte modo logo que um dos outros elementos ao ser envolvido em fogo e cortado pela agudeza dos seus acircngulos e das suas arestas eacute constituiacutedo na natureza do fogo o corte acaba Eacute que cada geacutenero eacute semelhante e idecircntico a si proacuteprio e natildeo eacute possiacutevel produzir qualquer alteraccedilatildeo num outro que tem uma condiccedilatildeo semelhante agrave sua nem dele sofrer nenhuma mas se se tornar num outro geacutenero haveraacute um mais fraco a combater com um mais forte e natildeo paacutera de ser dissolvido Quando as partiacuteculas mais pequenas e em menor nuacutemero satildeo envolvidas pelas maiores e mais numerosas satildeo dissolvidas e extinguem-se mas se se

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deixarem constituir na forma do elemento dominante param de se extinguir e do fogo eacute gerado ar e do ar eacute gerada aacutegua Todavia se enquanto os corpuacutesculos se estiverem a unir num todo uma massa de outros elementos entrar em conflito com eles natildeo param de se dissolver ateacute que sejam completamente afastados e dissolvidos refugiando-se junto do que eacute seu congeacutenere ou sendo vencidos se convertam numa massa uacutenica semelhante agrave que os dominou e permaneccedilam com ela Decerto que estas impressotildees originam mudanccedilas de lugar eacute que as massas de cada geacutenero estatildeo separadas cada uma no siacutetio que lhe compete em virtude do movimento do receptaacuteculo mas as que por vezes se tornam dissemelhantes de si proacuteprias e semelhantes a outras satildeo levadas por via das agitaccedilotildees para o lugar daquelas a que se tornaram semelhantes

Eis as causas por que foram gerados os corpos primeiros e puros mas quanto ao motivo por que nascerem outros geacuteneros nas suas formas devemos apontar como causa a constituiccedilatildeo dos elementos de cada corpo pois cada uma delas natildeo foi feita desde o princiacutepio de modo a que o seu triacircngulo fosse uacutenico e de um tamanho soacute ndash jaacute que havia uns mais pequenos e outros maiores ndash com um nuacutemero de variaccedilotildees tatildeo grande quanto o de geacuteneros que haacute dentro das formas Por isso eacute que quando esses triacircngulos se misturam entre si ou com outros decorre daiacute uma variedade infinita Essa variedade deve merecer a atenccedilatildeo daqueles que tencionam fazer uso de um discurso verosiacutemil sobre a natureza

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No que respeita ao movimento e ao repouso se natildeo chegarmos a um acordo sobre a forma e em que condiccedilotildees se geram haveraacute vaacuterios impedimentos ao raciociacutenio que se segue Decerto que jaacute se falou sobre este assunto202 mas acrescentemos ainda o seguinte de modo algum o movimento consente existir na uniformidade Eacute difiacutecil ndash ou melhor impossiacutevel ndash haver um movido203 sem um movente204 ou um movente sem um movido natildeo eacute possiacutevel haver movimento sem a existecircncia destes termos mas eacute impossiacutevel que de algum modo eles sejam uniformes Assim estabeleccedilamos definitivamente que o repouso existe na uniformidade205 e o movimento na natildeo-uniformidade a causa da natureza do que eacute natildeo-uniforme eacute a desigualdade Noacutes jaacute discorremos sobre a geraccedilatildeo da desigualdade206 mas natildeo dissemos como se separaram os elementos uns dos outros de acordo com o seu geacutenero e desse modo cessaram de se mover e passar uns pelos outros Eis o que diremos novamente a oacuterbita do universo visto que engloba todos os geacuteneros e eacute circular tende por natureza a querer concentrar-se em si mesma e comprime todas as coisas natildeo permitindo que lugar algum permaneccedila vazio Foi por isso que o fogo principalmente penetrou em tudo e em seguida o ar que eacute por natureza o segundo em subtileza e assim sucessivamente para os restantes De facto os corpos gerados a partir de partiacuteculas maiores satildeo os que deixam

202 Cf supra 52d-53a 57a-c203 to kinecircsomenon204 to kinecircson205 stasin men en omalotecircti206 Cf supra 57c-d

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maiores interstiacutecios durante a sua composiccedilatildeo enquanto que os mais pequenos deixam interstiacutecios muito pequenos O processo de compressatildeo impele os mais pequenos para os interstiacutecios dos maiores Quando os pequenos se encontram estabelecidos entre os grandes separando entre si os maiores e os maiores comprimem os mais pequenos todos satildeo levados para cima e para baixo em direcccedilatildeo aos lugares que lhes satildeo proacuteprios Eacute que cada um ao mudar de tamanho eacute levado igualmente a mudar de posiccedilatildeo Eacute deste modo e por estes motivos que se gera e perdura a natildeo-uniformidade fornecendo a esses corpos este movimento que existe sempre de forma contiacutenua

Aleacutem dos mencionados eacute necessaacuterio ter em conta que existem outros geacuteneros de fogo como a chama e aquilo que emana da chama que natildeo queima mas fornece aos olhos a luz e aquilo que quando a chama se extingue dela subsiste nos corpos inflamados O mesmo se aplica ao ar a que naquela forma mais pura nos referimos com o termo ldquoeacuteterrdquo enquanto que para mais turva designamos por ldquonevoeirordquo e ldquoescuridatildeordquo existindo tambeacutem noutras formas que natildeo tecircm nome e que satildeo geradas por causa da desigualdade dos triacircngulos Quanto aos tipos de aacutegua em primeira instacircncia dividem-se em dois geacuteneros o liacutequido e o passiacutevel de se liquefazer O liacutequido que tem partes dos mais pequenos compostos de aacutegua (os quais satildeo desiguais) eacute moviacutevel por si mesmo ou por outro elemento em virtude da sua irregularidade e da forma da sua figura Por outro lado o que eacute feito a partir de compostos grandes e uniformes eacute mais estaacutevel do que

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aquele e mais pesado pois foi compactado por causa da uniformidade Mas sob efeito do fogo que o penetra e dissolve perde a uniformidade e depois de a perder participa mais do movimento ao tornar-se facilmente moviacutevel eacute impregnado pelo ar circundante e espalhado sobre a terra Cada uma destas impressotildees recebeu um nome ldquoderreterrdquo para a decomposiccedilatildeo das suas massas e ldquofluirrdquo para a sua dispersatildeo sobre a terra Mas quando o fogo se precipita novamente e de forma espontacircnea visto que natildeo se precipita para o vazio o ar circundante repele a massa huacutemida que ainda eacute faacutecil de mover em direcccedilatildeo aos lugares que o fogo ocupava obrigando-a a misturar-se com ela proacutepria Sendo o liacutequido assim comprimido recupera a sua homogeneidade visto que o fogo que criara esta irregularidade tinha-se retirado assim eacute restabelecido ao seu estado original E porque o afastamento do fogo eacute ldquocongelamentordquo a constriccedilatildeo subsequente ao seu afastamento significa o que chamamos ldquoestado soacutelidordquo Dentre todos os tipos de aacutegua a que chamaacutemos ldquopassiacutevel de se liquefazerrdquo uma que eacute muito densa por ser gerada atraveacutes de partiacuteculas muito finas e uniformes (uacutenica na sua espeacutecie) foi tingida com uma cor brilhante e amarela e que eacute o bem mais precioso o ouro ndash filtrado atraveacutes das pedras solidificou-se Quanto ao rebento do ouro que eacute muito duro em virtude da sua densidade e de cor negra eacute chamado ldquoadamanterdquo207

207 adamas Pelo facto de lhe ser atribuiacuteda uma cor negra e ser chamada ldquorebento do ourordquo esta misteriosa substacircncia tambeacutem referida no Poliacutetico (303e) e na Repuacuteblica (616c) corresponderaacute muito provavelmente agrave hematite Sobre este assunto vide Lopes (2009 pp 29-30)

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Afim ao ouro por causa das partiacuteculas mas tendo mais do que uma espeacutecie mais compacto em densidade do que o ouro e com pequenas e poucas partiacuteculas de terra de tal modo que eacute mais duro embora seja mais leve por ter em si interstiacutecios maiores eacute o geacutenero do cobre ndash uma combinaccedilatildeo gerada a partir de aacuteguas liacutempidas e densas Quanto agrave porccedilatildeo de terra aiacute misturada logo que se torna a separar deste com o passar do tempo torna-se visiacutevel por si soacute e gera-se aquilo a que se chama ldquoverdeterdquo

No que respeita agraves outras substacircncias deste tipo natildeo seraacute complicado discorrer sobre elas se investigarmos a modalidade da narrativa verosiacutemil Algueacutem que ponha de parte os discursos relativos ao que eacute eternamente e analise o verosiacutemil que diz respeito ao devir obteacutem como que um prazer de que natildeo se arrepende e produziraacute na sua vida uma recriaccedilatildeo comedida e prudente Por isso deixemos tambeacutem noacutes agora aqueles assuntos e prossigamos a buscar a verosimilhanccedila nestas questotildees e do seguinte modo

A aacutegua misturada com fogo toda ela fina e liacutequida em virtude do seu movimento e do seu percurso eacute chamada ldquoliacutequidardquo208 Ela rola macia sobre a terra e por as suas bases menos estaacuteveis do que as da terra cederem a aacutegua quando eacute separada do fogo e do ar fica sozinha e eacute mais uniforme e comprimida sobre si mesma por aquilo que dela sai Solidificada deste modo a que eacute mais afectada pelo que estaacute por cima da terra chama-se ldquogranizordquo e sobre a terra chama-se ldquogelordquo

208Caracterizaccedilatildeo tipicamente homeacuterica do percurso da aacutegua (Odisseia 371)

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aquela que ficou menos afectada se natildeo for mais do que meio congelada chama-se ldquoneverdquo e se condensar sobre a terra a partir do orvalho chama-se ldquogeadardquo No que respeita agraves espeacutecies de aacutegua mais numerosas por estarem misturadas umas com as outras ndash a todo esse geacutenero por ter sido filtrado pelas plantas da terra chamamos sucos ndash todas elas por causa das misturas tecircm dissemelhanccedilas Muitos geacuteneros seus foram produzidos que ficaram sem nome Mas haacute quatro espeacutecies que contecircm fogo tendo sido as mais conspiacutecuas as que receberam nomes a que consegue aquecer tanto a alma como o corpo eacute o vinho a que eacute suave e divide o raio visual e por estas razotildees eacute brilhante e reluzente para a visatildeo e tem uma aparecircncia lustrosa eacute o oacuteleo o pez o oacuteleo de riacutecino o proacuteprio azeite e todos os outros produtos que tecircm esta mesma propriedade E o que tem a capacidade de dissolver nos limites da sua natureza as partes compactas agrave volta da boca proporcionando a doccedilura atraveacutes dessa propriedade tem a designaccedilatildeo geral de ldquomelrdquo a espeacutecie que dissolve a carne por queimaacute-la um geacutenero espumoso que estaacute aparte de todos os outros sucos recebeu o nome ldquofermentordquo

Quanto agraves espeacutecies de terra a que foi filtrada pela aacutegua torna-se num corpo pedregoso do seguinte modo Quando a aacutegua que estava misturada se separa durante a mistura torna-se numa espeacutecie de ar transformada em ar vai disparada para o lugar que lhe eacute proacuteprio Como natildeo havia nenhum vazio em redor deles empurrou o ar circundante Visto que ele eacute pesado quando eacute empurrado e espalhado na massa da terra comprime-a

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atirando-a com forccedila para os locais de onde saiacutera o novo ar comprimida pelo ar e insoluacutevel pela aacutegua209 a terra constitui a pedra que eacute mais bela quando eacute brilhante (pois tem origem em partes iguais e uniformes) e mais feia quando acontece o contraacuterio Quando toda a humidade eacute retirada por causa da rapidez do fogo e se constitui um corpo mais seco do que a pedra gera-se aquele geacutenero a que chamamos ldquobarrordquo Mas acontece que se restar humidade a terra torna-se passiacutevel de fusatildeo por acccedilatildeo do fogo e quando arrefece gera-se uma pedra de cor negra210 Restam dois geacuteneros que igualmente resultam de uma mistura com muita aacutegua Sendo constituiacutedos por partes mais pequenas de terra e ambos salgados tornam-se semicondensados e novamente dissoluacuteveis pela aacutegua um eacute o geacutenero do salitre que limpa o azeite e a terra o outro que se mistura harmoniosamente em combinaccedilotildees de sabores eacute o sal que segundo a tradiccedilatildeo eacute considerado um corpo amado pelos deuses211 Quanto aos que satildeo compostos de ambos soluacuteveis natildeo em aacutegua mas sim no fogo solidificam-se do seguinte modo e pelos seguintes motivos nem o fogo nem o ar dissolvem as massas de terra pois as suas partiacuteculas satildeo por natureza mais pequenas do que os interstiacutecios da estrutura da terra e como haacute muito espaccedilo por onde podem passar sem ser pela forccedila permitem que ela fique

209 Questatildeo que seraacute detalhadamente analisada por Aristoacuteteles (Meteoroloacutegicos 383b19-sqq)

210 A lava depois de seca211 Esta concepccedilatildeo remonta a Homero Plutarco em No

Banquete (684F-sqq) citando este passo do Timeu dedica-lhe uma quaestio inteira

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indissoluacutevel e indissociaacutevel por outro lado as partiacuteculas de aacutegua que satildeo por natureza maiores forccedilam a passagem e ao fazecirc-lo dissociam a terra dissolvendo-a De facto quando a terra natildeo se solidifica pela forccedila soacute a aacutegua a dissolve deste modo mas se se solidificar dessa forma nada a natildeo ser o fogo a pode dissolver pois natildeo resta entrada para nada a natildeo ser para o fogo Quanto agrave estrutura da aacutegua extremamente forte soacute o fogo a pode destruir poreacutem quando enfraquece ambos os elementos a podem destruir o fogo pelos triacircngulos e o ar pelos interstiacutecios Quanto ao ar comprimido pela forccedila nada o dissolve a natildeo ser que dissolva o elemento propriamente dito e quando foi comprimido sem forccedila soacute o fogo o dissolve No que respeita aos corpos misturados a partir de terra e de aacutegua enquanto a aacutegua ocupar os interstiacutecios da terra que satildeo comprimidos pela forccedila as partes de aacutegua que vecircm do exterior natildeo tecircm entrada pelo que correm em torno de toda a massa sem que ela permita ser dissolvida mas as partes do fogo entram pelos interstiacutecios de aacutegua e o que a aacutegua faz agrave terra o fogo o faz ao ar ndash satildeo as uacutenicas causas que levam este corpo composto a dissolver-se e a fluir Acontece que entre estes seres uns tecircm menos aacutegua do que terra geacutenero a que diz respeito todo o tipo de vidro e as pedras a que chamamos ldquofundiacuteveisrdquo mas outros tecircm mais aacutegua satildeo todos os corpos constituiacutedos de cera e incenso

Estatildeo entatildeo mais ou menos demonstradas as variedades de espeacutecies em funccedilatildeo das figuras combinaccedilotildees e alteraccedilotildees de uns para os outros Temos agora que tentar esclarecer por que causas se geram essas

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impressotildees Primeiro eacute obrigatoacuterio que pressuponhamos sempre nos nossos discursos a existecircncia de sensaccedilotildees mesmo que ainda natildeo tenhamos discorrido sobre o que respeita agrave carne e agrave geraccedilatildeo da carne212 nem sobre a parte mortal da alma213 Acontece que natildeo eacute possiacutevel falar-se disso satisfatoriamente sem que se aborde as impressotildees sensiacuteveis nem falar daquela separadamente destas todavia tratar dos dois assuntos ao mesmo tempo eacute quase impossiacutevel Assim temos que pressupor que um dos dois jaacute foi tratado anteriormente mas regressaremos mais tarde ao que supusemos tratado

Portanto para que falemos sobre as propriedades a seguir ao que as gera tenhamos em conta o que respeita agrave existecircncia do corpo e da alma Em primeiro lugar procuremos saber por que dizemos que o fogo eacute quente tendo em conta que ele gera dissociaccedilatildeo e corte no nosso corpo Todos noacutes temos mais ou menos noccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo que provoca eacute como qualquer coisa aguda no que trata agrave fineza das suas arestas agrave agudeza dos seus acircngulos agrave pequenez das suas partiacuteculas e agrave rapidez dos seus movimentos que em todos os sentidos fazem do fogo algo veemente e cortante que corta de forma pungente o que quer que lhe apareccedila devemos consideraacute-las relembrando a origem da sua figura e sobretudo que essa e natildeo outra a natureza que divide os nossos corpos e os fragmenta em pequenas partes eacute justamente o que deu o nome e a sensaccedilatildeo ao que noacutes agora chamamos ldquoquenterdquo

212 Vide infra 73b-sqq213 Vide infra 69a-sqq

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O contraacuterio disto eacute evidente todavia que natildeo fique privada de explicaccedilatildeo Dentre os liacutequidos que circundam o corpo quando aqueles que tecircm partiacuteculas maiores se aproximam para expelirem os de partiacuteculas mais pequenas (como natildeo lhes eacute possiacutevel ocupar os lugares deles comprimem a humidade que haacute em noacutes) fazem uma coisa inamoviacutevel a partir de uma que eacute dotada de um movimento irregular atraveacutes de homogeneizaccedilatildeo compressatildeo e solidificaccedilatildeo Poreacutem aquilo que eacute unido de forma contraacuteria agrave natureza luta de acordo com a sua natureza para se afastar no sentido contraacuterio que eacute o seu estado proacuteprio A este embate e a este abalo pusemos os nomes ldquotremorrdquo e ldquoarrepiordquo enquanto que esta impressatildeo em geral e aquilo que a provoca tem o nome ldquofriordquo

Duro eacute aquilo a que a nossa carne cede e mole eacute aquilo que cede agrave carne determinam-se relativamente uns aos outros Cede aquilo que estaacute assente numa base pequena Aquele que tem uma base de quadrados estando assente firmemente eacute a forma mais resistente porque pode reunir grande densidade e tem muita firmeza

Para que se explique com o maacuteximo de clareza o ldquopesadordquo e o ldquoleverdquo examinemo-los juntamente com aquilo a que chamamos ldquopor baixordquo e ldquopor cimardquo Natildeo eacute nada acertado pensar que haacute por natureza dois lugares determinados e opostos que dividem o universo em duas partes a de baixo para onde eacute levado tudo quanto tenha uma massa corpoacuterea e a de cima para onde tudo se dirige contrariado Sabendo que o ceacuteu tem todo ele uma forma esfeacuterica todos os pontos que satildeo extremos

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por estarem agrave mesma distacircncia do centro devem ser em igual medida extremidades e quanto ao centro afastado agrave mesma distacircncia das extremidades eacute forccediloso acreditar que seja o oposto de todas as extremidades Visto que o mundo eacute por natureza formado deste modo qual dos pontos se diga estar no alto ou em baixo para que natildeo pareccedila com justiccedila que se estaacute a aplicar designaccedilotildees nada adequadas Com efeito natildeo eacute certo dizer que o local que estaacute no centro do mundo seja por natureza em baixo ou em cima mas sim no centro jaacute a periferia natildeo estaacute no centro nem tem em si nenhuma parte mais diferenciada do que outra em relaccedilatildeo ao centro ou a qualquer outro dos opostos Portanto que tipo de designaccedilotildees contraacuterias se poderaacute aplicar agravequilo que eacute em si mesmo semelhante em todos os aspectos e como se pode acreditar que estaacute a falar correctamente Se houver um soacutelido em equiliacutebrio no centro do universo de modo algum seraacute levado em direcccedilatildeo a qualquer das extremidades em virtude de serem semelhantes em todas as direcccedilotildees Mas se algo andasse em ciacuterculos agrave volta dele achar-se-ia frequentemente nos antiacutepodas e referir-se-ia ao mesmo ponto como ldquoem baixordquo e ldquoem cimardquo214 Portanto se o universo eacute todo esfeacuterico tal como acabo de dizer natildeo faz sentido dizer que um siacutetio eacute em baixo e outro eacute em cima de onde provecircm estas designaccedilotildees e aquilo a que elas se aplicam por causa das quais nos acostumaacutemos a descrever o ceacuteu como um todo e a dividi-lo deste modo eis aquilo em que devemos estar de acordo ao supormos o que se segue

214 No Sobre o Ceacuteu (42 308a34-b28) Aristoacuteteles parafraseia esta secccedilatildeo do texto para especular sobre a esfericidade da Terra e a sua posiccedilatildeo central no universo

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No siacutetio do universo de que a natureza do fogo mais participa e onde haacute mais quantidade acumulada daquilo a que ele se dirige se algueacutem aiacute se aproximasse dele supondo que tinha esse poder e tirasse partes de fogo para as pesar numa balanccedila e erguendo a balanccedila arrastasse agrave forccedila o fogo para o ar que lhe eacute dissemelhante eacute evidente que as partes mais pequenas cederiam mais facilmente do que as maiores ndash eacute que quando dois corpos satildeo levantados por uma soacute forccedila torna-se inevitaacutevel que o mais pequeno anua mais facilmente agrave forccedila e o maior menos pois resiste ateacute um certo ponto Ao maior que eacute levado para baixo chamemos ldquopesadordquo e ao pequeno que eacute levado para cima chamemos ldquoleverdquo Eacute forccediloso que noacutes sejamos levados a fazer isto mesmo em relaccedilatildeo a este local Por andarmos sobre a terra separamos geacuteneros teacuterreos agraves vezes ateacute a proacutepria terra e contra a natureza atiramo-los com violecircncia para o ar que eacute dissemelhante pois ambos se mantecircm naquilo de que satildeo congeacuteneres mas o mais pequeno acompanha mais facilmente o arrastamento para o dissemelhante do que o maior Por isso lhe atribuiacutemos a propriedade ldquoleverdquo a ele e ldquoem cimardquo ao local para onde foi arrastado e ao oposto ldquopesadordquo e ldquoem baixordquo Consequentemente eacute inevitaacutevel que essas propriedades se relacionem umas com as outras de maneiras diversas em virtude de as massas destes geacuteneros ocuparem um local oposto umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash se compararmos o que eacute leve num lugar com o que eacute leve no lugar oposto o que eacute pesado com aquilo que eacute pesado o que estaacute em baixo com o que estaacute em baixo o que estaacute em cima com o

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que estaacute em cima descobriremos que todos se tornam e satildeo opostos obliacutequos e em tudo diferentes uns dos outros Mas o aspecto particular que devemos ter em mente em relaccedilatildeo a todos eles eacute que para cada corpo eacute o trajecto que conduz ao congeacutenere que torna ldquopesadordquo aquele que o percorre e ldquoem baixordquo o lugar para onde se dirige e o contraacuterio eacute vaacutelido para os opostos destes215 Estatildeo estabelecidas as causas que dizem respeito a estas propriedades No que respeita agrave causa da impressatildeo do ldquolisordquo e do ldquorugosordquo qualquer pessoa pode percebecirc-la e explicaacute-la a outra pessoa um resulta da dureza misturada com a irregularidade o outro eacute produzido pela homogeneidade combinada com densidade

No que respeita agraves questotildees que satildeo comuns a todo o corpo resta uma importantiacutessima que eacute a causa dos prazeres e das dores devidos agraves impressotildees sobre as quais temos discorrido que por receberem as sensaccedilotildees atraveacutes de todas as partes do corpo trazem consigo mesmas dor e prazer simultaneamente216 Tomemos pois as causas que tecircm que ver com todas as impressotildees sensiacuteveis ou natildeo sensiacuteveis relembrando a distinccedilatildeo que estabelecemos anteriormente217 entre a natureza do que se move facilmente e do que se move a custo Eacute de acordo com ela que devemos procurar tudo aquilo que temos a intenccedilatildeo de perceber

Quando ao que por natureza se movimenta facilmente sobreveacutem uma impressatildeo por mais

215 Isto eacute aplica-se o mesmo princiacutepio agraves noccedilotildees ldquoleverdquo e ldquoem cimardquo

216 Sobre a relaccedilatildeo entre prazer e dor vide Feacutedon 60b-c Filebo 51a-sqq Leis 732d-734e Repuacuteblica 584b

217Cf supra 55e-56a

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brevemente que seja as suas partiacuteculas diferentes espalham-se em ciacuterculo pelas outras partiacuteculas produzindo nelas essa mesma impressatildeo ateacute que ao atingirem o discernimento218 datildeo a conhecer a propriedade do agente Pelo contraacuterio o que eacute estaacutetico e natildeo tem nenhum movimento em ciacuterculo apenas sofre a impressatildeo e natildeo movimenta nenhuma das partiacuteculas circundantes de tal forma que em virtude de as partiacuteculas natildeo a transmitirem umas agraves outras a impressatildeo inicial permanece neles imoacutevel sem que esteja na totalidade do ser-vivo nem proporcione nenhuma sensaccedilatildeo agrave parte afectada Isto eacute o que acontece aos ossos aos cabelos e a todas as outras partes maioritariamente teacuterreas que temos em noacutes Mas o que dissemos anteriormente tem que ver sobretudo com a visatildeo e com a audiccedilatildeo porque eacute o fogo e o ar que exercem sobre eles uma influecircncia mais importante Quanto ao prazer e agrave dor eacute necessaacuterio que tenhamos em mente o seguinte uma impressatildeo violenta e em desacordo com a natureza que se gera em noacutes de forma suacutebita eacute dolorosa mas pelo contraacuterio o regresso ao estado natural de forma suacutebita eacute apraziacutevel jaacute uma impressatildeo moderada e faseada natildeo eacute sentida aplicando-se o oposto aos seus opostos Mas todas as impressotildees que se geram com facilidade satildeo extremamente sensiacuteveis poreacutem delas natildeo participam nem dor nem prazer como por exemplo as impressotildees que dizem respeito agrave visatildeo em si que como foi dito anteriormente eacute um corpo que durante o dia nos eacute aparentado De facto os cortes as queimaduras e tudo

218 to phronimon

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o resto que a afectam natildeo lhes provocam dor nem prazer quando regressa novamente agrave sua forma original embora cause sensaccedilotildees intensas e manifestas em funccedilatildeo das impressotildees que sofra e dos corpos com que de certo modo contacta quando contra eles colide pois natildeo haacute qualquer violecircncia na sua dissociaccedilatildeo e associaccedilatildeo Mas os corpos com partes maiores que cedem com relutacircncia ao que age sobre eles e transmitem os movimentos ao todo sofrem prazer e dor ndash dor quando satildeo alterados prazer quando regressam novamente ao estado original Todos os que se desvanecem a si proacuteprios gradualmente e se esvaziam mas que se enchem de forma suacutebita e em larga escala tornam-se insensiacuteveis quando se esvaziam e sensiacuteveis quando se enchem e natildeo provocam dores agrave parte mortal da alma mas sim prazeres intensos Isto eacute evidente em relaccedilatildeo a substacircncias fragrantes219 Mas todos os que satildeo alterados de forma suacutebita e regressam gradualmente e com relutacircncia ao seu estado original proporcionam sensaccedilotildees absolutamente contraacuterias agraves que atraacutes referimos eacute evidente que eacute o que acontece em relaccedilatildeo agraves queimaduras e aos cortes no corpo

Eis uma explicaccedilatildeo razoaacutevel das impressotildees comuns a todo o corpo e dos nomes que foram dados aos agentes que as geram Devemos agora tentar falar tanto quanto nos for possiacutevel do que se gera nas partes especiacuteficas do nosso corpo das suas impressotildees e mais uma vez das causas dos seus agentes Primeiro devemos esclarecer na medida do possiacutevel tudo quanto deixaacutemos

219 Semelhante ideia surge tambeacutem no Filebo (51b) e na Repuacuteblica (584b)

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por dizer nos discursos anteriores acerca dos sucos220 e das impressotildees particulares da liacutengua Eacute evidente que tambeacutem estas tal como outras se geram por meio de algumas associaccedilotildees e dissociaccedilotildees mas aleacutem disso estatildeo mais do que qualquer outra coisa relacionadas com a rugosidade e a lisura Com efeito todas as partiacuteculas terrosas que entram pelos vasos sanguiacuteneos que se prolongam ateacute ao coraccedilatildeo satildeo para a liacutengua uma espeacutecie de instrumentos de teste colidem com as partes huacutemidas e tenras da carne e ao dissolverem-se contraem e secam os vasos sanguiacuteneos221 As mais rugosas apresentam-se-nos como amargas e as que satildeo menos rugosas como azedas De entre elas as que limpam os vasos sanguiacuteneos lavam toda a superfiacutecie da liacutengua Fazem-no aleacutem da justa medida e excedem-se a ponto de dissolver parte da proacutepria natureza da liacutengua (tal como os salitres) e satildeo todas chamadas ldquopicantesrdquo ao passo que as que satildeo mais fracas do que o salitre e tecircm uma acccedilatildeo de limpeza na medida justa satildeo ldquosalgadasrdquo ndash sem amargor aacutespero e evidenciando uma sensaccedilatildeo mais amistosa

Outras que por terem partilhado do calor da boca e sido trituradas por ela satildeo inflamadas em conjunto e em sentido inverso queimam aquilo que as sobreaqueceu satildeo levadas para cima (em virtude da sua leveza) para junto da parte sensorial da cabeccedila cortando tudo o que lhes sobrevenha graccedilas agrave natureza das propriedades que

220 Cf supra 60a221 Posteriormente Aristoacuteteles defenderaacute a mesma concepccedilatildeo o

paladar estaacute sempre dependente de substacircncias em estado liacutequido (Sobre a Alma 210 422a8-35)

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todas estas substacircncias tecircm elas foram chamadas ldquoacresrdquo Por outro lado haacute partiacuteculas que foram diminuiacutedas por putrefacccedilatildeo Elas imiscuiacuteram-se nos vasos sanguiacuteneos estreitos por terem a mesma dimensatildeo que as partiacuteculas terrosas e a mesma quantidade de ar que existe nos vasos sanguiacuteneos de tal forma que fazem com que eles se movimentem e misturem uns com os outros quando estatildeo misturadas formam uma cerca e como as de um tipo se imiscuem nas de outro tipo datildeo origem a espaccedilos vazios que satildeo distendidos pelas partiacuteculas que entram Quando um espaccedilo vazio huacutemido seja terroso ou em estado puro se distende em torno do ar forma um reservatoacuterio huacutemido com ar e gera-se um espaccedilo vazio de aacutegua arredondado os que satildeo de aacutegua pura e transluacutecidos em toda a volta receberam o nome ldquobolhardquo enquanto que os que satildeo terrosos e ao mesmo tempo movimentados e efervescentes satildeo referidos com as designaccedilotildees ldquoebuliccedilatildeordquo e ldquofermentaccedilatildeordquo O responsaacutevel por estas impressotildees eacute chamado ldquoaacutecidordquo

Uma impressatildeo que seja contraacuteria ao conjunto das que acabaacutemos de falar eacute fruto de uma causa contraacuteria Sempre que a estrutura das partiacuteculas que entram em algo liacutequido eacute de natureza afim agrave da liacutengua aquelas alisam-na lubrificando as rugosidades relaxando aquilo que foi comprimido em desacordo com a natureza e comprimindo aquilo que foi relaxado em desacordo com a natureza e restabelecendo tudo tanto quanto possiacutevel de acordo com a natureza por todos estes remeacutedios para as impressotildees violentas serem em tudo apraziacuteveis e amigaacuteveis eles foram chamados ldquodocesrdquo

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Eis o que haacute a dizer sobre estes assuntos Em relaccedilatildeo agrave propriedade que diz respeito agraves narinas natildeo haacute formas a definir Eacute que todos os odores satildeo semigerados e acontece que natildeo haacute qualquer forma com dimensatildeo para ter um cheiro Pelo contraacuterio os nossos vasos sanguiacuteneos tecircm uma constituiccedilatildeo demasiado estreita para os geacuteneros de terra e de aacutegua e demasiado larga para os de fogo e ar razatildeo pela qual ningueacutem nunca sentiu nenhum cheiro destes corpos pois os cheiros satildeo gerados a partir daquilo que se liquefaz apodrece se dissolve ou evapora Com efeito os cheiros satildeo gerados durante o estado intermeacutedio em que a aacutegua se estaacute a transformar em ar ou o ar em aacutegua e todos eles satildeo vapor ou nevoeiro Entre eles o nevoeiro eacute o que passa de ar para aacutegua e o vapor eacute o que passa de aacutegua para ar daiacute que todos os cheiros sejam mais finos do que a aacutegua e mais espessos do que o ar Isso eacute evidente quando um obstaacuteculo se interpotildee agrave respiraccedilatildeo de algueacutem e outra pessoa lhe aspira o sopro respiratoacuterio com forccedila Nenhum cheiro eacute filtrado juntamente com ele e passa somente um sopro respiratoacuterio livre de cheiros Deste modo as suas variedades formam dois grupos desprovidos de nome visto que natildeo advecircm de uma determinada quantidade de espeacutecies simples entatildeo agraves uacutenicas duas que com justiccedila satildeo manifestas chamemos-lhes ldquoapraziacutevelrdquo e ldquodesagradaacutevelrdquo uma exaspera e constringe toda a cavidade que em noacutes estaacute situada entre a cabeccedila e o umbigo a outra amacia esta zona e devolve-lhe alegremente o seu estado natural

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Analisemos agora a terceira parte sensiacutevel que haacute em noacutes a que diz respeito agrave audiccedilatildeo Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressotildees que lhe dizem respeito Estabeleccedilamos que de um modo geral o som eacute uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos ceacuterebro e sangue ateacute agrave alma enquanto que a audiccedilatildeo eacute o movimento dessa pancada que comeccedila na cabeccedila e termina na regiatildeo do fiacutegado Quando o movimento eacute raacutepido o som eacute agudo quando eacute mais lento o som eacute mais grave222 se o movimento for constante o som eacute uniforme e suave no caso contraacuterio seraacute aacutespero Se o movimento for possante o som seraacute amplo caso contraacuterio seraacute breve No que trata agrave harmonia entre os sons eacute inevitaacutevel que falemos dela em discursos posteriores223

Resta-nos ainda um quarto geacutenero de sensaccedilatildeo que eacute forccediloso que determinemos pois envolve em si mesmo um grande nuacutemero de variedades a todas elas chamaacutemos ldquocoresrdquo Trata-se de uma chama que emana de todos os corpos cujas partiacuteculas tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de visatildeo de modo a produzir a sensaccedilatildeo nos discursos anteriores dissemos algo sobre as causas da origem da visatildeo224 No que respeita agraves cores eis a explicaccedilatildeo que estaacute mais de acordo com a verosimilhanccedila e que parece ser adequada para expor detalhadamente As partiacuteculas que vecircm de outros corpos e chocam com o raio de visatildeo satildeo por vezes mais pequenas por vezes maiores e por outras tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de

222 Princiacutepio atribuiacutedo a Arquitas de Tarento (DK 47B1)223 Cf infra 79e-80c224 Cf supra 45b-46c

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visatildeo As que satildeo do mesmo tamanho satildeo insensiacuteveis e a essas chamamos-lhe ldquotransparentesrdquo mas as maiores que associam o raio de visatildeo e as mais pequenas que o dissociam satildeo irmatildes das que parecem quentes e frias agrave carne e amargas agrave liacutengua assim chamamos-lhes ldquoacresrdquo porque aquecem Quanto ao branco e ao preto satildeo impressotildees semelhantes agravequelas mas satildeo geradas noutro oacutergatildeo motivo pelo qual aparecem de um modo diferente Eis o modo como devemos nomeaacute-las o ldquobrancordquo eacute o que dilata o raio visual e o ldquopretordquo eacute o que faz o contraacuterio Quando se trata de um movimento mais pungente e de um outro geacutenero de fogo que chocam com o raio de visatildeo e o dissociam ateacute aos olhos irrompendo com violecircncia pelas entradas dos olhos dissolvendo-as fazem correr delas essa torrente de aacutegua e fogo a que chamamos ldquolaacutegrimasrdquo Quando este movimento que eacute proacuteprio fogo se encontra com o fogo que vem no sentido oposto um deles salta como um relacircmpago e o outro entra e extingue-se entre a humidade gerando-se neste alvoroccedilo todo o tipo de cores a esta impressatildeo chamamos ldquoofuscaccedilatildeordquo e agravequilo que a produz damos os nomes ldquobrilhanterdquo e ldquoresplandecenterdquo Poreacutem quando o geacutenero de fogo intermeacutedio entre estes dois chega agrave parte huacutemida dos olhos e se mistura com ela natildeo eacute resplandecente em virtude de a humidade se misturar com o claratildeo do fogo produz-se uma cor sanguiacutenea a que damos o nome ldquoencarnadordquo Misturando o encarnado com o brilhante e o branco gera-se o amarelo em que proporccedilatildeo satildeo misturados natildeo seria prudente explicaacute-lo mesmo que algueacutem soubesse pois a partir deles

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natildeo seria possiacutevel expressar razoavelmente nem uma necessidade nem um discurso verosiacutemil O encarnado misturado com o preto e o branco daacute puacuterpura ou bistre quando esta mistura eacute queimada e lhe eacute acrescentado mais preto O fulvo gera-se com a mistura de amarelo e cinzento o cinzento com a mistura de branco e preto e o ocre de branco misturado com amarelo Quando se combina branco com brilhante e se mergulha esta mistura em preto carregado produz-se o azul-escuro o azul-escuro misturado com branco daacute azul-claro e o fulvo misturado com preto daacute verde225

Quanto agraves restantes cores eacute relativamente evidente a partir destes exemplos a que misturas se devem assemelhar de modo a salvaguardar a narrativa verosiacutemil Mas se algueacutem quiser examinaacute-las por meio de um teste praacutetico estaria a ignorar a distinccedilatildeo entre a natureza humana e a divina porque enquanto um deus eacute suficientemente conhecedor e ao mesmo tempo capaz226 de fazer a mistura de muitas coisas em conjunto numa soacute e novamente de dissolver o que eacute uno em muacuteltiplas coisas nenhum homem eacute neste momento nem alguma vez seraacute capaz de fazer qualquer das duas operaccedilotildees

Uma vez criadas todas estas coisas deste modo e de acordo com a necessidade o demiurgo do que eacute mais belo e melhor colocou-as como acessoacuterias naquilo que eacute gerado de modo a engendrar o deus auto-suficiente e mais perfeito servindo-se a esse respeito das causas

225 Sobre as relaccedilotildees entre estas e outras cores vide Teofrasto Histoacuteria das Plantas 625

226 hikanocircs epistamenos ama kai dynatos

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instrumentais mas foi ele proacuteprio que forjou o bom funcionamento em tudo o que eacute deveniente Por isso eacute necessaacuterio distinguir duas espeacutecies de causas a necessaacuteria e a divina E eacute a divina que devemos procurar em tudo com vista agrave obtenccedilatildeo de uma vida feliz na medida em que a nossa natureza o admita quanto agrave necessaacuteria eacute em funccedilatildeo da divina que a procuramos tendo em mente que sem as causas necessaacuterias natildeo nos podemos ocupar das proacuteprias causas divinas as uacutenicas com que nos preocupamos nem apreendecirc-las nem participar delas de qualquer modo

Assim tal como os carpinteiros tecircm a madeira jaacute preparada para trabalhar temos noacutes agora tambeacutem agrave nossa disposiccedilatildeo os geacuteneros das causas jaacute filtrados a partir dos quais eacute forccediloso que teccedilamos o resto do discurso Regressemos por um breve instante de novo ao princiacutepio do discurso e voltemos rapidamente ao ponto a partir do qual aqui chegaacutemos tentemos providenciar uma cabeccedila (como final) agrave nossa narrativa227 que esteja em harmonia com o que dissemos ateacute aqui Eacute que tal como foi dito de princiacutepio228 em virtude de estas coisas estarem desordenadas o deus criou em cada uma delas uma medida que servisse de referecircncia tanto a cada uma em relaccedilatildeo a si mesma como tambeacutem em relaccedilatildeo agraves outras de modo a serem proporcionais Essas proporccedilotildees eram tantas quantas podiam ser e possuiacuteam analogia e proporcionalidade Eacute que ateacute agravequele momento nenhuma delas tomava parte

227 A mesma imagem eacute utilizada no Goacutergias (505c-d) e nas Leis (752a)

228 Cf 30a 53a-b 56c

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na ordem a natildeo ser que fosse por acaso e nenhuma era inteiramente digna de ser chamada do modo que agora satildeo chamadas como ldquofogordquo ldquoaacuteguardquo e qualquer um dos outros Mas tudo isto o deus comeccedilou por organizar e em seguida constituiu o universo a partir delas ndash um ser-vivo uacutenico que conteacutem em si mesmo todos os outros seres-vivos mortais e imortais E ele mesmo se tornou demiurgo dos seres divinos enquanto que atribuiu o encargo de fabricar os mortais agravequeles que tinham sido gerados por si Estes imitando-o depois de terem recebido o princiacutepio imortal da alma tornearam para ele um corpo mortal a que deram como veiacuteculo todo o corpo e nele construiacuteram uma outra forma de alma mortal que conteacutem em si mesma impressotildees terriacuteveis e inevitaacuteveis primeiro o prazer o maior engodo do mal em seguida as dores que fogem do bem e ainda a audaacutecia e o temor dois conselheiros insensatos a paixatildeo difiacutecil de apaziguar e a esperanccedila que induz em erro Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade229

Por este motivo temendo conspurcar a parte divina o que natildeo era de todo inevitaacutevel estabeleceram a parte mortal numa outra morada do corpo separada daquela e construiacuteram um istmo e um limite entre

229 Tal como Brisson (2001 p 266 n 599) cremos que seraacute este o sentido na medida em que a estrutura humana foi formada com uma parte de Necessidade que apesar de irracional se revela essencial agrave sua sobrevivecircncia neste caso trata-se do desejo amoroso que potencia a procriaccedilatildeo e garante a perenidade da espeacutecie

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a cabeccedila e o peito ao estabelecerem no meio deles o pescoccedilo para que fosse um separador No peito tambeacutem chamado toacuterax sediaram a parte mortal da alma Visto que uma parte dela eacute por natureza mais forte e outra mais fraca construiacuteram uma divisoacuteria na cavidade do toacuterax (70a) como se delimitam os aposentos das mulheres separados dos dos homens Entre elas puseram o diafragma a servir de barreira Assim estabeleceram a parte da alma que participa da coragem e do fervor que eacute adepta da vitoacuteria230 mais perto da cabeccedila entre o diafragma e o pescoccedilo para que escutasse a razatildeo231 e em conjunto com ela refreasse pela forccedila a espeacutecie dos desejos sempre que estes natildeo quisessem de modo algum obedecer prontamente agraves ordens e aos decretos da cidadela do alto Quanto ao coraccedilatildeo o entroncamento dos vasos sanguiacuteneos e a fonte do sangue que circula com energia por todos os membros estabeleceram-no na morada dos guardiotildees para que quando o sentimento de coacutelera fervilhasse por a razatildeo anunciar que uma acccedilatildeo injusta a partir de causas exteriores ou que alguma se prepara a partir do iacutentimo causada pelos desejos tudo aquilo que no corpo haacute de sensiacutevel apreendesse imediatamente atraveacutes de todos os canais estreitos as advertecircncias e ameaccedilas estivesse atento obedecesse em absoluto e desta forma permitisse que a parte mais nobre prevalecesse sobre tudo No que respeita ao bater do coraccedilatildeo perante a expectativa de perigos e o despertar de paixotildees jaacute que sabiam de antematildeo que era por causa

230 Trata-se do thymos a parte passional da alma231 logos

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do fogo que toda esta dilataccedilatildeo se produzia nas pessoas encolerizadas os deuses engendraram um reforccedilo implantando a forma do pulmatildeo que primeiro que tudo eacute mole e exangue e por outro lado tem no seu interior cavidades perfuradas como as de uma esponja para que ao receberem o ar e as bebidas232 arrefecessem o coraccedilatildeo e o dotassem de focirclego e acalmia quando aquece Por isso talharam um canal desde a traqueia ateacute ao pulmatildeo e estabeleceram-no em volta do coraccedilatildeo como uma almofada para que quando a paixatildeo se desencadeasse dentro dele ressaltasse contra algo que amortece e arrefece para que se esforccedilasse menos e juntamente com as paixotildees pudesse submeter-se mais facilmente agrave razatildeo233

Quanto agrave parte da alma que deseja comida e bebida e tudo aquilo de que o corpo tem necessidade por natureza essa parte eles estabeleceram entre o diafragma e o limite do umbigo fabricando em toda esta regiatildeo uma espeacutecie de manjedoura para o sustento do corpo Foi nesse lugar que aprisionaram esta parte da alma como se fosse uma criatura selvagem234 mas que era necessaacuterio alimentar para que no futuro pudesse existir uma espeacutecie mortal De modo a que estivesse sempre situada junto agrave manjedoura e estabelecida bem mais longe do centro de decisotildees provocando nele o menos possiacutevel de distuacuterbios e clamores e a parte

232 Note-se que o sistema digestivo descrito por Timeu prevecirc que os alimentos e os liacutequidos ingeridos passem pelos pulmotildees

233 logos234 Sobre a necessidade de aprisionar a alma vide Repuacuteblica

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mais poderosa pudesse deliberar com tranquilidade sobre tudo o que respeita ao conjunto e a cada parte atribuiacuteram-lhe esta arrumaccedilatildeo espacial Estavam conscientes de que ela natildeo conseguia compreender a razatildeo e se de algum modo apreendesse alguma das sensaccedilotildees natildeo estaria na sua natureza a capacidade de perceber algo que pertencesse agrave razatildeo em vez disso de noite e de dia seria extremamente influenciada por representaccedilotildees e simulacros235 De acordo com isto um deus delineou um plano conforme agrave sua intenccedilatildeo constituiu a espeacutecie do fiacutegado e estabeleceu-o na morada desta parte da alma Fabricou-o espesso liso e brilhante e contendo doce e amargor para que a potecircncia das noccedilotildees ao transportaacute-las do intelecto ateacute ele como num espelho que recebe impressotildees e fornece reflexos a quem o contemplar o atemorizasse ao trazer-lhe ameaccedilas terriacuteveis e fazendo uso da sua parte congeacutenere que tem amargor espalhasse o amargo por todo ele e fizesse aparecer as cores da biacutelis contraindo-o ateacute se fazer aacutespero e todo rugoso vergando e contraindo o lobo a partir da posiccedilatildeo correcta e obstruindo e fechando a vesiacutecula e as entradas de modo a provocar dores e naacuteuseas Em sentido oposto quando algum movimento inspiratoacuterio reflecte do pensamento236 simulacros de suavidade converte o amargor em tranquilidade pois esse movimento natildeo quer ser anexado a uma natureza contraacuteria agrave sua Em vez disso com recurso agrave doccedilura que estaacute por natureza presente no fiacutegado corrige tudo

235 hypo de eidocirclocircn kai phantasmatocircn236 dianoia

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para ficar correcto liso e livre tornando agradaacutevel e de bom humor a parte da alma que estaacute estabelecida junto do fiacutegado passando a noite de forma tranquila e fazendo uso da divinaccedilatildeo durante o sono dado que natildeo participa da razatildeo nem do pensamento237 Aqueles que nos constituiacuteram ao lembrarem-se da ordem do seu pai que lhes tinha mandado fazer o geacutenero mortal da melhor forma possiacutevel dentro das suas capacidades rectificaram as suas deficiecircncias deste modo (com o estabelecimento da divinaccedilatildeo) para que de algum modo ele tivesse ligaccedilatildeo agrave verdade Eis um indiacutecio suficiente de que o deus concedeu a divinaccedilatildeo agrave insensatez humana eacute que ningueacutem participa da divinaccedilatildeo inspirada e verdadeira em consciecircncia mas sim quando o seu pensamento238 eacute suspenso durante o sono ou pela doenccedila ou se for adulterado por qualquer tipo de deliacuterio Por outro lado eacute em consciecircncia que o Homem deve compreender o que foi dito ndash depois de o trazer de novo agrave memoacuteria ndash em sonhos ou em estado de vigiacutelia sob o efeito da natureza da divinaccedilatildeo e do deliacuterio quanto aos simulacros que tenha visto deve por meio da reflexatildeo explicar de que modo e por que motivo cada um deles possa significar algo de mau ou de bom quer pertenccedila ao futuro ao passado ou ao presente Enquanto aquele que estaacute possuiacutedo se mantiver neste estado natildeo cumpriraacute a tarefa de distinguir por si proacuteprio o que lhe foi dado a conhecer ou a ouvir pois estaacute certo o velho dito ldquoPertence somente ao saacutebio cumprir a sua tarefa de se conhecer a si mesmordquo239 Daiacute

237 logou kai phronecircseocircs ou meteiche238 phronecircsis239 Eacute logo no Caacutermides (161b 164d) que eacute referida a

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que a norma tenha estabelecido que o geacutenero dos profetas seja inteacuterprete das divinaccedilotildees inspiradas Haacute quem lhes chame ldquoadivinhosrdquo ignorando por completo que eles interpretam revelaccedilotildees e apariccedilotildees por meio de enigmas e de modo algum satildeo adivinhos pelo que seraacute mais justo chamar-lhes ldquoprofetas de assuntos divinatoacuteriosrdquo

Eacute por isto que a natureza do fiacutegado eacute assim e foi graccedilas agrave divinaccedilatildeo que lhe foi atribuiacutedo este lugar que descrevemos Aleacutem disso eacute ainda enquanto cada criatura estaacute viva que este oacutergatildeo fornece os sinais mais visiacuteveis jaacute que depois de lhe ter sido privada a vida torna-se cego e os sinais que fornece satildeo muito obscuros para terem uma significaccedilatildeo evidente Mas a estrutura do oacutergatildeo vizinho240 e o facto de o lugar desta entranha ser agrave esquerda eacute em favor do fiacutegado para o manter sempre brilhante e limpo como se fosse um trapo de limpar o espelho que estaacute sempre agrave matildeo e disponiacutevel para ser utilizado Por isso sempre que por causa de uma doenccedila do corpo se geram impurezas junto do fiacutegado a porosidade do baccedilo depura-as e absorve-as todas pois eacute feito de uma trama permeaacutevel e exangue Daiacute que quando fica preenchido por aquilo que filtra aumenta de tamanho e fica ulcerado poreacutem quando o corpo eacute purgado diminui de tamanho e retoma a sua forma original

Portanto no que diz respeito agrave alma se noacutes falaacutemos com verdade sobre a sua parte mortal sobre a divina de que modo com a colaboraccedilatildeo de quecirc e por que razatildeo obrigatoriedade de o filoacutesofo procurar cumprir a maacutexima deacutelfica ldquoconhece-te a ti mesmordquo

240 O baccedilo

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foi estabelecida separadamente somente o poderemos afirmar com certeza depois de um deus o confirmar Que o que noacutes dissemos eacute verosiacutemil devemos arriscar a declaraacute-lo agora e mais ainda quando reflectirmos sobre essa mateacuteria E declaremo-lo entatildeo

De acordo com os mesmos pressupostos devemos abordar agora o que se segue como foi gerado o resto do corpo Seraacute mais adequado seguir este raciociacutenio em vez de qualquer outro para explicar a sua constituiccedilatildeo Os que constituiacuteram a nossa espeacutecie estavam a par da licenciosidade que haveria em noacutes em relaccedilatildeo agrave bebida e agrave comida e que por causa da gula consumiriacuteamos muito mais do que a medida necessaacuteria Para que natildeo tiveacutessemos uma morte raacutepida por causa das doenccedilas e para que a espeacutecie dos mortais ainda incompleta natildeo acabasse de imediato ndash uma vez previstas estas coisas ndash os deuses estabeleceram o chamado baixo ventre como receptaacuteculo da bebida e da comida supeacuterfluas e enrolaram em volta dele os intestinos para que os alimentos natildeo passassem pelo corpo rapidamente e isso obrigasse a que ele tivesse necessidade de outro alimento tornando-se insaciaacutevel Por causa da gula a espeacutecie humana tornar-se-ia completamente estranha agrave filosofia e agraves Musas e seria desobediente agrave parte mais divina que haacute em noacutes

No que respeita aos ossos agrave carne e agrave natureza deste tipo de elementos orgacircnicos eis o que se passou Para todas as estruturas o ponto de partida foi a geraccedilatildeo da medula De facto os laccedilos da vida desde que a alma estaacute unida ao corpo foram presos a ela e constituiacuteram a raiz da espeacutecie mortal mas a medula em si foi gerada

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a partir de outras substacircncias Com efeito de entre os triacircngulos os primeiros em regularidade e lisura que em virtude da sua precisatildeo eram mais capazes de produzir fogo aacutegua ar e terra o deus escolheu-os separadamente dos outros geacuteneros misturou-os uns com os outros na medida certa concebendo uma mistura de sementes para todo a espeacutecie mortal e produziu a medula a partir deles Em seguida plantou e aprisionou nela os geacuteneros de alma e na sua distribuiccedilatildeo inicial dividiu imediatamente a medula em figuras equivalentes em nuacutemero e qualidade aos das figuras que estava destinado que cada espeacutecie tivesse Depois moldou em forma de ciacuterculo perfeito essa parte da medula a qual semelhante a um terreno lavrado havia de receber a semente divina e chamou-lhe ldquoenceacutefalordquo de tal forma que quando cada ser-vivo estivesse acabado o recipiente que o contivesse seria a cabeccedila Aquilo que era suposto conter o resto da alma (a sua parte mortal) dividiu-o em figuras redondas e ao mesmo tempo alongadas a este conjunto deu o nome ldquomedulardquo e lanccedilando a partir delas os laccedilos de toda a alma como a partir de acircncoras formou em torno dela todo o nosso corpo tendo primeiro construiacutedo agrave volta de todo o conjunto uma protecccedilatildeo feita de osso

Quanto agrave constituiccedilatildeo do osso ela processou-se do seguinte modo depois de ter peneirado terra pura e lisa misturou-a e humedeceu-a com medula em seguida pocirc-la no fogo depois mergulhou-a em aacutegua pocirc-la novamente no fogo e outra vez em aacutegua Repassando-a vaacuterias vezes deste modo num e noutro tornou-a impassiacutevel de ser dissolvida por ambos Foi desta mistura

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que se serviu para tornear uma esfera oacutessea agrave volta da cabeccedila na qual deixou ficar uma saiacuteda estreita Em redor da medula do pescoccedilo e do dorso estendeu as veacutertebras semelhantes a gonzos que moldou a partir da mesma mistura comeccedilando pela cabeccedila e atravessando todo o dorso Cercou toda a semente para deste modo a manter a salvo com uma vedaccedilatildeo peacutetrea onde criou articulaccedilotildees servindo-se das propriedades do Outro que colocou no meio deles em virtude do movimento e da flexibilidade Mas prevendo que a condiccedilatildeo da natureza oacutessea seria mais fragmentaacutevel do que devia ser e muito inflexiacutevel ndash se fosse aquecida e novamente arrefecida gangrenaria rapidamente ndash e que a semente dentro dela se destruiria concebeu deste modo e por estes motivos o geacutenero dos tendotildees e da carne para que unindo todos os membros com os tendotildees que distendem e contraem em torno das veacutertebras o corpo se pudesse dobrar e estender A carne seria uma protecccedilatildeo contra as queimaduras e um obstaacuteculo para o frio e ainda para as quedas semelhante a uma almofada que cede de forma mole e suave ao peso dos corpos Por conter dentro de si proacutepria uma humidade quente que durante o Veratildeo seria exsudada produziria no exterior de todo o corpo uma agradaacutevel frescura e durante o Inverno novamente por meio deste fogo repeliria adequadamente as investidas do frio que o cerca do exterior Tendo isto em consideraccedilatildeo aquele que nos moldou como se trabalhasse a cera fez uma mistura e uma combinaccedilatildeo harmoniosa de aacutegua fogo e terra aos quais acrescentou um fermento composto de

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aacutecido e de sal e constituiu a carne mole e suculenta No que respeita agrave natureza dos tendotildees de osso e

de carne sem fermento misturou-os num soacute composto com propriedades intermeacutedias agravequeles dois servindo-se da cor amarela Daiacute que os tendotildees apresentem a propriedade de serem mais compactos e viscosos do que a carne mas mais moles e huacutemidos do que os ossos Com eles o deus envolveu os ossos e a medula depois de ter unido os ossos uns com os outros aos tendotildees de seguida cobriu todos eles com carne por cima Os ossos que continham mais alma envolveu-os com muito menos carne e os que tinham menos alma dentro de si envolveu-os com muita e mais compacta Junto agraves articulaccedilotildees dos ossos onde a razatildeo241 mostrava que natildeo havia qualquer necessidade de carne ele fez crescer a carne com pouca espessura para que os corpos natildeo se fizessem difiacuteceis de carregar e se tornassem avessos ao movimento pois impediriam as flexotildees e por outro lado para que as carnes abundantes e excessivamente densas compactadas umas com as outras natildeo causassem insensibilidade em virtude da sua firmeza nem fizessem os corpos muito avessos agrave memoacuteria e torpes de pensamento242 Eacute por isso que as coxas as pernas e a zona das ancas os ossos da zona do braccedilo e do antebraccedilo e todos os que em noacutes satildeo desprovidos de articulaccedilatildeo isto eacute todos os ossos que por terem pouca alma na sua medula satildeo vazios de pensamento243 todas estas zonas estatildeo completamente preenchidas de carne Pelo contraacuterio as partes com

241 logos242 dysmnecircmoneutotera kai kocircphotera ta peri tecircn dianoian243 phronecircsis

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pensamento tecircm menos carne ndash excepto quando o deus constituiu alguma parte de carne autoacutenoma por causa dos sentidos como a espeacutecie da liacutengua por exemplo mas na maior parte dos casos passou-se daquele modo Eacute que a natureza gerada da Necessidade e por ela criada de modo algum admite ao mesmo tempo uma estrutura oacutessea compacta muita carne e acuidade sensorial Mais do que todas seria a estrutura que circunda a cabeccedila que teria estes atributos contanto que elas pudessem ocorrer ao mesmo tempo e por outro lado se o geacutenero dos homens tivesse uma cabeccedila coberta de carne e tendotildees ndash isto eacute forte ndash granjearia uma vida duas ou mais vezes maior mais saudaacutevel e mais livre de dores do que agora Nesse momento os demiurgos da nossa geraccedilatildeo ao reflectirem sobre se o geacutenero que estavam para criar havia de ter uma vida mais longa e pior se uma mais breve e melhor e decidiram que por todos os motivos deviam preferir uma vida mais curta que fosse melhor a uma mais longa que seria mais trivial Daiacute que natildeo tenham recobrido a cabeccedila com carne e tendotildees mas sim com um osso fino pois ela natildeo se destinava a fazer qualquer flexatildeo Foi por todas estas razotildees que a cabeccedila aplicada a todos os homens eacute mais proacutepria para sentir e mais dada ao pensamento e por outro lado muito fraacutegil No que respeita aos tendotildees foi deste modo e por estes motivos que o deus os pocircs em ciacuterculo ao fundo da cabeccedila colando-os uniformemente agrave volta do pescoccedilo e lhes uniu as extremidades dos maxilares por baixo da natureza do rosto Quanto aos outros distribuiu-os por todos os membros unindo cada articulaccedilatildeo agrave sua articulaccedilatildeo contiacutegua

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Em relaccedilatildeo agraves propriedades da nossa boca foi com vista ao que eacute necessaacuterio e melhor que aqueles que a apetrecharam a apetrecharam de dentes liacutengua e laacutebios segundo a forma como hoje estaacute disposta concebendo a entrada com vista agrave necessidade e a saiacuteda com vista ao melhor eacute que tudo quanto entra dado ao corpo como alimento diz respeito ao necessaacuterio e o fluxo de palavras que corre para o exterior e auxilia o pensamento244 eacute o mais belo e excelente de todos os fluxos

Natildeo era possiacutevel deixar a cabeccedila calva soacute com o osso por causa das intempeacuteries de cada uma das estaccedilotildees nem por outro lado consentir que ela ficasse oculta por uma massa de carne que a tornaria muda e insensiacutevel Como a natureza do que tem carne natildeo secasse foi separada dela uma grande camada superficial a que agora chamamos pele Esta camada em virtude da humidade que circunda o ceacuterebro uniu-se a si mesma e propagou-se em ciacuterculos ateacute que cobriu a cabeccedila a humidade que irrompia sob as costuras irrigou-a e encerrou a camada no cume da cabeccedila como se tivesse dado um noacute Haacute variadas formas de sutura em funccedilatildeo da acccedilatildeo das oacuterbitas da alma e do alimento essas suturas satildeo em maior nuacutemero quando essas forccedilas se opotildeem muito umas agraves outras e em menor quando se opotildeem menos Atraveacutes do fogo a divindade perfurou toda a pele em ciacuterculos e as secreccedilotildees eram expelidas ao passarem pela pele para o exterior tudo quanto fosse huacutemido e quente em estado puro saiacutea Por outro lado a mistura constituiacuteda pelos mesmos elementos que a pele

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elevou-se pelo movimento e estendeu-se muito para fora pois tinha uma finura igual agrave das perfuraccedilotildees Mas em virtude da sua lentidatildeo foi empurrada novamente do exterior para o interior pelo ar circundante Encheu a pele e ganhou raiacutezes debaixo dela

Foi por causa destes fenoacutemenos que nasceu na pele o geacutenero do cabelo fibroso e congeacutenere da pele mas mais soacutelido e mais denso por causa da compressatildeo provocada pelo arrefecimento esse processo de compressatildeo ocorre quando cada cabelo eacute separado da pele e arrefece Foi deste modo que aquele que nos fez produziu uma cabeccedila cabeluda servindo-se das causas que referimos por considerar que em vez de carne era necessaacuterio haver uma cobertura agrave volta do ceacuterebro (tendo em vista a sua seguranccedila) que fosse leve e capaz de lhe garantir sombra no Veratildeo e abrigo no Inverno sem que se gerasse qualquer obstaacuteculo que impedisse a capacidade sensorial No local agrave volta dos dedos onde se entrecruza o tendatildeo a pele e o osso a mistura destes trecircs quando secou por completo deu origem a uma uacutenica pele dura que reunia todos os outros ndash fabricada com estas causas acessoacuterias mas produzida com o pensamento como causa principal245 e tendo em vista aqueles que viriam a seguir Eacute que aqueles que nos constituiacuteram tinham conhecimento de que um dia as mulheres e os outros animais selvagens seriam gerados a partir dos homens e tambeacutem sabiam que muitas dessas criaturas teriam que se servir das garras para muitos fins daiacute que ao mesmo tempo que eram gerados os homens

245 tecirc de aitiocirctatecirc dianoia eirgasmenon

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eles fizeram um esboccedilo das garras Foi deste modo e por estes motivos que criaram a pele os pecirclos e as unhas nas extremidades dos membros

Logo que todas as partes e todos os membros do ser-vivo mortal ficaram naturalmente combinados seria forccediloso que este tivesse uma vida exposta ao fogo e ao ar Visto que ele seria consumido e desgastado e por causa disso pereceria entatildeo os deuses conceberam um auxiacutelio para ele Criaram uma natureza congeacutenita da humana tendo misturado outras sensaccedilotildees com outras figuras de modo a que resultasse um outro ser Trata-se das aacutervores das plantas e das sementes actualmente educadas entre noacutes e domesticadas pela agricultura poreacutem antigamente existiam somente geacuteneros bravios os quais eram mais velhos do que os dos nossos dias A tudo quanto participe da vida podemos chamar-lhe correctamente ser-vivo segundo parece Poreacutem esta espeacutecie de que falamos participa da terceira forma de alma246 que estaacute estabelecida entre o diafragma e o umbigo como dissemos e nada tem que ver com a opiniatildeo com o raciociacutenio ou com o intelecto mas sim com a sensaccedilatildeo de prazer ou de dor que acompanha os apetites247 De facto manteacutem-se passiva em relaccedilatildeo a tudo rodando ela proacutepria em si mesma e em torno de si mesma248 repelindo o movimento do exterior e fazendo

246 Trata-se da parte apetitiva (epithymia)247 Ao fazer derivar a alma das plantas da terceira forma de

alma Timeu justifica assim o facto de os seres vegetais estarem desprovidos de pensamento ainda que sejam duais

248 Tambeacutem no Fedro (245c-d) eacute sublinhado o movimento da alma em torno de si mesma

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uso do que eacute seu congeacutenere pois a sua geraccedilatildeo natildeo lhe permitiu perceber por natureza nada de si proacutepria nem raciocinar Por isso ainda que tenha vida e natildeo seja nada senatildeo um ser-vivo manteacutem-se estaacutetica e enraizada privada de movimento proacuteprio

Depois de os seres mais poderosos plantarem todos estes geacuteneros como alimento para os mais fracos (noacutes) equiparam o nosso proacuteprio corpo com canais tal como se talham regos nos jardins para que fosse como que irrigado por uma torrente que o inunda Primeiro talharam dois canais escondidos por baixo do ponto onde se juntam a pele e a carne os vasos sanguiacuteneos dorsais249 (que satildeo dois) porque acontece que o corpo eacute duplo tem um lado direito e um esquerdo Lanccedilaram estes vasos sanguiacuteneos ao longo da coluna encerrando entre eles a medula geratriz250 para que se desenvolvesse ao maacuteximo e fluindo em abundacircncia dali para os outros locais a corrente gerada pudesse providenciar uma irrigaccedilatildeo uniforme Em seguida dividiram os vasos sanguiacuteneos agrave volta da cabeccedila e enlaccedilaram as extremidades de modo a ficarem enrolados uns nos outros flectindo os do lado direito para o lado esquerdo do corpo e os do lado esquerdo para o lado direito de modo a que fizessem uma ligaccedilatildeo com a pele entre a cabeccedila e o corpo jaacute que esta natildeo estava envolvida com tendotildees em ciacuterculo no topo e para que todo o corpo distinguisse o efeito das sensaccedilotildees provenientes de cada uma das partes

249 A arteacuteria aorta e a veia cava (inferior e superior)250 Espinal medula

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Logo de seguida os deuses prepararam a irrigaccedilatildeo da forma que se segue perceberemo-la mais facilmente se concordarmos de antematildeo com isto todos os corpos constituiacutedos a partir de partiacuteculas mais pequenas satildeo impermeaacuteveis aos de partiacuteculas maiores e os de partiacuteculas maiores natildeo conseguem ser impermeaacuteveis aos de partiacuteculas mais pequenas de todos os geacuteneros o fogo eacute o que eacute constituiacutedo por partiacuteculas mais pequenas daiacute que atravesse a estrutura da aacutegua da terra e do ar enquanto nada eacute impermeaacutevel a ele Devemos ter em mente que se passa o mesmo com o nosso abdoacutemen251 quando a comida e a bebida caem dentro dele ficam retidos no entanto o sopro respiratoacuterio e o fogo natildeo conseguem pois satildeo constituiacutedos por partes mais pequenas do que as da constituiccedilatildeo do abdoacutemen Portanto o deus serviu-se deles para fazer a irrigaccedilatildeo desde o toacuterax ateacute aos vasos sanguiacuteneos tecendo uma tranccedila de ar e de fogo semelhante a uma nassa252 com dois funis agrave entrada e fez um desses dois bifurcado a partir destes funis estendeu uma espeacutecie de junco em ciacuterculos por toda a tranccedila ateacute agraves extremidades Todo o interior do entranccedilado era constituiacutedo por fogo enquanto que os funis e o invoacutelucro tinham a forma do ar Pegando nele colocou-o da seguinte forma no interior do ser-vivo que moldava Um dos funis largou-o na boca Como esse era o bifurcado esticou uma das ramificaccedilotildees ateacute ao pulmatildeo pela traqueia abaixo e a outra ateacute ao abdoacutemen ao longo da

251 koilia Este termo designa toda a cavidade toraacutexica que inclui os sistemas digestivo e respiratoacuterio

252 Uma espeacutecie de camaroeiro utilizado pelos pescadores para reter o peixe

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traqueia a outra dividiu-a e fez passar cada uma das duas partes em conjunto pelos canais do nariz de tal forma que visto que a segunda natildeo passa pela boca todos os fluxos daquela satildeo cumpridos por esta Quanto ao resto da nassa o invoacutelucro ele fecirc-la crescer agrave volta de toda a cavidade do nosso corpo e fez tudo de forma a que umas vezes todo ele fluiacutesse docemente pelos funis ndash os quais satildeo feitos de ar ndash e outras vezes os funis se esvaziassem Visto que o corpo eacute permeaacutevel fez por outro lado que a tranccedila entrasse por ele e novamente saiacutesse Jaacute os raios de fogo encerrados dentro dele eles seguiriam o ar de um lado para o outro e isto natildeo cessaria enquanto o ser-vivo mortal mantivesse a sua constituiccedilatildeo Foi por isso que aquele que estabeleceu as designaccedilotildees se referiu a isto pondo-lhes os nomes ldquoinspiraccedilatildeordquo e ldquoexpiraccedilatildeordquo Todas estas acccedilotildees e impressotildees foram geradas no nosso corpo para que ele sendo irrigado e refrescado se alimentasse e vivesse Eacute que sempre que a respiraccedilatildeo se dirige de dentro para fora e de fora para dentro o fogo unido ao seu interior segue-a Neste constante vaiveacutem entra pelo abdoacutemen e apropria-se da comida e da bebida dissolve-os dividindo-os em pequenas partes leva-os pelos poros por onde se desloca e despeja-os nos vasos sanguiacuteneos como a aacutegua de uma fonte em canais e faz fluir pelo corpo as torrentes dos vasos sanguiacuteneos como num aqueduto

Vejamos novamente as impressotildees da respiraccedilatildeo e de que causas se serve para ser do modo como eacute agora Passa-se o seguinte quando jaacute natildeo haacute nenhum vazio em que possa entrar alguma das coisas que se movimentam

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e como o sopro respiratoacuterio sai de dentro de noacutes o que se sucede eacute evidente para todos ele natildeo vai para o vazio mas empurra o ar que estaacute proacuteximo de si para fora do seu lugar este ao ser empurrado desloca incessantemente o ar proacuteximo de si e de acordo com esta necessidade todo ele se desloca num movimento circular em direcccedilatildeo ao lugar de onde sai o sopro respiratoacuterio Entra nesse lugar e preenche-o seguindo o sopro respiratoacuterio E tudo isto ocorre em simultacircneo semelhante ao girar de uma roda por natildeo existir qualquer vazio Eacute por isso que a zona do peito e do pulmatildeo quando expele o sopro respiratoacuterio para o exterior fica novamente cheia do ar que circunda o corpo pois este entra atraveacutes da carne porosa e circula dentro dele quando o ar regressa e se dirige para o exterior atraveacutes do corpo forccedila o ar inspirado a entrar pela passagem das narinas e pela boca Devemos estabelecer que a causa deste princiacutepio eacute a seguinte em todos os seres vivos as partes interiores que circundam o sangue e os vasos sanguiacuteneos satildeo as mais quentes como se dentro do proacuteprio corpo houvesse uma fonte de fogo foi isto que comparaacutemos agrave tranccedila da nassa quando foi dito que toda ela estava entretecida com fogo no centro e as outras partes do exterior com ar Portanto devemos admitir que o que eacute quente se dirige por natureza para o exterior em direcccedilatildeo ao lugar de que eacute congeacutenere Como haacute duas saiacutedas ndash uma atraveacutes do corpo para o exterior outra atraveacutes das boca e das narinas ndash quando corre para uma empurra o ar em ciacuterculos na outra o ar empurrado em ciacuterculos choca contra o fogo e eacute aquecido o que sai eacute arrefecido Agrave medida que se daacute o intercacircmbio de calor

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e o ar que transita pela outra saiacuteda fica mais quente este por ser mais quente eacute o que estaacute mais inclinado a voltar agravequela saiacuteda movimentando-se por natureza na sua direcccedilatildeo empurra em ciacuterculos o ar que vai para a outra Por receber sempre os mesmos impulsos e reagir sempre da mesma maneira ao oscilar de um lado para o outro e ao produzir este movimento circular provoca por meio desta duplicidade a formaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo e expiraccedilatildeo

Devemos em igual medida procurar tambeacutem a explicaccedilatildeo para os efeitos relacionados com as ventosas medicinais253 com a degluticcedilatildeo e com os projeacutecteis ndash quer os que satildeo lanccedilados para o ar quer os que satildeo lanccedilados para a terra ndash e tambeacutem de todos os sons raacutepidos ou lentos que nos aparecem como agudos e graves os quais recebemos como estando desprovidos de harmonia por causa da dissemelhanccedila do movimento que geram em noacutes ou como sendo harmoniosos em virtude da semelhanccedila De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento Contudo quando os apanham natildeo lhes incutem um outro movimento que os transtorne Ao ajustar a origem do movimento mais lento e o termo do mais raacutepido quando este estaacute a abrandar na altura em que atingiu a semelhanccedila o deus misturou o agudo e o grave em conjunto numa

253 Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1004D-1006D) fornece uma explicaccedilatildeo pormenorizada deste meacutetodo terapecircutico

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soacute impressatildeo daiacute que cause prazer aos insensatos e boa-disposiccedilatildeo aos intelectuais254 por representar a harmonia divina em movimentos mortais

O mesmo se passa com todos os fluxos de aacutegua a queda de raios as maravilhas da atracccedilatildeo do acircmbar e da pedra de Heacuteracles255 A atracccedilatildeo natildeo interveacutem de qualquer modo em nenhum de todos estes objectos mas seraacute evidente para quem os investigar adequadamente que eacute por causa destes acidentes (em virtude de natildeo existir o vazio e de eles se empurrarem em ciacuterculos entre si por vezes separando-se e por vezes combinando-se trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes eacute proacuteprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenoacutemenos admiraacuteveis

Tambeacutem o processo de respiraccedilatildeo a partir de onde este discurso comeccedilou eacute gerado de acordo com estes pressupostos e pelas mesmas causas como foi dito em discursos anteriores256 O fogo desfaz os alimentos e eacute elevado dentro de noacutes ao acompanhar o sopro respiratoacuterio e por meio dessa oscilaccedilatildeo enche os vasos sanguiacuteneos desde o abdoacutemen irrigando-os com o que nele desfez eacute por isto que em todos os seres-vivos a corrente de alimentos circula deste modo por todo o corpo Estas partiacuteculas acabadas de ser cortadas das suas congeacuteneres umas de frutas outras de vegetais que o deus plantou para noacutes com esta finalidade ndash ser alimento

254 Este duplo efeito da muacutesica em funccedilatildeo da natureza do ouvinte fora jaacute abordado em 47d

255 Magnetite Esta concepccedilatildeo eacute tambeacutem atribuiacuteda a Empeacutedocles (DK 31A89)

256 Cf supra 79a-e

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ndash assumem cores variadas por terem sido misturadas conjuntamente poreacutem o encarnado eacute a cor que mais as envolve pois consiste na aparecircncia produzida no liacutequido pelo corte do fogo Daiacute que o fluido que corre pelo nosso corpo ndash a que chamamos ldquosanguerdquo e que eacute o alimento da carne e da totalidade do corpo graccedilas ao qual cada parte irrigada enche o siacutetio que se esvazia ndash tenha a cor e o aspecto que descrevemos O mecanismo de enchimento e esvaziamento eacute gerado tal como o movimento de todo o universo foi gerado segundo o qual tudo o que eacute seu congeacutenere se movimenta em direcccedilatildeo a si proacuteprio Aquilo que nos rodeia no exterior dissolve-nos e decompotildee-nos incessantemente remetendo cada espeacutecie para aquilo que lhe eacute aparentado mas as partiacuteculas de sangue fragmentadas dentro de noacutes e envolvidas pela estrutura de cada um dos seres-vivos como por um ceacuteu satildeo obrigadas a imitar o movimento do universo como cada uma das partiacuteculas divididas dentro de noacutes se dirige ao que eacute nosso congeacutenere o vazio deixado eacute novamente preenchido Quando desprendem mais do que recebem todos os seres perecem mas quando desprendem menos crescem No tempo em que toda a estrutura do ser-vivo eacute jovem quando os seus triacircngulos satildeo novos como acabados de acabados de sair da oficina257 mantecircm-se resistentes e coesos mutuamente embora todo o corpo seja uma composiccedilatildeo delicada visto que foi acabada de gerar a partir da medula e alimenta-se de leite Quanto aos triacircngulos que envolve em si mesma e que provecircm do exterior (aqueles de que se hatildeo-de formar o alimento

257 Metaacutefora importada de Aristoacutefanes (Tesmofoacuterias 52)

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e a bebida) por serem mais velhos e mais fraacutegeis do que os triacircngulos dela domina-os e corta-os com os seus que satildeo novos e o ser-vivo faz-se maior por ser alimentado por muitas substacircncias semelhantes258 Mas quando o sustentaacuteculo dos triacircngulos relaxa em virtude de eles terem disputado muitos confrontos durante muito tempo e contra muitos inimigos eles jaacute natildeo conseguem cortar e assimilar nenhum dos triacircngulos do alimento que entram mas pelo contraacuterio os seus satildeo facilmente divididos pelos que entram do exterior ndash todo o ser-vivo perece ao ser deste modo dominado e a esta impressatildeo chamamos ldquovelhicerdquo Por fim quando os elos dos triacircngulos que estatildeo unidos em torno da medula jaacute natildeo aguentam e satildeo separados pelo esforccedilo desprendem os laccedilos da alma que ao ser libertada de acordo com a natureza desvanece-se de forma apraziacutevel eacute que tudo o que acontece em desacordo com a natureza eacute doloroso mas o que se gera de forma natural eacute agradaacutevel Por isso de acordo com este pressuposto a morte eacute dolorosa e violenta se for causada por ferimentos ou decorrente de doenccedilas e a morte que ocorre na sequecircncia da velhice ndash de que eacute por natureza o culminar ndash eacute a menos penosa e tem mais prazer do que dor

De onde provecircm as doenccedilas isso eacute evidente para todos Visto que o corpo eacute composto de quatro elementos ndash terra fogo aacutegua e ar ndash uma doenccedila eacute gerada pelo excesso ou pela falta (contra a natureza) de algum deles ou por uma mudanccedila de lugar quando um elemento

258 A ideia de que as substacircncias se alimentam daquilo que lhes eacute afim seraacute tambeacutem partilhada por Aristoacuteteles (Sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo 333a36-b16)

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abandona o lugar que lhe corresponde por natureza para ocupar um que lhe eacute estranho ou entatildeo pois acontece que existe mais do que um geacutenero de fogo e de outros elementos quando um deles toma para si mesmo algo que natildeo lhe eacute adequado ndash todos os fenoacutemenos desta natureza provocam distuacuterbios e doenccedilas Quando cada um deles eacute gerado ou deslocado contra a natureza torna-se quente o que outrora fora frio o que eacute seco vai tornar-se huacutemido o que eacute leve torna-se pesado e eles sofrem toda a espeacutecie de mudanccedilas Eacute que segundo dizemos soacute se o mesmo for adicionado ou subtraiacutedo ao mesmo na mesma medida e da mesma maneira segundo a proporccedilatildeo correcta eacute que o mesmo poderaacute ser ele proacuteprio satildeo e saudaacutevel mas aquele que transgredir algum destes limites separando-se ou adicionando-se produziraacute todo o tipo de alteraccedilotildees doenccedilas e destruiccedilotildees incontaacuteveis

Visto que foram constituiacutedas estruturas secundaacuterias de acordo com a natureza haacute uma segunda ordem de consideraccedilotildees a fazer sobre as doenccedilas por aquele que quer percebecirc-las Eacute que a medula o osso a carne e o tendatildeo satildeo compostos a partir daquelas estruturas ndash tambeacutem o sangue embora de um modo diferente foi gerado a partir dos mesmos elementos A maioria das doenccedilas sobreveacutem do modo que foi descrito mas com as mais graves de entre elas as mais difiacuteceis de suportar passa-se o seguinte quando a geacutenese daquelas estruturas sofre uma inflexatildeo em relaccedilatildeo ao que lhe eacute natural elas corrompem-se De acordo com a natureza a carne e os tendotildees satildeo gerados a partir do sangue ndash os

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tendotildees a partir das fibras de natureza idecircntica agrave sua e a carne a partir do coaacutegulo que se forma quando se separa das fibras A partir dos tendotildees e da carne escorre uma substacircncia viscosa e brilhante que cola a carne agrave natureza dos ossos e ao alimentar os ossos que estatildeo em torno da medula faacute-lo crescer enquanto que o geacutenero mais puro mais liso e mais brilhante dos triacircngulos ao ser filtrado pela espessura dos ossos e liquefeito vai pingando dos ossos e irriga a medula Quando cada etapa se processa desta maneira surge em grande parte dos casos a sauacutede mas ocorre a doenccedila quando se passa o contraacuterio Eacute que quando a carne se liquefaz e inversamente expele para os vasos sanguiacuteneos o resultado da dissoluccedilatildeo entatildeo nos vasos sanguiacuteneos fica muito sangue diacutespar pois estaacute multiplamente alterado por cores e azedumes e ainda por propriedades aacutecidas e salinas aleacutem de que conteacutem toda a espeacutecie de biacutelis259 soros e fleumas Depois de todos serem reconstituiacutedos e corrompidos comeccedilam por deteriorar o proacuteprio sangue e sem que eles forneccedilam qualquer alimento ao corpo circulam por todo lado atraveacutes dos vasos sanguiacuteneos sem obedecerem agrave ordem natural das oacuterbitas hostis a si mesmos por natildeo retirarem qualquer proveito de si proacuteprios e inimigos das estruturas do corpo que se mantecircm no lugar que lhes compete as quais por seu turno deterioram e dissolvem

Quando a parte da carne que se vai dissolver eacute muito velha torna-se difiacutecil de assimilar entatildeo eacute enegrecida

259 Haacute dois tipos de biacutelis a branca e a negra (cf infra 82e 83c)

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por um incecircndio prolongado e por ser completamente consumida torna-se amarga e ataca de forma terriacutevel por todo o corpo ndash mesmo aquilo que ainda natildeo foi consumido Por vezes quando a parte amarga eacute reduzida a partes mais pequenas em vez de amargor a cor negra faz-se acompanhar de acidez outras vezes quando o amargor eacute mergulhado no sangue adquire uma cor mais avermelhada e como o negro se mistura com ele adquire a cor biliosa ou ainda a cor amarela mistura-se com o azedume quando a carne nova eacute dissolvida com a chama do fogo E o nome comum a todas as substacircncias desta natureza eacute ldquobiacutelisrdquo atribuiacutedo por alguns meacutedicos ou por algueacutem que eacute capaz de observar muitas coisas dissemelhantes e de identificar entre todas elas um geacutenero uacutenico merecedor de uma designaccedilatildeo comum Quanto a todos os outros fluidos que dizemos serem formas de biacutelis cada um tem uma designaccedilatildeo proacutepria em funccedilatildeo da sua cor No que respeita ao soro eacute brando quando se trata da parte aquosa do sangue mas eacute rude quando se trata da biacutelis negra e aacutecida porque se mistura por meio do calor com uma potecircncia salgada ao que eacute misturado deste modo chama-se ldquofleuma aacutecidardquo Aquilo que combinado com o ar resulta da dissoluccedilatildeo de carne nova e tenra isto eacute quando eacute preenchida por ar e envolvida por liacutequido e quando se constituem bolhas a partir deste processo ndash cada uma delas torna-se invisiacutevel em virtude da sua pequenez mas o conjunto apresenta-se como uma massa visiacutevel que por gerar espuma tem uma cor branca aos nossos olhos ndash dizemos que toda esta dissoluccedilatildeo de carne tenra entretecida com o sopro

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respiratoacuterio eacute fleuma branca A parte aquosa da fleuma constituiacuteda recentemente eacute o suor as laacutegrimas e tudo o mais que os corpos segregam todos os dias para se purificarem Todos eles se tornam agentes causadores de doenccedilas quando o sangue em vez de estar preenchido por comida e bebida de acordo com a natureza recebe uma massa de substacircncias que estatildeo em desacordo com as leis da natureza Mesmo que os vaacuterios tipos de carne sejam desfeitos pelas doenccedilas enquanto as suas fundaccedilotildees aguentarem a gravidade do problema seraacute meacutedia para elas ndash ainda eacute possiacutevel uma recuperaccedilatildeo com facilidade Mas se aquilo que liga a carne aos ossos chegar a adoecer e se ela proacutepria se separar simultaneamente das fibras e dos tendotildees e natildeo alimentar os ossos nem mantiver a ligaccedilatildeo entre a carne e os ossos e de brilhante lisa e viscosa passe a aacutespera salgada e ressequida por um regime prejudicial tudo o que eacute afectado deste modo eacute mais uma vez desagregado sob a carne e os tendotildees Ao separar-se dos ossos a carne eacute arrancada do sustentaacuteculo e deixa os tendotildees nus e cheios de salinidade ela proacutepria remetida novamente para o sangue torna ainda piores as doenccedilas de que falaacutemos anteriormente260

Mesmo que se trate de impressotildees graves para o corpo ainda mais graves satildeo as que se geram numa camada anterior quando o osso que em virtude da espessura da carne natildeo toma ar suficiente e eacute aquecido pelo bolor fica gangrenado natildeo recebe o alimento e segue pelo sentido contraacuterio desfazendo-se ele proacuteprio em alimento eacute remetido para a carne e a carne eacute

260 Cf supra 82e-83a

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remetida para o sangue o que produz doenccedilas todas elas mais severas do que as anteriores O caso mais extremo de todos daacute-se quando a natureza da medula adoece por falta ou excesso de algo o que provoca os maiores e mais poderosos distuacuterbios que podem levar agrave morte dado que toda a natureza do corpo eacute obrigada a fluir em sentido contraacuterio

Haacute uma terceira espeacutecie de doenccedilas que eacute necessaacuterio considerar as quais satildeo geradas a partir de trecircs causas do sopro respiratoacuterio da fleuma e da biacutelis Quando o pulmatildeo que eacute o controlador dos sopros respiratoacuterios no corpo natildeo consegue manter limpas as vias de saiacuteda que estatildeo bloqueadas por secreccedilotildees o sopro respiratoacuterio natildeo chega a certas partes mas chega a outras mais do que o necessaacuterio o que as faz apodrecer por natildeo conseguirem o arrefecimento enquanto que invadindo outros vasos sanguiacuteneos retorcendo-os e destruindo-os dissolve o corpo ateacute ao seu centro ndash laacute onde o diafragma o refreia e intercepta Por este motivo produz-se uma infinidade de distuacuterbios dolorosos muitas vezes acompanhados de uma abundacircncia de suores Frequentemente quando a carne eacute dissolvida forma-se ar dentro do corpo e eacute impossiacutevel levaacute-lo para o exterior o que causa os mesmos tormentos que quando vem do exterior Satildeo maiores quando o ar afecta os tendotildees e os vasos sanguiacuteneos mais proacuteximos e os faz inchar retesando deste modo para traacutes o extensor e os tendotildees contiacuteguos eacute desta tensatildeo e por este motivo que estas doenccedilas foram chamadas ldquoteacutetanordquo e ldquoopistoacutetonordquo261 Satildeo difiacuteceis de tratar e as febres que

261 opisthotonos Trata-se muito provavelmente do espasmo

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nelas tecircm origem satildeo o factor que leva agrave sua extinccedilatildeo A fleuma branca eacute dolorosa quando o ar das bolhas fica retido mas se for exalada para fora do corpo torna-se mais suave embora peje o corpo com erupccedilotildees brancas e crie distuacuterbios congeacuteneres Mas quando estaacute misturada com biacutelis negra e eacute difundida ateacute agraves oacuterbitas na cabeccedila que satildeo as mais divinas potildee-as em desordem quando acontece durante o sono eacute mais suave mas se se instala enquanto se estaacute acordado torna-se mais difiacutecil de nos vermos livres dela Enquanto distuacuterbio da parte divina eacute com toda a justiccedila que se lhe chama ldquosagradardquo262

A fleuma aacutecida e salgada eacute a fonte de todas as doenccedilas que o catarro gera mas em virtude de os lugares para os quais corre serem variados tomam todo o tipo de nomes Sempre que se diz que haacute uma inflamaccedilatildeo no corpo por causa de ele estar a arder e inflamado tudo isso eacute gerado pela biacutelis Quando ela encontra uma via respiratoacuteria para o exterior entra em ebuliccedilatildeo e expele todo o tipo de abcessos mas se ficar encerrada no interior cria muacuteltiplos distuacuterbios inflamatoacuterios e o mais grave ocorre quando ao misturar-se com o sangue puro altera a organizaccedilatildeo natural do geacutenero das fibras as quais estatildeo espalhadas pelo sangue para que este mantenha a relaccedilatildeo correcta entre fluidez e espessura e natildeo escorra

opistoacutetono (arqueamento suacutebito do corpo que faz projectar a cabeccedila e as pernas para traacutes) que consiste num dos sintomas do teacutetano ou de meningite No entanto o contexto parece sugerir que ldquoopistoacutetonordquo designaria a doenccedila em si e natildeo um sintoma

262 Timeu refere-se agrave epilepsia O facto de lhe chamar ldquosagradardquo deve-se a um tratado do Corpus Hippocraticum dedicado a esta doenccedila cujo tiacutetulo (Sobre a Doenccedila Sagrada) e conteuacutedo lhe apontam causas divinas

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pelos poros do corpo em virtude de ser liquefeito pelo calor nem por outro lado se mantenha sempre nos vasos sanguiacuteneos fluindo a custo por se tornar espesso As fibras graccedilas agrave sua constituiccedilatildeo natural preservam este equiliacutebrio mesmo depois de o sangue ter morrido e comeccedilar a arrefecer se juntarmos as fibras umas com as outras tudo o que resta do sangue fica liquefeito mas se deixarmos ficar as fibras como estatildeo rapidamente o sangue coagula com a colaboraccedilatildeo do frio circundante Como as fibras tecircm esta propriedade sobre o sangue a biacutelis (que por natureza tem a sua origem em sangue velho e volta novamente dissolvida da carne para o sangue) quando primeiro entra em estado liacutequido e quente em pequenas quantidades coagula por causa da propriedade das fibras enquanto coagula e arrefece agrave forccedila causa calafrios e arrepios no interior do corpo Mas quando corre em maior quantidade ao dominar as fibras com o calor que traz consigo sacode-as ateacute agrave desordem ao entrar em ebuliccedilatildeo e se for capaz de dominaacute-las por completo penetra na medula e depois de a incendiar desata daiacute os viacutenculos da alma como se fossem as amarras de um barco e solta-a para a liberdade No entanto quando vem em menor quantidade o corpo resiste a ser dissolvido e ela eacute dominada ou eacute dispersa por todo o corpo ou eacute forccedilada pelos vasos sanguiacuteneos a ir para a parte inferior ou para a parte superior do abdoacutemen Eacute entatildeo expulsa do corpo como os exilados de uma cidade em revolta porque causa diarreias e disenterias e todos os distuacuterbios dessa natureza Quando o corpo adoece sobretudo por um excesso de fogo produzem-se

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inflamaccedilotildees e febres constantes por um excesso de ar tem febres quotidianas por um excesso de aacutegua tem febres terccedilatildes pois a aacutegua eacute mais lenta do que o ar e do que o fogo e por um excesso de terra que eacute a quarta mais lenta deles o corpo eacute purgado durante um periacuteodo de tempo de quatro dias e criam-se febres quartatildes que custam muito a desaparecer

Eacute deste modo que se geram os distuacuterbios que afectam o corpo enquanto que os que afectam a alma e que resultam da condiccedilatildeo do corpo ocorrem do modo que se segue Temos que admitir que a doenccedila da alma eacute a demecircncia e haacute dois geacuteneros de demecircncia a loucura e a ignoracircncia A todas a impressotildees que algueacutem sofra e que englobem uma das duas devemos chamar ldquodoenccedilardquo Devemos tambeacutem estabelecer que os prazeres e as dores em excesso satildeo as mais graves das doenccedilas para a alma Eacute que quando um homem estaacute excessivamente contente ou pelo contraacuterio sofre por causa da dor apressando-se a arrebatar inoportunamente algum objecto ou a fugir do outro natildeo eacute capaz de ver nem de ouvir nada correctamente pois estaacute louco e a sua capacidade de participar do raciociacutenio encontra-se reduzida ao miacutenimo Aquele em quem se gera uma semente abundante que corre livremente pela medula como se fosse uma aacutervore com uma carga de frutos superior agrave medida estipulada pela natureza adquire repetidamente muacuteltiplas anguacutestias e muacuteltiplos prazeres nos seus apetites e nos frutos que nascem dessa condiccedilatildeo Torna-se louco durante a maior parte da vida por causa dos prazeres e dores extremos pois tem a alma doente e eacute mantida na

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insensatez por via do corpo ele eacute tido natildeo por doente mas por propositadamente mau263 A verdade eacute que esta licenciosidade em relaccedilatildeo aos prazeres sexuais eacute uma doenccedila da alma que se deve em grande medida a uma soacute substacircncia que por causa da porosidade dos ossos corre pelo corpo e humedece-o De um modo geral natildeo eacute correcto repreender tudo quanto respeita agrave incontinecircncia de prazeres e ao que eacute considerado digno de repreensatildeo como se os maus o fossem propositadamente ningueacutem eacute mau propositadamente pois o mau torna-se mau por causa de alguma disposiccedilatildeo maligna do corpo ou de uma educaccedilatildeo mal dirigida ndash estas satildeo inimigas de todos e acontecem contra a nossa vontade Novamente no que respeita agraves dores a alma adquire do mesmo modo uma grande quantidade de males atraveacutes do corpo Quando as fleumas aacutecidas e salinas e todos os sucos amargos e biliosos que vagueiam pelo corpo natildeo tomam um fluxo respiratoacuterio para o exterior mas ficam agraves voltas no interior se cruzam com o movimento da alma misturando com ela os seus proacuteprios vapores e introduzem na alma distuacuterbios de toda a espeacutecie mais ou menos graves em menor ou maior quantidade Faz-se transportar ateacute agraves trecircs regiotildees da alma e conforme qual delas ataquem pejam tudo de todas as formas e variedades de mau-humor de

263 Esta concepccedilatildeo assenta no famoso postulado platoacutenico segundo o qual a virtude eacute identificada com o conhecimento e inversamente o viacutecio com a ignoracircncia A sua formulaccedilatildeo eacute amplamente discutida um pouco por todo o corpus platoacutenico (Apologia de Soacutecrates 26a Goacutergias 467c-468c Leis 731c 734b 860d Protaacutegoras 345d-e 357c-e 358c-d Sofista 230a)

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desgosto e pejam tudo de audaacutecia de cobardia e ainda de esquecimento e dificuldade em aprender Aleacutem disto quando haacute homens assim mal constituiacutedos pelas cidades as instituiccedilotildees poliacuteticas264 e os discursos produzidos em privado ou em puacuteblico satildeo maus e quando ainda por cima natildeo existem ensinamentos aprendidos por estes homens desde a infacircncia que de nenhum modo curam destes males entatildeo todos os maus os tornaram maus por via de duas coisas completamente alheias agrave sua vontade Entre eles devemos lanccedilar a acusaccedilatildeo muito mais sobre os que concebem do que os que satildeo concebidos muito mais sobre os que educam do que os que satildeo educados Todavia devemos esforccedilar-nos na medida do possiacutevel atraveacutes da educaccedilatildeo e de haacutebitos de aprendizagem a fugir do mal e a alcanccedilar o seu contraacuterio Mas estes assuntos pertencem a outro tipo de discussatildeo265

No entanto eacute adequado proceder a reflexotildees inversas agravequelas por acccedilatildeo de que meios a sauacutede do corpo e do intelecto266 pode ser cuidada e conservada eacute mais justo atermo-nos a um discurso sobre o bem do que sobre o mal Tudo o que eacute bom eacute belo e o que eacute belo natildeo eacute assimeacutetrico267 estabeleccedilamos que um ser-vivo para ter estes atributos teraacute que ser simeacutetrico Mas entre essas simetrias reconhecemos e distinguimos as

264 politeia Sobre esta traduccedilatildeo do termo vide supra n 38265 O paralelo com a degeneraccedilatildeo dos regimes poliacuteticos no Livro

VIII da Repuacuteblica eacute inevitaacutevel266 dianoecircsis Neste contexto natildeo se trata da actividade

intelectiva mas sim e apenas do proacuteprio intelecto como faculdade que tal como o corpo deve ser exercitada e salvaguardada

267 Sobre a necessidade de algo belo ser simeacutetrico vide Filebo 64e-65a Repuacuteblica 402d

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pequenas enquanto que as mais importantes e as mais grandiosas mantemo-las indefinidas No que respeita agrave sauacutede e agrave doenccedila agrave virtude e agrave maldade natildeo haacute simetria ou assimetria maior do que a da proacutepria alma em relaccedilatildeo ao proacuteprio corpo natildeo temos nada disto em mente nem supomos que quando uma estrutura fraacutegil e pequena carrega uma alma forte e em tudo grandiosa e quando os dois satildeo unidos de acordo com a relaccedilatildeo inversa o conjunto do ser-vivo natildeo seraacute belo ndash eacute assimeacutetrico em relaccedilatildeo agraves simetrias principais No entanto quando estaacute na situaccedilatildeo inversa mostra a quem consegue ver a mais bela e mais agradaacutevel de todas as maravilhas Um corpo com as pernas demasiadamente compridas ou com qualquer outro excesso eacute em si mesmo simultaneamente aberrante e assimeacutetrico ao mesmo tempo quando conjuga esforccedilos provoca muitos sofrimentos muitas roturas e quedas em virtude do seu movimento cambaleante o que eacute uma causa de incontaacuteveis males para si proacuteprio

Devemos pensar o mesmo acerca do composto dual a que chamamos ser-vivo porque quando nele a alma por ser mais poderosa do que o corpo se apresenta irasciacutevel sacode-o violentamente e inunda-o todo de doenccedilas por todo o lado e consome-o quando se debruccedila intensamente sobre algum ensinamento ou investigaccedilatildeo quando ela se dedica agrave aprendizagem ou a discussotildees oratoacuterias em puacuteblico ou em privado agita-o e torna-o ardente nas disputas e rivalidades que se geram Ao induzir fluxos engana a maioria dos chamados meacutedicos e faacute-los responsabilizar as causas contraacuterias

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Quando um corpo demasiado grande e demasiado forte para a alma eacute congeminado com uma actividade intelectual268 diminuta e fraacutegil como nos homens existem dois tipos de apetites ndash um de alimento que proveacutem do corpo e outro de pensamento269 que proveacutem da parte mais divina que haacute em noacutes ndash e visto que os movimentos da parte mais poderosa dominam e aumentam o seu poder tornam a alma obtusa avessa agrave aprendizagem e privada de memoacuteria e produzem a pior doenccedila a ignoracircncia270 Haacute uma soacute salvaccedilatildeo para estas duas doenccedilas natildeo movimentar a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma para que defendendo-se um ao outro mantenham equiliacutebrio e sauacutede Por isso o matemaacutetico ou qualquer outra pessoa que se dedique intensamente a uma actividade intelectual271 deve compensaacute-la com o movimento do seu corpo associando-lhe ginaacutestica em sentido inverso aquele que molda o corpo cuidadosamente deve compensar com os movimentos da alma servindo-se da muacutesica e de tudo quanto diz respeito agrave filosofia se espera que se diga com justiccedila e correctamente que eacute simultaneamente belo e bom272 Eacute tambeacutem deste modo que devemos tratar estas partes imitando o padratildeo do universo

268 dianoia269 phronecircsis270 amathia ldquoIgnoracircnciardquo no sentido mais literal de ldquodificuldade

em aprenderrdquo271 dianoia272 Referecircncia ao homem kalos kagathos o estado de perfeiccedilatildeo

educativa discutido e desenvolvido em vaacuterios diaacutelogos (Protaacutegoras 315d Repuacuteblica 376c 396c Teeteto 185e)

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Na verdade o corpo eacute aquecido e arrefecido por aquilo que nele entra e novamente eacute seco e humedecido pelo que vem do exterior Ele eacute afectado por este duplo movimento e por aquilo que dele decorre Assim quando algueacutem abandona o corpo em repouso ao sabor destes movimentos eacute dominado e destruiacutedo por eles Mas se algueacutem imitar aquilo a que chamaacutemos ldquoama e sustento do universordquo273 antes de mais natildeo pode deixar de modo algum o corpo em repouso antes o deve manter sempre em movimento e imprimir-lhe uma certa agitaccedilatildeo constante o que o protegeraacute normalmente dos movimentos interiores e exteriores No entanto se agitarmos na justa medida as propriedades e as partes em desordem no corpo ordenaremos as partes umas em relaccedilatildeo agraves outras seguindo a disposiccedilatildeo que lhes eacute congeacutenere de acordo com o discurso que fizemos anteriormente sobre o universo274 impedindo que o inimigo sendo posto ao lado do inimigo crie guerras e doenccedilas para o corpo antes fazendo com que o amigo posto ao lado do amigo ofereccedila sauacutede O melhor dos movimentos do corpo eacute aquele que eacute produzido por ele proacuteprio e nele proacuteprio ndash pois eacute o movimento de natureza mais proacutexima do pensamento e do do universo ndash e os produzidos por outra coisa satildeo inferiores mas de todos o pior eacute aquele que por meio de causas externas move algumas partes de um corpo em repouso que se manteacutem estaacutetico Eacute por isso que entre as formas de purificaccedilatildeo e reforccedilo do corpo a melhor eacute a que se alcanccedila atraveacutes

273 Cf supra 52d-sqq274 Cf supra 53a-b 69b

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da ginaacutestica A segunda eacute a que se consegue atraveacutes das oscilaccedilotildees ritmadas nas viagens de barco ou noutro meio de transporte que nos mantenha livres de fadiga A terceira forma de movimento uacutetil para quem em certas alturas tenha extrema necessidade mas que natildeo deve ser empregue em nenhuma outra circunstacircncia por quem tenha bom-senso275 trata-se do tratamento meacutedico de purificaccedilatildeo farmacecircutica eacute que natildeo devemos irritar com faacutermacos as doenccedilas que natildeo constituem grandes perigos

Toda a estrutura das doenccedilas se assemelha de algum modo agrave natureza dos seres-vivos Eacute que a constituiccedilatildeo dos seres-vivos em todo o conjunto das espeacutecies tem uma duraccedilatildeo de vida preacute-definida e cada ser-vivo nasce com a existecircncia que lhe foi destinada agrave parte as impressotildees produzidas pela Necessidade pois desde a origem de cada um os triacircngulos conseguem guardar a propriedade que possuem de se manterem constituiacutedos ateacute um determinado tempo altura aleacutem da qual a vida natildeo pode de modo algum prolongar-se Passa-se o mesmo com a constituiccedilatildeo das doenccedilas quando algueacutem potildee fim a uma doenccedila por meio de faacutermacos antes da duraccedilatildeo que lhe foi destinada eacute frequente gerarem-se graves doenccedilas a partir de doenccedilas fracas e um grande nuacutemero a partir de poucas Por isso eacute que eacute necessaacuterio educar todas as manifestaccedilotildees desta natureza atraveacutes de haacutebitos de vida quando se tiver tempo para isso e natildeo se deve irritar um mal coleacuterico com a aplicaccedilatildeo de faacutermacos

275 nous

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Fica assim descrito o que respeita ao conjunto do ser-vivo no que respeita agrave sua parte corporal e ao modo como algueacutem deve governar e ser governado por si mesmo para que tenha uma existecircncia em maacuteximo acordo com a razatildeo276 Quanto agrave parte que governa devemos preparaacute-la para que dentro dos possiacuteveis seja a mais bela e melhor para governar Discorrer com exactidatildeo sobre este assunto seria por si soacute suficiente para dar origem a uma obra exclusiva mas como assunto acessoacuterio no seguimento do que dissemos anteriormente natildeo seria despropositado retomar e concluir o discurso do seguinte modo Como jaacute dissemos muitas vezes277 foram estabelecidas em noacutes trecircs espeacutecies de alma em trecircs regiotildees e aconteceu que cada uma ficou com um movimento Deste modo de acordo com estes pressupostos temos que mencionar do modo mais breve possiacutevel que aquela das espeacutecies que se manteacutem em descanso e em repouso em relaccedilatildeo aos movimentos que lhe satildeo proacuteprios torna-se necessariamente mais fraca enquanto que aquela que se manteacutem em exerciacutecio fica mais forte por isso devemos zelar para que possam manter os movimentos coordenados umas com as outras

Quanto agrave espeacutecie de alma que nos domina eacute necessaacuterio ter em conta o seguinte um deus deu a cada um de noacutes um daimon278 aquilo que dizemos habitar no

276 logos277 Cf supra 69d-sqq278 Toda esta secccedilatildeo faz lembrar o mito escatoloacutegico com que

termina a Repuacuteblica (614b-621b) segundo o qual as almas satildeo redistribuiacutedas pelos novos corpos em funccedilatildeo da orientaccedilatildeo seguida

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alto do nosso corpo ndash e dizemo-lo muito correctamente ndash e nos eleva desde a terra ateacute agravequilo que eacute nosso congeacutenere no ceacuteu porque somos uma planta celeste e natildeo terrena Foi desse lugar onde se engendrou a primeira geacutenese da alma que a parte divina fez depender a nossa cabeccedila que eacute como uma raiz e manteacutem todo o nosso corpo da posiccedilatildeo erecta Assim quando algueacutem se entregou aos apetites e agraves ambiccedilotildees e cultivou excessivamente esses viacutecios eacute inevitaacutevel que todos os seus pensamentos sejam mortais em tudo se tornou mortal tanto quanto possiacutevel e nada nele deixa de ser mortal pois foi essa a natureza que desenvolveu Por outro lado para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos verdadeiros279 exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo eacute absolutamente inevitaacutevel que nele surjam pensamentos imortais e divinos jaacute que se ateve ao que eacute verdadeiro E tanto quanto eacute permitido agrave natureza humana participar da imortalidade dessa condiccedilatildeo natildeo deixe de lado nem a miacutenima parte Ao cuidar sempre da parte divina que conteacutem em si tenha em ordem o daimon que habita dentro de si bem como seja particularmente feliz

Para todos os seres haacute somente um cuidado a ter em atenccedilatildeo atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes satildeo proacuteprios Os movimentos congeacuteneres do que haacute de divino em noacutes satildeo os pensamentos280 e as oacuterbitas do universo Eacute necessaacuterio que cada um os acompanhe corrigindo atraveacutes da nas vidas anteriores

279 peri philomathian kai peri tas alecirctheis phronecircseis280 dianoecircsis

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aprendizagem das harmonias e das oacuterbitas do universo as oacuterbitas destruiacutedas nas nossas cabeccedilas na altura da geraccedilatildeo tornando aquilo que pensa semelhante ao objecto pensado281 de acordo com a natureza original e depois de ter feito esta assimilaccedilatildeo atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro

Parece que agora estaacute perto do fim aquilo que desde o princiacutepio estaacutevamos obrigados a fazer discorrer sobre o universo ateacute agrave geraccedilatildeo do homem282 Quanto aos outros seres vivos no que toca ao modo como foram gerados devemos mencionaacute-lo ainda que de forma breve pois natildeo haacute qualquer necessidade de nos demorarmos sobre esse assunto Se fosse esse o caso poderia algueacutem achar que eu estava a ser mais minucioso em relaccedilatildeo a estes assuntos do que agravequeles

Eis o que iremos dizer Entre os que foram gerados machos todos os que satildeo cobardes e levaram a vida de forma injusta de acordo com o discurso verosiacutemil renascem mulheres na segunda geraccedilatildeo Por esse motivo e nessa altura os deuses conceberam o desejo da copulaccedilatildeo constituindo dentro de noacutes e dentro das mulheres um ser-vivo animado e criaram cada um deles do seguinte modo A via de saiacuteda da bebida onde o liacutequido chega depois passar pelo pulmatildeo e pelos rins ateacute agrave bexiga que ao ser pressionado pelo sopro respiratoacuterio283 ela recebe e expele juntaram-na por meio de uma perfuraccedilatildeo agrave medula ndash a que nos discursos anteriores chamaacutemos

281 tocirc katanooumenocirc to katanooun exomoiocircsai282 Cf supra 27a283 pneuma

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semente284 ndash que da cabeccedila desce ateacute ao pescoccedilo e passa pela espinha A medula que eacute dotada de alma e recebe respiraccedilatildeo ao criar no oacutergatildeo por onde se ventila um apetite vital de ejaculaccedilatildeo engendra o desejo amoroso criador Eacute por isso que a natureza das partes iacutentimas dos homens eacute desobediente e autoacutenoma semelhante a um ser-vivo desobediente da razatildeo285 e empreende dominaacute-lo por meio destes apetites acutilantes Pelas mesmas razotildees aquilo a que nas mulheres se chama ldquomatrizrdquo ou ldquouacuteterordquo um ser-vivo aacutevido de criaccedilatildeo quando estaacute infrutiacutefero durante muito tempo aleacutem da eacutepoca torna-se irritado ndash um estado em que sofre terrivelmente Em virtude de vaguear por todo o lado no corpo e bloquear as vias de saiacuteda do sopro respiratoacuterio natildeo o deixando respirar atira-o para extremas dificuldades e provoca-lhe outras doenccedilas de toda a espeacutecie ateacute que o apetite e o desejo amoroso de cada um deles se reuacutenam para colherem o fruto como de uma aacutervore e semearem na matriz como num campo lavrado os seres-vivos invisiacuteveis (por causa da sua extrema pequenez) e ainda informes os quais depois separam e alimentam dentro de si tornando-os grandes depois disto datildeo-nos agrave luz e completam a geraccedilatildeo dos seres-vivos

Assim nasceram as mulheres e todas as fecircmeas Quanto agrave raccedila das aves eacute produzida de uma forma diferente pois tem por natureza penas em vez de pecirclos a partir de homens sem maldade e leves conhecedores dos fenoacutemenos celestes mas que na sua ingenuidade

284 sperma Cf supra 74a 77d 86c-d285 logos

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acreditam que as evidecircncias mais seguras sobre estes assuntos satildeo as fornecidas pela visatildeo Quanto agrave espeacutecie dos animais terrestres e das feras ela gera-se daqueles que natildeo fazem uso da filosofia nem prestam qualquer atenccedilatildeo agrave natureza do que diz respeito ao ceacuteu por jamais se servirem das oacuterbitas que tecircm dentro da cabeccedila mas seguem os conselhos das partes da alma que estatildeo em torno do peito Por causa destes haacutebitos os seus membros anteriores e as suas cabeccedilas foram arrastados em direcccedilatildeo agrave terra para se fixarem naquilo de que satildeo congeacuteneres Tecircm o topo da cabeccedila alongado e multiforme em funccedilatildeo do modo como as oacuterbitas de cada um foram esmagadas pela preguiccedila (92a)O seu geacutenero foi criado com quatro ou mais patas pelo seguinte motivo o deus apocircs mais suportes aos mais irracionais porque iriam ser mais arrastados para a terra Aos mais irracionais de entre eles e aos que tecircm o corpo completamente estendido pela terra visto natildeo terem qualquer necessidade de patas engendraram-nos privados de patas e a rastejar sobre a terra (92b) A quarta espeacutecie a que estaacute na aacutegua foi gerada a partir daqueles que eram mais desprovidos de intelecto e ignorantes aqueles que os tornaram a moldar nem sequer os acharam dignos de respirar ar puro porque graccedilas aos erros tinham a alma completamente conspurcada pelo que em vez de uma respiraccedilatildeo de ar leve e puro obrigaram-nos a respirar um ar turvo e pesado na aacutegua Por isso se gerou a raccedila dos peixes e de todos os crustaacuteceos que vivem na aacutegua como pena pelo grau de ignoracircncia a que desceram coube-lhes a mais baixa morada Eacute de acordo com todos estes pressupostos

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que outrora e agora os seres-vivos se transformam uns nos outros de acordo com o facto de perderem ou ganharem em intelecto ou em demecircncia

Agora declaremos que o nosso discurso sobre o universo chegou ao fim tendo recebido seres-vivos mortais e imortais ndash ficando deste modo preenchido ndash assim foi gerado o mundo como um ser-vivo visiacutevel que engloba todas as coisas visiacuteveis deus sensiacutevel imagem do inteligiacutevel286 o mais grandioso o melhor o mais belo e mais perfeito o ceacuteu que eacute uacutenico e unigeacutenito

286 eikocircn tou noecirctou theos aisthecirctos

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Timeu Como estou feliz oacute Soacutecrates agora que termino com regozijo a viagem do meu discurso tal como se descansasse de uma longa caminhada1 Ao deus que foi gerado outrora na realidade e agora mesmo em palavras2 eu rogo que de entre aquilo que dissemos garanta a perenidade do que foi mencionado correctamente mas se em relaccedilatildeo a algum assunto proferimos inadvertidamente algo fora de tom que nos aplique a pena que seja adequada Ora a pena acertada para quem daacute uma nota em falso eacute entrar no tom portanto para que exponhamos correctamente os discursos relativos ao que resta dizer sobre a geraccedilatildeo dos deuses rogamos-lhe que nos forneccedila o remeacutedio mais

1 A metaacutefora do discurso como viagem eacute bastante recorrente em Platatildeo (eg Filebo 14a Leis 645a)

2 Trata-se do mundo sensiacutevel que por diversas vezes eacute chamado ldquodeusrdquo (34a-b 68e 92c) A oposiccedilatildeo ldquona realidadeem palavrasrdquo e ldquooutroraagorardquo acentua os planos absolutamente distintos em que se encontram os dois ldquofabricadoresrdquo em causa o demiurgo gerou (literalmente) o mundo num tempo anterior ao humano e natildeo cronoloacutegico ao passo que Timeu o reconstituiu em palavras obedecendo a um ldquoagorardquo cronoloacutegico e diegeacutetico

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perfeito e excelente de entre os remeacutedios ndash o saber Feitas as preces entreguemos o discurso seguinte a Criacutetias de acordo com o combinado3

Criacutetias E eu aceito-o oacute Timeu mas tal como tambeacutem tu o abordaste no iniacutecio quando pediste toleracircncia4 porque estavas prestes a falar sobre assuntos de grande importacircncia igualmente eu neste momento apelo a isso mesmo pois considero-me merecedor de obter ainda mais toleracircncia em virtude dos assuntos sobre os quais estou prestes a falar Com efeito tenho noccedilatildeo de que o pedido que vos vou dirigir eacute bastante ambicioso e mais indelicado do que eacute devido mas ainda assim tenho que dizecirc-lo Quanto ao que foi referido por ti quem no seu juiacutezo perfeito ousaria dizer que isso natildeo eacute acertado Mas que aquilo de que eu vou falar carece de mais toleracircncia por ser mais problemaacutetico isso terei que explicar de uma maneira ou de outra

Na verdade oacute Timeu sempre que dizemos aos homens algo sobre os deuses eacute mais faacutecil parecer falar adequadamente do que quando dizemos a noacutes homens algo sobre os mortais Eacute que a inexperiecircncia e a ignoracircncia extremas dos ouvintes em relaccedilatildeo aos assuntos a tratar proporcionam uma destreza acrescida agravequele que estaacute prestes a dizer algo sobre eles no que diz respeito aos deuses sabemos que eacute essa a nossa condiccedilatildeo

3 O programa dos discursos fora estabelecido logo no iniacutecio do Timeu (27a-b) Eacute provaacutevel que se trate dos astros como sugere Brisson (2001 p 380 n 8) mas natildeo existem quaisquer dados que confirmem essa suspeita

4 Cf Timeu 29c-d

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Mas para que explique com maior clareza aquilo que digo acompanhem-me no seguinte raciociacutenio Aquilo que todos noacutes pronunciamos eacute necessariamente uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo5 No que trata agrave reproduccedilatildeo de imagens de corpos humanos ou divinos produzida pelos pintores apercebemo-nos de que no apuramento da facilidade ou dificuldade do processo imitativo para quem as observa a aparecircncia eacute suficiente Tambeacutem reparamos que no que diz respeito agrave terra a montanhas rios uma floresta ao ceacuteu e a tudo quanto existe e circula em torno dele ficamos satisfeitos acima de tudo se algueacutem for capaz de os reproduzir com um miacutenimo de semelhanccedila Aleacutem disso como natildeo sabemos nada de rigoroso sobre assuntos dessa natureza natildeo examinamos nem pomos agrave prova o que foi pintado e apreciamos uma pintura de sombreados indistinta e ilusoacuteria6 Por outro lado sempre que algueacutem tenta representar os nossos corpos em virtude de nos apercebermos com acuidade daquilo que foi negligenciado graccedilas agrave constante observaccedilatildeo iacutentima tornamo-nos juiacutezes implacaacuteveis de tudo aquilo que natildeo esteja absolutamente dotado de semelhanccedila

Eacute forccediloso que compreendamos que acontece o mesmo com os discursos jaacute que devemos ficar satisfeitos

5 Criacutetias propotildee uma teoria da linguagem muito proacutexima da concepccedilatildeo platoacutenica da arte em geral que fora estabelecida na Repuacuteblica (597a-e) e no final do Sofista Tanto que o exemplo a que vai recorrer para ilustrar esta sua posiccedilatildeo releva precisamente do acircmbito da pintura

6 A teacutecnica da pintura com sombreados (skiagraphia) era considerada por Platatildeo uma forma de ilusatildeo propositada (cf Repuacuteblica 602c-e)

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se o que dissermos sobre assuntos celestes e divinos for minimamente verosiacutemil ao passo que podemos examinar minuciosamente os mortais e humanos7 Quanto ao discurso que agora faremos fruto do improviso se natildeo conseguirmos dotaacute-lo de clareza em relaccedilatildeo a todos os aspectos teremos necessariamente que ser condescendentes eacute que eacute preciso ter em conta que natildeo eacute nada faacutecil senatildeo extremamente difiacutecil produzir representaccedilotildees dos assuntos mortais que relevam do acircmbito da opiniatildeo

108a Eacute disto que eu vos quero recordar e foi pelo facto de vos pedir natildeo menos mas sim mais toleracircncia em relaccedilatildeo ao que estou prestes a dizer que mencionei tudo isto oacute Soacutecrates Se vos pareccedilo pedir justificadamente a oferenda concedei-me-la de bom grado

Soacutecrates E por que motivo natildeo ta haveriacuteamos de conceder oacute Criacutetias Tambeacutem ao terceiro Hermoacutecrates noacutes havemos de lhe conceder a mesma toleracircncia De facto eacute evidente que um pouco mais tarde quando lhe competir a ele discursar a pediraacute tal como vocecircs8 Deste modo para que planeie um iniacutecio diferente e natildeo esteja compelido a dizer o mesmo ele que discurse partindo do princiacutepio que deste modo e neste momento lhe foi garantida a toleracircncia Quanto a ti meu caro Criacutetias dir-te-ei de antematildeo qual eacute a disposiccedilatildeo do puacuteblico o

7 Note-se que tambeacutem no discurso de Criacutetias a verosimilhanccedila eacute tida por exigecircncia racional

8 Hermoacutecrates seria o terceiro (a seguir a Criacutetias) a intervir (vide Introduccedilatildeo pp 14-15)

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poeta anterior a ti9 granjeou diante dele grande estima de tal forma que precisaraacutes de toleracircncia ilimitada a teu favor se te consideras capaz de a obter

Hermoacutecrates Daacutes-me a mesma recomendaccedilatildeo que a este aqui oacute Soacutecrates Mas com efeito oacute Criacutetias nunca homens sem valor obtiveram um trofeacuteu10 Por isso conveacutem que avances corajosamente com o teu discurso invocando o Salvador11 e as Musas para dares a conhecer os ilustres cidadatildeos antepassados e lhes dedicares um hino12

Criacutetias Oacute caro Hermoacutecrates por teres sido posicionado na linha mais recuada e teres outra pessoa agrave tua frente estaacutes ainda cheio de coragem O que eacute estar nesta situaccedilatildeo isso em breve te seraacute revelado mas tenho que obedecer ao teu incentivo e estiacutemulo e aleacutem dos deuses que mencionaste temos que invocar ainda outros principalmente Mnemoacutesine13 Eacute que quase todos os assuntos do nosso discurso dizem respeito a

9 Refere-se a Timeu10 Neste contexto a metaacutefora eacute puramente beacutelica sendo que o

trofeacuteu (tropaion) refere um pequeno monumento que era erigido no campo de batalha como siacutembolo de vitoacuteria O acircmbito semacircntico militar vai manter-se pelas proacuteximas linhas como que anunciando o longo discurso de Criacutetias sobre o confronto militar

11 Epiacuteteto de Apolo12 Foi referido ainda no resumo do Timeu (21a) que a narrativa

sobre a lendaacuteria guerra visava glorificar a cidade de Atenas no dia da sua festa (as Panateneias durante as quais se desenvolve a acccedilatildeo)

13 Personificaccedilatildeo divinizada da memoacuteria de quem eram filhas as Musas Esta invocaccedilatildeo era bastante comum nos poetas e historiadores

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essa deusa pois se lembrarmos o suficiente do que foi dito pelos sacerdotes de outrora trazido ateacute aqui por Soacutelon14 e o dermos a conhecer creio que aos olhos do puacuteblico pareceremos cumprir razoavelmente aquilo a que nos comprometecircramos Eacute isso que devemos fazer de imediato e natildeo podemos demorar nem mais um pouco

Primeiro que tudo recordemos o principal15 passaram nove mil anos desde a referida guerra entre os que habitavam aleacutem das Colunas de Heacuteracles16 e todos aqueles que estavam para aqueacutem conveacutem agora que discorramos sobre ela em pormenor De um lado segundo se diz estava a nossa cidade que comandou e travou a guerra ateacute ao fim enquanto que do outro estavam os reis da Ilha da Atlacircntida ilha essa que como dissemos haacute pouco era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia17 juntas Mas actualmente por estar submersa graccedilas aos tremores de terra constitui um obstaacuteculo de lama intransitaacutevel para aqueles que querem navegar dali para o alto-mar de tal forma que nunca mais pode ser ultrapassado

Quanto aos vaacuterios povos baacuterbaros e tambeacutem todos os que de entre os Gregos existiam naquele tempo a exposiccedilatildeo do relato no seu desenrolar revelaraacute o que diz respeito a cada um deles sucessivamente e caso a

14 Cf Timeu 21c-sqq15 O essencial do discurso Criacutetias vai iniciar fora jaacute referido no

Timeu (20d-26d)16 O Estreito de Gibraltar17 A Liacutebia corresponde actualmente a todo o Norte de Aacutefrica

e a Aacutesia ao territoacuterio que se estende desde a Peniacutensula Araacutebica ateacute ao Norte da Iacutendia

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caso18 No que diz respeito aos Atenienses de entatildeo e aos seus opositores contra os quais entraram em guerra eacute necessaacuterio que comece por analisar em primeiro lugar o poderio beacutelico e a forma de governo19 de cada um deles De entre eles devemos optar por falar primeiro deste daqui

Em determinada altura os deuses dividiram toda a terra em regiotildees ndash sem recurso a disputa nem seria correcto dizer que os deuses ignoravam o que era apropriado a cada um deles nem tampouco que apesar de saberem o que era mais adequado para os outros tentavam entre si apropriar-se disso para si proacuteprios por meio de disputas ndash e havendo obtido a regiatildeo que lhes agradava de acordo com as sortes da Justiccedila povoaram esses lugares Depois de os terem povoado criaram-nos como se fossem bens ou animais agrave semelhanccedila de pastores com o gado soacute que natildeo subjugavam corpos com corpos como os pastores que orientam os rebanhos agrave pancada mas da melhor maneira para lidar com uma criatura que eacute guiaacute-la pela proa tomando de acordo com o seu proacuteprio desiacutegnio a alma como um leme por meio da persuasatildeo conduziam e governavam deste modo todos os seres mortais20

18 A descriccedilatildeo das forccedilas em conflito antes do combate propriamente dito era um costume dos historiadores (cf Tuciacutedides 189-sqq) Visto que Criacutetias refere que falaraacute detalhadamente de todos os povos envolvidos (Atlantes Gregos e respectivos aliados) descrevendo depois o confronto propriamente dito eacute certo que o diaacutelogo completo era bastante extenso Contudo termina como sabemos quando aborda o iniacutecio da degenerescecircncia social e moral do povo atlante

19 politeia20 Esta metaacutefora do estadista como timoneiro de uma nau

bastante utilizada na trageacutedia remonta aos versos de Arquiacuteloco

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Enquanto que aos outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de um modo diferente Hefesto e Atena por terem uma natureza comum ndash por um lado eram irmatildeos de um mesmo pai e por outro em virtude do gosto pelo saber e pela arte tinham a mesma orientaccedilatildeo21 ndash a ambos assim coube em sorte uma uacutenica porccedilatildeo que eacute este lugar aqui porque era por natureza afim e adequado agrave virtude e agrave sabedoria22 Entatildeo colocaram aqui homens bons os autoacutectones e introduziram-lhes a ordem poliacutetica no intelecto23

Os nomes deles foram conservados mas os feitos graccedilas ao facto de terem perecido aqueles que os herdaram e agrave vastidatildeo do tempo desapareceram Eacute que o geacutenero de pessoas que sempre sobrevive tal como foi dito anteriormente24 manteacutem-se serrano25 e analfabeto estas apenas tinham ouvido falar dos nomes dos governantes daquele lugar e aleacutem disso do pouco que haviam feito Assim eles punham esses nomes aos seus descendentes

(poeta do seacutec VII aC) que compara uma tempestade a uma crise poliacutetica e o timoneiro ao poliacutetico que a pode superar (fr 106 West) Aparece com um sentido anaacutelogo na passagem da Repuacuteblica sobre a nau do estado (488a-499a) e tambeacutem no Poliacutetico onde Cronos eacute chamado ldquotimoneiro do universordquo (272e4)

21 Ambos Atena e Hefesto eram filhos de Zeus bem como se dedicavam a assuntos muito semelhantes Atena nutria especial apreccedilo pelas artes e letras (o saber em geral) e Hefesto dominava a metalurgia como artesatildeo bem como era o deus do fogo (o fogo era siacutembolo da ciecircncia como disso eacute exemplo o famoso mito de Prometeu)

22 aretecirc kai phronecircsis23 nous24 Cf Timeu 22c-d25 O termo oreios (lit ldquoque vive nas montanhasrdquo) eacute neste

contexto usado com um sentido pejorativo

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por isso os agradar mas natildeo conheciam as virtudes e as leis dos antepassados a natildeo ser alguns relatos obscuros em relaccedilatildeo a certos aspectos Por viverem com carecircncia e necessitados durante muitas geraccedilotildees eles e os seus filhos tinham apenas em mente aquilo de que careciam e conversavam apenas sobre isso negligenciando aquilo que acontecera outrora num tempo anterior ao seu Na verdade a mitologia e a investigaccedilatildeo de dados do passado chegam agraves cidades juntamente com o oacutecio apenas quando os habitantes se apercebem de que as necessidades baacutesicas estatildeo garantidas para um certo nuacutemero de pessoas e natildeo antes Foi por este motivo que mantiveram conservados os nomes dos antepassados agrave parte dos feitos Digo isto baseando-me em Soacutelon que referia que os sacerdotes enquanto narravam a guerra de outrora mencionavam com muita frequecircncia os nomes de Ceacutecrope Erecteu Erictoacutenio Erisiacutecton26 e a maior parte daqueles que antecederam Teseu cujos nomes permaneceram recordados e o mesmo no que respeita agraves mulheres ndash de facto visto que naquele tempo as ocupaccedilotildees respeitantes agrave guerra eram comuns agraves mulheres e aos homens a estaacutetua da deusa era por isso representada pelos de entatildeo com armas de acordo com aquele costume como tributo agrave deusa isso eacute uma prova27 de que todos os seres-vivos da mesma condiccedilatildeo

26 Personagens lendaacuterias associadas agrave fundaccedilatildeo da cidade de Atenas Ceacutecrope teria sido o primeiro rei Erecteu o seu pai Erictoacutenio avocirc de Erecteu Erisiacutecton filho de Ceacutecrope

27 Endeigma Embora esta palavra em concreto natildeo seja usada por Heroacutedoto nem por Tuciacutedides daacute igualmente conta da preocupaccedilatildeo historicista no narrador A este propoacutesito vide Introduccedilatildeo pp 57-63

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ndash tanto fecircmeas quanto machos ndash satildeo por natureza capazes de praticar em comum a virtude respeitante a cada espeacutecie28

Por outro lado naquele tempo os outros grupos de cidadatildeos ligados aos ofiacutecios e ao sustento que provinha da terra viviam neste lugar aqui enquanto que o dos combatentes separados desde o princiacutepio por homens divinos viviam agrave parte tendo acesso a tudo o que fosse adequado agrave sua subsistecircncia e educaccedilatildeo Nenhum deles possuiacutea nada a tiacutetulo particular pois todos eles consideravam tudo comum a todos eles e natildeo se achavam no direito de receber dos outros cidadatildeos nada aleacutem do necessaacuterio agrave sua subsistecircncia atarefados que estavam com todas as ocupaccedilotildees de que ontem falaacutemos ndash aquelas que foram referidas a propoacutesito dos guardiotildees que propusemos29

Na verdade ateacute era plausiacutevel e mesmo verdadeiro o que se dizia a propoacutesito da nossa terra30 em primeiro

28 A igualdade de geacuteneros eacute tambeacutem referida no Timeu (18c-sqq) e na Repuacuteblica (456a-sqq)

29 Quando refere que as ocupaccedilotildees destes cidadatildeos satildeo as que descreveram no dia anterior Criacutetias remete para o que foi dito acerca das funccedilotildees da classe dos guardiotildees da cidade ideal descritas na Repuacuteblica (395b-d) e tambeacutem no iniacutecio do Timeu (17d) deviam dedicar-se exclusivamente agrave defesa do Estado Aleacutem disso satildeo tambeacutem evidentes outras semelhanccedilas natildeo possuiacuteam bens a tiacutetulo particular recebiam o sustento dos outros cidadatildeos bem como viviam em comunidade (Repuacuteblica 416e Timeu 18b)

30 Segundo Brisson (2001 p 383 nn 60 64) a descriccedilatildeo que se segue pretende fundamentar algumas reivindicaccedilotildees territoriais atenienses da eacutepoca de Platatildeo Ao alargar as fronteiras da Aacutetica ateacute ao Istmo de Corinto a sudoeste inclui a cidade de Meacutegara (causa de diversos confrontos com os Coriacutentios) e quando aponta o Rio Asopo como fronteira a norte engloba a Oroacutepia cuja principal

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lugar que nessa altura as fronteiras que a circunscreviam se estendiam ateacute ao Istmo [de Corinto] de um lado31 e na direcccedilatildeo da regiatildeo continental ateacute aos cumes do Citeacuteron e do Parnaso32 que essas fronteiras continuavam pelas encostas do lado direito (incluindo a Oroacutepia33) ateacute ao Asopo34 e do lado esquerdo estavam delimitadas pelo mar que toda esta terra superava em fertilidade o restante territoacuterio pelo que na altura este lugar era capaz de manter alimentado um vasto exeacutercito e livre de trabalhos com a terra35 Eis uma grande evidecircncia36 dessa fertilidade o que dela ainda agora resta eacute equiparaacutevel a qualquer outra por ter muita variedade de cultivo e riqueza de colheitas bem como boas pastagens para todo o tipo de animais Aleacutem da qualidade de entatildeo comportava tudo isso em abundacircncia Mas como pode isso ser crediacutevel e com base em quecirc se poderaacute dizer acertadamente que satildeo os restos da terra daquele tempo

Todo o territoacuterio que se estende a partir do resto do continente e desemboca no mar eacute semelhante a um cidade (Oropo) era continuamente disputada com os Beoacutecios

31 Isto eacute para sudoeste32 O Citeacuteron e o Parnaso eram dois montes que se encontravam

entre a Beoacutecia e a Aacutetica33 Vide supra n 3034 Um rio a norte dos Montes Parnaso e Citeacuteron Vide supra

n 3235 Natildeo podemos deixar de notar nesta secccedilatildeo um eco da Idade

do Ouro (periacuteodo em que a Natureza proporcionava todos os bens estando os homens livres de trabalhos agriacutecolas) que Hesiacuteodo descreve nos Trabalhos e Dias (vv 109-126)

36 Tekmecircrion Trata-se de um termo muito usado pelos historiadores para fundamentar o seu discurso (Heroacutedoto 2131 33810 72384 Tuciacutedides 113 2392 31046)

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grande promontoacuterio e acontece que o invoacutelucro de mar que a circunda eacute profundo em todos os pontos da costa Graccedilas a muitos e grandes diluacutevios que ocorreram nestes nove mil anos ndash este foi o nuacutemero de anos que passou desde esse tempo ateacute agora ndash a terra que em virtude do que aconteceu durante essas ocasiotildees deslizou das terras altas natildeo se empilhou num morro digno de menccedilatildeo como acontece noutros locais antes ao escorregar continuamente semelhante a uma roda desapareceu no fundo do mar Comparado ao de entatildeo o que agora restou ndash tal como aconteceu nas pequenas ilhas ndash eacute semelhante aos ossos de um corpo que adoeceu pois tudo o que a terra tinha de gordo e mole escorregou tendo somente restado desse lugar o corpo descascado Mas naquele tempo enquanto esteve intacta tinha montanhas altas e encristadas de terra e quanto agraves planiacutecies a que agora chamamos solo rochoso tinha-as cheias de terra feacutertil Tinha tambeacutem numerosas florestas nas montanhas de que ainda hoje haacute evidecircncias manifestas pois eacute nestas montanhas que actualmente existe o uacutenico alimento para as abelhas e natildeo haacute muito tempo que se cortava aacutervores nesse local para construir os tectos das grandes edificaccedilotildees ndash coberturas essas que ainda estatildeo conservadas Havia tambeacutem muitas e grandes aacutervores benignas bem como a terra providenciava pastos maravilhosos para o gado Aleacutem disso fruiacutea a cada ano de aacutegua vinda de Zeus e natildeo a perdia ao contraacuterio de agora que corre da terra nua ateacute ao mar em vez disso por ter muita terra recebia-a dentro de si e armazenava-a num solo argiloso que a sustinha Ao descarregar a aacutegua dos pontos altos

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para os vales garantia fluxos abundantes de fontes e rios a todos os lugares os templos que outrora foram estabelecidos nessas fontes e ainda hoje laacute permanecem satildeo um indiacutecio37 de que o que agora dizemos sobre ela eacute verdadeiro

Tambeacutem assim era a natureza do resto da regiatildeo que era provavelmente cultivada por agricultores autecircnticos isto eacute que faziam apenas isto ndash vocacionados para as coisas caras agrave beleza e tinham agrave disposiccedilatildeo a melhor terra e aacutegua em muita abundacircncia bem como estaccedilotildees temperadas da forma mais moderada que havia sobre a terra

Quanto agrave cidade nesta altura ela estava estabelecida do seguinte modo em primeiro lugar naquela altura a zona da Acroacutepole natildeo estava como estaacute hoje eacute que uma soacute noite de chuva deixou-a completamente nua pois dissolveu a terra por completo e ao mesmo tempo geraram-se terramotos e um violento diluacutevio ndash o terceiro antes da calamidade da eacutepoca de Deucaliatildeo38 Quanto ao tamanho que tinha outrora noutro tempo chegava ateacute ao Eriacutedano e ao Ilisso39 compreendia em si a Pnix40 e tinha como limite do lado oposto agrave Pnix o Licabeto41 toda ela era terra e excepto em poucos siacutetios formava uma planiacutecie nos pontos mais altos

37 Vide supra n 3638 Trata-se do diluacutevio com que Zeus decidiu destruir a raccedila

humana Escaparam Deucaliatildeo e Pirra sua esposa por meio de uma arca que haviam construiacutedo de antematildeo depois de terem sido avisados pelo deus

39 Dois rios da Aacutetica40 Colina a oeste da Acroacutepole onde desde os iniacutecios do seacuteculo

V aC se reunia a Assembleia41 Um monte a nordeste da Acroacutepole

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A parte exterior junto aos seus proacuteprios vertentes era habitada por artesatildeos e pelos agricultores que cultivavam as imediaccedilotildees Quanto agrave parte superior habitava-a a classe dos guerreiros de forma autoacutenoma e isolada junto ao templo de Atena e Hefesto que eles tinham vedado com uma uacutenica cerca como se fosse uma soacute casa Habitavam em aposentos comuns a parte que dava para norte que equiparam com uma messe para as noites de Inverno e tinham tudo quanto fosse adequado agrave vida em comunidade42 fossem residecircncias ou templos excepto ouro ou prata43 ndash pois natildeo faziam qualquer uso disso para nada mas por buscarem o ponto intermeacutedio entre a arrogacircncia e a subserviecircncia habitavam em residecircncias organizadas em que envelheciam eles proacuteprios e tambeacutem os netos dos seus netos as quais iam ininterruptamente entregando aos outros seus semelhantes Na parte que dava para sul fizeram jardins ginaacutesios e messes para o Veratildeo e usavam-na para isso No lugar onde actualmente estaacute a Acroacutepole havia uma fonte uacutenica que foi destruiacuteda pelos terramotos da qual actualmente restam apenas pequenas linhas de aacutegua em ciacuterculo mas que naquele tempo providenciava a toda a gente uma corrente abundante mantendo a mesma temperatura de Veratildeo e de Inverno E assim viviam eles como guardiotildees dos seus proacuteprios cidadatildeos e comandantes reconhecidos dos outros gregos e garantiam a todo o custo que o

42 tecirc koinecirci politeiai43 Curiosamente a privaccedilatildeo de ouro e prata especificamente

eacute tambeacutem referida na Repuacuteblica (417a) a propoacutesito classe dos guardiotildees

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nuacutemero de homens e mulheres que eram ou viriam a ser capazes de combater fosse sempre o mesmo cerca de vinte mil

Visto que eles eram desta natureza e administravam sempre com a mesma orientaccedilatildeo ndash agrave luz da justiccedila ndash a sua cidade e o resto da Heacutelade gozavam de alta reputaccedilatildeo em toda a Europa e em toda a Aacutesia graccedilas agrave beleza dos seus corpos e a todo o tipo de virtude das suas almas bem como eram famosos entre todos os homens daquele tempo

No que trata agrave condiccedilatildeo daqueles contra quem combateram e ao modo como de princiacutepio se gerou essa condiccedilatildeo se natildeo estiver privado da memoacuteria visto que o ouvi quando ainda era crianccedila restituiacute-lo-ei no meio de voacutes para que seja comum entre amigos

Mas antes ainda do meu discurso impotildee-se um breve esclarecimento para que natildeo fiqueis admirados por muitas vezes ouvirdes nomes gregos aplicados a homens estrangeiros ouvi entatildeo a razatildeo Soacutelon por ter pensado em utilizar esta narrativa na sua poesia procurou o significado destes nomes e descobriu que aqueles primeiros egiacutepcios os tinham redigido vertidos na sua proacutepria liacutengua entatildeo ele por sua vez depois de ter assimilado o sentido de cada um desses nomes registou-os e traduziu-os para a nossa liacutengua Estes escritos estiveram na posse do meu avocirc e neste momento estatildeo ainda comigo com os quais me exercitei enquanto era crianccedila Portanto que natildeo vos cause nenhuma admiraccedilatildeo se ouvirdes alguns nomes como estes aiacute tendes portanto a razatildeo Mas vejamos agora como era o princiacutepio daquela grande narrativa

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Tal como foi dito anteriormente44 acerca da partilha que ocorreu entre os deuses eles dividiram toda a terra aqui em porccedilotildees maiores e acolaacute em mais pequenas onde estabeleceram templos e sacrifiacutecios em seu proacuteprio benefiacutecio Deste modo Posiacutedon quando lhe coube em sorte a Ilha da Atlacircntida estabeleceu aiacute os filhos que gerou de uma mulher mortal num certo local da ilha

Existia ao longo de toda a ilha em direcccedilatildeo ao mar uma planiacutecie central a qual se diz que seria a mais bela de todas as planiacutecies e com uma fertilidade consideraacutevel Nesta planiacutecie havia ainda na parte central uma montanha baixa em todos os pontos que distava cinquenta estaacutedios45 do mar Neste local estava um habitante de entre os homens que aiacute tinham nascido dessa terra em tempos primordiais o seu nome era Evenor e vivia juntamente com a sua mulher Leucipe tiveram uma filha uacutenica Clito Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido a sua matildee e o seu pai morreram e entatildeo Posiacutedon desejou-a e uniu-se a ela Entatildeo de modo a construir uma cerca segura desfez num ciacuterculo o monte em que ela habitava e construiu agrave volta aneacuteis de terra alternados com outros de mar uns maiores uns mais pequenos ndash dois de terra e trecircs de mar no total torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos para que fosse inacessiacutevel aos homens46 com efeito naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava

44 Cf supra 109b-c45 8880m46 O sistema de aneacuteis atlante traz agrave memoacuteria uma descriccedilatildeo

do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana registada por Heroacutedoto (Histoacuterias 198)

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Foi o proacuteprio Posiacutedon que organizou o centro da ilha ndash facilmente pois era um deus ndash fazendo surgir de debaixo da terra duas nascentes de aacutegua ndash uma quente outra fria ndash que corriam de uma fonte e fez brotar da terra alimentos variados e suficientes Engendrou e criou cinco geraccedilotildees de varotildees geacutemeos e dividiu toda a Ilha da Atlacircntida em dez partes entregou a residecircncia materna ao que de entre os mais velhos nascera primeiro juntamente com a porccedilatildeo que a circundava que era a maior e a melhor e nomeou-o rei dos restantes ao passo que fez destes governantes bem como atribuiu a cada um o governo de muitos homens e uma regiatildeo com vastos territoacuterios A todos eles atribuiu nomes ao mais velho ndash o rei ndash deu-lhe o nome do qual toda a ilha e tambeacutem o mar chamado Atlacircntico receberam uma designaccedilatildeo derivada ndash o primeiro que reinou tinha entatildeo o nome Atlas47 Ao segundo geacutemeo ndash o que nasceu depois deste ndash a quem havia cabido em sorte uma porccedilatildeo na extremidade da ilha na direcccedilatildeo das Colunas de Heacuteracles ateacute agrave regiatildeo aleacutem daquele ponto que hoje eacute chamada Gadiacuterica deu o nome Eumelo em grego e Gadiro na liacutengua do paiacutes sendo esta designaccedilatildeo a que deu o nome agravequela zona48 Aos dois que nasceram depois

47 Titatilde que em virtude de ter tentado usurpar o poder de Zeus foi punido com a obrigaccedilatildeo de suster sobre os ombros o ceacuteu Eacute apresentado neste contexto como primeiro rei da Atlacircntida O facto de Atlas (e natildeo Posiacutedon) ser apontado como primeiro rei da Atlacircntida pode estar ligado agrave localizaccedilatildeo miacutetica da ilha de uma filha sua nos confins dos Jardins das Hespeacuterides que segundo Hesiacuteodo (Teogonia vv 215-216 517-518) se situavam precisamente naquela zona

48 Gadiro estaacute na origem do nome da actual cidade de Caacutediz e

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chamou Anferes e Eveacutemon aos terceiros Mneacuteseas ao que nasceu primeiro e Autoacutecton ao que nasceu a seguir ao primeiro dos quartos Elasipo e Mestor ao seguinte aos quintos pocircs o nome Azais ao que nasceu antes e Diaprepes ao seguinte E assim todos eles e os seus descendentes ali viveram durante muitas geraccedilotildees governando sobre todas as outras ilhas do mar e ainda tal conforme dito anteriormente49 como senhores dos territoacuterios aqueacutem das Colunas de Heacuteracles ateacute ao Egipto e a Tirreacutenia50

De Atlas nasceu uma linhagem numerosa e honrada o rei que era o mais velho transmitia a monarquia sempre ao mais velho dos descendentes e assim se preservaram durante muitas geraccedilotildees Aleacutem disso detinham riquezas em nuacutemero tatildeo elevado como nunca houve em quaisquer dinastias de reis anteriores nem eacute faacutecil que haja nas que se sigam pois estavam providos de tudo do que havia necessidade garantir agrave cidade e ao resto do territoacuterio Com efeito ainda que muito viesse de fora por causa do impeacuterio a proacutepria ilha fornecia a grande maioria dos bens essenciais Em primeiro lugar tudo quanto fosse soacutelido e fundiacutevel era extraiacutedo pelo ofiacutecio mineiro bem como aquilo que actualmente apenas nomeamos ndash naquela altura mais do que um nome existia a substacircncia o oricalco51 que a Gadiacuterica seria toda aquela zona circundante

49 Cf Timeu 25a-b50 A Tirreacutenia ou Etruacuteria era a paacutetria dos Etruscos localizada na

parte central da Peniacutensula Itaacutelica51 A letra oreichalcos significa ldquoo cobre das montanhasrdquo Era usado

pelos Atlantes como elemento decorativo para o revestimento de superfiacutecies (as muralhas da muralha central da ilha 116c os tectos

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era extraiacutedo em vaacuterios locais da ilha o qual naquela altura era agrave parte o ouro o material mais valioso ndash e a floresta fornecia tudo quanto pudesse ser trabalhado pelos carpinteiros

A ilha produzia tudo em abundacircncia e no que respeita aos animais alimentava convenientemente os domesticados e os selvagens incluindo a raccedila dos elefantes que nela existia em grande nuacutemero No entanto havia tambeacutem pastagens para os outros seres-vivos tanto os que viviam nos pacircntanos nos lagos e nos rios quanto os que pastavam nas montanhas e nas planiacutecies ndash havia em abundacircncia para todos eles e tambeacutem na mesma medida para este animal52 que era por natureza o maior e o mais voraz Aleacutem disto criava tambeacutem diversos aromas que actualmente a terra tem aqui e ali de raiacutezes folhagens madeiras ou sucos destilados de flores ou de frutos ndash isto produzia e criava a ilha em abundacircncia Mais ainda frutos cultivados secos e tudo quanto usamos na alimentaccedilatildeo e de que aproveitamos o gratildeo ndash chamamos leguminosas a todas as suas variedades ndash os frutos das aacutervores que nos fornecem bebida comida e oacuteleo53 os frutos que crescem em ramos altos os quais satildeo difiacuteceis de armazenar e

paredes colunas e pavimento do templo de Posiacutedon) aleacutem disso tambeacutem a estela que continha gravadas as leis dos primeiros reis era deste material (119d) Embora se tenha tentado identificar esta substacircncia com ldquoum reluzir semelhante ao fogordquo (116c) propondo hipoacuteteses como o latatildeo ou uma liga composta entre ouro e cobre (como sugere a falsa etimologia latina aurichalcum) eacute provaacutevel que se trate de uma substacircncia mitoloacutegica Sobre este assunto vide Halleux (1973)

52 Isto eacute o elefante53 Azeitonas

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que usamos apenas por prazer e divertimento54 e tudo quanto oferecemos como estimulante desejaacutevel depois da ceia a quem sofre por estar cheio55 ndash naquela altura a extraordinaacuteria ilha que entatildeo estava sob o Sol56 fornecia todas estas coisas belas e admiraacuteveis em quantidade ilimitada

Por receberem da terra tudo isto construiacuteram templos residecircncias reais portos estaleiros navais e melhoraram todo o restante territoacuterio organizando tudo do modo que se segue Primeiro fizeram pontes sobre os aneacuteis de mar que estavam agrave volta da metroacutepole antiga criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real Esta zona real fizeram-na logo de princiacutepio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados Como cada um quando o recebia do outro adornava aquilo que jaacute estava adornado superava sempre na medida do possiacutevel o anterior ateacute que tornaram o edifiacutecio espantoso de ver graccedilas agrave magnificecircncia e beleza das suas obras

Escavaram um canal com trecircs pletros57 de largura cem peacutes58 de profundidade e cinquenta estaacutedios59 de comprimento que comeccedilaram a partir do mar ateacute ao anel mais exterior e naquele local construiacuteram uma via de acesso do mar agravequele ponto como a um porto

54 Tratar-se-aacute provavelmente de romatildes55 Seraacute com bastante certeza o limatildeo que naquela altura era

utilizado com este fim56 Isto eacute que ainda natildeo tinha sido engolida pelo mar (vide supra

25c-d 108e)57 888m58 296m59 8880m

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tambeacutem abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito grandes Tambeacutem abriram os aneacuteis de terra que separavam os de mar obedecendo agrave direcccedilatildeo das pontes de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma soacute trirreme e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo eacute que as bordas dos aneacuteis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar

O maior dos aneacuteis aquele pelo qual passava o mar tinha trecircs estaacutedios60 de largura e o anel de terra contiacuteguo tinha a mesma largura Dos segundos o de aacutegua tinha dois estaacutedios61 de largura enquanto que o seco era mais uma vez igual ao anterior de aacutegua aquele que circulava no centro da ilha tinha um estaacutedio62 Quanto agrave ilha onde estava a zona real ela tinha cinco estaacutedios63 de diacircmetro Agrave volta dela a partir dos aneacuteis e de um lado e de outro da ponte que tinha um pletro64 de largura lanccedilaram uma muralha de pedra e colocaram torres e portas em cada um dos lados das pontes vedando o acesso a partir do mar A pedra que era branca negra e vermelha extraiacuteram-na debaixo da ilha do centro e debaixo dos aneacuteis quer da parte de fora quer da de dentro Ao mesmo tempo que a extraiacuteam iam construindo no interior do espaccedilo vazio docas duplas que cobriam com a mesma pedra Algumas das estruturas fizeram-nas simples mas noutras misturaram as pedras e assim

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produziram por divertimento um entranccedilado colorido tornando-as naturalmente apraziacuteveis As muralhas que circundavam a parte exterior do anel a toda a volta do periacutemetro revestiram-nas com cobre que usaram como pintura as da parte interior com estanho fundido e as que circundavam a Acroacutepole com oricalco que tinha um reluzir semelhante ao fogo

Quanto ao modo como estava disposta a zona real no interior da Acroacutepole era o seguinte No centro ndash ali mesmo ndash estava um templo sagrado dedicado a Clito e a Posiacutedon o qual tornaram inacessiacutevel envolvendo-o numa cerca de ouro ndash foi naquele siacutetio que no princiacutepio estes deuses conceberam e geraram a linhagem dos dez priacutencipes era tambeacutem naquele mesmo siacutetio que todos os anos entregavam a cada um deles as primiacutecias sagradas provindas das dez partes da ilha Ali estava o naos65 soacute de Posiacutedon que tinha um estaacutedio66 de comprimento e trecircs pletros67 de largura ndash em altura parecia proporcional a estas medidas mas a aparecircncia era de certa forma baacuterbara Toda a parte exterior do naos tinha sido coberta com prata agrave excepccedilatildeo das extremidades (as extremidades foram cobertas com ouro)

Quanto agrave parte interior o tecto era de marfim maciccedilo com ouro prata e oricalco o que lhe dava uma aparecircncia variegada enquanto que revestiram todas as outras partes ndash paredes colunas e pavimento ndash com oricalco Erigiram estaacutetuas de ouro o deus erguido num

65 Parte interior do templo onde se encontrava a estaacutetua do deus ao qual o edifiacutecio era consagrado

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carro segurando as reacutedeas de seis cavalos alados que graccedilas agrave sua altura tocava no tecto com a cabeccedila agrave volta dele estavam cem Nereides montadas em golfinhos ndash naquele tempo julgavam que elas eram assim tantas68 no interior havia ainda muitas outras estaacutetuas que tinham sido oferecidas por particulares Em torno do naos no exterior estavam erguidas representaccedilotildees de ouro de todas as mulheres e dos descendentes dos dez reis e muitas outras grandes estaacutetuas de reis e tambeacutem de particulares da proacutepria cidade e de quantos territoacuterios no exterior eles governavam Concordante em grandeza e construccedilatildeo com esta edificaccedilatildeo havia um altar bem como a zona real estava tambeacutem de acordo com a grandeza do impeacuterio e com a organizaccedilatildeo que rodeava estes locais sagrados

Quanto agraves fontes a que tinha uma corrente fria e a que tinha uma quente abundantes e inesgotaacuteveis sendo cada uma das quais de uma admiraacutevel utilidade em virtude do sabor e da excelecircncia das suas aacuteguas aproveitavam para construir edifiacutecios em torno delas para plantar aacutervores adequadas agraves suas aacuteguas e para instalar reservatoacuterios ndash uns a ceacuteu aberto outros cobertos tendo em vista os banhos quentes durante o Inverno

68 As Nereides filhas de Nereu e ninfas marinhas associadas ao culto de Posiacutedon eram no tempo de Platatildeo apenas 50 Quanto agrave estaacutetua em si o facto de Criacutetias dizer que quase tocava no tecto do templo que a albergava traz agrave memoacuteria a estaacutetua de Zeus em Oliacutempia uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo Diz Estrabatildeo (Geografia 8330 a traduccedilatildeo deste passo pode ser consultada em Ferreira amp Ferreira 2009 pp 182-184) que se o deus se levantasse (estava representado sentado) arrancaria seguramente o telhado do edifiacutecio

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De um lado estavam os reais do outro os particulares outros ainda para as mulheres e os restantes para os cavalos e para os outros animais de jugo atribuindo a cada um deles a organizaccedilatildeo que lhe era adequada De modo a dirigir a corrente para o bosque sagrado de Posiacutedon que tinha todo o tipo de aacutervores de uma beleza e uma altura divinas graccedilas agrave fertilidade da terra e para os territoacuterios perifeacutericos canalizaram-na por meio de condutas ao longo das pontes Ali construiacuteram vaacuterios templos de muitos deuses vaacuterios jardins e ginaacutesios uns para os homens outros agrave parte para os cavalos em cada uma das ilhas dos aneacuteis

Entre outras coisas havia no centro da ilha grande um hipoacutedromo agrave parte com um estaacutedio69 de largura cujo comprimento compreendia a totalidade do periacutemetro do anel para a competiccedilatildeo dos cavalos Em toda a volta havia por toda a parte aquartelamentos para um grande nuacutemero de guarda-costas ndash a guarniccedilatildeo dos que eram mais fieacuteis estava disposta no anel mais pequeno no ponto mais proacuteximo da Acroacutepole e aos que de entre todos estes se distinguiam em fidelidade foram concedidas residecircncias no interior da Acroacutepole junto agraves proacuteprias residecircncias reais Os estaleiros navais estavam preenchidos de trirremes e de quantos acessoacuterios satildeo adequados agraves trirremes tudo preparado de forma capaz

Quanto agraves periferias da residecircncia dos reis elas estavam dispostas do seguinte modo quando se atravessava os portos ndash que eram trecircs ndash vindo do exterior

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uma muralha estendia-se em ciacuterculo que comeccedilava no mar distando em todos os pontos cinquenta estaacutedios70 do maior anel e do porto e fechava-se na barra do canal que dava para o lado do mar Todo este local estava povoado por edifiacutecios numerosos e concentrados ao passo que o canal e o porto maior estavam preenchidos por naus e comerciantes que vinham de todo o lado que por serem em grande nuacutemero causavam um clamor e um ruiacutedo produzido por toda a espeacutecie de barulhos tanto de dia quanto durante a noite

Temos agora na memoacuteria uma aproximaccedilatildeo daquilo que foi narrado naquele tempo sobre a cidade e a zona circundante das antigas edificaccedilotildees devemos entatildeo tentar relembrar qual era a natureza do resto da regiatildeo e o tipo de organizaccedilatildeo que tinha Primeiro todo este lugar segundo se dizia era muitiacutessimo alto e escarpado desde o mar mas a periferia da cidade era toda plana Esta zona que rodeava a cidade era ela proacutepria rodeada por montanhas em ciacuterculo que se estendiam ateacute ao mar ndash aleacutem disso era plana e nivelada toda ela oblonga com trecircs mil estaacutedios71 numa direcccedilatildeo e pela parte central dois mil estaacutedios72 do mar ateacute ao topo Esta regiatildeo da ilha estava orientada para Sul abrigada do Norte As montanhas que a circunscreviam naquele tempo eram famosas pelo nuacutemero grandeza e beleza superando todas as que hoje existem nelas havia aldeias ricas e numerosas rios lagos prados que forneciam alimento suficiente para todos os animais domeacutesticos

70 8880m71 5328km72 3552km

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e selvagens e uma floresta toda ela abundante e com grande variedade de espeacutecies ndash uma fonte inesgotaacutevel para todo o tipo de obras em geral e para cada uma em particular

A planiacutecie foi mantida pela natureza e tambeacutem por muitos reis durante muito tempo do seguinte modo A maior parte da sua aacuterea formava um quadrilaacutetero rectangular e oblongo e o restante aplanaram-no por meio de uma vala que escavaram em ciacuterculo Na medida em que se tratava de uma obra feita agrave matildeo a profundidade largura e comprimento desta fossa de que se fala satildeo duvidosos se a compararmos aos outros empreendimentos mas devemos dar a conhecer aquilo que ouvimos dizer foi escavada com um pletro73 de profundidade um estaacutedio de largura em todos os pontos e visto que tinha sido escavada agrave volta de toda a planiacutecie a largura era coincidente 10000 estaacutedios74 Como recebia as correntes de aacutegua que desciam das montanhas e sabendo que rodeava a planiacutecie chegava agrave cidade por ambos os lados descarregava deste modo o fluxo no mar Assim talharam vaacuterios canais perpendiculares com 100 peacutes75 de largura e cada um dos quais 100 estaacutedios76 afastado dos outros dispostos transversalmente ao longo da planiacutecie desde as montanhas que iam por seu turno desaguar na outra ponta da vala na direcccedilatildeo do mar Era deste modo que transportavam a madeira das montanhas ateacute agrave cidade

73 296m74 1776km75 296m76 1776km

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e expediam os restantes produtos da eacutepoca por meio de barcos visto que haviam talhado vias de navegaccedilatildeo transversais de uns canais para outros e para a cidade ndash colhiam os frutos da terra duas vezes por ano Usavam no Inverno a aacutegua que vinha de Zeus e no Veratildeo a que a terra fornecesse e os fluxos que faziam correr dos canais77

No que respeita agrave populaccedilatildeo foi estabelecido que na planiacutecie cada distrito forneceria um homem que comandasse aqueles que pudessem servir para a guerra sendo que o tamanho de cada regiatildeo era de dez por dez estaacutedios78 e no total havia sessenta mil distritos Dizia-se que o nuacutemero de homens das montanhas e do resto do territoacuterio era infinito e todos eles em funccedilatildeo dos lugares e das aldeias estavam distribuiacutedos pelos distritos e adscritos a quem as comandava conforme o lugar e a aldeia

Estava prescrito que caso houvesse guerra cada comandante fornecesse uma sexta parte de um carro de guerra para um total de dez mil carros dois cavalos e respectivos cavaleiros mais um par de cavalos sem carro um soldado que combatesse com um pequeno escudo a peacute e tambeacutem dentro do carro bem como pudesse conduzir ambos os cavalos dois hoplitas79 arqueiros e fundeiros80 ndash tambeacutem dois de cada soldados

77 Este sistema de irrigaccedilatildeo faz lembrar descriccedilatildeo de Heroacutedoto (Histoacuterias 3117) da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia

78 1776m por 1776m79 Soldados de infantaria pesada que usavam uma lanccedila

comprida e estavam munidos de uma pesada armadura80 Atiradores que manejavam a funda ndash uma arma constituiacuteda

Platatildeo

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de infantaria ligeira uns que lanccedilassem pedras e outros dardos ndash trecircs de cada quatro marinheiros para formar tripulaccedilatildeo de mil e duzentas naus Assim estavam organizadas as tarefas militares da cidade real quanto agraves restantes nove regiotildees era de outro modo mas isso levaria muito tempo para explicar

Quanto agrave organizaccedilatildeo inicial das instituiccedilotildees de governo e dos cargos processou-se do seguinte modo Cada um dos dez reis na sua regiatildeo e na sua cidade detinha um poder absoluto sobre as leis e sobre os homens pois castigava e condenava agrave morte quem quer que quisesse Por outro lado a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relaccedilotildees muacutetuas dependiam das determinaccedilotildees de Posiacutedon tal como lhes transmitira a lei que havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco que se encontrava no centro da ilha num templo de Posiacutedon Nesse local os reis reuniam-se de cinco em cinco e de seis em seis anos alternadamente distribuindo assim equitativamente ciclos de anos pares e iacutempares durante essas reuniotildees deliberavam sobre assuntos de interesse comum verificavam se algum deles tinha transgredido alguma norma e julgavam-no Quando chegava a altura de julgar trocavam antes votos de boa feacute entre si do seguinte modo81 Depois de terem

por um entranccedilado de couro ou corda para arremessar pedras81 O ritual que Criacutetias estaacute prestes a descrever tinha por objectivo

um contacto com o deus Posiacutedon que ao escolher um touro para sacrificar inspiraria os dez reis nas suas decisotildees e reforccedilaria a obediecircncia agraves leis divinas Na origem deste sacrifiacutecio poderaacute estar um episoacutedio relatado por Heroacutedoto (Histoacuterias 2 147-sqq) segundo este autor foi estabelecida uma monarquia no Egipto cujos moldes eram muito semelhantes previa uma divisatildeo territorial sendo

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sido largados os touros no templo de Posiacutedon os dez reis que estavam sozinhos faziam imprecaccedilotildees ao deus para que eles capturassem a viacutetima que lhe agradasse depois perseguiam-na sem armas de ferro mas sim com paus e laccedilos Desses touros aquele que tivessem capturado levavam-no para junto da estela e degolavam-no no topo dela para que o sangue corresse pelas letras ndash na estela junto agraves leis estava um juramento que imprecava grandes maldiccedilotildees para aqueles que o violassem Entatildeo depois de sacrificarem o touro de acordo com as suas leis queimavam todos os seus membros enchiam um kratecircr82 de vinho misturado e deitavam um pedaccedilo de sangue coagulado sobre cada um em seguida limpavam a estela e lanccedilavam o restante para o fogo Depois disto retirando vinho do kratecircr com phiales83 de ouro e fazendo libaccedilotildees na direcccedilatildeo do fogo juravam julgar de acordo com as leis que estavam na estela punir quem anteriormente as tivesse transgredido em algum ponto natildeo transgredir propositadamente nenhuma daquelas escrituras no futuro e natildeo governar nem obedecer a nenhum governante a natildeo ser ao que estava estabelecido de acordo com as leis do pai Depois de fazer estas

cada regiatildeo (12 em vez de 10) administrada por um rei esses reis reuniam-se em assembleia em ambiente ritual e tambeacutem junto a um templo e durante esse encontro faziam sacrifiacutecios libaccedilotildees bem como ingeriam uma bebida sacrificial Aleacutem disso faziam juramentos de fidelidade e entreajuda e elegiam um dos reis como soberano Curiosamente esta civilizaccedilatildeo tambeacutem cultivava uma arquitectura rica e monumental

82 Recipiente utilizado para misturar o vinho com aacutegua antes de ser servido

83 Espeacutecie de copo ndash largo baixo sem asa nem peacute ndash utilizado para retirar o vinho do kratecircr durante as libaccedilotildees

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imprecaccedilotildees para si proacuteprio e para aqueles que de si nascessem cada rei bebia e oferecia como ex-voto a phiale ao templo do deus e dedicava-se ao jantar e a tudo o resto de que tinha necessidade Quando chegava a escuridatildeo e o fogo do sacrifiacutecio se extinguia entatildeo todos eles vestidos com um beliacutessimo manto azul-escuro sentavam-se no chatildeo junto agraves cinzas sacrificiais Agrave noite depois de apagarem por completo o fogo junto ao templo eram julgados e julgavam caso algum deles acusasse outro de ter transgredido algum ponto Depois de julgarem quando chegava a claridade registavam as determinaccedilotildees numa placa de ouro que vestidos com o manto ofereciam como monumento

Havia muitas outras leis particulares sobre as prerrogativas de cada rei mas as mais importantes eram as seguintes nunca em circunstacircncia alguma lutarem entre si ajudarem-se todos uns aos outros caso algum deles tentasse alguma vez destituir a famiacutelia real numa cidade e tal como os antepassados deliberar em comunhatildeo as resoluccedilotildees respeitantes agrave guerra e a outros assuntos atribuindo o comando agrave estirpe de Atlas Natildeo era liacutecito que um rei determinasse a morte de nenhum membro da sua famiacutelia se natildeo tivesse o voto de metade dos dez reis

Esta era segundo o relato a natureza e o poderio que outrora existia naquelas terras e que o deus84 por sua vez organizou e dali trouxe aqui para estas terras pelo seguinte motivo Durante vaacuterias geraccedilotildees

84 Tratar-se-aacute provavelmente de Zeus pois na uacuteltima secccedilatildeo que resta do diaacutelogo (121c) eacute dito que este deus decide aplicar uma puniccedilatildeo aos Atlantes

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enquanto a natureza do deus85 os engrandecia foram obedientes agraves leis e mantiveram-se indulgentes agrave ascendecircncia divina em todos os aspectos aspiravam a pensamentos verdadeiros e grandiosos e faziam sempre uso da delicadeza86 juntamente com a prudecircncia87 perante as vicissitudes e nas relaccedilotildees entre si ndash daiacute que desprezavam tudo menos a virtude pouco apreciavam a sua condiccedilatildeo e suportavam com facilidade tal como um fardo o peso do ouro e das outras riquezas Assim por natildeo se inebriarem pela sumptuosidade causada pela riqueza nem se descontrolarem natildeo capitulavam Pelo contraacuterio mantendo-se soacutebrios percebiam com acuidade que tudo isso aumentava graccedilas agrave amizade muacutetua acompanhada da virtude mas que isso mesmo decaiacutea por causa da acircnsia e da veneraccedilatildeo bem como a virtude era destruiacuteda pelo mesmo motivo

Foi graccedilas a esta maneira de pensar e agrave natureza divina que mantinham em si que aumentavam todas estas riquezas de que temos falado Mas quando a parte divina neles se comeccedilou a extinguir em virtude de ter sido excessivamente misturada com o elemento mortal passando o caraacutecter humano a dominar entatildeo incapazes de suportar a sua condiccedilatildeo caiacuteram em desgraccedila e aos olhos de quem tem discernimento pareciam desavergonhados pois haviam destruiacutedo os bens mais nobres que advecircm da honra88 Mas aos olhos

85 Neste caso o deus seraacute Posiacutedon pois era dele que descendiam os Atlantes

86 praotecircs87 phronecircsis88 Note-se a ideia da condiccedilatildeo humana enquanto degeneraccedilatildeo

Platatildeo

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daqueles que natildeo conseguem discernir a conduta que corresponde agrave verdadeira felicidade davam a impressatildeo de ser extremamente belos e felizes mas estavam impregnados de uma arrogacircncia injuriosa e de poder89

O deus dos deuses ndash Zeus ndash que reina por meio de leis como tem capacidade para discernir este tipo de acontecimentos apercebeu-se de que uma estirpe iacutentegra estava organizada de um modo lastimoso Entatildeo decidiu aplicar-lhes uma puniccedilatildeo de modo a que eles se tornassem razoaacuteveis e moderados Reuniu todos os deuses na sua nobiliacutessima morada que se encontra estabelecida no centro do mundo e contempla tudo quanto participa no devir90 e depois de os ter reunido disse91

progressiva de uma origem divina89 O processo de queda da civilizaccedilatildeo atlante motivado por

uma degenerescecircncia moral faz lembrar a anaacutelise histoacuterica que Platatildeo dedica ao desmembramento do impeacuterio persa nas Leis Neste diaacutelogo o Estrangeiro de Atenas estabelece um contraste entre o reinado de Ciro eacutepoca em que este povo vivia ldquona justa medida entre a servidatildeo e a liberdaderdquo (694a) e o tempo dos seus descendentes que preferiam a luxuacuteria a desmesura e a licenciosidade (695a-b) para explicar a perdiccedilatildeo persa culminada nos exageros de Xerxes (695d-696b)

90 Ao colocar os deuses liderados por Zeus no centro do mundo criado o discurso de Criacutetias confirma a transmissatildeo de poderes por parte do demiurgo jaacute adianta durante o discurso de Timeu Quando o demiurgo entrega agraves divindades menores a tarefa de fabricar as partes mortais da espeacutecie humana (69c) delega-lhes ao mesmo tempo a tarefa de os governar (42e)

91 O texto termina abruptamente neste ponto por motivos que natildeo se conhecem

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Timeu

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Apecircndices

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Iacutendice analiacutetico

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Iacutendice analIacutetico1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

abdoacutemen 78a-e 80d 85eaacutecido 66b 74cactividade intelectual 88a cadamante 59badivinhaccedilatildeo v divinaccedilatildeoagudeza 53d 56a 57a 61e

67b 80a-balma 18a 22b 38e 69c

do homem [36-38 41] 27c n57 42d 43a-d 44a-c 45a d 46d 47d 60a 61c-d 65a 67b 69e 72d 73b-d 74e-75a 76a 81d 85e 86b-88c 89e 90a 91b e 92b 109c 112e 121c n90

parte desiderante 70d-e 71b d 77bparte passional 70aparte racional v intelecto

do mundo [26-27 36 40 50] 30b-c 34b-c 36d-e 37b-c 41d

acircnguloagudo 53d 57a 61eplano (60ordm) 54e-55a crecto 53d 55b-csoacutelido (180ordm) 54e-55b

aquilo em que (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar re-ceptaacuteculo suporte) [43-44] 49e 50c

armas 24b 119a-b e 110barqueacutetipo (cf Ideia ser) [33-

34 39 41-42 45-47] 28a-b e 29b 31a 37c 38b 39e 48e

associaccedilatildeo (cf dissociaccedilatildeo) 64e 65c

biacutelis 71b 82e 83b-c 84d 85a-d

bom-senso 89bcausa [23-24 33-38 51] 22c

28a c 29a 44c 46e-47a 57c-d 58a 61b-c 63e-64a

Iacutendice analiacutetico

256 257256 257

65b 66b 67b-c 69a 70b 76c 79a c 80d 84b 85b n262 87e-88a 89a

acessoacuteria 46c-e 68e 76ddivina 69aerrante 48ainstrumental 68enecessaacuteria 68e-69aprimeira 46dprincipal 76dsecundaacuteria 46e

ceacuterebro 67b 76a ccomposiccedilatildeo (cf decomposi-

ccedilatildeo) [40 49] 33a d 36b 41a d 53b 54a c 55a e 58b e 60e 61b 74c-d 81b e 82c 87e

congeacutenere [34 52] 29b 33b 45d 47b d 57b 63c e 71b 76c 77c 79d 80d 81a-b 85a 88e 90a c 91e

coacutepia 29b-ccores 67c-68dcorpo [37 44 49 58] 19c

33a 34b 35a 36d 43c 45c 46d 50b 53c-e 54b 55c-d 56a-e 57c-d 58b-c 60b-c 61b-d 63c-64a d-e 66d 67c-d 92a 109bceleste [30 35 40] 22d 38c edo homem [40 41] 42a d 43a c 44b-47e 51c-d 53c 60a 61d 62a 65b 69c-e 70b-e 72c-76e 77c-86a 87c-89a 90a 91c 107b d 111b 112edo mundo [25 27 33 50]

28b 30b 31b-40d 44ddaimon 27c n57 90a cdecomposiccedilatildeo (cf composi-

ccedilatildeo) 54c 58edemiurgo [26 33 35-36 38-

42 49-50 52-53] 28a 29a-30c 31a 33a 36d n107 39e 41a 42e 68e-69c 106a n2 121c n90

densidade 59b 62c 64adesejo amoroso [37] 42a

69d 91a-cdevir [24 31-33 37 42 44 47

52-53] 27c 28b 29c-e 38a 49a 51a 52a-d 59d 121c

diluacutevio 20e n18 22b d 23b 25c 111a 112a

discurso verosiacutemil (cf verosi-milhanccedila narrativa verosiacute-mil) [48-53] 30b 55d-e 57d 68b 90e

dissemelhanccedila 33b 39e 45a d 51e 53a e 57c 60a 63b-d 80a 83c

dissociaccedilatildeo (cf associaccedilatildeo) 61d 64e 65c

dissoluccedilatildeo 33a 38b 41a-b 52a 53e 56c-d 57a-b 58e 60b-61b 65d 66d 67e 68d 73e 79a 81a 82e-83d 84d-e 85d-e 111e

divinaccedilatildeo 24c 71d-72bdoce v doccediluradoccedilura 60b 66c 71b-c 78ddoenccedila 17a 23a 71e

da alma 44c 86b-92cdo corpo 33a 72c e 81e-86a

256 257

Iacutendice analiacutetico

256 257

dor (cf prazer) 42a 64a-65b 69d 71c 75b 77b 81e 86b d-e

duplicaccedilatildeodo cubo [21 n7]do quadrado 32a-b

dureza 43c 59b 62b 63e 76d

elementos [24-26 29 41 49] 32a-c 43a 44a 48b-c 49b 51a 52d-61c 73a 76b 81e-82c 121aaacutegua [23 29 41 46] 32b-c 42c e 43c 46d 48b 49b-d 51a-b 53b-c 55d 56a-e 57b 58d 59b-61c 66b-e 68a 69b 73b e 74c 78a 79a 80b 82a 86a 92bar [23 29 41] 32b-c 33c 42d-e 45d 46d 48b 49c 51a-b 52d 53b-c 55d-61c 63b-c 64c 66a-67b 73b 77a 78a-d 79b-80a 82a 83c 84b-85a 86a 92bfogo [29 41] 31b 32b-c 40a 42c-e 43c 45b-46d 48b 49b-2 51a-b 53b-54b 55d-61e 63b 64c-d 67e-68b 69b 70c 73b-e 74c 76b 77a 78a-e 79d-e 80d-e 82a 83b 86aterra [29 40-41] 31b 32b-c 42d-43c 44d 46d 48b 49c 51a-b 52d-53e 55d-e 56d-e 58e-61b 63c 66d 73b-e 74c 78a 82a 86a

epilepsia 85b n262

esfera [25 40] 33b 44d 55a c n197 62c 63a 73e

espelho 46a-c 71b 72cEstado [15-16 58 62] 17c

19b 20b 25e 110d n29estaacutedio (medida) 113c 115d-

116c 117c-119aestaleiro naval 115c 117devidecircncia [57] 91e 110e

111cfebre 84e 86afleuma 82e 83c-d 84d-85b

86efluxo (cf refluxo) 43a-b 44b

45c 75e 78c 80b 86e 88a

frio 22e 33a 62b 74b-c 82a 85d

guerra [22 38 54 62 64] 18c 19c-20b 23c 24b d 25b 88e 108c n12 108e-109a 110a-b 119a 120d 121c n90

harmonia [25 30-31] 26d 37a 41a 47c-d 55c 67c 69b 80a-b 90d

hipotenusa 54dhumidade v huacutemidohuacutemido 43c 51b 59a 60c-d

62a 65d-66b 68a-b 74c-d 76a-b 82b

Ideia (cf arqueacutetipo ser) [18-20 31 39 52-53] 27c n57 28a nn 61 64 29a n68 33d n95 35a nn103 104 51c-d

imagem [34 52] 29b 37d 52c 92c

Iacutendice analiacutetico

258 259258 259

imitaccedilatildeo [39 45-46 52-53 62] 19d 38a 39e 40d 41c 42e 47c 48e 50c 51b 69c 81b 88c 107b-c

impressatildeo 42a 43b 44a 45c 52d 57c 58e 61c

instituiccedilatildeo poliacutetica 23c 87aintelecccedilatildeo 37c 46d-e 51d-eintelecto [50] 27c 29b-30c

34a 36d-37a 39e 44a 46d 47d 71b 77b 87c 92b-c 109d 121c n90

Intelecto [23-24 35-37 42] 47b-48a

inteligiacutevel [31-33 43-44 53] 28a nn59 64 30c-31a 38b n120 39e 48e 51a c 92c

interstiacutecio 58b 59c-61birracionalidade [32 36-37]

28a 42d 43b e 47d 69dirregularidade 30a 52e 58d

59a 62b 63ejusticcedila 17d 41c 112ekratecircr 120alei 21e n28 23e-24d 27b

41e 83e 109e 114e n51 119c-120e 121b

limite 51b-c 55c d n199 60b 69e-70e 82b 112a

localizaccedilatildeo (cf aquilo em que lugar receptaacuteculo suporte) [42-47] 52b

loucura 86b-clugar (cf aquilo em que locali-

zaccedilatildeo receptaacuteculo suporte) [42-47] 52a-d

medula [40-41] 73b-75a 77d 81c-d 82c-d 84b 85e

86c 91a-bMesmo [26] 35a-b 36c-40b

42d 43d-44b 83e-84bmito [54 61 n24 62-63]

22b n33 22c 23e n39 26c 90a n278 109c n21 110a

movimento [26 30 35 58 63] 19b 34a 36c 37c 38a 38e-39a 40a-b 43b-c 44d 45d-e 46e 47c-d 48a n163 52a-53a 56c e 57c-58e 59d 61e 62b 64b e 67b-68a 71c 74a e 76b 77c 79b-80b 81a-b 86e 87e 88b-90c

mulher [50] 18c 42b 70a 76d 90e-91d 110b 112d 113c-d 116e 117b

muacutesica [29-31] 18a 35c n106 47c 80b n254 88c

naos 116cnarrativa verosiacutemil (cf discurso

verosiacutemil verosimilhanccedila) [48-53] 29c 59c 68d

nassa [40] 78b-d 79dNecessidade [35-37] 47e

56c 69d 75a 89bordem [35 39 41-42 53]

24b-c 30a 37d 46e 47e 53b 69b 83a 88e 90c 109c-d

organizaccedilatildeo [41-42 54 65] 20a 21b 23e 24d 53a 69c 85c 112c 113e 115c 117a-b 118a 119b-c 120d 121b

oricalco 114e 116c-d 119d

258 259

Iacutendice analiacutetico

258 259

osso 64c 73a-e 74d-75e 76d 82c-d 83d-84b 86d 111b

ouro 18b 50a-b 59b 112c 114e 116c-e 120a c 121a

Outro [26] 35a-b 36c 37a-b 38c-e 43d-44b 74a

pai [22 42] 22c 28c 37c 41a 42e 50d 71d 109c 110b n26 113d 120b

peacute (medida) 115d 118dpensamento 47b 87c 90cpercepccedilatildeo [31] 28bpintura [58] 19b 116b

encaacuteustica 26cde sombreados 107d

phiale 120a-bplanta [31] 59e 77a-c 90apletro 115d 116a d 118cpoesia 21b-c 113apoeta [39-40 56] 19d 21b-d

108bpoliedros regulares

dodecaedro 55c n297hexaedro 55c n196icosaedro [29] 55b n195octaedro [29] 55a n194tetraedro 55a n 193

poro v porosidadeporosidade 72c 79a-c 85c

86dporto 25a 115c-d 117d-epotecircncia (sentido filosoacutefico)

71b 83c (sentido matemaacute-tico) 31c (sentido poliacutetico-militar) [60 64] 24e 25b

prata 18b 112c 116dprazer (cf dor) 42a 47d 59d

64a-65b 69d 77b 80b

81e 86b-e 115bproporccedilatildeo [25 30 41 49]

31c-32c 37a 53a e 56c 68b 69b 82b 116d

providecircncia 30c 44c 45aquente 50a 61d-62a 67d

74c 76b 79d-e 82a 85d 113e 117a-b

raciociacutenio [29 39 43-44 49] 29e 30b 33a 34a 38c 47c 52b 56b 57d 72e 77b-c 86c 107b

receptaacuteculo (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar suporte) [43] 49a 50d-51a 53a 57c

refluxo (cf fluxo) 43a-brepresentaccedilatildeo [34 61-62]

37c 38c 51a 71a 107b e 116e

sabedoria 18a 24b d 109csangue 67b 70b 79d 80e-

81a 82c-84c 85c-d 119e-120a

seco 22d 60c 76d 82b 88d 115a e

sensaccedilatildeo v sensiacutevelsensiacutevel [23 31-33 37 39 44

50] 28b 37b 38b n120 42a 43c 44a 45d 47e n160 51a d 52a-b 61c-62a 64a-65e 67a-d 69d 70b 71a e 74e 75b e 76d 77a-e 80b 92c 106a n2

sentidos [32] 28a-b 38a 42a n140 75aaudiccedilatildeo 47c 64c 67a-colfacto 66c-67a

Iacutendice analiacutetico

260 261260 261

paladar 65b-66ctacto 61c-64avisatildeo 45b-47a 52d 60a 64c-d 67c-68d 91e

ser (op devir cf arqueacutetipo Ideia) [32 42 51-52] 27c n56 27d-28d 29c 34e-35b 37a-38c 48e 52d

sonho 45e 52b 71esopro respiratoacuterio 66e 78a

79b-c 80d 83d 84d 91a c

soro 82e 83csuor 83d 84esuporte (cf aquilo em que lo-

calizaccedilatildeo lugar receptaacuteculo) [43 45] 50c-d

templo [60] 23a 111d 112b-c 113c 114e n51 115b 116c 117c 119d 120b-c

teacutetano 84etouro [60] 119d-etriacircngulo [30] 48c n165 50b

53c 54a-55e 57d 58d 61a 73b 81b-d 82d 89cequilaacutetero [30] 54a-55eisoacutesceles [30] 54a-c 55brectacircngulo [30] 54d

verosimilhanccedila (cf discurso ve-rosiacutemil narrativa verosiacutemil) [32 35 39] 29c 44c 48b d 53d 56b-c 59d 67d 72d 107d

virtude [65] 24d 34b-c 86d n263 87d 109c 110c 112e 120e-121a

260 261

Iacutendice de nomes e lugares

260 261

Iacutendice de nomes e lugares1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

Anferes 114bApatuacuterias 21bApolo 108cAacutesia [60] 24b e 112e 118eAsopo 110eAtena [16 n2] 20e n19 21e

23e n39 109c 112bAtenas [16 22-23 53-54 61-

62 64-65 67-68] 21b n22 c n25 23e n39 108c n13 110b n27 121b n90

Atenienses [23 61 n24 64-65 68] 21e 23c 24b n40 27b 109a 121c n90

Aacutetica [59 68] 110eAtlantes [68] 109a n18 114e

n51 120d nn84 85Atlacircntida [16 22 53-56 59-

62 64 68] 25a-sqq 108e 113c e 114b n47

Atlas [59] 114b d 120dAutoacutecton 114c

Azais 114cCiteacuteron 110eColunas de Heacuteracles (Estrei-

to de Gibraltar) 24e 25c 108e 114b-c

Cureoacutetis 21bDeucaliatildeo 22b 112aDiaprepes 114cEgipto [22 57-58 60-61]

21c e 24b n40 25b 114c 119d n81

Elasipo 114cErictoacutenio 23e n39 110bErisiacutecton 110bEriacutedano 112aEumelo 114bEuropa [64] 24e 25b 112eEveacutemon 114bFaetonte 22cFoacutercis 40eForoneu 22aGadiacuterica [60] 114b

Iacutendice de nomes e lugares

262 263262 263

Gadiro [60] 114bGeia 23e 40eHefesto 23e 109c 112bHeacutelios 22cHera 40eHesiacuteodo 21cHomero 21cIstmo de Corinto 110dItaacutelia [21] 20aJusticcedila (divindade) 109bLiacutebia 24e 25b 108eLoacutecride [21 27] 20aMestor 114cMnemoacutesine 108dMneacuteseas 114bMusas 23a 47d-e 73a 108cNeith (Atena) 21eNereides 116eNilo 21e 22d 24b n41Niacuteobe 22aOceano (divindade) 40eOceano Atlacircntico [56 n18]

24e 114aOroacutepia 110eOropo 110d n30Panateneias [16-17 65] 21a

n19 23e n39 108c n12Parnaso 110ePirra 22b 112a n38Posiacutedon [60] 113c-e 114b

n47 e n51 116c 117b 119c-d 119d n81 120e n85

Pseacutenopis de Helioacutepolis 22a n30

Reia 40eSais 21e 22a n30Saiticos 21e

Soacutelon [22 57-58] 20e 21a-22b 23b-c 25b e 27b 110a 113a

Socircnquis de Sais 22a n30Teacutetis 40eTirreacutenia 25b 114cZeus [38 60] 40e 109c n21

111d 114b n47 116e n68 118e 120d n84 121b c n90

262 263

Glossaacuterio

262 263

glossaacuterio

agalma representaccedilatildeoagnoia ignoracircnciaaisthecircsis sensaccedilatildeo percepccedilatildeoaitia causaalogos irracionalamathia ignoracircnciaanankecirc Necessidadeanalogia proporccedilatildeoanocircmalos irregularanomoiotecircs dissemelhanccedilaapeikasia representaccedilatildeoapollymenon corruptiacutevel (sujei-

to agrave corrupccedilatildeo)aretecirc virtudeblepocirc contemplar (ldquopocircr os

olhos emrdquo)chocircra lugar(to) diakenon interstiacuteciodiakosmecircsis organizaccedilatildeodiakrisis dissociaccedilatildeodialyocirc desintegrardianoecircsis actividade intelecti-

va intelecto

dianoia actividade intelectual desiacutegnio disposiccedilatildeo pensa-mento

diataxis ordenaccedilatildeodynamis potecircncia proprieda-

deeidos Ideia formaeikocircn coacutepia imagemeikos verosiacutemileikos logos discurso verosiacutemileikos mythos narrativa verosiacute-

milekmageion suporte(to) en ocirc aquilo em queepistecircmecirc saberepithymia parte desiderante da

alma (v alma)erocircs desejo amorosogenesis devir geraccedilatildeogenos espeacutecie linhagemgignomai gerar(to) gignomenon deveniente (v

devir)

Glossaacuterio

264 265264 265

harmonia harmoniahedra localizaccedilatildeo(to) heteron Outrohypodochecirc receptaacuteculokoilia abdoacutemenkata tauta aei imutaacutevelkenos vaziokenocircsis esvaziamentokerannymi misturar (v mistu-

ra)kinecircsis movimentokosmos mundologismos desiacutegnio raciociacuteniologos discursolysis dissoluccedilatildeolyocirc dissolvermania loucurameignymi misturar (v mistu-

ra)meixis misturamimecircma mimecircsis imitaccedilatildeomonimos estaacutevelmonocircsis singularidadenoecirctos inteligiacutevelnous intelecto intelecccedilatildeo pro-

poacutesito bom-sensohomoiotecircs semelhanccedila(to) on o que eacute (v ser)ousia ser (to) pan universopathecircma afecccedilatildeoparadeigma arqueacutetipo exem-

plopaideia paideusis educaccedilatildeophronecircsis inteligecircncia pensa-

mento sabedoriaphthora destruiccedilatildeophysis natureza

plecircrocircsis enchimentopneuma sopro respiratoacuteriopoliteia Estado instituiccedilatildeo

poliacutetica (p koinecirc) vida em comunidade

praotecircs delicadezapronoia providecircncia (divina)

capacidade de antecipaccedilatildeo (da alma humana)

syngenecircs congeacuteneresynkrisis associaccedilatildeosynaitia causa acessoacuteriasynisthecircmi constituirsyntithecircmi comporsymmetria proporcionalidadesystasis constituiccedilatildeo estruturasyntaxis sistematizaccedilatildeotaxis ordemtauton Mesmotekmecircrion evidecircnciatecirckocirc derreter dissolverthymos parte passional da alma

(v alma)zocircon ser-vivo

264 265264 265

volumes puBlicados na ColeCccedilatildeo Autores GreGos e lAtinos ndash seacuterie textos GreGos

1 Delfim F Leatildeo e Maria do Ceacuteu Fialho Plutarco Vidas Paralelas ndash Teseu e Roacutemulo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

2 Delfim F Leatildeo Plutarco Obras Morais ndash O banquete dos Sete Saacutebios Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

3 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Banquete Apologia de Soacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

4 Carlos de Jesus Joseacute Luiacutes Brandatildeo Martinho Soares Rodolfo Lopes Plutarco Obras Morais ndash No Banquete I ndash Livros I-IV Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

5 Aacutelia Rodrigues Ana Elias Pinheiro Acircndrea Seiccedila Carlos de Jesus Joseacute Ribeiro Ferreira Plutarco Obras Morais ndash No Banquete II ndash Livros V-IX Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

6 Joaquim Pinheiro Plutarco Obras Morais ndash Da Educaccedilatildeo das Crianccedilas Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

7 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Memoraacuteveis Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

8 Carlos de Jesus Plutarco Diaacutelogo sobre o Amor Relatos de Amor Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

9 Ana Maria Guedes Ferreira e Aacutelia Rosa Conceiccedilatildeo Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Peacutericles e Faacutebio Maacuteximo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

10 Paula Barata Dias Plutarco Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo Como Retirar Benefiacutecio dos Inimigos Acerca do Nuacutemero Excessivo de Amigos Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

11 Bernardo Mota Plutarco Obras Morais - Sobre a Face Visiacutevel no Orbe da Lua Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

12 J A Segurado e Campos Licurgo Oraccedilatildeo Contra Leoacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH CEC 2010)

13 Carmen Soares e Roosevelt Rocha Plutarco Obras Morais - Sobre o Afecto aos Filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

14 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Plutarco Vidas de Galba e Otatildeo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

15 Marta Vaacuterzeas Plutarco Vidas Paralelas ndash Demoacutestenes e Ciacutecero Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

16 Maria do Ceacuteu Fialho e Nuno Simotildees Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Alcibiacuteades e Coriolano Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

17 Gloacuteria Onelley e Ana Luacutecia Curado Apolodoro Contra Neera [Demoacutestenes] 59 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2011)

18 Rodolfo Lopes Platatildeo Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices (Coimbra CECH 2011)

ImpressatildeoSimotildees amp Linhares Lda

Av Fernando Namora nordm 83 - Loja 43000 Coimbra

O projecto Timeu-Criacutetias circula todo ele em torno dos conceitos de origem criaccedilatildeo e constituiccedilatildeo ordenada num primeiro momento cosmoloacutegicas e num segundo soacutecio‑poliacuteticas ou mesmo civilizacionaisNo Timeu um princiacutepio divino inteligente (o demiurgo) molda como um artiacutefice a mateacuteria preacute‑coacutesmica em obediecircncia a um modelo de racionalidade externo (o arqueacutetipo) O resultado eacute o mundo uma imagem do modelo e o Homem um microcosmosNo Criacutetias depois de suposta a cosmologia encena‑se uma guerra entre duas civilizaccedilotildees contrastantes (e tambeacutem elas arquetiacutepicas) que serve de paradigma para a constituiccedilatildeo originaacuteria das sociedades e tambeacutem para a natureza ciacuteclica da supremacia poliacutetica Deste breve texto natildeo resta senatildeo a parte inicial que permite natildeo mais do que suposiccedilotildees instaacuteveis Sobreviveu poreacutem um patrimoacutenio ficcional riquiacutessimo em tudo o que se tem criado sobre a suposta Ilha da Atlacircntida e o mito a que deu origem

  • Capa
  • Folha de rosto
  • Ficha teacutecnica
  • Iacutendice
  • Nota preacutevia
  • Introduccedilatildeo
    • I Aspectos extratextuais
      • 1 O projecto Timeu-Criacutetias
      • 2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo
      • 3 Personagens
        • II Aspectos temaacutetico-estruturais
          • 1 Antecedentes cosmoloacutegicos
          • 2 O discurso de Timeu
          • 21 Pressupostos iniciais
          • 22 Intelecto e Necessidade
          • 23 O demiurgo
          • 24 O terceiro niacutevel ontoloacutegico
          • 25 O estatuto do discurso
          • 3 O discurso de Criacutetias
          • 31 A historicidade da narrativa sobre aAtlacircntida
          • 32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeode Platatildeo
          • 33 Leituras alegoacutericas
          • 4 Estrutura dos diaacutelogos
              • Timeu
              • Criacutetias
              • Apecircndices
                • Bibliografia
                • Iacutendice analiacutetico
                • Iacutendice de nomes e lugares
                • Glossaacuterio
                  • Volumes publicados na Colecccedilatildeo Autores Gregos e Latinos ndash Seacuterie Textos Gregos
                  • Coacutelofon
                  • Contracapa
Page 4: Timeu-Crítias · 2018. 8. 8. · 6 7 no t a p r é v i a O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova tradução do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira

Iacutendice

Nota preacutevia 7

Introduccedilatildeo 11I Aspectos extratextuais 131 O projecto Timeu-CriacuteTias 132 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo 153 Personagens 20II Aspectos temaacutetico-estruturais 231 Antecedentes cosmoloacutegicos 232 O discurso de Timeu 3121 Pressupostos iniciais 3222 Intelecto e Necessidade 3423 O demiurgo 3824 O terceiro niacutevel ontoloacutegico 4225 O estatuto do discurso 483 O discurso de Criacutetias 5331 A historicidade da narrativa sobre a Atlacircntida 5532 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de Platatildeo 5633 Leituras alegoacutericas 634 Estrutura dos diaacutelogos 65

Timeu 69

CriacuteTias 213

ApecircndicesBibliografia 249Iacutendice analiacutetico 255Iacutendice de nomes e lugares 261Glossaacuterio 263

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nota preacutevia

O volume que se segue pretende por um lado apresentar uma nova traduccedilatildeo do Timeu e por outro disponibilizar a primeira versatildeo do texto do Criacutetias em portuguecircs Pelas razotildees que exporemos posteriormente (vide infra pp 13-15) a nossa proposta assenta em considerar ambos os diaacutelogos como um bloco uno tanto a niacutevel dramaacutetico como narrativo

Em relaccedilatildeo agraves duas traduccedilotildees do Timeu jaacute existentes no seguimento das quais esta forccedilosamente se inscreve cumpre esclarecer alguns aspectos A primeira de Manuel Maia Pinto (Porto Imprensa Moderna 1951) aleacutem do facto de contar com quase 50 anos denuncia bastantes fragilidades inexplicavelmente omite a secccedilatildeo inicial do texto (17a-20c) e assenta em pressupostos no miacutenimo discutiacuteveis como por exemplo a identificaccedilatildeo do demiurgo com Eros (eg pp 44 46) ou das Ideias com Deus na sua versatildeo judaico-cristatilde (eg pp 42 47) Jaacute a segunda da autoria de Maria Joseacute Figueiredo (Lisboa

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Instituto Piaget 2003) situa-se num niacutevel diferente na medida em que se manteacutem fiel ao texto grego ao seu autor e ao contexto histoacuterico-filosoacutefico que os enquadram bem como conta com uma excelente introduccedilatildeo da autoria de Joseacute Trindade Santos Em relaccedilatildeo a esta a nossa procuraraacute oferecer interpretaccedilotildees alternativas de alguns passos e uma anotaccedilatildeo mais vocacionada a por um lado esclarecer certas secccedilotildees do texto (principalmente as meta-narrativas) e por outro a propor algumas relaccedilotildees intertextuais As grandes diferenccedilas satildeo a ediccedilatildeo de base (a autora segue a de Rivaud) e a inclusatildeo na nossa versatildeo de iacutendices remissivos e glossaacuterio

Quanto agrave introduccedilatildeo procuraacutemos esclarecer alguns aspectos extratextuais (I) (1) a unidade dos dois diaacutelogos (2) a dataccedilatildeo e (3) as personagens Em relaccedilatildeo ao conteuacutedo tentaacutemos explicar com mais detalhe algumas questotildees que natildeo poderiam ser abrangidos nas notas em virtude da sua complexidade ou simplesmente porque pretendem acima de tudo situar o texto num quadro histoacuterico-filosoacutefico mais abrangente (II) (1) os antecedentes cosmoloacutegicos (2) o estatuto e estrutura da intervenccedilatildeo de Timeu e tambeacutem (3) da de Criacutetias Finalmente providenciaacutemos uma esquematizaccedilatildeo analiacutetica dos assuntos tratados nos diaacutelogos Como apensos agrave traduccedilatildeo incluiacutemos a lista da bibliografia citada um glossaacuterio dos termos mais importantes e respectivas traduccedilotildees seguido de um iacutendice analiacutetico e outro de nomes e lugares

Para a traduccedilatildeo seguimos a ediccedilatildeo estabelecida por Burnet salvo nalguns casos isolados em que se

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impunham alteraccedilotildees sugeridas e justificadas por novos dados entretanto aduzidos Em todos estes casos a divergecircncia foi devidamente assinalada em nota

Resta agradecer a todos quantos de algum modo participaram neste trabalho Maria do Ceacuteu Fialho e Maria Luiacutesa Portocarrero pela diligente orientaccedilatildeo da dissertaccedilatildeo da qual foi extraiacuteda grande parte dos elementos deste volume (toda a traduccedilatildeo do Timeu e cerca de dois terccedilos da introduccedilatildeo) Aacutelia Rodrigues Antoacutenio Pedro Mesquita Carlos A Martins de Jesus Delfim F Leatildeo Gabriele Cornelli Joatildeo Diogo Loureiro Maria Teresa Schiappa de Azevedo pela leitura criacutetica do manuscrito e tambeacutem ao Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos por ter acolhido com interesse a publicaccedilatildeo

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i aspectos extratextuais

1 O projecto Timeu-CriacutetiasA unidade entre os dois diaacutelogos verifica-se tanto

ao niacutevel dramaacutetico quanto ao temaacutetico Mas aleacutem de impliacutecita nestes duas dimensotildees a sequecircncia diegeacutetica eacute confessada pelos proacuteprios participantes Logo no iniacutecio do Timeu Criacutetias ao anunciar a Soacutecrates qual seraacute o programa (diathesis) de conversaccedilotildees para aquela ocasiatildeo diz muito claramente que a seguir a Timeu discursaraacute ele proacuteprio

Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada (27a2-27b1)

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A inclusatildeo de ambos os discursos no mesmo programa aliada ao gesto de Timeu passar a palavra a Criacutetias depois de terminar a sua intervenccedilatildeo tal como fora combinado (106b6-7) eacute motivo suficiente para considerar que haacute uma clara continuidade Para aleacutem disso uma leitura superficial de ambos seraacute com certeza bastante para perceber que eacute notoacuteria a intenccedilatildeo de Platatildeo em consideraacute-los partes de um todo em termos gerais o Timeu ocupa-se da constituiccedilatildeo do mundo e do Homem enquanto que o Criacutetias daacute seguimento a esse projecto ao apresentar a constituiccedilatildeo da dimensatildeo social ou seja da sua integraccedilatildeo em comunidade no mundo criado

Desta indissociabilidade datildeo tambeacutem conta as orientaccedilotildees dos estudos platonistas que cada vez mais tendem a considerar os dois como um soacute Aleacutem da uacuteltima grande monografia sobre estas obras (Johansen 2004) o congresso que lhes dedicou a International Plato Society aborda-as igualmente como um todo e natildeo como diaacutelogos separados (Calvo amp Brisson 1997) Ainda assim ao longo dos seacuteculos as atenccedilotildees sempre estiveram mais voltadas para o Timeu em virtude das questotildees filosoacuteficas nele abordadas Por esse motivo grande parte do que se trataraacute nesta Introduccedilatildeo diraacute respeito a esse diaacutelogo mas tendo sempre em conta que a ligaccedilatildeo com o Criacutetias eacute de tal forma estreita que nos permite encaraacute-los como uma obra soacute

De acordo com algumas breves referecircncias de que dispomos era provaacutevel que este projecto de Platatildeo incluiacutesse um terceiro diaacutelogo ndash o Hermoacutecrates ndash formando assim uma trilogia Logo no iniacutecio do Timeu

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quando Soacutecrates refere Hermoacutecrates faz questatildeo de o declarar competente em todos aqueles assuntos (20a8) e ao apresentaacute-lo nos mesmos moldes que as outras duas personagens parece implicar que tambeacutem uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele Essa possibilidade esclarece-se jaacute no Criacutetias quando Soacutecrates diz que Hermoacutecrates seraacute o terceiro a falar (108a) Contudo eacute muitiacutessimo provaacutevel que esse projecto nunca tenha sido consumado

2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeoAo abordarmos a data de uma obra com uma

estrutura desta natureza deveremos antes de mais ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista distintos o da data dramaacutetica isto eacute a altura ou eacutepoca a que se reporta a acccedilatildeo narrada por outro lado o da data real de composiccedilatildeo o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra

No que respeita agrave data dramaacutetica o seu estabelecimento dependeraacute da escolha de uma de duas vias Se considerarmos que Soacutecrates em 17c se refere agrave Repuacuteblica quando alude ao diaacutelogo que tinha travado com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor entatildeo a data dramaacutetica situar-se-aacute no dia a seguir agrave daquele outro diaacutelogo ndash por volta do ano 420 ou 421 aC durante as Bendideias1 Poreacutem se nos ativermos unicamente agravequilo que diz o texto sobre este aspecto a data apontada eacute um

1 Apud Pereira 2001 p XIII As Bendideias eram um festival religioso realizado no mecircs de Thargeleion (Junho)

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pouco diferente pois em 26e Soacutecrates refere de forma indirecta que aquele encontro se processa durante as Panateneias2 Quanto ao ano teraacute sido entre 430 e 425 aC (apud Taylor 1928 p 15 Duraacuten 1992 p 134 Brisson 2001 p 72) portanto alguns anos antes da Repuacuteblica

Aquela associaccedilatildeo com a Repuacuteblica de que depende a primeira via carece de alguma consistecircncia podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razotildees Nota muito bem Cornford (1937 pp 4-5) que o ldquoontemrdquo a que Soacutecrates se refere natildeo tem forccedilosamente que ser o dia do encontro na casa de Ceacutefalo mas poderaacute ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questotildees que nesse diaacutelogo satildeo tambeacutem discutidas Em segundo lugar a referecircncia agraves Panateneias natildeo eacute de todo inocente pois coaduna-se com o elogio de Criacutetias agrave vitoacuteria de Atenas sobre a Atlacircntida (20d-26c) bem como justifica a presenccedila de Hermoacutecrates (um estrangeiro) na cidade Aleacutem disso o resumo que Soacutecrates faz da conversa que tinham tido no dia anterior sobre o Estado ideal natildeo inclui todos os assuntos tratados na Repuacuteblica o que entra em contradiccedilatildeo com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais (to kephalaion 17c2) Por outro lado deve tambeacutem sublinhar-se que Soacutecrates inclui todos os presentes na dita conversa do dia anterior (17a1-2)3 Ora sabemos que nenhuma das personagens

2 O festival dedicado agrave deusa Atena tradicionalmente celebrado no 28ordm dia do mecircs de Hecatombeon (meados de Julho)

3 Note-se inclusivamente o uso da primeira pessoa do plural quando eacute referido o tal encontro do dia anterior (eg 17c7

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do Timeu excepto Soacutecrates participa na Repuacuteblica Deste modo seraacute porventura mais prudente optar pela segunda hipoacutetese e estabelecer a data dramaacutetica na altura das Panateneias

Quanto agrave data real de composiccedilatildeo eacute tradicionalmente situada nos uacuteltimos anos da vida de Platatildeo poreacutem houve algumas tentativas de a fazer recuar um pouco Segundo a primeira hipoacutetese (a mais antiga) o diaacutelogo pertence agrave uacuteltima fase da qual fazem parte tambeacutem o Sofista o Poliacutetico o Filebo e as Leis de acordo com a segunda ele deveraacute pelo contraacuterio ser incluiacutedo na fase meacutedia juntamente com Craacutetilo Feacutedon Banquete Repuacuteblica Fedro Parmeacutenides e Teeteto

A hipoacutetese tradicional foi postulada ainda na Antiguidade Plutarco por exemplo acreditava que o Criacutetias natildeo tinha sido acabado porque Platatildeo morrera enquanto o escrevia4 No entanto jaacute no seacuteculo XIX comeccedilaram a surgir algumas opiniotildees que apontavam para a inclusatildeo do diaacutelogo na fase meacutedia (vide Cherniss 1957 p 226 n 3) e jaacute na primeira metade do seacuteculo XX Taylor (1928 pp 4-5) admite no seu comentaacuterio ao Timeu que essa possibilidade devia ser tida em conta Alguns anos mais tarde esta hipoacutetese atinge o estatuto de tese quando Owen (1953) publica um artigo em que defende a sua validade com base em dois argumentos ndash um mais formal outro temaacutetico Por um lado partindo das anaacutelises estilomeacutetricas de Billig5 conclui

dieilometha 17d2 eipomen 18c1 epemnecircsthecircmen)4 Vida de Soacutelon 325 Billig (1920) Este autor fixar a cronologia do corpus Platonicum

atraveacutes de estudos estatiacutesticos baseados em padrotildees de frequecircncia de

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que o estilo do Timeu (e do Criacutetias) nada tem que ver com o dos diaacutelogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista Poliacutetico Filebo e Leis) mas que pelo contraacuterio estava muito proacuteximo do dos diaacutelogos meacutedios particularmente da Repuacuteblica do Fedro do Parmeacutenides e do Teeteto (Owen 1953 pp 80-82) Por outro lado Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Platatildeo aparecem no Timeu e noutros diaacutelogos da fase meacutedia no sentido de demonstrar que este seraacute obrigatoriamente anterior a alguns daqueles Diz por exemplo que o modo admiravelmente estaacutevel como a doutrina das Ideias aparece no Timeu eacute uma evidecircncia de que a obra seraacute mais anterior do que defende a hipoacutetese tradicional pois soacute no Parmeacutenides foi submetida a uma refutaccedilatildeo de tal forma irrepreensiacutevel que seria impensaacutevel que Platatildeo tivesse redigido o Timeu apoacutes o Parmeacutenides (Owen 1953 pp 82-83)

O artigo de Owen em virtude das ousadas conclusotildees que apresentava obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso Eacute Cherniss que quatro anos mais tarde vem desconstruir toda a sua argumentaccedilatildeo reforccedilando assim a posiccedilatildeo da teoria tradicional As suas conclusotildees muito bem fundamentadas apontam para que Craacutetilo Parmeacutenides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e

palavras e construccedilotildees sintaacutecticas Depois de recolhidos estes dados eram cruzados e analisados de forma a permitir um agrupamento estanque e inequiacutevoco dos diaacutelogos Este tipo de anaacutelise foi posteriormente alargado e ateacute melhorado com o contributo da informaacutetica mas continuou a carecer de alguma fiabilidade em virtude dos anacronismos resultantes

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que mais importante as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos diaacutelogos da fase tardia (Cherniss 1957 p 266)

Com efeito parece-nos que as teses de Owen natildeo se baseiam em dados suficientemente soacutelidos para abandonar a hipoacutetese tradicional Por um lado as anaacutelises estilomeacutetricas constituem um perigo metodoloacutegico que ameaccedila contaminar a coerecircncia da tarefa pois baseiam-se numa recolha ndash e posterior tratamento ndash de dados de um modo estatiacutestico que por se tratar de um processo linear e mecanizado pode aduzir agrave investigaccedilatildeo um sem nuacutemero de pequenos erros os quais imperceptivelmente multiplicados de um modo quase exponencial podem resultar em conclusotildees bastante problemaacuteticas Num desses estudos em que Owen se baseou o Criacutetias aparece muito distante do Timeu ainda que seja o proacuteprio autor a confessar e a corrigir esse erro (Owen 1953 p 80) acaba por denunciar as fragilidades daquele tipo de ferramenta Por outro lado a forma como lecirc o confronto das doutrinas de Platatildeo eacute tambeacutem faliacutevel pois admite uma perspectiva contraacuteria e igualmente vaacutelida Por exemplo o referido caso da doutrina das Ideias poderaacute ser interpretado do modo oposto apoacutes ter sido refutada no Parmeacutenides Platatildeo reformulou-a no Timeu ao acrescentar o terceiro princiacutepio ontoloacutegico ao processo de participaccedilatildeo ainda que como veremos a sua contribuiccedilatildeo se processe em contornos muitiacutessimo particulares

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3 PersonagensNos diaacutelogos participam quatro personagens

aleacutem de uma outra que eacute referida logo na primeira frase mas da qual natildeo resta qualquer notiacutecia Soacutecrates Timeu Hermoacutecrates e Criacutetias

Quanto ao primeiro que teria entre 40 a 45 anos agrave data dramaacutetica (apud Brisson 2001 p 72) pouco haveraacute a acrescentar aos milhares de paacuteginas que tecircm sido escritos ao longo dos tempos a natildeo ser o pormenor que muito bem notou Vlastos (1991 p 264) acerca da evoluccedilatildeo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cacircnone platoacutenico o facto de Soacutecrates se interessar por filosofia natural ou melhor por ciecircncias naturais como a biologia a fiacutesica a astronomia ou a quiacutemica ao contraacuterio do que acontecia em fases anteriores em que as suas preferecircncias cientiacuteficas estavam limitadas agraves ciecircncias matemaacuteticas como sugere a Repuacuteblica (vide 522b-sqq) No que respeita agraves restantes personagens cumpre dizer algumas palavras

Comeccedilando pelo primeiro protagonista Timeu cuja intervenccedilatildeo ocupa a grande maioria do que resta do texto (27c-106c) natildeo haacute evidecircncias concretas de que tenha realmente existido6 Com efeito todas as referecircncias a este suposto filoacutesofo pitagoacuterico satildeo posteriores ao diaacutelogo seu homoacutenimo no qual se diz ser um abastado cidadatildeo de Loacutecride na Itaacutelia tendo ali ocupado altos cargos na administraccedilatildeo poliacutetica e por isso recebido grandes louvores por parte dos

6 Natildeo confundir com o historiador homoacutenimo que viveu cerca de um seacuteculo depois

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habitantes locais (20a) De facto dadas as seacuterias duacutevidas em relaccedilatildeo ao Timeu histoacuterico haacute quem veja nele uma maacutescara de outra personalidade Ciacutecero refere nos Academica (11016) que Platatildeo quando foi pela primeira vez agrave Siciacutelia conviveu muito de perto com Timeu de Loacutecride e tambeacutem com Arquitas de Tarento Se a existecircncia do primeiro eacute duvidosa quanto agrave do segundo natildeo restam duacutevidas aleacutem de um poliacutetico exemplar Arquitas foi um matemaacutetico brilhante7 e mestre de ilustres matemaacuteticos como o proacuteprio Eudoxo conforme atesta Dioacutegenes Laeacutercio (8861) Por isso eacute possiacutevel que Timeu represente Arquitas contudo os dados disponiacuteveis natildeo permitem mais do que simples conjecturas

Por outro lado este caraacutecter fictiacutecio da personagem leva os estudiosos a questionar se Timeu natildeo seraacute um simples pseudoacutenimo de Platatildeo como fora inicialmente proposto por Wilamowitz-Moellendorff (1920 pp 591-592) e mais tarde desenvolvido por Cornford (1937 p 3) que sustentava esta argumentaccedilatildeo com o facto de ser impossiacutevel apontar algueacutem daquela eacutepoca que reunisse conhecimentos tatildeo aprofundados sobre tantas aacutereas do saber

Quanto a Criacutetias personagem responsaacutevel por narrar o episoacutedio da guerra que opocircs a Atenas primeva agrave Atlacircntida eacute sem duacutevida a figura que levanta mais dificuldades de ordem histoacuterica O principal problema eacute que a aacutervore genealoacutegica desta famiacutelia conta com quatro

7 Eacute-lhe por exemplo atribuiacuteda a duplicaccedilatildeo do cubo (DK 47A14)

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figuras com o nome ldquoCriacutetiasrdquo o I filho de Dropidas I e irmatildeo de Dropidas II (a quem Soacutelon teraacute transmitido o relato trazido do Egipto vide 20e) o II filho de Dropidas II um III neto do II e tio-avocirc de Platatildeo e um IV8 o dos Trinta Tiranos neto do III e primo do autor

A teoria tradicional proposta desde logo por Burnet (1914 p 338) e seguida por Cornford (1937 p 2) sustentava que se tratava do Criacutetias III tratava-se no fundo de fazer feacute nas palavras de Platatildeo Em todo o caso faltava ainda preencher o enorme fosso geracional entre este e Dropidas II Finalmente em 1949 surgiu num ostrakon encontrado na aacutegora de Atenas um registo que demonstrava a existecircncia histoacuterica de Ledas pai do Criacutetias III e filho de Dropidas II (vide Nails 2002 pp 106-107) Assim se confirmou com dados concretos a suspeita de Burnet

No que respeita a Hermoacutecrates o autor do suposto diaacutelogo pensado para seguir o Criacutetias a sua participaccedilatildeo limita-se a duas breves intervenccedilotildees (20d 108c) Quanto agrave sua existecircncia histoacuterica ela eacute inegaacutevel segundo Tuciacutedides (472) tratava-se de um homem de admiraacutevel inteligecircncia e coragem aleacutem de muitiacutessimo experiente em assuntos militares e notabilizou-se por ter previsto os planos expansionistas de Atenas logo em 424 aC (452) jaacute Proclo seguindo a mesma ideia de Tuciacutedides sublinha o seu protagonismo na vitoacuteria contra os Atenienses aquando da invasatildeo de Siracusa (Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo 17119-sqq)9 Note-

8 Participante no Caacutermides no Protaacutegoras e referido indirectamente na Carta VII (324c-d)

9 Sobre esta expediccedilatildeo militar vide infra pp 64-65

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se poreacutem que esta expediccedilatildeo foi posterior agrave data dramaacutetica do diaacutelogo

ii aspectos temaacutetico-estruturais

1 Antecedentes cosmoloacutegicosO texto do Timeu estabelece a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel e posteriormente dos seres que o habitam com particular evidecircncia para o Homem Considerando que este seraacute o eixo temaacutetico em torno do qual gira toda a narrativa eacute forccediloso que o diaacutelogo seja contextualizado num movimento que comeccedilara nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos A relaccedilatildeo de Platatildeo com esta tradiccedilatildeo eacute quase sempre ambiacutegua se por um lado a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes por outro importa dela vaacuterios elementos cuja autoria propositadamente silencia Daquela primeira inclinaccedilatildeo datildeo-nos testemunho vaacuterias passagens no Feacutedon (97c-99a) Soacutecrates confessa-se bastante desiludido com Anaxaacutegoras pelo facto de este inicialmente ter proposto o Intelecto (Nous) como causa de todas as coisas e posteriormente o ter trocado por princiacutepios naturais (ar aacutegua etc) nas Leis (889a-890a) onde o Estrangeiro de Atenas critica a tradiccedilatildeo dizendo que aquelas investigaccedilotildees estavam presas ao mundo do devir e por isso eram impassiacuteveis de constituir conhecimento estaacutevel ndash a principal censura eacute como no Feacutedon natildeo considerar o Intelecto como causa (889c5 ou de dia noun)

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Assim o Timeu surge como resposta ou proposta de substituiccedilatildeo das abordagens naturalistas a que segundo Platatildeo se tinham dedicado os preacute-socraacuteticos (cf Santos 2003 pp 18-22 47-50) Inscreve-se pois nessa tradiccedilatildeo como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade O exemplo mais claro desta dupla relaccedilatildeo ndash adaptaccedilatildeo e ruptura ndash eacute justamente o caso do Intelecto como veremos a sua concepccedilatildeo enquanto princiacutepio de racionalidade seraacute um dos elementos centrais da cosmologia platoacutenica

Quanto aos elementos que dela retira eles satildeo apenas acessiacuteveis por meio de reconstituiccedilotildees hermenecircuticas porquanto permanecem no anonimato No caso do Timeu os mais flagrantes e fundamentais seratildeo os adaptados de Empeacutedocles e do pitagorismo enquanto que os restantes se resumem a alguns aspectos pontuais10

Aleacutem das oacutebvias semelhanccedilas entre os quatro elementos e as ldquoraiacutezesrdquo (rhizocircmata) de Empeacutedocles (DK 31B6) haacute diversos pontos de contacto entre os quais poderemos citar alguns exemplos Contudo como veremos eacute incorrecto supor que Platatildeo tenha simplesmente decalcado esses dados doutrinas ou teorias pois na maior parte dos casos essa importaccedilatildeo implicou uma evidente adaptaccedilatildeo motivada por um dos pressupostos mais importantes do diaacutelogo a clara e absoluta distinccedilatildeo entre uma dimensatildeo preacute-coacutesmica e outra poacutes-criaccedilatildeo

10 Por esse motivo seratildeo apenas referidos em nota ao longo da traduccedilatildeo

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No passo em que se diz que o mundo foi constituiacutedo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atraveacutes da proporccedilatildeo para que como sumo fim obtivesse amizade (philia 32c) eacute muitiacutessimo convidativa a coincidecircncia entre este termo e o Amor (Philotecircs) de Empeacutedocles (DK 31B17) Contudo deveremos ter em conta que enquanto neste autor se trata de uma forccedila dinacircmica que de certo modo unifica as raiacutezes no texto de Platatildeo eacute claramente um resultado em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo isto eacute uma finalidade ou seja ainda que estejamos perante o mesmo conceito conveacutem ter em conta que cada um daqueles contextos tem implicaccedilotildees de ordem pragmaacutetica muito distintas um eacute processo (no caso de Empeacutedocles) outro seraacute fim ou resultado (no caso de Platatildeo)

Ainda assim haacute outras ocasiotildees em que embora crivadas por um processo de adaptaccedilatildeo as doutrinas do primeiro se espelham no segundo Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera Timeu evoca claramente a Esfera de Empeacutedocles muito embora a daquele resulte de um processo criativo enquanto que a deste se situa numa fase preacute-coacutesmica as semelhanccedilas satildeo evidentes particularmente a niacutevel vocabular tal como a esfera do preacute-socraacutetico o mundo de Timeu eacute uacutenico (33a1 ad DK 31B28) esfeacuterico (33b4 ad idem) razatildeo pela qual natildeo teria necessidade de membros (33d3-34a1 ad DK 31B29) e todos os pontos da sua superfiacutecie estavam a igual distacircncia do centro (34b2 ad idem) Embora por vezes as palavras utilizadas natildeo sejam

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exactamente as mesmas eacute bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semacircntico insistindo por outro lado a caracterizaccedilatildeo nos mesmos pormenores e inclusivamente no mesmo princiacutepio geomeacutetrico se a forma eacute esfeacuterica todos os pontos da superfiacutecie seratildeo equidistantes do centro

De um ponto de vista estrutural a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante proacuteximo do que descreve Empeacutedocles principalmente no que concerne ao modo como o seu equiliacutebrio eacute garantido Quando o demiurgo fabrica a alma do mundo faacute-lo atraveacutes de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo agraves quais atribui dois movimentos distintos contudo complementares

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente (36c5-7)

Tal como acontece com o Amor e a Discoacuterdia de Empeacutedocles que actuam com os elementos de um modo diametralmente oposto promovendo ainda assim o intercacircmbio ciacuteclico entre si (cf DK 31B17) eacute tambeacutem a concomitacircncia dos movimentos contraacuterios de entidades igualmente contraacuterias como o Mesmo e o Outro que no Timeu garantem o equiliacutebrio do mundo natural a colocaccedilatildeo destas naturezas na oacuterbita da alma do mundo cuja funccedilatildeo primordial seraacute governar o seu corpo (34c) garante-lhe essa funccedilatildeo decisiva Eacute evidente que se poderia admitir que esta noccedilatildeo de equiliacutebrio enquanto

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negociaccedilatildeo paciacutefica de forccedilas opostas tenha outra matriz que natildeo a de Empeacutedocles ndash por exemplo a teoria dos opostos Heraclito (eg DK22B67) ndash ou mesmo que se trata de uma concepccedilatildeo transversal impassiacutevel de ser identificada com um autor em particular Contudo o caraacutecter estrutural que a convivecircncia destas forccedilas assume no equiliacutebrio global do mundo pois natildeo se trata de um princiacutepio que afecta vaacuterias entidades como acontece em Heraclito aliado ao facto de essa relaccedilatildeo ter como sumo fim a amizade como foi referido anteriormente far-nos-aacute reconhecer a estreita ligaccedilatildeo

A par de Empeacutedocles a outra grande influecircncia na composiccedilatildeo do Timeu foi conforme dissemos o pitagorismo Eacute de tal modo acentuada que durante a Antiguidade alguns comentadores neoplatoacutenicos acreditavam que Platatildeo se baseara na obra Sobre a Alma do Mundo da autoria do suposto filoacutesofo pitagoacuterico Timeu de Loacutecride Embora hoje se saiba que se trata apenas de uma versatildeo doacuterica do texto de Platatildeo datada do seacuteculo I dC esta curiosidade eacute bem ilustrativa do quatildeo acentuada eacute a presenccedila do pitagorismo no diaacutelogo

Em primeiro lugar o ambiente ritual em que decorre o diaacutelogo faz lembrar o espiacuterito cientiacutefico-religioso que definia o pitagorismo natildeo esqueccedilamos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso (27c-d) e torna a invocaacute-los quando tem necessidade de forjar um novo comeccedilo agrave narrativa (48d) Desta tendecircncia jaacute alguns autores antigos tinham dado notiacutecia diz Proclo nos seus Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo

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(1303-18) que tal como pensam outros11 tambeacutem ele considera o proeacutemio inicial uma preparaccedilatildeo simboacutelica para a exposiccedilatildeo propriamente dita como era costume dos Pitagoacutericos

Aleacutem de definir a estrutura esta influecircncia funciona tambeacutem como acircncora teoacuterica a que toda a exposiccedilatildeo se fixa Como sabemos o conteuacutedo e a orientaccedilatildeo da fiacutesica pitagoacuterica tinham um caraacutecter profundamente teoloacutegico isso por si soacute seria suficiente para que Platatildeo adaptasse tal modelo ao seu sistema filosoacutefico Contudo mais do que adaptar preferiu incluir essa perspectiva e promovecirc-la a parte integrante criando aquilo a que podemos chamar ldquouma fiacutesica pitagoacuterica de Platatildeordquo Ao tornar teoloacutegica a sua filosofia natural garante a possibilidade de cumprir o principal objectivo do diaacutelogo dar a conhecer o processo de constituiccedilatildeo do mundo ou seja revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino Ora para estabelecer esse contacto entre divino e humano seria imprescindiacutevel esta vertente teoloacutegica e Platatildeo viu nos ensinamentos do pitagorismo essa preciosa ferramenta pois combinavam o saber fiacutesico com a atitude teoloacutegica ndash orientaccedilotildees verdadeiramente imprescindiacuteveis para o caso particular deste diaacutelogo

Essa vertente religiosa que determinaraacute a orientaccedilatildeo teoloacutegica deveraacute ser procurada um pouco para aleacutem de Pitaacutegoras nos Misteacuterios Oacuterficos Como

11 Refere-se muito provavelmente a Iacircmblico (apud Lernould 2000 p 65) cuja Sobre a Vida Pitagoacuterica tem por principal finalidade demonstrar a subordinaccedilatildeo das doutrinas de Platatildeo a Pitaacutegoras

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observa o proacuteprio Proclo na Teologia Platoacutenica (12526) Pitaacutegoras recebeu os rituais de Aglaofemo um iniciado de Orfeu e Platatildeo recebeu de Pitaacutegoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento Ainda que esta passagem de testemunho natildeo tenha sido assim tatildeo linear mas valha sobretudo numa dimensatildeo simboacutelica eacute por intermeacutedio de Pitaacutegoras que Platatildeo tem acesso agraves ferramentas teoacutericas oacuterficas que lhe permitiratildeo sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o Homem foram constituiacutedos e partir do que tem diante dos olhos para chegar regressivamente agrave sua criaccedilatildeo

Essas ferramentas satildeo fundamentalmente a matemaacutetica ndash sobretudo as suas vertentes geomeacutetrica e estereomeacutetrica ndash a muacutesica e a astronomia que utilizadas em conjunto permitiratildeo uma observaccedilatildeo do mundo fenomeacutenico de que se poderatildeo retirar conclusotildees com valor filosoacutefico Eacute por exemplo atraveacutes da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos atribuindo a cada um a figura correspondente de acordo com as suas propriedades cineacuteticas o cubo agrave terra pois eacute de entre os elementos o que se move mais lentamente (55d) o icosaedro agrave aacutegua (55b 56a) o octaedro ao ar (55a 56a) a piracircmide ao fogo (55d) De forma anaacuteloga a deduccedilatildeo destas figuras depende tambeacutem de um raciociacutenio matemaacutetico atraveacutes da combinaccedilatildeo dos triacircngulos-base (rectacircngulo equilaacutetero e isoacutesceles) mediada pela proporccedilatildeo a geometria em plano passa a estereometria tridimensional (54d-sqq) dando assim corpo agraves formas representaacuteveis mentalmente e de forma abstracta Em suma ao apoiar-se nos ramos matemaacuteticos

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da aritmeacutetica e da geometria a mensagem teoloacutegica pode tomar corpo e tornar-se uma fiacutesica filosoacutefica pois permite representar aquilo que natildeo pode ser alcanccedilado pelos olhos trata-se de uma matemaacutetica teoloacutegica

Aleacutem disso eacute atraveacutes da harmonia proporcionada pela muacutesica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes na medida em que ambas obedecem a um mesmo princiacutepio cineacutetico

na segunda [oacuterbita pocircs] o Sol por cima da Terra a Estrela da Manhatilde e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente (38d1-6)

()

De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento (80a6-80b1)

Os astros tal como os sons circulam juntos a diferentes distacircncias uns dos outros ndash os astros em espaccedilo os sons em tempo mas de acordo com uma mesma relaccedilatildeo numeacuterica que determina a harmonia do conjunto eacute a este raciociacutenio que segundo Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 291a10-11) os Pitagoacutericos chamavam ldquoa muacutesica das esferasrdquo cuja adaptaccedilatildeo eacute evidente no sistema

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que propotildee o Timeu Neste diaacutelogo Platatildeo parece recuperar a identificaccedilatildeo que Soacutecrates faz na Repuacuteblica (531a-c) entre muacutesica e astronomia Ao distinguir os muacutesicos que se dedicam agrave demanda do intervalo miacutenimo mensuraacutevel condenaacuteveis por se aterem em demasia agrave percepccedilatildeo sensiacutevel do som daqueles que procuram os nuacutemeros nos acordes que escutam diz que satildeo estes uacuteltimos que se aparentam aos que estudam os astros Esta teoria da muacutesica que Soacutecrates elogia eacute a pitagoacuterica

2 O discurso de TimeuComo dissemos a intervenccedilatildeo de Timeu versa

sobre o processo de criaccedilatildeo do mundo e de todas as coisas que o habitam Homem restantes animais deuses e ateacute as plantas Trata-se pois de uma tentativa de estabelecer um modelo explicativo do mundo assente em axiomas e pressupostos soacutelidos uma cosmologia Mas desta prerrogativa inicial nasce uma inevitaacutevel aporia como produzir uma cosmologia a partir da observaccedilatildeo do mundo do devir o reino da mudanccedila ininterrupta sendo por isso impassiacutevel de constituir objecto de verdadeiro saber Em uacuteltima anaacutelise como produzir saber a partir do sensiacutevel se soacute as Ideias (inteligiacuteveis) podem ser objecto de saber (cf Santos 2003 pp 13-15)

Para responder a estas questotildees nucleares Platatildeo recorre a um artifiacutecio deveras surpreendente pautar o discurso pela verosimilhanccedila mais do que pela certeza e assim apresentar uma proposta plausiacutevel em vez de um tratado dogmaacutetico e vinculativo o que de facto

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tambeacutem aproxima o projecto da tradiccedilatildeo cosmogoacutenica Ao mesmo tempo a validade desta proposta dependeraacute do estabelecimento preacutevio de axiomas estanques e estaacuteveis que forneccedilam um ponto de partida para a narrativa especulativa

21 Pressupostos iniciaisNa minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre [to on aei] e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem [to gignomenon] sem nunca ser Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo pois eacute imutaacutevel Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca (27d5-28a4)

Eacute fulcral que antes de tudo Timeu distinga aquilo que eacute sempre daquilo que estaacute sempre sujeito ao devir e por isso nunca chega a ser trata-se da ceacutelebre diferenccedila entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao sensiacutevel ndash um dos pilares do platonismo A esta distinccedilatildeo surge associada uma outra de caraacutecter epistemoloacutegico que tem que ver com a forma como cada um desses niacuteveis ontoloacutegicos pode ser apreendido se o que eacute cabe ao pensamento e agrave razatildeo jaacute o que pertence ao niacutevel do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos Toda esta argumentaccedilatildeo em torno da distinccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel faria adivinhar a ceacutelebre oposiccedilatildeo platoacutenica entre opiniatildeo (doxa) e saber (epistecircmecirc) estando a primeira destinada ao que deveacutem e a segunda ao que eacute sempre e visto que o propoacutesito do diaacutelogo eacute apresentar

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um discurso (logos) sobre o mundo implicando por isso a obediecircncia agrave verdade teria que se situar no acircmbito do saber No entanto ao comeccedilar a descrever os atributos do objecto em estudo Timeu daacute-se conta de que o mundo pertence agrave ordem do devir pois apresenta todas as caracteriacutesticas do sensiacutevel eacute visiacutevel (oratos 28b7) tangiacutevel (aptos 28b7) e tem corpo (socircma echocircn 28b7) Ora se o mundo eacute deveniente como produzir um discurso verdadeiro e estaacutevel sobre ele Eacute da resposta a esta pergunta que depende a validade de toda a proposta cosmoloacutegica

Sabendo entatildeo que o mundo pertence agrave ordem do devir o proacuteximo passo seraacute averiguar qual a sua causa pois de acordo com o preceito platoacutenico todas as coisas devenientes satildeo geradas por uma causa12 No caso do mundo a sua causa foi uma divindade (o demiurgo) que o fabricou por meio de um acto intelectivo de contemplaccedilatildeo do arqueacutetipo imutaacutevel (29a) Natildeo querendo antecipar as questotildees que esta personagem levanta e que seratildeo analisadas posteriormente digamos apenas que seraacute o centro das atenccedilotildees do discurso do protagonista Perante a falibilidade da descriccedilatildeo das coisas sensiacuteveis tentaraacute reconstituir a acccedilatildeo demiuacutergica a partir da observaccedilatildeo directa do que tem perante os olhos ndash a obra dessa divindade Ou seja se o mundo consiste numa entidade fabricada a partir de um arqueacutetipo significa que esse mesmo mundo eacute jaacute por si uma representaccedilatildeo portanto o meacutetodo para descrever

12 Cf Feacutedon 98c 99b Filebo 27b Leis 891e Timeu 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e

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a forma como foi fabricado poderaacute tambeacutem ele ser uma representaccedilatildeo sem que com isso ponha em causa a sua validade pois como diz Timeu

Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere (29b3-5)

Como muito bem nota Johansen (2004 p 50) aquilo que determina o estatuto do discurso eacute o facto de esse discurso ser congeacutenere ao seu assunto ou seja um discurso sobre uma representaccedilatildeo teraacute tambeacutem ele proacuteprio um teor representativo Ao mesmo tempo ele constitui o instrumento que nos permite situar o acircmbito do conteuacutedo a que se refere visto que transparece a sua natureza eacute nesta medida que os discursos ldquoexplicamrdquo E Timeu sublinha esta relaccedilatildeo ao qualificar com adjectivos semanticamente muito proacuteximos ambos referente e referido diz ele que o que eacute estaacutevel e fixo (monimou kai bebaiou 29b6) eacute interpretado por discursos estaacuteveis e invariaacuteveis (monimous kai ametaptocirctous 29b7) ao passo que aqueles que interpretam algo produzido como representaccedilatildeo (apeikasthentos 29c1) por serem eles proacuteprios tambeacutem representaccedilotildees (29c2) estabelecem com aquilo que representam uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia (29c2)

22 Intelecto e NecessidadeNum determinado momento da narrativa

(48e-49a) Timeu interrompe a descriccedilatildeo da criaccedilatildeo do

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mundo para esclarecer que tudo quanto referira ateacute aiacute tinha sido fabricado pelo Intelecto Era entatildeo altura de justapor ao discurso o que havia sido gerado pela Necessidade

Estes dois conceitos muito embora sejam decisivos no processo cosmoloacutegico natildeo satildeo curiosamente objecto de uma reflexatildeo metanarrativa como acontece por exemplo com o demiurgo Apenas eacute dito que a Necessidade eacute uma ldquocausa erranterdquo (to tecircs planocircmenecircs aitias 48c7) que foi persuadida pelo Intelecto a ldquoorientar para o melhor a maioria das coisas devenientesrdquo (48a) Esta informaccedilatildeo aleacutem de natildeo esclarecer a natureza daquelas entidades implica apenas que a cedecircncia da Necessidade foi apenas parcial (ldquoa maioria das coisasrdquo) Mas vejamos primeiro que tudo de que modo poderemos entender em que consistem

Quanto ao Intelecto eacute bastante convidativo fazecirc-lo coincidir com o demiurgo pois Timeu sublinha que o que acaba de descrever fora fabricado por este agente se no princiacutepio eacute dito que o demiurgo eacute a causa que originou o mundo a identificaccedilatildeo eacute oacutebvia Na verdade nas Leis Platatildeo define-o como responsaacutevel por governar tudo (875c-d) e por ter ordenado o mundo (966e) manifesta-se no movimento dos corpos celestes os quais os homens devem observar e seguir como paradigma (897d-898a) Transpondo esta descriccedilatildeo para o nosso contexto a identificaccedilatildeo do Intelecto com o demiurgo parece fazer sentido no entanto carece de explicaccedilatildeo o atributo de

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ldquogovernar tudordquo pois a divindade criadora retira-se logo apoacutes ter concluiacutedo a sua tarefa ndash tanto que entrega parte da sua ldquoobrardquo (a parte mortal da alma humana por exemplo) agraves divindades geradas por si Por esse motivo este Intelecto poderaacute por outro lado coincidir com a alma do mundo como pensa Cherniss (1944 pp 407-411 425 606-607) Ainda assim essa opccedilatildeo tambeacutem natildeo deixa de levantar problemas jaacute que como diz Brisson (1998 p 84) o demiurgo soacute pode ser independente pois constitui a causa de todas as coisas do mundo razatildeo pela qual natildeo poderaacute estar incluiacutedo naquilo que foi criado por si proacuteprio Independentemente de coincidir ou natildeo com o demiurgo o Intelecto corresponde a um princiacutepio de racionalidade teleoloacutegica pois visa acima de tudo ldquoorientar tudo para o melhorrdquo no fundo a vertente inteligente da criaccedilatildeo

Por oposiccedilatildeo a Necessidade seraacute algo cujo funcionamento se opotildee ao do Intelecto primeiro Timeu chama-lhe ldquocausa erranterdquo isto eacute sem finalidade (natildeo teleoloacutegica) segundo se a Necessidade cede a uma ldquopersuasatildeo racionalrdquo (peithous emphronos 48a) eacute evidente que a sua natureza seraacute de algum modo irracional Mas retomando a questatildeo deixada em suspenso acerca da cedecircncia unicamente parcial da Necessidade ela seraacute mais facilmente esclarecida se tomarmos em consideraccedilatildeo o seguinte

Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende

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constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade (69d3-6)

A consequecircncia de a Necessidade natildeo ter cedido senatildeo parcialmente implica que a proacutepria estrutura humana tenha sido tambeacutem parcialmente composta por ela Ao participar no processo de criaccedilatildeo o produto que dela resulta (o mundo e o Homem) partilharaacute da sua caracteriacutestica mais iacutentima a irracionalidade traduzida nas partes mortais da alma no caso do Homem no proacuteprio Homem no caso do mundo Corresponde no fundo agrave vertente mecacircnica e corpoacuterea da criaccedilatildeo que como tal natildeo dispotildee de racionalidade nem finalidade Como oportunamente sugere Santos (2003 p 28 n 32) a noccedilatildeo de ldquocausa erranterdquo pode perfeitamente ser equacionada com a passagem do Feacutedon (98c-99b) onde Soacutecrates esclarece que natildeo satildeo os seus muacutesculos e tendotildees a causa de estar na prisatildeo mas sim o Bem isto eacute a corporalidade mecacircnica natildeo pode constituir a causa primeira das coisas porquanto estaacute desprovida de qualquer razatildeo

No fundo a distinccedilatildeo entre estas duas entidades pode ser entendida agrave luz de um modelo dualista o Intelecto representa a vertente teleoloacutegica e inteligente e a Necessidade corresponde agrave corpoacuterea e irracional Sabendo que actuam como princiacutepios de criaccedilatildeo na medida em que determinam as duas faces do devir podem com justeza ser entendidos como condiccedilotildees de possibilidade do dualismo cosmoloacutegico

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23 O demiurgoLogo no iniacutecio da narrativa apoacutes a anuecircncia

de Soacutecrates Timeu comeccedila por definir o agente que constituiu o mundo como um deus (theos 31a2) bom (agathos 29e1) e absolutamente livre de inveja (peri oudenos oudepote phthonos 29e2) a melhor das causas (o drsquoaristos tocircn aitiocircn 29a6) daiacute que o que produza seja o mais belo (to kalliston 30a7) Como eacute evidente o estatuto divino do demiurgo natildeo coincide de forma alguma com o das divindades tradicionais do Olimpo grego Ao contraacuterio destes que protagonizam episoacutedios de adulteacuterio (Afrodite e Ares) guerras (a revolta dos Gigantes) e manifestam atributos opostos agrave bondade como a ganacircncia (de Cronos e posteriormente de Zeus) bem como interferem em certa medida com a acccedilatildeo quotidiana dos homens ndash os Poemas Homeacutericos satildeo bom exemplo disso ndash o demiurgo eacute todo ele bom e apoacutes ter criado a sua obra retira-se natildeo interferindo mais Eacute pois um agente divino que se situa num patamar superior ao das outras divindades tradicionais Isso eacute bastante evidente tendo em conta os dois tipos de demiurgia que a narrativa apresenta a primeira que diz respeito ao mundo e agrave parte divina do Homem eacute da autoria do demiurgo jaacute a segunda que trata das coisas mortais (a parte mortal da alma do Homem inclusive) foi delegada agraves divindades criadas por si

Em sentido inverso o demiurgo aparece caracterizado no texto mais como um homem do que como um deus Chega a ter emoccedilotildees quando se apercebe de que a sua obra estava a tomar o rumo certo jaacute que

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representava com bastante verosimilhanccedila o arqueacutetipo rejubilou e ficou satisfeito (37c7) Aleacutem disso tambeacutem a sua metodologia eacute descrita agrave luz de criteacuterios humanos pois descobre por meio de um raciociacutenio (logismos 30b1) e obedece a uma estrutura matemaacutetica (47b 87c)

Como ldquoconstrutorrdquo o demiurgo empreende uma actividade mimeacutetica Ao criar o mundo sensiacutevel por meio da imitaccedilatildeo do arqueacutetipo assemelha-se em grande medida a um artiacutefice que antes de produzir alguma coisa tem em conta uma forma da qual assimilaraacute as propriedades que faraacute corresponder no material que trabalha Assim potildee os olhos nas coisas que se mantecircm sempre iguais (as Ideias) Partindo deste conhecimento preacutevio age sobre o material de modo a dotaacute-lo de ordem pois que antes estava desordenado (30a3-5)

Levando mais longe a caracterizaccedilatildeo da obra do demiurgo como uma actividade mimeacutetica tenhamos em conta antes de mais que esta figura em termos muito gerais eacute um fabricador Este seu caraacutecter eacute desde logo confessado por Timeu no iniacutecio da sua narrativa pois a palavra que utiliza para o definir eacute muito simplesmente poiecirctecircs (28c3) Embora fosse demasiado forccedilado traduzi-la por ldquopoetardquo em virtude das contradiccedilotildees que essa opccedilatildeo levantaria natildeo eacute de todo inconcebiacutevel que ainda assim procuremos nele alguns atributos que o possam caracterizar como tal e a sua actividade como algo semelhante agrave criaccedilatildeo poeacutetica Jaacute foi dito que ela eacute mimeacutetica o que a situa num acircmbito muito proacuteximo do poeacutetico vejamos em que medida podemos aproximaacute-la ainda mais convocando para o efeito a forma como

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Platatildeo descreve a actividade dos poetas e comparando-a com a forma como no Timeu caracteriza o processo criativo levado a cabo pelo demiurgo

Primeiro que tudo eacute exactamente a mesma palavra ndash poiecirctecircs ndash que eacute usada para definir quer o fabricador do mundo neste diaacutelogo (28c3) quer os poetas um pouco por todo o corpus platoacutenico13 mas as semelhanccedilas natildeo se resumem a este pormenor vocabular Na Repuacuteblica numa altura em que se fala sobre o papel dos poetas na educaccedilatildeo a sua actividade (e tambeacutem o produto dessa actividade) eacute descrita como uma fabricaccedilatildeo (plassocirc 377b6) criaccedilatildeo (poieocirc 377c1 379a3) e composiccedilatildeo (syntithecircmi 377d6) No Timeu tambeacutem a acccedilatildeo da divindade eacute descrita com estes trecircs verbos14

Enquanto artiacutefice o demiurgo estaacute ligado agraves mais diversas artes de acordo com o que Platatildeo estabelecera na Repuacuteblica acerca da terceira classe de cidadatildeos como ferreiro quando fabrica a alma do mundo (35a-40d) e lhe daacute a forma de uma esfera armilar como pintor desenha os animais no mundo (55c5-6) isto eacute os corpos celestes associados aos animais do Zodiacuteaco eacute tambeacutem um modelador de cera (74c6) como oleiro para originar a massa oacutessea do corpo humano primeiro peneira a terra (73e1) em seguida mistura-a com o elemento liacutequido ndash a medula humedecida (73e2) ndash e finalmente daacute-lhe a forma num torno (73e7) como tecelatildeo quando fabrica os sistemas respiratoacuterio e circulatoacuterio num entranccedilado (78c1) semelhante a uma nassa (78b4) como agricultor

13 Eg Goacutergias 485d Iacuteon 534b Leis 935e Repuacuteblica 379a14 plassocirc 42d 73c 74a 78c poieocirc 31b 31c 34b 35b 36c

37d 38c 45b 71d 76c 91a syntithecircmi 33d 69d 72e

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ao semear (41e4) implantar (42a3) e enraizar (73b4) as almas nos corpos ou ainda quando a medula eacute comparada a um solo araacutevel (73c7) que deve receber a semente (73c7)

Contudo se no caso do artiacutefice ldquoconvencionalrdquo o material que trabalha eacute bastante oacutebvio no que trata ao demiurgo essa questatildeo eacute bastante mais delicada Eacute dito que a sua actividade consiste em contemplar o arqueacutetipo para trabalhar o material de modo a dotaacute-lo de ordem ele que antes estava desordenado (30a3-5) mas natildeo eacute especificada a natureza desse material Ora se a sua funccedilatildeo eacute ordenar organizar e impor medida e proporccedilatildeo onde as natildeo havia (69b) por meio da geometria e da matemaacutetica (53b-c) a mateacuteria-prima de que parte seraacute obviamente o substrato preacute-coacutesmico que existia no caos anterior agrave demiurgia Vejamos o exemplo dos elementos

Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros (53a7-b5)

O trabalho produtivo natildeo consiste numa criaccedilatildeo ex nihilo porquanto modela um material preacute-existente tem antes que ver com uma configuraccedilatildeo de acordo com uma matriz (a matemaacutetica) do substrato preacute-coacutesmico

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Ao agir como ordenadororganizador assemelha-se bastante a um administrador ou em uacuteltima anaacutelise a um poliacutetico se a sua tarefa pretende impor a ordem onde ela natildeo existia metaforicamente transmuta a anarquia do caos em sociedade coacutesmica A este respeito a proacutepria palavra decircmiourgos confirma essa orientaccedilatildeo semacircntica pois noutros contextos pode significar precisamente ldquomagistradordquo15 Deste modo quando Timeu lhe chama ldquocriador e pai do mundordquo (28c3-4) devemos entender esses epiacutetetos em primeiro lugar agrave luz do caraacutecter mimeacutetico da demiurgia e por outro lado de acordo com esta funccedilatildeo ordenadora ou seja seraacute ldquopairdquo como educador e natildeo como princiacutepio de geraccedilatildeo Tambeacutem como pai neste sentido de educador o demiurgo eacute para os homens um exemplo a seguir tal como Platatildeo diz no Teeteto (176b) acerca da necessidade de o Homem se tornar o mais semelhante possiacutevel agrave divindade ele eacute o arqueacutetipo a que o filoacutesofo deve aspirar

24 O terceiro niacutevel ontoloacutegicoNo momento em que acaba de descrever as obras

do Intelecto e passa agraves da Necessidade (48a) Timeu sente-se obrigado a reiniciar a narrativa e a desfazer a dicotomia ontoloacutegica inicial ser-devir acrescentando a estes dois tipos (dyo eidecirc 48e3) aquilo a que chama ldquoum terceiro de outra espeacutecierdquo (triton allo genos 48e4)

Ao contraacuterio do que acontece com os anteriores o modo de referir este terceiro tipo carece de clareza

15 Eg Aristoacuteteles Poliacutetica 1275b29 Poliacutebio 23516 Tuciacutedides 547 Cf Brisson (1998 p 50)

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e estabilidade epistemoloacutegica porquanto eacute acessiacutevel por meio de ldquoum certo raciociacutenio bastardordquo (logismocirc tini nothocirc 52b2) que carece de credibilidade (mogis piston 52b2) Ora seraacute inevitaacutevel o este caraacutecter hiacutebrido da explicaccedilatildeo se aplique tambeacutem ao assunto a que se reporta em trecircs ocasiotildees distintas Timeu caracteriza-o como ldquoum tipo difiacutecil e obscurordquo (chalepon kai amydron 49a3) ldquoinvisiacutevel e amorfordquo (anoraton kai amorphon 51a7) que ldquoparticipa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevelrdquo (metalambanon aporocirctata tou noecirctou 51a7-b1) Deixando de parte os problemas de interpretaccedilatildeo que esta descriccedilatildeo levanta a questatildeo que ocorre levantar eacute como formular um discurso que se reporta a algo imperscrutaacutevel

A dificuldade eacute desde logo anunciada pela incapacidade de o objectivar na linguagem Isso eacute evidente tanto nas palavras do protagonista como nas interpretaccedilotildees produzidas ao longo dos seacuteculos eacute que o termo chocircra eacute apenas uma das designaccedilotildees que recebe no texto aquela que a tradiccedilatildeo fixou Aleacutem desta que vertemos por ldquolugarrdquo (52a8) o terceiro tipo eacute tambeacutem chamado ldquoreceptaacuteculordquo (hypodochecirc 49a6) ldquosuporte de impressatildeordquo (ekmageion 50c2) ldquomatildeerdquo (mecirctecircr 50d3 51a5 88d7) ldquoaquilo em querdquo (to en ocirc 49e7 50d1 50d6) ldquolocalizaccedilatildeordquo (edra 52b1) e ldquolocalrdquo (topos 52a6 52b4) mais indirectamente eacute comparaacutevel a uma matildee (proseikasai mecirctri 50d2-3) e a uma ama (oion tithecircnecircn 49a6) Todas elas que de um modo geral se enquadram numa descriccedilatildeo da chocircra como suporte de alguma coisa parecem conferir-lhe uma concepccedilatildeo espacial contudo

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a flutuaccedilatildeo de termos como ldquolugarrdquo ldquolocalrdquo e ldquoaquilo em querdquo denuncia a impossibilidade de apontar onde eacute exactamente

A chocircra evidencia caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel eacute invisiacutevel e amorfa ao mesmo tempo que tangiacutevel mas apenas pensaacutevel por um raciociacutenio bastardo A esta constituiccedilatildeo ontoloacutegica hiacutebrida acresce o facto de em termos espaciais ser caracterizada de modo ambiacuteguo eacute extensatildeo ou espaccedilo como condiccedilatildeo de localizaccedilatildeo (ldquoprovidencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devirrdquo 52b6) e ao mesmo tempo o proacuteprio local ocupado por um determinado corpo (ldquoa natureza que recebe todos os corposrdquo 50b6) isto eacute a realizaccedilatildeo daquela extensatildeo (apud Mesquita 2009 p 91) A impossibilidade de associaacute-la em definitivo a uma das categorias ontoloacutegicas e a uma das acepccedilotildees espaciais por partilhar caracteriacutesticas que se aplicam a ambos os membros da equaccedilatildeo convida-nos a considerar que se possa situar no plano da abstracccedilatildeo Isto eacute se natildeo pertence ao inteligiacutevel nem ao sensiacutevel bem como natildeo admite por inteiro o local de contacto entre os dois niacuteveis resta considerar esse lugar uma abstracccedilatildeo do espaccedilo de particularizaccedilatildeo ldquonatildeo eacute senatildeo o particular pensado eideticamenterdquo (Mesquita 1995 p 146) No entanto se prescindirmos daquela distinccedilatildeo aceitando para tal a fusatildeo entre espaccedilo como extensatildeo e espaccedilo como concretizaccedilatildeo pontual e pegarmos no problema a partir das suas condiccedilotildees discursivas esta ideia de lugar de participaccedilatildeo abstraiacutedo pode tornar-se ligeiramente mais clara

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A descriccedilatildeo natildeo se processa de modo inequiacutevoco nem sequer toma corpo num discurso minimamente demonstrativo que pretenda tornar transparente a natureza da chocircra Em vez disso eacute comparada a uma matildee ou a uma ama equivalendo a forma como interage com o arqueacutetipo e com os particulares a um processo de impressatildeo de que ela eacute o suporte

() recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel () (50b8-c6)

Na medida em que se afigura como uacutenica alternativa possiacutevel o recurso ao metafoacuterico parece assim agravar o caraacutecter ldquodifiacutecil e obscurordquo tanto do assunto como da sua explicaccedilatildeo Mas se aceitarmos a premissa de que um discurso e o seu objecto partilham da mesma natureza seraacute de esperar que a natureza da proacutepria chocircra haacute-de tambeacutem ser metafoacuterica

Tomada na sua estrutura mais baacutesica a metaacutefora consiste na coligaccedilatildeo de dois termos atraveacutes de um elemento intermeacutedio que permite uma transferecircncia de sentido bidireccional isto eacute as duas extremidades do aparelho conceptual estatildeo co-implicadas porquanto unidas pelo terceiro termo aquele em que se consubstancia a relaccedilatildeo De modo anaacutelogo a chocircra

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representaraacute o ponto intermeacutedio de coligaccedilatildeo entre o arqueacutetipo e os particulares ou seja o lugar em que se consuma o processo de participaccedilatildeo Tambeacutem nesta perspectiva parece inscrever-se o caraacutecter mimeacutetico da chocircra ldquotudo o que nela entra e dela sai satildeo imitaccedilotildees (mimecircmata) do que eacute semprerdquo Por um lado natildeo eacute o proacuteprio arqueacutetipo que entra no lugar de participaccedilatildeo mas apenas as suas imitaccedilotildees por outro o particular e a proacutepria particularizaccedilatildeo resultam como imitaccedilotildees do proacuteprio arqueacutetipo mediadas justamente pela chocircra16

A exposiccedilatildeo deste terceiro tipo insiste nas constantes transformaccedilotildees a que todas as coisas estatildeo sujeitas e que erradamente designamos por ldquoistordquo (touto 49d5) quando deveriacuteamos optar por ldquoo que em determinadas circunstacircncias estaacute assimrdquo (to toiouton ekastote 49d5) Por exemplo aplicamos o termo ldquoaacuteguardquo independentemente de aquilo que referimos estar em estado liacutequido soacutelido ou gasoso Conclui-se que a chocircra pode ser ldquoistordquo ao passo que as coisas que nela entram e dela saem satildeo apenas ldquoque estaacute assimrdquo (49d-e) O recurso agrave linguagem como repositoacuterio metafoacuterico natildeo nos parece acidental nem inconsequente na medida em que ajuda a esclarecer a distinccedilatildeo ontoloacutegica fundamental entre as duas dimensotildees enquanto ldquoistordquo a (e soacute a) chocircra tem um sentido substantival e por conseguinte uma natureza substancial jaacute os particulares enquanto ldquoaquilo que estaacute assimrdquo estatildeo limitados ao acircmbito adjectival e natildeo podem ser mais do que qualificativos

16 Para uma discussatildeo mais detalhada do problema vide Mesquita 1995 pp 132-133

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circunstanciais Esta ldquoontologia qualitativardquo do mundo do devir atribui aos particulares um estatuto de meras entidades relacionais (apud Ferrari 2007 p 14) e como tal diametralmente opostos da substancialidade do arqueacutetipo Por conseguinte a relaccedilatildeo entre ambos os niacuteveis isto eacute a participaccedilatildeo natildeo poderaacute ser reduzida a um decalque biuniacutevoco caracteriacutestico da estrutura sujeito-predicado A nosso ver ela soacute pode ser mimeacutetica

Aleacutem desta linha de interpretaccedilatildeo espacial da chocircra existe uma outra a que podemos chamar ldquomaterialrdquo Decorre da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles que numa passagem da Fiacutesica (42 209b11-16) em que comenta esta secccedilatildeo do Timeu atribui a Platatildeo a identificaccedilatildeo entre espaccedilo (chocircra) e mateacuteria (hylecirc) Apesar de convidativa enferma de dois problemas fundamentais Em primeiro lugar esta categoria eacute absolutamente estranha ao sistema platoacutenico tanto assim eacute que o termo hylecirc soacute comeccedila a ter este sentido filosoacutefico justamente a partir de Aristoacuteteles Em segundo e natildeo menos importante o facto de aquela passagem da Fiacutesica assentar em grande parte nas chamadas doutrinas natildeo escritas ndash um grupo de postulados que Platatildeo teraacute sustentado oralmente mas de que natildeo deixou registo nos diaacutelogos Ora ainda que a sua reconstituiccedilatildeo seja possiacutevel e ateacute verosiacutemil (vide Ferrari 2007 pp 22-23) esta linha de interpretaccedilatildeo parece-nos exclusivamente vocacionada para esclarecer o Platatildeo hipoteacutetico e natildeo o dos diaacutelogos O nosso propoacutesito esgota-se nesta segunda orientaccedilatildeo

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25 O estatuto do discursoPortanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil e natildeo procurar nada aleacutem disso (29c4-29d3)

Esta curiosa afirmaccedilatildeo do narrador faz referecircncia a duas questotildees de extrema importacircncia para o entendimento do tipo de mensagem que o diaacutelogo pretende fazer passar e tambeacutem da forma como o faz o facto de toda ela ser aceite por Soacutecrates sem quaisquer reservas coloca-a num plano de acrescida importacircncia Em primeiro lugar Timeu refere que tanto ele como quem o ouve satildeo apenas seres humanos e por isso nem lhe eacute permitido a ele aflorar determinadas questotildees nem lhes seria possiacutevel a eles compreendecirc-las Em segundo lugar e mais importante ao apontar o acircmbito do verosiacutemil como uacutenica alternativa distingue muito claramente dois niacuteveis discursivos o dos ldquodiscursos verosiacutemeisrdquo (29c8 [logous] eikotas) e o da ldquonarrativa verosiacutemilrdquo (29d2 eikota mython) desta concorrecircncia ressalta obviamente a partilha do termo eikos que vertemos por ldquoverosiacutemilrdquo mas tambeacutem a associaccedilatildeo deste termo a mythos num caso e a logos noutro caso

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Aleacutem deste preluacutedio a expressatildeo eikos mythos aparece mais duas vezes no texto Na primeira insere-se no contexto da descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo das cores (67c-68d) apoacutes dar alguns exemplos do modo como se misturam Timeu diz que para os outros casos que natildeo referiu basta seguir o mesmo raciociacutenio de modo a que fique ldquosalvaguardada a narrativa verosiacutemilrdquo (68d) Na segunda ocorrecircncia as circunstacircncias satildeo muito semelhantes ao abordar os vaacuterios compostos que os elementos primaacuterios podem formar diz que para os casos que natildeo referiu deve ser aplicada a mesma metodologia desde que seja ldquoinvestigada a modalidade da narrativa verosiacutemilrdquo (59c) O estatuto de modalidade (idea) discursiva que reconhece ao eikos mythos coloca a narrativa como ponto de partida para a investigaccedilatildeo satildeo os dados nela implicados que devem ser discutidos Ao dizer que essa narrativa eacute uma modalidade Timeu parece dar a entender que haveraacute uma outra pois se eacute essa que deve ser investigada entatildeo a forma como essa investigaccedilatildeo se formaliza deveraacute obedecer a uma modalidade diferente o eikos logos

Ao longo do seu discurso Timeu por vezes suspende o papel de narrador de uma acccedilatildeo e assume o de criacutetico daquilo que ele proacuteprio disse comentando analisando e explicando alguns pormenores Enquanto descreve a transiccedilatildeo dos elementos como entidades amorfas para o estatuto de corpos recorre agraves relaccedilotildees matemaacuteticas e geomeacutetricas para esclarecer o modelo pelo qual o demiurgo se guiou e assim dar a conhecer o modo

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como atingiram a proporccedilatildeo (53b-54a) Eacute este um dos casos mais evidentes em que deixa de ser um narrador e passa a ser um demonstrador de uma teoria Eacute bastante evidente igualmente do ponto de vista estiliacutestico a insistecircncia no teor explicativo e tambeacutem especulativo das suas observaccedilotildees tenta ldquoesclarecerrdquo (decircloun 53c1) e ldquoafirmardquo na primeira pessoa (legocirc 47b2) ou por outra engloba tambeacutem os ouvintes nessa missatildeo ao preferir a primeira pessoa do plural (47b1 47b5 53e5) Ainda assim confessa uma certa falibilidade em relaccedilatildeo agravequilo que diz (53e3) por ser fruto da sua opiniatildeo (47a) No entanto ao reportar-se agrave narrativa verosiacutemil que por sua vez se refere ao mundo do sensiacutevel qual seraacute a natureza das suas observaccedilotildees

Logo apoacutes a anuecircncia de Soacutecrates ao acircmbito verosiacutemil da sua narrativa Timeu comeccedila por descrever em linhas gerais o processo de fabricaccedilatildeo do mundo durante o qual diz que o demiurgo estabeleceu o intelecto na alma do mundo e por sua vez colocou a alma no corpo (30b) Daqui retira a primeira conclusatildeo o mundo eacute um ser-vivo com alma e pensamento (30c) mas faz questatildeo de referir que esta deduccedilatildeo eacute conforme a um discurso verosiacutemil (kata logon ton eikota 30b7) De igual modo numa das suas uacuteltimas conclusotildees apoacutes ter discorrido desde o mundo ateacute agrave geraccedilatildeo do Homem o acircmbito verosiacutemil das observaccedilotildees agrave narrativa manteacutem-se (90e8) quando relembra o que dissera anteriormente sobre a degenerescecircncia em mulheres dos homens que levam uma vida injusta (90e 42b)

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Quando trata de abordar ldquoa terceira forma de serrdquo ndash a chocircra ndash manteacutem essa atitude especulativa embora admita reservas acrescidas impostas pela dificuldade do assunto Enquanto que na descriccedilatildeo da acccedilatildeo demiuacutergica eacute apenas um narrador que por isso fala na terceira pessoa assumindo somente o papel de intermediaacuterio entre acccedilatildeo e discurso neste caso eacute ele quem protagoniza Nesta altura em que deve passar agrave apresentaccedilatildeo de algo tatildeo complicado de conceber e formular como aquele terceiro niacutevel ontoloacutegico ldquotentaraacute ser ainda mais verosiacutemilrdquo (peirasomai ecirctton eikota 48d2-3) pois neste caso as suas observaccedilotildees partiratildeo de uma ldquoexposiccedilatildeo estranha e inusitadardquo (ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs 48d5-6) O objectivo eacute portanto chegar a uma conclusatildeo ndash apresentar um resultado ndash a partir do que diz a narrativa Poreacutem neste caso o eikos mythos a que as suas observaccedilotildees se reportaratildeo tem um caraacutecter diferente mais complexo e imbricado pois tambeacutem o objecto a que se refere eacute dessa natureza daiacute que o discurso que produza acerca dessa narrativa seja tambeacutem ele ldquoinusitadordquo (aecircthei 53c1)

Ao longo das suas intervenccedilotildees acerca da narrativa verosiacutemil Timeu demonstra constantemente uma preocupaccedilatildeo em fixar um ponto de vista pois tenta fornecer uma ldquoexposiccedilatildeordquo (diecircgecircsis 48d6) uma ldquoconclusatildeordquo (dogma 48d6) e aspira a ldquoapontar a causardquo (aitiateon 57c9) No entanto tem consciecircncia de que pode estar errado (53e3) e por isso admite a existecircncia de outra opiniatildeo divergente (55d6) Pelo facto de natildeo poder ser definitivamente validado o seu juiacutezo situa-se

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no campo do hipoteacutetico e do especulativo porquanto resultante da exploraccedilatildeo de possibilidades aproximaacuteveis ou provisoacuterias que apenas garantem coerecircncia e plausibilidade Ainda assim natildeo carece de validade filosoacutefica porque acima de tudo pretende representar o mundo pelo recurso a ferramentas fiaacuteveis como a matemaacutetica e a geometria

Torna-se entatildeo evidente que as duas modalidades discursivas eikos mythos e eikos logos desempenham papeacuteis bastante distintos o primeiro tem um caraacutecter narrativo expositivo natildeo-analiacutetico e natildeo aspira a uma conclusatildeo o segundo pretende partir do que resulta do primeiro e analisaacute-lo e por outro lado estabelecer tambeacutem os pressupostos sob os quais se desenrolaraacute a exposiccedilatildeo Em uacuteltima instacircncia a proacutepria enunciaccedilatildeo inicial dos dois niacuteveis ontoloacutegicos (ser e devir) e posteriormente a introduccedilatildeo do um terceiro eacute por si soacute um logos pois estabelececirc-los implica uma reflexatildeo ulterior

Resta ainda esclarecer a natureza (apenas) verosiacutemil do texto em ambas as suas dimensotildees discursivas pois que mythos e logos satildeo sempre qualificados como eikos Para tal conveacutem recuperar novamente o pressuposto onto-episteacutemico desde logo estabelecido no proeacutemio os discursos satildeo congeacuteneres daquilo que explicam Visto que o mundo criado eacute uma imagem (eikocircn) o discurso ou narrativa sobre ele teraacute necessariamente esta mesma natureza Num primeiro niacutevel mimeacutetico o demiurgo imita um modelo de inteligibilidade externo (as Ideias) cujas propriedades enforma na mateacuteria preacute-coacutesmica

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No outro o discursivo eacute o filoacutesofo que produz uma explicaccedilatildeo atraveacutes da observaccedilatildeo esquemaacutetica do real isto eacute da imitaccedilatildeo da ordem estabelecida pelo demiurgo Entatildeo a manifestaccedilatildeo discursiva da criaccedilatildeo haacute-de ser tambeacutem ela de caraacutecter mimeacutetico isto eacute do acircmbito do verosiacutemil posto que o resultado (o mundo) eacute igualmente de natureza mimeacutetica a soma dos particulares em processo isto eacute o devir consiste numa constante imitaccedilatildeo do modelo inteligiacutevel (as Ideias) cujo padratildeo de racionalidade espelha o plano cosmoloacutegico original e se desvela agrave observaccedilatildeo analiacutetica do filoacutesofo

3 o discurso de crIacutetias

O tema da narrativa de Criacutetias foi alvo de muacuteltiplas interpretaccedilotildees praticamente desde pouco tempo depois da morte de Platatildeo ateacute aos nossos dias A abordagem agrave famosa questatildeo da Atlacircntida seduz natildeo soacute acadeacutemicos das mais vaacuterias aacutereas do saber como tambeacutem autores de ficccedilatildeo Como se torna impossiacutevel circunscrever tudo quanto tenha sido feito a este respeito bem como englobar todos os possiacuteveis vectores de anaacutelise tentaremos de um modo tatildeo breve quanto geneacuterico tocar os pontos fundamentais do problema insistindo sobretudo no estatuto que cabe a esta narrativa e inevitavelmente no acircmbito em que se inscreve

Muito sucintamente a intervenccedilatildeo de Criacutetias resume-se agrave descriccedilatildeo de dois mundos antagoacutenicos a Atenas primeva e a Atlacircntida mais propriamente trata do conflito em sentido literal que travaram entre si Seria este o assunto principal do diaacutelogo segundo podemos

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deduzir a partir de alguns dados do texto embora dele tenha sobrado apenas uma descriccedilatildeo inicial que termina abruptamente O que restou desta diegese arquitectada pela dicotomia de dois mundos opostos comeccedila por dar conta do territoacuterio da populaccedilatildeo e da organizaccedilatildeo social de uma Atenas situada num tempo primordial (9000 anos antes de Platatildeo) e termina com um ensaio corograacutefico mais desenvolvido sobre uma monumental ilha situada para aleacutem das Colunas de Heacuteracles (Estreito de Gibraltar) cujos habitantes a dada altura decidiram dominar os povos e cidades do Mediterracircneo incluindo Atenas Agrave partida estariacuteamos inclinados a identificar este episoacutedio com uma determinada guerra travada entre Atenas e um invasor que mediada pela pena criativa de Platatildeo se situaria algures entre histoacuteria e mito mas o problema eacute bem mais complexo Eacute que a ilha da Atlacircntida nunca foi localizada geograficamente e natildeo existe qualquer vestiacutegio histoacuterico quer dela quer dos seus habitantes

Deste modo podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas reconhecer-lhe um fundo histoacuterico ou consideraacute-la uma ficccedilatildeo forjada pelo proacuteprio Platatildeo Aleacutem destas duas hipoacuteteses alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegoacuterico Em nosso entender esta via natildeo estaacute no mesmo plano que as anteriores na medida em que eacute compatiacutevel com ambas constituiraacute pois o segundo niacutevel de intencionalidade da narrativa seja ela histoacuterica ou ficcional

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31 A historicidade da narrativa sobre a AtlacircntidaA hipoacutetese histoacuterica foi a primeira a ser ensaiada

Segundo diz Proclo nos Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo Crantor (o precursor dos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo) atribuiacutea ao discurso de Criacutetias o estatuto de ldquohistoacuteria purardquo (historia psilecirc 1761) Decorrente deste arrojo hermenecircutico foi-se criando e consolidando a ideia de que a Atlacircntida existiria de facto em algum lugar Sobretudo a partir dos Descobrimentos portugueses e espanhoacuteis dos seacuteculos XV e XVI surgiram variadiacutessimas tentativas de identificar geograficamente o territoacuterio No entanto o uacutenico resultado que todas essas demandas (mais ou menos cientiacuteficas) obtiveram foi uma disparidade de opiniotildees tal que tornou qualquer ponto do globo passiacutevel de ser identificado com a ilha

Especial atenccedilatildeo mereceu a hipoacutetese ldquoCretardquo que inicialmente granjeou alguma credibilidade No seguimento de exploraccedilotildees arqueoloacutegicas naquela zona foi forjada uma teoria segundo a qual a civilizaccedilatildeo referida no texto de Platatildeo correspondia agrave que habitava aquela ilha durante o Periacuteodo Minoacuteico a qual tinha sido destruiacuteda por uma violenta erupccedilatildeo do vulcatildeo de Thera (actual Santorini) no entanto com base em novas investigaccedilotildees arqueoloacutegicas e geoloacutegicas essa hipoacutetese acabou por ser refutada (vide Brisson 2001 p 318) Antes destas as outras possibilidades ateacute agora adiantadas satildeo o Continente Americano a Sueacutecia os Mares do Sul (junto ao actual Peru) os arquipeacutelagos dos Accedilores

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e da Madeira entre outras17 Por conseguinte a crenccedila de que a civilizaccedilatildeo representada no discurso de Criacutetias teraacute um referente histoacuterico eacute cada vez mais residual no acircmbito da comunidade cientiacutefica na verdade a grande maioria dos tiacutetulos que tecircm sido publicados sobre a Atlacircntida ou que de algum modo a abordam tomam como princiacutepio a sua anistoricidade

32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de PlatatildeoA segunda hipoacutetese de acordo com a qual toda

a narrativa foi integralmente inventada por Platatildeo eacute aquela que teve menos aceitaccedilatildeo durante a Antiguidade Na verdade restou apenas uma referecircncia que apontava neste sentido na Geografia Estrabatildeo cita em duas ocasiotildees (236 13136) a sentenccedila ldquoo poeta que a forjou fecirc-la desaparecerrdquo na primeira natildeo explicita a sua autoria e na segunda aponta Aristoacuteteles o qual nunca refere a Atlacircntida em nenhum dos textos conservados18 Em segundo lugar porque esta orientaccedilatildeo natildeo se compatibiliza com a intenccedilatildeo do narrador que insiste em classificar o seu discurso como histoacuterico Se o primeiro aspecto natildeo permite concluir rigorosamente nada pois apenas constata uma evidecircncia jaacute o segundo seraacute mais difiacutecil de justificar

17 Para uma descriccedilatildeo mais pormenorizada das possibilidades de localizaccedilatildeo geograacutefica da Atlacircntida vide Azevedo (2009 pp 102-105) Matteacutei (2002 pp 255-256) e Brisson (2001 pp 314-319)

18 Eacute referido o Oceano Atlacircntico mas apenas em textos considerados espuacuterios (Sobre o Mundo 3 392b20-393a16 Problemas [Fiacutesicos] 2652 946a16-32)

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No breve resumo antecipado no Timeu Criacutetias refere que aquilo que estaacute prestes a contar eacute absolutamente verdadeiro (pantapasi alecircthous 20d7) ou seja o seu discurso eacute histoacuterico Na verdade a sua intervenccedilatildeo deixa transparecer vaacuterias caracteriacutesticas e preocupaccedilotildees proacuteprias de um historiador o facto de descrever (geograacutefica social e politicamente) as duas forccedilas antes de entrarem em combate tal como faz Tuciacutedides (189-sqq) a necessidade de fundamentar a argumentaccedilatildeo com evidecircncias19 o modo como o proacuteprio Soacutelon obteacutem as informaccedilotildees no Egipto faz lembrar o meacutetodo de Heroacutedoto20 ou mesmo o recurso a determinadas expressotildees formulares caracteriacutesticas do registo histoacuterico21

Todavia a fonte que sustenta o relato eacute no miacutenimo problemaacutetica Em virtude do tempo decorrido desde a eacutepoca a que Criacutetias se refere e do inevitaacutevel desaparecimento dos homens que nela viveram natildeo sobraram na Greacutecia mais do que nomes isolados que os que viviam nas montanhas ndash iletrados ndash puseram aos seus descendentes (109b-c) Perante a inexistecircncia de testemunhos heleacutenicos que dessem conta daquele episoacutedio a fundamentaccedilatildeo da narrativa remonta ao Egipto onde Soacutelon recolheu os dados junto de sacerdotes locais No entanto a dita transmissatildeo carece

19 O termo utilizado para ldquoevidecircnciardquo (tekmecircrion) eacute muitiacutessimo recorrente nos escritos de Heroacutedoto (2131 33810 72384) e Tuciacutedides (113 2392 31046)

20 Eg 244 53 10021 Por exemplo megala kai thaumasta (ldquograndes e admiraacuteveis

feitosrdquo) em 20e uma expressatildeo tipicamente historiograacutefica (eg Heroacutedoto 111 Diodoro Siacuteculo 1319 Dioniacutesio de Halicarnasso 581)

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de validade histoacuterica pelo facto de ser cronologicamente impossiacutevel que Soacutelon tenha estado no Egipto na eacutepoca do rei Amaacutesis como eacute sugerido pelo texto (21e) razatildeo pela qual o episoacutedio deve ter sido manipulado por Platatildeo (apud Leatildeo 2001 pp 249 275)

Assim a intenccedilatildeo historicista do narrador torna-se extremamente difiacutecil de compatibilizar com a evidente precariedade das fontes de que parte bem como com a impossibilidade de depois de mais de dois mileacutenios de exegese sequer se esboccedilar uma teoria minimamente vaacutelida que sustente esta posiccedilatildeo Aleacutem disso haacute outro pormenor que agrave partida parece complicar ainda mais o esclarecimento de tal contradiccedilatildeo Quando ainda no Timeu Soacutecrates elogia a intenccedilatildeo de Criacutetias oferecer um ldquodiscurso do realrdquo (alecircthinon logon 26e4-5) e natildeo uma narrativa forjada (mecirc plasthenta mython 26e4) parece subscrever o estatuto de histoacuteria pura Contudo esta aparente conivecircncia deve ser entendida agrave luz do que o proacuteprio dissera em relaccedilatildeo agrave cidade descrita ldquono dia anteriorrdquo isto eacute o Estado arquetiacutepico da Repuacuteblica (cf Pina 2010 pp 148-149)

Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos (19b-c)

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Isto eacute aquele jogo entre mythos e logos narrativa e discurso parece indiciar natildeo uma oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso antes uma tentativa de transpocircr para o real e concreto (apud Azevedo 2009 p 96) algo que fora formulado em abstracto No entanto visto que esta questatildeo entronca numa das possibilidades de interpretaccedilatildeo a abordar posteriormente deixemo-la para jaacute em suspenso

Abandonando entatildeo os pontos de vista dos participantes do diaacutelogo sobre a natureza do relato e focando um pouco mais o que podemos deduzir por meio de algumas relaccedilotildees intertextuais verificamos que o texto de Platatildeo evidencia a presenccedila de muitas fontes a que natildeo faz referecircncia directa A diversidade desses materiais usados como ldquoingredientesrdquo eacute tal que facilmente poderemos estabelecer um conjunto de substratos inerentes ao discurso os quais forccedilosamente lhe vinculam um estatuto compoacutesito e ao mesmo tempo o afastam da reclamada historicidade

Por um lado o texto ecoa em diversas ocasiotildees vozes de alguns autores gregos como nota Gill (1980 xii-xiii) Por exemplo a incomensuraacutevel fertilidade das terras da Aacutetica primeva que reduzia ao miacutenimo o trabalho agriacutecola (110e) relembra inevitavelmente a Idade do Ouro de Hesiacuteodo (Trabalhos e Dias 109-126) ou o proacuteprio nome ldquoAtlacircntidardquo e a sua localizaccedilatildeo para aleacutem dos confins do mundo conhecido (isto eacute o Estreito de Gibraltar) que recupera a ilha da filha de Atlas referida na Odisseia (151-54) No domiacutenio da histoacuteria a presenccedila de Heroacutedoto eacute tambeacutem evidente

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os aneacuteis que estruturam a principal cidade da Atlacircntida (113d-e) evocam a descriccedilatildeo do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana (198) o modo como os canais da planiacutecie daquela ilha estavam arquitectados (118c-e) traz agrave memoacuteria a descriccedilatildeo da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia (3117) a assembleia dos reis tem muitas semelhanccedilas com um ritual caracteriacutestico de uma monarquia egiacutepcia (2147-sqq) Aleacutem disso encontramos tambeacutem elementos da proacutepria cultura aacutetica na construccedilatildeo da Atlacircntida como bem observa Vidal-Naquet (1964 pp 429-432) a divisatildeo decimal do territoacuterio (113e) os edifiacutecios defensivos que fazem lembrar o Pireu (117d-f ) e ateacute o proacuteprio templo de Posiacutedon muito semelhante ao Paacutertenon (116d-f ) Finalmente satildeo tambeacutem sugestivas as semelhanccedilas entre a estaacutetua de Posiacutedon que estava dentro do seu templo e a Estaacutetua de Zeus em Oliacutempia22

Por outro lado haacute na narrativa de Criacutetias elementos pertencentes a outras culturas ou civilizaccedilotildees como Cartago a Creta do Periacuteodo Minoacuteico ou o proacuteprio Egipto No primeiro caso os paralelos que possamos estabelecer satildeo pontuais os vorazes elefantes (114e) caracteriacutesticos daquela zona do Mediterracircneo e por exemplo os nomes Gadiro e Gadiacuterica (114b) de origem semita23 O mesmo acontece com o segundo o facto de ser uma grande potecircncia mariacutetima e sobretudo o culto do touro24 Mas no terceiro caso a questatildeo eacute de

22 Sobre esta relaccedilatildeo vide nota 68 agrave traduccedilatildeo23 Para um desenvolvimento mais pormenorizado desta questatildeo

vide Dusanic (1982 pp 27-28)24 Apesar de natildeo ser exclusivo de Creta o culto do touro era

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outra ordem pois tudo aponta para que este substrato represente o fundo histoacuterico que deu origem agrave narrativa Eacute bastante provaacutevel que o conflito entre a Atenas primeva e a Atlacircntida seja uma adaptaccedilatildeo de uma batalha travada pelos Egiacutepcios no tempo de Ramseacutes III contra os chamados ldquoPovos do Marrdquo Esta designaccedilatildeo ndash muitiacutessimo sugestiva ndash sugere uma confederaccedilatildeo de gentes oriundas de vaacuterias ilhas do Mediterracircneo que unidas tentaram atacar vaacuterias zonas continentais como o Norte da Palestina a Siacuteria e mesmo o Egipto Neste paiacutes a vitoacuteria foi particularmente celebrada e por isso registada e tornada objecto de narrativas vaacuterias que perduraram ao longo dos tempos daiacute que provavelmente Platatildeo se tenha baseado neste episoacutedio (apud Griffiths 1985 pp 13-14)

A recolha de todos estes elementos disponiacuteveis em textos e lugares conhecidos pelo autor parece assim indiciar um processo de representaccedilatildeo do outro atraveacutes dos olhos de um grego uma geografia imaginaacuteria de um mundo tambeacutem ele imaginaacuterio e sobretudo imaginado mas sempre a partir do repositoacuterio cultural de que emerge o sujeito

Tidas em conta estas evidecircncias somos obrigados a confessar que a narrativa de Criacutetias tem um caraacutecter marcadamente compoacutesito No entanto natildeo se trata apenas de uma mistura de dados histoacutericos oriundos de contextos espaacutecio-temporais bastante distintos ndash como que um pastiche25 ndash dado que tambeacutem comporta uma para os Atenienses uma caracteriacutestica identitaacuteria desta ilha veja-se por exemplo o mito de Teseu e Ariadne

25 A expressatildeo eacute de Naddaf (1997 p 190)

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forte componente poeacutetico-mitoloacutegica De um modo algo iroacutenico esta natureza estaacute latente no proacuteprio texto Logo no iniacutecio do diaacutelogo Criacutetias faz questatildeo de sublinhar que a linguagem eacute em si imitaccedilatildeo e representaccedilatildeo (mimecircsin () kai apeikasian 107b4-5) A advertecircncia preliminar indicia antes de tudo uma salvaguarda que o narrador pretende marcar aleacutem disso aproxima inevitavelmente o seu relato do registo ficcional logo anistoacuterico

Dito isto a incompatibilidade entre o estatuto que o narrador atribui ao seu discurso e o estatuto que somos obrigados a reconhecer-lhe manteacutem-se inalteraacutevel se eacute que natildeo se acentuou ainda mais No entanto a soluccedilatildeo definitiva do problema encontra-se precisamente numa das intervenccedilotildees metaliteraacuterias destinadas a certificar o caraacutecter real do discurso

Quanto aos cidadatildeos e agrave cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade () (26c8-26d1)

Esta fala de Criacutetias tem lugar precisamente quando se prepara para comeccedilar a descriccedilatildeo da guerra entre a Atlacircntida e Atenas e a cidade a que se refere eacute aquela que o resumo de Soacutecrates abordara anteriormente o arqueacutetipo de Estado delineado na Repuacuteblica Tal como naquele diaacutelogo a projecccedilatildeo teoacuterica da cidade eacute formulada no acircmbito do mito (501e4) mas ao contraacuterio da Repuacuteblica diaacutelogo em que essa teorizaccedilatildeo natildeo eacute posta em praacutetica o Criacutetias pretende dar corpo ao que fora formulado em abstracto isto eacute trazecirc-lo para a realidade (epi talecircthes)

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Deste modo em vez de verdadeiro como oposto de falso o discurso de Criacutetias pretende ser concreto ou melhor concretizar o que fora teorizado Eacute aliaacutes este o desiacutegnio de Soacutecrates quando diz que pretende ver em movimento a cidade e os cidadatildeos de que falavam bem como seraacute neste sentido que devemos entender a sua preferecircncia por um discurso do real em vez de uma narrativa forjada Deste modo estaremos em condiccedilotildees de assegurar que o discurso de Criacutetias se trata de uma narrativa ficcional forjada pelo proacuteprio Platatildeo a partir de elementos diversos quer (pseudo-)histoacutericos quer poeacutetico-mitoloacutegicos

Ainda assim resta esclarecer o passo em que Criacutetias diz que o seu discurso eacute ldquoabsolutamente verdadeirordquo (pantapasi () alecircthous 20d7) ou seja por que motivo Platatildeo insiste em chamar ldquoverdadeirardquo a uma narrativa que monta com elementos ficcionais A esta questatildeo responde Morgan de um modo tatildeo vaacutelido quanto eficaz o discurso de Criacutetias consiste numa dramatizaccedilatildeo praacutetica da ldquonobre mentirardquo da Repuacuteblica26

33 Leituras alegoacutericasDeste modo entramos na primeira das possiacuteveis

leituras alegoacutericas que o discurso de Criacutetias pode assumir a narrativa sobre a guerra entre a Atlacircntida e

26 Vide Morgan (2000 pp 263-265) cf Pina (2010 pp 155-156) Na Repuacuteblica (414b-sqq) Platatildeo equaciona a possibilidade de introduzir uma crenccedila falsa na sociedade desde que com isso se consiga fazer aumentar o afecto dos cidadatildeos para com a cidade A esse tipo de narrativas chamou ldquonobre mentirardquo (pseudocircn gennaion 414b8-9)

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a Atenas primeva tem como objectivo despertar nos Atenienses um maior afecto em relaccedilatildeo agrave sua cidade Numa linha semelhante Azevedo (2006 p 295 2009 p 95) sugere que a Atlacircntida soacute faz sentido enquanto modelo distoacutepico que contrasta com a Atenas primeva esta um modelo de supremacia civilizacional e com o papel de guardiatilde da Europa Satildeo portanto duas leituras que enquadram a narrativa numa evocaccedilatildeo saudosista de um passado glorioso que pretende acima de tudo revitalizar a imagem de uma cidade desgastada por sucessivos desaires militares e poliacuteticos como era a Atenas de Platatildeo

Ao longo dos tempos foram surgindo outras propostas de leituras alegoacutericas mais individualizadas com uma evidente vertente poliacutetica A primeira tambeacutem de natureza saudosista pretende transpor a narrativa de Criacutetias para o contexto das Guerras Medo-Persas ou seja a Atenas primeva coincide com a Atenas que expulsou o inimigo oriental a qual cultivava ainda os seus costumes e tradiccedilotildees ancestrais e a dada altura tambeacutem ficou praticamente sozinha na frente de batalha em sentido inverso a civilizaccedilatildeo atlante siacutembolo da ganacircncia de domiacutenio forccedila invasora arrasadora e ao mesmo tempo superpotecircncia econoacutemica corresponderaacute aos Persas Quanto agrave segunda leitura possiacutevel ela eacute diametralmente oposta a Atlacircntida representaria a Atenas contemporacircnea de Platatildeo enquanto que a Atenas primeva simbolizaria Esparta ou seja como pano de fundo estaria a Guerra do Peloponeso e de modo subliminar uma criacutetica aguda agrave postura de Atenas durante esse conturbado periacuteodo

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ndash criacutetica essa que assumiria um caraacutecter particularmente incisivo pelo facto de o diaacutelogo se desenrolar pelo menos do ponto de vista dramaacutetico durante as Panateneias a principal festa da cidade De acordo com esta proposta o objectivo seria entatildeo vincar os ldquopecadosrdquo atenienses como a desmedida supremacia mariacutetima ou a atitude agressiva perante as naccedilotildees vizinhas e inversamente enaltecer as ldquovirtudesrdquo tradicionalmente espartanas uma classe militar extremamente forte e demarcada organizaccedilatildeo poliacutetica tradicional e a relativa desvalorizaccedilatildeo das riquezas materiais

Com efeito o que podemos afirmar com toda a certeza independentemente da posiccedilatildeo que queiramos assumir eacute que a narrativa de Criacutetias descreve os dois movimentos comuns a todas as civilizaccedilotildees ascensatildeo e queda

4 estrutura dos diaacutelogos

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias (17a-27c)1 Contexto dramaacutetico (17a-17b)2 Resumo da conversa do dia anterior (17b-20c)3 Resumo do discurso de Criacutetias (20c-26e)4 Programa dos discursos (26e-27c)

II Discurso de Timeu (27c-92c)A Preluacutedio1 Invocaccedilatildeo dos deuses (27c-27d)2 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ser e devir (27d-28b)21 Implicaccedilotildees epistemoloacutegicas (28c-29d)3 Pressupostos iniciais (29d-31b)

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31 O demiurgo (29d-30c)32 O Ser-Vivo (30c-d)33 O mundo eacute um ser-vivo (30d-31a)34 O mundo eacute uacutenico (31a-31b)

B Obras do Intelecto1 Constituiccedilatildeo do mundo (31b-40d)11 O corpo do mundo (31b-34a)12 A alma do mundo (34a-40d)2 Constituiccedilatildeo do Homem (40d-47e)21 A alma do Homem (40d-44c)22 O corpo do Homem (44c-47e)

C O acircmbito da Necessidade1 A causa errante (47e-48b)2 Novo comeccedilo da narrativa nova invocaccedilatildeo dos deuses (48b-48e)3 Terceiro princiacutepio ontoloacutegico a chocircra (48e-51e)4 Recapitulaccedilatildeo dos trecircs princiacutepios ontoloacutegicos (51e-52c)5 Os elementos (52d-61c)51 Estado preacute-coacutesmico (52d-53c)52 Formaccedilatildeo dos soacutelidos a partir dos triacircngulos elementares (53c-56c)53 Transmutaccedilatildeo e variedades dos compostos (56c-57d)54 Movimentos dos elementos (57d-61c)6 As sensaccedilotildees e as impressotildees (61c-69a)61 O tacto (61c-64a)62 O prazer e a dor (64a-65b)

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63 Os sabores (65b-66c)64 Os odores (66c-67a)65 Os sons (67a-67c)66 As cores (67c-68d)

D Cooperaccedilatildeo entre Intelecto e Necessidade (68e-81e)1 Recapitulaccedilatildeo da acccedilatildeo do demiurgo (68e-69c)2 Introduccedilatildeo das divindades menores (69c-69d)3 Constituiccedilatildeo da parte mortal da alma humana (69d-73b)4 Constituiccedilatildeo das restantes partes do corpo humano (73b-76e)5 Criaccedilatildeo dos seres vegetais (76e-77c)6 Constituiccedilatildeo dos aparelhos funcionais do corpo humano (77c-81e)7 Doenccedilas do corpo humano (81e-86a)8 Doenccedilas da alma humana (86b-92c)

E Conclusatildeo (92c)

III Discurso de Criacutetias (106a-121c)

A Introduccedilatildeo (106a-109a)1 Excurso metaliteraacuterio (106a-108a)2 Invocaccedilatildeo dos deuses (108a-d)3 Resumo do discurso (108e-109a)

B Descriccedilatildeo da Atenas primeva (109b-112b)1 Origem miacutetica dos Atenienses (109b-d)

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2 Populaccedilatildeo (109d-110d)3 Territoacuterio (110d-112e)31 Regiatildeo da Aacutetica (110e-111e)32 Cidade de Atenas (111e-112e)

C Descriccedilatildeo da Atlacircntida (113a-121c)1 Advertecircncia sobre as condiccedilotildees de transmissatildeo da narrativa (113a-b)2 Origem miacutetica dos Atlantes (113c-114d)3 Territoacuterio (114d-119b)31 Recursos naturais da ilha (114d-115b)32 A metroacutepole (115b-117e)33 Recursos forjados pelos habitantes (117e-119b)4 Organizaccedilatildeo poliacutetica (119b-121c)

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Soacutecrates Um dois trecircs mas onde estaacute meu caro Timeu o quarto dos nossos convidados1 de ontem nossos anfitriotildees de hoje

Timeu Alguma doenccedila o atingiu oacute Soacutecrates pois se dependesse de si proacuteprio natildeo faltaria a este encontro

Soacutecrates Entatildeo a tarefa de preencher o lugar do que estaacute ausente cabe-te a ti e a estes aqui natildeo eacute verdade

Timeu Sem duacutevida e dentro dos possiacuteveis natildeo falharemos na nossa tarefa De facto natildeo seria justo se depois de nos teres recebido como eacute adequado fazecirc-lo com os hoacutespedes noacutes ndash os que restamos ndash natildeo te retribuiacutessemos de bom grado o festim

Soacutecrates Entatildeo e vocecircs ainda se lembram de qual era o teor e o assunto que vos propus para a nossa conversa

1 Natildeo eacute possiacutevel sequer supor quem seja esta personagem anoacutenima Quanto aos restantes vide Introduccedilatildeo pp 20-23

Platatildeo

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Timeu Lembramo-nos de alguns temas e os que nos tiverem escapado tu estaraacutes caacute para no-los relembrar ou melhor ainda se natildeo achares inconveniente passa-os em revista de forma breve e desde o princiacutepio de modo a que fiquem mais clarificados entre noacutes

Soacutecrates Assim seja O essencial das minhas palavras de ontem tinha que ver com o tipo de Estado2 que me parece ser o melhor e a partir de que tipo de homens havia de ser composto

Timeu E de facto Soacutecrates o que nos disseste estaacute perfeitamente de acordo com o que todos noacutes pensamos

Soacutecrates E natildeo comeccedilaacutemos por dividir a classe dos que trabalham a terra em si e por separar este e os outros ofiacutecios de artesatildeos da classe daqueles que defendem a cidade3

Timeu Sim

Soacutecrates E quando atribuiacutemos de acordo com a sua natureza especiacutefica uma uacutenica profissatildeo e ocupaccedilatildeo

2 politeia Embora ldquoEstadordquo seja um conceito medieval eacute o uacutenico termo portuguecircs que engloba as instituiccedilotildees poliacuteticas e a forma de governo eacute o que estaacute implicado em politeia Trata-se evidentemente do assunto principal da Repuacuteblica (Politeia) cujo resumo parcial (sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo pp 16-17 62-63) os participantes traratildeo agrave memoacuteria nesta secccedilatildeo inicial por esse motivo remeteremos em nota para uma das passagens daquele diaacutelogo aludidas ao longo dos proacuteximos paraacutegrafos

3 Cf Repuacuteblica 374a-d

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a cada cidadatildeo que lhe fosse adequada4 dissemos que aqueles que tivessem de lutar em favor de todos deviam ser exclusivamente guardiotildees da cidade em relaccedilatildeo a algueacutem de fora ou de dentro que cometesse algum crime Deviam ainda aplicar a justiccedila com moderaccedilatildeo sobre aqueles que satildeo regidos por eles e que por natureza satildeo seus amigos e de tratar com aspereza os inimigos a defrontar no campo de batalha5

Timeu Sem qualquer duacutevida

Soacutecrates Com efeito diziacuteamos segundo creio que a natureza da alma dos guardiotildees devia ser eneacutergica e ao mesmo tempo particularmente inclinada para a sabedoria de modo a que conseguissem ser em igual medida moderados para uns e aacutesperos para os outros6

Timeu Sim

Soacutecrates E quanto agrave formaccedilatildeo Natildeo haviam de ter formaccedilatildeo no acircmbito da ginaacutestica e da muacutesica e de todas as mateacuterias adequadas para eles7

Timeu Com certeza

Soacutecrates Aleacutem disso foi dito que os homens assim formados natildeo deviam nunca considerar sua pertenccedila

4 Cf Repuacuteblica 369e-370c 423d5 Cf Repuacuteblica 375c 414b 415d-e6 Cf Repuacuteblica 374e-376c7 Cf Repuacuteblica 376e-sqq 403c-sqq 410c-sqq

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nem ouro nem prata nem qualquer outro bem antes como guardas deveriam receber daqueles que protegem um pagamento pela sua guarniccedilatildeo para ser gasto numa vida de partilha e convivecircncia entre si em permanente exerciacutecio da excelecircncia e dispensados do desempenho de outras funccedilotildees8

Timeu Tambeacutem isso foi dito desse modo

Soacutecrates E no que respeita agraves mulheres tambeacutem mencionaacutemos que a natureza delas devia ser concordante com a dos homens e com a deles harmonizado e lhes deviam ser atribuiacutedas as mesmas funccedilotildees que a eles na guerra e nos restantes assuntos do dia-a-dia9

Timeu Tambeacutem isso se disse desse modo

Soacutecrates E no que respeita agrave procriaccedilatildeo Seraacute que o caraacutecter inusitado dessas consideraccedilotildees faz com que seja recordado facilmente porque estabelecemos que todos os casamentos e os filhos seriam comuns Deste modo se conseguia que ningueacutem reconhecesse como seus filhos o engendrado por si antes que todos considerariam todos como sendo da mesma famiacutelia tendo por irmatildes e irmatildeos aqueles que fossem de idade aproximada por pais ou avoacutes dos pais os mais velhos e por filhos gerados pelos filhos os mais novos10

8 Cf Repuacuteblica 416d-417b 464b-c9 Cf Repuacuteblica 456a-sqq10 Cf Repuacuteblica 460c-461e

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Timeu Sim tambeacutem isto eacute faacutecil de relembrar como dizes

Soacutecrates E para que as crianccedilas na medida do possiacutevel fossem agrave partida de natureza excelente lembraacutemos o que tiacutenhamos dito sobre os governantes e as governantes que deviam celebrar contratos de casamento em segredo por meio de uma espeacutecie de sorteio para que os piores e os melhores se unissem separada e respectivamente com as suas semelhantes de modo a que natildeo se criasse entre eles qualquer inimizade por causa disso uma vez convencidos de que o acaso era o motivo da sua uniatildeo

Timeu Lembraacutemos

Soacutecrates E tambeacutem que tiacutenhamos dito que deveriam ser criados os filhos dos naturalmente bons enquanto que os dos piores deveriam ser dispersos pelo resto da cidade11 Mantidos todos sob observaccedilatildeo durante o seu crescimento deviam ser trazidos sempre de volta aqueles que se mostrassem dignos de tal e ser remetidos os inaptos para o local de onde aqueles tinham vindo

Timeu Assim foi

Soacutecrates Seraacute que jaacute passaacutemos em revista exactamente o que ontem dissemos na medida do que

11 eis tecircn allecircn polin Porque precedido de artigo o pronome allos deve traduzir-se por ldquoo restordquo por isso seria descabida a versatildeo ldquopara outra cidaderdquo

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se pode recuperar dos assuntos principais meu caro Timeu ou querem regressar ainda a algum dos assuntos de que falaacutemos e que eu tenha deixado para traacutes

Timeu De modo algum pois isto foi exactamente o que dissemos oacute Soacutecrates

Soacutecrates Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos De facto com prazer ouviria de algueacutem o relato sobre as disputas que uma cidade trava as que ela manteacutem contra outras cidades a forma correcta como chega agrave guerra e como no seu decurso se apresenta de acordo com a sua educaccedilatildeo e formaccedilatildeo natildeo soacute nas praacuteticas de combate como tambeacutem na negociaccedilatildeo de tratados com as outras cidades Reconheccedilo Criacutetias e Hermoacutecrates que eu proacuteprio natildeo serei capaz de elogiar os homens e a cidade convenientemente E esta minha posiccedilatildeo nada tem de surpreendente pelo contraacuterio mantenho a mesma opiniatildeo em relaccedilatildeo aos poetas antigos e contemporacircneos Natildeo eacute que eu desconsidere a estirpe dos poetas mas eacute perfeitamente evidente que a raccedila dos imitadores imitaraacute com facilidade e de modo

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excelente aquilo em que foi educada poreacutem torna-se difiacutecil para qualquer um imitar bem o que natildeo pertence agrave sua educaccedilatildeo sendo ainda mais difiacutecil se a imitaccedilatildeo for feita por meio de palavras

Penso que a casta dos sofistas se destaca por ter muita experiecircncia em variados tipos de discurso e noutras coisas belas No entanto tendo em conta que ela vagueia de cidade em cidade e pelas casas sem dispor de uma morada proacutepria eu temo que natildeo atinja12 o que homens simultaneamente filoacutesofos e poliacuteticos fazem na guerra e no campo de batalha por meio de actos e palavras e como se relacionam entre si a falar e a agir Sobra portanto a classe de pessoas da vossa condiccedilatildeo que por natureza e formaccedilatildeo toma parte de ambas as categorias Eacute que Timeu que aqui temos cidadatildeo de Loacutecride a cidade na Itaacutelia com melhor organizaccedilatildeo poliacutetica13 que natildeo fica atraacutes de nenhum dos outros em riqueza e linhagem ocupou os mais altos cargos e recebeu as maiores das honras naquela cidade e na minha opiniatildeo alcanccedilou o ponto mais alto de toda a filosofia Suponho que todos noacutes sabemos que Criacutetias natildeo eacute um desconhecedor em qualquer das mateacuterias de que falamos Aleacutem disso visto que muitos o testemunham devemos acreditar que Hermoacutecrates em virtude da sua natureza e formaccedilatildeo eacute competente em todos estes assuntos Foi por isso que ontem quando vocecircs pediram para discursar sobre o Estado acedi de

12 astochon literalmente ldquoalgo que falha o alvordquo13 O sistema poliacutetico-administrativo de Loacutecride eacute elogiado

nas Leis (638b) e tambeacutem por Piacutendaro numa das Odes Oliacutempicas (1013)

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bom grado porque depois de ter reflectido percebi que ningueacutem seria mais adequado do que vocecircs para dar seguimento a esse discurso se assim quiserem Eacute que entre os nossos contemporacircneos vocecircs satildeo os uacutenicos que depois de preparar a cidade para uma guerra justificaacutevel podem proporcionar-lhe tudo quanto lhe eacute conveniente Uma vez que dissertei sobre o assunto que me tinha sido atribuiacutedo a vosso cargo deixo aquilo a que agora me refiro Tinham acordado que depois de terem reflectido em conjunto me seria retribuiacutedo por vocecircs mesmos o banquete de discursos14 Aqui estou entatildeo preparado para tal e mais do que ningueacutem pronto para recebecirc-los

Hermoacutecrates De facto Soacutecrates tal como disse Timeu15 nem faltaraacute boa-vontade nem haveraacute qualquer motivo a impedir que tal se cumpra De igual modo tambeacutem noacutes ontem logo depois de nos termos retirado daqui e chegado agrave casa de Criacutetias o nosso anfitriatildeo e ainda antes disso enquanto percorriacuteamos o caminho faziacuteamos observaccedilotildees sobre isto mesmo Este contou-nos uma estoacuteria de antiga tradiccedilatildeo Conta-a agora tambeacutem a Soacutecrates oacute Criacutetias para que ele considere se eacute adequada ou desadequada ao fim em vista

14 Embora xenia signifique simplesmente ldquopresentes de hospitalidaderdquo pode tambeacutem representar a cerimoacutenia comensal com que o anfitriatildeo recebia os convidados Neste caso parece que Soacutecrates usa a palavra com esse sentido repetindo a metaacutefora do banquete de palavras que usara neste (27b) e noutros diaacutelogos (Goacutergias 447a Repuacuteblica 352b 354a-b)

15 Cf supra 17a-b

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Criacutetias Faacute-lo-ei se igualmente parecer bem a Timeu o nosso terceiro conviva

Timeu Parece-me bem pois

Criacutetias Escuta entatildeo Soacutecrates uma estoacuteria deveras iacutempar e contudo absolutamente verdadeira como uma vez a contou Soacutelon o mais saacutebio de entre os Sete Saacutebios que era familiar e muito amigo do meu bisavocirc Dropidas tal como ele afirma com frequecircncia na sua obra poeacutetica16 Contou-a a Criacutetias nosso avocirc que jaacute velho nos narrava de memoacuteria que grandes e admiraacuteveis feitos17 dos tempos antigos desta cidade que tinham sido esquecidos graccedilas ao tempo e agrave destruiccedilatildeo da humanidade18 e a mais grandiosa de todas seria conveniente que ta deacutessemos a conhecer agora para te oferecer um agradecimento e ao mesmo tempo em jeito de hino para elogiar neste louvor a deusa de forma justa e autecircntica no dia da sua festa19

Soacutecrates Falas correctamente Mas que feito eacute esse de que natildeo temos notiacutecia e que foi realmente cumprido

16 No que sobrou da obra de Soacutelon natildeo haacute qualquer referecircncia a este nome Sobre esta figura vide Introduccedilatildeo pp 21-22

17 megala kai thaumasta eacute curiosamente uma expressatildeo formular proacutepria do discurso histoacuterico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 57-sqq esp n 21

18 Trata-se dos vaacuterios diluacutevios que quase extinguiram a espeacutecie humana (21d 22c-sqq) cf Criacutetias 109d 111a-sqq Leis 677A-sqq Poliacutetico 270c-d Entre eles conta-se evidentemente o que vai ser descrito de seguida

19 O Festival das Panateneias dedicado agrave deusa Atena durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica

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pela nossa cidade em tempos antigos o qual Criacutetias vai narrar de acordo com o testemunho de Soacutelon

Criacutetias Passo a contaacute-lo ainda que sob a forma de relato antigo que ouvi da boca de um homem entrado em anos Eacute que Criacutetias20 como dizia tinha jaacute perto de 90 anos enquanto que eu ainda natildeo teria bem dez Por acaso era o dia de Cureoacutetis o terceiro das Apatuacuterias21 Para as crianccedilas estava reservado o que tambeacutem nessa altura era costume por ocasiatildeo de cada uma dessas festas os nossos pais organizavam-nos concursos de recitaccedilatildeo Foram declamados muitos poemas de muitos poetas mas como naquele tempo os de Soacutelon constituiacuteam ainda novidade muitos de noacutes crianccedilas cantaacutemo-los Um dos elementos da fratria22 fosse por realmente pensar desse modo fosse para prestar como que uma homenagem a Criacutetias disse considerar que aleacutem de Soacutelon ser o homem mais saacutebio noutros assuntos no que respeitava agrave poesia considerava-o o mais independente de todos os poetas23 Entatildeo o anciatildeo ndash lembro-me bem ndash muito

20 Este Criacutetias natildeo eacute o participante no diaacutelogo mas sim o seu avocirc Sobre esta relaccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp 21-22

21 Festival que decorria em todas as cidades ioacutenicas agrave excepccedilatildeo de Eacutefeso e Coacutelofon segundo Heroacutedoto 1147 O terceiro e uacuteltimo dia (dito ldquode Cureoacutetisrdquo) estava reservado agrave apresentaccedilatildeo das crianccedilas que tinham nascido nos 12 meses precedentes

22 Uma fratria era um grupo de cidadatildeos unidos por uma mesma ascendecircncia Era considerada uma marca da tradiccedilatildeo ioacutenica e como tal frequente em muitas cidades desta origem entre as quais Atenas A cerimoacutenia que celebrava esta tradiccedilatildeo era justamente as Apatuacuterias que segundo Heroacutedoto (1147) consistiam no criteacuterio de identidade desta heranccedila cultural

23 Cremos que eleutheriocirctaton natildeo se refere ao conteuacutedo temaacutetico ou qualquer outro aspecto literaacuterio da obra de Soacutelon mas

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agradado disse a sorrir ldquooacute Aminandro24 era bom que ele natildeo tivesse usado a poesia como passatempo mas sim que se tivesse empenhado como os outros e dado corpo ao relato que para aqui trouxe do Egipto Se as revoltas entre outros males que encontrou quando caacute chegou25 natildeo o tivessem obrigado a descurar a poesia nem Hesiacuteodo nem Homero nem qualquer outro poeta se teria tornado mais ceacutelebre do que elerdquo ldquoMas que relato eacute esse Criacutetiasrdquo ndash perguntou o outro ldquondash O relato era sobre o feito mais grandioso e com toda a justiccedila mais notaacutevel de todos quantos a nossa cidade praticou mas que natildeo perdurou ateacute agora por causa do tempo e da morte daqueles que nele participaramrdquo ndash respondeu ele ldquoConta desde o princiacutepio o que relatou e como o relatou Soacutelon e da boca de quem o ouviu como sendo verdadeirordquo ndash pediu o outro

ldquoHaacute no Egipto ndash comeccedilou Criacutetias ndash no extremo inferior do Delta em redor da zona onde se divide a corrente do Nilo uma regiatildeo chamada Saiticos26 e da maior cidade dessa regiatildeo Sais27 ndash precisamente de onde era natural o rei Amaacutesis28 ndash foi fundadora uma deusa

sim ao proacuteprio homem ndash de facto a palavra tem uma conotaccedilatildeo principalmente socioloacutegica e poliacutetica Eacute que ao contraacuterio da maioria dos poetas do seu tempo Soacutelon natildeo compunha por indicaccedilatildeo de um patrono

24 Personagem totalmente desconhecida25 Referecircncia provaacutevel agraves revoltas que nos finais do seacuteculo VI

aC afrontaram Atenas antes de Soacutelon ter tomado o poder26 Sobre esta regiatildeo vide Heroacutedoto 2152 165 17227 Sobre esta cidade vide Heroacutedoto 228 59 62 130-132

163 169-171 31628 Heroacutedoto refere que Soacutelon depois de ter composto as leis

para os Atenienses se ausentou durante dez anos e esteve em casa de

Platatildeo

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cujo nome em Egiacutepcio eacute Neith e em Grego segundo dizem os que laacute vivem Atena29 Eles nutrem profunda simpatia pelos Atenienses e dizem que de certo modo com estes tecircm afinidades

Dizia Soacutelon que enquanto por ali andou era muitiacutessimo respeitado por eles e que a certa altura ao questionar os sacerdotes30 mais versados sobre acontecimentos antigos descobriu que nem ele nem nenhum outro grego sabia por assim dizer quase nada sobre aquele assunto Como ele pretendia induzir os anciatildeos a conversarem sobre acontecimentos antigos pocircs-se a contar as tradiccedilotildees ancestrais que haacute entre noacutes Falou de Foroneu que se diz ter sido o primeiro homem31 e de Niacuteobe32 de como Deucaliatildeo e Pirra sobreviveram ao diluacutevio33 e discorreu sobre a genealogia dos que lhes sucederam e tentou calcular haacute quantos anos tinha acontecido aquilo que contara trazendo agrave memoacuteria as Amaacutesis (cf 129-30) Ainda que seja quase certa a estadia de Soacutelon no Egipto eacute cronologicamente impossiacutevel que tenha acontecido no tempo de Amaacutesis cf Introduccedilatildeo pp 57-58

29 Tambeacutem Heroacutedoto estabelece esta relaccedilatildeo entre Atena e Neith e chega a referir um grande festival religioso que os egiacutepcios organizavam em honra da deusa (cf 259)

30 Plutarco na Vida de Soacutelon (261) tambeacutem refere este episoacutedio e adianta os nomes dos sacerdotes Socircnquis de Sais e Pseacutenopis de Helioacutepolis

31 As uacutenicas referecircncias a Foroneu como primeiro homem satildeo bastante posteriores (Clemente de Alexandria Stromata 1102 Pausacircnias 2155) Por isso natildeo eacute possiacutevel perceber a que tradiccedilatildeo Platatildeo se refere

32 Filha de Foroneu33 Deucaliatildeo filho de Prometeu e a esposa Pirra filha de

Epimeteu correspondem na mitologia grega ao arqueacutetipo biacuteblico de Noeacute avisados pelos deuses de um diluacutevio contruiacuteram uma arca para sobreviver e posteriormente repovoar a Terra

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suas idades Foi entatildeo que um dos sacerdotes jaacute de muita idade lhe disse ldquoOacute Soacutelon Soacutelon34 voacutes Gregos sois todos umas crianccedilas natildeo haacute um grego que seja velhordquo Ouvindo tais palavras Soacutelon indagou ldquoO que queres dizer com issordquo ldquoQuanto agrave alma35 sois todos novos ndash disse ele Eacute que nela natildeo tendes nenhuma crenccedila antiga transmitida pela tradiccedilatildeo nem nenhum saber encanecido pelo tempo A causa exacta eacute a seguinte muitas foram as destruiccedilotildees que a humanidade sofreu e muitas mais haveraacute as maiores pelo fogo e pela aacutegua mas tambeacutem outras menores por outras causas incontaacuteveis Tomemos um exemplo como o de Faetonte filho de Heacutelios que um dia atrelou o carro do pai mas por natildeo ser capaz de seguir a rota do pai lanccedilou o fogo sobre a terra e ele proacuteprio morreu fulminado Isto eacute contado sob a forma de um mito36 pois a verdade eacute que os corpos que no ceacuteu giram agrave volta da terra sofrem uma variaccedilatildeo e de muito em muito tempo sobreveacutem a destruiccedilatildeo na terra por causa do excesso de fogo Nessa altura aqueles que vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior nuacutemero do que os que vivem junto de rios ou do mar Quanto a noacutes eacute o Nilo nosso salvador tambeacutem em outras ocasiotildees que nos livra de tais apuros com as suas cheias Por outro lado sempre que os deuses provocam um diluacutevio para purificar a

34 Note-se que a repeticcedilatildeo da palavra ldquoSoacutelonrdquo eacute propositada35 psychecirc Neste caso ldquoalmardquo natildeo tem um sentido cosmoloacutegico

nem psicoloacutegico mas sim cultural36 mythou men schecircma echon Segundo a concepccedilatildeo do sacerdote

ldquomitordquo tem o sentido mais tradicional estoacuteria falsa Tornar-se-aacute evidente que a de Timeu eacute diametralmente oposta e bastante mais elaborada

Platatildeo

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terra com aacutegua satildeo os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas37 enquanto que os que entre voacutes vivem nas cidades satildeo arrastados para o mar pelos rios Mas aqui nesta terra nem num caso nem no outro as aacuteguas correm pelos nossos campos mas pelo contraacuterio irrompem naturalmente do fundo da terra Daiacute que seja este o motivo pelo qual se diz que as tradiccedilotildees mais antigas se conservam nesta regiatildeo Em boa verdade em todos os locais onde nem o frio geacutelido nem o calor ardente perturbam aiacute estaacute sempre em maior ou menor nuacutemero a raccedila humana Assim desde tempos remotos que de tudo quanto se passa na vossa terra aqui ou em qualquer outro local de que noacutes tomemos conhecimento pelo que ouvimos dizer se porventura se tratar de qualquer coisa de belo grandioso ou de qualquer outra natureza isso fica gravado nos nossos templos e manteacutem-se conservado Por outro lado acontece que em relaccedilatildeo ao que se passa entre voacutes e entre outros mal acaba de se ordenar o sistema de escrita e tudo o resto que faz falta a uma cidade recai novamente sobre voacutes durante o habitual nuacutemero de anos uma torrente vinda do ceacuteu semelhante a uma doenccedila e apenas deixa entre voacutes os analfabetos e os que satildeo estranhos agraves Musas de tal forma que nasceis de novo do princiacutepio tal como crianccedilas sem saber nada do que aconteceu em tempos remotos quer aqui quer entre voacutes

37 Como Criacutetias faraacute questatildeo de referir no seu discurso (Criacutetias 109d) soacute as populaccedilotildees que vivem nas montanhas escapam aos diluacutevios O facto de estas pessoas desconhecerem a escrita justifica a inexistecircncia de registos posteriores a essas calamidades

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Em todo o caso oacute Soacutelon as genealogias sobre as figuras de que acabas de nos falar diferem em pouco dos contos para crianccedilas pois eles recuperam apenas um uacutenico diluacutevio na terra ao passo que houve muitos antes desse Mas aleacutem disso voacutes natildeo sabeis que foi na vossa regiatildeo que apareceu a mais bela e grandiosa casta de homens da qual descendes tu e toda a cidade que eacute agora vossa por ter restado desse tempo uma pequena semente Eacute que voacutes perdestes a memoacuteria pois morreram os sobreviventes sem terem legado o seu depoimento agrave escrita durante muitas geraccedilotildees E de facto oacute Soacutelon na eacutepoca anterior agrave maior destruiccedilatildeo causada pela aacutegua a cidade que agora eacute dos Atenienses era a mais brava na guerra e incomparavelmente a mais bem governada em todos os aspectos Dizem que deu origem aos mais belos feitos e agraves mais belas instituiccedilotildees poliacuteticas38 de entre todas as que debaixo do ceacuteu obtivemos notiacuteciardquo

Soacutelon disse ter ficado surpreendido pelo que tinha ouvido e absolutamente desejoso de pedir aos sacerdotes que discorressem com pormenor e exactidatildeo sobre tudo o que soubessem acerca dos seus concidadatildeos de outrora Entatildeo o sacerdote respondeu o seguinte ldquoEacute sem reserva alguma que to contarei oacute Soacutelon por consideraccedilatildeo a ti e agrave vossa cidade e acima de tudo por gratidatildeo agrave deusa a quem coube em sorte a vossa cidade e tambeacutem esta que ela criou e educou ndash primeiro a vossa mil anos antes da nossa depois de ter recebido de Geia e de Hefesto

38 politeia Note-se que a palavra estaacute no plural por isto e tambeacutem pelo que sugere o contexto natildeo diraacute respeito a todo o Estado mas apenas agraves instituiccedilotildees

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a semente de onde voacutes nascestes39 e depois esta aqui Segundo os nuacutemeros gravados nos escritos sagrados a nossa cidade foi organizada haacute oito mil anos Portanto vou falar-te brevemente sobre as leis dos cidadatildeos que viveram haacute nove mil anos e tambeacutem do mais nobre dos feitos que levaram a cabo Posteriormente discorreremos sobre os pormenores referentes a todas estas questotildees e em seguida com vagar pegaremos nos proacuteprios textos

Quanto agraves leis observa-as agrave luz das daqui pois encontraraacutes caacute muitos exemplos de leis que vigoravam naquele tempo entre voacutes em primeiro lugar a classe dos sacerdotes estaacute separada agrave parte das outras em seguida no que respeita aos artesatildeos a cada um cabe uma funccedilatildeo sem que se misturem umas com as outras (uma aos pastores outra aos caccediladores e outra aos agricultores) Jaacute a classe dos guerreiros conforme reparaste estaacute separada de todas as outras classes estando obrigados por lei a natildeo se dedicarem a nada mais aleacutem do que diz respeito agrave guerra40 aleacutem disso em relaccedilatildeo ao seu armamento fomos noacutes os primeiros na Aacutesia41 a equipaacute-los com escudos e lanccedilas Eacute que a deusa

39 Esta referecircncia miacutetica estaacute intimamente relacionada com o Festival das Panateneias durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica Segundo o mito quando Atena se dirigiu junto de Hefesto para lhe pedir que fabricasse as suas armas este tentou violaacute-la tendo Atena escapado o seacutemen caiu agrave terra ndash Geia ndash da qual nasceu Erictoacutenio um dos fundadores da cidade de Atenas As Panateneias celebravam precisamente o nascimento de Erictoacutenio

40 Sobre o sistema de castas que vigoraria no Egipto vide Heroacutedoto 2164-168 As semelhanccedilas com o arqueacutetipo ateniense proposto na Repuacuteblica e concretizado no discurso de Criacutetias satildeo evidentes

41 Segundo os relatos do Timeu e do Criacutetias a Aacutesia estendia-se

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o ensinou tal como a voacutes que fostes os primeiros a fazecirc-lo nesta regiatildeo Vecircs tambeacutem quatildeo diligente foi a nossa lei no que diz respeito agrave sabedoria42 e desde o princiacutepio estabeleceu harmoniosamente a ordem das coisas pois tudo descobriu a partir dos deuses em favor da acccedilatildeo humana incluindo a arte da divinaccedilatildeo e a medicina em benefiacutecio da sauacutede e adquiriu todos os outros saberes que derivam daqueles43 Toda esta ordem e sistematizaccedilatildeo partilhou a deusa convosco nesse tempo e fixou-vos uma paacutetria antes de o fazer a outros por aiacute ter identificado um equiliacutebrio de estaccedilotildees que haveria de dar origem aos homens mais inteligentes Visto que a deusa era amante simultaneamente da guerra e da sabedoria escolheu esse lugar e povoou-o antes de outros porque era propiacutecio para criar os homens que mais se lhe assemelhassem Viviacuteeis pois regidos por aquelas leis ainda melhores do que as nossas e aleacutem disso com uma boa organizaccedilatildeo poliacutetica e eacutereis melhores do que todos os homens em virtude como eacute de esperar de rebentos e disciacutepulos dos deuses

Muitos e grandes foram os feitos da vossa cidade que satildeo motivo de admiraccedilatildeo nos registos que deles aqui ficaram Mas entre todos eles destaca-se um em grandeza e beleza os nossos escritos referem como a vossa cidade um dia extinguiu uma potecircncia que marchava insolente em toda a Europa e na Aacutesia depois de ter partido do Oceano Atlacircntico Em tempos este

da margem direita do Rio Nilo para Este42 phronecircsis43 Sobre a praacutetica da medicina pelos Egiacutepcios vide Aristoacuteteles

Poliacutetica 1286a10-22 Diodoro Siacuteculo 1823

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mar podia ser atravessado pois havia uma ilha junto ao estreito a que voacutes chamais Colunas de Heacuteracles44 ndash como voacutes dizeis ilha essa que era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia juntas a partir da qual havia um acesso para os homens daquele tempo irem agraves outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o territoacuterio continental que se encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano De facto aquilo que estaacute aqueacutem do estreito de que falamos parece um porto com uma entrada apertada No lado de laacute eacute que estaacute o verdadeiro mar e eacute a terra que o rodeia por completo que deve ser chamada com absoluta exactidatildeo ldquocontinenterdquo45

Nesta ilha a Atlacircntida havia uma enorme confederaccedilatildeo de reis com uma autoridade admiraacutevel que dominava toda a ilha bem como vaacuterias outras ilhas e algumas partes do continente aleacutem desses dominavam ainda alguns locais aqueacutem da desembocadura desde a Liacutebia46 ao Egipto e na Europa ateacute agrave Tirreacutenia47 Esta potecircncia tentou toda unida escravizar com uma soacute ofensiva toda a vossa regiatildeo a nossa e tambeacutem todos os locais aqueacutem do estreito Foi nessa altura oacute Soacutelon que pela valentia e pela forccedila se revelou a todos os homens o poderio da vossa cidade pois sobrepocircs-se a todos em

44 O Estreito de Gibraltar45 Segundo esta descriccedilatildeo que recupera alguns elementos do

Feacutedon (108c-114c) a bacia mediterracircnica eacute apenas a parte central da superfiacutecie terrestre e natildeo a sua totalidade eacute circundada pelo Oceano onde se situa a Atlacircntida e eacute aleacutem deste que se situa o territoacuterio continental No fundo a zona do mediterracircneo equivale a um conjunto de ilhas desse verdadeiro mar

46 Todo territoacuterio entre o Egipto e a costa ocidental de Aacutefrica47 Parte ocidental da Peniacutensula Itaacutelica

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coragem e nas artes da guerra quando liderou o exeacutercito grego e depois quando foi deixada agrave sua proacutepria mercecirc por forccedila da desistecircncia dos outros povos e correu riscos extremos Mas veio a erigir o monumento da vitoacuteria ao dominar quem nos atacava impediu que escravizassem entre outros quem nunca tinha sido escravizado bem como todos os que habitavam aqueacutem das Colunas de Heacuteracles e libertou-os a todos sem qualquer reserva48 Posteriormente por causa de um sismo incomensuraacutevel e de um diluacutevio que sobreveio num soacute dia e numa noite terriacuteveis49 toda a vossa classe guerreira foi de uma soacute vez engolida pela terra e a ilha da Atlacircntida desapareceu da mesma maneira afundada no mar Eacute por isso que nesse local o oceano eacute intransitaacutevel e imperscrutaacutevel em virtude da lama que aiacute existe em grande quantidade e da pouca profundidade provocada pela ilha que submergiu50rdquo

Acabas de ouvir oacute Soacutecrates o essencial do relato de Criacutetias o anciatildeo segundo o que ele ouviu de Soacutelon Ontem enquanto tu falavas sobre o Estado e dos homens que referias eu fiquei atoacutenito ao recordar-me disto de que agora vos falo por me aperceber de que miraculosamente e por obra de um acaso sem que fosse tua intenccedilatildeo tinhas coligido muito do que Soacutelon dissera Ainda assim natildeo quis falar de improviso pois natildeo me

48 No Meneacutexeno (239a-sqq) eacute descrita em termos muito semelhantes a prestaccedilatildeo ateniense contra a invasatildeo dos Persas

49 Este diluacutevio eacute igualmente referido no Criacutetias (112a) e tambeacutem por outros autores (Aristoacuteteles Meteoroloacutegicos 28 368a33-b13 Pausacircnias 724)

50 Semelhante testemunho daacute Aristoacuteteles nos Meteoroloacutegicos (21 354a11-31)

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lembrava o suficiente em virtude do tempo decorrido Portanto decidi que seria preciso que eu proacuteprio recuperasse adequadamente tudo isto antes de vo-lo contar deste modo Por isso concordei prontamente com as tuas determinaccedilotildees de ontem acreditando que em todos os casos como este o encargo mais importante eacute propor um discurso que seja adequado aos objectivos e possa ser suficientemente vantajoso para noacutes Assim tal como Hermoacutecrates disse mal ontem saiacute daqui repeti-lhes aquilo de que me lembrava e depois de me ter ido embora reflecti durante a noite e recuperei quase tudo Em boa verdade o que se aprende na infacircncia segundo se diz fica admiravelmente retido na memoacuteria Com efeito o que ouvi ontem natildeo sei se eu o conseguirei trazer de novo agrave memoacuteria por completo mas em relaccedilatildeo ao que apreendi haacute jaacute muito tempo ficaria absolutamente admirado se me escapasse alguma coisa De facto era com tanto prazer e entusiasmo infantil que as escutava aleacutem de o anciatildeo mas contar de bom grado (enquanto lhe fazia perguntas repetidamente) que tal como aquele tipo de escrita em pintura encaacuteustica51 que subsiste se tornaram para mim indeleacuteveis Assim logo ao amanhecer contei-lhes isto de modo a que me acompanhassem no relato E agora pois foi por causa disso que referi tudo isto estou preparado oacute Soacutecrates a relataacute-lo natildeo soacute no que se refere aos seus aspectos principais mas tambeacutem ao pormenor tal como o ouvi Quanto aos cidadatildeos e agrave

51 Meacutetodo de pintura que consistia em aplicar cera aquecida numa base metaacutelica pelo que garantia grande durabilidade Pliacutenio na sua Histoacuteria Natural (35149) daacute uma descriccedilatildeo deste procedimento

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cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade52 como se aquela cidade fosse esta aqui e suponhamos que aqueles cidadatildeos que tu tinhas em mente satildeo os nossos antepassados ndash os reais aqueles de que falava o sacerdote Estaratildeo em absoluta harmonia e noacutes natildeo estaremos fora de tom se dissermos que eles satildeo os que existiram naquele tempo Assim dentro dos possiacuteveis tentaremos todos em conjunto ocupar-nos da tarefa que nos entregaste Portanto oacute Soacutecrates eacute preciso ter em atenccedilatildeo se este discurso estaacute de acordo com o nosso propoacutesito ou se devemos procurar um outro em substituiccedilatildeo dele

Soacutecrates E que outro discurso oacute Criacutetias poderiacuteamos noacutes preferir melhor que este que seja ainda mais adequado ao festival da deusa que celebramos pois estaacute-lhe intimamente ligado e aleacutem disso eacute muito relevante o facto de natildeo se tratar de uma narrativa forjada mas sim de um discurso real Na verdade como e onde encontrariacuteamos outros caso deixaacutessemos este de lado Natildeo eacute possiacutevel Agora boa sorte pois eacute a voacutes que compete falar Quanto a mim em troca dos discursos de ontem mantenho-me em silecircncio e retribuo o papel de ouvinte

Criacutetias Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito

52 epi talecircthes Sobre este sentido de ldquorealidaderdquo vide Introduccedilatildeo pp 62-63

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pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo53 deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada Entatildeo de acordo com as palavras e a lei de Soacutelon depois de os trazer agrave nossa presenccedila como se estivessem perante juiacutezes faacute-los-ei cidadatildeos desta cidade como se fossem os Atenienses de outrora cuja existecircncia permanece esquecida e foi agora desvelada pelo testemunho dos escritos sagrados Daqui em diante farei o meu discurso como se na verdade se tratasse de cidadatildeos e de Atenienses

Soacutecrates Perfeito e brilhante me parece o banquete de discursos que vou receber em troca do que ofereci Eacute entatildeo a tua vez de discursar segundo me parece oacute Timeu depois de invocares os deuses de acordo com o costume54

Timeu Eacute bem certo oacute Soacutecrates que todos quantos partilhem o miacutenimo de bom-senso55 sempre que iniciam algum empreendimento pequeno ou grande invocam sempre de algum modo um deus Quanto a noacutes que nos preparamos para produzir discursos sobre o

53 kosmos54 Eacute comum em Platatildeo a invocaccedilatildeo de uma divindade antes de

iniciar um discurso (Filebo 25b Leis 887c)55 socircphrosynecirc

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universo ndash sobre como deveio ou se de facto nem o toca o devir56 ndash caso natildeo tenhamos perdido por completo o discernimento eacute inevitaacutevel que invoquemos deuses e deusas bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto57 e esteja em concordacircncia com o nosso E no que respeita aos deuses seja esta a nossa invocaccedilatildeo No que nos toca conveacutem que os invoquemos para que vocecircs aprendam com facilidade e que eu exponha da melhor forma possiacutevel o que penso sobre o assunto que tenho perante mim

Na minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem58 sem nunca ser59 Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo60

56 Traduzimos gignomai por ldquodevirrdquo sempre que a oposiccedilatildeo ontoloacutegico ser-devir estiver patente Nos outros casos optaacutemos por ldquogerarrdquo um termo complementar que manteacutem a noccedilatildeo de pertenccedila ao devir (Santos 2003 p 16 n 13) ao mesmo tempo que garante a proximidade semacircntica com o original principalmente no que respeita agrave acccedilatildeo demiuacutergica a qual no fundo consiste num processo de geraccedilatildeo

57 nous Trata-se da faculdade de inteligir as Ideias eacute partilhada por deuses daimones homens e inclusivamente pela alma do mundo Esta mesma designaccedilatildeo eacute aplicada agrave sede humana dessa faculdade a parte racional e imortal da alma razatildeo pela qual a traduziremos do mesmo modo

58 ti to gignomenon A ediccedilatildeo de Burnet regista tambeacutem aei (ldquosemprerdquo) implicando a traduccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute sempre em devirrdquo Apesar de compatiacutevel com os conteuacutedos do texto trata-se de um acrescento posterior como claramente demonstrou Whittaker (1969 1973) Seguimos pois neste ponto a omissatildeo de aei

59 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ldquoo que eacuterdquo (to on) e ldquoo que deveacutemrdquo (to gignomenon) isto eacute entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao mundo sensiacutevel Eacute agrave luz deste axioma que se vai desenvolver todo o discurso de Timeu

60 noecircsei meta logou perilecircpton

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pois eacute imutaacutevel61 Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos62 e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca Ora tudo aquilo que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa pois eacute impossiacutevel que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa63 Deste modo o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel e que utiliza como arqueacutetipo64 quando daacute a forma e as propriedades ao que cria Eacute inevitaacutevel que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo Se pelo contraacuterio pusesse os olhos no que deveacutem e tomasse como arqueacutetipo algo deveniente a sua obra natildeo seria bela

Quanto ao conjunto do ceacuteu ou mundo ndash ou ainda se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado chamemos-lhe esse ndash temos que apurar primeiro no que lhe diz respeito aquilo que subjaz a todas as questotildees e deve ser apurado logo no princiacutepio

61 aei kata tauta on literalmente ldquoaquilo que eacute sempre de acordo com o mesmordquo Trata-se das Ideias que satildeo imutaacuteveis porquanto isentas das oscilaccedilotildees do devir (vide Feacutedon 78d)

62 metrsquoaisthecircseocircs alogou doxaston literalmente ldquoopinaacutevel com o auxiacutelio da percepccedilatildeo sensiacutevel privada de razatildeordquo Ao contraacuterio ldquodo que eacuterdquo ldquoo que deveacutemrdquo natildeo eacute fonte de saber estaacutevel pois aleacutem de se encontrar em constante mutaccedilatildeo soacute pode ser apreendido pela falibilidade dos sentidos e natildeo por meio da razatildeo

63 Tal como eacute referido em muitos outros diaacutelogos de Platatildeo (Leis 891e Feacutedon 98c 99b Filebo 27b) tambeacutem no Timeu natildeo soacute neste ponto como tambeacutem noutras ocasiotildees (29d 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e) o que pertence agrave dimensatildeo do devir depende de uma causa

64 paradeigma No Timeu as Ideias satildeo tomadas na sua totalidade sob o conceito de ldquoarqueacutetipordquo este representa pois a soma de todas elas que serve de modelo inteligiacutevel de racionalidade para a criaccedilatildeo

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se sempre foi sem ter tido origem no devir ou se deveio originado a partir de algum princiacutepio Deveio pois eacute visiacutevel e tangiacutevel e tem corpo assumindo todas as propriedades do que eacute sensiacutevel65 e o que eacute sensiacutevel que pode ser compreendido por uma opiniatildeo fundamentada na percepccedilatildeo dos sentidos deveacutem e eacute deveniente como jaacute foi dito66 Dissemos tambeacutem que o que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa Poreacutem descobrir o criador e pai do mundo eacute uma tarefa difiacutecil e a descobri-lo eacute impossiacutevel falar sobre ele a toda a gente67 Mas ainda quanto ao mundo temos que apurar o seguinte aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arqueacutetipos daquele que eacute imutaacutevel e inalteraacutevel68 ou do que deveacutem Ora se o mundo eacute belo e o demiurgo eacute bom eacute evidente que pocircs os olhos que eacute eterno se fosse ao contraacuterio ndash o que nem eacute correcto supor ndash teria posto os olhos no que deveacutem Portanto eacute evidente para todos que pocircs os olhos no que eacute eterno pois o mundo eacute a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo eacute a mais perfeita das causas Deste modo

65 aisthecircton66 Cf supra 27d-28a67 Este passo em que Timeu chama ao demiurgo ldquopai e criador

do mundordquo foi extensivamente citada e discutida ao longo dos seacuteculos por autores de todas as orientaccedilotildees filosoacuteficas e religiosas especificamente por teoacutelogos judeus e cristatildeos que o utilizaram para fundamentar a crenccedila monoteiacutesta Sobre este assunto vide Nock (1962 pp 79-83)

68 ocircsautocircs Isto eacute que nunca se torna ldquooutrordquo Aleacutem de isento de corrupccedilatildeo por acccedilatildeo do devir e por isso imutaacutevel (cf supra n 70) o arqueacutetipo eacute sempre idecircntico a si mesmo nunca assumindo atributos de outra coisa Trata-se no fundo do princiacutepio de identidade que define as Ideias (vide Feacutedon 78d)

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o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pocircs os olhos no que eacute imutaacutevel e apreensiacutevel pela razatildeo e pelo pensamento69

Assim sendo de acordo com estes pressupostos eacute absolutamente inevitaacutevel que este mundo seja uma imagem de algo70 Mas em tudo o mais importante eacute comeccedilar pelo princiacutepio de acordo com a natureza Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere71 Por isso os discursos claros estaacuteveis e invariaacuteveis explicam com a colaboraccedilatildeo do intelecto o que eacute estaacutevel e fixo ndash e tanto quanto conveacutem aos discursos serem irrefutaacuteveis e insuperaacuteveis em nada devem afrouxar esta relaccedilatildeo Em relaccedilatildeo aos que se reportam ao que eacute copiado do arqueacutetipo por se tratar de uma coacutepia estabelecem com essa coacutepia uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia conforme o ser72 estaacute para o devir73 assim a verdade estaacute para a crenccedila74 Portanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum

69 pros to logocirc kai phronecircsei perilecircpton70 ton kosmon eikona tinos71 Sobre as implicaccedilotildees desta proposiccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp

33-3472 ousia73 genesis74 Conclusatildeo da alegoria episteacutemico-ontoloacutegica da linha dividida

formulada na Repuacuteblica (509d-511e)

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30a

outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil75 e natildeo procurar nada aleacutem disso

Soacutecrates Excelente oacute Timeu Devemos sem duacutevida alguma aceitaacute-lo tal como propotildees Acolhemos o teu preluacutedio com admiraccedilatildeo mas agora termina a aacuteria sem interrupccedilatildeo76

Timeu Digamos pois por que motivo aquele que constituiu o devir e o mundo os constituiu Ele era bom e no que eacute bom jamais nasce inveja de qualquer espeacutecie77 Porque estava livre de inveja quis que tudo fosse o mais semelhante a si possiacutevel Quem aceitar de homens sensatos que esta eacute a origem mais vaacutelida do devir e do mundo estaraacute a aceitar o raciociacutenio mais acertado Na verdade o deus quis que todas as coisas fossem boas e que no que estivesse agrave medida do seu poder78 natildeo existisse nada imperfeito Deste modo pegando em tudo quanto havia de visiacutevel que natildeo estava em repouso mas se movia irregular e desordenadamente da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que

75 eikota mython Sobre as implicaccedilotildees desta expressatildeo vide Introduccedilatildeo pp 48-53

76 A mesma metaacutefora eacute utilizada na Repuacuteblica (531d)77 Para Platatildeo um deus eacute sempre bom e tudo o que eacute bom estaacute

livre de inveja (cf Fedro 247a Repuacuteblica 379b)78 Esta noccedilatildeo de limitaccedilatildeo relativa associada ao demiurgo eacute

muitiacutessimo frequente ao longo do texto (32b 37d 38c 42e 53b 65c 71d 89d)

Platatildeo

98 9998 99

b

c

d

31a

b

esta eacute sem duacutevida melhor do que aquela Com efeito a ele sendo supremo foi e eacute de justiccedila que outra coisa natildeo faccedila senatildeo o mais belo

Reflectindo descobriu que a partir do que eacute visiacutevel por natureza de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto e que seria impossiacutevel que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma79 Por meio deste raciociacutenio80 fabricou o mundo estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza Assim de acordo com um discurso verosiacutemil eacute necessaacuterio dizer que este mundo que eacute na verdade um ser dotado de alma e de intelecto81 foi gerado pela providecircncia82 do deus

Dito isto devemos agora ocupar-nos do que se deu a seguir agrave semelhanccedila de qual dos seres constituiu o mundo aquele que o constituiu Assumamos que natildeo foi agrave semelhanccedila de qualquer um daqueles seres que por natureza formam uma espeacutecie particular ndash pois nada do que se assemelha ao que eacute incompleto pode tornar-se belo Estabeleccedilamos em vez disso que o universo se

79 Reafirmaccedilatildeo do postulado jaacute referido na Repuacuteblica (478a-b) e no Sofista (249a) segundo o qual todo o acto intelectivo soacute pode ter lugar na alma

80 logismos81 zocircon empsychon ennoun te82 pronoia Note-se que nesta e nas restantes ocorrecircncias

(44c7 45b1) ldquoprovidecircnciardquo implica apenas presciecircncia enquanto capacidade de antecipar necessidades futuras natildeo tendo pois o sentido religioso de ldquogoverno do mundordquo tanto que o demiurgo se retira apoacutes a criaccedilatildeo

98 99

Timeu

98 99

b

c

d

31a

b

assemelha o mais possiacutevel agravequele ser de que os outros satildeo parte quer individualmente quer como classe De facto esse ser compreende em si mesmo e encerra todos os seres inteligiacuteveis83 tal como este mundo nos compreende a noacutes e a todas as outras criaturas visiacuteveis Assim por querer assemelhaacute-lo ao mais belo de entre os seres inteligiacuteveis ao mais perfeito de todos o deus constituiu um ser uacutenico que contivesse em si mesmo todos os seres que se lhe assemelhassem por natureza

Entatildeo seraacute correcto declarar que haacute um uacutenico ceacuteu ou seraacute mais correcto dizer que haacute vaacuterios ou ateacute infinitos Haacute um uacutenico jaacute que foi fabricado pelo demiurgo de acordo com o arqueacutetipo84 Eacute que aquele que abrange todos os seres inteligiacuteveis natildeo pode de modo algum vir em segundo lugar a seguir a outro Caso contraacuterio deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois do qual esses dois seriam uma parte e seria mais correcto dizer que o mundo natildeo se assemelharia a esses dois mas sim agravequele que os abrangia Portanto foi para que se assemelhasse ao ser absoluto na sua singularidade85

83 noecircta zocirca84 Nas secccedilotildees subsequentes seratildeo implicitamente refutadas

duas teses centrais do atomismo a pluralidade de mundos (eg DK 67A1 68A40) e a existecircncia do vazio (eg DK 67A6-7 DK 68A37) Ambos os problemas estatildeo interligados e a sua explicaccedilatildeo depende das mesmas razotildees visto que foi necessaacuteria a totalidade dos elementos na criaccedilatildeo eacute impossiacutevel que os mundos sejam inumeraacuteveis posto que natildeo sobrou qualquer mateacuteria de que fossem ou viessem a ser formados (31a-33b) de modo a que o mundo englobasse todos os seres foi-lhe dada a forma que engloba todas as formas (a esfeacuterica) natildeo restando pois nada mais para ocupar (33b-34a)

85 monocircsis

Platatildeo

100 101100 101

c

32a

b

c

d

que aquele que fez o mundo natildeo fez dois nem uma infinidade de mundos deste modo o ceacuteu foi gerado como unigeacutenito ndash assim eacute e assim continuaraacute a ser

Eacute forccediloso que aquilo que deveio seja corpoacutereo visiacutevel e tangiacutevel mas separado do fogo sem duacutevida que nada pode ser visiacutevel nem nada pode ser tangiacutevel sem qualquer coisa soacutelida e nada pode ser soacutelido sem terra Daiacute que o deus quando comeccedilou a constituir o corpo do mundo o tenha feito a partir de fogo e de terra Todavia natildeo eacute possiacutevel que somente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira pois eacute necessaacuterio gerar entre ambas um elo que as una O mais belo dos elos seraacute aquele que faccedila a melhor uniatildeo entre si mesmo e aquilo a que se liga o que eacute por natureza alcanccedilado da forma mais bela atraveacutes da proporccedilatildeo86 Sempre que de trecircs nuacutemeros sejam eles inteiros ou em potecircncia87 o do meio tenha um caraacutecter tal que o primeiro estaacute para ele como ele estaacute para o uacuteltimo e em sentido inverso o uacuteltimo estaacute para o do meio como o do meio estaacute para o primeiro o do meio torna-se primeiro e uacuteltimo e o uacuteltimo e o primeiro passam ambos a estar no meio sendo deste modo obrigatoacuterio que se ajustem entre si e tendo-se assim ajustado uns aos outros entre si seratildeo todos um soacute Ora se o corpo do mundo tivesse sido gerado como uma superfiacutecie plana sem nenhuma

86 analogia A formaccedilatildeo do mundo organizado a partir dos quatro elementos obedece inevitavelmente agrave proporccedilatildeo isto eacute agrave relaccedilatildeo matemaacutetica Como se tornaraacute evidente ateacute o proacuteprio demiurgo estaacute atido agraves imposiccedilotildees da proporccedilatildeo matemaacutetica

87 A distinccedilatildeo entre nuacutemeros inteiros e em potecircncia eacute tambeacutem referida no Teeteto (148a-b) e nas Leis (737c)

100 101

Timeu

100 101

c

32a

b

c

d

profundidade um soacute elemento intermeacutedio teria sido suficiente para o unir aos outros termos88 Poreacutem convinha que o mundo fosse de natureza soacutelida e para harmonizar o que eacute soacutelido natildeo basta um soacute elemento intermeacutedio mas sim sempre dois Foi por isso que tendo colocado a aacutegua e o ar entre o fogo e a terra e na medida do possiacutevel produzido entre eles a mesma proporccedilatildeo de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar estava para a aacutegua e o ar estivesse para a aacutegua como a aacutegua estava para a terra o deus uniu estes elementos e constituiu um ceacuteu visiacutevel e tangiacutevel Foi por causa disto e a partir destes elementos ndash elementos esses que satildeo em nuacutemero de quatro ndash que o corpo do mundo foi engendrado posto em concordacircncia atraveacutes de uma proporccedilatildeo e a partir destes elementos obteve a amizade89 de tal forma que tornando-se idecircntico a si mesmo eacute indissoluacutevel por outra entidade que natildeo aquela que o uniu

Assim a constituiccedilatildeo do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade Foi a partir da totalidade do fogo da aacutegua do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu natildeo deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma pois este era o seu desiacutegnio90 em primeiro lugar que fosse acima

88 Referecircncia ao problema da duplicaccedilatildeo do quadrado que estaria jaacute resolvido no tempo de Platatildeo (vide Meacutenon 81e-84b)

89 A noccedilatildeo de amizade (philia) que Timeu introduz neste ponto em que aborda a combinaccedilatildeo dos quatro elementos convida a uma relaccedilatildeo intertextual com a Philia de que fala Empeacutedocles como entidade mediadora desses mesmos elementos Sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo p 25

90 dianoeocirc

Platatildeo

102 103102 103

33a

b

c

d

34a

de tudo um ser-vivo completo e perfeito91 constituiacutedo a partir de partes perfeitas em seguida que fosse uacutenico posto que natildeo sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza e ainda que estivesse imune ao envelhecimento e agrave doenccedila pois ele92 tinha perfeita consciecircncia de que o calor o frio e outras forccedilas violentas cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele dissolvem-no e impondo-lhe doenccedilas e envelhecimento causam a sua destruiccedilatildeo Foi por este motivo e com base neste raciociacutenio que a partir da globalidade dos todos produziu um soacute todo perfeito imune ao envelhecimento e agrave doenccedila

Aleacutem disso deu-lhe a figura adequada e congeacutenere De facto a forma adequada ao ser-vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres-vivos seraacute aquela que compreenda em si mesma todas as formas93 Por isso para o arredondar como que por meio de um torno deu-lhe uma forma esfeacuterica cujo centro estaacute agrave mesma distacircncia de todos os pontos do extremo envolvente ndash e de todas as figuras eacute essa a mais perfeita e semelhante a si proacutepria ndash considerando que o semelhante eacute infinitamente mais belo do que o dissemelhante

Rematou o lado exterior de forma completamente lisa e arredondada por vaacuterias razotildees Eacute que este ser-vivo natildeo tinha necessidade de olhos pois fora dele natildeo restava

91 holon () zocircon teleon92 O demiurgo93 A possibilidade de a esfera englobar todas as formas

estereomeacutetricas seraacute mais tarde desenvolvida por Euclides (1313-17)

102 103

Timeu

102 103

33a

b

c

d

34a

nada para ver nem de ouvidos pois natildeo havia nada para ouvir natildeo havia ar agrave sua volta que fosse preciso respirar nem precisava de ter qualquer oacutergatildeo atraveacutes do qual absorvesse alimentos para si proacuteprio nem por outro lado que segregasse o que tinha anteriormente filtrado Na verdade nada entrava nele nem nada saiacutea dali pois natildeo havia mais nada Ele fora gerado de tal forma que o seu alimento seria garantido pela sua proacutepria consumpccedilatildeo94 de modo que tudo quanto sofre resulta de si mesmo e tudo quanto faz eacute em si mesmo Aquele que o compocircs achou que para ser mais forte seria melhor que fosse auto-suficiente95 do que tivesse necessidade de outros Quanto a matildeos natildeo sendo preciso que com elas pegasse em nada ou afastasse algo considerou que natildeo seria necessaacuterio aplicar-lhas nem peacutes nem de um modo geral nenhum apetrecho para andar Quanto ao movimento atribuiu-lhe aquele que eacute caracteriacutestico do corpo dos sete aquele que mais tem que ver com o intelecto e com o pensamento96 Foi por isso que ao pocirc-lo girar em torno de si mesmo e no mesmo local fez com que se movimentasse num ciacuterculo em rotaccedilatildeo tendo-o despojado de todos os outros seis movimentos e tornado imoacutevel em relaccedilatildeo a

94 phtisis95 autarkecircs Eacute inevitaacutevel ler neste passo um eco da autarkeia

de Demoacutecrito (eg DK 68B176) Poreacutem como oportunamente observa Taylor (1928 pp 105-106) conveacutem ter em conta que algo deveniente natildeo eacute absolutamente auto-suficiente porquanto deve a sua causa agraves Ideias o mundo secirc-lo-aacute na medida em que natildeo tem interacccedilotildees com outro deveniente

96 phronecircsis

Platatildeo

104 105104 105

b

c

35a

b

eles97 Como para esse percurso natildeo eram precisos peacutes engendrou-o sem pernas nem peacutes

Este foi de um modo global o desiacutegnio98 do deus que eacute eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia99 tendo assim raciocinado fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos Depois no centro pocircs uma alma que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora cobrindo-o com ela Constituiu um uacutenico ceacuteu solitaacuterio e redondo a girar em ciacuterculos com capacidade pela sua proacutepria virtude de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado

No que respeita agrave alma ainda que soacute agora vamos tratar de falar dela natildeo eacute posterior ao corpo O deus natildeo os estruturou desse modo como se ela fosse mais nova ndash ao constituiacute-los natildeo permitiu que o mais velho pudesse ser governado pelo mais novo Ao passo que noacutes somos muito afectados pela casualidade e consequentemente falamos tambeacutem ao acaso100 jaacute

97 Trata-se dos seis movimentos rectiliacuteneos ldquopara cimardquo ldquopara baixordquo ldquopara a frenterdquo ldquopara traacutesrdquo ldquopara a direitardquo e ldquopara a esquerdardquo Quanto ao seacutetimo a rotaccedilatildeo sobre si mesmo seraacute aquele mais afim agrave razatildeo (cf supra 40a Leis 897c-sqq) e por isso o apropriado para o corpo do mundo

98 logismos99 Isto eacute o corpo do mundo Apesar de utilizar em ambos os

casos o verbo eimi (ldquoserrdquo) parece-nos que a distinccedilatildeo entre ldquoserrdquo (enquanto eterno e atemporal) e ldquoexistirrdquo (enquanto corruptiacutevel) eacute evidente e deve ser marcada deste modo

100 Timeu recorda a imprecisatildeo da linguagem humana ndash um

104 105

Timeu

104 105

b

c

35a

b

o deus graccedilas agrave sua condiccedilatildeo e virtude constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele para o dominar e governar ndash sendo ele o governado ndash a partir dos seguintes recursos e do modo que se expotildee entre o ser101 indivisiacutevel que eacute imutaacutevel102 e o ser divisiacutevel que eacute gerado nos corpos misturou uma terceira forma103 de ser feita a partir daquelas duas E quanto agrave natureza do Mesmo e do Outro104 estabeleceu de igual modo uma outra natureza entre o indivisiacutevel e o divisiacutevel dos seus corpos Tomando as trecircs naturezas misturou-as todas numa soacute forma e pela forccedila harmonizou a natureza do Outro ndash que eacute difiacutecil de misturar ndash com o Mesmo Procedendo agrave mistura de acordo com o ser formou uma unidade a partir das trecircs e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo de Outro e de

tema a que voltaraacute mais tarde (46e) e que tambeacutem Criacutetias retomaraacute (107b-108a) Sobre esta questatildeo vide supra pp 55-59

101 ousia102 aei kata tauta103 eidos Embora seja esta a palavra (em concorrecircncia com

idea) que Platatildeo usa em muitos diaacutelogos para definir as Ideias no Timeu isso acontece apenas uma vez (51c-d) em todas as outras ocorrecircncias tem o sentido de ldquotipo espeacutecierdquo (42d2 48a7 48b6 48e6 49a4 51a7 51c4 etc)

104 Os conceitos ldquoMesmordquo (tauton) ldquoOutrordquo (to heteron) e neste contexto ldquoserrdquo (ousia) soacute se esclarecem pelo Sofista Neste diaacutelogo (254d-259b) eacute estabelecido que uma Ideia comporta encerra outros dois elementos constitutivos aleacutem do ser o Mesmo (a sua identidade) resulta de ela ser o que ldquoaquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo natildeo eacute o Outro (a sua alteridade) representa o outro lado desta implicaccedilatildeo pois uma Ideia difere de ldquotudo aquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo Sobre esta questatildeo vide Dixsaut (2003 pp 158-165) Mesquita (1995 pp 262-265)

Platatildeo

106 107106 107

c

36a

b

c

d

e

ser105 Entatildeo comeccedilou a dividir do seguinte modo em primeiro lugar retirou uma parte do todo em seguida retirou outra que era o dobro da primeira uma terceira que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira uma quarta que era o dobro da segunda uma quinta o triplo da terceira uma sexta oito vezes a primeira e uma seacutetima que corresponde a vinte e sete vezes a primeira Depois disto preencheu os intervalos106 duplos e triplos subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros um que transpotildee um dos extremos e eacute transposto pelo outro na mesma fracccedilatildeo e outro que transpotildee o extremo que lhe eacute numericamente idecircntico e tambeacutem ele eacute transposto Destas ligaccedilotildees foram gerados nos intervalos atraacutes referidos outros intervalos de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo Atraveacutes do intervalo de um e um oitavo preencheu todos os de um e um terccedilo e deixou uma parte de cada um deles tendo este intervalo sobrante sido definido pela relaccedilatildeo entre o nuacutemero duzentos e cinquenta e seis e o nuacutemero duzentos e quarenta e trecircs Foi deste modo que a mistura da qual retirou aquelas partes foi utilizada na sua plenitude Entatildeo cortou toda esta composiccedilatildeo em duas partes no sentido do comprimento e sobrepondo-as ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra

105 Ou seja a alma do mundo foi formada com os mesmos trecircs elementos que constituem as Ideias ser Mesmo e Outro Sobre as implicaccedilotildees desta equivalecircncia constitutiva vide Johansen (2004 pp 138-142)

106 diastecircma Aleacutem de espacial este termo tem tambeacutem uma aplicaccedilatildeo musical designando nesse caso os intervalos entre os sons (Filebo 17c-d Repuacuteblica 531a)

106 107

Timeu

106 107

c

36a

b

c

d

e

(semelhante a um X) dobrou-as em ciacuterculo juntando-as uma agrave outra pelo ponto oposto agravequele pelo qual tinham sido ligadas e impocircs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local destes dois ciacuterculos fez um exterior e outro interior Entatildeo determinou que o movimento exterior corresponderia agrave natureza do Mesmo e o interior agrave do Outro Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente e deu preeminecircncia agrave oacuterbita do Mesmo e do Semelhante pois a ela soacute deixou ficar indivisa Por outro lado a oacuterbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete ciacuterculos desiguais fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo de tal forma que havia trecircs tipos de intervalos Definiu que os ciacuterculos andariam em sentido contraacuterio uns aos outros trecircs dos quais com velocidade semelhante e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros trecircs mas movendo-se uniformemente

Logo que a constituiccedilatildeo da alma foi gerada de acordo com o intelecto107 de quem a constituiu este passou agrave fabricaccedilatildeo de tudo quanto dentro dela eacute corpoacutereo e ajustando o centro de um ao centro do outro uniu-os Deste modo entrelaccedilada em todas as direcccedilotildees desde o centro ateacute agrave extremidade do ceacuteu abarcando-o do exterior num ciacuterculo e ela girando em torno de si mesma a alma deu iniacutecio ao comeccedilo divino de uma vida inextinguiacutevel e racional108 para todo o sempre Assim foi

107 nous Neste caso trata-se obviamente do intelecto do demiurgo

108 emphron ldquoRacionalrdquo no sentido em que manteraacute ao

Platatildeo

108 109108 109

37a

b

c

d

e

gerado o corpo do ceacuteu que eacute visiacutevel e a alma invisiacutevel e que participa da razatildeo109 e da harmonia e eacute a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que satildeo eternamente Constituiacuteda pela mistura dessas trecircs partes da natureza do Mesmo do Outro e do ser dividida e unida segundo a proporccedilatildeo ela gira em torno de si proacutepria e sempre que contacta com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser natildeo pode ser dividido eacute movimentada na sua totalidade ela informa a que entidade isso eacute semelhante de que entidade eacute diferente e principalmente em relaccedilatildeo a que entidade e em que circunstacircncias acontece afectar o que deveacutem e o que eacute eternamente e por cada um destes eacute afectada110

Este discurso que eacute ele proacuteprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro sempre que eacute levado sem voz nem som para aquele que eacute movimentado por si proacuteprio converte-se num discurso sobre o sensiacutevel111 e o ciacuterculo do Outro que se move em linha recta dissemina-o por toda a alma e geram-se opiniotildees e crenccedilas firmes e verdadeiras112 Todavia sempre que se aplica ao racional e sempre que o ciacuterculo do Mesmo que se movimenta com destreza revela isto

longo dos tempos a conformidade ao arqueacutetipo (um modelo de racionalidade)

109 logismos110 Esta passagem marcada por uma sintaxe imbricada daacute conta

das funccedilotildees cognitivas da alma do mundo Sobre este assunto vide Brisson (1998 pp 340-352)

111 peri to aisthecircton112 doxai kai pisteis gignontai bebaioi kai alecirctheis

108 109

Timeu

108 109

37a

b

c

d

e

eacute forccediloso que daiacute resulte saber113 e intelecccedilatildeo114 No que respeita agravequilo em que se geram estes dois modos de conhecer se alguma vez algueacutem disser que eacute outra coisa que natildeo a alma esse algueacutem estaraacute a dizer tudo menos a verdade115

Ora quando o pai que o engendrou se deu conta de que tinha gerado uma representaccedilatildeo dos deuses eternos animada e dotada de movimento rejubilou por estar tatildeo satisfeito pensou como tornaacute-la ainda mais semelhante ao arqueacutetipo Como acontece que este eacute um ser eterno tentou na medida do possiacutevel tornar o mundo tambeacutem ele eterno Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna e natildeo era possiacutevel ajustaacute-la por completo ao ser gerado Entatildeo pensou em construir uma imagem moacutevel da eternidade116 e quando ordenou o ceacuteu construiu a partir da eternidade que permanece uma unidade uma imagem eterna que avanccedila de acordo com o nuacutemero eacute aquilo a que chamamos tempo117 De facto os dias as noites os meses e os anos natildeo existiam antes de o ceacuteu ter sido gerado pois ele preparou a geraccedilatildeo daqueles ao mesmo tempo que este era constituiacutedo Todos eles satildeo partes do tempo

113 epistecircmecirc114 nous Neste caso natildeo se trata da faculdade de inteligir nem

tampouco da sede dessa faculdade trata-se sim da sua actividade isto eacute da intelecccedilatildeo sendo o saber (epistecircmecirc) o resultado desse processo Neste contexto particular nous equivale em absoluto a noecircsis o termo mais frequente para designar a actividade intelectiva

115 De acordo com a doutrina formulada no Sofista (249a) a alma aleacutem de intelecccedilatildeo (cf supra n 79) eacute tambeacutem a uacutenica sede de actividade cognitiva (cf supra 30b infra 46d Filebo 30c)

116 eikocirc kinecircton tina aiocircnos117 Sobre esta concepccedilatildeo de tempo vide Fialho (1990)

Platatildeo

110 111110 111

38a

b

c

d

e ldquoo que erardquo e ldquoo que seraacuterdquo satildeo modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignoracircncia Dizemos que ldquoeacuterdquo que ldquofoirdquo e que ldquoseraacuterdquo mas ldquoeacuterdquo eacute a uacutenica palavra que lhe eacute proacutepria de acordo com a verdade ao passo que ldquoerardquo e ldquoseraacuterdquo satildeo adequadas para referir aquilo que deveacutem ao longo do tempo ndash pois ambos satildeo movimentos No entanto aquilo que eacute sempre imutaacutevel e imoacutevel118 natildeo eacute passiacutevel de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que eacute agora nem no que seraacute no futuro) bem como em nada daquilo que o devir atribui agraves coisas que os sentidos trazem jaacute que elas satildeo modalidades devenientes119 do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo com o nuacutemero Aleacutem destas haacute ainda as seguintes o que aconteceu ldquoeacuterdquo o que aconteceu o que estaacute a acontecer ldquoeacuterdquo o que estaacute a acontecer o que aconteceraacute ldquoeacuterdquo o que aconteceraacute e o que natildeo eacute ldquoeacuterdquo o que natildeo eacute120 sendo que nenhuma destas afirmaccedilotildees eacute exacta Mas este natildeo seraacute o momento oportuno e adequado para nos determos nestas questotildees

Assim o tempo foi pois gerado ao mesmo tempo que o ceacuteu para que engendrados simultaneamente

118 to de aei kata tauta echon akinecirctocircs119 gegonen eidecirc120 Neste caso particular optaacutemos por traduzir gignomai por

ldquoacontecerrdquo em vez de por ldquodevirrdquo porque a oposiccedilatildeo estabelecida com eimi natildeo se prende directamente com o axioma ontoloacutegico ser-devir Em vez disso Timeu pretende sublinhar um defeito da linguagem designar algo que ocorre num determinado momento cronoloacutegico (na dimensatildeo do sensiacutevel) nos mesmos termos em que refere aquilo que eacute atemporal (e por isso inteligiacutevel)

110 111

Timeu

110 111

38a

b

c

d

tambeacutem simultaneamente sejam dissolvidos121 ndash se eacute que alguma vez a dissoluccedilatildeo122 surja nalgum deles Foram gerados tambeacutem de acordo com o arqueacutetipo da natureza eterna para que lhe fossem o mais semelhantes possiacutevel eacute que o arqueacutetipo eacute ser para toda a eternidade enquanto que a representaccedilatildeo foi eacute e seraacute continuamente e para todo o sempre deveniente

A partir do raciociacutenio e do desiacutegnio de um deus123 em relaccedilatildeo agrave geraccedilatildeo do tempo para que ele fosse engendrado gerou o Sol a Lua e cinco astros que tecircm o nome ldquoplanetasrdquo124 para definirem e guardarem os nuacutemeros do tempo Tendo construiacutedo os corpos de cada um deles ndash sete ao todo ndash o deus estabeleceu-os nas oacuterbitas que o percurso do Outro seguia em nuacutemero de sete delas na primeira a Lua agrave volta da Terra na segunda o Sol por cima da Terra125 a Estrela da Manhatilde126 e o astro que dizem ser consagrado a Hermes127 na rota circular128 que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o

121 lyocirc122 lysis123 ex oun logou kai dianoias124 planecirctos Literalmente ldquoerranterdquo A metaacutefora deve-se ao

facto de os planetas terem uma oacuterbita proacutepria (39d-40b) como se ldquovagueassemrdquo pelo universo

125 Tenhamos em conta que este modelo eacute geocecircntrico126 Veacutenus127 Mercuacuterio128 Para Platatildeo as oacuterbitas dos planetas e do Sol em torno da

Terra descreviam ciacuterculos perfeitos Esta teoria que hoje sabemos ser errada perdurou como paradigma cientiacutefico ateacute ao seacuteculo XVI quando Kepler demonstrou que as oacuterbitas dos astros eram eliacutepticas e natildeo circulares

Platatildeo

112 113112 113

e

39a

b

c

d

astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente Quanto aos outros astros se algueacutem quisesse precisar onde e por que motivos o deus os estabeleceu sem deixar de lado nenhum deles esse discurso que eacute secundaacuterio causaria mais dificuldades do que o objectivo principal em funccedilatildeo do qual seria desenvolvido Quanto a este assunto pode ser que mais tarde o abordemos com a atenccedilatildeo que merece129

Assim logo que cada um dos astros que eram necessaacuterios para constituir o tempo obteve o movimento que lhe era adequado e depois de terem sido engendrados como corpos vivos vinculados agraves almas130 aprenderam aquilo que lhes estava prescrito a oacuterbita do Outro que por ser obliacutequa atravessa a oacuterbita do Mesmo e eacute dominada por ele Alguns astros deslocam-se em ciacuterculos maiores e outros em ciacuterculos mais pequenos os que estatildeo nos ciacuterculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estatildeo nos ciacuterculos maiores deslocam-se mais lentamente E por causa da oacuterbita do Mesmo parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcanccedilados pelos que se deslocavam mais lentamente quando eram aqueles que alcanccedilavam estes Com efeito o deus ao fazer girar em torno do eixo todos os ciacuterculos dos astros como uma espiral fazia parecer que o movimento era duplo e em sentidos opostos e que o que se afastava mais lentamente do que era mais raacutepido era o que estava mais perto Para que houvesse uma

129 Infelizmente o assunto natildeo chega a ser retomado130 Tambeacutem os astros satildeo entidades duais com uma alma

aprisionada num corpo (cf Leis 898)

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medida evidente para a lentidatildeo e para a rapidez com que se cumprissem as oito oacuterbitas o deus instalou uma luz na segunda oacuterbita a contar da Terra a que agora chamamos Sol de modo a que o ceacuteu brilhasse ainda mais para todos e que os seres-vivos aos quais isso dissesse respeito participassem do nuacutemero de modo a ficarem a conhecer a oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Deste modo e por estas razotildees foram gerados a noite e o dia ndash o percurso circular uniforme e regular Temos um mecircs quando a Lua depois de ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo alcanccedila o Sol temos um ano depois de o Sol ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo Agrave excepccedilatildeo de uma minoria131 a maior parte dos homens natildeo teve em conta os ciacuterculos dos outros astros nem lhes deu nomes nem observando-os estudou atraveacutes dos nuacutemeros as relaccedilotildees entre eles de tal forma que por assim dizer natildeo sabe que haacute um tempo definido para os seus cursos errantes132 nem que satildeo inconcebivelmente numerosos e admiravelmente variegados Em todo o caso eacute pelo menos possiacutevel perceber que o nuacutemero perfeito do tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da totalidade das oito oacuterbitas medidas pelo ciacuterculo do Mesmo em progressatildeo uniforme se completam e voltam ao iniacutecio Foi deste modo e por estas razotildees que esses astros engendrados que percorrem o ceacuteu assumiram um ponto de retorno para que o mundo fosse o mais semelhante possiacutevel ao ser

131 Este grupo restrito seraacute o nuacutemero de homens versados em astronomia isto eacute os filoacutesofos

132 planas Cf supra n XXX

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perfeito e inteligiacutevel133 bem como para que constituiacutesse uma imitaccedilatildeo da sua natureza eterna

Tudo o resto ateacute agrave geraccedilatildeo do tempo tinha sido feito dentro da maior semelhanccedila ao que lhe tinha servido de modelo Todavia o mundo ainda natildeo englobava todos os seres-vivos que dentro dele seriam gerados pelo que ainda denunciava dissemelhanccedilas Por isso o demiurgo completou a parte que lhe restava fazer agrave imagem da natureza do arqueacutetipo Assim tal como o intelecto percebe as formas do ser que eacute ndash tantas quantas haacute nele ndash o demiurgo olhou para baixo e decidiu que o mundo deveria ter tantas formas quantas aquele tem E eles satildeo quatro a primeira eacute a espeacutecie celeste dos deuses outra eacute a alada e anda pelo ar a terceira eacute a forma aquaacutetica e a quarta eacute a que caminha sobre a terra Tratando-se da divina o deus construiu-a na sua maioria a partir do fogo para que fosse a mais brilhante e a mais agradaacutevel agrave vista e de modo a ser semelhante ao universo fecirc-la redonda Atribuiu-a agrave inteligecircncia do supremo134 de modo a segui-lo e distribuiu-a em ciacuterculo por todo o ceacuteu a fim de que fosse um verdadeiro adorno bordado em toda a sua extensatildeo Atribuiu dois movimentos a cada uma das divindades um uniforme e no mesmo local para que cada uma reflectisse sempre da mesma forma sobre o mesmo e outro dirigido para a frente pois cada uma delas eacute dominada pela oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Em relaccedilatildeo aos outros cinco movimentos as divindades mantecircm-se imoacuteveis e em

133 teleocirc kai noecirctocirc134 eis tecircn tou kratistou phronecircsin Trata-se da oacuterbita do Mesmo

onde foram fixas as estrelas

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repouso para que cada uma delas seja o mais perfeita possiacutevel

Foram estes os motivos pelos quais foram gerados todos os astros natildeo errantes seres-vivos divinos e eternos que permanecem para sempre imutaacuteveis e a girar sobre si mesmos Jaacute os que mudam de direcccedilatildeo e se mantecircm assim errantes tal como foi dito atraacutes135 foram gerados ao mesmo tempo que estes Quanto agrave Terra o nosso sustento a qual roda136 em torno do eixo que atravessa o universo foi estabelecida como guardiatilde e produtora da noite e do dia ela que eacute a primeira e a mais velha das divindades geradas dentro do ceacuteu Explicar as danccedilas destes astros e as confluecircncias que mantecircm uns com os outros os recuos e os avanccedilos dos seus ciacuterculos uns em relaccedilatildeo aos outros quais satildeo os deuses que se encontram em conjunccedilatildeo e quantos estatildeo opostos uns aos outros e ainda quais se colocam uns diante dos outros e durante quanto tempo se escondem de noacutes para tornarem a aparecer e enviam maus pressaacutegios e sinais de eventos que hatildeo-de acontecer agravequeles que natildeo conseguem entendecirc-los agrave luz da razatildeo sem ter diante dos olhos uma imitaccedilatildeo destes fenoacutemenos essa explicaccedilatildeo seria

135 Cf supra 39c136 illomenecircn Desde os primeiros disciacutepulos de Platatildeo que se

tem discutido o sentido desta palavra O verbo eilocirc pode significar entre outras coisas ldquocomprimirrdquo ou ldquorodarrdquo de acordo com o primeiro a Terra estaria comprimida pelo eixo do universo e pela segunda hipoacutetese giraria em torno dele Seguimos a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 213 293b30-31) que faz equivaler eilocirc a kineocirc implicando um movimento da Terra em torno de si proacutepria Cf Cornford 1937 pp 120-134 Brisson 1998 p 395 n 1 Dillon 1989 p 67

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um encargo vatildeo No entanto isto eacute suficiente para noacutes pelo que seja este o fim da narrativa sobre a natureza dos deuses visiacuteveis e engendrados

No que respeita agraves outras divindades dizer e conhecer a sua geraccedilatildeo eacute algo que nos supera devemos portanto confiar nos que falaram outrora pois satildeo descendentes dos deuses segundo dizem e conhecem distintamente os seus ascendentes Eacute de facto impossiacutevel desconfiar dos filhos dos deuses mesmo que falem sem recurso a argumentos verosiacutemeis ou rigorosos Quando tratam de dar conta dos episoacutedios que dizem respeito agrave famiacutelia devemos entatildeo confiar neles de acordo com o costume Deste modo reproduzamos o discurso deles e faccedilamos o nosso sobre o que foi a geacutenese dos deuses De Geia e Urano foram gerados Oceano e Teacutetis seus filhos e destes foram gerados Foacutercis Cronos e Reia e todos aqueles que os seguiram de Cronos e de Reia foram gerados Zeus e Hera e todos aqueles que segundo a tradiccedilatildeo sabemos serem seus irmatildeos e ainda outros descendentes destes foram gerados137 Quando foram gerados todos os deuses quer os que se movimentam em ciacuterculos e satildeo visiacuteveis quer os que se mostram soacute quando desejam aquele que engendrou o universo disse-lhes o seguinte

ldquoDeuses gerados de deuses de quem e de cujas obras eu sou pai e demiurgo por terem sido gerados por mim natildeo podem ser dissolvidos enquanto eu natildeo

137 Esta teogenealogia difere bastante da que Hesiacuteodo estabeleceu na Teogonia eacute provaacutevel que misture elementos de tradiccedilotildees variadas nomeadamente da oacuterfica (vide Brisson 2001 p 239 n 229)

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quiser Na verdade embora o que tenha sido unido seja dissoluacutevel eacute uma maldade querer dissolver aquilo que pelo bem foi composto em harmonia Por isso mesmo que tenhais sido gerados e ainda que natildeo sejais imortais nem completamente impassiacuteveis de dissoluccedilatildeo de modo algum sereis dissolvidos nem tomareis parte na morte porque fostes unidos pela minha vontade que eacute mais forte e mais poderosa do que os elos que vos couberam em sorte e com os quais fostes gerados Agora aprendei aquilo que vos vou dizer e mostrar

Restam trecircs espeacutecies mortais que ainda natildeo foram engendradas Se elas natildeo chegarem a ser geradas o ceacuteu ficaraacute incompleto pois natildeo conteraacute em si todas as espeacutecies de seres-vivos mas eacute forccediloso que as tenha para que fique efectivamente perfeito Todavia se elas fossem geradas por mim e tomassem parte na vida atraveacutes de mim seriam equivalentes aos deuses Portanto para que sejam mortais e que o universo seja realmente um todo tratai de acordo com a vossa natureza de fabricar estes seres-vivos imitando o meu poder de quando vos gerei E no que respeita agrave parte desses seres a que pertence ter o mesmo nome que os imortais a parte a que chamamos divina e que comanda os que entre eles praticam sempre a justiccedila e vos querem servir que eu semeei e quis que se originasse essa vo-la confio Quanto ao resto entretecei uma parte mortal nessa parte imortal formai e engendrai seres-vivos fazei-os crescer providenciando-lhes o alimento e quando perecerem recebei-os outra vezrdquo138

138 Referecircncia agrave teoria da transmigraccedilatildeo das almas formulada no

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Assim falou e voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira poreacutem comparativamente agrave primeira mistura esta natildeo ficou com o mesmo teor de pureza mas sim com um segundo ou terceiro grau Depois de ter constituiacutedo o todo dividiu-o em nuacutemero de almas igual ao de astros e atribuiu uma a cada um Fazendo-as embarcar como num carro mostrou-lhes a natureza do universo e deu-lhes a conhecer as leis que lhes estavam destinadas a saber a primeira geacutenese seria estabelecida como idecircntica para todas de modo a que nenhuma fosse depreciada por ele Era obrigatoacuterio que uma vez disseminadas pelos instrumentos do tempo adequados a cada uma gerassem dos seres-vivos o que mais venerasse os deuses e por a natureza humana ser dupla139 aquela espeacutecie mais forte seria a que posteriormente se chamaria macho Sempre que fossem implantadas nos corpos por necessidade e lhes fossem acrescentadas partes enquanto outras seriam retiradas do corpo em todas elas surgiria necessariamente e em primeiro lugar uma sensaccedilatildeo uacutenica e congeacutenita gerada por impressotildees violentas140 em segundo lugar o desejo amoroso que

Fedro (246a-250c)139 Isto eacute masculina e feminina140 Uma sensaccedilatildeo (aisthecircsis) eacute uma manifestaccedilatildeo somaacutetica de uma

impressatildeo (pathecircma) sofrida ou seja uma resposta a um estiacutemulo externo Por sensaccedilatildeo Timeu entende tanto os sentimentos como a coacutelera ou o temor (42a) como os sentidos por exemplo a visatildeo eacute uma aisthecircsis cujo pathecircma eacute o fogo exterior que contacta com os olhos (45b-c)

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eacute uma mistura de prazer e sofrimento depois destes o temor a coacutelera e todas as sensaccedilotildees que se lhes seguem e todas as que por natureza satildeo contraacuterias e se diferenciam destas Se as dominarem viveratildeo de forma justa mas se forem comandados por elas viveratildeo de forma injusta Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe regressaraacute agrave morada do astro que lhe estaacute associado para aiacute ter uma vida feliz e conforme Mas se se extraviar recairaacute sobre si a natureza de mulher na segunda geraccedilatildeo e se mesmo nessa condiccedilatildeo natildeo cessar de praticar o mal seraacute sempre gerado com uma natureza de animal assumindo uma ou outra forma conforme o tipo de mal que pratique141 Ao mudar o seu estado anterior natildeo se veraacute livre destes sofrimentos enquanto for arrastado pelo percurso do Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo aacutegua ar e terra que depois se juntou a ele soacute quando dominasse por meio da razatildeo essa massa turbulenta e irracional142 voltaria agrave forma do seu estado primeiro e ideal Assim o deus depois de lhes ter dado todas as prescriccedilotildees para que natildeo fosse responsaacutevel pelo mal que pudesse existir entre elas semeou algumas na terra e outras na Lua e ainda outras nos restantes instrumentos do tempo Depois da sementeira concedeu aos jovens deuses a tarefa de formar os corpos mortais e de adicionar o que restava e era necessaacuterio agrave alma humana e depois de terem

141 Como seraacute desenvolvido mais adiante (90e-sqq) os homens que levem a vida de forma indigna assumiratildeo formas animais em nascimentos futuros Cf Feacutedon 81e-82b Fedro 249a-c Repuacuteblica 614b-sqq

142 thorubocircdecirc kai alogon onta logocirc kratecircsas

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completado tudo quanto restava fazer concedeu-lhes a tarefa de governaacute-la na medida do possiacutevel para que orientassem este ser-vivo mortal da forma melhor e mais bela de modo a que natildeo fosse a causa dos seus proacuteprios males

Depois de ter disposto tudo isto manteve-se no estado que lhe eacute proacuteprio e habitual E assim se mantendo os filhos reflectiam sobre as disposiccedilotildees do pai e obedeceram-lhe Pegando no princiacutepio imortal do ser-vivo mortal e imitando o seu demiurgo tomaram de empreacutestimo ao mundo partes de fogo terra aacutegua e ar que depois seriam devolvidas Colaram numa soacute entidade os elementos que haviam tomado natildeo com os laccedilos insoluacuteveis com que eles proacuteprios haviam sido apertados mas fundiram-nas com cavilhas apertadas que graccedilas ao seu reduzido tamanho eram invisiacuteveis A partir de tudo isto fabricaram cada corpo introduzindo as oacuterbitas da alma imortal num corpo submetido a fluxos e refluxos Presas a um rio impetuoso natildeo dominavam nem eram dominadas pelo rio mas ora o moviam ora eram movidas pela forccedila dele de tal forma que o ser-vivo se movia globalmente ndash mas fazia-o de forma desordenada irracional e ao acaso pois tinha em si todos os seis movimentos Com efeito andava para a frente e para traacutes e ainda para a direita e para a esquerda e para baixo e para cima errante avanccedilava em todas as direcccedilotildees Eacute que por ser abundante a torrente de fluxo e refluxo que transportava o alimento as impressotildees que com eles chocavam causavam um tumulto ainda maior sempre que o corpo de algum colidia com um

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fogo externo que por acaso encontrasse no exterior ou com a dureza e firmeza da terra ou com a humidade deslizante da aacutegua ou apanhado pela tempestade dos ventos transportados pelo ar ou seja quando causados por todas essas entidades os movimentos imprimidos ao corpo recaiacuteam sobre a alma Por causa disso esses movimentos foram chamados sensaccedilotildees e ainda agora no seu conjunto satildeo assim chamados Visto que no momento em que ocorrem elas provocam um movimento muito poderoso e intenso que se junta ao do canal em que segue uma torrente de forma contiacutenua e agitando com violecircncia as oacuterbitas da alma bloqueiam por completo a oacuterbita do Mesmo por correrem em sentido oposto ao dele impedindo-o de progredir e de governar o que chega a desestabilizar a oacuterbita do Outro de tal forma que cada um dos trecircs intervalos duplos e triplos os intervalos e as ligaccedilotildees de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo que de modo algum eram resoluacuteveis a natildeo ser por aquele que as ligou fizeram-nas girar todas em ciacuterculos criando todo o tipo de rupturas e desordens nos ciacuterculos ndash tantas quantas conseguiram Deste modo a custo se mantiveram ligados uns com os outros movendo-se irracionalmente ora voltadas ao contraacuterio ora de forma obliacutequa ora invertidas Por exemplo quando algueacutem se coloca em posiccedilatildeo invertida com a cabeccedila para o chatildeo e projectando os peacutes para cima contra qualquer coisa enquanto assim estaacute tanto do ponto de vista de quem nela se encontra como de quem estaacute a observaacute-lo parece-lhes tanto a uns como a outros que a direita eacute a esquerda e a esquerda

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eacute a direita Eacute exactamente isto e algo do mesmo geacutenero que as oacuterbitas sofrem violentamente sempre que por acaso encontram algum elemento do exterior quer seja da espeacutecie do Mesmo quer seja da do Outro atribuem ao Mesmo e ao Outro designaccedilotildees contraacuterias agrave verdade tornando-se mentirosas e dementes visto que nenhuma das oacuterbitas que haacute nelas governa ou orienta Poreacutem quando nelas recaem certas sensaccedilotildees vindas do exterior143 arrastando consigo todo o invoacutelucro da alma as oacuterbitas aparentam estar no comando quando satildeo elas as comandadas Eacute por causa de todas estas impressotildees que agora e tal como na sua origem a alma eacute primeiro gerada sem intelecto144 cada vez que eacute aprisionada num corpo mortal Mas logo que diminui o fluxo do que alimenta e faz crescer as oacuterbitas retomam a acalmia e seguem o caminho que lhes eacute proacuteprio e vatildeo adquirindo maior estabilidade com o passar do tempo entatildeo as oacuterbitas de cada um dos ciacuterculos que seguem a sua trajectoacuteria natural acertam-se atribuindo correctamente as designaccedilotildees de Outro e de Mesmo e acabam por tornar racional145 quem os possui Se depois algum alimento correcto servir de complemento agrave educaccedilatildeo este tornar-se-aacute completamente perfeito e saudaacutevel pois escapou agrave doenccedila mais grave146 Mas se for negligente levando ao longo da vida uma existecircncia desequilibrada iraacute novamente para o Hades em estado de imperfeiccedilatildeo

143 Isto eacute provocadas por uma impressatildeo Cf supra n 140144 anous145 emphrocircn146 Isto eacute a ignoracircncia (cf supra 44a infra 86b 88b)

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e demente Isto acontece numa altura posterior147 mas no que respeita ao que temos agora diante de noacutes eacute necessaacuterio empreendermos uma explicaccedilatildeo mais apurada e quanto aos assuntos anteriores ndash a geraccedilatildeo de cada parte dos corpos o que respeita agrave alma o que concerne agraves causas e agrave providecircncia dos deuses pelas quais foi gerada ndash temos que os descrever apoiando-nos no que eacute mais verosiacutemil seguindo o nosso caminho deste modo e de acordo com estas prerrogativas

Agrave imagem da figura do universo que eacute esfeacuterica as divindades prenderam as oacuterbitas divinas que satildeo duas num corpo esfeacuterico este a que chamamos cabeccedila que eacute a parte mais divina e domina todas as outras partes que haacute em noacutes a ela os deuses entregaram todo o corpo como servo ao qual a juntaram percebendo que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse Para que natildeo rolasse sobre a terra que tem altos e depressotildees de todo o tipo e natildeo tivesse dificuldade em transpor umas e sair de outras deram-lhe este veiacuteculo para faacutecil deslocaccedilatildeo daiacute que o corpo seja comprido e tenha por natureza quatro membros extensiacuteveis e flexiacuteveis fabricados pelo deus para a deslocaccedilatildeo Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar era capaz de se deslocar por todos os locais enquanto transportava no topo a morada daquilo que em noacutes eacute mais divino e sagrado Foi por este motivo e deste modo que a todos foram anexadas pernas e matildeos

Considerando que a parte da frente eacute mais nobre e proacutepria para governar do que a de traacutes os deuses

147 Cf infra 87b 89d

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deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido Portanto era preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante Foi por isso que em primeiro lugar estabeleceram neste lado da parte exterior da cabeccedila o siacutetio do rosto e em seguida firmaram os instrumentos relacionados com todas as capacidades de providecircncia da alma e estabeleceram que de acordo com a natureza seria na parte anterior que ficariam situados os oacutergatildeos que tomam parte na governaccedilatildeo

Entre os instrumentos fabricaram em primeiro lugar os olhos portadores da luz tendo-os ali fixado pela seguinte razatildeo essa espeacutecie de fogo que natildeo arde antes oferece uma luz suave os deuses engendraram-no de modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado O fogo puro que haacute dentro de noacutes irmatildeo do outro fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo contiacutenuo pelo que comprimiram ao maacuteximo o centro dos olhos de tal forma que sustivesse a outra espeacutecie mais espessa na sua totalidade e filtrasse apenas esta espeacutecie pura Deste modo quando a luz do dia cerca o fluxo da visatildeo o semelhante recai sobre o semelhante tornam-se compactos unindo-se e conciliando-se num soacute corpo ao longo do eixo da visatildeo o que acontece onde quer que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior Assim gera-se uma homogeneidade de impressotildees pois o todo eacute muito semelhante se esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele distribui os seus movimentos por todo o corpo ateacute agrave alma e produz a sensaccedilatildeo a que

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noacutes chamamos ldquoverrdquo Quando o fogo se afasta ao cair da noite separa-se do fogo de que eacute congeacutenere148 por cair sobre algo que lhe eacute dissemelhante ele altera-se e extingue-se pois a sua natureza natildeo eacute congeacutenere agrave do ar que o rodeia jaacute que este natildeo tem fogo Entatildeo a visatildeo acaba e gera-se o convite ao sono De facto quando se cerra a protecccedilatildeo que os deuses engendraram para a visatildeo ndash as paacutelpebras ndash essa protecccedilatildeo susteacutem o poder do fogo interno Este dispersa-se e acalma os movimentos do interior Uma vez acalmados gera-se o sossego e uma vez gerado um sossego profundo abate-se um sono com poucos sonhos mas quando restam alguns movimentos fortes conforme a sua natureza e os locais onde ficam produzem no interior simulacros que se assemelham quanto agrave natureza e ao nuacutemero ao exterior e que seratildeo recordados ao acordar Assim jaacute natildeo eacute difiacutecil perceber a formaccedilatildeo de imagens em espelhos e em todas as superfiacutecies reflectoras e lisas Por causa da relaccedilatildeo reciacuteproca que o fogo interior e o fogo exterior mantecircm entre si cada vez que um deles encontra uma superfiacutecie lisa mudando constantemente de forma todas estas imagens aparecem por necessidade graccedilas agrave conjunccedilatildeo entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda a visatildeo quando se deparam com uma superfiacutecie lisa e brilhante Aquilo que estaacute agrave direita aparece agrave esquerda porque eacute com as partes contraacuterias da visatildeo que as partes contraacuterias do fogo exterior estabelecem contacto em oposiccedilatildeo ao que habitualmente acontece quando chocam entre si Pelo contraacuterio a direita estaacute agrave direita e

148 sungenecircs

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a esquerda agrave esquerda quando a luz muda de direcccedilatildeo por se fundir com o objecto com que se funde o que acontece sempre que a superfiacutecie lisa dos espelhos por adquirir uma saliecircncia de um lado e de outro empurra para o lado esquerdo da visatildeo a luz que vem do lado direito e vice-versa Mas se o espelho for redondo transversalmente em relaccedilatildeo ao rosto faraacute com que tudo apareccedila invertido porque empurra para cima a luz que vem de baixo e para baixo a que vem de cima

Todas estas satildeo causas acessoacuterias149 que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete conforme pode a ideia do melhor150 No entanto a maioria considera que natildeo satildeo causas acessoacuterias mas sim as causas de tudo visto que produzem o arrefecimento e o aquecimento a solidificaccedilatildeo e a fusatildeo e efeitos desse tipo Mas natildeo eacute possiacutevel que tais causas possuam razatildeo ou intelecto151 em relaccedilatildeo ao que quer que seja Temos que dizer que entre todos os seres o uacutenico ao qual eacute adequado possuir intelecto eacute a alma152 ndash pois esta eacute invisiacutevel enquanto que o fogo a aacutegua a terra e o ar foram todos gerados como corpos visiacuteveis ndash e que o amante da intelecccedilatildeo153 e do saber154 persegue por necessidade as causas primeiras do que na natureza

149 synaitiai150 tecircn you aristou kata to dynaton idean apotelocircn Eacute bastante

evidente a orientaccedilatildeo teleoloacutegica da acccedilatildeo demiuacutergica o mundo eacute criado para o bem

151 logon de oudena oude noun152 Sobre a alma como uacutenica sede possiacutevel do nous vide supra

n 115153 Sobre este sentido particular de nous vide supra n 114154 epistecircmecirc

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eacute racional aquelas que satildeo movimentadas por outros seres e que por necessidade transmitem o movimento a outras essas satildeo causas secundaacuterias Tambeacutem noacutes devemos fazer isso devemos falar de ambos os geacuteneros de causas distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das que isentas de intelecccedilatildeo155 cada vez que produzem algo o fazem ao acaso e sem ordem156 Coube-nos entatildeo falar das causas acessoacuterias pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora tecircm Da obra mais importante do ponto de vista da sua utilidade razatildeo pela qual o deus no-la ofereceu eacute sobre ela que noacutes devemos falar

Em meu entender a visatildeo foi gerada como causa de maior utilidade para noacutes visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros o Sol e o ceacuteu Foi o facto de vermos o dia e a noite os meses o circuito dos anos os equinoacutecios e os solstiacutecios que deu origem aos nuacutemeros que nos proporcionam a noccedilatildeo de tempo e a investigaccedilatildeo sobre a natureza do universo A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espeacutecie mortal oferecido pelos deuses Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos Por que razatildeo havemos de celebrar os outros que satildeo inferiores a estes pelos quais soacute um natildeo-filoacutesofo choraria se ficasse cego com lamentos em vatildeo Quanto a noacutes declaremos que

155 phronecircsis156 to tychon atakton

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esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo o deus descobriu e concedeu-nos a visatildeo em nosso favor para que ao contemplar as oacuterbitas do Intelecto no ceacuteu as aplicaacutessemos agraves oacuterbitas da nossa actividade intelectiva157 que satildeo congeacuteneres daquele ainda que as nossas tenham perturbaccedilotildees e as deles sejam imperturbaacuteveis Soacute depois de termos analisado aqueles movimentos calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza e de termos imitado esses movimentos do deus absolutamente impassiacuteveis de errar podemos estabilizar os que em noacutes satildeo errantes Quanto agrave voz e agrave audiccedilatildeo o raciociacutenio eacute mais uma vez o mesmo os deuses concederam-no-las pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins Na verdade foi com o mesmo fim que nos foi atribuiacuteda a fala que tem um papel fundamental na nossa interacccedilatildeo tudo quanto eacute uacutetil agrave voz no contexto da muacutesica isso nos foi dado por causa da harmonia da audiccedilatildeo Com efeito para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto a harmonia feita de movimentos congeacuteneres das oacuterbitas da nossa alma natildeo eacute um instrumento para um prazer irracional ndash como agora se julga ser158 ndash mas em virtude de as oacuterbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geraccedilatildeo aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pocircr em ordem e em concordacircncia159 E

157 dianoecircsis158 A criacutetica ao senso-comum que concebe a muacutesica unicamente

como fonte de prazer eacute tambeacutem referida nas Leis (656c) De igual modo pensa Aristoacuteteles o qual considera que soacute acidentalmente a muacutesica pode ser causadora de prazer (85 Poliacutetica 1339b11-1340b19)

159 Sobre a muacutesica como agente harmonizador da alma vide

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o ritmo por a maioria de noacutes ser privada de medida e falta de graccedila foi-nos concedido como auxiliar pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins

O que acabaacutemos de passar em revista agrave excepccedilatildeo de pequenos aspectos ilustra o que foi fabricado pelo Intelecto Eacute necessaacuterio que justaponhamos ao discurso aquilo que foi gerado pela Necessidade160 De facto a geraccedilatildeo deste mundo resulta de uma mistura engendrada por uma combinaccedilatildeo de Necessidade e Intelecto Mas como o Intelecto dominava a Necessidade persuadindo-a a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes foi deste modo (atraveacutes da cedecircncia da Necessidade a uma persuasatildeo racional161) que o universo foi constituiacutedo desde a sua origem Portanto se algueacutem quiser dizer como foi realmente gerado de acordo com estes pressupostos teraacute que incluir tambeacutem a espeacutecie da causa errante162 tanto quanto a sua natureza o admita163 Portanto recuando um pouco atraacutes

Repuacuteblica 530d-532b160 Aleacutem da intervenccedilatildeo do Intelecto ndash racional matematicamente

estruturada e teleoloacutegica ndash o mundo sensiacutevel eacute formado tambeacutem com o contributo da Necessidade um princiacutepio de causalidade marcado pelo acidental casual material e exclusivamente mecacircnico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 34-37

161 hypo peithous emphronos162 to tecircs planocircmenecircs eidos aitias163 ecirc pherein pephyken Passagem bastante obscura e por isso

muitiacutessimo discutida A principal dificuldade reside no sentido de pherein que pode ser traduzido tanto por ldquomovimentar pocircr em movimentordquo (Cornford 1937 p 160 n 2 Brisson 1998 p 145) como por ldquopermitir admitirrdquo (Taylor 1928 p 304) Pensamos que a segunda opccedilatildeo eacute mais acertada na medida em que neste paraacutegrafo se insiste bastante nas limitaccedilotildees epistemoloacutegicas aleacutem de que em todo ele natildeo satildeo mencionados os movimentos

Platatildeo

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teremos que comeccedilar do iniacutecio tomando para o mesmo assunto um outro ponto de partida anterior que lhe seja adequado tal como fizemos em relaccedilatildeo aos assuntos que abordaacutemos ateacute agora Antes da geraccedilatildeo do ceacuteu teremos que rever a natureza do fogo do ar da aacutegua e da terra bem como os comportamentos que tinham antes disso na verdade ateacute agora ningueacutem revelou a sua origem mas discursamos como se nos dirigiacutessemos a quem soubesse o que possa ser o fogo e cada um dos outros elementos dispondo-os como princiacutepios e164 letras do universo Ora eacute prudente que com um miacutenimo de verosimilhanccedila nem sequer agraves siacutelabas sejam comparados por quem tenha um pouco de inteligecircncia165 Quanto a noacutes agora diremos o seguinte seja qual for o que achamos sobre o princiacutepio ou princiacutepios do universo conveacutem que natildeo nos pronunciemos sobre isso agora por nenhum outro motivo que natildeo por ser difiacutecil expressar as nossas opiniotildees de acordo com o tipo de exposiccedilatildeo que nos estaacute disponiacutevel nem voacutes esperais que seja da minha obrigaccedilatildeo dizecirc-lo nem eu proacuteprio me tentarei convencer de que eu seja capaz de me atirar a uma tarefa dessa natureza Mas prestando atenccedilatildeo ao que foi dito no iniacutecio e ao

164 O texto de Burnet natildeo regista qualquer indiacutecio de coordenaccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiosrdquo (archecirc) e ldquoletrasrdquo (stoicheion) Seguimos a emenda de West (1977 p 301) que introduz kai entre as duas palavras

165 Mais que provaacutevel reacccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo atomista que compara os aacutetomos agraves letras que formam as palavras (DK 68A38) Segundo Platatildeo os quatro elementos satildeo soacutelidos que obedecem a figuras e estas a triacircngulos daiacute que as letras sejam sim os triacircngulos (54d) Dentro deste quadro metafoacuterico as siacutelabas seriam as figuras e os elementos seriam as palavras Sobre esta questatildeo vide Hershbell (1974 pp 153-sqq)

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poder dos discursos verosiacutemeis voltando ao princiacutepio tentarei abordar de forma natildeo menos verosiacutemil mas ateacute mais cada pormenor e tambeacutem a totalidade do que dissemos Voltando agora ao princiacutepio dos discursos invoquemos o deus para que nos assista novamente e a partir de uma exposiccedilatildeo estranha e inusitada166 nos guie numa conclusatildeo verosiacutemil

Assim no que respeita ao universo o novo ponto de partida deve ser mais diferenciado do que anteriormente Na verdade noacutes tiacutenhamos distinguido dois tipos de ser mas agora temos que estabelecer um terceiro de outra espeacutecie167 Decerto que aqueles dois eram suficientes para o que expusemos anteriormente um foi proposto como sendo o tipo do arqueacutetipo inteligiacutevel e que eacute sempre imutaacutevel168 e o segundo como uma imitaccedilatildeo do arqueacutetipo sujeito ao devir169 e visiacutevel Nesse momento natildeo distinguimos o terceiro por considerarmos que os dois seriam suficientes Mas agora o discurso parece obrigar-nos a empreender uma exposiccedilatildeo que esclareccedila um tipo difiacutecil e obscuro Que propriedade temos noacutes de supor que ele teraacute de acordo com a natureza Seraacute sobretudo a seguinte ser o receptaacuteculo e por assim dizer a ama de tudo quanto deveacutem Falaacutemos agora com verdade mas eacute forccediloso que digamos algo mais expliacutecito acerca dele o que poreacutem eacute difiacutecil pelo facto de ser inevitaacutevel esclarecer algumas

166 ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs167 Sobre o terceiro princiacutepio ontoloacutegico vide Introduccedilatildeo pp

XXX168 paradeigmatos eidos () noecircton kai aei kata tauta on169 mimecircma de paradeigmatos deuteron genesin echon

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questotildees preacutevias relacionadas com o fogo e com os outros elementos aleacutem do fogo Destes elementos eacute difiacutecil dizer que qualidade cada um deve ter para lhe chamarmos ldquoaacuteguardquo em vez de ldquofogordquo ou que qualidade deve ter para lhe chamarmos qualquer outra coisa em vez de todas ao mesmo tempo ou cada uma em especial e deste modo utilizar um discurso fidedigno e soacutelido Como de que modo e com que dificuldade razoavelmente superada poderemos noacutes dizer uma coisa dessas

Primeiro em relaccedilatildeo agravequilo a que chamamos aacutegua quando congela parece-nos estar a olhar para algo que se tornou pedra ou terra mas quando derrete e se dispersa esta torna-se bafo e ar o ar quando eacute queimado torna-se fogo e inversamente o fogo quando se contrai e se extingue regressa agrave forma do ar o ar novamente concentrado e contraiacutedo torna-se nuvem e nevoeiro mas a partir destes estados se for ainda mais comprimido torna-se aacutegua corrente e de aacutegua torna-se novamente terra e pedras e deste modo como nos parece datildeo geraccedilatildeo uns aos outros de forma ciacuteclica Por isso visto que nenhum de todos eles nos aparece do mesmo modo qual deles podemos afirmar com firmeza que eacute uma coisa seja ela qual for e natildeo outra sem nos sentirmos envergonhados Natildeo eacute viaacutevel mas para os estabelecer da forma mais segura possiacutevel conveacutem falar sobre eles do seguinte modo sobre o que por vezes vemos tornar-se em outra coisa como o fogo natildeo podemos dizer que fogo eacute ldquoistordquo mas sim que eacute ldquoaquilo que em determinadas circunstacircncias estaacute

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assimrdquo170 nem que aacutegua eacute ldquoistordquo mas sim ldquoaquilo que estaacute sempre assimrdquo nem nenhuma outra coisa como se algum tivesse algo de estaacutevel usando palavras como ldquoistordquo ou ldquoaquilordquo para dar a conhecer tais realidades quando cremos estar a esclarecer alguma coisa Eacute que eles escapam ao ldquoistordquo ao ldquoaquilordquo e ao ldquopara istordquo e natildeo os admitem nem qualquer outra designaccedilatildeo que os apresente como realidades estaacuteveis Mas natildeo se deve falar delas como realidades distintas ndash antes sim chamar ldquoo que estaacute assimrdquo ao que perdura sempre igual em todos os casos e em cada um em particular chamar ldquofogordquo ao que permanece como tal apesar do que quer que seja e assim sucessivamente a tudo quanto devenha Mas aquilo em que cada coisa deveniente aparece171 e daiacute torna a desaparecer soacute isso referiremos usando as designaccedilotildees ldquoistordquo e ldquoaquilordquo enquanto que o que for de um certo tipo seja quente seja branco ou seja qualquer um dos seus opostos bem como tudo o que deles se origine nenhum deles o referiremos deste modo

Mas esforcemo-nos por explicar novamente este assunto de forma ainda mais clara Se algueacutem forjasse todas as formas possiacuteveis de ouro e nunca cessasse de as transformar a todas elas em outras e lhe fosse mostrada uma de entre elas e lhe fosse perguntado o que era com toda a certeza responderia em abono da

170 A oposiccedilatildeo entre ldquoistordquo (touto) e ldquoque estaacute assimrdquo (to toiouton) pretende esclarecer a diferenccedila constitutiva entre a chocircra que natildeo se altera e por isso merece a designaccedilatildeo touto e o que nela entra a que por estar em constante mutaccedilatildeo soacute poderemos chamar to toiouton A criacutetica de Soacutecrates agrave teoria do fluxo no Teeteto (157b) eacute formulada em termos semelhantes

171 en ocirc de engignomena aei ekasta autocircn phantazetai

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verdade que era ouro No entanto de modo algum se pode dizer que o triacircngulo e quantas outras figuras que foram plasmadas no ouro satildeo ldquoistordquo pois logo que lhes eacute aplicado esse termo comeccedilam a sofrer mudanccedilas Contentemo-nos se todas elas consentirem receber com alguma seguranccedila a designaccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute assimrdquo O mesmo discurso deve ser feito acerca da natureza que recebe todos os corpos A ela se haacute-de designar sempre do mesmo modo pois ela natildeo perde de modo algum as suas propriedades recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre172 impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel que investigaremos posteriormente Por enquanto eacute necessaacuterio que tenhamos em mente que haacute trecircs geacuteneros aquilo que deveacutem aquilo em que algo deveacutem e aquilo agrave semelhanccedila do qual se cria o que deveacutem173

Eacute adequado assemelhar o receptaacuteculo a uma matildee o ponto de partida a um pai e a natureza do que nasce entre eles a um filho e compreender ainda que se a marca de impressatildeo for diversificada e se apresentar agrave vista essa diversidade em todos os aspectos o suporte que recebe o que vai ser impresso natildeo estaria bem preparado se natildeo fosse completamente amorfo e

172 tocircn ontocircn aei mimecircmata173 to men gignomenon to drsquoen ocirc gignetai to drsquoen ocirc gignetai to

drsquohothen aphomoioumenon phyetai to gignomenon

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desprovido de todos aqueles tipos que esteja destinado a receber Se o receptaacuteculo fosse semelhante a alguma das figuras que entra nele cada vez que entrasse alguma figura de natureza contraacuteria ou heterogeacutenea assumiria mal a sua semelhanccedila na medida em que estava a exibir a sua proacutepria aparecircncia Por isso eacute necessaacuterio que aquele que recebe em si todos os geacuteneros esteja desprovido de todas as formas Eacute o que se passa de modo idecircntico com os oacuteleos que satildeo perfumados artificialmente Para fabricaacute-los em primeiro lugar eacute necessaacuterio que se comece por tornar o mais inodoros possiacutevel os liacutequidos que vatildeo receber as fragracircncias Eacute como aqueles que se dedicam a modelar figuras em superfiacutecies moldaacuteveis natildeo permitem que fique visiacutevel figura alguma que jaacute laacute estivesse nivelando-as de antematildeo para que fiquem o mais lisas que lhes seja possiacutevel O mesmo se passa com aquilo que deve receber vaacuterias vezes e de forma adequada e bela as representaccedilotildees de todos os seres eternos eacute-lhe conveniente por natureza que seja desprovido de todas as formas Eacute por isso que dizemos que a matildee do devir do que eacute visiacutevel e de todo sensiacutevel que eacute o receptaacuteculo natildeo eacute terra nem ar nem fogo nem aacutegua nem nada que provenha dos elementos nem nada deveniente a partir deles Mas se dissermos que ela eacute uma certa espeacutecie invisiacutevel e amorfa174 que tudo recebe e que participa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevel e difiacutecil de compreender175 natildeo estaremos a mentir E visto que a partir do que foi dito eacute possiacutevel alcanccedilar a sua natureza

174 anoraton eidos ti kai amorphon175 metalambanon de aporocirctata pecirc tou noecirctou kai dysalocirctotaton

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eis o modo mais correcto de falar dela a sua parte que estaacute a arder aparece sempre como fogo a que estaacute huacutemida aparece como aacutegua e a que aparece como terra e como ar faacute-lo de acordo com as imitaccedilotildees que recebe de cada um

Tendo noacutes estabelecido estes limites mais precisos no nosso discurso temos que tecer consideraccedilotildees sobre esses assuntos Seraacute que algum fogo eacute em si e quanto a todas as coisas de que sempre falamos seraacute que alguma delas eacute em si176 ou seraacute aquilo que vemos e tudo o resto que sentimos atraveacutes do corpo a uacutenica coisa que eacute real e natildeo existe outra aleacutem dessa de modo nenhum e em nenhuma circunstacircncia mas seraacute em vatildeo cada vez que dizemos que haacute uma Ideia inteligiacutevel177 de cada coisa natildeo sendo tudo isto nada senatildeo palavras Por um lado natildeo nos eacute permitido deixar a questatildeo que temos agrave nossa frente por julgar e por decidir pois merece que o faccedilamos nem abandonaacute-la afirmando com certeza que eacute assim mas por outro lado natildeo podemos inserir um longo discurso acessoacuterio ao lado de outro que jaacute eacute longo Poreacutem se ao estipularmos um limite focaacutessemos aspectos decisivos em pouco tempo seria extremamente oportuno No que me diz respeito eacute esse o sentido do meu voto

Se a intelecccedilatildeo178 e a opiniatildeo verdadeira satildeo dois geacuteneros pois tecircm em si modos de existir independentes teremos Ideias que natildeo podem por noacutes sentidas

176 kathrsquoauta onta Esta mesma foacutermula eacute usada no Feacutedon (66a) tambeacutem para caracterizar as Ideias

177 eidos noecircton178 nous Sobre este sentido do termo vide supra n XXX

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mas somente inteligidas179 Mas se como a alguns parece a opiniatildeo verdadeira natildeo difere em nada da intelecccedilatildeo devemos estabelecer que tudo quanto eacute apreendido pelos sentidos do nosso corpo eacute o que de mais seguro existe Ainda assim temos que afirmar que se trata de duas coisas distintas pois eles satildeo gerados separadamente e tecircm uma existecircncia dissemelhante um deles eacute gerado em noacutes atraveacutes da aprendizagem e o outro eacute-o pela persuasatildeo180 Aleacutem disso o primeiro eacute sempre acompanhado de uma justificaccedilatildeo verdadeira enquanto que o segundo eacute desprovido de justificaccedilatildeo181 Um natildeo se move pela persuasatildeo enquanto que o outro estaacute aberto agrave persuasatildeo Devemos tambeacutem dizer que todos os homens tomam parte em um mas na intelecccedilatildeo soacute tomam parte os deuses e um reduzido tipo de homens182 Sendo assim convenhamos que haacute uma primeira espeacutecie que eacute imutaacutevel natildeo estaacute sujeita ao devir nem agrave destruiccedilatildeo183 que natildeo recebe em si nada vindo de parte alguma nem entra em nada seja o que for natildeo eacute visiacutevel nem de outro modo sensiacutevel e cabe ao pensamento184 examinaacute-la Haacute uma segunda que tem

179 Tal como fora estabelecido na Repuacuteblica (478a-b) se eacute verdade que as faculdades intelectiva e sensiacutevel satildeo distintas tambeacutem os seus objectos hatildeo-de ser distintos

180 Cf Goacutergias 454c-455a Teeteto 200e-201c181 metrsquoalecircthous logou Formulaccedilatildeo aproximada da terceira

definiccedilatildeo de epistecircmecirc do Teeteto (200c9-201d1 meta logou alecircthecirc doxan) difere no facto de associar a verdade agrave justificaccedilatildeo (logos) e natildeo agrave opiniatildeo (doxa) pois que prescinde desta Cf Banquete 202a Feacutedon 76b 97d-99d Meacutenon 97c-98b Repuacuteblica 534b

182 Isto eacute os filoacutesofos183 to kata tauta eidos echon agennecircton kai anocirclethron184 noecircsis

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um nome igual agravequela que eacute sensiacutevel eacute deveniente estaacute sempre em movimento eacute gerada num determinado local para de seguida se dissolver de novo aleacutem de que eacute apreendida pela opiniatildeo e pelos sentidos Haacute um terceiro geacutenero que eacute sempre o do lugar185 natildeo admite destruiccedilatildeo e providencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devir eacute acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo186 sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel Quando olhamos para ele como em sonhos dizemos que eacute inevitaacutevel que tudo quanto eacute seja num determinado local e lhes caiba um determinado lugar e que aquilo que natildeo eacute em nenhum siacutetio da Terra nem no ceacuteu natildeo eacute Todas estas coisas e outras que satildeo irmatildes daquelas que pertencem agrave natureza do que eacute privado de sono e eacute verdadeiro por causa de estarmos a sonhar natildeo as conseguimos definir enquanto estamos acordados nem dizer a verdade Eacute que uma imagem que natildeo tem em si mesma nada daquilo a partir do qual se gerou (eacute um simulacro que estaacute sempre a fugir de outra coisa) assenta por estes motivos o seu devir numa outra coisa aderindo assim a uma existecircncia qualquer que ela seja caso contraacuterio ela natildeo seraacute absolutamente nada No que diz respeito ao que realmente eacute o discurso verdadeiro atraveacutes da exactidatildeo vai em seu auxiacutelio porque enquanto alguma coisa for uma outra e essa for outra ainda nenhuma das duas poderaacute nascer na outra pois

185 chocircra A traduccedilatildeo deste termo seraacute sempre insuficiente em virtude das dificuldades hermenecircuticas que esta secccedilatildeo levanta A versatildeo por ldquolugarrdquo deve ser entendida agrave luz do que foi dito sobre a chocircra na Introduccedilatildeo pp 42-44

186 logismocirc tini nothocirc

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uma coisa natildeo pode ser uma soacute e a mesma e ao mesmo tempo ser duas diversas

Esta eacute portanto a explicaccedilatildeo que vai ao encontro do meu voto concedamos uma descriccedilatildeo em jeito de siacutentese o ser o lugar e o devir187 satildeo trecircs coisas distintas de trecircs maneiras diversas e anteriores agrave geraccedilatildeo do ceacuteu A ama do devir188 por ficar humedecida e ardente e receber as formas da terra e do ar e por sofrer todas as impressotildees que as acompanham aparece agrave visatildeo sob muacuteltiplas feiccedilotildees mas por causa de estar plena de propriedades que natildeo satildeo semelhantes nem equilibradas natildeo estando ela proacutepria nada equilibrada a balanccedilar irregularmente para todos os lados eacute sacudida pelos elementos e ao ser movimentada ela proacutepria novamente os sacode Sendo os elementos assim postos em movimento separam-se por serem movimentados de um lado para o outro tal como acontece com as sementes quando satildeo agitadas e peneiradas por meio de joeiras ou de outros instrumentos usados para a depuraccedilatildeo dos cereais as partes densas e pesadas vatildeo para um lado enquanto que as esparsas e leves satildeo transportadas e assentam noutro local Assim os quatro elementos satildeo ao mesmo tempo sacudidos pelo receptaacuteculo Ele proacuteprio produzindo um movimento semelhante ao de um instrumento para sacudir separou ao maacuteximo esses elementos dissemelhantes dos outros e comprimiu o mais que pocircde os semelhantes num soacute por isso uns ocuparam um lugar e os outros outro ainda antes de o universo ser organizado e gerado a partir deles

187 on te kai chocircran kai genesin188 Outra das designaccedilotildees para chocircra

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Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros Como eacute possiacutevel que o deus os tenha composto de forma tatildeo bela e excelente a partir de elementos que natildeo satildeo assim isto seraacute antes de tudo e como sempre o que comeccedilaremos por explicar Agora devo entatildeo tentar esclarecer para voacutes a ordenaccedilatildeo e a geacutenese destes elementos por meio de um discurso insoacutelito mas como graccedilas agrave educaccedilatildeo partilhais dos meacutetodos pelos quais se demonstra o que eacute necessaacuterio ser explicado voacutes ireis acompanhar-me

Em primeiro lugar que o fogo a terra a aacutegua e o ar satildeo corpos isso eacute claro para todos tudo o que eacute da espeacutecie do corpo tem profundidade Mas a profundidade envolve necessariamente e por natureza a superfiacutecie e uma superfiacutecie plana eacute composta a partir de triacircngulos Todos os triacircngulos tecircm origem em dois triacircngulos cada um dos quais com um acircngulo recto e com os outros agudos Destes um tem em cada lado uma parte do acircngulo recto dividido em lados iguais enquanto que o outro tem partes desiguais do acircngulo recto dividas por lados desiguais Este eacute o princiacutepio que supomos aplicar-se ao fogo e aos outros corpos ao seguirmos uma explicaccedilatildeo que combina necessidade e

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verosimilhanccedila quanto aos princiacutepios ainda anteriores agravequeles conhece-os o deus e aqueles de quem entre os homens ele for amigo Eacute necessaacuterio que se diga entatildeo como satildeo esses quatro corpos mais belos dissemelhantes uns em relaccedilatildeo aos outros e que tecircm a capacidade de se gerarem uns aos outros se porventura forem dissolvidos Se o conseguirmos obteremos a verdade sobre a geraccedilatildeo da terra do fogo e dos elementos intermediaacuterios que estatildeo entre eles segundo a proporccedilatildeo E natildeo aceitaremos a ningueacutem a seguinte argumentaccedilatildeo que existem e podem ser observados corpos mais belos do que estes cada um correspondendo a um soacute geacutenero Devemos portanto empenhar-nos em estabelecer uma relaccedilatildeo harmoacutenica entre os quatro geacuteneros de corpos que se distinguem pela beleza e demonstrar que compreendemos satisfatoriamente a sua natureza

Dos dois triacircngulos o isoacutesceles encerra uma soacute espeacutecie ao passo que o escaleno encerra uma infinidade delas entre esta infinidade temos que escolher a mais bela se quisermos comeccedilar pelo siacutetio certo Se algueacutem conseguir referir uma mais bela que tenha escolhido em funccedilatildeo da sua composiccedilatildeo seraacute ele quem prevalece natildeo como antagonista mas sim como aliado Estabeleccedilamos portanto que de entre os vaacuterios triacircngulos haacute um que eacute o mais belo e deixemos de parte os outros

Trata-se daquele a partir do qual se pode constituir um triacircngulo equilaacutetero Dizer por que razatildeo eacute assim exigiria um discurso muito longo poreacutem a quem refute esta afirmaccedilatildeo e descubra que natildeo eacute deste modo seraacute atribuiacutedo o preacutemio com amizade Seleccionemos entatildeo

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dois triacircngulos a partir dos quais o fogo e os outros corpos foram engendrados um eacute isoacutesceles e quanto ao outro o seu lado maior seraacute sempre o quadrado do triplo do mais pequeno189 Agora devemos esclarecer melhor o que anteriormente dissemos de forma nada clara Parecia-nos que os quatro geacuteneros de corpos tinham sido todos gerados uns pelos outros mas isso eacute uma concepccedilatildeo que natildeo estaacute correcta pois em boa verdade os quatro geacuteneros satildeo gerados a partir dos triacircngulos que elegecircramos trecircs dos quais a partir do uacutenico que tem os lados desiguais e o quarto foi o uacutenico harmonicamente constituiacutedo a partir do triacircngulo isoacutesceles Portanto natildeo eacute possiacutevel que todos eles se decomponham uns nos outros que poucos grandes se gerem a partir de muitos pequenos e vice-versa Todavia trecircs podem visto que todos eles provecircm de um soacute triacircngulo se os maiores forem decompostos muitos pequenos seratildeo compostos a partir deles recebendo o aspecto que eacute adequado a cada um e quando um grande nuacutemero de pequenos se difunde pelos triacircngulos sendo gerado um nuacutemero uacutenico num uacutenico todo ele produziraacute uma outra forma uacutenica e grande Eis o que fica dito acerca da sua geraccedilatildeo reciacuteproca O tipo de forma em que cada um deles foi gerado e a partir de que combinaccedilotildees numeacutericas constituiraacute o objecto da exposiccedilatildeo que se segue

Comeccedilaremos pela primeira espeacutecie constituiacuteda como a mais pequena o seu elemento eacute o triacircngulo cujo comprimento da sua hipotenusa eacute o dobro do do lado

189 A noccedilatildeo de ldquoquadradordquo isto eacute x2 estaacute contida no termo dynamis tambeacutem com este sentido aparece no Teeteto (147d)

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mais pequeno190 Se justapusermos dois destes triacircngulos pela sua diagonal fazendo isto trecircs vezes fixando no mesmo ponto ndash que serviraacute de centro ndash as diagonais e os lados mais pequenos seraacute gerado um uacutenico triacircngulo equilaacutetero a partir de um nuacutemero de seis triacircngulos Quatro desses triacircngulos constituiacutedos por quatro lados iguais unidos a trecircs acircngulos planos191 formam um uacutenico acircngulo soacutelido192 que eacute gerado imediatamente a seguir ao mais obtuso dos acircngulos planos Uma vez formados quatro acircngulos desse tipo estaacute composta a primeira figura soacutelida193 que divide um todo esfeacuterico em partes iguais e semelhantes A segunda figura eacute formada a partir dos mesmos triacircngulos combinando-se oito triacircngulos equilaacuteteros que produzem um soacute acircngulo soacutelido a partir de quatro acircngulos planos e quando se geram seis acircngulos deste tipo o segundo corpo194 estaacute deste modo terminado A terceira figura eacute constituiacuteda pela conjunccedilatildeo de cento e vinte triacircngulos elementares e de doze acircngulos soacutelidos cada um dos quais envolvido por cinco triacircngulos planos equilaacuteteros e eacute gerada com

190 Triacircngulo rectacircngulo escaleno191 Isto eacute trecircs acircngulos de 60o192 Acircngulo raso de 180o193 Tetraedro regular (piracircmide) Comeccedila aqui a descriccedilatildeo

da formaccedilatildeo dos cinco soacutelidos elementares que se combinam na esfera final Mais tarde Euclides partiraacute deste passo do Timeu para abordar estas figuras Dedica-lhes todo o Livro XIII onde descreve as suas propriedades e constituiccedilatildeo bem como as caracteriza matematicamente determinando a proporccedilatildeo existente entre cada uma delas e a esfera Conclui que natildeo existe mais nenhum soacutelido regular aleacutem destes

194 Octaedro regular

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vinte bases que satildeo triacircngulos equilaacuteteros195 Engendrados estes soacutelidos o outro triacircngulo elementar foi deixado de parte e o triacircngulo isoacutesceles engendrou a natureza do quarto constituindo quatro triacircngulos que coincidiram no centro os seus acircngulos rectos formando um uacutenico quadrilaacutetero equilateral Quando foram conjugados seis deste tipo produziu oito acircngulos soacutelidos sendo cada um deles constituiacutedo pela harmonia de trecircs acircngulos planos rectos a figura do corpo constituiacutedo foi a do cubo que tem seis faces planas quadrangulares e equilaterais196 Visto que havia ainda uma quinta combinaccedilatildeo197 o deus utilizou-a para pintar animais no universo198

Quem considerar tudo isto de forma adequada pode encontrar dificuldades quanto ao que se deve dizer

195 Icosaedro regular196 Hexaedro regular197 Dodecaedro Esta figura geomeacutetrica constituiacuteda por 12

faces sendo cada uma delas um pentaacutegono (cf Euclides 1128) aproxima-se bastante da forma da esfera Sabendo que no Feacutedon (110b) o formato esfeacuterico da Terra eacute comparado agraves lsquodoze esferasrsquo (uma espeacutecie de bolas feitas com doze pedaccedilos de pele cosidos uns com os outros) e que os siacutembolos do Zodiacuteaco satildeo tambeacutem 12 e representados de forma geometricamente semelhante a relaccedilatildeo parece-nos oacutebvia na verdade Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1003C-D) citando este passo do Timeu diz que a representaccedilatildeo do Zodiacuteaco se deve precisamente a esta relaccedilatildeo

198 Eacute bastante complicado apurar o sentido exacto de diazocircgrapheocirc pois o elemento zocirc- ainda que originalmente siginificasse ldquoanimalrdquo pelo uso passou tambeacutem a ter o sentido de ldquofigurardquo daiacute que este verbo possa tambeacutem significar ldquopintar de vaacuterias coresrdquo Contudo sabendo que o universo visto a olho nu como era observado no tempo de Platatildeo natildeo apresenta quaisquer variaccedilotildees cromaacuteticas e de acordo com o que dissemos na nota anterior pensamos que este sentido de ldquopintar animaisrdquo estaacute relacionado com o Zodiacuteaco maioritariamente formado por animais

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se haacute uma infinidade de mundos ou em nuacutemero limitado Pode considerar que dizer que haacute uma infinidade de universos eacute um parecer de algueacutem que eacute inexperiente num um assunto sobre o qual deveria ser experiente199 mas entatildeo o que eacute adequado dizer em abono da verdade Que haacute soacute um mundo ou que haacute cinco ndash eacute uma questatildeo em que eacute razoaacutevel que possamos ter muita dificuldade Ora bem em nosso parecer de acordo com o discurso verosiacutemil o deus indica que um soacute mundo foi gerado poreacutem outra pessoa ao analisar outros pressupostos teraacute outra opiniatildeo Mas deixemos agora esse assunto e distribuamos os geacuteneros que foram gerados pelo nosso discurso em fogo terra aacutegua e ar Atribuamos agrave terra a forma cuacutebica pois a terra dos quatro elementos eacute o que tem mais dificuldade em mover-se e dos corpos o mais adequado para ser moldado ndash inevitavelmente e com certeza que foi gerado deste modo para que tivesse as bases mais estaacuteveis De entre os triacircngulos que estabelecemos no princiacutepio200 a base de lados iguais eacute mais estaacutevel de acordo com a natureza do que a de lados desiguais e quanto agrave superfiacutecie quadrangular equilateral composta a partir de cada um daqueles201 estaacute assente de um modo necessariamente mais estaacutevel em relaccedilatildeo quer agraves partes quer ao todo do que o triacircngulo equilaacutetero Por isso manteremos a salvo o discurso verosiacutemil se atribuirmos esta forma agrave terra e das que restam a forma mais difiacutecil de movimentar agrave aacutegua a que se movimenta melhor ao

199 Note-se o jogo de palavras provocado entre apeiros (ldquoilimitadordquo) empeiros (ldquoexperienterdquo) e apeiros (ldquoinexperienterdquo)

200 Cf supra 53c-55c201 Triacircngulos rectacircngulo isoacutesceles e escaleno

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fogo e a intermeacutedia ao ar o corpo mais pequeno ao fogo o maior agrave aacutegua e o meacutedio ao ar o que eacute mais agudo ao fogo o segundo mais agudo ao ar e o terceiro agrave aacutegua Considerando todos estes corpos aquele que tem as bases mais pequenas seraacute por natureza necessariamente o que melhor se movimenta pois de todos eles eacute absolutamente o mais pungente e mais agudo e ainda o mais leve pelo facto de ser constituiacutedo por um menor nuacutemero de partes iguais O segundo corpo deveraacute vir em segundo lugar de acordo com estes pressupostos e o terceiro em terceiro Portanto de acordo com o raciociacutenio correcto e verosiacutemil estabeleccedilamos que a figura soacutelida da piracircmide eacute o elemento que gerou o fogo e a sua semente digamos que na ordem de geraccedilatildeo o ar eacute o segundo e a aacutegua o terceiro Eacute necessaacuterio ter em mente que todos os corpos satildeo de tal forma pequenos que tomando cada um deles de acordo com o seu geacutenero nenhum pode ser observado por noacutes por causa da sua pequenez mas soacute satildeo visiacuteveis quando reunidos em grande nuacutemero numa massa consistente E quanto agraves proporccedilotildees que determinam as suas quantidades aos movimentos e agraves outras propriedades em geral eacute loacutegico que o deus tanto quanto a natureza da Necessidade cedeu ao deixar-se persuadir de bom grado harmonizou isto de acordo com a proporccedilatildeo de modo a que em cada caso tudo fosse produzido por ele com precisatildeo

A partir de tudo quanto acabaacutemos de dizer sobre os geacuteneros eis o que deve ter ocorrido de acordo com o maacuteximo de verosimilhanccedila quando a terra encontra o fogo e eacute dividida pelo que nela haacute de cortante pode ser

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arrastada por dissoluccedilatildeo no proacuteprio fogo ou ao deparar-se com uma massa de ar ou de aacutegua ateacute que as suas partes se reencontrem e se harmonizem novamente umas com as outras tornando-se terra outra vez ndash pois jamais pode passar a outra espeacutecie Mas quando a aacutegua eacute dividida pelo fogo ou ateacute pelo ar eacute possiacutevel que decirc origem a um corpo uacutenico constituiacutedo de fogo e a dois de ar a partir da dissoluccedilatildeo de uma partiacutecula de ar os seus segmentos podem dar origem a dois corpos de fogo E por outro lado quando o fogo eacute envolvido em ar em aacutegua ou numa porccedilatildeo de terra posto em movimento pelos elementos que o arrastam entra em conflito com eles eacute castigado e desfeito em pedaccedilos Entatildeo dois corpos de fogo combinam-se num elemento de ar e quando o ar eacute dominado e cortado em pedaccedilos a partir de duas partes e meia uma forma de ar eacute compactada num soacute corpuacutesculo de aacutegua

Mas calculemos novamente estas questotildees do seguinte modo logo que um dos outros elementos ao ser envolvido em fogo e cortado pela agudeza dos seus acircngulos e das suas arestas eacute constituiacutedo na natureza do fogo o corte acaba Eacute que cada geacutenero eacute semelhante e idecircntico a si proacuteprio e natildeo eacute possiacutevel produzir qualquer alteraccedilatildeo num outro que tem uma condiccedilatildeo semelhante agrave sua nem dele sofrer nenhuma mas se se tornar num outro geacutenero haveraacute um mais fraco a combater com um mais forte e natildeo paacutera de ser dissolvido Quando as partiacuteculas mais pequenas e em menor nuacutemero satildeo envolvidas pelas maiores e mais numerosas satildeo dissolvidas e extinguem-se mas se se

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deixarem constituir na forma do elemento dominante param de se extinguir e do fogo eacute gerado ar e do ar eacute gerada aacutegua Todavia se enquanto os corpuacutesculos se estiverem a unir num todo uma massa de outros elementos entrar em conflito com eles natildeo param de se dissolver ateacute que sejam completamente afastados e dissolvidos refugiando-se junto do que eacute seu congeacutenere ou sendo vencidos se convertam numa massa uacutenica semelhante agrave que os dominou e permaneccedilam com ela Decerto que estas impressotildees originam mudanccedilas de lugar eacute que as massas de cada geacutenero estatildeo separadas cada uma no siacutetio que lhe compete em virtude do movimento do receptaacuteculo mas as que por vezes se tornam dissemelhantes de si proacuteprias e semelhantes a outras satildeo levadas por via das agitaccedilotildees para o lugar daquelas a que se tornaram semelhantes

Eis as causas por que foram gerados os corpos primeiros e puros mas quanto ao motivo por que nascerem outros geacuteneros nas suas formas devemos apontar como causa a constituiccedilatildeo dos elementos de cada corpo pois cada uma delas natildeo foi feita desde o princiacutepio de modo a que o seu triacircngulo fosse uacutenico e de um tamanho soacute ndash jaacute que havia uns mais pequenos e outros maiores ndash com um nuacutemero de variaccedilotildees tatildeo grande quanto o de geacuteneros que haacute dentro das formas Por isso eacute que quando esses triacircngulos se misturam entre si ou com outros decorre daiacute uma variedade infinita Essa variedade deve merecer a atenccedilatildeo daqueles que tencionam fazer uso de um discurso verosiacutemil sobre a natureza

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No que respeita ao movimento e ao repouso se natildeo chegarmos a um acordo sobre a forma e em que condiccedilotildees se geram haveraacute vaacuterios impedimentos ao raciociacutenio que se segue Decerto que jaacute se falou sobre este assunto202 mas acrescentemos ainda o seguinte de modo algum o movimento consente existir na uniformidade Eacute difiacutecil ndash ou melhor impossiacutevel ndash haver um movido203 sem um movente204 ou um movente sem um movido natildeo eacute possiacutevel haver movimento sem a existecircncia destes termos mas eacute impossiacutevel que de algum modo eles sejam uniformes Assim estabeleccedilamos definitivamente que o repouso existe na uniformidade205 e o movimento na natildeo-uniformidade a causa da natureza do que eacute natildeo-uniforme eacute a desigualdade Noacutes jaacute discorremos sobre a geraccedilatildeo da desigualdade206 mas natildeo dissemos como se separaram os elementos uns dos outros de acordo com o seu geacutenero e desse modo cessaram de se mover e passar uns pelos outros Eis o que diremos novamente a oacuterbita do universo visto que engloba todos os geacuteneros e eacute circular tende por natureza a querer concentrar-se em si mesma e comprime todas as coisas natildeo permitindo que lugar algum permaneccedila vazio Foi por isso que o fogo principalmente penetrou em tudo e em seguida o ar que eacute por natureza o segundo em subtileza e assim sucessivamente para os restantes De facto os corpos gerados a partir de partiacuteculas maiores satildeo os que deixam

202 Cf supra 52d-53a 57a-c203 to kinecircsomenon204 to kinecircson205 stasin men en omalotecircti206 Cf supra 57c-d

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maiores interstiacutecios durante a sua composiccedilatildeo enquanto que os mais pequenos deixam interstiacutecios muito pequenos O processo de compressatildeo impele os mais pequenos para os interstiacutecios dos maiores Quando os pequenos se encontram estabelecidos entre os grandes separando entre si os maiores e os maiores comprimem os mais pequenos todos satildeo levados para cima e para baixo em direcccedilatildeo aos lugares que lhes satildeo proacuteprios Eacute que cada um ao mudar de tamanho eacute levado igualmente a mudar de posiccedilatildeo Eacute deste modo e por estes motivos que se gera e perdura a natildeo-uniformidade fornecendo a esses corpos este movimento que existe sempre de forma contiacutenua

Aleacutem dos mencionados eacute necessaacuterio ter em conta que existem outros geacuteneros de fogo como a chama e aquilo que emana da chama que natildeo queima mas fornece aos olhos a luz e aquilo que quando a chama se extingue dela subsiste nos corpos inflamados O mesmo se aplica ao ar a que naquela forma mais pura nos referimos com o termo ldquoeacuteterrdquo enquanto que para mais turva designamos por ldquonevoeirordquo e ldquoescuridatildeordquo existindo tambeacutem noutras formas que natildeo tecircm nome e que satildeo geradas por causa da desigualdade dos triacircngulos Quanto aos tipos de aacutegua em primeira instacircncia dividem-se em dois geacuteneros o liacutequido e o passiacutevel de se liquefazer O liacutequido que tem partes dos mais pequenos compostos de aacutegua (os quais satildeo desiguais) eacute moviacutevel por si mesmo ou por outro elemento em virtude da sua irregularidade e da forma da sua figura Por outro lado o que eacute feito a partir de compostos grandes e uniformes eacute mais estaacutevel do que

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aquele e mais pesado pois foi compactado por causa da uniformidade Mas sob efeito do fogo que o penetra e dissolve perde a uniformidade e depois de a perder participa mais do movimento ao tornar-se facilmente moviacutevel eacute impregnado pelo ar circundante e espalhado sobre a terra Cada uma destas impressotildees recebeu um nome ldquoderreterrdquo para a decomposiccedilatildeo das suas massas e ldquofluirrdquo para a sua dispersatildeo sobre a terra Mas quando o fogo se precipita novamente e de forma espontacircnea visto que natildeo se precipita para o vazio o ar circundante repele a massa huacutemida que ainda eacute faacutecil de mover em direcccedilatildeo aos lugares que o fogo ocupava obrigando-a a misturar-se com ela proacutepria Sendo o liacutequido assim comprimido recupera a sua homogeneidade visto que o fogo que criara esta irregularidade tinha-se retirado assim eacute restabelecido ao seu estado original E porque o afastamento do fogo eacute ldquocongelamentordquo a constriccedilatildeo subsequente ao seu afastamento significa o que chamamos ldquoestado soacutelidordquo Dentre todos os tipos de aacutegua a que chamaacutemos ldquopassiacutevel de se liquefazerrdquo uma que eacute muito densa por ser gerada atraveacutes de partiacuteculas muito finas e uniformes (uacutenica na sua espeacutecie) foi tingida com uma cor brilhante e amarela e que eacute o bem mais precioso o ouro ndash filtrado atraveacutes das pedras solidificou-se Quanto ao rebento do ouro que eacute muito duro em virtude da sua densidade e de cor negra eacute chamado ldquoadamanterdquo207

207 adamas Pelo facto de lhe ser atribuiacuteda uma cor negra e ser chamada ldquorebento do ourordquo esta misteriosa substacircncia tambeacutem referida no Poliacutetico (303e) e na Repuacuteblica (616c) corresponderaacute muito provavelmente agrave hematite Sobre este assunto vide Lopes (2009 pp 29-30)

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Afim ao ouro por causa das partiacuteculas mas tendo mais do que uma espeacutecie mais compacto em densidade do que o ouro e com pequenas e poucas partiacuteculas de terra de tal modo que eacute mais duro embora seja mais leve por ter em si interstiacutecios maiores eacute o geacutenero do cobre ndash uma combinaccedilatildeo gerada a partir de aacuteguas liacutempidas e densas Quanto agrave porccedilatildeo de terra aiacute misturada logo que se torna a separar deste com o passar do tempo torna-se visiacutevel por si soacute e gera-se aquilo a que se chama ldquoverdeterdquo

No que respeita agraves outras substacircncias deste tipo natildeo seraacute complicado discorrer sobre elas se investigarmos a modalidade da narrativa verosiacutemil Algueacutem que ponha de parte os discursos relativos ao que eacute eternamente e analise o verosiacutemil que diz respeito ao devir obteacutem como que um prazer de que natildeo se arrepende e produziraacute na sua vida uma recriaccedilatildeo comedida e prudente Por isso deixemos tambeacutem noacutes agora aqueles assuntos e prossigamos a buscar a verosimilhanccedila nestas questotildees e do seguinte modo

A aacutegua misturada com fogo toda ela fina e liacutequida em virtude do seu movimento e do seu percurso eacute chamada ldquoliacutequidardquo208 Ela rola macia sobre a terra e por as suas bases menos estaacuteveis do que as da terra cederem a aacutegua quando eacute separada do fogo e do ar fica sozinha e eacute mais uniforme e comprimida sobre si mesma por aquilo que dela sai Solidificada deste modo a que eacute mais afectada pelo que estaacute por cima da terra chama-se ldquogranizordquo e sobre a terra chama-se ldquogelordquo

208Caracterizaccedilatildeo tipicamente homeacuterica do percurso da aacutegua (Odisseia 371)

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aquela que ficou menos afectada se natildeo for mais do que meio congelada chama-se ldquoneverdquo e se condensar sobre a terra a partir do orvalho chama-se ldquogeadardquo No que respeita agraves espeacutecies de aacutegua mais numerosas por estarem misturadas umas com as outras ndash a todo esse geacutenero por ter sido filtrado pelas plantas da terra chamamos sucos ndash todas elas por causa das misturas tecircm dissemelhanccedilas Muitos geacuteneros seus foram produzidos que ficaram sem nome Mas haacute quatro espeacutecies que contecircm fogo tendo sido as mais conspiacutecuas as que receberam nomes a que consegue aquecer tanto a alma como o corpo eacute o vinho a que eacute suave e divide o raio visual e por estas razotildees eacute brilhante e reluzente para a visatildeo e tem uma aparecircncia lustrosa eacute o oacuteleo o pez o oacuteleo de riacutecino o proacuteprio azeite e todos os outros produtos que tecircm esta mesma propriedade E o que tem a capacidade de dissolver nos limites da sua natureza as partes compactas agrave volta da boca proporcionando a doccedilura atraveacutes dessa propriedade tem a designaccedilatildeo geral de ldquomelrdquo a espeacutecie que dissolve a carne por queimaacute-la um geacutenero espumoso que estaacute aparte de todos os outros sucos recebeu o nome ldquofermentordquo

Quanto agraves espeacutecies de terra a que foi filtrada pela aacutegua torna-se num corpo pedregoso do seguinte modo Quando a aacutegua que estava misturada se separa durante a mistura torna-se numa espeacutecie de ar transformada em ar vai disparada para o lugar que lhe eacute proacuteprio Como natildeo havia nenhum vazio em redor deles empurrou o ar circundante Visto que ele eacute pesado quando eacute empurrado e espalhado na massa da terra comprime-a

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atirando-a com forccedila para os locais de onde saiacutera o novo ar comprimida pelo ar e insoluacutevel pela aacutegua209 a terra constitui a pedra que eacute mais bela quando eacute brilhante (pois tem origem em partes iguais e uniformes) e mais feia quando acontece o contraacuterio Quando toda a humidade eacute retirada por causa da rapidez do fogo e se constitui um corpo mais seco do que a pedra gera-se aquele geacutenero a que chamamos ldquobarrordquo Mas acontece que se restar humidade a terra torna-se passiacutevel de fusatildeo por acccedilatildeo do fogo e quando arrefece gera-se uma pedra de cor negra210 Restam dois geacuteneros que igualmente resultam de uma mistura com muita aacutegua Sendo constituiacutedos por partes mais pequenas de terra e ambos salgados tornam-se semicondensados e novamente dissoluacuteveis pela aacutegua um eacute o geacutenero do salitre que limpa o azeite e a terra o outro que se mistura harmoniosamente em combinaccedilotildees de sabores eacute o sal que segundo a tradiccedilatildeo eacute considerado um corpo amado pelos deuses211 Quanto aos que satildeo compostos de ambos soluacuteveis natildeo em aacutegua mas sim no fogo solidificam-se do seguinte modo e pelos seguintes motivos nem o fogo nem o ar dissolvem as massas de terra pois as suas partiacuteculas satildeo por natureza mais pequenas do que os interstiacutecios da estrutura da terra e como haacute muito espaccedilo por onde podem passar sem ser pela forccedila permitem que ela fique

209 Questatildeo que seraacute detalhadamente analisada por Aristoacuteteles (Meteoroloacutegicos 383b19-sqq)

210 A lava depois de seca211 Esta concepccedilatildeo remonta a Homero Plutarco em No

Banquete (684F-sqq) citando este passo do Timeu dedica-lhe uma quaestio inteira

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indissoluacutevel e indissociaacutevel por outro lado as partiacuteculas de aacutegua que satildeo por natureza maiores forccedilam a passagem e ao fazecirc-lo dissociam a terra dissolvendo-a De facto quando a terra natildeo se solidifica pela forccedila soacute a aacutegua a dissolve deste modo mas se se solidificar dessa forma nada a natildeo ser o fogo a pode dissolver pois natildeo resta entrada para nada a natildeo ser para o fogo Quanto agrave estrutura da aacutegua extremamente forte soacute o fogo a pode destruir poreacutem quando enfraquece ambos os elementos a podem destruir o fogo pelos triacircngulos e o ar pelos interstiacutecios Quanto ao ar comprimido pela forccedila nada o dissolve a natildeo ser que dissolva o elemento propriamente dito e quando foi comprimido sem forccedila soacute o fogo o dissolve No que respeita aos corpos misturados a partir de terra e de aacutegua enquanto a aacutegua ocupar os interstiacutecios da terra que satildeo comprimidos pela forccedila as partes de aacutegua que vecircm do exterior natildeo tecircm entrada pelo que correm em torno de toda a massa sem que ela permita ser dissolvida mas as partes do fogo entram pelos interstiacutecios de aacutegua e o que a aacutegua faz agrave terra o fogo o faz ao ar ndash satildeo as uacutenicas causas que levam este corpo composto a dissolver-se e a fluir Acontece que entre estes seres uns tecircm menos aacutegua do que terra geacutenero a que diz respeito todo o tipo de vidro e as pedras a que chamamos ldquofundiacuteveisrdquo mas outros tecircm mais aacutegua satildeo todos os corpos constituiacutedos de cera e incenso

Estatildeo entatildeo mais ou menos demonstradas as variedades de espeacutecies em funccedilatildeo das figuras combinaccedilotildees e alteraccedilotildees de uns para os outros Temos agora que tentar esclarecer por que causas se geram essas

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impressotildees Primeiro eacute obrigatoacuterio que pressuponhamos sempre nos nossos discursos a existecircncia de sensaccedilotildees mesmo que ainda natildeo tenhamos discorrido sobre o que respeita agrave carne e agrave geraccedilatildeo da carne212 nem sobre a parte mortal da alma213 Acontece que natildeo eacute possiacutevel falar-se disso satisfatoriamente sem que se aborde as impressotildees sensiacuteveis nem falar daquela separadamente destas todavia tratar dos dois assuntos ao mesmo tempo eacute quase impossiacutevel Assim temos que pressupor que um dos dois jaacute foi tratado anteriormente mas regressaremos mais tarde ao que supusemos tratado

Portanto para que falemos sobre as propriedades a seguir ao que as gera tenhamos em conta o que respeita agrave existecircncia do corpo e da alma Em primeiro lugar procuremos saber por que dizemos que o fogo eacute quente tendo em conta que ele gera dissociaccedilatildeo e corte no nosso corpo Todos noacutes temos mais ou menos noccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo que provoca eacute como qualquer coisa aguda no que trata agrave fineza das suas arestas agrave agudeza dos seus acircngulos agrave pequenez das suas partiacuteculas e agrave rapidez dos seus movimentos que em todos os sentidos fazem do fogo algo veemente e cortante que corta de forma pungente o que quer que lhe apareccedila devemos consideraacute-las relembrando a origem da sua figura e sobretudo que essa e natildeo outra a natureza que divide os nossos corpos e os fragmenta em pequenas partes eacute justamente o que deu o nome e a sensaccedilatildeo ao que noacutes agora chamamos ldquoquenterdquo

212 Vide infra 73b-sqq213 Vide infra 69a-sqq

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O contraacuterio disto eacute evidente todavia que natildeo fique privada de explicaccedilatildeo Dentre os liacutequidos que circundam o corpo quando aqueles que tecircm partiacuteculas maiores se aproximam para expelirem os de partiacuteculas mais pequenas (como natildeo lhes eacute possiacutevel ocupar os lugares deles comprimem a humidade que haacute em noacutes) fazem uma coisa inamoviacutevel a partir de uma que eacute dotada de um movimento irregular atraveacutes de homogeneizaccedilatildeo compressatildeo e solidificaccedilatildeo Poreacutem aquilo que eacute unido de forma contraacuteria agrave natureza luta de acordo com a sua natureza para se afastar no sentido contraacuterio que eacute o seu estado proacuteprio A este embate e a este abalo pusemos os nomes ldquotremorrdquo e ldquoarrepiordquo enquanto que esta impressatildeo em geral e aquilo que a provoca tem o nome ldquofriordquo

Duro eacute aquilo a que a nossa carne cede e mole eacute aquilo que cede agrave carne determinam-se relativamente uns aos outros Cede aquilo que estaacute assente numa base pequena Aquele que tem uma base de quadrados estando assente firmemente eacute a forma mais resistente porque pode reunir grande densidade e tem muita firmeza

Para que se explique com o maacuteximo de clareza o ldquopesadordquo e o ldquoleverdquo examinemo-los juntamente com aquilo a que chamamos ldquopor baixordquo e ldquopor cimardquo Natildeo eacute nada acertado pensar que haacute por natureza dois lugares determinados e opostos que dividem o universo em duas partes a de baixo para onde eacute levado tudo quanto tenha uma massa corpoacuterea e a de cima para onde tudo se dirige contrariado Sabendo que o ceacuteu tem todo ele uma forma esfeacuterica todos os pontos que satildeo extremos

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por estarem agrave mesma distacircncia do centro devem ser em igual medida extremidades e quanto ao centro afastado agrave mesma distacircncia das extremidades eacute forccediloso acreditar que seja o oposto de todas as extremidades Visto que o mundo eacute por natureza formado deste modo qual dos pontos se diga estar no alto ou em baixo para que natildeo pareccedila com justiccedila que se estaacute a aplicar designaccedilotildees nada adequadas Com efeito natildeo eacute certo dizer que o local que estaacute no centro do mundo seja por natureza em baixo ou em cima mas sim no centro jaacute a periferia natildeo estaacute no centro nem tem em si nenhuma parte mais diferenciada do que outra em relaccedilatildeo ao centro ou a qualquer outro dos opostos Portanto que tipo de designaccedilotildees contraacuterias se poderaacute aplicar agravequilo que eacute em si mesmo semelhante em todos os aspectos e como se pode acreditar que estaacute a falar correctamente Se houver um soacutelido em equiliacutebrio no centro do universo de modo algum seraacute levado em direcccedilatildeo a qualquer das extremidades em virtude de serem semelhantes em todas as direcccedilotildees Mas se algo andasse em ciacuterculos agrave volta dele achar-se-ia frequentemente nos antiacutepodas e referir-se-ia ao mesmo ponto como ldquoem baixordquo e ldquoem cimardquo214 Portanto se o universo eacute todo esfeacuterico tal como acabo de dizer natildeo faz sentido dizer que um siacutetio eacute em baixo e outro eacute em cima de onde provecircm estas designaccedilotildees e aquilo a que elas se aplicam por causa das quais nos acostumaacutemos a descrever o ceacuteu como um todo e a dividi-lo deste modo eis aquilo em que devemos estar de acordo ao supormos o que se segue

214 No Sobre o Ceacuteu (42 308a34-b28) Aristoacuteteles parafraseia esta secccedilatildeo do texto para especular sobre a esfericidade da Terra e a sua posiccedilatildeo central no universo

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No siacutetio do universo de que a natureza do fogo mais participa e onde haacute mais quantidade acumulada daquilo a que ele se dirige se algueacutem aiacute se aproximasse dele supondo que tinha esse poder e tirasse partes de fogo para as pesar numa balanccedila e erguendo a balanccedila arrastasse agrave forccedila o fogo para o ar que lhe eacute dissemelhante eacute evidente que as partes mais pequenas cederiam mais facilmente do que as maiores ndash eacute que quando dois corpos satildeo levantados por uma soacute forccedila torna-se inevitaacutevel que o mais pequeno anua mais facilmente agrave forccedila e o maior menos pois resiste ateacute um certo ponto Ao maior que eacute levado para baixo chamemos ldquopesadordquo e ao pequeno que eacute levado para cima chamemos ldquoleverdquo Eacute forccediloso que noacutes sejamos levados a fazer isto mesmo em relaccedilatildeo a este local Por andarmos sobre a terra separamos geacuteneros teacuterreos agraves vezes ateacute a proacutepria terra e contra a natureza atiramo-los com violecircncia para o ar que eacute dissemelhante pois ambos se mantecircm naquilo de que satildeo congeacuteneres mas o mais pequeno acompanha mais facilmente o arrastamento para o dissemelhante do que o maior Por isso lhe atribuiacutemos a propriedade ldquoleverdquo a ele e ldquoem cimardquo ao local para onde foi arrastado e ao oposto ldquopesadordquo e ldquoem baixordquo Consequentemente eacute inevitaacutevel que essas propriedades se relacionem umas com as outras de maneiras diversas em virtude de as massas destes geacuteneros ocuparem um local oposto umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash se compararmos o que eacute leve num lugar com o que eacute leve no lugar oposto o que eacute pesado com aquilo que eacute pesado o que estaacute em baixo com o que estaacute em baixo o que estaacute em cima com o

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que estaacute em cima descobriremos que todos se tornam e satildeo opostos obliacutequos e em tudo diferentes uns dos outros Mas o aspecto particular que devemos ter em mente em relaccedilatildeo a todos eles eacute que para cada corpo eacute o trajecto que conduz ao congeacutenere que torna ldquopesadordquo aquele que o percorre e ldquoem baixordquo o lugar para onde se dirige e o contraacuterio eacute vaacutelido para os opostos destes215 Estatildeo estabelecidas as causas que dizem respeito a estas propriedades No que respeita agrave causa da impressatildeo do ldquolisordquo e do ldquorugosordquo qualquer pessoa pode percebecirc-la e explicaacute-la a outra pessoa um resulta da dureza misturada com a irregularidade o outro eacute produzido pela homogeneidade combinada com densidade

No que respeita agraves questotildees que satildeo comuns a todo o corpo resta uma importantiacutessima que eacute a causa dos prazeres e das dores devidos agraves impressotildees sobre as quais temos discorrido que por receberem as sensaccedilotildees atraveacutes de todas as partes do corpo trazem consigo mesmas dor e prazer simultaneamente216 Tomemos pois as causas que tecircm que ver com todas as impressotildees sensiacuteveis ou natildeo sensiacuteveis relembrando a distinccedilatildeo que estabelecemos anteriormente217 entre a natureza do que se move facilmente e do que se move a custo Eacute de acordo com ela que devemos procurar tudo aquilo que temos a intenccedilatildeo de perceber

Quando ao que por natureza se movimenta facilmente sobreveacutem uma impressatildeo por mais

215 Isto eacute aplica-se o mesmo princiacutepio agraves noccedilotildees ldquoleverdquo e ldquoem cimardquo

216 Sobre a relaccedilatildeo entre prazer e dor vide Feacutedon 60b-c Filebo 51a-sqq Leis 732d-734e Repuacuteblica 584b

217Cf supra 55e-56a

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brevemente que seja as suas partiacuteculas diferentes espalham-se em ciacuterculo pelas outras partiacuteculas produzindo nelas essa mesma impressatildeo ateacute que ao atingirem o discernimento218 datildeo a conhecer a propriedade do agente Pelo contraacuterio o que eacute estaacutetico e natildeo tem nenhum movimento em ciacuterculo apenas sofre a impressatildeo e natildeo movimenta nenhuma das partiacuteculas circundantes de tal forma que em virtude de as partiacuteculas natildeo a transmitirem umas agraves outras a impressatildeo inicial permanece neles imoacutevel sem que esteja na totalidade do ser-vivo nem proporcione nenhuma sensaccedilatildeo agrave parte afectada Isto eacute o que acontece aos ossos aos cabelos e a todas as outras partes maioritariamente teacuterreas que temos em noacutes Mas o que dissemos anteriormente tem que ver sobretudo com a visatildeo e com a audiccedilatildeo porque eacute o fogo e o ar que exercem sobre eles uma influecircncia mais importante Quanto ao prazer e agrave dor eacute necessaacuterio que tenhamos em mente o seguinte uma impressatildeo violenta e em desacordo com a natureza que se gera em noacutes de forma suacutebita eacute dolorosa mas pelo contraacuterio o regresso ao estado natural de forma suacutebita eacute apraziacutevel jaacute uma impressatildeo moderada e faseada natildeo eacute sentida aplicando-se o oposto aos seus opostos Mas todas as impressotildees que se geram com facilidade satildeo extremamente sensiacuteveis poreacutem delas natildeo participam nem dor nem prazer como por exemplo as impressotildees que dizem respeito agrave visatildeo em si que como foi dito anteriormente eacute um corpo que durante o dia nos eacute aparentado De facto os cortes as queimaduras e tudo

218 to phronimon

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o resto que a afectam natildeo lhes provocam dor nem prazer quando regressa novamente agrave sua forma original embora cause sensaccedilotildees intensas e manifestas em funccedilatildeo das impressotildees que sofra e dos corpos com que de certo modo contacta quando contra eles colide pois natildeo haacute qualquer violecircncia na sua dissociaccedilatildeo e associaccedilatildeo Mas os corpos com partes maiores que cedem com relutacircncia ao que age sobre eles e transmitem os movimentos ao todo sofrem prazer e dor ndash dor quando satildeo alterados prazer quando regressam novamente ao estado original Todos os que se desvanecem a si proacuteprios gradualmente e se esvaziam mas que se enchem de forma suacutebita e em larga escala tornam-se insensiacuteveis quando se esvaziam e sensiacuteveis quando se enchem e natildeo provocam dores agrave parte mortal da alma mas sim prazeres intensos Isto eacute evidente em relaccedilatildeo a substacircncias fragrantes219 Mas todos os que satildeo alterados de forma suacutebita e regressam gradualmente e com relutacircncia ao seu estado original proporcionam sensaccedilotildees absolutamente contraacuterias agraves que atraacutes referimos eacute evidente que eacute o que acontece em relaccedilatildeo agraves queimaduras e aos cortes no corpo

Eis uma explicaccedilatildeo razoaacutevel das impressotildees comuns a todo o corpo e dos nomes que foram dados aos agentes que as geram Devemos agora tentar falar tanto quanto nos for possiacutevel do que se gera nas partes especiacuteficas do nosso corpo das suas impressotildees e mais uma vez das causas dos seus agentes Primeiro devemos esclarecer na medida do possiacutevel tudo quanto deixaacutemos

219 Semelhante ideia surge tambeacutem no Filebo (51b) e na Repuacuteblica (584b)

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por dizer nos discursos anteriores acerca dos sucos220 e das impressotildees particulares da liacutengua Eacute evidente que tambeacutem estas tal como outras se geram por meio de algumas associaccedilotildees e dissociaccedilotildees mas aleacutem disso estatildeo mais do que qualquer outra coisa relacionadas com a rugosidade e a lisura Com efeito todas as partiacuteculas terrosas que entram pelos vasos sanguiacuteneos que se prolongam ateacute ao coraccedilatildeo satildeo para a liacutengua uma espeacutecie de instrumentos de teste colidem com as partes huacutemidas e tenras da carne e ao dissolverem-se contraem e secam os vasos sanguiacuteneos221 As mais rugosas apresentam-se-nos como amargas e as que satildeo menos rugosas como azedas De entre elas as que limpam os vasos sanguiacuteneos lavam toda a superfiacutecie da liacutengua Fazem-no aleacutem da justa medida e excedem-se a ponto de dissolver parte da proacutepria natureza da liacutengua (tal como os salitres) e satildeo todas chamadas ldquopicantesrdquo ao passo que as que satildeo mais fracas do que o salitre e tecircm uma acccedilatildeo de limpeza na medida justa satildeo ldquosalgadasrdquo ndash sem amargor aacutespero e evidenciando uma sensaccedilatildeo mais amistosa

Outras que por terem partilhado do calor da boca e sido trituradas por ela satildeo inflamadas em conjunto e em sentido inverso queimam aquilo que as sobreaqueceu satildeo levadas para cima (em virtude da sua leveza) para junto da parte sensorial da cabeccedila cortando tudo o que lhes sobrevenha graccedilas agrave natureza das propriedades que

220 Cf supra 60a221 Posteriormente Aristoacuteteles defenderaacute a mesma concepccedilatildeo o

paladar estaacute sempre dependente de substacircncias em estado liacutequido (Sobre a Alma 210 422a8-35)

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todas estas substacircncias tecircm elas foram chamadas ldquoacresrdquo Por outro lado haacute partiacuteculas que foram diminuiacutedas por putrefacccedilatildeo Elas imiscuiacuteram-se nos vasos sanguiacuteneos estreitos por terem a mesma dimensatildeo que as partiacuteculas terrosas e a mesma quantidade de ar que existe nos vasos sanguiacuteneos de tal forma que fazem com que eles se movimentem e misturem uns com os outros quando estatildeo misturadas formam uma cerca e como as de um tipo se imiscuem nas de outro tipo datildeo origem a espaccedilos vazios que satildeo distendidos pelas partiacuteculas que entram Quando um espaccedilo vazio huacutemido seja terroso ou em estado puro se distende em torno do ar forma um reservatoacuterio huacutemido com ar e gera-se um espaccedilo vazio de aacutegua arredondado os que satildeo de aacutegua pura e transluacutecidos em toda a volta receberam o nome ldquobolhardquo enquanto que os que satildeo terrosos e ao mesmo tempo movimentados e efervescentes satildeo referidos com as designaccedilotildees ldquoebuliccedilatildeordquo e ldquofermentaccedilatildeordquo O responsaacutevel por estas impressotildees eacute chamado ldquoaacutecidordquo

Uma impressatildeo que seja contraacuteria ao conjunto das que acabaacutemos de falar eacute fruto de uma causa contraacuteria Sempre que a estrutura das partiacuteculas que entram em algo liacutequido eacute de natureza afim agrave da liacutengua aquelas alisam-na lubrificando as rugosidades relaxando aquilo que foi comprimido em desacordo com a natureza e comprimindo aquilo que foi relaxado em desacordo com a natureza e restabelecendo tudo tanto quanto possiacutevel de acordo com a natureza por todos estes remeacutedios para as impressotildees violentas serem em tudo apraziacuteveis e amigaacuteveis eles foram chamados ldquodocesrdquo

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Eis o que haacute a dizer sobre estes assuntos Em relaccedilatildeo agrave propriedade que diz respeito agraves narinas natildeo haacute formas a definir Eacute que todos os odores satildeo semigerados e acontece que natildeo haacute qualquer forma com dimensatildeo para ter um cheiro Pelo contraacuterio os nossos vasos sanguiacuteneos tecircm uma constituiccedilatildeo demasiado estreita para os geacuteneros de terra e de aacutegua e demasiado larga para os de fogo e ar razatildeo pela qual ningueacutem nunca sentiu nenhum cheiro destes corpos pois os cheiros satildeo gerados a partir daquilo que se liquefaz apodrece se dissolve ou evapora Com efeito os cheiros satildeo gerados durante o estado intermeacutedio em que a aacutegua se estaacute a transformar em ar ou o ar em aacutegua e todos eles satildeo vapor ou nevoeiro Entre eles o nevoeiro eacute o que passa de ar para aacutegua e o vapor eacute o que passa de aacutegua para ar daiacute que todos os cheiros sejam mais finos do que a aacutegua e mais espessos do que o ar Isso eacute evidente quando um obstaacuteculo se interpotildee agrave respiraccedilatildeo de algueacutem e outra pessoa lhe aspira o sopro respiratoacuterio com forccedila Nenhum cheiro eacute filtrado juntamente com ele e passa somente um sopro respiratoacuterio livre de cheiros Deste modo as suas variedades formam dois grupos desprovidos de nome visto que natildeo advecircm de uma determinada quantidade de espeacutecies simples entatildeo agraves uacutenicas duas que com justiccedila satildeo manifestas chamemos-lhes ldquoapraziacutevelrdquo e ldquodesagradaacutevelrdquo uma exaspera e constringe toda a cavidade que em noacutes estaacute situada entre a cabeccedila e o umbigo a outra amacia esta zona e devolve-lhe alegremente o seu estado natural

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Analisemos agora a terceira parte sensiacutevel que haacute em noacutes a que diz respeito agrave audiccedilatildeo Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressotildees que lhe dizem respeito Estabeleccedilamos que de um modo geral o som eacute uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos ceacuterebro e sangue ateacute agrave alma enquanto que a audiccedilatildeo eacute o movimento dessa pancada que comeccedila na cabeccedila e termina na regiatildeo do fiacutegado Quando o movimento eacute raacutepido o som eacute agudo quando eacute mais lento o som eacute mais grave222 se o movimento for constante o som eacute uniforme e suave no caso contraacuterio seraacute aacutespero Se o movimento for possante o som seraacute amplo caso contraacuterio seraacute breve No que trata agrave harmonia entre os sons eacute inevitaacutevel que falemos dela em discursos posteriores223

Resta-nos ainda um quarto geacutenero de sensaccedilatildeo que eacute forccediloso que determinemos pois envolve em si mesmo um grande nuacutemero de variedades a todas elas chamaacutemos ldquocoresrdquo Trata-se de uma chama que emana de todos os corpos cujas partiacuteculas tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de visatildeo de modo a produzir a sensaccedilatildeo nos discursos anteriores dissemos algo sobre as causas da origem da visatildeo224 No que respeita agraves cores eis a explicaccedilatildeo que estaacute mais de acordo com a verosimilhanccedila e que parece ser adequada para expor detalhadamente As partiacuteculas que vecircm de outros corpos e chocam com o raio de visatildeo satildeo por vezes mais pequenas por vezes maiores e por outras tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de

222 Princiacutepio atribuiacutedo a Arquitas de Tarento (DK 47B1)223 Cf infra 79e-80c224 Cf supra 45b-46c

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visatildeo As que satildeo do mesmo tamanho satildeo insensiacuteveis e a essas chamamos-lhe ldquotransparentesrdquo mas as maiores que associam o raio de visatildeo e as mais pequenas que o dissociam satildeo irmatildes das que parecem quentes e frias agrave carne e amargas agrave liacutengua assim chamamos-lhes ldquoacresrdquo porque aquecem Quanto ao branco e ao preto satildeo impressotildees semelhantes agravequelas mas satildeo geradas noutro oacutergatildeo motivo pelo qual aparecem de um modo diferente Eis o modo como devemos nomeaacute-las o ldquobrancordquo eacute o que dilata o raio visual e o ldquopretordquo eacute o que faz o contraacuterio Quando se trata de um movimento mais pungente e de um outro geacutenero de fogo que chocam com o raio de visatildeo e o dissociam ateacute aos olhos irrompendo com violecircncia pelas entradas dos olhos dissolvendo-as fazem correr delas essa torrente de aacutegua e fogo a que chamamos ldquolaacutegrimasrdquo Quando este movimento que eacute proacuteprio fogo se encontra com o fogo que vem no sentido oposto um deles salta como um relacircmpago e o outro entra e extingue-se entre a humidade gerando-se neste alvoroccedilo todo o tipo de cores a esta impressatildeo chamamos ldquoofuscaccedilatildeordquo e agravequilo que a produz damos os nomes ldquobrilhanterdquo e ldquoresplandecenterdquo Poreacutem quando o geacutenero de fogo intermeacutedio entre estes dois chega agrave parte huacutemida dos olhos e se mistura com ela natildeo eacute resplandecente em virtude de a humidade se misturar com o claratildeo do fogo produz-se uma cor sanguiacutenea a que damos o nome ldquoencarnadordquo Misturando o encarnado com o brilhante e o branco gera-se o amarelo em que proporccedilatildeo satildeo misturados natildeo seria prudente explicaacute-lo mesmo que algueacutem soubesse pois a partir deles

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natildeo seria possiacutevel expressar razoavelmente nem uma necessidade nem um discurso verosiacutemil O encarnado misturado com o preto e o branco daacute puacuterpura ou bistre quando esta mistura eacute queimada e lhe eacute acrescentado mais preto O fulvo gera-se com a mistura de amarelo e cinzento o cinzento com a mistura de branco e preto e o ocre de branco misturado com amarelo Quando se combina branco com brilhante e se mergulha esta mistura em preto carregado produz-se o azul-escuro o azul-escuro misturado com branco daacute azul-claro e o fulvo misturado com preto daacute verde225

Quanto agraves restantes cores eacute relativamente evidente a partir destes exemplos a que misturas se devem assemelhar de modo a salvaguardar a narrativa verosiacutemil Mas se algueacutem quiser examinaacute-las por meio de um teste praacutetico estaria a ignorar a distinccedilatildeo entre a natureza humana e a divina porque enquanto um deus eacute suficientemente conhecedor e ao mesmo tempo capaz226 de fazer a mistura de muitas coisas em conjunto numa soacute e novamente de dissolver o que eacute uno em muacuteltiplas coisas nenhum homem eacute neste momento nem alguma vez seraacute capaz de fazer qualquer das duas operaccedilotildees

Uma vez criadas todas estas coisas deste modo e de acordo com a necessidade o demiurgo do que eacute mais belo e melhor colocou-as como acessoacuterias naquilo que eacute gerado de modo a engendrar o deus auto-suficiente e mais perfeito servindo-se a esse respeito das causas

225 Sobre as relaccedilotildees entre estas e outras cores vide Teofrasto Histoacuteria das Plantas 625

226 hikanocircs epistamenos ama kai dynatos

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instrumentais mas foi ele proacuteprio que forjou o bom funcionamento em tudo o que eacute deveniente Por isso eacute necessaacuterio distinguir duas espeacutecies de causas a necessaacuteria e a divina E eacute a divina que devemos procurar em tudo com vista agrave obtenccedilatildeo de uma vida feliz na medida em que a nossa natureza o admita quanto agrave necessaacuteria eacute em funccedilatildeo da divina que a procuramos tendo em mente que sem as causas necessaacuterias natildeo nos podemos ocupar das proacuteprias causas divinas as uacutenicas com que nos preocupamos nem apreendecirc-las nem participar delas de qualquer modo

Assim tal como os carpinteiros tecircm a madeira jaacute preparada para trabalhar temos noacutes agora tambeacutem agrave nossa disposiccedilatildeo os geacuteneros das causas jaacute filtrados a partir dos quais eacute forccediloso que teccedilamos o resto do discurso Regressemos por um breve instante de novo ao princiacutepio do discurso e voltemos rapidamente ao ponto a partir do qual aqui chegaacutemos tentemos providenciar uma cabeccedila (como final) agrave nossa narrativa227 que esteja em harmonia com o que dissemos ateacute aqui Eacute que tal como foi dito de princiacutepio228 em virtude de estas coisas estarem desordenadas o deus criou em cada uma delas uma medida que servisse de referecircncia tanto a cada uma em relaccedilatildeo a si mesma como tambeacutem em relaccedilatildeo agraves outras de modo a serem proporcionais Essas proporccedilotildees eram tantas quantas podiam ser e possuiacuteam analogia e proporcionalidade Eacute que ateacute agravequele momento nenhuma delas tomava parte

227 A mesma imagem eacute utilizada no Goacutergias (505c-d) e nas Leis (752a)

228 Cf 30a 53a-b 56c

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na ordem a natildeo ser que fosse por acaso e nenhuma era inteiramente digna de ser chamada do modo que agora satildeo chamadas como ldquofogordquo ldquoaacuteguardquo e qualquer um dos outros Mas tudo isto o deus comeccedilou por organizar e em seguida constituiu o universo a partir delas ndash um ser-vivo uacutenico que conteacutem em si mesmo todos os outros seres-vivos mortais e imortais E ele mesmo se tornou demiurgo dos seres divinos enquanto que atribuiu o encargo de fabricar os mortais agravequeles que tinham sido gerados por si Estes imitando-o depois de terem recebido o princiacutepio imortal da alma tornearam para ele um corpo mortal a que deram como veiacuteculo todo o corpo e nele construiacuteram uma outra forma de alma mortal que conteacutem em si mesma impressotildees terriacuteveis e inevitaacuteveis primeiro o prazer o maior engodo do mal em seguida as dores que fogem do bem e ainda a audaacutecia e o temor dois conselheiros insensatos a paixatildeo difiacutecil de apaziguar e a esperanccedila que induz em erro Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade229

Por este motivo temendo conspurcar a parte divina o que natildeo era de todo inevitaacutevel estabeleceram a parte mortal numa outra morada do corpo separada daquela e construiacuteram um istmo e um limite entre

229 Tal como Brisson (2001 p 266 n 599) cremos que seraacute este o sentido na medida em que a estrutura humana foi formada com uma parte de Necessidade que apesar de irracional se revela essencial agrave sua sobrevivecircncia neste caso trata-se do desejo amoroso que potencia a procriaccedilatildeo e garante a perenidade da espeacutecie

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a cabeccedila e o peito ao estabelecerem no meio deles o pescoccedilo para que fosse um separador No peito tambeacutem chamado toacuterax sediaram a parte mortal da alma Visto que uma parte dela eacute por natureza mais forte e outra mais fraca construiacuteram uma divisoacuteria na cavidade do toacuterax (70a) como se delimitam os aposentos das mulheres separados dos dos homens Entre elas puseram o diafragma a servir de barreira Assim estabeleceram a parte da alma que participa da coragem e do fervor que eacute adepta da vitoacuteria230 mais perto da cabeccedila entre o diafragma e o pescoccedilo para que escutasse a razatildeo231 e em conjunto com ela refreasse pela forccedila a espeacutecie dos desejos sempre que estes natildeo quisessem de modo algum obedecer prontamente agraves ordens e aos decretos da cidadela do alto Quanto ao coraccedilatildeo o entroncamento dos vasos sanguiacuteneos e a fonte do sangue que circula com energia por todos os membros estabeleceram-no na morada dos guardiotildees para que quando o sentimento de coacutelera fervilhasse por a razatildeo anunciar que uma acccedilatildeo injusta a partir de causas exteriores ou que alguma se prepara a partir do iacutentimo causada pelos desejos tudo aquilo que no corpo haacute de sensiacutevel apreendesse imediatamente atraveacutes de todos os canais estreitos as advertecircncias e ameaccedilas estivesse atento obedecesse em absoluto e desta forma permitisse que a parte mais nobre prevalecesse sobre tudo No que respeita ao bater do coraccedilatildeo perante a expectativa de perigos e o despertar de paixotildees jaacute que sabiam de antematildeo que era por causa

230 Trata-se do thymos a parte passional da alma231 logos

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do fogo que toda esta dilataccedilatildeo se produzia nas pessoas encolerizadas os deuses engendraram um reforccedilo implantando a forma do pulmatildeo que primeiro que tudo eacute mole e exangue e por outro lado tem no seu interior cavidades perfuradas como as de uma esponja para que ao receberem o ar e as bebidas232 arrefecessem o coraccedilatildeo e o dotassem de focirclego e acalmia quando aquece Por isso talharam um canal desde a traqueia ateacute ao pulmatildeo e estabeleceram-no em volta do coraccedilatildeo como uma almofada para que quando a paixatildeo se desencadeasse dentro dele ressaltasse contra algo que amortece e arrefece para que se esforccedilasse menos e juntamente com as paixotildees pudesse submeter-se mais facilmente agrave razatildeo233

Quanto agrave parte da alma que deseja comida e bebida e tudo aquilo de que o corpo tem necessidade por natureza essa parte eles estabeleceram entre o diafragma e o limite do umbigo fabricando em toda esta regiatildeo uma espeacutecie de manjedoura para o sustento do corpo Foi nesse lugar que aprisionaram esta parte da alma como se fosse uma criatura selvagem234 mas que era necessaacuterio alimentar para que no futuro pudesse existir uma espeacutecie mortal De modo a que estivesse sempre situada junto agrave manjedoura e estabelecida bem mais longe do centro de decisotildees provocando nele o menos possiacutevel de distuacuterbios e clamores e a parte

232 Note-se que o sistema digestivo descrito por Timeu prevecirc que os alimentos e os liacutequidos ingeridos passem pelos pulmotildees

233 logos234 Sobre a necessidade de aprisionar a alma vide Repuacuteblica

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mais poderosa pudesse deliberar com tranquilidade sobre tudo o que respeita ao conjunto e a cada parte atribuiacuteram-lhe esta arrumaccedilatildeo espacial Estavam conscientes de que ela natildeo conseguia compreender a razatildeo e se de algum modo apreendesse alguma das sensaccedilotildees natildeo estaria na sua natureza a capacidade de perceber algo que pertencesse agrave razatildeo em vez disso de noite e de dia seria extremamente influenciada por representaccedilotildees e simulacros235 De acordo com isto um deus delineou um plano conforme agrave sua intenccedilatildeo constituiu a espeacutecie do fiacutegado e estabeleceu-o na morada desta parte da alma Fabricou-o espesso liso e brilhante e contendo doce e amargor para que a potecircncia das noccedilotildees ao transportaacute-las do intelecto ateacute ele como num espelho que recebe impressotildees e fornece reflexos a quem o contemplar o atemorizasse ao trazer-lhe ameaccedilas terriacuteveis e fazendo uso da sua parte congeacutenere que tem amargor espalhasse o amargo por todo ele e fizesse aparecer as cores da biacutelis contraindo-o ateacute se fazer aacutespero e todo rugoso vergando e contraindo o lobo a partir da posiccedilatildeo correcta e obstruindo e fechando a vesiacutecula e as entradas de modo a provocar dores e naacuteuseas Em sentido oposto quando algum movimento inspiratoacuterio reflecte do pensamento236 simulacros de suavidade converte o amargor em tranquilidade pois esse movimento natildeo quer ser anexado a uma natureza contraacuteria agrave sua Em vez disso com recurso agrave doccedilura que estaacute por natureza presente no fiacutegado corrige tudo

235 hypo de eidocirclocircn kai phantasmatocircn236 dianoia

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para ficar correcto liso e livre tornando agradaacutevel e de bom humor a parte da alma que estaacute estabelecida junto do fiacutegado passando a noite de forma tranquila e fazendo uso da divinaccedilatildeo durante o sono dado que natildeo participa da razatildeo nem do pensamento237 Aqueles que nos constituiacuteram ao lembrarem-se da ordem do seu pai que lhes tinha mandado fazer o geacutenero mortal da melhor forma possiacutevel dentro das suas capacidades rectificaram as suas deficiecircncias deste modo (com o estabelecimento da divinaccedilatildeo) para que de algum modo ele tivesse ligaccedilatildeo agrave verdade Eis um indiacutecio suficiente de que o deus concedeu a divinaccedilatildeo agrave insensatez humana eacute que ningueacutem participa da divinaccedilatildeo inspirada e verdadeira em consciecircncia mas sim quando o seu pensamento238 eacute suspenso durante o sono ou pela doenccedila ou se for adulterado por qualquer tipo de deliacuterio Por outro lado eacute em consciecircncia que o Homem deve compreender o que foi dito ndash depois de o trazer de novo agrave memoacuteria ndash em sonhos ou em estado de vigiacutelia sob o efeito da natureza da divinaccedilatildeo e do deliacuterio quanto aos simulacros que tenha visto deve por meio da reflexatildeo explicar de que modo e por que motivo cada um deles possa significar algo de mau ou de bom quer pertenccedila ao futuro ao passado ou ao presente Enquanto aquele que estaacute possuiacutedo se mantiver neste estado natildeo cumpriraacute a tarefa de distinguir por si proacuteprio o que lhe foi dado a conhecer ou a ouvir pois estaacute certo o velho dito ldquoPertence somente ao saacutebio cumprir a sua tarefa de se conhecer a si mesmordquo239 Daiacute

237 logou kai phronecircseocircs ou meteiche238 phronecircsis239 Eacute logo no Caacutermides (161b 164d) que eacute referida a

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que a norma tenha estabelecido que o geacutenero dos profetas seja inteacuterprete das divinaccedilotildees inspiradas Haacute quem lhes chame ldquoadivinhosrdquo ignorando por completo que eles interpretam revelaccedilotildees e apariccedilotildees por meio de enigmas e de modo algum satildeo adivinhos pelo que seraacute mais justo chamar-lhes ldquoprofetas de assuntos divinatoacuteriosrdquo

Eacute por isto que a natureza do fiacutegado eacute assim e foi graccedilas agrave divinaccedilatildeo que lhe foi atribuiacutedo este lugar que descrevemos Aleacutem disso eacute ainda enquanto cada criatura estaacute viva que este oacutergatildeo fornece os sinais mais visiacuteveis jaacute que depois de lhe ter sido privada a vida torna-se cego e os sinais que fornece satildeo muito obscuros para terem uma significaccedilatildeo evidente Mas a estrutura do oacutergatildeo vizinho240 e o facto de o lugar desta entranha ser agrave esquerda eacute em favor do fiacutegado para o manter sempre brilhante e limpo como se fosse um trapo de limpar o espelho que estaacute sempre agrave matildeo e disponiacutevel para ser utilizado Por isso sempre que por causa de uma doenccedila do corpo se geram impurezas junto do fiacutegado a porosidade do baccedilo depura-as e absorve-as todas pois eacute feito de uma trama permeaacutevel e exangue Daiacute que quando fica preenchido por aquilo que filtra aumenta de tamanho e fica ulcerado poreacutem quando o corpo eacute purgado diminui de tamanho e retoma a sua forma original

Portanto no que diz respeito agrave alma se noacutes falaacutemos com verdade sobre a sua parte mortal sobre a divina de que modo com a colaboraccedilatildeo de quecirc e por que razatildeo obrigatoriedade de o filoacutesofo procurar cumprir a maacutexima deacutelfica ldquoconhece-te a ti mesmordquo

240 O baccedilo

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foi estabelecida separadamente somente o poderemos afirmar com certeza depois de um deus o confirmar Que o que noacutes dissemos eacute verosiacutemil devemos arriscar a declaraacute-lo agora e mais ainda quando reflectirmos sobre essa mateacuteria E declaremo-lo entatildeo

De acordo com os mesmos pressupostos devemos abordar agora o que se segue como foi gerado o resto do corpo Seraacute mais adequado seguir este raciociacutenio em vez de qualquer outro para explicar a sua constituiccedilatildeo Os que constituiacuteram a nossa espeacutecie estavam a par da licenciosidade que haveria em noacutes em relaccedilatildeo agrave bebida e agrave comida e que por causa da gula consumiriacuteamos muito mais do que a medida necessaacuteria Para que natildeo tiveacutessemos uma morte raacutepida por causa das doenccedilas e para que a espeacutecie dos mortais ainda incompleta natildeo acabasse de imediato ndash uma vez previstas estas coisas ndash os deuses estabeleceram o chamado baixo ventre como receptaacuteculo da bebida e da comida supeacuterfluas e enrolaram em volta dele os intestinos para que os alimentos natildeo passassem pelo corpo rapidamente e isso obrigasse a que ele tivesse necessidade de outro alimento tornando-se insaciaacutevel Por causa da gula a espeacutecie humana tornar-se-ia completamente estranha agrave filosofia e agraves Musas e seria desobediente agrave parte mais divina que haacute em noacutes

No que respeita aos ossos agrave carne e agrave natureza deste tipo de elementos orgacircnicos eis o que se passou Para todas as estruturas o ponto de partida foi a geraccedilatildeo da medula De facto os laccedilos da vida desde que a alma estaacute unida ao corpo foram presos a ela e constituiacuteram a raiz da espeacutecie mortal mas a medula em si foi gerada

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a partir de outras substacircncias Com efeito de entre os triacircngulos os primeiros em regularidade e lisura que em virtude da sua precisatildeo eram mais capazes de produzir fogo aacutegua ar e terra o deus escolheu-os separadamente dos outros geacuteneros misturou-os uns com os outros na medida certa concebendo uma mistura de sementes para todo a espeacutecie mortal e produziu a medula a partir deles Em seguida plantou e aprisionou nela os geacuteneros de alma e na sua distribuiccedilatildeo inicial dividiu imediatamente a medula em figuras equivalentes em nuacutemero e qualidade aos das figuras que estava destinado que cada espeacutecie tivesse Depois moldou em forma de ciacuterculo perfeito essa parte da medula a qual semelhante a um terreno lavrado havia de receber a semente divina e chamou-lhe ldquoenceacutefalordquo de tal forma que quando cada ser-vivo estivesse acabado o recipiente que o contivesse seria a cabeccedila Aquilo que era suposto conter o resto da alma (a sua parte mortal) dividiu-o em figuras redondas e ao mesmo tempo alongadas a este conjunto deu o nome ldquomedulardquo e lanccedilando a partir delas os laccedilos de toda a alma como a partir de acircncoras formou em torno dela todo o nosso corpo tendo primeiro construiacutedo agrave volta de todo o conjunto uma protecccedilatildeo feita de osso

Quanto agrave constituiccedilatildeo do osso ela processou-se do seguinte modo depois de ter peneirado terra pura e lisa misturou-a e humedeceu-a com medula em seguida pocirc-la no fogo depois mergulhou-a em aacutegua pocirc-la novamente no fogo e outra vez em aacutegua Repassando-a vaacuterias vezes deste modo num e noutro tornou-a impassiacutevel de ser dissolvida por ambos Foi desta mistura

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que se serviu para tornear uma esfera oacutessea agrave volta da cabeccedila na qual deixou ficar uma saiacuteda estreita Em redor da medula do pescoccedilo e do dorso estendeu as veacutertebras semelhantes a gonzos que moldou a partir da mesma mistura comeccedilando pela cabeccedila e atravessando todo o dorso Cercou toda a semente para deste modo a manter a salvo com uma vedaccedilatildeo peacutetrea onde criou articulaccedilotildees servindo-se das propriedades do Outro que colocou no meio deles em virtude do movimento e da flexibilidade Mas prevendo que a condiccedilatildeo da natureza oacutessea seria mais fragmentaacutevel do que devia ser e muito inflexiacutevel ndash se fosse aquecida e novamente arrefecida gangrenaria rapidamente ndash e que a semente dentro dela se destruiria concebeu deste modo e por estes motivos o geacutenero dos tendotildees e da carne para que unindo todos os membros com os tendotildees que distendem e contraem em torno das veacutertebras o corpo se pudesse dobrar e estender A carne seria uma protecccedilatildeo contra as queimaduras e um obstaacuteculo para o frio e ainda para as quedas semelhante a uma almofada que cede de forma mole e suave ao peso dos corpos Por conter dentro de si proacutepria uma humidade quente que durante o Veratildeo seria exsudada produziria no exterior de todo o corpo uma agradaacutevel frescura e durante o Inverno novamente por meio deste fogo repeliria adequadamente as investidas do frio que o cerca do exterior Tendo isto em consideraccedilatildeo aquele que nos moldou como se trabalhasse a cera fez uma mistura e uma combinaccedilatildeo harmoniosa de aacutegua fogo e terra aos quais acrescentou um fermento composto de

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aacutecido e de sal e constituiu a carne mole e suculenta No que respeita agrave natureza dos tendotildees de osso e

de carne sem fermento misturou-os num soacute composto com propriedades intermeacutedias agravequeles dois servindo-se da cor amarela Daiacute que os tendotildees apresentem a propriedade de serem mais compactos e viscosos do que a carne mas mais moles e huacutemidos do que os ossos Com eles o deus envolveu os ossos e a medula depois de ter unido os ossos uns com os outros aos tendotildees de seguida cobriu todos eles com carne por cima Os ossos que continham mais alma envolveu-os com muito menos carne e os que tinham menos alma dentro de si envolveu-os com muita e mais compacta Junto agraves articulaccedilotildees dos ossos onde a razatildeo241 mostrava que natildeo havia qualquer necessidade de carne ele fez crescer a carne com pouca espessura para que os corpos natildeo se fizessem difiacuteceis de carregar e se tornassem avessos ao movimento pois impediriam as flexotildees e por outro lado para que as carnes abundantes e excessivamente densas compactadas umas com as outras natildeo causassem insensibilidade em virtude da sua firmeza nem fizessem os corpos muito avessos agrave memoacuteria e torpes de pensamento242 Eacute por isso que as coxas as pernas e a zona das ancas os ossos da zona do braccedilo e do antebraccedilo e todos os que em noacutes satildeo desprovidos de articulaccedilatildeo isto eacute todos os ossos que por terem pouca alma na sua medula satildeo vazios de pensamento243 todas estas zonas estatildeo completamente preenchidas de carne Pelo contraacuterio as partes com

241 logos242 dysmnecircmoneutotera kai kocircphotera ta peri tecircn dianoian243 phronecircsis

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pensamento tecircm menos carne ndash excepto quando o deus constituiu alguma parte de carne autoacutenoma por causa dos sentidos como a espeacutecie da liacutengua por exemplo mas na maior parte dos casos passou-se daquele modo Eacute que a natureza gerada da Necessidade e por ela criada de modo algum admite ao mesmo tempo uma estrutura oacutessea compacta muita carne e acuidade sensorial Mais do que todas seria a estrutura que circunda a cabeccedila que teria estes atributos contanto que elas pudessem ocorrer ao mesmo tempo e por outro lado se o geacutenero dos homens tivesse uma cabeccedila coberta de carne e tendotildees ndash isto eacute forte ndash granjearia uma vida duas ou mais vezes maior mais saudaacutevel e mais livre de dores do que agora Nesse momento os demiurgos da nossa geraccedilatildeo ao reflectirem sobre se o geacutenero que estavam para criar havia de ter uma vida mais longa e pior se uma mais breve e melhor e decidiram que por todos os motivos deviam preferir uma vida mais curta que fosse melhor a uma mais longa que seria mais trivial Daiacute que natildeo tenham recobrido a cabeccedila com carne e tendotildees mas sim com um osso fino pois ela natildeo se destinava a fazer qualquer flexatildeo Foi por todas estas razotildees que a cabeccedila aplicada a todos os homens eacute mais proacutepria para sentir e mais dada ao pensamento e por outro lado muito fraacutegil No que respeita aos tendotildees foi deste modo e por estes motivos que o deus os pocircs em ciacuterculo ao fundo da cabeccedila colando-os uniformemente agrave volta do pescoccedilo e lhes uniu as extremidades dos maxilares por baixo da natureza do rosto Quanto aos outros distribuiu-os por todos os membros unindo cada articulaccedilatildeo agrave sua articulaccedilatildeo contiacutegua

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Em relaccedilatildeo agraves propriedades da nossa boca foi com vista ao que eacute necessaacuterio e melhor que aqueles que a apetrecharam a apetrecharam de dentes liacutengua e laacutebios segundo a forma como hoje estaacute disposta concebendo a entrada com vista agrave necessidade e a saiacuteda com vista ao melhor eacute que tudo quanto entra dado ao corpo como alimento diz respeito ao necessaacuterio e o fluxo de palavras que corre para o exterior e auxilia o pensamento244 eacute o mais belo e excelente de todos os fluxos

Natildeo era possiacutevel deixar a cabeccedila calva soacute com o osso por causa das intempeacuteries de cada uma das estaccedilotildees nem por outro lado consentir que ela ficasse oculta por uma massa de carne que a tornaria muda e insensiacutevel Como a natureza do que tem carne natildeo secasse foi separada dela uma grande camada superficial a que agora chamamos pele Esta camada em virtude da humidade que circunda o ceacuterebro uniu-se a si mesma e propagou-se em ciacuterculos ateacute que cobriu a cabeccedila a humidade que irrompia sob as costuras irrigou-a e encerrou a camada no cume da cabeccedila como se tivesse dado um noacute Haacute variadas formas de sutura em funccedilatildeo da acccedilatildeo das oacuterbitas da alma e do alimento essas suturas satildeo em maior nuacutemero quando essas forccedilas se opotildeem muito umas agraves outras e em menor quando se opotildeem menos Atraveacutes do fogo a divindade perfurou toda a pele em ciacuterculos e as secreccedilotildees eram expelidas ao passarem pela pele para o exterior tudo quanto fosse huacutemido e quente em estado puro saiacutea Por outro lado a mistura constituiacuteda pelos mesmos elementos que a pele

244 phronecircsis

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elevou-se pelo movimento e estendeu-se muito para fora pois tinha uma finura igual agrave das perfuraccedilotildees Mas em virtude da sua lentidatildeo foi empurrada novamente do exterior para o interior pelo ar circundante Encheu a pele e ganhou raiacutezes debaixo dela

Foi por causa destes fenoacutemenos que nasceu na pele o geacutenero do cabelo fibroso e congeacutenere da pele mas mais soacutelido e mais denso por causa da compressatildeo provocada pelo arrefecimento esse processo de compressatildeo ocorre quando cada cabelo eacute separado da pele e arrefece Foi deste modo que aquele que nos fez produziu uma cabeccedila cabeluda servindo-se das causas que referimos por considerar que em vez de carne era necessaacuterio haver uma cobertura agrave volta do ceacuterebro (tendo em vista a sua seguranccedila) que fosse leve e capaz de lhe garantir sombra no Veratildeo e abrigo no Inverno sem que se gerasse qualquer obstaacuteculo que impedisse a capacidade sensorial No local agrave volta dos dedos onde se entrecruza o tendatildeo a pele e o osso a mistura destes trecircs quando secou por completo deu origem a uma uacutenica pele dura que reunia todos os outros ndash fabricada com estas causas acessoacuterias mas produzida com o pensamento como causa principal245 e tendo em vista aqueles que viriam a seguir Eacute que aqueles que nos constituiacuteram tinham conhecimento de que um dia as mulheres e os outros animais selvagens seriam gerados a partir dos homens e tambeacutem sabiam que muitas dessas criaturas teriam que se servir das garras para muitos fins daiacute que ao mesmo tempo que eram gerados os homens

245 tecirc de aitiocirctatecirc dianoia eirgasmenon

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eles fizeram um esboccedilo das garras Foi deste modo e por estes motivos que criaram a pele os pecirclos e as unhas nas extremidades dos membros

Logo que todas as partes e todos os membros do ser-vivo mortal ficaram naturalmente combinados seria forccediloso que este tivesse uma vida exposta ao fogo e ao ar Visto que ele seria consumido e desgastado e por causa disso pereceria entatildeo os deuses conceberam um auxiacutelio para ele Criaram uma natureza congeacutenita da humana tendo misturado outras sensaccedilotildees com outras figuras de modo a que resultasse um outro ser Trata-se das aacutervores das plantas e das sementes actualmente educadas entre noacutes e domesticadas pela agricultura poreacutem antigamente existiam somente geacuteneros bravios os quais eram mais velhos do que os dos nossos dias A tudo quanto participe da vida podemos chamar-lhe correctamente ser-vivo segundo parece Poreacutem esta espeacutecie de que falamos participa da terceira forma de alma246 que estaacute estabelecida entre o diafragma e o umbigo como dissemos e nada tem que ver com a opiniatildeo com o raciociacutenio ou com o intelecto mas sim com a sensaccedilatildeo de prazer ou de dor que acompanha os apetites247 De facto manteacutem-se passiva em relaccedilatildeo a tudo rodando ela proacutepria em si mesma e em torno de si mesma248 repelindo o movimento do exterior e fazendo

246 Trata-se da parte apetitiva (epithymia)247 Ao fazer derivar a alma das plantas da terceira forma de

alma Timeu justifica assim o facto de os seres vegetais estarem desprovidos de pensamento ainda que sejam duais

248 Tambeacutem no Fedro (245c-d) eacute sublinhado o movimento da alma em torno de si mesma

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uso do que eacute seu congeacutenere pois a sua geraccedilatildeo natildeo lhe permitiu perceber por natureza nada de si proacutepria nem raciocinar Por isso ainda que tenha vida e natildeo seja nada senatildeo um ser-vivo manteacutem-se estaacutetica e enraizada privada de movimento proacuteprio

Depois de os seres mais poderosos plantarem todos estes geacuteneros como alimento para os mais fracos (noacutes) equiparam o nosso proacuteprio corpo com canais tal como se talham regos nos jardins para que fosse como que irrigado por uma torrente que o inunda Primeiro talharam dois canais escondidos por baixo do ponto onde se juntam a pele e a carne os vasos sanguiacuteneos dorsais249 (que satildeo dois) porque acontece que o corpo eacute duplo tem um lado direito e um esquerdo Lanccedilaram estes vasos sanguiacuteneos ao longo da coluna encerrando entre eles a medula geratriz250 para que se desenvolvesse ao maacuteximo e fluindo em abundacircncia dali para os outros locais a corrente gerada pudesse providenciar uma irrigaccedilatildeo uniforme Em seguida dividiram os vasos sanguiacuteneos agrave volta da cabeccedila e enlaccedilaram as extremidades de modo a ficarem enrolados uns nos outros flectindo os do lado direito para o lado esquerdo do corpo e os do lado esquerdo para o lado direito de modo a que fizessem uma ligaccedilatildeo com a pele entre a cabeccedila e o corpo jaacute que esta natildeo estava envolvida com tendotildees em ciacuterculo no topo e para que todo o corpo distinguisse o efeito das sensaccedilotildees provenientes de cada uma das partes

249 A arteacuteria aorta e a veia cava (inferior e superior)250 Espinal medula

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Logo de seguida os deuses prepararam a irrigaccedilatildeo da forma que se segue perceberemo-la mais facilmente se concordarmos de antematildeo com isto todos os corpos constituiacutedos a partir de partiacuteculas mais pequenas satildeo impermeaacuteveis aos de partiacuteculas maiores e os de partiacuteculas maiores natildeo conseguem ser impermeaacuteveis aos de partiacuteculas mais pequenas de todos os geacuteneros o fogo eacute o que eacute constituiacutedo por partiacuteculas mais pequenas daiacute que atravesse a estrutura da aacutegua da terra e do ar enquanto nada eacute impermeaacutevel a ele Devemos ter em mente que se passa o mesmo com o nosso abdoacutemen251 quando a comida e a bebida caem dentro dele ficam retidos no entanto o sopro respiratoacuterio e o fogo natildeo conseguem pois satildeo constituiacutedos por partes mais pequenas do que as da constituiccedilatildeo do abdoacutemen Portanto o deus serviu-se deles para fazer a irrigaccedilatildeo desde o toacuterax ateacute aos vasos sanguiacuteneos tecendo uma tranccedila de ar e de fogo semelhante a uma nassa252 com dois funis agrave entrada e fez um desses dois bifurcado a partir destes funis estendeu uma espeacutecie de junco em ciacuterculos por toda a tranccedila ateacute agraves extremidades Todo o interior do entranccedilado era constituiacutedo por fogo enquanto que os funis e o invoacutelucro tinham a forma do ar Pegando nele colocou-o da seguinte forma no interior do ser-vivo que moldava Um dos funis largou-o na boca Como esse era o bifurcado esticou uma das ramificaccedilotildees ateacute ao pulmatildeo pela traqueia abaixo e a outra ateacute ao abdoacutemen ao longo da

251 koilia Este termo designa toda a cavidade toraacutexica que inclui os sistemas digestivo e respiratoacuterio

252 Uma espeacutecie de camaroeiro utilizado pelos pescadores para reter o peixe

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traqueia a outra dividiu-a e fez passar cada uma das duas partes em conjunto pelos canais do nariz de tal forma que visto que a segunda natildeo passa pela boca todos os fluxos daquela satildeo cumpridos por esta Quanto ao resto da nassa o invoacutelucro ele fecirc-la crescer agrave volta de toda a cavidade do nosso corpo e fez tudo de forma a que umas vezes todo ele fluiacutesse docemente pelos funis ndash os quais satildeo feitos de ar ndash e outras vezes os funis se esvaziassem Visto que o corpo eacute permeaacutevel fez por outro lado que a tranccedila entrasse por ele e novamente saiacutesse Jaacute os raios de fogo encerrados dentro dele eles seguiriam o ar de um lado para o outro e isto natildeo cessaria enquanto o ser-vivo mortal mantivesse a sua constituiccedilatildeo Foi por isso que aquele que estabeleceu as designaccedilotildees se referiu a isto pondo-lhes os nomes ldquoinspiraccedilatildeordquo e ldquoexpiraccedilatildeordquo Todas estas acccedilotildees e impressotildees foram geradas no nosso corpo para que ele sendo irrigado e refrescado se alimentasse e vivesse Eacute que sempre que a respiraccedilatildeo se dirige de dentro para fora e de fora para dentro o fogo unido ao seu interior segue-a Neste constante vaiveacutem entra pelo abdoacutemen e apropria-se da comida e da bebida dissolve-os dividindo-os em pequenas partes leva-os pelos poros por onde se desloca e despeja-os nos vasos sanguiacuteneos como a aacutegua de uma fonte em canais e faz fluir pelo corpo as torrentes dos vasos sanguiacuteneos como num aqueduto

Vejamos novamente as impressotildees da respiraccedilatildeo e de que causas se serve para ser do modo como eacute agora Passa-se o seguinte quando jaacute natildeo haacute nenhum vazio em que possa entrar alguma das coisas que se movimentam

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e como o sopro respiratoacuterio sai de dentro de noacutes o que se sucede eacute evidente para todos ele natildeo vai para o vazio mas empurra o ar que estaacute proacuteximo de si para fora do seu lugar este ao ser empurrado desloca incessantemente o ar proacuteximo de si e de acordo com esta necessidade todo ele se desloca num movimento circular em direcccedilatildeo ao lugar de onde sai o sopro respiratoacuterio Entra nesse lugar e preenche-o seguindo o sopro respiratoacuterio E tudo isto ocorre em simultacircneo semelhante ao girar de uma roda por natildeo existir qualquer vazio Eacute por isso que a zona do peito e do pulmatildeo quando expele o sopro respiratoacuterio para o exterior fica novamente cheia do ar que circunda o corpo pois este entra atraveacutes da carne porosa e circula dentro dele quando o ar regressa e se dirige para o exterior atraveacutes do corpo forccedila o ar inspirado a entrar pela passagem das narinas e pela boca Devemos estabelecer que a causa deste princiacutepio eacute a seguinte em todos os seres vivos as partes interiores que circundam o sangue e os vasos sanguiacuteneos satildeo as mais quentes como se dentro do proacuteprio corpo houvesse uma fonte de fogo foi isto que comparaacutemos agrave tranccedila da nassa quando foi dito que toda ela estava entretecida com fogo no centro e as outras partes do exterior com ar Portanto devemos admitir que o que eacute quente se dirige por natureza para o exterior em direcccedilatildeo ao lugar de que eacute congeacutenere Como haacute duas saiacutedas ndash uma atraveacutes do corpo para o exterior outra atraveacutes das boca e das narinas ndash quando corre para uma empurra o ar em ciacuterculos na outra o ar empurrado em ciacuterculos choca contra o fogo e eacute aquecido o que sai eacute arrefecido Agrave medida que se daacute o intercacircmbio de calor

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e o ar que transita pela outra saiacuteda fica mais quente este por ser mais quente eacute o que estaacute mais inclinado a voltar agravequela saiacuteda movimentando-se por natureza na sua direcccedilatildeo empurra em ciacuterculos o ar que vai para a outra Por receber sempre os mesmos impulsos e reagir sempre da mesma maneira ao oscilar de um lado para o outro e ao produzir este movimento circular provoca por meio desta duplicidade a formaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo e expiraccedilatildeo

Devemos em igual medida procurar tambeacutem a explicaccedilatildeo para os efeitos relacionados com as ventosas medicinais253 com a degluticcedilatildeo e com os projeacutecteis ndash quer os que satildeo lanccedilados para o ar quer os que satildeo lanccedilados para a terra ndash e tambeacutem de todos os sons raacutepidos ou lentos que nos aparecem como agudos e graves os quais recebemos como estando desprovidos de harmonia por causa da dissemelhanccedila do movimento que geram em noacutes ou como sendo harmoniosos em virtude da semelhanccedila De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento Contudo quando os apanham natildeo lhes incutem um outro movimento que os transtorne Ao ajustar a origem do movimento mais lento e o termo do mais raacutepido quando este estaacute a abrandar na altura em que atingiu a semelhanccedila o deus misturou o agudo e o grave em conjunto numa

253 Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1004D-1006D) fornece uma explicaccedilatildeo pormenorizada deste meacutetodo terapecircutico

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soacute impressatildeo daiacute que cause prazer aos insensatos e boa-disposiccedilatildeo aos intelectuais254 por representar a harmonia divina em movimentos mortais

O mesmo se passa com todos os fluxos de aacutegua a queda de raios as maravilhas da atracccedilatildeo do acircmbar e da pedra de Heacuteracles255 A atracccedilatildeo natildeo interveacutem de qualquer modo em nenhum de todos estes objectos mas seraacute evidente para quem os investigar adequadamente que eacute por causa destes acidentes (em virtude de natildeo existir o vazio e de eles se empurrarem em ciacuterculos entre si por vezes separando-se e por vezes combinando-se trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes eacute proacuteprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenoacutemenos admiraacuteveis

Tambeacutem o processo de respiraccedilatildeo a partir de onde este discurso comeccedilou eacute gerado de acordo com estes pressupostos e pelas mesmas causas como foi dito em discursos anteriores256 O fogo desfaz os alimentos e eacute elevado dentro de noacutes ao acompanhar o sopro respiratoacuterio e por meio dessa oscilaccedilatildeo enche os vasos sanguiacuteneos desde o abdoacutemen irrigando-os com o que nele desfez eacute por isto que em todos os seres-vivos a corrente de alimentos circula deste modo por todo o corpo Estas partiacuteculas acabadas de ser cortadas das suas congeacuteneres umas de frutas outras de vegetais que o deus plantou para noacutes com esta finalidade ndash ser alimento

254 Este duplo efeito da muacutesica em funccedilatildeo da natureza do ouvinte fora jaacute abordado em 47d

255 Magnetite Esta concepccedilatildeo eacute tambeacutem atribuiacuteda a Empeacutedocles (DK 31A89)

256 Cf supra 79a-e

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ndash assumem cores variadas por terem sido misturadas conjuntamente poreacutem o encarnado eacute a cor que mais as envolve pois consiste na aparecircncia produzida no liacutequido pelo corte do fogo Daiacute que o fluido que corre pelo nosso corpo ndash a que chamamos ldquosanguerdquo e que eacute o alimento da carne e da totalidade do corpo graccedilas ao qual cada parte irrigada enche o siacutetio que se esvazia ndash tenha a cor e o aspecto que descrevemos O mecanismo de enchimento e esvaziamento eacute gerado tal como o movimento de todo o universo foi gerado segundo o qual tudo o que eacute seu congeacutenere se movimenta em direcccedilatildeo a si proacuteprio Aquilo que nos rodeia no exterior dissolve-nos e decompotildee-nos incessantemente remetendo cada espeacutecie para aquilo que lhe eacute aparentado mas as partiacuteculas de sangue fragmentadas dentro de noacutes e envolvidas pela estrutura de cada um dos seres-vivos como por um ceacuteu satildeo obrigadas a imitar o movimento do universo como cada uma das partiacuteculas divididas dentro de noacutes se dirige ao que eacute nosso congeacutenere o vazio deixado eacute novamente preenchido Quando desprendem mais do que recebem todos os seres perecem mas quando desprendem menos crescem No tempo em que toda a estrutura do ser-vivo eacute jovem quando os seus triacircngulos satildeo novos como acabados de acabados de sair da oficina257 mantecircm-se resistentes e coesos mutuamente embora todo o corpo seja uma composiccedilatildeo delicada visto que foi acabada de gerar a partir da medula e alimenta-se de leite Quanto aos triacircngulos que envolve em si mesma e que provecircm do exterior (aqueles de que se hatildeo-de formar o alimento

257 Metaacutefora importada de Aristoacutefanes (Tesmofoacuterias 52)

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e a bebida) por serem mais velhos e mais fraacutegeis do que os triacircngulos dela domina-os e corta-os com os seus que satildeo novos e o ser-vivo faz-se maior por ser alimentado por muitas substacircncias semelhantes258 Mas quando o sustentaacuteculo dos triacircngulos relaxa em virtude de eles terem disputado muitos confrontos durante muito tempo e contra muitos inimigos eles jaacute natildeo conseguem cortar e assimilar nenhum dos triacircngulos do alimento que entram mas pelo contraacuterio os seus satildeo facilmente divididos pelos que entram do exterior ndash todo o ser-vivo perece ao ser deste modo dominado e a esta impressatildeo chamamos ldquovelhicerdquo Por fim quando os elos dos triacircngulos que estatildeo unidos em torno da medula jaacute natildeo aguentam e satildeo separados pelo esforccedilo desprendem os laccedilos da alma que ao ser libertada de acordo com a natureza desvanece-se de forma apraziacutevel eacute que tudo o que acontece em desacordo com a natureza eacute doloroso mas o que se gera de forma natural eacute agradaacutevel Por isso de acordo com este pressuposto a morte eacute dolorosa e violenta se for causada por ferimentos ou decorrente de doenccedilas e a morte que ocorre na sequecircncia da velhice ndash de que eacute por natureza o culminar ndash eacute a menos penosa e tem mais prazer do que dor

De onde provecircm as doenccedilas isso eacute evidente para todos Visto que o corpo eacute composto de quatro elementos ndash terra fogo aacutegua e ar ndash uma doenccedila eacute gerada pelo excesso ou pela falta (contra a natureza) de algum deles ou por uma mudanccedila de lugar quando um elemento

258 A ideia de que as substacircncias se alimentam daquilo que lhes eacute afim seraacute tambeacutem partilhada por Aristoacuteteles (Sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo 333a36-b16)

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abandona o lugar que lhe corresponde por natureza para ocupar um que lhe eacute estranho ou entatildeo pois acontece que existe mais do que um geacutenero de fogo e de outros elementos quando um deles toma para si mesmo algo que natildeo lhe eacute adequado ndash todos os fenoacutemenos desta natureza provocam distuacuterbios e doenccedilas Quando cada um deles eacute gerado ou deslocado contra a natureza torna-se quente o que outrora fora frio o que eacute seco vai tornar-se huacutemido o que eacute leve torna-se pesado e eles sofrem toda a espeacutecie de mudanccedilas Eacute que segundo dizemos soacute se o mesmo for adicionado ou subtraiacutedo ao mesmo na mesma medida e da mesma maneira segundo a proporccedilatildeo correcta eacute que o mesmo poderaacute ser ele proacuteprio satildeo e saudaacutevel mas aquele que transgredir algum destes limites separando-se ou adicionando-se produziraacute todo o tipo de alteraccedilotildees doenccedilas e destruiccedilotildees incontaacuteveis

Visto que foram constituiacutedas estruturas secundaacuterias de acordo com a natureza haacute uma segunda ordem de consideraccedilotildees a fazer sobre as doenccedilas por aquele que quer percebecirc-las Eacute que a medula o osso a carne e o tendatildeo satildeo compostos a partir daquelas estruturas ndash tambeacutem o sangue embora de um modo diferente foi gerado a partir dos mesmos elementos A maioria das doenccedilas sobreveacutem do modo que foi descrito mas com as mais graves de entre elas as mais difiacuteceis de suportar passa-se o seguinte quando a geacutenese daquelas estruturas sofre uma inflexatildeo em relaccedilatildeo ao que lhe eacute natural elas corrompem-se De acordo com a natureza a carne e os tendotildees satildeo gerados a partir do sangue ndash os

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tendotildees a partir das fibras de natureza idecircntica agrave sua e a carne a partir do coaacutegulo que se forma quando se separa das fibras A partir dos tendotildees e da carne escorre uma substacircncia viscosa e brilhante que cola a carne agrave natureza dos ossos e ao alimentar os ossos que estatildeo em torno da medula faacute-lo crescer enquanto que o geacutenero mais puro mais liso e mais brilhante dos triacircngulos ao ser filtrado pela espessura dos ossos e liquefeito vai pingando dos ossos e irriga a medula Quando cada etapa se processa desta maneira surge em grande parte dos casos a sauacutede mas ocorre a doenccedila quando se passa o contraacuterio Eacute que quando a carne se liquefaz e inversamente expele para os vasos sanguiacuteneos o resultado da dissoluccedilatildeo entatildeo nos vasos sanguiacuteneos fica muito sangue diacutespar pois estaacute multiplamente alterado por cores e azedumes e ainda por propriedades aacutecidas e salinas aleacutem de que conteacutem toda a espeacutecie de biacutelis259 soros e fleumas Depois de todos serem reconstituiacutedos e corrompidos comeccedilam por deteriorar o proacuteprio sangue e sem que eles forneccedilam qualquer alimento ao corpo circulam por todo lado atraveacutes dos vasos sanguiacuteneos sem obedecerem agrave ordem natural das oacuterbitas hostis a si mesmos por natildeo retirarem qualquer proveito de si proacuteprios e inimigos das estruturas do corpo que se mantecircm no lugar que lhes compete as quais por seu turno deterioram e dissolvem

Quando a parte da carne que se vai dissolver eacute muito velha torna-se difiacutecil de assimilar entatildeo eacute enegrecida

259 Haacute dois tipos de biacutelis a branca e a negra (cf infra 82e 83c)

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por um incecircndio prolongado e por ser completamente consumida torna-se amarga e ataca de forma terriacutevel por todo o corpo ndash mesmo aquilo que ainda natildeo foi consumido Por vezes quando a parte amarga eacute reduzida a partes mais pequenas em vez de amargor a cor negra faz-se acompanhar de acidez outras vezes quando o amargor eacute mergulhado no sangue adquire uma cor mais avermelhada e como o negro se mistura com ele adquire a cor biliosa ou ainda a cor amarela mistura-se com o azedume quando a carne nova eacute dissolvida com a chama do fogo E o nome comum a todas as substacircncias desta natureza eacute ldquobiacutelisrdquo atribuiacutedo por alguns meacutedicos ou por algueacutem que eacute capaz de observar muitas coisas dissemelhantes e de identificar entre todas elas um geacutenero uacutenico merecedor de uma designaccedilatildeo comum Quanto a todos os outros fluidos que dizemos serem formas de biacutelis cada um tem uma designaccedilatildeo proacutepria em funccedilatildeo da sua cor No que respeita ao soro eacute brando quando se trata da parte aquosa do sangue mas eacute rude quando se trata da biacutelis negra e aacutecida porque se mistura por meio do calor com uma potecircncia salgada ao que eacute misturado deste modo chama-se ldquofleuma aacutecidardquo Aquilo que combinado com o ar resulta da dissoluccedilatildeo de carne nova e tenra isto eacute quando eacute preenchida por ar e envolvida por liacutequido e quando se constituem bolhas a partir deste processo ndash cada uma delas torna-se invisiacutevel em virtude da sua pequenez mas o conjunto apresenta-se como uma massa visiacutevel que por gerar espuma tem uma cor branca aos nossos olhos ndash dizemos que toda esta dissoluccedilatildeo de carne tenra entretecida com o sopro

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respiratoacuterio eacute fleuma branca A parte aquosa da fleuma constituiacuteda recentemente eacute o suor as laacutegrimas e tudo o mais que os corpos segregam todos os dias para se purificarem Todos eles se tornam agentes causadores de doenccedilas quando o sangue em vez de estar preenchido por comida e bebida de acordo com a natureza recebe uma massa de substacircncias que estatildeo em desacordo com as leis da natureza Mesmo que os vaacuterios tipos de carne sejam desfeitos pelas doenccedilas enquanto as suas fundaccedilotildees aguentarem a gravidade do problema seraacute meacutedia para elas ndash ainda eacute possiacutevel uma recuperaccedilatildeo com facilidade Mas se aquilo que liga a carne aos ossos chegar a adoecer e se ela proacutepria se separar simultaneamente das fibras e dos tendotildees e natildeo alimentar os ossos nem mantiver a ligaccedilatildeo entre a carne e os ossos e de brilhante lisa e viscosa passe a aacutespera salgada e ressequida por um regime prejudicial tudo o que eacute afectado deste modo eacute mais uma vez desagregado sob a carne e os tendotildees Ao separar-se dos ossos a carne eacute arrancada do sustentaacuteculo e deixa os tendotildees nus e cheios de salinidade ela proacutepria remetida novamente para o sangue torna ainda piores as doenccedilas de que falaacutemos anteriormente260

Mesmo que se trate de impressotildees graves para o corpo ainda mais graves satildeo as que se geram numa camada anterior quando o osso que em virtude da espessura da carne natildeo toma ar suficiente e eacute aquecido pelo bolor fica gangrenado natildeo recebe o alimento e segue pelo sentido contraacuterio desfazendo-se ele proacuteprio em alimento eacute remetido para a carne e a carne eacute

260 Cf supra 82e-83a

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remetida para o sangue o que produz doenccedilas todas elas mais severas do que as anteriores O caso mais extremo de todos daacute-se quando a natureza da medula adoece por falta ou excesso de algo o que provoca os maiores e mais poderosos distuacuterbios que podem levar agrave morte dado que toda a natureza do corpo eacute obrigada a fluir em sentido contraacuterio

Haacute uma terceira espeacutecie de doenccedilas que eacute necessaacuterio considerar as quais satildeo geradas a partir de trecircs causas do sopro respiratoacuterio da fleuma e da biacutelis Quando o pulmatildeo que eacute o controlador dos sopros respiratoacuterios no corpo natildeo consegue manter limpas as vias de saiacuteda que estatildeo bloqueadas por secreccedilotildees o sopro respiratoacuterio natildeo chega a certas partes mas chega a outras mais do que o necessaacuterio o que as faz apodrecer por natildeo conseguirem o arrefecimento enquanto que invadindo outros vasos sanguiacuteneos retorcendo-os e destruindo-os dissolve o corpo ateacute ao seu centro ndash laacute onde o diafragma o refreia e intercepta Por este motivo produz-se uma infinidade de distuacuterbios dolorosos muitas vezes acompanhados de uma abundacircncia de suores Frequentemente quando a carne eacute dissolvida forma-se ar dentro do corpo e eacute impossiacutevel levaacute-lo para o exterior o que causa os mesmos tormentos que quando vem do exterior Satildeo maiores quando o ar afecta os tendotildees e os vasos sanguiacuteneos mais proacuteximos e os faz inchar retesando deste modo para traacutes o extensor e os tendotildees contiacuteguos eacute desta tensatildeo e por este motivo que estas doenccedilas foram chamadas ldquoteacutetanordquo e ldquoopistoacutetonordquo261 Satildeo difiacuteceis de tratar e as febres que

261 opisthotonos Trata-se muito provavelmente do espasmo

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nelas tecircm origem satildeo o factor que leva agrave sua extinccedilatildeo A fleuma branca eacute dolorosa quando o ar das bolhas fica retido mas se for exalada para fora do corpo torna-se mais suave embora peje o corpo com erupccedilotildees brancas e crie distuacuterbios congeacuteneres Mas quando estaacute misturada com biacutelis negra e eacute difundida ateacute agraves oacuterbitas na cabeccedila que satildeo as mais divinas potildee-as em desordem quando acontece durante o sono eacute mais suave mas se se instala enquanto se estaacute acordado torna-se mais difiacutecil de nos vermos livres dela Enquanto distuacuterbio da parte divina eacute com toda a justiccedila que se lhe chama ldquosagradardquo262

A fleuma aacutecida e salgada eacute a fonte de todas as doenccedilas que o catarro gera mas em virtude de os lugares para os quais corre serem variados tomam todo o tipo de nomes Sempre que se diz que haacute uma inflamaccedilatildeo no corpo por causa de ele estar a arder e inflamado tudo isso eacute gerado pela biacutelis Quando ela encontra uma via respiratoacuteria para o exterior entra em ebuliccedilatildeo e expele todo o tipo de abcessos mas se ficar encerrada no interior cria muacuteltiplos distuacuterbios inflamatoacuterios e o mais grave ocorre quando ao misturar-se com o sangue puro altera a organizaccedilatildeo natural do geacutenero das fibras as quais estatildeo espalhadas pelo sangue para que este mantenha a relaccedilatildeo correcta entre fluidez e espessura e natildeo escorra

opistoacutetono (arqueamento suacutebito do corpo que faz projectar a cabeccedila e as pernas para traacutes) que consiste num dos sintomas do teacutetano ou de meningite No entanto o contexto parece sugerir que ldquoopistoacutetonordquo designaria a doenccedila em si e natildeo um sintoma

262 Timeu refere-se agrave epilepsia O facto de lhe chamar ldquosagradardquo deve-se a um tratado do Corpus Hippocraticum dedicado a esta doenccedila cujo tiacutetulo (Sobre a Doenccedila Sagrada) e conteuacutedo lhe apontam causas divinas

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pelos poros do corpo em virtude de ser liquefeito pelo calor nem por outro lado se mantenha sempre nos vasos sanguiacuteneos fluindo a custo por se tornar espesso As fibras graccedilas agrave sua constituiccedilatildeo natural preservam este equiliacutebrio mesmo depois de o sangue ter morrido e comeccedilar a arrefecer se juntarmos as fibras umas com as outras tudo o que resta do sangue fica liquefeito mas se deixarmos ficar as fibras como estatildeo rapidamente o sangue coagula com a colaboraccedilatildeo do frio circundante Como as fibras tecircm esta propriedade sobre o sangue a biacutelis (que por natureza tem a sua origem em sangue velho e volta novamente dissolvida da carne para o sangue) quando primeiro entra em estado liacutequido e quente em pequenas quantidades coagula por causa da propriedade das fibras enquanto coagula e arrefece agrave forccedila causa calafrios e arrepios no interior do corpo Mas quando corre em maior quantidade ao dominar as fibras com o calor que traz consigo sacode-as ateacute agrave desordem ao entrar em ebuliccedilatildeo e se for capaz de dominaacute-las por completo penetra na medula e depois de a incendiar desata daiacute os viacutenculos da alma como se fossem as amarras de um barco e solta-a para a liberdade No entanto quando vem em menor quantidade o corpo resiste a ser dissolvido e ela eacute dominada ou eacute dispersa por todo o corpo ou eacute forccedilada pelos vasos sanguiacuteneos a ir para a parte inferior ou para a parte superior do abdoacutemen Eacute entatildeo expulsa do corpo como os exilados de uma cidade em revolta porque causa diarreias e disenterias e todos os distuacuterbios dessa natureza Quando o corpo adoece sobretudo por um excesso de fogo produzem-se

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inflamaccedilotildees e febres constantes por um excesso de ar tem febres quotidianas por um excesso de aacutegua tem febres terccedilatildes pois a aacutegua eacute mais lenta do que o ar e do que o fogo e por um excesso de terra que eacute a quarta mais lenta deles o corpo eacute purgado durante um periacuteodo de tempo de quatro dias e criam-se febres quartatildes que custam muito a desaparecer

Eacute deste modo que se geram os distuacuterbios que afectam o corpo enquanto que os que afectam a alma e que resultam da condiccedilatildeo do corpo ocorrem do modo que se segue Temos que admitir que a doenccedila da alma eacute a demecircncia e haacute dois geacuteneros de demecircncia a loucura e a ignoracircncia A todas a impressotildees que algueacutem sofra e que englobem uma das duas devemos chamar ldquodoenccedilardquo Devemos tambeacutem estabelecer que os prazeres e as dores em excesso satildeo as mais graves das doenccedilas para a alma Eacute que quando um homem estaacute excessivamente contente ou pelo contraacuterio sofre por causa da dor apressando-se a arrebatar inoportunamente algum objecto ou a fugir do outro natildeo eacute capaz de ver nem de ouvir nada correctamente pois estaacute louco e a sua capacidade de participar do raciociacutenio encontra-se reduzida ao miacutenimo Aquele em quem se gera uma semente abundante que corre livremente pela medula como se fosse uma aacutervore com uma carga de frutos superior agrave medida estipulada pela natureza adquire repetidamente muacuteltiplas anguacutestias e muacuteltiplos prazeres nos seus apetites e nos frutos que nascem dessa condiccedilatildeo Torna-se louco durante a maior parte da vida por causa dos prazeres e dores extremos pois tem a alma doente e eacute mantida na

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insensatez por via do corpo ele eacute tido natildeo por doente mas por propositadamente mau263 A verdade eacute que esta licenciosidade em relaccedilatildeo aos prazeres sexuais eacute uma doenccedila da alma que se deve em grande medida a uma soacute substacircncia que por causa da porosidade dos ossos corre pelo corpo e humedece-o De um modo geral natildeo eacute correcto repreender tudo quanto respeita agrave incontinecircncia de prazeres e ao que eacute considerado digno de repreensatildeo como se os maus o fossem propositadamente ningueacutem eacute mau propositadamente pois o mau torna-se mau por causa de alguma disposiccedilatildeo maligna do corpo ou de uma educaccedilatildeo mal dirigida ndash estas satildeo inimigas de todos e acontecem contra a nossa vontade Novamente no que respeita agraves dores a alma adquire do mesmo modo uma grande quantidade de males atraveacutes do corpo Quando as fleumas aacutecidas e salinas e todos os sucos amargos e biliosos que vagueiam pelo corpo natildeo tomam um fluxo respiratoacuterio para o exterior mas ficam agraves voltas no interior se cruzam com o movimento da alma misturando com ela os seus proacuteprios vapores e introduzem na alma distuacuterbios de toda a espeacutecie mais ou menos graves em menor ou maior quantidade Faz-se transportar ateacute agraves trecircs regiotildees da alma e conforme qual delas ataquem pejam tudo de todas as formas e variedades de mau-humor de

263 Esta concepccedilatildeo assenta no famoso postulado platoacutenico segundo o qual a virtude eacute identificada com o conhecimento e inversamente o viacutecio com a ignoracircncia A sua formulaccedilatildeo eacute amplamente discutida um pouco por todo o corpus platoacutenico (Apologia de Soacutecrates 26a Goacutergias 467c-468c Leis 731c 734b 860d Protaacutegoras 345d-e 357c-e 358c-d Sofista 230a)

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desgosto e pejam tudo de audaacutecia de cobardia e ainda de esquecimento e dificuldade em aprender Aleacutem disto quando haacute homens assim mal constituiacutedos pelas cidades as instituiccedilotildees poliacuteticas264 e os discursos produzidos em privado ou em puacuteblico satildeo maus e quando ainda por cima natildeo existem ensinamentos aprendidos por estes homens desde a infacircncia que de nenhum modo curam destes males entatildeo todos os maus os tornaram maus por via de duas coisas completamente alheias agrave sua vontade Entre eles devemos lanccedilar a acusaccedilatildeo muito mais sobre os que concebem do que os que satildeo concebidos muito mais sobre os que educam do que os que satildeo educados Todavia devemos esforccedilar-nos na medida do possiacutevel atraveacutes da educaccedilatildeo e de haacutebitos de aprendizagem a fugir do mal e a alcanccedilar o seu contraacuterio Mas estes assuntos pertencem a outro tipo de discussatildeo265

No entanto eacute adequado proceder a reflexotildees inversas agravequelas por acccedilatildeo de que meios a sauacutede do corpo e do intelecto266 pode ser cuidada e conservada eacute mais justo atermo-nos a um discurso sobre o bem do que sobre o mal Tudo o que eacute bom eacute belo e o que eacute belo natildeo eacute assimeacutetrico267 estabeleccedilamos que um ser-vivo para ter estes atributos teraacute que ser simeacutetrico Mas entre essas simetrias reconhecemos e distinguimos as

264 politeia Sobre esta traduccedilatildeo do termo vide supra n 38265 O paralelo com a degeneraccedilatildeo dos regimes poliacuteticos no Livro

VIII da Repuacuteblica eacute inevitaacutevel266 dianoecircsis Neste contexto natildeo se trata da actividade

intelectiva mas sim e apenas do proacuteprio intelecto como faculdade que tal como o corpo deve ser exercitada e salvaguardada

267 Sobre a necessidade de algo belo ser simeacutetrico vide Filebo 64e-65a Repuacuteblica 402d

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pequenas enquanto que as mais importantes e as mais grandiosas mantemo-las indefinidas No que respeita agrave sauacutede e agrave doenccedila agrave virtude e agrave maldade natildeo haacute simetria ou assimetria maior do que a da proacutepria alma em relaccedilatildeo ao proacuteprio corpo natildeo temos nada disto em mente nem supomos que quando uma estrutura fraacutegil e pequena carrega uma alma forte e em tudo grandiosa e quando os dois satildeo unidos de acordo com a relaccedilatildeo inversa o conjunto do ser-vivo natildeo seraacute belo ndash eacute assimeacutetrico em relaccedilatildeo agraves simetrias principais No entanto quando estaacute na situaccedilatildeo inversa mostra a quem consegue ver a mais bela e mais agradaacutevel de todas as maravilhas Um corpo com as pernas demasiadamente compridas ou com qualquer outro excesso eacute em si mesmo simultaneamente aberrante e assimeacutetrico ao mesmo tempo quando conjuga esforccedilos provoca muitos sofrimentos muitas roturas e quedas em virtude do seu movimento cambaleante o que eacute uma causa de incontaacuteveis males para si proacuteprio

Devemos pensar o mesmo acerca do composto dual a que chamamos ser-vivo porque quando nele a alma por ser mais poderosa do que o corpo se apresenta irasciacutevel sacode-o violentamente e inunda-o todo de doenccedilas por todo o lado e consome-o quando se debruccedila intensamente sobre algum ensinamento ou investigaccedilatildeo quando ela se dedica agrave aprendizagem ou a discussotildees oratoacuterias em puacuteblico ou em privado agita-o e torna-o ardente nas disputas e rivalidades que se geram Ao induzir fluxos engana a maioria dos chamados meacutedicos e faacute-los responsabilizar as causas contraacuterias

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Quando um corpo demasiado grande e demasiado forte para a alma eacute congeminado com uma actividade intelectual268 diminuta e fraacutegil como nos homens existem dois tipos de apetites ndash um de alimento que proveacutem do corpo e outro de pensamento269 que proveacutem da parte mais divina que haacute em noacutes ndash e visto que os movimentos da parte mais poderosa dominam e aumentam o seu poder tornam a alma obtusa avessa agrave aprendizagem e privada de memoacuteria e produzem a pior doenccedila a ignoracircncia270 Haacute uma soacute salvaccedilatildeo para estas duas doenccedilas natildeo movimentar a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma para que defendendo-se um ao outro mantenham equiliacutebrio e sauacutede Por isso o matemaacutetico ou qualquer outra pessoa que se dedique intensamente a uma actividade intelectual271 deve compensaacute-la com o movimento do seu corpo associando-lhe ginaacutestica em sentido inverso aquele que molda o corpo cuidadosamente deve compensar com os movimentos da alma servindo-se da muacutesica e de tudo quanto diz respeito agrave filosofia se espera que se diga com justiccedila e correctamente que eacute simultaneamente belo e bom272 Eacute tambeacutem deste modo que devemos tratar estas partes imitando o padratildeo do universo

268 dianoia269 phronecircsis270 amathia ldquoIgnoracircnciardquo no sentido mais literal de ldquodificuldade

em aprenderrdquo271 dianoia272 Referecircncia ao homem kalos kagathos o estado de perfeiccedilatildeo

educativa discutido e desenvolvido em vaacuterios diaacutelogos (Protaacutegoras 315d Repuacuteblica 376c 396c Teeteto 185e)

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Na verdade o corpo eacute aquecido e arrefecido por aquilo que nele entra e novamente eacute seco e humedecido pelo que vem do exterior Ele eacute afectado por este duplo movimento e por aquilo que dele decorre Assim quando algueacutem abandona o corpo em repouso ao sabor destes movimentos eacute dominado e destruiacutedo por eles Mas se algueacutem imitar aquilo a que chamaacutemos ldquoama e sustento do universordquo273 antes de mais natildeo pode deixar de modo algum o corpo em repouso antes o deve manter sempre em movimento e imprimir-lhe uma certa agitaccedilatildeo constante o que o protegeraacute normalmente dos movimentos interiores e exteriores No entanto se agitarmos na justa medida as propriedades e as partes em desordem no corpo ordenaremos as partes umas em relaccedilatildeo agraves outras seguindo a disposiccedilatildeo que lhes eacute congeacutenere de acordo com o discurso que fizemos anteriormente sobre o universo274 impedindo que o inimigo sendo posto ao lado do inimigo crie guerras e doenccedilas para o corpo antes fazendo com que o amigo posto ao lado do amigo ofereccedila sauacutede O melhor dos movimentos do corpo eacute aquele que eacute produzido por ele proacuteprio e nele proacuteprio ndash pois eacute o movimento de natureza mais proacutexima do pensamento e do do universo ndash e os produzidos por outra coisa satildeo inferiores mas de todos o pior eacute aquele que por meio de causas externas move algumas partes de um corpo em repouso que se manteacutem estaacutetico Eacute por isso que entre as formas de purificaccedilatildeo e reforccedilo do corpo a melhor eacute a que se alcanccedila atraveacutes

273 Cf supra 52d-sqq274 Cf supra 53a-b 69b

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da ginaacutestica A segunda eacute a que se consegue atraveacutes das oscilaccedilotildees ritmadas nas viagens de barco ou noutro meio de transporte que nos mantenha livres de fadiga A terceira forma de movimento uacutetil para quem em certas alturas tenha extrema necessidade mas que natildeo deve ser empregue em nenhuma outra circunstacircncia por quem tenha bom-senso275 trata-se do tratamento meacutedico de purificaccedilatildeo farmacecircutica eacute que natildeo devemos irritar com faacutermacos as doenccedilas que natildeo constituem grandes perigos

Toda a estrutura das doenccedilas se assemelha de algum modo agrave natureza dos seres-vivos Eacute que a constituiccedilatildeo dos seres-vivos em todo o conjunto das espeacutecies tem uma duraccedilatildeo de vida preacute-definida e cada ser-vivo nasce com a existecircncia que lhe foi destinada agrave parte as impressotildees produzidas pela Necessidade pois desde a origem de cada um os triacircngulos conseguem guardar a propriedade que possuem de se manterem constituiacutedos ateacute um determinado tempo altura aleacutem da qual a vida natildeo pode de modo algum prolongar-se Passa-se o mesmo com a constituiccedilatildeo das doenccedilas quando algueacutem potildee fim a uma doenccedila por meio de faacutermacos antes da duraccedilatildeo que lhe foi destinada eacute frequente gerarem-se graves doenccedilas a partir de doenccedilas fracas e um grande nuacutemero a partir de poucas Por isso eacute que eacute necessaacuterio educar todas as manifestaccedilotildees desta natureza atraveacutes de haacutebitos de vida quando se tiver tempo para isso e natildeo se deve irritar um mal coleacuterico com a aplicaccedilatildeo de faacutermacos

275 nous

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Fica assim descrito o que respeita ao conjunto do ser-vivo no que respeita agrave sua parte corporal e ao modo como algueacutem deve governar e ser governado por si mesmo para que tenha uma existecircncia em maacuteximo acordo com a razatildeo276 Quanto agrave parte que governa devemos preparaacute-la para que dentro dos possiacuteveis seja a mais bela e melhor para governar Discorrer com exactidatildeo sobre este assunto seria por si soacute suficiente para dar origem a uma obra exclusiva mas como assunto acessoacuterio no seguimento do que dissemos anteriormente natildeo seria despropositado retomar e concluir o discurso do seguinte modo Como jaacute dissemos muitas vezes277 foram estabelecidas em noacutes trecircs espeacutecies de alma em trecircs regiotildees e aconteceu que cada uma ficou com um movimento Deste modo de acordo com estes pressupostos temos que mencionar do modo mais breve possiacutevel que aquela das espeacutecies que se manteacutem em descanso e em repouso em relaccedilatildeo aos movimentos que lhe satildeo proacuteprios torna-se necessariamente mais fraca enquanto que aquela que se manteacutem em exerciacutecio fica mais forte por isso devemos zelar para que possam manter os movimentos coordenados umas com as outras

Quanto agrave espeacutecie de alma que nos domina eacute necessaacuterio ter em conta o seguinte um deus deu a cada um de noacutes um daimon278 aquilo que dizemos habitar no

276 logos277 Cf supra 69d-sqq278 Toda esta secccedilatildeo faz lembrar o mito escatoloacutegico com que

termina a Repuacuteblica (614b-621b) segundo o qual as almas satildeo redistribuiacutedas pelos novos corpos em funccedilatildeo da orientaccedilatildeo seguida

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alto do nosso corpo ndash e dizemo-lo muito correctamente ndash e nos eleva desde a terra ateacute agravequilo que eacute nosso congeacutenere no ceacuteu porque somos uma planta celeste e natildeo terrena Foi desse lugar onde se engendrou a primeira geacutenese da alma que a parte divina fez depender a nossa cabeccedila que eacute como uma raiz e manteacutem todo o nosso corpo da posiccedilatildeo erecta Assim quando algueacutem se entregou aos apetites e agraves ambiccedilotildees e cultivou excessivamente esses viacutecios eacute inevitaacutevel que todos os seus pensamentos sejam mortais em tudo se tornou mortal tanto quanto possiacutevel e nada nele deixa de ser mortal pois foi essa a natureza que desenvolveu Por outro lado para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos verdadeiros279 exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo eacute absolutamente inevitaacutevel que nele surjam pensamentos imortais e divinos jaacute que se ateve ao que eacute verdadeiro E tanto quanto eacute permitido agrave natureza humana participar da imortalidade dessa condiccedilatildeo natildeo deixe de lado nem a miacutenima parte Ao cuidar sempre da parte divina que conteacutem em si tenha em ordem o daimon que habita dentro de si bem como seja particularmente feliz

Para todos os seres haacute somente um cuidado a ter em atenccedilatildeo atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes satildeo proacuteprios Os movimentos congeacuteneres do que haacute de divino em noacutes satildeo os pensamentos280 e as oacuterbitas do universo Eacute necessaacuterio que cada um os acompanhe corrigindo atraveacutes da nas vidas anteriores

279 peri philomathian kai peri tas alecirctheis phronecircseis280 dianoecircsis

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aprendizagem das harmonias e das oacuterbitas do universo as oacuterbitas destruiacutedas nas nossas cabeccedilas na altura da geraccedilatildeo tornando aquilo que pensa semelhante ao objecto pensado281 de acordo com a natureza original e depois de ter feito esta assimilaccedilatildeo atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro

Parece que agora estaacute perto do fim aquilo que desde o princiacutepio estaacutevamos obrigados a fazer discorrer sobre o universo ateacute agrave geraccedilatildeo do homem282 Quanto aos outros seres vivos no que toca ao modo como foram gerados devemos mencionaacute-lo ainda que de forma breve pois natildeo haacute qualquer necessidade de nos demorarmos sobre esse assunto Se fosse esse o caso poderia algueacutem achar que eu estava a ser mais minucioso em relaccedilatildeo a estes assuntos do que agravequeles

Eis o que iremos dizer Entre os que foram gerados machos todos os que satildeo cobardes e levaram a vida de forma injusta de acordo com o discurso verosiacutemil renascem mulheres na segunda geraccedilatildeo Por esse motivo e nessa altura os deuses conceberam o desejo da copulaccedilatildeo constituindo dentro de noacutes e dentro das mulheres um ser-vivo animado e criaram cada um deles do seguinte modo A via de saiacuteda da bebida onde o liacutequido chega depois passar pelo pulmatildeo e pelos rins ateacute agrave bexiga que ao ser pressionado pelo sopro respiratoacuterio283 ela recebe e expele juntaram-na por meio de uma perfuraccedilatildeo agrave medula ndash a que nos discursos anteriores chamaacutemos

281 tocirc katanooumenocirc to katanooun exomoiocircsai282 Cf supra 27a283 pneuma

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semente284 ndash que da cabeccedila desce ateacute ao pescoccedilo e passa pela espinha A medula que eacute dotada de alma e recebe respiraccedilatildeo ao criar no oacutergatildeo por onde se ventila um apetite vital de ejaculaccedilatildeo engendra o desejo amoroso criador Eacute por isso que a natureza das partes iacutentimas dos homens eacute desobediente e autoacutenoma semelhante a um ser-vivo desobediente da razatildeo285 e empreende dominaacute-lo por meio destes apetites acutilantes Pelas mesmas razotildees aquilo a que nas mulheres se chama ldquomatrizrdquo ou ldquouacuteterordquo um ser-vivo aacutevido de criaccedilatildeo quando estaacute infrutiacutefero durante muito tempo aleacutem da eacutepoca torna-se irritado ndash um estado em que sofre terrivelmente Em virtude de vaguear por todo o lado no corpo e bloquear as vias de saiacuteda do sopro respiratoacuterio natildeo o deixando respirar atira-o para extremas dificuldades e provoca-lhe outras doenccedilas de toda a espeacutecie ateacute que o apetite e o desejo amoroso de cada um deles se reuacutenam para colherem o fruto como de uma aacutervore e semearem na matriz como num campo lavrado os seres-vivos invisiacuteveis (por causa da sua extrema pequenez) e ainda informes os quais depois separam e alimentam dentro de si tornando-os grandes depois disto datildeo-nos agrave luz e completam a geraccedilatildeo dos seres-vivos

Assim nasceram as mulheres e todas as fecircmeas Quanto agrave raccedila das aves eacute produzida de uma forma diferente pois tem por natureza penas em vez de pecirclos a partir de homens sem maldade e leves conhecedores dos fenoacutemenos celestes mas que na sua ingenuidade

284 sperma Cf supra 74a 77d 86c-d285 logos

Platatildeo

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acreditam que as evidecircncias mais seguras sobre estes assuntos satildeo as fornecidas pela visatildeo Quanto agrave espeacutecie dos animais terrestres e das feras ela gera-se daqueles que natildeo fazem uso da filosofia nem prestam qualquer atenccedilatildeo agrave natureza do que diz respeito ao ceacuteu por jamais se servirem das oacuterbitas que tecircm dentro da cabeccedila mas seguem os conselhos das partes da alma que estatildeo em torno do peito Por causa destes haacutebitos os seus membros anteriores e as suas cabeccedilas foram arrastados em direcccedilatildeo agrave terra para se fixarem naquilo de que satildeo congeacuteneres Tecircm o topo da cabeccedila alongado e multiforme em funccedilatildeo do modo como as oacuterbitas de cada um foram esmagadas pela preguiccedila (92a)O seu geacutenero foi criado com quatro ou mais patas pelo seguinte motivo o deus apocircs mais suportes aos mais irracionais porque iriam ser mais arrastados para a terra Aos mais irracionais de entre eles e aos que tecircm o corpo completamente estendido pela terra visto natildeo terem qualquer necessidade de patas engendraram-nos privados de patas e a rastejar sobre a terra (92b) A quarta espeacutecie a que estaacute na aacutegua foi gerada a partir daqueles que eram mais desprovidos de intelecto e ignorantes aqueles que os tornaram a moldar nem sequer os acharam dignos de respirar ar puro porque graccedilas aos erros tinham a alma completamente conspurcada pelo que em vez de uma respiraccedilatildeo de ar leve e puro obrigaram-nos a respirar um ar turvo e pesado na aacutegua Por isso se gerou a raccedila dos peixes e de todos os crustaacuteceos que vivem na aacutegua como pena pelo grau de ignoracircncia a que desceram coube-lhes a mais baixa morada Eacute de acordo com todos estes pressupostos

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Timeu

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que outrora e agora os seres-vivos se transformam uns nos outros de acordo com o facto de perderem ou ganharem em intelecto ou em demecircncia

Agora declaremos que o nosso discurso sobre o universo chegou ao fim tendo recebido seres-vivos mortais e imortais ndash ficando deste modo preenchido ndash assim foi gerado o mundo como um ser-vivo visiacutevel que engloba todas as coisas visiacuteveis deus sensiacutevel imagem do inteligiacutevel286 o mais grandioso o melhor o mais belo e mais perfeito o ceacuteu que eacute uacutenico e unigeacutenito

286 eikocircn tou noecirctou theos aisthecirctos

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Criacutetias

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Timeu Como estou feliz oacute Soacutecrates agora que termino com regozijo a viagem do meu discurso tal como se descansasse de uma longa caminhada1 Ao deus que foi gerado outrora na realidade e agora mesmo em palavras2 eu rogo que de entre aquilo que dissemos garanta a perenidade do que foi mencionado correctamente mas se em relaccedilatildeo a algum assunto proferimos inadvertidamente algo fora de tom que nos aplique a pena que seja adequada Ora a pena acertada para quem daacute uma nota em falso eacute entrar no tom portanto para que exponhamos correctamente os discursos relativos ao que resta dizer sobre a geraccedilatildeo dos deuses rogamos-lhe que nos forneccedila o remeacutedio mais

1 A metaacutefora do discurso como viagem eacute bastante recorrente em Platatildeo (eg Filebo 14a Leis 645a)

2 Trata-se do mundo sensiacutevel que por diversas vezes eacute chamado ldquodeusrdquo (34a-b 68e 92c) A oposiccedilatildeo ldquona realidadeem palavrasrdquo e ldquooutroraagorardquo acentua os planos absolutamente distintos em que se encontram os dois ldquofabricadoresrdquo em causa o demiurgo gerou (literalmente) o mundo num tempo anterior ao humano e natildeo cronoloacutegico ao passo que Timeu o reconstituiu em palavras obedecendo a um ldquoagorardquo cronoloacutegico e diegeacutetico

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perfeito e excelente de entre os remeacutedios ndash o saber Feitas as preces entreguemos o discurso seguinte a Criacutetias de acordo com o combinado3

Criacutetias E eu aceito-o oacute Timeu mas tal como tambeacutem tu o abordaste no iniacutecio quando pediste toleracircncia4 porque estavas prestes a falar sobre assuntos de grande importacircncia igualmente eu neste momento apelo a isso mesmo pois considero-me merecedor de obter ainda mais toleracircncia em virtude dos assuntos sobre os quais estou prestes a falar Com efeito tenho noccedilatildeo de que o pedido que vos vou dirigir eacute bastante ambicioso e mais indelicado do que eacute devido mas ainda assim tenho que dizecirc-lo Quanto ao que foi referido por ti quem no seu juiacutezo perfeito ousaria dizer que isso natildeo eacute acertado Mas que aquilo de que eu vou falar carece de mais toleracircncia por ser mais problemaacutetico isso terei que explicar de uma maneira ou de outra

Na verdade oacute Timeu sempre que dizemos aos homens algo sobre os deuses eacute mais faacutecil parecer falar adequadamente do que quando dizemos a noacutes homens algo sobre os mortais Eacute que a inexperiecircncia e a ignoracircncia extremas dos ouvintes em relaccedilatildeo aos assuntos a tratar proporcionam uma destreza acrescida agravequele que estaacute prestes a dizer algo sobre eles no que diz respeito aos deuses sabemos que eacute essa a nossa condiccedilatildeo

3 O programa dos discursos fora estabelecido logo no iniacutecio do Timeu (27a-b) Eacute provaacutevel que se trate dos astros como sugere Brisson (2001 p 380 n 8) mas natildeo existem quaisquer dados que confirmem essa suspeita

4 Cf Timeu 29c-d

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CriacuteTias

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Mas para que explique com maior clareza aquilo que digo acompanhem-me no seguinte raciociacutenio Aquilo que todos noacutes pronunciamos eacute necessariamente uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo5 No que trata agrave reproduccedilatildeo de imagens de corpos humanos ou divinos produzida pelos pintores apercebemo-nos de que no apuramento da facilidade ou dificuldade do processo imitativo para quem as observa a aparecircncia eacute suficiente Tambeacutem reparamos que no que diz respeito agrave terra a montanhas rios uma floresta ao ceacuteu e a tudo quanto existe e circula em torno dele ficamos satisfeitos acima de tudo se algueacutem for capaz de os reproduzir com um miacutenimo de semelhanccedila Aleacutem disso como natildeo sabemos nada de rigoroso sobre assuntos dessa natureza natildeo examinamos nem pomos agrave prova o que foi pintado e apreciamos uma pintura de sombreados indistinta e ilusoacuteria6 Por outro lado sempre que algueacutem tenta representar os nossos corpos em virtude de nos apercebermos com acuidade daquilo que foi negligenciado graccedilas agrave constante observaccedilatildeo iacutentima tornamo-nos juiacutezes implacaacuteveis de tudo aquilo que natildeo esteja absolutamente dotado de semelhanccedila

Eacute forccediloso que compreendamos que acontece o mesmo com os discursos jaacute que devemos ficar satisfeitos

5 Criacutetias propotildee uma teoria da linguagem muito proacutexima da concepccedilatildeo platoacutenica da arte em geral que fora estabelecida na Repuacuteblica (597a-e) e no final do Sofista Tanto que o exemplo a que vai recorrer para ilustrar esta sua posiccedilatildeo releva precisamente do acircmbito da pintura

6 A teacutecnica da pintura com sombreados (skiagraphia) era considerada por Platatildeo uma forma de ilusatildeo propositada (cf Repuacuteblica 602c-e)

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se o que dissermos sobre assuntos celestes e divinos for minimamente verosiacutemil ao passo que podemos examinar minuciosamente os mortais e humanos7 Quanto ao discurso que agora faremos fruto do improviso se natildeo conseguirmos dotaacute-lo de clareza em relaccedilatildeo a todos os aspectos teremos necessariamente que ser condescendentes eacute que eacute preciso ter em conta que natildeo eacute nada faacutecil senatildeo extremamente difiacutecil produzir representaccedilotildees dos assuntos mortais que relevam do acircmbito da opiniatildeo

108a Eacute disto que eu vos quero recordar e foi pelo facto de vos pedir natildeo menos mas sim mais toleracircncia em relaccedilatildeo ao que estou prestes a dizer que mencionei tudo isto oacute Soacutecrates Se vos pareccedilo pedir justificadamente a oferenda concedei-me-la de bom grado

Soacutecrates E por que motivo natildeo ta haveriacuteamos de conceder oacute Criacutetias Tambeacutem ao terceiro Hermoacutecrates noacutes havemos de lhe conceder a mesma toleracircncia De facto eacute evidente que um pouco mais tarde quando lhe competir a ele discursar a pediraacute tal como vocecircs8 Deste modo para que planeie um iniacutecio diferente e natildeo esteja compelido a dizer o mesmo ele que discurse partindo do princiacutepio que deste modo e neste momento lhe foi garantida a toleracircncia Quanto a ti meu caro Criacutetias dir-te-ei de antematildeo qual eacute a disposiccedilatildeo do puacuteblico o

7 Note-se que tambeacutem no discurso de Criacutetias a verosimilhanccedila eacute tida por exigecircncia racional

8 Hermoacutecrates seria o terceiro (a seguir a Criacutetias) a intervir (vide Introduccedilatildeo pp 14-15)

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poeta anterior a ti9 granjeou diante dele grande estima de tal forma que precisaraacutes de toleracircncia ilimitada a teu favor se te consideras capaz de a obter

Hermoacutecrates Daacutes-me a mesma recomendaccedilatildeo que a este aqui oacute Soacutecrates Mas com efeito oacute Criacutetias nunca homens sem valor obtiveram um trofeacuteu10 Por isso conveacutem que avances corajosamente com o teu discurso invocando o Salvador11 e as Musas para dares a conhecer os ilustres cidadatildeos antepassados e lhes dedicares um hino12

Criacutetias Oacute caro Hermoacutecrates por teres sido posicionado na linha mais recuada e teres outra pessoa agrave tua frente estaacutes ainda cheio de coragem O que eacute estar nesta situaccedilatildeo isso em breve te seraacute revelado mas tenho que obedecer ao teu incentivo e estiacutemulo e aleacutem dos deuses que mencionaste temos que invocar ainda outros principalmente Mnemoacutesine13 Eacute que quase todos os assuntos do nosso discurso dizem respeito a

9 Refere-se a Timeu10 Neste contexto a metaacutefora eacute puramente beacutelica sendo que o

trofeacuteu (tropaion) refere um pequeno monumento que era erigido no campo de batalha como siacutembolo de vitoacuteria O acircmbito semacircntico militar vai manter-se pelas proacuteximas linhas como que anunciando o longo discurso de Criacutetias sobre o confronto militar

11 Epiacuteteto de Apolo12 Foi referido ainda no resumo do Timeu (21a) que a narrativa

sobre a lendaacuteria guerra visava glorificar a cidade de Atenas no dia da sua festa (as Panateneias durante as quais se desenvolve a acccedilatildeo)

13 Personificaccedilatildeo divinizada da memoacuteria de quem eram filhas as Musas Esta invocaccedilatildeo era bastante comum nos poetas e historiadores

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essa deusa pois se lembrarmos o suficiente do que foi dito pelos sacerdotes de outrora trazido ateacute aqui por Soacutelon14 e o dermos a conhecer creio que aos olhos do puacuteblico pareceremos cumprir razoavelmente aquilo a que nos comprometecircramos Eacute isso que devemos fazer de imediato e natildeo podemos demorar nem mais um pouco

Primeiro que tudo recordemos o principal15 passaram nove mil anos desde a referida guerra entre os que habitavam aleacutem das Colunas de Heacuteracles16 e todos aqueles que estavam para aqueacutem conveacutem agora que discorramos sobre ela em pormenor De um lado segundo se diz estava a nossa cidade que comandou e travou a guerra ateacute ao fim enquanto que do outro estavam os reis da Ilha da Atlacircntida ilha essa que como dissemos haacute pouco era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia17 juntas Mas actualmente por estar submersa graccedilas aos tremores de terra constitui um obstaacuteculo de lama intransitaacutevel para aqueles que querem navegar dali para o alto-mar de tal forma que nunca mais pode ser ultrapassado

Quanto aos vaacuterios povos baacuterbaros e tambeacutem todos os que de entre os Gregos existiam naquele tempo a exposiccedilatildeo do relato no seu desenrolar revelaraacute o que diz respeito a cada um deles sucessivamente e caso a

14 Cf Timeu 21c-sqq15 O essencial do discurso Criacutetias vai iniciar fora jaacute referido no

Timeu (20d-26d)16 O Estreito de Gibraltar17 A Liacutebia corresponde actualmente a todo o Norte de Aacutefrica

e a Aacutesia ao territoacuterio que se estende desde a Peniacutensula Araacutebica ateacute ao Norte da Iacutendia

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caso18 No que diz respeito aos Atenienses de entatildeo e aos seus opositores contra os quais entraram em guerra eacute necessaacuterio que comece por analisar em primeiro lugar o poderio beacutelico e a forma de governo19 de cada um deles De entre eles devemos optar por falar primeiro deste daqui

Em determinada altura os deuses dividiram toda a terra em regiotildees ndash sem recurso a disputa nem seria correcto dizer que os deuses ignoravam o que era apropriado a cada um deles nem tampouco que apesar de saberem o que era mais adequado para os outros tentavam entre si apropriar-se disso para si proacuteprios por meio de disputas ndash e havendo obtido a regiatildeo que lhes agradava de acordo com as sortes da Justiccedila povoaram esses lugares Depois de os terem povoado criaram-nos como se fossem bens ou animais agrave semelhanccedila de pastores com o gado soacute que natildeo subjugavam corpos com corpos como os pastores que orientam os rebanhos agrave pancada mas da melhor maneira para lidar com uma criatura que eacute guiaacute-la pela proa tomando de acordo com o seu proacuteprio desiacutegnio a alma como um leme por meio da persuasatildeo conduziam e governavam deste modo todos os seres mortais20

18 A descriccedilatildeo das forccedilas em conflito antes do combate propriamente dito era um costume dos historiadores (cf Tuciacutedides 189-sqq) Visto que Criacutetias refere que falaraacute detalhadamente de todos os povos envolvidos (Atlantes Gregos e respectivos aliados) descrevendo depois o confronto propriamente dito eacute certo que o diaacutelogo completo era bastante extenso Contudo termina como sabemos quando aborda o iniacutecio da degenerescecircncia social e moral do povo atlante

19 politeia20 Esta metaacutefora do estadista como timoneiro de uma nau

bastante utilizada na trageacutedia remonta aos versos de Arquiacuteloco

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Enquanto que aos outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de um modo diferente Hefesto e Atena por terem uma natureza comum ndash por um lado eram irmatildeos de um mesmo pai e por outro em virtude do gosto pelo saber e pela arte tinham a mesma orientaccedilatildeo21 ndash a ambos assim coube em sorte uma uacutenica porccedilatildeo que eacute este lugar aqui porque era por natureza afim e adequado agrave virtude e agrave sabedoria22 Entatildeo colocaram aqui homens bons os autoacutectones e introduziram-lhes a ordem poliacutetica no intelecto23

Os nomes deles foram conservados mas os feitos graccedilas ao facto de terem perecido aqueles que os herdaram e agrave vastidatildeo do tempo desapareceram Eacute que o geacutenero de pessoas que sempre sobrevive tal como foi dito anteriormente24 manteacutem-se serrano25 e analfabeto estas apenas tinham ouvido falar dos nomes dos governantes daquele lugar e aleacutem disso do pouco que haviam feito Assim eles punham esses nomes aos seus descendentes

(poeta do seacutec VII aC) que compara uma tempestade a uma crise poliacutetica e o timoneiro ao poliacutetico que a pode superar (fr 106 West) Aparece com um sentido anaacutelogo na passagem da Repuacuteblica sobre a nau do estado (488a-499a) e tambeacutem no Poliacutetico onde Cronos eacute chamado ldquotimoneiro do universordquo (272e4)

21 Ambos Atena e Hefesto eram filhos de Zeus bem como se dedicavam a assuntos muito semelhantes Atena nutria especial apreccedilo pelas artes e letras (o saber em geral) e Hefesto dominava a metalurgia como artesatildeo bem como era o deus do fogo (o fogo era siacutembolo da ciecircncia como disso eacute exemplo o famoso mito de Prometeu)

22 aretecirc kai phronecircsis23 nous24 Cf Timeu 22c-d25 O termo oreios (lit ldquoque vive nas montanhasrdquo) eacute neste

contexto usado com um sentido pejorativo

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por isso os agradar mas natildeo conheciam as virtudes e as leis dos antepassados a natildeo ser alguns relatos obscuros em relaccedilatildeo a certos aspectos Por viverem com carecircncia e necessitados durante muitas geraccedilotildees eles e os seus filhos tinham apenas em mente aquilo de que careciam e conversavam apenas sobre isso negligenciando aquilo que acontecera outrora num tempo anterior ao seu Na verdade a mitologia e a investigaccedilatildeo de dados do passado chegam agraves cidades juntamente com o oacutecio apenas quando os habitantes se apercebem de que as necessidades baacutesicas estatildeo garantidas para um certo nuacutemero de pessoas e natildeo antes Foi por este motivo que mantiveram conservados os nomes dos antepassados agrave parte dos feitos Digo isto baseando-me em Soacutelon que referia que os sacerdotes enquanto narravam a guerra de outrora mencionavam com muita frequecircncia os nomes de Ceacutecrope Erecteu Erictoacutenio Erisiacutecton26 e a maior parte daqueles que antecederam Teseu cujos nomes permaneceram recordados e o mesmo no que respeita agraves mulheres ndash de facto visto que naquele tempo as ocupaccedilotildees respeitantes agrave guerra eram comuns agraves mulheres e aos homens a estaacutetua da deusa era por isso representada pelos de entatildeo com armas de acordo com aquele costume como tributo agrave deusa isso eacute uma prova27 de que todos os seres-vivos da mesma condiccedilatildeo

26 Personagens lendaacuterias associadas agrave fundaccedilatildeo da cidade de Atenas Ceacutecrope teria sido o primeiro rei Erecteu o seu pai Erictoacutenio avocirc de Erecteu Erisiacutecton filho de Ceacutecrope

27 Endeigma Embora esta palavra em concreto natildeo seja usada por Heroacutedoto nem por Tuciacutedides daacute igualmente conta da preocupaccedilatildeo historicista no narrador A este propoacutesito vide Introduccedilatildeo pp 57-63

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ndash tanto fecircmeas quanto machos ndash satildeo por natureza capazes de praticar em comum a virtude respeitante a cada espeacutecie28

Por outro lado naquele tempo os outros grupos de cidadatildeos ligados aos ofiacutecios e ao sustento que provinha da terra viviam neste lugar aqui enquanto que o dos combatentes separados desde o princiacutepio por homens divinos viviam agrave parte tendo acesso a tudo o que fosse adequado agrave sua subsistecircncia e educaccedilatildeo Nenhum deles possuiacutea nada a tiacutetulo particular pois todos eles consideravam tudo comum a todos eles e natildeo se achavam no direito de receber dos outros cidadatildeos nada aleacutem do necessaacuterio agrave sua subsistecircncia atarefados que estavam com todas as ocupaccedilotildees de que ontem falaacutemos ndash aquelas que foram referidas a propoacutesito dos guardiotildees que propusemos29

Na verdade ateacute era plausiacutevel e mesmo verdadeiro o que se dizia a propoacutesito da nossa terra30 em primeiro

28 A igualdade de geacuteneros eacute tambeacutem referida no Timeu (18c-sqq) e na Repuacuteblica (456a-sqq)

29 Quando refere que as ocupaccedilotildees destes cidadatildeos satildeo as que descreveram no dia anterior Criacutetias remete para o que foi dito acerca das funccedilotildees da classe dos guardiotildees da cidade ideal descritas na Repuacuteblica (395b-d) e tambeacutem no iniacutecio do Timeu (17d) deviam dedicar-se exclusivamente agrave defesa do Estado Aleacutem disso satildeo tambeacutem evidentes outras semelhanccedilas natildeo possuiacuteam bens a tiacutetulo particular recebiam o sustento dos outros cidadatildeos bem como viviam em comunidade (Repuacuteblica 416e Timeu 18b)

30 Segundo Brisson (2001 p 383 nn 60 64) a descriccedilatildeo que se segue pretende fundamentar algumas reivindicaccedilotildees territoriais atenienses da eacutepoca de Platatildeo Ao alargar as fronteiras da Aacutetica ateacute ao Istmo de Corinto a sudoeste inclui a cidade de Meacutegara (causa de diversos confrontos com os Coriacutentios) e quando aponta o Rio Asopo como fronteira a norte engloba a Oroacutepia cuja principal

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lugar que nessa altura as fronteiras que a circunscreviam se estendiam ateacute ao Istmo [de Corinto] de um lado31 e na direcccedilatildeo da regiatildeo continental ateacute aos cumes do Citeacuteron e do Parnaso32 que essas fronteiras continuavam pelas encostas do lado direito (incluindo a Oroacutepia33) ateacute ao Asopo34 e do lado esquerdo estavam delimitadas pelo mar que toda esta terra superava em fertilidade o restante territoacuterio pelo que na altura este lugar era capaz de manter alimentado um vasto exeacutercito e livre de trabalhos com a terra35 Eis uma grande evidecircncia36 dessa fertilidade o que dela ainda agora resta eacute equiparaacutevel a qualquer outra por ter muita variedade de cultivo e riqueza de colheitas bem como boas pastagens para todo o tipo de animais Aleacutem da qualidade de entatildeo comportava tudo isso em abundacircncia Mas como pode isso ser crediacutevel e com base em quecirc se poderaacute dizer acertadamente que satildeo os restos da terra daquele tempo

Todo o territoacuterio que se estende a partir do resto do continente e desemboca no mar eacute semelhante a um cidade (Oropo) era continuamente disputada com os Beoacutecios

31 Isto eacute para sudoeste32 O Citeacuteron e o Parnaso eram dois montes que se encontravam

entre a Beoacutecia e a Aacutetica33 Vide supra n 3034 Um rio a norte dos Montes Parnaso e Citeacuteron Vide supra

n 3235 Natildeo podemos deixar de notar nesta secccedilatildeo um eco da Idade

do Ouro (periacuteodo em que a Natureza proporcionava todos os bens estando os homens livres de trabalhos agriacutecolas) que Hesiacuteodo descreve nos Trabalhos e Dias (vv 109-126)

36 Tekmecircrion Trata-se de um termo muito usado pelos historiadores para fundamentar o seu discurso (Heroacutedoto 2131 33810 72384 Tuciacutedides 113 2392 31046)

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grande promontoacuterio e acontece que o invoacutelucro de mar que a circunda eacute profundo em todos os pontos da costa Graccedilas a muitos e grandes diluacutevios que ocorreram nestes nove mil anos ndash este foi o nuacutemero de anos que passou desde esse tempo ateacute agora ndash a terra que em virtude do que aconteceu durante essas ocasiotildees deslizou das terras altas natildeo se empilhou num morro digno de menccedilatildeo como acontece noutros locais antes ao escorregar continuamente semelhante a uma roda desapareceu no fundo do mar Comparado ao de entatildeo o que agora restou ndash tal como aconteceu nas pequenas ilhas ndash eacute semelhante aos ossos de um corpo que adoeceu pois tudo o que a terra tinha de gordo e mole escorregou tendo somente restado desse lugar o corpo descascado Mas naquele tempo enquanto esteve intacta tinha montanhas altas e encristadas de terra e quanto agraves planiacutecies a que agora chamamos solo rochoso tinha-as cheias de terra feacutertil Tinha tambeacutem numerosas florestas nas montanhas de que ainda hoje haacute evidecircncias manifestas pois eacute nestas montanhas que actualmente existe o uacutenico alimento para as abelhas e natildeo haacute muito tempo que se cortava aacutervores nesse local para construir os tectos das grandes edificaccedilotildees ndash coberturas essas que ainda estatildeo conservadas Havia tambeacutem muitas e grandes aacutervores benignas bem como a terra providenciava pastos maravilhosos para o gado Aleacutem disso fruiacutea a cada ano de aacutegua vinda de Zeus e natildeo a perdia ao contraacuterio de agora que corre da terra nua ateacute ao mar em vez disso por ter muita terra recebia-a dentro de si e armazenava-a num solo argiloso que a sustinha Ao descarregar a aacutegua dos pontos altos

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para os vales garantia fluxos abundantes de fontes e rios a todos os lugares os templos que outrora foram estabelecidos nessas fontes e ainda hoje laacute permanecem satildeo um indiacutecio37 de que o que agora dizemos sobre ela eacute verdadeiro

Tambeacutem assim era a natureza do resto da regiatildeo que era provavelmente cultivada por agricultores autecircnticos isto eacute que faziam apenas isto ndash vocacionados para as coisas caras agrave beleza e tinham agrave disposiccedilatildeo a melhor terra e aacutegua em muita abundacircncia bem como estaccedilotildees temperadas da forma mais moderada que havia sobre a terra

Quanto agrave cidade nesta altura ela estava estabelecida do seguinte modo em primeiro lugar naquela altura a zona da Acroacutepole natildeo estava como estaacute hoje eacute que uma soacute noite de chuva deixou-a completamente nua pois dissolveu a terra por completo e ao mesmo tempo geraram-se terramotos e um violento diluacutevio ndash o terceiro antes da calamidade da eacutepoca de Deucaliatildeo38 Quanto ao tamanho que tinha outrora noutro tempo chegava ateacute ao Eriacutedano e ao Ilisso39 compreendia em si a Pnix40 e tinha como limite do lado oposto agrave Pnix o Licabeto41 toda ela era terra e excepto em poucos siacutetios formava uma planiacutecie nos pontos mais altos

37 Vide supra n 3638 Trata-se do diluacutevio com que Zeus decidiu destruir a raccedila

humana Escaparam Deucaliatildeo e Pirra sua esposa por meio de uma arca que haviam construiacutedo de antematildeo depois de terem sido avisados pelo deus

39 Dois rios da Aacutetica40 Colina a oeste da Acroacutepole onde desde os iniacutecios do seacuteculo

V aC se reunia a Assembleia41 Um monte a nordeste da Acroacutepole

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A parte exterior junto aos seus proacuteprios vertentes era habitada por artesatildeos e pelos agricultores que cultivavam as imediaccedilotildees Quanto agrave parte superior habitava-a a classe dos guerreiros de forma autoacutenoma e isolada junto ao templo de Atena e Hefesto que eles tinham vedado com uma uacutenica cerca como se fosse uma soacute casa Habitavam em aposentos comuns a parte que dava para norte que equiparam com uma messe para as noites de Inverno e tinham tudo quanto fosse adequado agrave vida em comunidade42 fossem residecircncias ou templos excepto ouro ou prata43 ndash pois natildeo faziam qualquer uso disso para nada mas por buscarem o ponto intermeacutedio entre a arrogacircncia e a subserviecircncia habitavam em residecircncias organizadas em que envelheciam eles proacuteprios e tambeacutem os netos dos seus netos as quais iam ininterruptamente entregando aos outros seus semelhantes Na parte que dava para sul fizeram jardins ginaacutesios e messes para o Veratildeo e usavam-na para isso No lugar onde actualmente estaacute a Acroacutepole havia uma fonte uacutenica que foi destruiacuteda pelos terramotos da qual actualmente restam apenas pequenas linhas de aacutegua em ciacuterculo mas que naquele tempo providenciava a toda a gente uma corrente abundante mantendo a mesma temperatura de Veratildeo e de Inverno E assim viviam eles como guardiotildees dos seus proacuteprios cidadatildeos e comandantes reconhecidos dos outros gregos e garantiam a todo o custo que o

42 tecirc koinecirci politeiai43 Curiosamente a privaccedilatildeo de ouro e prata especificamente

eacute tambeacutem referida na Repuacuteblica (417a) a propoacutesito classe dos guardiotildees

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nuacutemero de homens e mulheres que eram ou viriam a ser capazes de combater fosse sempre o mesmo cerca de vinte mil

Visto que eles eram desta natureza e administravam sempre com a mesma orientaccedilatildeo ndash agrave luz da justiccedila ndash a sua cidade e o resto da Heacutelade gozavam de alta reputaccedilatildeo em toda a Europa e em toda a Aacutesia graccedilas agrave beleza dos seus corpos e a todo o tipo de virtude das suas almas bem como eram famosos entre todos os homens daquele tempo

No que trata agrave condiccedilatildeo daqueles contra quem combateram e ao modo como de princiacutepio se gerou essa condiccedilatildeo se natildeo estiver privado da memoacuteria visto que o ouvi quando ainda era crianccedila restituiacute-lo-ei no meio de voacutes para que seja comum entre amigos

Mas antes ainda do meu discurso impotildee-se um breve esclarecimento para que natildeo fiqueis admirados por muitas vezes ouvirdes nomes gregos aplicados a homens estrangeiros ouvi entatildeo a razatildeo Soacutelon por ter pensado em utilizar esta narrativa na sua poesia procurou o significado destes nomes e descobriu que aqueles primeiros egiacutepcios os tinham redigido vertidos na sua proacutepria liacutengua entatildeo ele por sua vez depois de ter assimilado o sentido de cada um desses nomes registou-os e traduziu-os para a nossa liacutengua Estes escritos estiveram na posse do meu avocirc e neste momento estatildeo ainda comigo com os quais me exercitei enquanto era crianccedila Portanto que natildeo vos cause nenhuma admiraccedilatildeo se ouvirdes alguns nomes como estes aiacute tendes portanto a razatildeo Mas vejamos agora como era o princiacutepio daquela grande narrativa

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Tal como foi dito anteriormente44 acerca da partilha que ocorreu entre os deuses eles dividiram toda a terra aqui em porccedilotildees maiores e acolaacute em mais pequenas onde estabeleceram templos e sacrifiacutecios em seu proacuteprio benefiacutecio Deste modo Posiacutedon quando lhe coube em sorte a Ilha da Atlacircntida estabeleceu aiacute os filhos que gerou de uma mulher mortal num certo local da ilha

Existia ao longo de toda a ilha em direcccedilatildeo ao mar uma planiacutecie central a qual se diz que seria a mais bela de todas as planiacutecies e com uma fertilidade consideraacutevel Nesta planiacutecie havia ainda na parte central uma montanha baixa em todos os pontos que distava cinquenta estaacutedios45 do mar Neste local estava um habitante de entre os homens que aiacute tinham nascido dessa terra em tempos primordiais o seu nome era Evenor e vivia juntamente com a sua mulher Leucipe tiveram uma filha uacutenica Clito Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido a sua matildee e o seu pai morreram e entatildeo Posiacutedon desejou-a e uniu-se a ela Entatildeo de modo a construir uma cerca segura desfez num ciacuterculo o monte em que ela habitava e construiu agrave volta aneacuteis de terra alternados com outros de mar uns maiores uns mais pequenos ndash dois de terra e trecircs de mar no total torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos para que fosse inacessiacutevel aos homens46 com efeito naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava

44 Cf supra 109b-c45 8880m46 O sistema de aneacuteis atlante traz agrave memoacuteria uma descriccedilatildeo

do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana registada por Heroacutedoto (Histoacuterias 198)

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Foi o proacuteprio Posiacutedon que organizou o centro da ilha ndash facilmente pois era um deus ndash fazendo surgir de debaixo da terra duas nascentes de aacutegua ndash uma quente outra fria ndash que corriam de uma fonte e fez brotar da terra alimentos variados e suficientes Engendrou e criou cinco geraccedilotildees de varotildees geacutemeos e dividiu toda a Ilha da Atlacircntida em dez partes entregou a residecircncia materna ao que de entre os mais velhos nascera primeiro juntamente com a porccedilatildeo que a circundava que era a maior e a melhor e nomeou-o rei dos restantes ao passo que fez destes governantes bem como atribuiu a cada um o governo de muitos homens e uma regiatildeo com vastos territoacuterios A todos eles atribuiu nomes ao mais velho ndash o rei ndash deu-lhe o nome do qual toda a ilha e tambeacutem o mar chamado Atlacircntico receberam uma designaccedilatildeo derivada ndash o primeiro que reinou tinha entatildeo o nome Atlas47 Ao segundo geacutemeo ndash o que nasceu depois deste ndash a quem havia cabido em sorte uma porccedilatildeo na extremidade da ilha na direcccedilatildeo das Colunas de Heacuteracles ateacute agrave regiatildeo aleacutem daquele ponto que hoje eacute chamada Gadiacuterica deu o nome Eumelo em grego e Gadiro na liacutengua do paiacutes sendo esta designaccedilatildeo a que deu o nome agravequela zona48 Aos dois que nasceram depois

47 Titatilde que em virtude de ter tentado usurpar o poder de Zeus foi punido com a obrigaccedilatildeo de suster sobre os ombros o ceacuteu Eacute apresentado neste contexto como primeiro rei da Atlacircntida O facto de Atlas (e natildeo Posiacutedon) ser apontado como primeiro rei da Atlacircntida pode estar ligado agrave localizaccedilatildeo miacutetica da ilha de uma filha sua nos confins dos Jardins das Hespeacuterides que segundo Hesiacuteodo (Teogonia vv 215-216 517-518) se situavam precisamente naquela zona

48 Gadiro estaacute na origem do nome da actual cidade de Caacutediz e

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chamou Anferes e Eveacutemon aos terceiros Mneacuteseas ao que nasceu primeiro e Autoacutecton ao que nasceu a seguir ao primeiro dos quartos Elasipo e Mestor ao seguinte aos quintos pocircs o nome Azais ao que nasceu antes e Diaprepes ao seguinte E assim todos eles e os seus descendentes ali viveram durante muitas geraccedilotildees governando sobre todas as outras ilhas do mar e ainda tal conforme dito anteriormente49 como senhores dos territoacuterios aqueacutem das Colunas de Heacuteracles ateacute ao Egipto e a Tirreacutenia50

De Atlas nasceu uma linhagem numerosa e honrada o rei que era o mais velho transmitia a monarquia sempre ao mais velho dos descendentes e assim se preservaram durante muitas geraccedilotildees Aleacutem disso detinham riquezas em nuacutemero tatildeo elevado como nunca houve em quaisquer dinastias de reis anteriores nem eacute faacutecil que haja nas que se sigam pois estavam providos de tudo do que havia necessidade garantir agrave cidade e ao resto do territoacuterio Com efeito ainda que muito viesse de fora por causa do impeacuterio a proacutepria ilha fornecia a grande maioria dos bens essenciais Em primeiro lugar tudo quanto fosse soacutelido e fundiacutevel era extraiacutedo pelo ofiacutecio mineiro bem como aquilo que actualmente apenas nomeamos ndash naquela altura mais do que um nome existia a substacircncia o oricalco51 que a Gadiacuterica seria toda aquela zona circundante

49 Cf Timeu 25a-b50 A Tirreacutenia ou Etruacuteria era a paacutetria dos Etruscos localizada na

parte central da Peniacutensula Itaacutelica51 A letra oreichalcos significa ldquoo cobre das montanhasrdquo Era usado

pelos Atlantes como elemento decorativo para o revestimento de superfiacutecies (as muralhas da muralha central da ilha 116c os tectos

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era extraiacutedo em vaacuterios locais da ilha o qual naquela altura era agrave parte o ouro o material mais valioso ndash e a floresta fornecia tudo quanto pudesse ser trabalhado pelos carpinteiros

A ilha produzia tudo em abundacircncia e no que respeita aos animais alimentava convenientemente os domesticados e os selvagens incluindo a raccedila dos elefantes que nela existia em grande nuacutemero No entanto havia tambeacutem pastagens para os outros seres-vivos tanto os que viviam nos pacircntanos nos lagos e nos rios quanto os que pastavam nas montanhas e nas planiacutecies ndash havia em abundacircncia para todos eles e tambeacutem na mesma medida para este animal52 que era por natureza o maior e o mais voraz Aleacutem disto criava tambeacutem diversos aromas que actualmente a terra tem aqui e ali de raiacutezes folhagens madeiras ou sucos destilados de flores ou de frutos ndash isto produzia e criava a ilha em abundacircncia Mais ainda frutos cultivados secos e tudo quanto usamos na alimentaccedilatildeo e de que aproveitamos o gratildeo ndash chamamos leguminosas a todas as suas variedades ndash os frutos das aacutervores que nos fornecem bebida comida e oacuteleo53 os frutos que crescem em ramos altos os quais satildeo difiacuteceis de armazenar e

paredes colunas e pavimento do templo de Posiacutedon) aleacutem disso tambeacutem a estela que continha gravadas as leis dos primeiros reis era deste material (119d) Embora se tenha tentado identificar esta substacircncia com ldquoum reluzir semelhante ao fogordquo (116c) propondo hipoacuteteses como o latatildeo ou uma liga composta entre ouro e cobre (como sugere a falsa etimologia latina aurichalcum) eacute provaacutevel que se trate de uma substacircncia mitoloacutegica Sobre este assunto vide Halleux (1973)

52 Isto eacute o elefante53 Azeitonas

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que usamos apenas por prazer e divertimento54 e tudo quanto oferecemos como estimulante desejaacutevel depois da ceia a quem sofre por estar cheio55 ndash naquela altura a extraordinaacuteria ilha que entatildeo estava sob o Sol56 fornecia todas estas coisas belas e admiraacuteveis em quantidade ilimitada

Por receberem da terra tudo isto construiacuteram templos residecircncias reais portos estaleiros navais e melhoraram todo o restante territoacuterio organizando tudo do modo que se segue Primeiro fizeram pontes sobre os aneacuteis de mar que estavam agrave volta da metroacutepole antiga criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real Esta zona real fizeram-na logo de princiacutepio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados Como cada um quando o recebia do outro adornava aquilo que jaacute estava adornado superava sempre na medida do possiacutevel o anterior ateacute que tornaram o edifiacutecio espantoso de ver graccedilas agrave magnificecircncia e beleza das suas obras

Escavaram um canal com trecircs pletros57 de largura cem peacutes58 de profundidade e cinquenta estaacutedios59 de comprimento que comeccedilaram a partir do mar ateacute ao anel mais exterior e naquele local construiacuteram uma via de acesso do mar agravequele ponto como a um porto

54 Tratar-se-aacute provavelmente de romatildes55 Seraacute com bastante certeza o limatildeo que naquela altura era

utilizado com este fim56 Isto eacute que ainda natildeo tinha sido engolida pelo mar (vide supra

25c-d 108e)57 888m58 296m59 8880m

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tambeacutem abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito grandes Tambeacutem abriram os aneacuteis de terra que separavam os de mar obedecendo agrave direcccedilatildeo das pontes de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma soacute trirreme e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo eacute que as bordas dos aneacuteis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar

O maior dos aneacuteis aquele pelo qual passava o mar tinha trecircs estaacutedios60 de largura e o anel de terra contiacuteguo tinha a mesma largura Dos segundos o de aacutegua tinha dois estaacutedios61 de largura enquanto que o seco era mais uma vez igual ao anterior de aacutegua aquele que circulava no centro da ilha tinha um estaacutedio62 Quanto agrave ilha onde estava a zona real ela tinha cinco estaacutedios63 de diacircmetro Agrave volta dela a partir dos aneacuteis e de um lado e de outro da ponte que tinha um pletro64 de largura lanccedilaram uma muralha de pedra e colocaram torres e portas em cada um dos lados das pontes vedando o acesso a partir do mar A pedra que era branca negra e vermelha extraiacuteram-na debaixo da ilha do centro e debaixo dos aneacuteis quer da parte de fora quer da de dentro Ao mesmo tempo que a extraiacuteam iam construindo no interior do espaccedilo vazio docas duplas que cobriam com a mesma pedra Algumas das estruturas fizeram-nas simples mas noutras misturaram as pedras e assim

60 5328m61 3552m62 1776m63 888m64 296m

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produziram por divertimento um entranccedilado colorido tornando-as naturalmente apraziacuteveis As muralhas que circundavam a parte exterior do anel a toda a volta do periacutemetro revestiram-nas com cobre que usaram como pintura as da parte interior com estanho fundido e as que circundavam a Acroacutepole com oricalco que tinha um reluzir semelhante ao fogo

Quanto ao modo como estava disposta a zona real no interior da Acroacutepole era o seguinte No centro ndash ali mesmo ndash estava um templo sagrado dedicado a Clito e a Posiacutedon o qual tornaram inacessiacutevel envolvendo-o numa cerca de ouro ndash foi naquele siacutetio que no princiacutepio estes deuses conceberam e geraram a linhagem dos dez priacutencipes era tambeacutem naquele mesmo siacutetio que todos os anos entregavam a cada um deles as primiacutecias sagradas provindas das dez partes da ilha Ali estava o naos65 soacute de Posiacutedon que tinha um estaacutedio66 de comprimento e trecircs pletros67 de largura ndash em altura parecia proporcional a estas medidas mas a aparecircncia era de certa forma baacuterbara Toda a parte exterior do naos tinha sido coberta com prata agrave excepccedilatildeo das extremidades (as extremidades foram cobertas com ouro)

Quanto agrave parte interior o tecto era de marfim maciccedilo com ouro prata e oricalco o que lhe dava uma aparecircncia variegada enquanto que revestiram todas as outras partes ndash paredes colunas e pavimento ndash com oricalco Erigiram estaacutetuas de ouro o deus erguido num

65 Parte interior do templo onde se encontrava a estaacutetua do deus ao qual o edifiacutecio era consagrado

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carro segurando as reacutedeas de seis cavalos alados que graccedilas agrave sua altura tocava no tecto com a cabeccedila agrave volta dele estavam cem Nereides montadas em golfinhos ndash naquele tempo julgavam que elas eram assim tantas68 no interior havia ainda muitas outras estaacutetuas que tinham sido oferecidas por particulares Em torno do naos no exterior estavam erguidas representaccedilotildees de ouro de todas as mulheres e dos descendentes dos dez reis e muitas outras grandes estaacutetuas de reis e tambeacutem de particulares da proacutepria cidade e de quantos territoacuterios no exterior eles governavam Concordante em grandeza e construccedilatildeo com esta edificaccedilatildeo havia um altar bem como a zona real estava tambeacutem de acordo com a grandeza do impeacuterio e com a organizaccedilatildeo que rodeava estes locais sagrados

Quanto agraves fontes a que tinha uma corrente fria e a que tinha uma quente abundantes e inesgotaacuteveis sendo cada uma das quais de uma admiraacutevel utilidade em virtude do sabor e da excelecircncia das suas aacuteguas aproveitavam para construir edifiacutecios em torno delas para plantar aacutervores adequadas agraves suas aacuteguas e para instalar reservatoacuterios ndash uns a ceacuteu aberto outros cobertos tendo em vista os banhos quentes durante o Inverno

68 As Nereides filhas de Nereu e ninfas marinhas associadas ao culto de Posiacutedon eram no tempo de Platatildeo apenas 50 Quanto agrave estaacutetua em si o facto de Criacutetias dizer que quase tocava no tecto do templo que a albergava traz agrave memoacuteria a estaacutetua de Zeus em Oliacutempia uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo Diz Estrabatildeo (Geografia 8330 a traduccedilatildeo deste passo pode ser consultada em Ferreira amp Ferreira 2009 pp 182-184) que se o deus se levantasse (estava representado sentado) arrancaria seguramente o telhado do edifiacutecio

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De um lado estavam os reais do outro os particulares outros ainda para as mulheres e os restantes para os cavalos e para os outros animais de jugo atribuindo a cada um deles a organizaccedilatildeo que lhe era adequada De modo a dirigir a corrente para o bosque sagrado de Posiacutedon que tinha todo o tipo de aacutervores de uma beleza e uma altura divinas graccedilas agrave fertilidade da terra e para os territoacuterios perifeacutericos canalizaram-na por meio de condutas ao longo das pontes Ali construiacuteram vaacuterios templos de muitos deuses vaacuterios jardins e ginaacutesios uns para os homens outros agrave parte para os cavalos em cada uma das ilhas dos aneacuteis

Entre outras coisas havia no centro da ilha grande um hipoacutedromo agrave parte com um estaacutedio69 de largura cujo comprimento compreendia a totalidade do periacutemetro do anel para a competiccedilatildeo dos cavalos Em toda a volta havia por toda a parte aquartelamentos para um grande nuacutemero de guarda-costas ndash a guarniccedilatildeo dos que eram mais fieacuteis estava disposta no anel mais pequeno no ponto mais proacuteximo da Acroacutepole e aos que de entre todos estes se distinguiam em fidelidade foram concedidas residecircncias no interior da Acroacutepole junto agraves proacuteprias residecircncias reais Os estaleiros navais estavam preenchidos de trirremes e de quantos acessoacuterios satildeo adequados agraves trirremes tudo preparado de forma capaz

Quanto agraves periferias da residecircncia dos reis elas estavam dispostas do seguinte modo quando se atravessava os portos ndash que eram trecircs ndash vindo do exterior

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uma muralha estendia-se em ciacuterculo que comeccedilava no mar distando em todos os pontos cinquenta estaacutedios70 do maior anel e do porto e fechava-se na barra do canal que dava para o lado do mar Todo este local estava povoado por edifiacutecios numerosos e concentrados ao passo que o canal e o porto maior estavam preenchidos por naus e comerciantes que vinham de todo o lado que por serem em grande nuacutemero causavam um clamor e um ruiacutedo produzido por toda a espeacutecie de barulhos tanto de dia quanto durante a noite

Temos agora na memoacuteria uma aproximaccedilatildeo daquilo que foi narrado naquele tempo sobre a cidade e a zona circundante das antigas edificaccedilotildees devemos entatildeo tentar relembrar qual era a natureza do resto da regiatildeo e o tipo de organizaccedilatildeo que tinha Primeiro todo este lugar segundo se dizia era muitiacutessimo alto e escarpado desde o mar mas a periferia da cidade era toda plana Esta zona que rodeava a cidade era ela proacutepria rodeada por montanhas em ciacuterculo que se estendiam ateacute ao mar ndash aleacutem disso era plana e nivelada toda ela oblonga com trecircs mil estaacutedios71 numa direcccedilatildeo e pela parte central dois mil estaacutedios72 do mar ateacute ao topo Esta regiatildeo da ilha estava orientada para Sul abrigada do Norte As montanhas que a circunscreviam naquele tempo eram famosas pelo nuacutemero grandeza e beleza superando todas as que hoje existem nelas havia aldeias ricas e numerosas rios lagos prados que forneciam alimento suficiente para todos os animais domeacutesticos

70 8880m71 5328km72 3552km

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e selvagens e uma floresta toda ela abundante e com grande variedade de espeacutecies ndash uma fonte inesgotaacutevel para todo o tipo de obras em geral e para cada uma em particular

A planiacutecie foi mantida pela natureza e tambeacutem por muitos reis durante muito tempo do seguinte modo A maior parte da sua aacuterea formava um quadrilaacutetero rectangular e oblongo e o restante aplanaram-no por meio de uma vala que escavaram em ciacuterculo Na medida em que se tratava de uma obra feita agrave matildeo a profundidade largura e comprimento desta fossa de que se fala satildeo duvidosos se a compararmos aos outros empreendimentos mas devemos dar a conhecer aquilo que ouvimos dizer foi escavada com um pletro73 de profundidade um estaacutedio de largura em todos os pontos e visto que tinha sido escavada agrave volta de toda a planiacutecie a largura era coincidente 10000 estaacutedios74 Como recebia as correntes de aacutegua que desciam das montanhas e sabendo que rodeava a planiacutecie chegava agrave cidade por ambos os lados descarregava deste modo o fluxo no mar Assim talharam vaacuterios canais perpendiculares com 100 peacutes75 de largura e cada um dos quais 100 estaacutedios76 afastado dos outros dispostos transversalmente ao longo da planiacutecie desde as montanhas que iam por seu turno desaguar na outra ponta da vala na direcccedilatildeo do mar Era deste modo que transportavam a madeira das montanhas ateacute agrave cidade

73 296m74 1776km75 296m76 1776km

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e expediam os restantes produtos da eacutepoca por meio de barcos visto que haviam talhado vias de navegaccedilatildeo transversais de uns canais para outros e para a cidade ndash colhiam os frutos da terra duas vezes por ano Usavam no Inverno a aacutegua que vinha de Zeus e no Veratildeo a que a terra fornecesse e os fluxos que faziam correr dos canais77

No que respeita agrave populaccedilatildeo foi estabelecido que na planiacutecie cada distrito forneceria um homem que comandasse aqueles que pudessem servir para a guerra sendo que o tamanho de cada regiatildeo era de dez por dez estaacutedios78 e no total havia sessenta mil distritos Dizia-se que o nuacutemero de homens das montanhas e do resto do territoacuterio era infinito e todos eles em funccedilatildeo dos lugares e das aldeias estavam distribuiacutedos pelos distritos e adscritos a quem as comandava conforme o lugar e a aldeia

Estava prescrito que caso houvesse guerra cada comandante fornecesse uma sexta parte de um carro de guerra para um total de dez mil carros dois cavalos e respectivos cavaleiros mais um par de cavalos sem carro um soldado que combatesse com um pequeno escudo a peacute e tambeacutem dentro do carro bem como pudesse conduzir ambos os cavalos dois hoplitas79 arqueiros e fundeiros80 ndash tambeacutem dois de cada soldados

77 Este sistema de irrigaccedilatildeo faz lembrar descriccedilatildeo de Heroacutedoto (Histoacuterias 3117) da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia

78 1776m por 1776m79 Soldados de infantaria pesada que usavam uma lanccedila

comprida e estavam munidos de uma pesada armadura80 Atiradores que manejavam a funda ndash uma arma constituiacuteda

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de infantaria ligeira uns que lanccedilassem pedras e outros dardos ndash trecircs de cada quatro marinheiros para formar tripulaccedilatildeo de mil e duzentas naus Assim estavam organizadas as tarefas militares da cidade real quanto agraves restantes nove regiotildees era de outro modo mas isso levaria muito tempo para explicar

Quanto agrave organizaccedilatildeo inicial das instituiccedilotildees de governo e dos cargos processou-se do seguinte modo Cada um dos dez reis na sua regiatildeo e na sua cidade detinha um poder absoluto sobre as leis e sobre os homens pois castigava e condenava agrave morte quem quer que quisesse Por outro lado a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relaccedilotildees muacutetuas dependiam das determinaccedilotildees de Posiacutedon tal como lhes transmitira a lei que havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco que se encontrava no centro da ilha num templo de Posiacutedon Nesse local os reis reuniam-se de cinco em cinco e de seis em seis anos alternadamente distribuindo assim equitativamente ciclos de anos pares e iacutempares durante essas reuniotildees deliberavam sobre assuntos de interesse comum verificavam se algum deles tinha transgredido alguma norma e julgavam-no Quando chegava a altura de julgar trocavam antes votos de boa feacute entre si do seguinte modo81 Depois de terem

por um entranccedilado de couro ou corda para arremessar pedras81 O ritual que Criacutetias estaacute prestes a descrever tinha por objectivo

um contacto com o deus Posiacutedon que ao escolher um touro para sacrificar inspiraria os dez reis nas suas decisotildees e reforccedilaria a obediecircncia agraves leis divinas Na origem deste sacrifiacutecio poderaacute estar um episoacutedio relatado por Heroacutedoto (Histoacuterias 2 147-sqq) segundo este autor foi estabelecida uma monarquia no Egipto cujos moldes eram muito semelhantes previa uma divisatildeo territorial sendo

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sido largados os touros no templo de Posiacutedon os dez reis que estavam sozinhos faziam imprecaccedilotildees ao deus para que eles capturassem a viacutetima que lhe agradasse depois perseguiam-na sem armas de ferro mas sim com paus e laccedilos Desses touros aquele que tivessem capturado levavam-no para junto da estela e degolavam-no no topo dela para que o sangue corresse pelas letras ndash na estela junto agraves leis estava um juramento que imprecava grandes maldiccedilotildees para aqueles que o violassem Entatildeo depois de sacrificarem o touro de acordo com as suas leis queimavam todos os seus membros enchiam um kratecircr82 de vinho misturado e deitavam um pedaccedilo de sangue coagulado sobre cada um em seguida limpavam a estela e lanccedilavam o restante para o fogo Depois disto retirando vinho do kratecircr com phiales83 de ouro e fazendo libaccedilotildees na direcccedilatildeo do fogo juravam julgar de acordo com as leis que estavam na estela punir quem anteriormente as tivesse transgredido em algum ponto natildeo transgredir propositadamente nenhuma daquelas escrituras no futuro e natildeo governar nem obedecer a nenhum governante a natildeo ser ao que estava estabelecido de acordo com as leis do pai Depois de fazer estas

cada regiatildeo (12 em vez de 10) administrada por um rei esses reis reuniam-se em assembleia em ambiente ritual e tambeacutem junto a um templo e durante esse encontro faziam sacrifiacutecios libaccedilotildees bem como ingeriam uma bebida sacrificial Aleacutem disso faziam juramentos de fidelidade e entreajuda e elegiam um dos reis como soberano Curiosamente esta civilizaccedilatildeo tambeacutem cultivava uma arquitectura rica e monumental

82 Recipiente utilizado para misturar o vinho com aacutegua antes de ser servido

83 Espeacutecie de copo ndash largo baixo sem asa nem peacute ndash utilizado para retirar o vinho do kratecircr durante as libaccedilotildees

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imprecaccedilotildees para si proacuteprio e para aqueles que de si nascessem cada rei bebia e oferecia como ex-voto a phiale ao templo do deus e dedicava-se ao jantar e a tudo o resto de que tinha necessidade Quando chegava a escuridatildeo e o fogo do sacrifiacutecio se extinguia entatildeo todos eles vestidos com um beliacutessimo manto azul-escuro sentavam-se no chatildeo junto agraves cinzas sacrificiais Agrave noite depois de apagarem por completo o fogo junto ao templo eram julgados e julgavam caso algum deles acusasse outro de ter transgredido algum ponto Depois de julgarem quando chegava a claridade registavam as determinaccedilotildees numa placa de ouro que vestidos com o manto ofereciam como monumento

Havia muitas outras leis particulares sobre as prerrogativas de cada rei mas as mais importantes eram as seguintes nunca em circunstacircncia alguma lutarem entre si ajudarem-se todos uns aos outros caso algum deles tentasse alguma vez destituir a famiacutelia real numa cidade e tal como os antepassados deliberar em comunhatildeo as resoluccedilotildees respeitantes agrave guerra e a outros assuntos atribuindo o comando agrave estirpe de Atlas Natildeo era liacutecito que um rei determinasse a morte de nenhum membro da sua famiacutelia se natildeo tivesse o voto de metade dos dez reis

Esta era segundo o relato a natureza e o poderio que outrora existia naquelas terras e que o deus84 por sua vez organizou e dali trouxe aqui para estas terras pelo seguinte motivo Durante vaacuterias geraccedilotildees

84 Tratar-se-aacute provavelmente de Zeus pois na uacuteltima secccedilatildeo que resta do diaacutelogo (121c) eacute dito que este deus decide aplicar uma puniccedilatildeo aos Atlantes

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enquanto a natureza do deus85 os engrandecia foram obedientes agraves leis e mantiveram-se indulgentes agrave ascendecircncia divina em todos os aspectos aspiravam a pensamentos verdadeiros e grandiosos e faziam sempre uso da delicadeza86 juntamente com a prudecircncia87 perante as vicissitudes e nas relaccedilotildees entre si ndash daiacute que desprezavam tudo menos a virtude pouco apreciavam a sua condiccedilatildeo e suportavam com facilidade tal como um fardo o peso do ouro e das outras riquezas Assim por natildeo se inebriarem pela sumptuosidade causada pela riqueza nem se descontrolarem natildeo capitulavam Pelo contraacuterio mantendo-se soacutebrios percebiam com acuidade que tudo isso aumentava graccedilas agrave amizade muacutetua acompanhada da virtude mas que isso mesmo decaiacutea por causa da acircnsia e da veneraccedilatildeo bem como a virtude era destruiacuteda pelo mesmo motivo

Foi graccedilas a esta maneira de pensar e agrave natureza divina que mantinham em si que aumentavam todas estas riquezas de que temos falado Mas quando a parte divina neles se comeccedilou a extinguir em virtude de ter sido excessivamente misturada com o elemento mortal passando o caraacutecter humano a dominar entatildeo incapazes de suportar a sua condiccedilatildeo caiacuteram em desgraccedila e aos olhos de quem tem discernimento pareciam desavergonhados pois haviam destruiacutedo os bens mais nobres que advecircm da honra88 Mas aos olhos

85 Neste caso o deus seraacute Posiacutedon pois era dele que descendiam os Atlantes

86 praotecircs87 phronecircsis88 Note-se a ideia da condiccedilatildeo humana enquanto degeneraccedilatildeo

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daqueles que natildeo conseguem discernir a conduta que corresponde agrave verdadeira felicidade davam a impressatildeo de ser extremamente belos e felizes mas estavam impregnados de uma arrogacircncia injuriosa e de poder89

O deus dos deuses ndash Zeus ndash que reina por meio de leis como tem capacidade para discernir este tipo de acontecimentos apercebeu-se de que uma estirpe iacutentegra estava organizada de um modo lastimoso Entatildeo decidiu aplicar-lhes uma puniccedilatildeo de modo a que eles se tornassem razoaacuteveis e moderados Reuniu todos os deuses na sua nobiliacutessima morada que se encontra estabelecida no centro do mundo e contempla tudo quanto participa no devir90 e depois de os ter reunido disse91

progressiva de uma origem divina89 O processo de queda da civilizaccedilatildeo atlante motivado por

uma degenerescecircncia moral faz lembrar a anaacutelise histoacuterica que Platatildeo dedica ao desmembramento do impeacuterio persa nas Leis Neste diaacutelogo o Estrangeiro de Atenas estabelece um contraste entre o reinado de Ciro eacutepoca em que este povo vivia ldquona justa medida entre a servidatildeo e a liberdaderdquo (694a) e o tempo dos seus descendentes que preferiam a luxuacuteria a desmesura e a licenciosidade (695a-b) para explicar a perdiccedilatildeo persa culminada nos exageros de Xerxes (695d-696b)

90 Ao colocar os deuses liderados por Zeus no centro do mundo criado o discurso de Criacutetias confirma a transmissatildeo de poderes por parte do demiurgo jaacute adianta durante o discurso de Timeu Quando o demiurgo entrega agraves divindades menores a tarefa de fabricar as partes mortais da espeacutecie humana (69c) delega-lhes ao mesmo tempo a tarefa de os governar (42e)

91 O texto termina abruptamente neste ponto por motivos que natildeo se conhecem

246 247

Timeu

246 247

c

Apecircndices

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Iacutendice analiacutetico

254 255

Iacutendice analIacutetico1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

abdoacutemen 78a-e 80d 85eaacutecido 66b 74cactividade intelectual 88a cadamante 59badivinhaccedilatildeo v divinaccedilatildeoagudeza 53d 56a 57a 61e

67b 80a-balma 18a 22b 38e 69c

do homem [36-38 41] 27c n57 42d 43a-d 44a-c 45a d 46d 47d 60a 61c-d 65a 67b 69e 72d 73b-d 74e-75a 76a 81d 85e 86b-88c 89e 90a 91b e 92b 109c 112e 121c n90

parte desiderante 70d-e 71b d 77bparte passional 70aparte racional v intelecto

do mundo [26-27 36 40 50] 30b-c 34b-c 36d-e 37b-c 41d

acircnguloagudo 53d 57a 61eplano (60ordm) 54e-55a crecto 53d 55b-csoacutelido (180ordm) 54e-55b

aquilo em que (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar re-ceptaacuteculo suporte) [43-44] 49e 50c

armas 24b 119a-b e 110barqueacutetipo (cf Ideia ser) [33-

34 39 41-42 45-47] 28a-b e 29b 31a 37c 38b 39e 48e

associaccedilatildeo (cf dissociaccedilatildeo) 64e 65c

biacutelis 71b 82e 83b-c 84d 85a-d

bom-senso 89bcausa [23-24 33-38 51] 22c

28a c 29a 44c 46e-47a 57c-d 58a 61b-c 63e-64a

Iacutendice analiacutetico

256 257256 257

65b 66b 67b-c 69a 70b 76c 79a c 80d 84b 85b n262 87e-88a 89a

acessoacuteria 46c-e 68e 76ddivina 69aerrante 48ainstrumental 68enecessaacuteria 68e-69aprimeira 46dprincipal 76dsecundaacuteria 46e

ceacuterebro 67b 76a ccomposiccedilatildeo (cf decomposi-

ccedilatildeo) [40 49] 33a d 36b 41a d 53b 54a c 55a e 58b e 60e 61b 74c-d 81b e 82c 87e

congeacutenere [34 52] 29b 33b 45d 47b d 57b 63c e 71b 76c 77c 79d 80d 81a-b 85a 88e 90a c 91e

coacutepia 29b-ccores 67c-68dcorpo [37 44 49 58] 19c

33a 34b 35a 36d 43c 45c 46d 50b 53c-e 54b 55c-d 56a-e 57c-d 58b-c 60b-c 61b-d 63c-64a d-e 66d 67c-d 92a 109bceleste [30 35 40] 22d 38c edo homem [40 41] 42a d 43a c 44b-47e 51c-d 53c 60a 61d 62a 65b 69c-e 70b-e 72c-76e 77c-86a 87c-89a 90a 91c 107b d 111b 112edo mundo [25 27 33 50]

28b 30b 31b-40d 44ddaimon 27c n57 90a cdecomposiccedilatildeo (cf composi-

ccedilatildeo) 54c 58edemiurgo [26 33 35-36 38-

42 49-50 52-53] 28a 29a-30c 31a 33a 36d n107 39e 41a 42e 68e-69c 106a n2 121c n90

densidade 59b 62c 64adesejo amoroso [37] 42a

69d 91a-cdevir [24 31-33 37 42 44 47

52-53] 27c 28b 29c-e 38a 49a 51a 52a-d 59d 121c

diluacutevio 20e n18 22b d 23b 25c 111a 112a

discurso verosiacutemil (cf verosi-milhanccedila narrativa verosiacute-mil) [48-53] 30b 55d-e 57d 68b 90e

dissemelhanccedila 33b 39e 45a d 51e 53a e 57c 60a 63b-d 80a 83c

dissociaccedilatildeo (cf associaccedilatildeo) 61d 64e 65c

dissoluccedilatildeo 33a 38b 41a-b 52a 53e 56c-d 57a-b 58e 60b-61b 65d 66d 67e 68d 73e 79a 81a 82e-83d 84d-e 85d-e 111e

divinaccedilatildeo 24c 71d-72bdoce v doccediluradoccedilura 60b 66c 71b-c 78ddoenccedila 17a 23a 71e

da alma 44c 86b-92cdo corpo 33a 72c e 81e-86a

256 257

Iacutendice analiacutetico

256 257

dor (cf prazer) 42a 64a-65b 69d 71c 75b 77b 81e 86b d-e

duplicaccedilatildeodo cubo [21 n7]do quadrado 32a-b

dureza 43c 59b 62b 63e 76d

elementos [24-26 29 41 49] 32a-c 43a 44a 48b-c 49b 51a 52d-61c 73a 76b 81e-82c 121aaacutegua [23 29 41 46] 32b-c 42c e 43c 46d 48b 49b-d 51a-b 53b-c 55d 56a-e 57b 58d 59b-61c 66b-e 68a 69b 73b e 74c 78a 79a 80b 82a 86a 92bar [23 29 41] 32b-c 33c 42d-e 45d 46d 48b 49c 51a-b 52d 53b-c 55d-61c 63b-c 64c 66a-67b 73b 77a 78a-d 79b-80a 82a 83c 84b-85a 86a 92bfogo [29 41] 31b 32b-c 40a 42c-e 43c 45b-46d 48b 49b-2 51a-b 53b-54b 55d-61e 63b 64c-d 67e-68b 69b 70c 73b-e 74c 76b 77a 78a-e 79d-e 80d-e 82a 83b 86aterra [29 40-41] 31b 32b-c 42d-43c 44d 46d 48b 49c 51a-b 52d-53e 55d-e 56d-e 58e-61b 63c 66d 73b-e 74c 78a 82a 86a

epilepsia 85b n262

esfera [25 40] 33b 44d 55a c n197 62c 63a 73e

espelho 46a-c 71b 72cEstado [15-16 58 62] 17c

19b 20b 25e 110d n29estaacutedio (medida) 113c 115d-

116c 117c-119aestaleiro naval 115c 117devidecircncia [57] 91e 110e

111cfebre 84e 86afleuma 82e 83c-d 84d-85b

86efluxo (cf refluxo) 43a-b 44b

45c 75e 78c 80b 86e 88a

frio 22e 33a 62b 74b-c 82a 85d

guerra [22 38 54 62 64] 18c 19c-20b 23c 24b d 25b 88e 108c n12 108e-109a 110a-b 119a 120d 121c n90

harmonia [25 30-31] 26d 37a 41a 47c-d 55c 67c 69b 80a-b 90d

hipotenusa 54dhumidade v huacutemidohuacutemido 43c 51b 59a 60c-d

62a 65d-66b 68a-b 74c-d 76a-b 82b

Ideia (cf arqueacutetipo ser) [18-20 31 39 52-53] 27c n57 28a nn 61 64 29a n68 33d n95 35a nn103 104 51c-d

imagem [34 52] 29b 37d 52c 92c

Iacutendice analiacutetico

258 259258 259

imitaccedilatildeo [39 45-46 52-53 62] 19d 38a 39e 40d 41c 42e 47c 48e 50c 51b 69c 81b 88c 107b-c

impressatildeo 42a 43b 44a 45c 52d 57c 58e 61c

instituiccedilatildeo poliacutetica 23c 87aintelecccedilatildeo 37c 46d-e 51d-eintelecto [50] 27c 29b-30c

34a 36d-37a 39e 44a 46d 47d 71b 77b 87c 92b-c 109d 121c n90

Intelecto [23-24 35-37 42] 47b-48a

inteligiacutevel [31-33 43-44 53] 28a nn59 64 30c-31a 38b n120 39e 48e 51a c 92c

interstiacutecio 58b 59c-61birracionalidade [32 36-37]

28a 42d 43b e 47d 69dirregularidade 30a 52e 58d

59a 62b 63ejusticcedila 17d 41c 112ekratecircr 120alei 21e n28 23e-24d 27b

41e 83e 109e 114e n51 119c-120e 121b

limite 51b-c 55c d n199 60b 69e-70e 82b 112a

localizaccedilatildeo (cf aquilo em que lugar receptaacuteculo suporte) [42-47] 52b

loucura 86b-clugar (cf aquilo em que locali-

zaccedilatildeo receptaacuteculo suporte) [42-47] 52a-d

medula [40-41] 73b-75a 77d 81c-d 82c-d 84b 85e

86c 91a-bMesmo [26] 35a-b 36c-40b

42d 43d-44b 83e-84bmito [54 61 n24 62-63]

22b n33 22c 23e n39 26c 90a n278 109c n21 110a

movimento [26 30 35 58 63] 19b 34a 36c 37c 38a 38e-39a 40a-b 43b-c 44d 45d-e 46e 47c-d 48a n163 52a-53a 56c e 57c-58e 59d 61e 62b 64b e 67b-68a 71c 74a e 76b 77c 79b-80b 81a-b 86e 87e 88b-90c

mulher [50] 18c 42b 70a 76d 90e-91d 110b 112d 113c-d 116e 117b

muacutesica [29-31] 18a 35c n106 47c 80b n254 88c

naos 116cnarrativa verosiacutemil (cf discurso

verosiacutemil verosimilhanccedila) [48-53] 29c 59c 68d

nassa [40] 78b-d 79dNecessidade [35-37] 47e

56c 69d 75a 89bordem [35 39 41-42 53]

24b-c 30a 37d 46e 47e 53b 69b 83a 88e 90c 109c-d

organizaccedilatildeo [41-42 54 65] 20a 21b 23e 24d 53a 69c 85c 112c 113e 115c 117a-b 118a 119b-c 120d 121b

oricalco 114e 116c-d 119d

258 259

Iacutendice analiacutetico

258 259

osso 64c 73a-e 74d-75e 76d 82c-d 83d-84b 86d 111b

ouro 18b 50a-b 59b 112c 114e 116c-e 120a c 121a

Outro [26] 35a-b 36c 37a-b 38c-e 43d-44b 74a

pai [22 42] 22c 28c 37c 41a 42e 50d 71d 109c 110b n26 113d 120b

peacute (medida) 115d 118dpensamento 47b 87c 90cpercepccedilatildeo [31] 28bpintura [58] 19b 116b

encaacuteustica 26cde sombreados 107d

phiale 120a-bplanta [31] 59e 77a-c 90apletro 115d 116a d 118cpoesia 21b-c 113apoeta [39-40 56] 19d 21b-d

108bpoliedros regulares

dodecaedro 55c n297hexaedro 55c n196icosaedro [29] 55b n195octaedro [29] 55a n194tetraedro 55a n 193

poro v porosidadeporosidade 72c 79a-c 85c

86dporto 25a 115c-d 117d-epotecircncia (sentido filosoacutefico)

71b 83c (sentido matemaacute-tico) 31c (sentido poliacutetico-militar) [60 64] 24e 25b

prata 18b 112c 116dprazer (cf dor) 42a 47d 59d

64a-65b 69d 77b 80b

81e 86b-e 115bproporccedilatildeo [25 30 41 49]

31c-32c 37a 53a e 56c 68b 69b 82b 116d

providecircncia 30c 44c 45aquente 50a 61d-62a 67d

74c 76b 79d-e 82a 85d 113e 117a-b

raciociacutenio [29 39 43-44 49] 29e 30b 33a 34a 38c 47c 52b 56b 57d 72e 77b-c 86c 107b

receptaacuteculo (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar suporte) [43] 49a 50d-51a 53a 57c

refluxo (cf fluxo) 43a-brepresentaccedilatildeo [34 61-62]

37c 38c 51a 71a 107b e 116e

sabedoria 18a 24b d 109csangue 67b 70b 79d 80e-

81a 82c-84c 85c-d 119e-120a

seco 22d 60c 76d 82b 88d 115a e

sensaccedilatildeo v sensiacutevelsensiacutevel [23 31-33 37 39 44

50] 28b 37b 38b n120 42a 43c 44a 45d 47e n160 51a d 52a-b 61c-62a 64a-65e 67a-d 69d 70b 71a e 74e 75b e 76d 77a-e 80b 92c 106a n2

sentidos [32] 28a-b 38a 42a n140 75aaudiccedilatildeo 47c 64c 67a-colfacto 66c-67a

Iacutendice analiacutetico

260 261260 261

paladar 65b-66ctacto 61c-64avisatildeo 45b-47a 52d 60a 64c-d 67c-68d 91e

ser (op devir cf arqueacutetipo Ideia) [32 42 51-52] 27c n56 27d-28d 29c 34e-35b 37a-38c 48e 52d

sonho 45e 52b 71esopro respiratoacuterio 66e 78a

79b-c 80d 83d 84d 91a c

soro 82e 83csuor 83d 84esuporte (cf aquilo em que lo-

calizaccedilatildeo lugar receptaacuteculo) [43 45] 50c-d

templo [60] 23a 111d 112b-c 113c 114e n51 115b 116c 117c 119d 120b-c

teacutetano 84etouro [60] 119d-etriacircngulo [30] 48c n165 50b

53c 54a-55e 57d 58d 61a 73b 81b-d 82d 89cequilaacutetero [30] 54a-55eisoacutesceles [30] 54a-c 55brectacircngulo [30] 54d

verosimilhanccedila (cf discurso ve-rosiacutemil narrativa verosiacutemil) [32 35 39] 29c 44c 48b d 53d 56b-c 59d 67d 72d 107d

virtude [65] 24d 34b-c 86d n263 87d 109c 110c 112e 120e-121a

260 261

Iacutendice de nomes e lugares

260 261

Iacutendice de nomes e lugares1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

Anferes 114bApatuacuterias 21bApolo 108cAacutesia [60] 24b e 112e 118eAsopo 110eAtena [16 n2] 20e n19 21e

23e n39 109c 112bAtenas [16 22-23 53-54 61-

62 64-65 67-68] 21b n22 c n25 23e n39 108c n13 110b n27 121b n90

Atenienses [23 61 n24 64-65 68] 21e 23c 24b n40 27b 109a 121c n90

Aacutetica [59 68] 110eAtlantes [68] 109a n18 114e

n51 120d nn84 85Atlacircntida [16 22 53-56 59-

62 64 68] 25a-sqq 108e 113c e 114b n47

Atlas [59] 114b d 120dAutoacutecton 114c

Azais 114cCiteacuteron 110eColunas de Heacuteracles (Estrei-

to de Gibraltar) 24e 25c 108e 114b-c

Cureoacutetis 21bDeucaliatildeo 22b 112aDiaprepes 114cEgipto [22 57-58 60-61]

21c e 24b n40 25b 114c 119d n81

Elasipo 114cErictoacutenio 23e n39 110bErisiacutecton 110bEriacutedano 112aEumelo 114bEuropa [64] 24e 25b 112eEveacutemon 114bFaetonte 22cFoacutercis 40eForoneu 22aGadiacuterica [60] 114b

Iacutendice de nomes e lugares

262 263262 263

Gadiro [60] 114bGeia 23e 40eHefesto 23e 109c 112bHeacutelios 22cHera 40eHesiacuteodo 21cHomero 21cIstmo de Corinto 110dItaacutelia [21] 20aJusticcedila (divindade) 109bLiacutebia 24e 25b 108eLoacutecride [21 27] 20aMestor 114cMnemoacutesine 108dMneacuteseas 114bMusas 23a 47d-e 73a 108cNeith (Atena) 21eNereides 116eNilo 21e 22d 24b n41Niacuteobe 22aOceano (divindade) 40eOceano Atlacircntico [56 n18]

24e 114aOroacutepia 110eOropo 110d n30Panateneias [16-17 65] 21a

n19 23e n39 108c n12Parnaso 110ePirra 22b 112a n38Posiacutedon [60] 113c-e 114b

n47 e n51 116c 117b 119c-d 119d n81 120e n85

Pseacutenopis de Helioacutepolis 22a n30

Reia 40eSais 21e 22a n30Saiticos 21e

Soacutelon [22 57-58] 20e 21a-22b 23b-c 25b e 27b 110a 113a

Socircnquis de Sais 22a n30Teacutetis 40eTirreacutenia 25b 114cZeus [38 60] 40e 109c n21

111d 114b n47 116e n68 118e 120d n84 121b c n90

262 263

Glossaacuterio

262 263

glossaacuterio

agalma representaccedilatildeoagnoia ignoracircnciaaisthecircsis sensaccedilatildeo percepccedilatildeoaitia causaalogos irracionalamathia ignoracircnciaanankecirc Necessidadeanalogia proporccedilatildeoanocircmalos irregularanomoiotecircs dissemelhanccedilaapeikasia representaccedilatildeoapollymenon corruptiacutevel (sujei-

to agrave corrupccedilatildeo)aretecirc virtudeblepocirc contemplar (ldquopocircr os

olhos emrdquo)chocircra lugar(to) diakenon interstiacuteciodiakosmecircsis organizaccedilatildeodiakrisis dissociaccedilatildeodialyocirc desintegrardianoecircsis actividade intelecti-

va intelecto

dianoia actividade intelectual desiacutegnio disposiccedilatildeo pensa-mento

diataxis ordenaccedilatildeodynamis potecircncia proprieda-

deeidos Ideia formaeikocircn coacutepia imagemeikos verosiacutemileikos logos discurso verosiacutemileikos mythos narrativa verosiacute-

milekmageion suporte(to) en ocirc aquilo em queepistecircmecirc saberepithymia parte desiderante da

alma (v alma)erocircs desejo amorosogenesis devir geraccedilatildeogenos espeacutecie linhagemgignomai gerar(to) gignomenon deveniente (v

devir)

Glossaacuterio

264 265264 265

harmonia harmoniahedra localizaccedilatildeo(to) heteron Outrohypodochecirc receptaacuteculokoilia abdoacutemenkata tauta aei imutaacutevelkenos vaziokenocircsis esvaziamentokerannymi misturar (v mistu-

ra)kinecircsis movimentokosmos mundologismos desiacutegnio raciociacuteniologos discursolysis dissoluccedilatildeolyocirc dissolvermania loucurameignymi misturar (v mistu-

ra)meixis misturamimecircma mimecircsis imitaccedilatildeomonimos estaacutevelmonocircsis singularidadenoecirctos inteligiacutevelnous intelecto intelecccedilatildeo pro-

poacutesito bom-sensohomoiotecircs semelhanccedila(to) on o que eacute (v ser)ousia ser (to) pan universopathecircma afecccedilatildeoparadeigma arqueacutetipo exem-

plopaideia paideusis educaccedilatildeophronecircsis inteligecircncia pensa-

mento sabedoriaphthora destruiccedilatildeophysis natureza

plecircrocircsis enchimentopneuma sopro respiratoacuteriopoliteia Estado instituiccedilatildeo

poliacutetica (p koinecirc) vida em comunidade

praotecircs delicadezapronoia providecircncia (divina)

capacidade de antecipaccedilatildeo (da alma humana)

syngenecircs congeacuteneresynkrisis associaccedilatildeosynaitia causa acessoacuteriasynisthecircmi constituirsyntithecircmi comporsymmetria proporcionalidadesystasis constituiccedilatildeo estruturasyntaxis sistematizaccedilatildeotaxis ordemtauton Mesmotekmecircrion evidecircnciatecirckocirc derreter dissolverthymos parte passional da alma

(v alma)zocircon ser-vivo

264 265264 265

volumes puBlicados na ColeCccedilatildeo Autores GreGos e lAtinos ndash seacuterie textos GreGos

1 Delfim F Leatildeo e Maria do Ceacuteu Fialho Plutarco Vidas Paralelas ndash Teseu e Roacutemulo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

2 Delfim F Leatildeo Plutarco Obras Morais ndash O banquete dos Sete Saacutebios Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

3 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Banquete Apologia de Soacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

4 Carlos de Jesus Joseacute Luiacutes Brandatildeo Martinho Soares Rodolfo Lopes Plutarco Obras Morais ndash No Banquete I ndash Livros I-IV Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

5 Aacutelia Rodrigues Ana Elias Pinheiro Acircndrea Seiccedila Carlos de Jesus Joseacute Ribeiro Ferreira Plutarco Obras Morais ndash No Banquete II ndash Livros V-IX Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

6 Joaquim Pinheiro Plutarco Obras Morais ndash Da Educaccedilatildeo das Crianccedilas Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

7 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Memoraacuteveis Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

8 Carlos de Jesus Plutarco Diaacutelogo sobre o Amor Relatos de Amor Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

9 Ana Maria Guedes Ferreira e Aacutelia Rosa Conceiccedilatildeo Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Peacutericles e Faacutebio Maacuteximo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

10 Paula Barata Dias Plutarco Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo Como Retirar Benefiacutecio dos Inimigos Acerca do Nuacutemero Excessivo de Amigos Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

11 Bernardo Mota Plutarco Obras Morais - Sobre a Face Visiacutevel no Orbe da Lua Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

12 J A Segurado e Campos Licurgo Oraccedilatildeo Contra Leoacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH CEC 2010)

13 Carmen Soares e Roosevelt Rocha Plutarco Obras Morais - Sobre o Afecto aos Filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

14 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Plutarco Vidas de Galba e Otatildeo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

15 Marta Vaacuterzeas Plutarco Vidas Paralelas ndash Demoacutestenes e Ciacutecero Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

16 Maria do Ceacuteu Fialho e Nuno Simotildees Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Alcibiacuteades e Coriolano Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

17 Gloacuteria Onelley e Ana Luacutecia Curado Apolodoro Contra Neera [Demoacutestenes] 59 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2011)

18 Rodolfo Lopes Platatildeo Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices (Coimbra CECH 2011)

ImpressatildeoSimotildees amp Linhares Lda

Av Fernando Namora nordm 83 - Loja 43000 Coimbra

O projecto Timeu-Criacutetias circula todo ele em torno dos conceitos de origem criaccedilatildeo e constituiccedilatildeo ordenada num primeiro momento cosmoloacutegicas e num segundo soacutecio‑poliacuteticas ou mesmo civilizacionaisNo Timeu um princiacutepio divino inteligente (o demiurgo) molda como um artiacutefice a mateacuteria preacute‑coacutesmica em obediecircncia a um modelo de racionalidade externo (o arqueacutetipo) O resultado eacute o mundo uma imagem do modelo e o Homem um microcosmosNo Criacutetias depois de suposta a cosmologia encena‑se uma guerra entre duas civilizaccedilotildees contrastantes (e tambeacutem elas arquetiacutepicas) que serve de paradigma para a constituiccedilatildeo originaacuteria das sociedades e tambeacutem para a natureza ciacuteclica da supremacia poliacutetica Deste breve texto natildeo resta senatildeo a parte inicial que permite natildeo mais do que suposiccedilotildees instaacuteveis Sobreviveu poreacutem um patrimoacutenio ficcional riquiacutessimo em tudo o que se tem criado sobre a suposta Ilha da Atlacircntida e o mito a que deu origem

  • Capa
  • Folha de rosto
  • Ficha teacutecnica
  • Iacutendice
  • Nota preacutevia
  • Introduccedilatildeo
    • I Aspectos extratextuais
      • 1 O projecto Timeu-Criacutetias
      • 2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo
      • 3 Personagens
        • II Aspectos temaacutetico-estruturais
          • 1 Antecedentes cosmoloacutegicos
          • 2 O discurso de Timeu
          • 21 Pressupostos iniciais
          • 22 Intelecto e Necessidade
          • 23 O demiurgo
          • 24 O terceiro niacutevel ontoloacutegico
          • 25 O estatuto do discurso
          • 3 O discurso de Criacutetias
          • 31 A historicidade da narrativa sobre aAtlacircntida
          • 32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeode Platatildeo
          • 33 Leituras alegoacutericas
          • 4 Estrutura dos diaacutelogos
              • Timeu
              • Criacutetias
              • Apecircndices
                • Bibliografia
                • Iacutendice analiacutetico
                • Iacutendice de nomes e lugares
                • Glossaacuterio
                  • Volumes publicados na Colecccedilatildeo Autores Gregos e Latinos ndash Seacuterie Textos Gregos
                  • Coacutelofon
                  • Contracapa
Page 5: Timeu-Crítias · 2018. 8. 8. · 6 7 no t a p r é v i a O volume que se segue pretende, por um lado, apresentar uma nova tradução do Timeu, e, por outro, disponibilizar a primeira

6 76 7

nota preacutevia

O volume que se segue pretende por um lado apresentar uma nova traduccedilatildeo do Timeu e por outro disponibilizar a primeira versatildeo do texto do Criacutetias em portuguecircs Pelas razotildees que exporemos posteriormente (vide infra pp 13-15) a nossa proposta assenta em considerar ambos os diaacutelogos como um bloco uno tanto a niacutevel dramaacutetico como narrativo

Em relaccedilatildeo agraves duas traduccedilotildees do Timeu jaacute existentes no seguimento das quais esta forccedilosamente se inscreve cumpre esclarecer alguns aspectos A primeira de Manuel Maia Pinto (Porto Imprensa Moderna 1951) aleacutem do facto de contar com quase 50 anos denuncia bastantes fragilidades inexplicavelmente omite a secccedilatildeo inicial do texto (17a-20c) e assenta em pressupostos no miacutenimo discutiacuteveis como por exemplo a identificaccedilatildeo do demiurgo com Eros (eg pp 44 46) ou das Ideias com Deus na sua versatildeo judaico-cristatilde (eg pp 42 47) Jaacute a segunda da autoria de Maria Joseacute Figueiredo (Lisboa

8 98 9

Instituto Piaget 2003) situa-se num niacutevel diferente na medida em que se manteacutem fiel ao texto grego ao seu autor e ao contexto histoacuterico-filosoacutefico que os enquadram bem como conta com uma excelente introduccedilatildeo da autoria de Joseacute Trindade Santos Em relaccedilatildeo a esta a nossa procuraraacute oferecer interpretaccedilotildees alternativas de alguns passos e uma anotaccedilatildeo mais vocacionada a por um lado esclarecer certas secccedilotildees do texto (principalmente as meta-narrativas) e por outro a propor algumas relaccedilotildees intertextuais As grandes diferenccedilas satildeo a ediccedilatildeo de base (a autora segue a de Rivaud) e a inclusatildeo na nossa versatildeo de iacutendices remissivos e glossaacuterio

Quanto agrave introduccedilatildeo procuraacutemos esclarecer alguns aspectos extratextuais (I) (1) a unidade dos dois diaacutelogos (2) a dataccedilatildeo e (3) as personagens Em relaccedilatildeo ao conteuacutedo tentaacutemos explicar com mais detalhe algumas questotildees que natildeo poderiam ser abrangidos nas notas em virtude da sua complexidade ou simplesmente porque pretendem acima de tudo situar o texto num quadro histoacuterico-filosoacutefico mais abrangente (II) (1) os antecedentes cosmoloacutegicos (2) o estatuto e estrutura da intervenccedilatildeo de Timeu e tambeacutem (3) da de Criacutetias Finalmente providenciaacutemos uma esquematizaccedilatildeo analiacutetica dos assuntos tratados nos diaacutelogos Como apensos agrave traduccedilatildeo incluiacutemos a lista da bibliografia citada um glossaacuterio dos termos mais importantes e respectivas traduccedilotildees seguido de um iacutendice analiacutetico e outro de nomes e lugares

Para a traduccedilatildeo seguimos a ediccedilatildeo estabelecida por Burnet salvo nalguns casos isolados em que se

8 98 9

impunham alteraccedilotildees sugeridas e justificadas por novos dados entretanto aduzidos Em todos estes casos a divergecircncia foi devidamente assinalada em nota

Resta agradecer a todos quantos de algum modo participaram neste trabalho Maria do Ceacuteu Fialho e Maria Luiacutesa Portocarrero pela diligente orientaccedilatildeo da dissertaccedilatildeo da qual foi extraiacuteda grande parte dos elementos deste volume (toda a traduccedilatildeo do Timeu e cerca de dois terccedilos da introduccedilatildeo) Aacutelia Rodrigues Antoacutenio Pedro Mesquita Carlos A Martins de Jesus Delfim F Leatildeo Gabriele Cornelli Joatildeo Diogo Loureiro Maria Teresa Schiappa de Azevedo pela leitura criacutetica do manuscrito e tambeacutem ao Centro de Estudos Claacutessicos e Humaniacutesticos por ter acolhido com interesse a publicaccedilatildeo

inTroduccedilatildeo

12 13

inTroduccedilatildeo

12 13

i aspectos extratextuais

1 O projecto Timeu-CriacutetiasA unidade entre os dois diaacutelogos verifica-se tanto

ao niacutevel dramaacutetico quanto ao temaacutetico Mas aleacutem de impliacutecita nestes duas dimensotildees a sequecircncia diegeacutetica eacute confessada pelos proacuteprios participantes Logo no iniacutecio do Timeu Criacutetias ao anunciar a Soacutecrates qual seraacute o programa (diathesis) de conversaccedilotildees para aquela ocasiatildeo diz muito claramente que a seguir a Timeu discursaraacute ele proacuteprio

Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada (27a2-27b1)

Rodolfo Lopes

14 1514 15

A inclusatildeo de ambos os discursos no mesmo programa aliada ao gesto de Timeu passar a palavra a Criacutetias depois de terminar a sua intervenccedilatildeo tal como fora combinado (106b6-7) eacute motivo suficiente para considerar que haacute uma clara continuidade Para aleacutem disso uma leitura superficial de ambos seraacute com certeza bastante para perceber que eacute notoacuteria a intenccedilatildeo de Platatildeo em consideraacute-los partes de um todo em termos gerais o Timeu ocupa-se da constituiccedilatildeo do mundo e do Homem enquanto que o Criacutetias daacute seguimento a esse projecto ao apresentar a constituiccedilatildeo da dimensatildeo social ou seja da sua integraccedilatildeo em comunidade no mundo criado

Desta indissociabilidade datildeo tambeacutem conta as orientaccedilotildees dos estudos platonistas que cada vez mais tendem a considerar os dois como um soacute Aleacutem da uacuteltima grande monografia sobre estas obras (Johansen 2004) o congresso que lhes dedicou a International Plato Society aborda-as igualmente como um todo e natildeo como diaacutelogos separados (Calvo amp Brisson 1997) Ainda assim ao longo dos seacuteculos as atenccedilotildees sempre estiveram mais voltadas para o Timeu em virtude das questotildees filosoacuteficas nele abordadas Por esse motivo grande parte do que se trataraacute nesta Introduccedilatildeo diraacute respeito a esse diaacutelogo mas tendo sempre em conta que a ligaccedilatildeo com o Criacutetias eacute de tal forma estreita que nos permite encaraacute-los como uma obra soacute

De acordo com algumas breves referecircncias de que dispomos era provaacutevel que este projecto de Platatildeo incluiacutesse um terceiro diaacutelogo ndash o Hermoacutecrates ndash formando assim uma trilogia Logo no iniacutecio do Timeu

14 15

inTroduccedilatildeo

14 15

quando Soacutecrates refere Hermoacutecrates faz questatildeo de o declarar competente em todos aqueles assuntos (20a8) e ao apresentaacute-lo nos mesmos moldes que as outras duas personagens parece implicar que tambeacutem uma parte dos discursos pudesse estar reservada para ele Essa possibilidade esclarece-se jaacute no Criacutetias quando Soacutecrates diz que Hermoacutecrates seraacute o terceiro a falar (108a) Contudo eacute muitiacutessimo provaacutevel que esse projecto nunca tenha sido consumado

2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeoAo abordarmos a data de uma obra com uma

estrutura desta natureza deveremos antes de mais ter em conta que este aspecto deve ser entendido sob dois pontos de vista distintos o da data dramaacutetica isto eacute a altura ou eacutepoca a que se reporta a acccedilatildeo narrada por outro lado o da data real de composiccedilatildeo o mesmo que dizer quando foi realmente escrita a obra

No que respeita agrave data dramaacutetica o seu estabelecimento dependeraacute da escolha de uma de duas vias Se considerarmos que Soacutecrates em 17c se refere agrave Repuacuteblica quando alude ao diaacutelogo que tinha travado com aqueles intervenientes no dia anterior sobre o tipo de Estado que lhe parecia ser o melhor entatildeo a data dramaacutetica situar-se-aacute no dia a seguir agrave daquele outro diaacutelogo ndash por volta do ano 420 ou 421 aC durante as Bendideias1 Poreacutem se nos ativermos unicamente agravequilo que diz o texto sobre este aspecto a data apontada eacute um

1 Apud Pereira 2001 p XIII As Bendideias eram um festival religioso realizado no mecircs de Thargeleion (Junho)

Rodolfo Lopes

16 1716 17

pouco diferente pois em 26e Soacutecrates refere de forma indirecta que aquele encontro se processa durante as Panateneias2 Quanto ao ano teraacute sido entre 430 e 425 aC (apud Taylor 1928 p 15 Duraacuten 1992 p 134 Brisson 2001 p 72) portanto alguns anos antes da Repuacuteblica

Aquela associaccedilatildeo com a Repuacuteblica de que depende a primeira via carece de alguma consistecircncia podendo mesmo ser refutada convincentemente por mais do que uma ordem de razotildees Nota muito bem Cornford (1937 pp 4-5) que o ldquoontemrdquo a que Soacutecrates se refere natildeo tem forccedilosamente que ser o dia do encontro na casa de Ceacutefalo mas poderaacute ser um qualquer dia em que aqueles intervenientes tenham abordado algumas questotildees que nesse diaacutelogo satildeo tambeacutem discutidas Em segundo lugar a referecircncia agraves Panateneias natildeo eacute de todo inocente pois coaduna-se com o elogio de Criacutetias agrave vitoacuteria de Atenas sobre a Atlacircntida (20d-26c) bem como justifica a presenccedila de Hermoacutecrates (um estrangeiro) na cidade Aleacutem disso o resumo que Soacutecrates faz da conversa que tinham tido no dia anterior sobre o Estado ideal natildeo inclui todos os assuntos tratados na Repuacuteblica o que entra em contradiccedilatildeo com o facto de aquele resumo incluir os assuntos principais (to kephalaion 17c2) Por outro lado deve tambeacutem sublinhar-se que Soacutecrates inclui todos os presentes na dita conversa do dia anterior (17a1-2)3 Ora sabemos que nenhuma das personagens

2 O festival dedicado agrave deusa Atena tradicionalmente celebrado no 28ordm dia do mecircs de Hecatombeon (meados de Julho)

3 Note-se inclusivamente o uso da primeira pessoa do plural quando eacute referido o tal encontro do dia anterior (eg 17c7

16 17

inTroduccedilatildeo

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do Timeu excepto Soacutecrates participa na Repuacuteblica Deste modo seraacute porventura mais prudente optar pela segunda hipoacutetese e estabelecer a data dramaacutetica na altura das Panateneias

Quanto agrave data real de composiccedilatildeo eacute tradicionalmente situada nos uacuteltimos anos da vida de Platatildeo poreacutem houve algumas tentativas de a fazer recuar um pouco Segundo a primeira hipoacutetese (a mais antiga) o diaacutelogo pertence agrave uacuteltima fase da qual fazem parte tambeacutem o Sofista o Poliacutetico o Filebo e as Leis de acordo com a segunda ele deveraacute pelo contraacuterio ser incluiacutedo na fase meacutedia juntamente com Craacutetilo Feacutedon Banquete Repuacuteblica Fedro Parmeacutenides e Teeteto

A hipoacutetese tradicional foi postulada ainda na Antiguidade Plutarco por exemplo acreditava que o Criacutetias natildeo tinha sido acabado porque Platatildeo morrera enquanto o escrevia4 No entanto jaacute no seacuteculo XIX comeccedilaram a surgir algumas opiniotildees que apontavam para a inclusatildeo do diaacutelogo na fase meacutedia (vide Cherniss 1957 p 226 n 3) e jaacute na primeira metade do seacuteculo XX Taylor (1928 pp 4-5) admite no seu comentaacuterio ao Timeu que essa possibilidade devia ser tida em conta Alguns anos mais tarde esta hipoacutetese atinge o estatuto de tese quando Owen (1953) publica um artigo em que defende a sua validade com base em dois argumentos ndash um mais formal outro temaacutetico Por um lado partindo das anaacutelises estilomeacutetricas de Billig5 conclui

dieilometha 17d2 eipomen 18c1 epemnecircsthecircmen)4 Vida de Soacutelon 325 Billig (1920) Este autor fixar a cronologia do corpus Platonicum

atraveacutes de estudos estatiacutesticos baseados em padrotildees de frequecircncia de

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que o estilo do Timeu (e do Criacutetias) nada tem que ver com o dos diaacutelogos que tradicionalmente lhe surgiam associados (Sofista Poliacutetico Filebo e Leis) mas que pelo contraacuterio estava muito proacuteximo do dos diaacutelogos meacutedios particularmente da Repuacuteblica do Fedro do Parmeacutenides e do Teeteto (Owen 1953 pp 80-82) Por outro lado Owen coloca em confronto a forma como algumas teorias de Platatildeo aparecem no Timeu e noutros diaacutelogos da fase meacutedia no sentido de demonstrar que este seraacute obrigatoriamente anterior a alguns daqueles Diz por exemplo que o modo admiravelmente estaacutevel como a doutrina das Ideias aparece no Timeu eacute uma evidecircncia de que a obra seraacute mais anterior do que defende a hipoacutetese tradicional pois soacute no Parmeacutenides foi submetida a uma refutaccedilatildeo de tal forma irrepreensiacutevel que seria impensaacutevel que Platatildeo tivesse redigido o Timeu apoacutes o Parmeacutenides (Owen 1953 pp 82-83)

O artigo de Owen em virtude das ousadas conclusotildees que apresentava obteve uma resposta imediata por parte de um outro estudioso Eacute Cherniss que quatro anos mais tarde vem desconstruir toda a sua argumentaccedilatildeo reforccedilando assim a posiccedilatildeo da teoria tradicional As suas conclusotildees muito bem fundamentadas apontam para que Craacutetilo Parmeacutenides e Teeteto tenham sido compostos antes do Timeu e

palavras e construccedilotildees sintaacutecticas Depois de recolhidos estes dados eram cruzados e analisados de forma a permitir um agrupamento estanque e inequiacutevoco dos diaacutelogos Este tipo de anaacutelise foi posteriormente alargado e ateacute melhorado com o contributo da informaacutetica mas continuou a carecer de alguma fiabilidade em virtude dos anacronismos resultantes

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que mais importante as teorias do Timeu em nada chocam com as apresentadas nos diaacutelogos da fase tardia (Cherniss 1957 p 266)

Com efeito parece-nos que as teses de Owen natildeo se baseiam em dados suficientemente soacutelidos para abandonar a hipoacutetese tradicional Por um lado as anaacutelises estilomeacutetricas constituem um perigo metodoloacutegico que ameaccedila contaminar a coerecircncia da tarefa pois baseiam-se numa recolha ndash e posterior tratamento ndash de dados de um modo estatiacutestico que por se tratar de um processo linear e mecanizado pode aduzir agrave investigaccedilatildeo um sem nuacutemero de pequenos erros os quais imperceptivelmente multiplicados de um modo quase exponencial podem resultar em conclusotildees bastante problemaacuteticas Num desses estudos em que Owen se baseou o Criacutetias aparece muito distante do Timeu ainda que seja o proacuteprio autor a confessar e a corrigir esse erro (Owen 1953 p 80) acaba por denunciar as fragilidades daquele tipo de ferramenta Por outro lado a forma como lecirc o confronto das doutrinas de Platatildeo eacute tambeacutem faliacutevel pois admite uma perspectiva contraacuteria e igualmente vaacutelida Por exemplo o referido caso da doutrina das Ideias poderaacute ser interpretado do modo oposto apoacutes ter sido refutada no Parmeacutenides Platatildeo reformulou-a no Timeu ao acrescentar o terceiro princiacutepio ontoloacutegico ao processo de participaccedilatildeo ainda que como veremos a sua contribuiccedilatildeo se processe em contornos muitiacutessimo particulares

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3 PersonagensNos diaacutelogos participam quatro personagens

aleacutem de uma outra que eacute referida logo na primeira frase mas da qual natildeo resta qualquer notiacutecia Soacutecrates Timeu Hermoacutecrates e Criacutetias

Quanto ao primeiro que teria entre 40 a 45 anos agrave data dramaacutetica (apud Brisson 2001 p 72) pouco haveraacute a acrescentar aos milhares de paacuteginas que tecircm sido escritos ao longo dos tempos a natildeo ser o pormenor que muito bem notou Vlastos (1991 p 264) acerca da evoluccedilatildeo da personagem dentro do contexto macroestrutural de todo o cacircnone platoacutenico o facto de Soacutecrates se interessar por filosofia natural ou melhor por ciecircncias naturais como a biologia a fiacutesica a astronomia ou a quiacutemica ao contraacuterio do que acontecia em fases anteriores em que as suas preferecircncias cientiacuteficas estavam limitadas agraves ciecircncias matemaacuteticas como sugere a Repuacuteblica (vide 522b-sqq) No que respeita agraves restantes personagens cumpre dizer algumas palavras

Comeccedilando pelo primeiro protagonista Timeu cuja intervenccedilatildeo ocupa a grande maioria do que resta do texto (27c-106c) natildeo haacute evidecircncias concretas de que tenha realmente existido6 Com efeito todas as referecircncias a este suposto filoacutesofo pitagoacuterico satildeo posteriores ao diaacutelogo seu homoacutenimo no qual se diz ser um abastado cidadatildeo de Loacutecride na Itaacutelia tendo ali ocupado altos cargos na administraccedilatildeo poliacutetica e por isso recebido grandes louvores por parte dos

6 Natildeo confundir com o historiador homoacutenimo que viveu cerca de um seacuteculo depois

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habitantes locais (20a) De facto dadas as seacuterias duacutevidas em relaccedilatildeo ao Timeu histoacuterico haacute quem veja nele uma maacutescara de outra personalidade Ciacutecero refere nos Academica (11016) que Platatildeo quando foi pela primeira vez agrave Siciacutelia conviveu muito de perto com Timeu de Loacutecride e tambeacutem com Arquitas de Tarento Se a existecircncia do primeiro eacute duvidosa quanto agrave do segundo natildeo restam duacutevidas aleacutem de um poliacutetico exemplar Arquitas foi um matemaacutetico brilhante7 e mestre de ilustres matemaacuteticos como o proacuteprio Eudoxo conforme atesta Dioacutegenes Laeacutercio (8861) Por isso eacute possiacutevel que Timeu represente Arquitas contudo os dados disponiacuteveis natildeo permitem mais do que simples conjecturas

Por outro lado este caraacutecter fictiacutecio da personagem leva os estudiosos a questionar se Timeu natildeo seraacute um simples pseudoacutenimo de Platatildeo como fora inicialmente proposto por Wilamowitz-Moellendorff (1920 pp 591-592) e mais tarde desenvolvido por Cornford (1937 p 3) que sustentava esta argumentaccedilatildeo com o facto de ser impossiacutevel apontar algueacutem daquela eacutepoca que reunisse conhecimentos tatildeo aprofundados sobre tantas aacutereas do saber

Quanto a Criacutetias personagem responsaacutevel por narrar o episoacutedio da guerra que opocircs a Atenas primeva agrave Atlacircntida eacute sem duacutevida a figura que levanta mais dificuldades de ordem histoacuterica O principal problema eacute que a aacutervore genealoacutegica desta famiacutelia conta com quatro

7 Eacute-lhe por exemplo atribuiacuteda a duplicaccedilatildeo do cubo (DK 47A14)

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figuras com o nome ldquoCriacutetiasrdquo o I filho de Dropidas I e irmatildeo de Dropidas II (a quem Soacutelon teraacute transmitido o relato trazido do Egipto vide 20e) o II filho de Dropidas II um III neto do II e tio-avocirc de Platatildeo e um IV8 o dos Trinta Tiranos neto do III e primo do autor

A teoria tradicional proposta desde logo por Burnet (1914 p 338) e seguida por Cornford (1937 p 2) sustentava que se tratava do Criacutetias III tratava-se no fundo de fazer feacute nas palavras de Platatildeo Em todo o caso faltava ainda preencher o enorme fosso geracional entre este e Dropidas II Finalmente em 1949 surgiu num ostrakon encontrado na aacutegora de Atenas um registo que demonstrava a existecircncia histoacuterica de Ledas pai do Criacutetias III e filho de Dropidas II (vide Nails 2002 pp 106-107) Assim se confirmou com dados concretos a suspeita de Burnet

No que respeita a Hermoacutecrates o autor do suposto diaacutelogo pensado para seguir o Criacutetias a sua participaccedilatildeo limita-se a duas breves intervenccedilotildees (20d 108c) Quanto agrave sua existecircncia histoacuterica ela eacute inegaacutevel segundo Tuciacutedides (472) tratava-se de um homem de admiraacutevel inteligecircncia e coragem aleacutem de muitiacutessimo experiente em assuntos militares e notabilizou-se por ter previsto os planos expansionistas de Atenas logo em 424 aC (452) jaacute Proclo seguindo a mesma ideia de Tuciacutedides sublinha o seu protagonismo na vitoacuteria contra os Atenienses aquando da invasatildeo de Siracusa (Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo 17119-sqq)9 Note-

8 Participante no Caacutermides no Protaacutegoras e referido indirectamente na Carta VII (324c-d)

9 Sobre esta expediccedilatildeo militar vide infra pp 64-65

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se poreacutem que esta expediccedilatildeo foi posterior agrave data dramaacutetica do diaacutelogo

ii aspectos temaacutetico-estruturais

1 Antecedentes cosmoloacutegicosO texto do Timeu estabelece a constituiccedilatildeo do

mundo sensiacutevel e posteriormente dos seres que o habitam com particular evidecircncia para o Homem Considerando que este seraacute o eixo temaacutetico em torno do qual gira toda a narrativa eacute forccediloso que o diaacutelogo seja contextualizado num movimento que comeccedilara nos filoacutesofos preacute-socraacuteticos A relaccedilatildeo de Platatildeo com esta tradiccedilatildeo eacute quase sempre ambiacutegua se por um lado a tenta superar muitas das vezes condenando abertamente alguns dos seus representantes por outro importa dela vaacuterios elementos cuja autoria propositadamente silencia Daquela primeira inclinaccedilatildeo datildeo-nos testemunho vaacuterias passagens no Feacutedon (97c-99a) Soacutecrates confessa-se bastante desiludido com Anaxaacutegoras pelo facto de este inicialmente ter proposto o Intelecto (Nous) como causa de todas as coisas e posteriormente o ter trocado por princiacutepios naturais (ar aacutegua etc) nas Leis (889a-890a) onde o Estrangeiro de Atenas critica a tradiccedilatildeo dizendo que aquelas investigaccedilotildees estavam presas ao mundo do devir e por isso eram impassiacuteveis de constituir conhecimento estaacutevel ndash a principal censura eacute como no Feacutedon natildeo considerar o Intelecto como causa (889c5 ou de dia noun)

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Assim o Timeu surge como resposta ou proposta de substituiccedilatildeo das abordagens naturalistas a que segundo Platatildeo se tinham dedicado os preacute-socraacuteticos (cf Santos 2003 pp 18-22 47-50) Inscreve-se pois nessa tradiccedilatildeo como um ponto de viragem e jamais como um marco de continuidade O exemplo mais claro desta dupla relaccedilatildeo ndash adaptaccedilatildeo e ruptura ndash eacute justamente o caso do Intelecto como veremos a sua concepccedilatildeo enquanto princiacutepio de racionalidade seraacute um dos elementos centrais da cosmologia platoacutenica

Quanto aos elementos que dela retira eles satildeo apenas acessiacuteveis por meio de reconstituiccedilotildees hermenecircuticas porquanto permanecem no anonimato No caso do Timeu os mais flagrantes e fundamentais seratildeo os adaptados de Empeacutedocles e do pitagorismo enquanto que os restantes se resumem a alguns aspectos pontuais10

Aleacutem das oacutebvias semelhanccedilas entre os quatro elementos e as ldquoraiacutezesrdquo (rhizocircmata) de Empeacutedocles (DK 31B6) haacute diversos pontos de contacto entre os quais poderemos citar alguns exemplos Contudo como veremos eacute incorrecto supor que Platatildeo tenha simplesmente decalcado esses dados doutrinas ou teorias pois na maior parte dos casos essa importaccedilatildeo implicou uma evidente adaptaccedilatildeo motivada por um dos pressupostos mais importantes do diaacutelogo a clara e absoluta distinccedilatildeo entre uma dimensatildeo preacute-coacutesmica e outra poacutes-criaccedilatildeo

10 Por esse motivo seratildeo apenas referidos em nota ao longo da traduccedilatildeo

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No passo em que se diz que o mundo foi constituiacutedo a partir dos quatro elementos e posto em harmonia atraveacutes da proporccedilatildeo para que como sumo fim obtivesse amizade (philia 32c) eacute muitiacutessimo convidativa a coincidecircncia entre este termo e o Amor (Philotecircs) de Empeacutedocles (DK 31B17) Contudo deveremos ter em conta que enquanto neste autor se trata de uma forccedila dinacircmica que de certo modo unifica as raiacutezes no texto de Platatildeo eacute claramente um resultado em que culmina (ou deve culminar) um processo criativo isto eacute uma finalidade ou seja ainda que estejamos perante o mesmo conceito conveacutem ter em conta que cada um daqueles contextos tem implicaccedilotildees de ordem pragmaacutetica muito distintas um eacute processo (no caso de Empeacutedocles) outro seraacute fim ou resultado (no caso de Platatildeo)

Ainda assim haacute outras ocasiotildees em que embora crivadas por um processo de adaptaccedilatildeo as doutrinas do primeiro se espelham no segundo Ao descrever o corpo do mundo como uma esfera Timeu evoca claramente a Esfera de Empeacutedocles muito embora a daquele resulte de um processo criativo enquanto que a deste se situa numa fase preacute-coacutesmica as semelhanccedilas satildeo evidentes particularmente a niacutevel vocabular tal como a esfera do preacute-socraacutetico o mundo de Timeu eacute uacutenico (33a1 ad DK 31B28) esfeacuterico (33b4 ad idem) razatildeo pela qual natildeo teria necessidade de membros (33d3-34a1 ad DK 31B29) e todos os pontos da sua superfiacutecie estavam a igual distacircncia do centro (34b2 ad idem) Embora por vezes as palavras utilizadas natildeo sejam

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exactamente as mesmas eacute bastante evidente que ambos se situam num mesmo plano semacircntico insistindo por outro lado a caracterizaccedilatildeo nos mesmos pormenores e inclusivamente no mesmo princiacutepio geomeacutetrico se a forma eacute esfeacuterica todos os pontos da superfiacutecie seratildeo equidistantes do centro

De um ponto de vista estrutural a cosmologia do Timeu produz um mundo bastante proacuteximo do que descreve Empeacutedocles principalmente no que concerne ao modo como o seu equiliacutebrio eacute garantido Quando o demiurgo fabrica a alma do mundo faacute-lo atraveacutes de uma mistura em que entram as naturezas do Outro e do Mesmo agraves quais atribui dois movimentos distintos contudo complementares

Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente (36c5-7)

Tal como acontece com o Amor e a Discoacuterdia de Empeacutedocles que actuam com os elementos de um modo diametralmente oposto promovendo ainda assim o intercacircmbio ciacuteclico entre si (cf DK 31B17) eacute tambeacutem a concomitacircncia dos movimentos contraacuterios de entidades igualmente contraacuterias como o Mesmo e o Outro que no Timeu garantem o equiliacutebrio do mundo natural a colocaccedilatildeo destas naturezas na oacuterbita da alma do mundo cuja funccedilatildeo primordial seraacute governar o seu corpo (34c) garante-lhe essa funccedilatildeo decisiva Eacute evidente que se poderia admitir que esta noccedilatildeo de equiliacutebrio enquanto

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negociaccedilatildeo paciacutefica de forccedilas opostas tenha outra matriz que natildeo a de Empeacutedocles ndash por exemplo a teoria dos opostos Heraclito (eg DK22B67) ndash ou mesmo que se trata de uma concepccedilatildeo transversal impassiacutevel de ser identificada com um autor em particular Contudo o caraacutecter estrutural que a convivecircncia destas forccedilas assume no equiliacutebrio global do mundo pois natildeo se trata de um princiacutepio que afecta vaacuterias entidades como acontece em Heraclito aliado ao facto de essa relaccedilatildeo ter como sumo fim a amizade como foi referido anteriormente far-nos-aacute reconhecer a estreita ligaccedilatildeo

A par de Empeacutedocles a outra grande influecircncia na composiccedilatildeo do Timeu foi conforme dissemos o pitagorismo Eacute de tal modo acentuada que durante a Antiguidade alguns comentadores neoplatoacutenicos acreditavam que Platatildeo se baseara na obra Sobre a Alma do Mundo da autoria do suposto filoacutesofo pitagoacuterico Timeu de Loacutecride Embora hoje se saiba que se trata apenas de uma versatildeo doacuterica do texto de Platatildeo datada do seacuteculo I dC esta curiosidade eacute bem ilustrativa do quatildeo acentuada eacute a presenccedila do pitagorismo no diaacutelogo

Em primeiro lugar o ambiente ritual em que decorre o diaacutelogo faz lembrar o espiacuterito cientiacutefico-religioso que definia o pitagorismo natildeo esqueccedilamos que Timeu invoca os deuses antes de iniciar o seu discurso (27c-d) e torna a invocaacute-los quando tem necessidade de forjar um novo comeccedilo agrave narrativa (48d) Desta tendecircncia jaacute alguns autores antigos tinham dado notiacutecia diz Proclo nos seus Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo

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(1303-18) que tal como pensam outros11 tambeacutem ele considera o proeacutemio inicial uma preparaccedilatildeo simboacutelica para a exposiccedilatildeo propriamente dita como era costume dos Pitagoacutericos

Aleacutem de definir a estrutura esta influecircncia funciona tambeacutem como acircncora teoacuterica a que toda a exposiccedilatildeo se fixa Como sabemos o conteuacutedo e a orientaccedilatildeo da fiacutesica pitagoacuterica tinham um caraacutecter profundamente teoloacutegico isso por si soacute seria suficiente para que Platatildeo adaptasse tal modelo ao seu sistema filosoacutefico Contudo mais do que adaptar preferiu incluir essa perspectiva e promovecirc-la a parte integrante criando aquilo a que podemos chamar ldquouma fiacutesica pitagoacuterica de Platatildeordquo Ao tornar teoloacutegica a sua filosofia natural garante a possibilidade de cumprir o principal objectivo do diaacutelogo dar a conhecer o processo de constituiccedilatildeo do mundo ou seja revelar aos homens aquilo que se situa na esfera do divino Ora para estabelecer esse contacto entre divino e humano seria imprescindiacutevel esta vertente teoloacutegica e Platatildeo viu nos ensinamentos do pitagorismo essa preciosa ferramenta pois combinavam o saber fiacutesico com a atitude teoloacutegica ndash orientaccedilotildees verdadeiramente imprescindiacuteveis para o caso particular deste diaacutelogo

Essa vertente religiosa que determinaraacute a orientaccedilatildeo teoloacutegica deveraacute ser procurada um pouco para aleacutem de Pitaacutegoras nos Misteacuterios Oacuterficos Como

11 Refere-se muito provavelmente a Iacircmblico (apud Lernould 2000 p 65) cuja Sobre a Vida Pitagoacuterica tem por principal finalidade demonstrar a subordinaccedilatildeo das doutrinas de Platatildeo a Pitaacutegoras

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observa o proacuteprio Proclo na Teologia Platoacutenica (12526) Pitaacutegoras recebeu os rituais de Aglaofemo um iniciado de Orfeu e Platatildeo recebeu de Pitaacutegoras os escritos que encerravam este tipo de conhecimento Ainda que esta passagem de testemunho natildeo tenha sido assim tatildeo linear mas valha sobretudo numa dimensatildeo simboacutelica eacute por intermeacutedio de Pitaacutegoras que Platatildeo tem acesso agraves ferramentas teoacutericas oacuterficas que lhe permitiratildeo sondar os procedimentos divinos pelos quais o mundo e o Homem foram constituiacutedos e partir do que tem diante dos olhos para chegar regressivamente agrave sua criaccedilatildeo

Essas ferramentas satildeo fundamentalmente a matemaacutetica ndash sobretudo as suas vertentes geomeacutetrica e estereomeacutetrica ndash a muacutesica e a astronomia que utilizadas em conjunto permitiratildeo uma observaccedilatildeo do mundo fenomeacutenico de que se poderatildeo retirar conclusotildees com valor filosoacutefico Eacute por exemplo atraveacutes da estereometria que Timeu consegue deduzir as formas dos elementos atribuindo a cada um a figura correspondente de acordo com as suas propriedades cineacuteticas o cubo agrave terra pois eacute de entre os elementos o que se move mais lentamente (55d) o icosaedro agrave aacutegua (55b 56a) o octaedro ao ar (55a 56a) a piracircmide ao fogo (55d) De forma anaacuteloga a deduccedilatildeo destas figuras depende tambeacutem de um raciociacutenio matemaacutetico atraveacutes da combinaccedilatildeo dos triacircngulos-base (rectacircngulo equilaacutetero e isoacutesceles) mediada pela proporccedilatildeo a geometria em plano passa a estereometria tridimensional (54d-sqq) dando assim corpo agraves formas representaacuteveis mentalmente e de forma abstracta Em suma ao apoiar-se nos ramos matemaacuteticos

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da aritmeacutetica e da geometria a mensagem teoloacutegica pode tomar corpo e tornar-se uma fiacutesica filosoacutefica pois permite representar aquilo que natildeo pode ser alcanccedilado pelos olhos trata-se de uma matemaacutetica teoloacutegica

Aleacutem disso eacute atraveacutes da harmonia proporcionada pela muacutesica que se pode conceber a dos movimentos dos corpos celestes na medida em que ambas obedecem a um mesmo princiacutepio cineacutetico

na segunda [oacuterbita pocircs] o Sol por cima da Terra a Estrela da Manhatilde e o astro que dizem ser consagrado a Hermes na rota circular que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente (38d1-6)

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De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento (80a6-80b1)

Os astros tal como os sons circulam juntos a diferentes distacircncias uns dos outros ndash os astros em espaccedilo os sons em tempo mas de acordo com uma mesma relaccedilatildeo numeacuterica que determina a harmonia do conjunto eacute a este raciociacutenio que segundo Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 291a10-11) os Pitagoacutericos chamavam ldquoa muacutesica das esferasrdquo cuja adaptaccedilatildeo eacute evidente no sistema

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que propotildee o Timeu Neste diaacutelogo Platatildeo parece recuperar a identificaccedilatildeo que Soacutecrates faz na Repuacuteblica (531a-c) entre muacutesica e astronomia Ao distinguir os muacutesicos que se dedicam agrave demanda do intervalo miacutenimo mensuraacutevel condenaacuteveis por se aterem em demasia agrave percepccedilatildeo sensiacutevel do som daqueles que procuram os nuacutemeros nos acordes que escutam diz que satildeo estes uacuteltimos que se aparentam aos que estudam os astros Esta teoria da muacutesica que Soacutecrates elogia eacute a pitagoacuterica

2 O discurso de TimeuComo dissemos a intervenccedilatildeo de Timeu versa

sobre o processo de criaccedilatildeo do mundo e de todas as coisas que o habitam Homem restantes animais deuses e ateacute as plantas Trata-se pois de uma tentativa de estabelecer um modelo explicativo do mundo assente em axiomas e pressupostos soacutelidos uma cosmologia Mas desta prerrogativa inicial nasce uma inevitaacutevel aporia como produzir uma cosmologia a partir da observaccedilatildeo do mundo do devir o reino da mudanccedila ininterrupta sendo por isso impassiacutevel de constituir objecto de verdadeiro saber Em uacuteltima anaacutelise como produzir saber a partir do sensiacutevel se soacute as Ideias (inteligiacuteveis) podem ser objecto de saber (cf Santos 2003 pp 13-15)

Para responder a estas questotildees nucleares Platatildeo recorre a um artifiacutecio deveras surpreendente pautar o discurso pela verosimilhanccedila mais do que pela certeza e assim apresentar uma proposta plausiacutevel em vez de um tratado dogmaacutetico e vinculativo o que de facto

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tambeacutem aproxima o projecto da tradiccedilatildeo cosmogoacutenica Ao mesmo tempo a validade desta proposta dependeraacute do estabelecimento preacutevio de axiomas estanques e estaacuteveis que forneccedilam um ponto de partida para a narrativa especulativa

21 Pressupostos iniciaisNa minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre [to on aei] e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem [to gignomenon] sem nunca ser Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo pois eacute imutaacutevel Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca (27d5-28a4)

Eacute fulcral que antes de tudo Timeu distinga aquilo que eacute sempre daquilo que estaacute sempre sujeito ao devir e por isso nunca chega a ser trata-se da ceacutelebre diferenccedila entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao sensiacutevel ndash um dos pilares do platonismo A esta distinccedilatildeo surge associada uma outra de caraacutecter epistemoloacutegico que tem que ver com a forma como cada um desses niacuteveis ontoloacutegicos pode ser apreendido se o que eacute cabe ao pensamento e agrave razatildeo jaacute o que pertence ao niacutevel do devir destina-se apenas a ser captado pelos sentidos Toda esta argumentaccedilatildeo em torno da distinccedilatildeo entre o sensiacutevel e o inteligiacutevel faria adivinhar a ceacutelebre oposiccedilatildeo platoacutenica entre opiniatildeo (doxa) e saber (epistecircmecirc) estando a primeira destinada ao que deveacutem e a segunda ao que eacute sempre e visto que o propoacutesito do diaacutelogo eacute apresentar

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um discurso (logos) sobre o mundo implicando por isso a obediecircncia agrave verdade teria que se situar no acircmbito do saber No entanto ao comeccedilar a descrever os atributos do objecto em estudo Timeu daacute-se conta de que o mundo pertence agrave ordem do devir pois apresenta todas as caracteriacutesticas do sensiacutevel eacute visiacutevel (oratos 28b7) tangiacutevel (aptos 28b7) e tem corpo (socircma echocircn 28b7) Ora se o mundo eacute deveniente como produzir um discurso verdadeiro e estaacutevel sobre ele Eacute da resposta a esta pergunta que depende a validade de toda a proposta cosmoloacutegica

Sabendo entatildeo que o mundo pertence agrave ordem do devir o proacuteximo passo seraacute averiguar qual a sua causa pois de acordo com o preceito platoacutenico todas as coisas devenientes satildeo geradas por uma causa12 No caso do mundo a sua causa foi uma divindade (o demiurgo) que o fabricou por meio de um acto intelectivo de contemplaccedilatildeo do arqueacutetipo imutaacutevel (29a) Natildeo querendo antecipar as questotildees que esta personagem levanta e que seratildeo analisadas posteriormente digamos apenas que seraacute o centro das atenccedilotildees do discurso do protagonista Perante a falibilidade da descriccedilatildeo das coisas sensiacuteveis tentaraacute reconstituir a acccedilatildeo demiuacutergica a partir da observaccedilatildeo directa do que tem perante os olhos ndash a obra dessa divindade Ou seja se o mundo consiste numa entidade fabricada a partir de um arqueacutetipo significa que esse mesmo mundo eacute jaacute por si uma representaccedilatildeo portanto o meacutetodo para descrever

12 Cf Feacutedon 98c 99b Filebo 27b Leis 891e Timeu 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e

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a forma como foi fabricado poderaacute tambeacutem ele ser uma representaccedilatildeo sem que com isso ponha em causa a sua validade pois como diz Timeu

Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere (29b3-5)

Como muito bem nota Johansen (2004 p 50) aquilo que determina o estatuto do discurso eacute o facto de esse discurso ser congeacutenere ao seu assunto ou seja um discurso sobre uma representaccedilatildeo teraacute tambeacutem ele proacuteprio um teor representativo Ao mesmo tempo ele constitui o instrumento que nos permite situar o acircmbito do conteuacutedo a que se refere visto que transparece a sua natureza eacute nesta medida que os discursos ldquoexplicamrdquo E Timeu sublinha esta relaccedilatildeo ao qualificar com adjectivos semanticamente muito proacuteximos ambos referente e referido diz ele que o que eacute estaacutevel e fixo (monimou kai bebaiou 29b6) eacute interpretado por discursos estaacuteveis e invariaacuteveis (monimous kai ametaptocirctous 29b7) ao passo que aqueles que interpretam algo produzido como representaccedilatildeo (apeikasthentos 29c1) por serem eles proacuteprios tambeacutem representaccedilotildees (29c2) estabelecem com aquilo que representam uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia (29c2)

22 Intelecto e NecessidadeNum determinado momento da narrativa

(48e-49a) Timeu interrompe a descriccedilatildeo da criaccedilatildeo do

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mundo para esclarecer que tudo quanto referira ateacute aiacute tinha sido fabricado pelo Intelecto Era entatildeo altura de justapor ao discurso o que havia sido gerado pela Necessidade

Estes dois conceitos muito embora sejam decisivos no processo cosmoloacutegico natildeo satildeo curiosamente objecto de uma reflexatildeo metanarrativa como acontece por exemplo com o demiurgo Apenas eacute dito que a Necessidade eacute uma ldquocausa erranterdquo (to tecircs planocircmenecircs aitias 48c7) que foi persuadida pelo Intelecto a ldquoorientar para o melhor a maioria das coisas devenientesrdquo (48a) Esta informaccedilatildeo aleacutem de natildeo esclarecer a natureza daquelas entidades implica apenas que a cedecircncia da Necessidade foi apenas parcial (ldquoa maioria das coisasrdquo) Mas vejamos primeiro que tudo de que modo poderemos entender em que consistem

Quanto ao Intelecto eacute bastante convidativo fazecirc-lo coincidir com o demiurgo pois Timeu sublinha que o que acaba de descrever fora fabricado por este agente se no princiacutepio eacute dito que o demiurgo eacute a causa que originou o mundo a identificaccedilatildeo eacute oacutebvia Na verdade nas Leis Platatildeo define-o como responsaacutevel por governar tudo (875c-d) e por ter ordenado o mundo (966e) manifesta-se no movimento dos corpos celestes os quais os homens devem observar e seguir como paradigma (897d-898a) Transpondo esta descriccedilatildeo para o nosso contexto a identificaccedilatildeo do Intelecto com o demiurgo parece fazer sentido no entanto carece de explicaccedilatildeo o atributo de

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ldquogovernar tudordquo pois a divindade criadora retira-se logo apoacutes ter concluiacutedo a sua tarefa ndash tanto que entrega parte da sua ldquoobrardquo (a parte mortal da alma humana por exemplo) agraves divindades geradas por si Por esse motivo este Intelecto poderaacute por outro lado coincidir com a alma do mundo como pensa Cherniss (1944 pp 407-411 425 606-607) Ainda assim essa opccedilatildeo tambeacutem natildeo deixa de levantar problemas jaacute que como diz Brisson (1998 p 84) o demiurgo soacute pode ser independente pois constitui a causa de todas as coisas do mundo razatildeo pela qual natildeo poderaacute estar incluiacutedo naquilo que foi criado por si proacuteprio Independentemente de coincidir ou natildeo com o demiurgo o Intelecto corresponde a um princiacutepio de racionalidade teleoloacutegica pois visa acima de tudo ldquoorientar tudo para o melhorrdquo no fundo a vertente inteligente da criaccedilatildeo

Por oposiccedilatildeo a Necessidade seraacute algo cujo funcionamento se opotildee ao do Intelecto primeiro Timeu chama-lhe ldquocausa erranterdquo isto eacute sem finalidade (natildeo teleoloacutegica) segundo se a Necessidade cede a uma ldquopersuasatildeo racionalrdquo (peithous emphronos 48a) eacute evidente que a sua natureza seraacute de algum modo irracional Mas retomando a questatildeo deixada em suspenso acerca da cedecircncia unicamente parcial da Necessidade ela seraacute mais facilmente esclarecida se tomarmos em consideraccedilatildeo o seguinte

Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende

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constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade (69d3-6)

A consequecircncia de a Necessidade natildeo ter cedido senatildeo parcialmente implica que a proacutepria estrutura humana tenha sido tambeacutem parcialmente composta por ela Ao participar no processo de criaccedilatildeo o produto que dela resulta (o mundo e o Homem) partilharaacute da sua caracteriacutestica mais iacutentima a irracionalidade traduzida nas partes mortais da alma no caso do Homem no proacuteprio Homem no caso do mundo Corresponde no fundo agrave vertente mecacircnica e corpoacuterea da criaccedilatildeo que como tal natildeo dispotildee de racionalidade nem finalidade Como oportunamente sugere Santos (2003 p 28 n 32) a noccedilatildeo de ldquocausa erranterdquo pode perfeitamente ser equacionada com a passagem do Feacutedon (98c-99b) onde Soacutecrates esclarece que natildeo satildeo os seus muacutesculos e tendotildees a causa de estar na prisatildeo mas sim o Bem isto eacute a corporalidade mecacircnica natildeo pode constituir a causa primeira das coisas porquanto estaacute desprovida de qualquer razatildeo

No fundo a distinccedilatildeo entre estas duas entidades pode ser entendida agrave luz de um modelo dualista o Intelecto representa a vertente teleoloacutegica e inteligente e a Necessidade corresponde agrave corpoacuterea e irracional Sabendo que actuam como princiacutepios de criaccedilatildeo na medida em que determinam as duas faces do devir podem com justeza ser entendidos como condiccedilotildees de possibilidade do dualismo cosmoloacutegico

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23 O demiurgoLogo no iniacutecio da narrativa apoacutes a anuecircncia

de Soacutecrates Timeu comeccedila por definir o agente que constituiu o mundo como um deus (theos 31a2) bom (agathos 29e1) e absolutamente livre de inveja (peri oudenos oudepote phthonos 29e2) a melhor das causas (o drsquoaristos tocircn aitiocircn 29a6) daiacute que o que produza seja o mais belo (to kalliston 30a7) Como eacute evidente o estatuto divino do demiurgo natildeo coincide de forma alguma com o das divindades tradicionais do Olimpo grego Ao contraacuterio destes que protagonizam episoacutedios de adulteacuterio (Afrodite e Ares) guerras (a revolta dos Gigantes) e manifestam atributos opostos agrave bondade como a ganacircncia (de Cronos e posteriormente de Zeus) bem como interferem em certa medida com a acccedilatildeo quotidiana dos homens ndash os Poemas Homeacutericos satildeo bom exemplo disso ndash o demiurgo eacute todo ele bom e apoacutes ter criado a sua obra retira-se natildeo interferindo mais Eacute pois um agente divino que se situa num patamar superior ao das outras divindades tradicionais Isso eacute bastante evidente tendo em conta os dois tipos de demiurgia que a narrativa apresenta a primeira que diz respeito ao mundo e agrave parte divina do Homem eacute da autoria do demiurgo jaacute a segunda que trata das coisas mortais (a parte mortal da alma do Homem inclusive) foi delegada agraves divindades criadas por si

Em sentido inverso o demiurgo aparece caracterizado no texto mais como um homem do que como um deus Chega a ter emoccedilotildees quando se apercebe de que a sua obra estava a tomar o rumo certo jaacute que

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representava com bastante verosimilhanccedila o arqueacutetipo rejubilou e ficou satisfeito (37c7) Aleacutem disso tambeacutem a sua metodologia eacute descrita agrave luz de criteacuterios humanos pois descobre por meio de um raciociacutenio (logismos 30b1) e obedece a uma estrutura matemaacutetica (47b 87c)

Como ldquoconstrutorrdquo o demiurgo empreende uma actividade mimeacutetica Ao criar o mundo sensiacutevel por meio da imitaccedilatildeo do arqueacutetipo assemelha-se em grande medida a um artiacutefice que antes de produzir alguma coisa tem em conta uma forma da qual assimilaraacute as propriedades que faraacute corresponder no material que trabalha Assim potildee os olhos nas coisas que se mantecircm sempre iguais (as Ideias) Partindo deste conhecimento preacutevio age sobre o material de modo a dotaacute-lo de ordem pois que antes estava desordenado (30a3-5)

Levando mais longe a caracterizaccedilatildeo da obra do demiurgo como uma actividade mimeacutetica tenhamos em conta antes de mais que esta figura em termos muito gerais eacute um fabricador Este seu caraacutecter eacute desde logo confessado por Timeu no iniacutecio da sua narrativa pois a palavra que utiliza para o definir eacute muito simplesmente poiecirctecircs (28c3) Embora fosse demasiado forccedilado traduzi-la por ldquopoetardquo em virtude das contradiccedilotildees que essa opccedilatildeo levantaria natildeo eacute de todo inconcebiacutevel que ainda assim procuremos nele alguns atributos que o possam caracterizar como tal e a sua actividade como algo semelhante agrave criaccedilatildeo poeacutetica Jaacute foi dito que ela eacute mimeacutetica o que a situa num acircmbito muito proacuteximo do poeacutetico vejamos em que medida podemos aproximaacute-la ainda mais convocando para o efeito a forma como

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Platatildeo descreve a actividade dos poetas e comparando-a com a forma como no Timeu caracteriza o processo criativo levado a cabo pelo demiurgo

Primeiro que tudo eacute exactamente a mesma palavra ndash poiecirctecircs ndash que eacute usada para definir quer o fabricador do mundo neste diaacutelogo (28c3) quer os poetas um pouco por todo o corpus platoacutenico13 mas as semelhanccedilas natildeo se resumem a este pormenor vocabular Na Repuacuteblica numa altura em que se fala sobre o papel dos poetas na educaccedilatildeo a sua actividade (e tambeacutem o produto dessa actividade) eacute descrita como uma fabricaccedilatildeo (plassocirc 377b6) criaccedilatildeo (poieocirc 377c1 379a3) e composiccedilatildeo (syntithecircmi 377d6) No Timeu tambeacutem a acccedilatildeo da divindade eacute descrita com estes trecircs verbos14

Enquanto artiacutefice o demiurgo estaacute ligado agraves mais diversas artes de acordo com o que Platatildeo estabelecera na Repuacuteblica acerca da terceira classe de cidadatildeos como ferreiro quando fabrica a alma do mundo (35a-40d) e lhe daacute a forma de uma esfera armilar como pintor desenha os animais no mundo (55c5-6) isto eacute os corpos celestes associados aos animais do Zodiacuteaco eacute tambeacutem um modelador de cera (74c6) como oleiro para originar a massa oacutessea do corpo humano primeiro peneira a terra (73e1) em seguida mistura-a com o elemento liacutequido ndash a medula humedecida (73e2) ndash e finalmente daacute-lhe a forma num torno (73e7) como tecelatildeo quando fabrica os sistemas respiratoacuterio e circulatoacuterio num entranccedilado (78c1) semelhante a uma nassa (78b4) como agricultor

13 Eg Goacutergias 485d Iacuteon 534b Leis 935e Repuacuteblica 379a14 plassocirc 42d 73c 74a 78c poieocirc 31b 31c 34b 35b 36c

37d 38c 45b 71d 76c 91a syntithecircmi 33d 69d 72e

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ao semear (41e4) implantar (42a3) e enraizar (73b4) as almas nos corpos ou ainda quando a medula eacute comparada a um solo araacutevel (73c7) que deve receber a semente (73c7)

Contudo se no caso do artiacutefice ldquoconvencionalrdquo o material que trabalha eacute bastante oacutebvio no que trata ao demiurgo essa questatildeo eacute bastante mais delicada Eacute dito que a sua actividade consiste em contemplar o arqueacutetipo para trabalhar o material de modo a dotaacute-lo de ordem ele que antes estava desordenado (30a3-5) mas natildeo eacute especificada a natureza desse material Ora se a sua funccedilatildeo eacute ordenar organizar e impor medida e proporccedilatildeo onde as natildeo havia (69b) por meio da geometria e da matemaacutetica (53b-c) a mateacuteria-prima de que parte seraacute obviamente o substrato preacute-coacutesmico que existia no caos anterior agrave demiurgia Vejamos o exemplo dos elementos

Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros (53a7-b5)

O trabalho produtivo natildeo consiste numa criaccedilatildeo ex nihilo porquanto modela um material preacute-existente tem antes que ver com uma configuraccedilatildeo de acordo com uma matriz (a matemaacutetica) do substrato preacute-coacutesmico

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Ao agir como ordenadororganizador assemelha-se bastante a um administrador ou em uacuteltima anaacutelise a um poliacutetico se a sua tarefa pretende impor a ordem onde ela natildeo existia metaforicamente transmuta a anarquia do caos em sociedade coacutesmica A este respeito a proacutepria palavra decircmiourgos confirma essa orientaccedilatildeo semacircntica pois noutros contextos pode significar precisamente ldquomagistradordquo15 Deste modo quando Timeu lhe chama ldquocriador e pai do mundordquo (28c3-4) devemos entender esses epiacutetetos em primeiro lugar agrave luz do caraacutecter mimeacutetico da demiurgia e por outro lado de acordo com esta funccedilatildeo ordenadora ou seja seraacute ldquopairdquo como educador e natildeo como princiacutepio de geraccedilatildeo Tambeacutem como pai neste sentido de educador o demiurgo eacute para os homens um exemplo a seguir tal como Platatildeo diz no Teeteto (176b) acerca da necessidade de o Homem se tornar o mais semelhante possiacutevel agrave divindade ele eacute o arqueacutetipo a que o filoacutesofo deve aspirar

24 O terceiro niacutevel ontoloacutegicoNo momento em que acaba de descrever as obras

do Intelecto e passa agraves da Necessidade (48a) Timeu sente-se obrigado a reiniciar a narrativa e a desfazer a dicotomia ontoloacutegica inicial ser-devir acrescentando a estes dois tipos (dyo eidecirc 48e3) aquilo a que chama ldquoum terceiro de outra espeacutecierdquo (triton allo genos 48e4)

Ao contraacuterio do que acontece com os anteriores o modo de referir este terceiro tipo carece de clareza

15 Eg Aristoacuteteles Poliacutetica 1275b29 Poliacutebio 23516 Tuciacutedides 547 Cf Brisson (1998 p 50)

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e estabilidade epistemoloacutegica porquanto eacute acessiacutevel por meio de ldquoum certo raciociacutenio bastardordquo (logismocirc tini nothocirc 52b2) que carece de credibilidade (mogis piston 52b2) Ora seraacute inevitaacutevel o este caraacutecter hiacutebrido da explicaccedilatildeo se aplique tambeacutem ao assunto a que se reporta em trecircs ocasiotildees distintas Timeu caracteriza-o como ldquoum tipo difiacutecil e obscurordquo (chalepon kai amydron 49a3) ldquoinvisiacutevel e amorfordquo (anoraton kai amorphon 51a7) que ldquoparticipa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevelrdquo (metalambanon aporocirctata tou noecirctou 51a7-b1) Deixando de parte os problemas de interpretaccedilatildeo que esta descriccedilatildeo levanta a questatildeo que ocorre levantar eacute como formular um discurso que se reporta a algo imperscrutaacutevel

A dificuldade eacute desde logo anunciada pela incapacidade de o objectivar na linguagem Isso eacute evidente tanto nas palavras do protagonista como nas interpretaccedilotildees produzidas ao longo dos seacuteculos eacute que o termo chocircra eacute apenas uma das designaccedilotildees que recebe no texto aquela que a tradiccedilatildeo fixou Aleacutem desta que vertemos por ldquolugarrdquo (52a8) o terceiro tipo eacute tambeacutem chamado ldquoreceptaacuteculordquo (hypodochecirc 49a6) ldquosuporte de impressatildeordquo (ekmageion 50c2) ldquomatildeerdquo (mecirctecircr 50d3 51a5 88d7) ldquoaquilo em querdquo (to en ocirc 49e7 50d1 50d6) ldquolocalizaccedilatildeordquo (edra 52b1) e ldquolocalrdquo (topos 52a6 52b4) mais indirectamente eacute comparaacutevel a uma matildee (proseikasai mecirctri 50d2-3) e a uma ama (oion tithecircnecircn 49a6) Todas elas que de um modo geral se enquadram numa descriccedilatildeo da chocircra como suporte de alguma coisa parecem conferir-lhe uma concepccedilatildeo espacial contudo

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a flutuaccedilatildeo de termos como ldquolugarrdquo ldquolocalrdquo e ldquoaquilo em querdquo denuncia a impossibilidade de apontar onde eacute exactamente

A chocircra evidencia caracteriacutesticas do inteligiacutevel e do sensiacutevel eacute invisiacutevel e amorfa ao mesmo tempo que tangiacutevel mas apenas pensaacutevel por um raciociacutenio bastardo A esta constituiccedilatildeo ontoloacutegica hiacutebrida acresce o facto de em termos espaciais ser caracterizada de modo ambiacuteguo eacute extensatildeo ou espaccedilo como condiccedilatildeo de localizaccedilatildeo (ldquoprovidencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devirrdquo 52b6) e ao mesmo tempo o proacuteprio local ocupado por um determinado corpo (ldquoa natureza que recebe todos os corposrdquo 50b6) isto eacute a realizaccedilatildeo daquela extensatildeo (apud Mesquita 2009 p 91) A impossibilidade de associaacute-la em definitivo a uma das categorias ontoloacutegicas e a uma das acepccedilotildees espaciais por partilhar caracteriacutesticas que se aplicam a ambos os membros da equaccedilatildeo convida-nos a considerar que se possa situar no plano da abstracccedilatildeo Isto eacute se natildeo pertence ao inteligiacutevel nem ao sensiacutevel bem como natildeo admite por inteiro o local de contacto entre os dois niacuteveis resta considerar esse lugar uma abstracccedilatildeo do espaccedilo de particularizaccedilatildeo ldquonatildeo eacute senatildeo o particular pensado eideticamenterdquo (Mesquita 1995 p 146) No entanto se prescindirmos daquela distinccedilatildeo aceitando para tal a fusatildeo entre espaccedilo como extensatildeo e espaccedilo como concretizaccedilatildeo pontual e pegarmos no problema a partir das suas condiccedilotildees discursivas esta ideia de lugar de participaccedilatildeo abstraiacutedo pode tornar-se ligeiramente mais clara

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A descriccedilatildeo natildeo se processa de modo inequiacutevoco nem sequer toma corpo num discurso minimamente demonstrativo que pretenda tornar transparente a natureza da chocircra Em vez disso eacute comparada a uma matildee ou a uma ama equivalendo a forma como interage com o arqueacutetipo e com os particulares a um processo de impressatildeo de que ela eacute o suporte

() recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel () (50b8-c6)

Na medida em que se afigura como uacutenica alternativa possiacutevel o recurso ao metafoacuterico parece assim agravar o caraacutecter ldquodifiacutecil e obscurordquo tanto do assunto como da sua explicaccedilatildeo Mas se aceitarmos a premissa de que um discurso e o seu objecto partilham da mesma natureza seraacute de esperar que a natureza da proacutepria chocircra haacute-de tambeacutem ser metafoacuterica

Tomada na sua estrutura mais baacutesica a metaacutefora consiste na coligaccedilatildeo de dois termos atraveacutes de um elemento intermeacutedio que permite uma transferecircncia de sentido bidireccional isto eacute as duas extremidades do aparelho conceptual estatildeo co-implicadas porquanto unidas pelo terceiro termo aquele em que se consubstancia a relaccedilatildeo De modo anaacutelogo a chocircra

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representaraacute o ponto intermeacutedio de coligaccedilatildeo entre o arqueacutetipo e os particulares ou seja o lugar em que se consuma o processo de participaccedilatildeo Tambeacutem nesta perspectiva parece inscrever-se o caraacutecter mimeacutetico da chocircra ldquotudo o que nela entra e dela sai satildeo imitaccedilotildees (mimecircmata) do que eacute semprerdquo Por um lado natildeo eacute o proacuteprio arqueacutetipo que entra no lugar de participaccedilatildeo mas apenas as suas imitaccedilotildees por outro o particular e a proacutepria particularizaccedilatildeo resultam como imitaccedilotildees do proacuteprio arqueacutetipo mediadas justamente pela chocircra16

A exposiccedilatildeo deste terceiro tipo insiste nas constantes transformaccedilotildees a que todas as coisas estatildeo sujeitas e que erradamente designamos por ldquoistordquo (touto 49d5) quando deveriacuteamos optar por ldquoo que em determinadas circunstacircncias estaacute assimrdquo (to toiouton ekastote 49d5) Por exemplo aplicamos o termo ldquoaacuteguardquo independentemente de aquilo que referimos estar em estado liacutequido soacutelido ou gasoso Conclui-se que a chocircra pode ser ldquoistordquo ao passo que as coisas que nela entram e dela saem satildeo apenas ldquoque estaacute assimrdquo (49d-e) O recurso agrave linguagem como repositoacuterio metafoacuterico natildeo nos parece acidental nem inconsequente na medida em que ajuda a esclarecer a distinccedilatildeo ontoloacutegica fundamental entre as duas dimensotildees enquanto ldquoistordquo a (e soacute a) chocircra tem um sentido substantival e por conseguinte uma natureza substancial jaacute os particulares enquanto ldquoaquilo que estaacute assimrdquo estatildeo limitados ao acircmbito adjectival e natildeo podem ser mais do que qualificativos

16 Para uma discussatildeo mais detalhada do problema vide Mesquita 1995 pp 132-133

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circunstanciais Esta ldquoontologia qualitativardquo do mundo do devir atribui aos particulares um estatuto de meras entidades relacionais (apud Ferrari 2007 p 14) e como tal diametralmente opostos da substancialidade do arqueacutetipo Por conseguinte a relaccedilatildeo entre ambos os niacuteveis isto eacute a participaccedilatildeo natildeo poderaacute ser reduzida a um decalque biuniacutevoco caracteriacutestico da estrutura sujeito-predicado A nosso ver ela soacute pode ser mimeacutetica

Aleacutem desta linha de interpretaccedilatildeo espacial da chocircra existe uma outra a que podemos chamar ldquomaterialrdquo Decorre da interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles que numa passagem da Fiacutesica (42 209b11-16) em que comenta esta secccedilatildeo do Timeu atribui a Platatildeo a identificaccedilatildeo entre espaccedilo (chocircra) e mateacuteria (hylecirc) Apesar de convidativa enferma de dois problemas fundamentais Em primeiro lugar esta categoria eacute absolutamente estranha ao sistema platoacutenico tanto assim eacute que o termo hylecirc soacute comeccedila a ter este sentido filosoacutefico justamente a partir de Aristoacuteteles Em segundo e natildeo menos importante o facto de aquela passagem da Fiacutesica assentar em grande parte nas chamadas doutrinas natildeo escritas ndash um grupo de postulados que Platatildeo teraacute sustentado oralmente mas de que natildeo deixou registo nos diaacutelogos Ora ainda que a sua reconstituiccedilatildeo seja possiacutevel e ateacute verosiacutemil (vide Ferrari 2007 pp 22-23) esta linha de interpretaccedilatildeo parece-nos exclusivamente vocacionada para esclarecer o Platatildeo hipoteacutetico e natildeo o dos diaacutelogos O nosso propoacutesito esgota-se nesta segunda orientaccedilatildeo

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25 O estatuto do discursoPortanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil e natildeo procurar nada aleacutem disso (29c4-29d3)

Esta curiosa afirmaccedilatildeo do narrador faz referecircncia a duas questotildees de extrema importacircncia para o entendimento do tipo de mensagem que o diaacutelogo pretende fazer passar e tambeacutem da forma como o faz o facto de toda ela ser aceite por Soacutecrates sem quaisquer reservas coloca-a num plano de acrescida importacircncia Em primeiro lugar Timeu refere que tanto ele como quem o ouve satildeo apenas seres humanos e por isso nem lhe eacute permitido a ele aflorar determinadas questotildees nem lhes seria possiacutevel a eles compreendecirc-las Em segundo lugar e mais importante ao apontar o acircmbito do verosiacutemil como uacutenica alternativa distingue muito claramente dois niacuteveis discursivos o dos ldquodiscursos verosiacutemeisrdquo (29c8 [logous] eikotas) e o da ldquonarrativa verosiacutemilrdquo (29d2 eikota mython) desta concorrecircncia ressalta obviamente a partilha do termo eikos que vertemos por ldquoverosiacutemilrdquo mas tambeacutem a associaccedilatildeo deste termo a mythos num caso e a logos noutro caso

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Aleacutem deste preluacutedio a expressatildeo eikos mythos aparece mais duas vezes no texto Na primeira insere-se no contexto da descriccedilatildeo do processo de formaccedilatildeo das cores (67c-68d) apoacutes dar alguns exemplos do modo como se misturam Timeu diz que para os outros casos que natildeo referiu basta seguir o mesmo raciociacutenio de modo a que fique ldquosalvaguardada a narrativa verosiacutemilrdquo (68d) Na segunda ocorrecircncia as circunstacircncias satildeo muito semelhantes ao abordar os vaacuterios compostos que os elementos primaacuterios podem formar diz que para os casos que natildeo referiu deve ser aplicada a mesma metodologia desde que seja ldquoinvestigada a modalidade da narrativa verosiacutemilrdquo (59c) O estatuto de modalidade (idea) discursiva que reconhece ao eikos mythos coloca a narrativa como ponto de partida para a investigaccedilatildeo satildeo os dados nela implicados que devem ser discutidos Ao dizer que essa narrativa eacute uma modalidade Timeu parece dar a entender que haveraacute uma outra pois se eacute essa que deve ser investigada entatildeo a forma como essa investigaccedilatildeo se formaliza deveraacute obedecer a uma modalidade diferente o eikos logos

Ao longo do seu discurso Timeu por vezes suspende o papel de narrador de uma acccedilatildeo e assume o de criacutetico daquilo que ele proacuteprio disse comentando analisando e explicando alguns pormenores Enquanto descreve a transiccedilatildeo dos elementos como entidades amorfas para o estatuto de corpos recorre agraves relaccedilotildees matemaacuteticas e geomeacutetricas para esclarecer o modelo pelo qual o demiurgo se guiou e assim dar a conhecer o modo

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como atingiram a proporccedilatildeo (53b-54a) Eacute este um dos casos mais evidentes em que deixa de ser um narrador e passa a ser um demonstrador de uma teoria Eacute bastante evidente igualmente do ponto de vista estiliacutestico a insistecircncia no teor explicativo e tambeacutem especulativo das suas observaccedilotildees tenta ldquoesclarecerrdquo (decircloun 53c1) e ldquoafirmardquo na primeira pessoa (legocirc 47b2) ou por outra engloba tambeacutem os ouvintes nessa missatildeo ao preferir a primeira pessoa do plural (47b1 47b5 53e5) Ainda assim confessa uma certa falibilidade em relaccedilatildeo agravequilo que diz (53e3) por ser fruto da sua opiniatildeo (47a) No entanto ao reportar-se agrave narrativa verosiacutemil que por sua vez se refere ao mundo do sensiacutevel qual seraacute a natureza das suas observaccedilotildees

Logo apoacutes a anuecircncia de Soacutecrates ao acircmbito verosiacutemil da sua narrativa Timeu comeccedila por descrever em linhas gerais o processo de fabricaccedilatildeo do mundo durante o qual diz que o demiurgo estabeleceu o intelecto na alma do mundo e por sua vez colocou a alma no corpo (30b) Daqui retira a primeira conclusatildeo o mundo eacute um ser-vivo com alma e pensamento (30c) mas faz questatildeo de referir que esta deduccedilatildeo eacute conforme a um discurso verosiacutemil (kata logon ton eikota 30b7) De igual modo numa das suas uacuteltimas conclusotildees apoacutes ter discorrido desde o mundo ateacute agrave geraccedilatildeo do Homem o acircmbito verosiacutemil das observaccedilotildees agrave narrativa manteacutem-se (90e8) quando relembra o que dissera anteriormente sobre a degenerescecircncia em mulheres dos homens que levam uma vida injusta (90e 42b)

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Quando trata de abordar ldquoa terceira forma de serrdquo ndash a chocircra ndash manteacutem essa atitude especulativa embora admita reservas acrescidas impostas pela dificuldade do assunto Enquanto que na descriccedilatildeo da acccedilatildeo demiuacutergica eacute apenas um narrador que por isso fala na terceira pessoa assumindo somente o papel de intermediaacuterio entre acccedilatildeo e discurso neste caso eacute ele quem protagoniza Nesta altura em que deve passar agrave apresentaccedilatildeo de algo tatildeo complicado de conceber e formular como aquele terceiro niacutevel ontoloacutegico ldquotentaraacute ser ainda mais verosiacutemilrdquo (peirasomai ecirctton eikota 48d2-3) pois neste caso as suas observaccedilotildees partiratildeo de uma ldquoexposiccedilatildeo estranha e inusitadardquo (ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs 48d5-6) O objectivo eacute portanto chegar a uma conclusatildeo ndash apresentar um resultado ndash a partir do que diz a narrativa Poreacutem neste caso o eikos mythos a que as suas observaccedilotildees se reportaratildeo tem um caraacutecter diferente mais complexo e imbricado pois tambeacutem o objecto a que se refere eacute dessa natureza daiacute que o discurso que produza acerca dessa narrativa seja tambeacutem ele ldquoinusitadordquo (aecircthei 53c1)

Ao longo das suas intervenccedilotildees acerca da narrativa verosiacutemil Timeu demonstra constantemente uma preocupaccedilatildeo em fixar um ponto de vista pois tenta fornecer uma ldquoexposiccedilatildeordquo (diecircgecircsis 48d6) uma ldquoconclusatildeordquo (dogma 48d6) e aspira a ldquoapontar a causardquo (aitiateon 57c9) No entanto tem consciecircncia de que pode estar errado (53e3) e por isso admite a existecircncia de outra opiniatildeo divergente (55d6) Pelo facto de natildeo poder ser definitivamente validado o seu juiacutezo situa-se

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no campo do hipoteacutetico e do especulativo porquanto resultante da exploraccedilatildeo de possibilidades aproximaacuteveis ou provisoacuterias que apenas garantem coerecircncia e plausibilidade Ainda assim natildeo carece de validade filosoacutefica porque acima de tudo pretende representar o mundo pelo recurso a ferramentas fiaacuteveis como a matemaacutetica e a geometria

Torna-se entatildeo evidente que as duas modalidades discursivas eikos mythos e eikos logos desempenham papeacuteis bastante distintos o primeiro tem um caraacutecter narrativo expositivo natildeo-analiacutetico e natildeo aspira a uma conclusatildeo o segundo pretende partir do que resulta do primeiro e analisaacute-lo e por outro lado estabelecer tambeacutem os pressupostos sob os quais se desenrolaraacute a exposiccedilatildeo Em uacuteltima instacircncia a proacutepria enunciaccedilatildeo inicial dos dois niacuteveis ontoloacutegicos (ser e devir) e posteriormente a introduccedilatildeo do um terceiro eacute por si soacute um logos pois estabelececirc-los implica uma reflexatildeo ulterior

Resta ainda esclarecer a natureza (apenas) verosiacutemil do texto em ambas as suas dimensotildees discursivas pois que mythos e logos satildeo sempre qualificados como eikos Para tal conveacutem recuperar novamente o pressuposto onto-episteacutemico desde logo estabelecido no proeacutemio os discursos satildeo congeacuteneres daquilo que explicam Visto que o mundo criado eacute uma imagem (eikocircn) o discurso ou narrativa sobre ele teraacute necessariamente esta mesma natureza Num primeiro niacutevel mimeacutetico o demiurgo imita um modelo de inteligibilidade externo (as Ideias) cujas propriedades enforma na mateacuteria preacute-coacutesmica

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No outro o discursivo eacute o filoacutesofo que produz uma explicaccedilatildeo atraveacutes da observaccedilatildeo esquemaacutetica do real isto eacute da imitaccedilatildeo da ordem estabelecida pelo demiurgo Entatildeo a manifestaccedilatildeo discursiva da criaccedilatildeo haacute-de ser tambeacutem ela de caraacutecter mimeacutetico isto eacute do acircmbito do verosiacutemil posto que o resultado (o mundo) eacute igualmente de natureza mimeacutetica a soma dos particulares em processo isto eacute o devir consiste numa constante imitaccedilatildeo do modelo inteligiacutevel (as Ideias) cujo padratildeo de racionalidade espelha o plano cosmoloacutegico original e se desvela agrave observaccedilatildeo analiacutetica do filoacutesofo

3 o discurso de crIacutetias

O tema da narrativa de Criacutetias foi alvo de muacuteltiplas interpretaccedilotildees praticamente desde pouco tempo depois da morte de Platatildeo ateacute aos nossos dias A abordagem agrave famosa questatildeo da Atlacircntida seduz natildeo soacute acadeacutemicos das mais vaacuterias aacutereas do saber como tambeacutem autores de ficccedilatildeo Como se torna impossiacutevel circunscrever tudo quanto tenha sido feito a este respeito bem como englobar todos os possiacuteveis vectores de anaacutelise tentaremos de um modo tatildeo breve quanto geneacuterico tocar os pontos fundamentais do problema insistindo sobretudo no estatuto que cabe a esta narrativa e inevitavelmente no acircmbito em que se inscreve

Muito sucintamente a intervenccedilatildeo de Criacutetias resume-se agrave descriccedilatildeo de dois mundos antagoacutenicos a Atenas primeva e a Atlacircntida mais propriamente trata do conflito em sentido literal que travaram entre si Seria este o assunto principal do diaacutelogo segundo podemos

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deduzir a partir de alguns dados do texto embora dele tenha sobrado apenas uma descriccedilatildeo inicial que termina abruptamente O que restou desta diegese arquitectada pela dicotomia de dois mundos opostos comeccedila por dar conta do territoacuterio da populaccedilatildeo e da organizaccedilatildeo social de uma Atenas situada num tempo primordial (9000 anos antes de Platatildeo) e termina com um ensaio corograacutefico mais desenvolvido sobre uma monumental ilha situada para aleacutem das Colunas de Heacuteracles (Estreito de Gibraltar) cujos habitantes a dada altura decidiram dominar os povos e cidades do Mediterracircneo incluindo Atenas Agrave partida estariacuteamos inclinados a identificar este episoacutedio com uma determinada guerra travada entre Atenas e um invasor que mediada pela pena criativa de Platatildeo se situaria algures entre histoacuteria e mito mas o problema eacute bem mais complexo Eacute que a ilha da Atlacircntida nunca foi localizada geograficamente e natildeo existe qualquer vestiacutegio histoacuterico quer dela quer dos seus habitantes

Deste modo podemos considerar abordar a narrativa sob uma de duas perspectivas reconhecer-lhe um fundo histoacuterico ou consideraacute-la uma ficccedilatildeo forjada pelo proacuteprio Platatildeo Aleacutem destas duas hipoacuteteses alguns autores consideram uma terceira que vinculam ao seu alcance alegoacuterico Em nosso entender esta via natildeo estaacute no mesmo plano que as anteriores na medida em que eacute compatiacutevel com ambas constituiraacute pois o segundo niacutevel de intencionalidade da narrativa seja ela histoacuterica ou ficcional

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31 A historicidade da narrativa sobre a AtlacircntidaA hipoacutetese histoacuterica foi a primeira a ser ensaiada

Segundo diz Proclo nos Comentaacuterios ao Timeu de Platatildeo Crantor (o precursor dos comentaacuterios aos diaacutelogos de Platatildeo) atribuiacutea ao discurso de Criacutetias o estatuto de ldquohistoacuteria purardquo (historia psilecirc 1761) Decorrente deste arrojo hermenecircutico foi-se criando e consolidando a ideia de que a Atlacircntida existiria de facto em algum lugar Sobretudo a partir dos Descobrimentos portugueses e espanhoacuteis dos seacuteculos XV e XVI surgiram variadiacutessimas tentativas de identificar geograficamente o territoacuterio No entanto o uacutenico resultado que todas essas demandas (mais ou menos cientiacuteficas) obtiveram foi uma disparidade de opiniotildees tal que tornou qualquer ponto do globo passiacutevel de ser identificado com a ilha

Especial atenccedilatildeo mereceu a hipoacutetese ldquoCretardquo que inicialmente granjeou alguma credibilidade No seguimento de exploraccedilotildees arqueoloacutegicas naquela zona foi forjada uma teoria segundo a qual a civilizaccedilatildeo referida no texto de Platatildeo correspondia agrave que habitava aquela ilha durante o Periacuteodo Minoacuteico a qual tinha sido destruiacuteda por uma violenta erupccedilatildeo do vulcatildeo de Thera (actual Santorini) no entanto com base em novas investigaccedilotildees arqueoloacutegicas e geoloacutegicas essa hipoacutetese acabou por ser refutada (vide Brisson 2001 p 318) Antes destas as outras possibilidades ateacute agora adiantadas satildeo o Continente Americano a Sueacutecia os Mares do Sul (junto ao actual Peru) os arquipeacutelagos dos Accedilores

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e da Madeira entre outras17 Por conseguinte a crenccedila de que a civilizaccedilatildeo representada no discurso de Criacutetias teraacute um referente histoacuterico eacute cada vez mais residual no acircmbito da comunidade cientiacutefica na verdade a grande maioria dos tiacutetulos que tecircm sido publicados sobre a Atlacircntida ou que de algum modo a abordam tomam como princiacutepio a sua anistoricidade

32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeo de PlatatildeoA segunda hipoacutetese de acordo com a qual toda

a narrativa foi integralmente inventada por Platatildeo eacute aquela que teve menos aceitaccedilatildeo durante a Antiguidade Na verdade restou apenas uma referecircncia que apontava neste sentido na Geografia Estrabatildeo cita em duas ocasiotildees (236 13136) a sentenccedila ldquoo poeta que a forjou fecirc-la desaparecerrdquo na primeira natildeo explicita a sua autoria e na segunda aponta Aristoacuteteles o qual nunca refere a Atlacircntida em nenhum dos textos conservados18 Em segundo lugar porque esta orientaccedilatildeo natildeo se compatibiliza com a intenccedilatildeo do narrador que insiste em classificar o seu discurso como histoacuterico Se o primeiro aspecto natildeo permite concluir rigorosamente nada pois apenas constata uma evidecircncia jaacute o segundo seraacute mais difiacutecil de justificar

17 Para uma descriccedilatildeo mais pormenorizada das possibilidades de localizaccedilatildeo geograacutefica da Atlacircntida vide Azevedo (2009 pp 102-105) Matteacutei (2002 pp 255-256) e Brisson (2001 pp 314-319)

18 Eacute referido o Oceano Atlacircntico mas apenas em textos considerados espuacuterios (Sobre o Mundo 3 392b20-393a16 Problemas [Fiacutesicos] 2652 946a16-32)

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No breve resumo antecipado no Timeu Criacutetias refere que aquilo que estaacute prestes a contar eacute absolutamente verdadeiro (pantapasi alecircthous 20d7) ou seja o seu discurso eacute histoacuterico Na verdade a sua intervenccedilatildeo deixa transparecer vaacuterias caracteriacutesticas e preocupaccedilotildees proacuteprias de um historiador o facto de descrever (geograacutefica social e politicamente) as duas forccedilas antes de entrarem em combate tal como faz Tuciacutedides (189-sqq) a necessidade de fundamentar a argumentaccedilatildeo com evidecircncias19 o modo como o proacuteprio Soacutelon obteacutem as informaccedilotildees no Egipto faz lembrar o meacutetodo de Heroacutedoto20 ou mesmo o recurso a determinadas expressotildees formulares caracteriacutesticas do registo histoacuterico21

Todavia a fonte que sustenta o relato eacute no miacutenimo problemaacutetica Em virtude do tempo decorrido desde a eacutepoca a que Criacutetias se refere e do inevitaacutevel desaparecimento dos homens que nela viveram natildeo sobraram na Greacutecia mais do que nomes isolados que os que viviam nas montanhas ndash iletrados ndash puseram aos seus descendentes (109b-c) Perante a inexistecircncia de testemunhos heleacutenicos que dessem conta daquele episoacutedio a fundamentaccedilatildeo da narrativa remonta ao Egipto onde Soacutelon recolheu os dados junto de sacerdotes locais No entanto a dita transmissatildeo carece

19 O termo utilizado para ldquoevidecircnciardquo (tekmecircrion) eacute muitiacutessimo recorrente nos escritos de Heroacutedoto (2131 33810 72384) e Tuciacutedides (113 2392 31046)

20 Eg 244 53 10021 Por exemplo megala kai thaumasta (ldquograndes e admiraacuteveis

feitosrdquo) em 20e uma expressatildeo tipicamente historiograacutefica (eg Heroacutedoto 111 Diodoro Siacuteculo 1319 Dioniacutesio de Halicarnasso 581)

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de validade histoacuterica pelo facto de ser cronologicamente impossiacutevel que Soacutelon tenha estado no Egipto na eacutepoca do rei Amaacutesis como eacute sugerido pelo texto (21e) razatildeo pela qual o episoacutedio deve ter sido manipulado por Platatildeo (apud Leatildeo 2001 pp 249 275)

Assim a intenccedilatildeo historicista do narrador torna-se extremamente difiacutecil de compatibilizar com a evidente precariedade das fontes de que parte bem como com a impossibilidade de depois de mais de dois mileacutenios de exegese sequer se esboccedilar uma teoria minimamente vaacutelida que sustente esta posiccedilatildeo Aleacutem disso haacute outro pormenor que agrave partida parece complicar ainda mais o esclarecimento de tal contradiccedilatildeo Quando ainda no Timeu Soacutecrates elogia a intenccedilatildeo de Criacutetias oferecer um ldquodiscurso do realrdquo (alecircthinon logon 26e4-5) e natildeo uma narrativa forjada (mecirc plasthenta mython 26e4) parece subscrever o estatuto de histoacuteria pura Contudo esta aparente conivecircncia deve ser entendida agrave luz do que o proacuteprio dissera em relaccedilatildeo agrave cidade descrita ldquono dia anteriorrdquo isto eacute o Estado arquetiacutepico da Repuacuteblica (cf Pina 2010 pp 148-149)

Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos (19b-c)

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Isto eacute aquele jogo entre mythos e logos narrativa e discurso parece indiciar natildeo uma oposiccedilatildeo entre verdadeiro e falso antes uma tentativa de transpocircr para o real e concreto (apud Azevedo 2009 p 96) algo que fora formulado em abstracto No entanto visto que esta questatildeo entronca numa das possibilidades de interpretaccedilatildeo a abordar posteriormente deixemo-la para jaacute em suspenso

Abandonando entatildeo os pontos de vista dos participantes do diaacutelogo sobre a natureza do relato e focando um pouco mais o que podemos deduzir por meio de algumas relaccedilotildees intertextuais verificamos que o texto de Platatildeo evidencia a presenccedila de muitas fontes a que natildeo faz referecircncia directa A diversidade desses materiais usados como ldquoingredientesrdquo eacute tal que facilmente poderemos estabelecer um conjunto de substratos inerentes ao discurso os quais forccedilosamente lhe vinculam um estatuto compoacutesito e ao mesmo tempo o afastam da reclamada historicidade

Por um lado o texto ecoa em diversas ocasiotildees vozes de alguns autores gregos como nota Gill (1980 xii-xiii) Por exemplo a incomensuraacutevel fertilidade das terras da Aacutetica primeva que reduzia ao miacutenimo o trabalho agriacutecola (110e) relembra inevitavelmente a Idade do Ouro de Hesiacuteodo (Trabalhos e Dias 109-126) ou o proacuteprio nome ldquoAtlacircntidardquo e a sua localizaccedilatildeo para aleacutem dos confins do mundo conhecido (isto eacute o Estreito de Gibraltar) que recupera a ilha da filha de Atlas referida na Odisseia (151-54) No domiacutenio da histoacuteria a presenccedila de Heroacutedoto eacute tambeacutem evidente

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os aneacuteis que estruturam a principal cidade da Atlacircntida (113d-e) evocam a descriccedilatildeo do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana (198) o modo como os canais da planiacutecie daquela ilha estavam arquitectados (118c-e) traz agrave memoacuteria a descriccedilatildeo da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia (3117) a assembleia dos reis tem muitas semelhanccedilas com um ritual caracteriacutestico de uma monarquia egiacutepcia (2147-sqq) Aleacutem disso encontramos tambeacutem elementos da proacutepria cultura aacutetica na construccedilatildeo da Atlacircntida como bem observa Vidal-Naquet (1964 pp 429-432) a divisatildeo decimal do territoacuterio (113e) os edifiacutecios defensivos que fazem lembrar o Pireu (117d-f ) e ateacute o proacuteprio templo de Posiacutedon muito semelhante ao Paacutertenon (116d-f ) Finalmente satildeo tambeacutem sugestivas as semelhanccedilas entre a estaacutetua de Posiacutedon que estava dentro do seu templo e a Estaacutetua de Zeus em Oliacutempia22

Por outro lado haacute na narrativa de Criacutetias elementos pertencentes a outras culturas ou civilizaccedilotildees como Cartago a Creta do Periacuteodo Minoacuteico ou o proacuteprio Egipto No primeiro caso os paralelos que possamos estabelecer satildeo pontuais os vorazes elefantes (114e) caracteriacutesticos daquela zona do Mediterracircneo e por exemplo os nomes Gadiro e Gadiacuterica (114b) de origem semita23 O mesmo acontece com o segundo o facto de ser uma grande potecircncia mariacutetima e sobretudo o culto do touro24 Mas no terceiro caso a questatildeo eacute de

22 Sobre esta relaccedilatildeo vide nota 68 agrave traduccedilatildeo23 Para um desenvolvimento mais pormenorizado desta questatildeo

vide Dusanic (1982 pp 27-28)24 Apesar de natildeo ser exclusivo de Creta o culto do touro era

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outra ordem pois tudo aponta para que este substrato represente o fundo histoacuterico que deu origem agrave narrativa Eacute bastante provaacutevel que o conflito entre a Atenas primeva e a Atlacircntida seja uma adaptaccedilatildeo de uma batalha travada pelos Egiacutepcios no tempo de Ramseacutes III contra os chamados ldquoPovos do Marrdquo Esta designaccedilatildeo ndash muitiacutessimo sugestiva ndash sugere uma confederaccedilatildeo de gentes oriundas de vaacuterias ilhas do Mediterracircneo que unidas tentaram atacar vaacuterias zonas continentais como o Norte da Palestina a Siacuteria e mesmo o Egipto Neste paiacutes a vitoacuteria foi particularmente celebrada e por isso registada e tornada objecto de narrativas vaacuterias que perduraram ao longo dos tempos daiacute que provavelmente Platatildeo se tenha baseado neste episoacutedio (apud Griffiths 1985 pp 13-14)

A recolha de todos estes elementos disponiacuteveis em textos e lugares conhecidos pelo autor parece assim indiciar um processo de representaccedilatildeo do outro atraveacutes dos olhos de um grego uma geografia imaginaacuteria de um mundo tambeacutem ele imaginaacuterio e sobretudo imaginado mas sempre a partir do repositoacuterio cultural de que emerge o sujeito

Tidas em conta estas evidecircncias somos obrigados a confessar que a narrativa de Criacutetias tem um caraacutecter marcadamente compoacutesito No entanto natildeo se trata apenas de uma mistura de dados histoacutericos oriundos de contextos espaacutecio-temporais bastante distintos ndash como que um pastiche25 ndash dado que tambeacutem comporta uma para os Atenienses uma caracteriacutestica identitaacuteria desta ilha veja-se por exemplo o mito de Teseu e Ariadne

25 A expressatildeo eacute de Naddaf (1997 p 190)

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forte componente poeacutetico-mitoloacutegica De um modo algo iroacutenico esta natureza estaacute latente no proacuteprio texto Logo no iniacutecio do diaacutelogo Criacutetias faz questatildeo de sublinhar que a linguagem eacute em si imitaccedilatildeo e representaccedilatildeo (mimecircsin () kai apeikasian 107b4-5) A advertecircncia preliminar indicia antes de tudo uma salvaguarda que o narrador pretende marcar aleacutem disso aproxima inevitavelmente o seu relato do registo ficcional logo anistoacuterico

Dito isto a incompatibilidade entre o estatuto que o narrador atribui ao seu discurso e o estatuto que somos obrigados a reconhecer-lhe manteacutem-se inalteraacutevel se eacute que natildeo se acentuou ainda mais No entanto a soluccedilatildeo definitiva do problema encontra-se precisamente numa das intervenccedilotildees metaliteraacuterias destinadas a certificar o caraacutecter real do discurso

Quanto aos cidadatildeos e agrave cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade () (26c8-26d1)

Esta fala de Criacutetias tem lugar precisamente quando se prepara para comeccedilar a descriccedilatildeo da guerra entre a Atlacircntida e Atenas e a cidade a que se refere eacute aquela que o resumo de Soacutecrates abordara anteriormente o arqueacutetipo de Estado delineado na Repuacuteblica Tal como naquele diaacutelogo a projecccedilatildeo teoacuterica da cidade eacute formulada no acircmbito do mito (501e4) mas ao contraacuterio da Repuacuteblica diaacutelogo em que essa teorizaccedilatildeo natildeo eacute posta em praacutetica o Criacutetias pretende dar corpo ao que fora formulado em abstracto isto eacute trazecirc-lo para a realidade (epi talecircthes)

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Deste modo em vez de verdadeiro como oposto de falso o discurso de Criacutetias pretende ser concreto ou melhor concretizar o que fora teorizado Eacute aliaacutes este o desiacutegnio de Soacutecrates quando diz que pretende ver em movimento a cidade e os cidadatildeos de que falavam bem como seraacute neste sentido que devemos entender a sua preferecircncia por um discurso do real em vez de uma narrativa forjada Deste modo estaremos em condiccedilotildees de assegurar que o discurso de Criacutetias se trata de uma narrativa ficcional forjada pelo proacuteprio Platatildeo a partir de elementos diversos quer (pseudo-)histoacutericos quer poeacutetico-mitoloacutegicos

Ainda assim resta esclarecer o passo em que Criacutetias diz que o seu discurso eacute ldquoabsolutamente verdadeirordquo (pantapasi () alecircthous 20d7) ou seja por que motivo Platatildeo insiste em chamar ldquoverdadeirardquo a uma narrativa que monta com elementos ficcionais A esta questatildeo responde Morgan de um modo tatildeo vaacutelido quanto eficaz o discurso de Criacutetias consiste numa dramatizaccedilatildeo praacutetica da ldquonobre mentirardquo da Repuacuteblica26

33 Leituras alegoacutericasDeste modo entramos na primeira das possiacuteveis

leituras alegoacutericas que o discurso de Criacutetias pode assumir a narrativa sobre a guerra entre a Atlacircntida e

26 Vide Morgan (2000 pp 263-265) cf Pina (2010 pp 155-156) Na Repuacuteblica (414b-sqq) Platatildeo equaciona a possibilidade de introduzir uma crenccedila falsa na sociedade desde que com isso se consiga fazer aumentar o afecto dos cidadatildeos para com a cidade A esse tipo de narrativas chamou ldquonobre mentirardquo (pseudocircn gennaion 414b8-9)

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a Atenas primeva tem como objectivo despertar nos Atenienses um maior afecto em relaccedilatildeo agrave sua cidade Numa linha semelhante Azevedo (2006 p 295 2009 p 95) sugere que a Atlacircntida soacute faz sentido enquanto modelo distoacutepico que contrasta com a Atenas primeva esta um modelo de supremacia civilizacional e com o papel de guardiatilde da Europa Satildeo portanto duas leituras que enquadram a narrativa numa evocaccedilatildeo saudosista de um passado glorioso que pretende acima de tudo revitalizar a imagem de uma cidade desgastada por sucessivos desaires militares e poliacuteticos como era a Atenas de Platatildeo

Ao longo dos tempos foram surgindo outras propostas de leituras alegoacutericas mais individualizadas com uma evidente vertente poliacutetica A primeira tambeacutem de natureza saudosista pretende transpor a narrativa de Criacutetias para o contexto das Guerras Medo-Persas ou seja a Atenas primeva coincide com a Atenas que expulsou o inimigo oriental a qual cultivava ainda os seus costumes e tradiccedilotildees ancestrais e a dada altura tambeacutem ficou praticamente sozinha na frente de batalha em sentido inverso a civilizaccedilatildeo atlante siacutembolo da ganacircncia de domiacutenio forccedila invasora arrasadora e ao mesmo tempo superpotecircncia econoacutemica corresponderaacute aos Persas Quanto agrave segunda leitura possiacutevel ela eacute diametralmente oposta a Atlacircntida representaria a Atenas contemporacircnea de Platatildeo enquanto que a Atenas primeva simbolizaria Esparta ou seja como pano de fundo estaria a Guerra do Peloponeso e de modo subliminar uma criacutetica aguda agrave postura de Atenas durante esse conturbado periacuteodo

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ndash criacutetica essa que assumiria um caraacutecter particularmente incisivo pelo facto de o diaacutelogo se desenrolar pelo menos do ponto de vista dramaacutetico durante as Panateneias a principal festa da cidade De acordo com esta proposta o objectivo seria entatildeo vincar os ldquopecadosrdquo atenienses como a desmedida supremacia mariacutetima ou a atitude agressiva perante as naccedilotildees vizinhas e inversamente enaltecer as ldquovirtudesrdquo tradicionalmente espartanas uma classe militar extremamente forte e demarcada organizaccedilatildeo poliacutetica tradicional e a relativa desvalorizaccedilatildeo das riquezas materiais

Com efeito o que podemos afirmar com toda a certeza independentemente da posiccedilatildeo que queiramos assumir eacute que a narrativa de Criacutetias descreve os dois movimentos comuns a todas as civilizaccedilotildees ascensatildeo e queda

4 estrutura dos diaacutelogos

I Consideraccedilotildees introdutoacuterias (17a-27c)1 Contexto dramaacutetico (17a-17b)2 Resumo da conversa do dia anterior (17b-20c)3 Resumo do discurso de Criacutetias (20c-26e)4 Programa dos discursos (26e-27c)

II Discurso de Timeu (27c-92c)A Preluacutedio1 Invocaccedilatildeo dos deuses (27c-27d)2 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ser e devir (27d-28b)21 Implicaccedilotildees epistemoloacutegicas (28c-29d)3 Pressupostos iniciais (29d-31b)

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31 O demiurgo (29d-30c)32 O Ser-Vivo (30c-d)33 O mundo eacute um ser-vivo (30d-31a)34 O mundo eacute uacutenico (31a-31b)

B Obras do Intelecto1 Constituiccedilatildeo do mundo (31b-40d)11 O corpo do mundo (31b-34a)12 A alma do mundo (34a-40d)2 Constituiccedilatildeo do Homem (40d-47e)21 A alma do Homem (40d-44c)22 O corpo do Homem (44c-47e)

C O acircmbito da Necessidade1 A causa errante (47e-48b)2 Novo comeccedilo da narrativa nova invocaccedilatildeo dos deuses (48b-48e)3 Terceiro princiacutepio ontoloacutegico a chocircra (48e-51e)4 Recapitulaccedilatildeo dos trecircs princiacutepios ontoloacutegicos (51e-52c)5 Os elementos (52d-61c)51 Estado preacute-coacutesmico (52d-53c)52 Formaccedilatildeo dos soacutelidos a partir dos triacircngulos elementares (53c-56c)53 Transmutaccedilatildeo e variedades dos compostos (56c-57d)54 Movimentos dos elementos (57d-61c)6 As sensaccedilotildees e as impressotildees (61c-69a)61 O tacto (61c-64a)62 O prazer e a dor (64a-65b)

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63 Os sabores (65b-66c)64 Os odores (66c-67a)65 Os sons (67a-67c)66 As cores (67c-68d)

D Cooperaccedilatildeo entre Intelecto e Necessidade (68e-81e)1 Recapitulaccedilatildeo da acccedilatildeo do demiurgo (68e-69c)2 Introduccedilatildeo das divindades menores (69c-69d)3 Constituiccedilatildeo da parte mortal da alma humana (69d-73b)4 Constituiccedilatildeo das restantes partes do corpo humano (73b-76e)5 Criaccedilatildeo dos seres vegetais (76e-77c)6 Constituiccedilatildeo dos aparelhos funcionais do corpo humano (77c-81e)7 Doenccedilas do corpo humano (81e-86a)8 Doenccedilas da alma humana (86b-92c)

E Conclusatildeo (92c)

III Discurso de Criacutetias (106a-121c)

A Introduccedilatildeo (106a-109a)1 Excurso metaliteraacuterio (106a-108a)2 Invocaccedilatildeo dos deuses (108a-d)3 Resumo do discurso (108e-109a)

B Descriccedilatildeo da Atenas primeva (109b-112b)1 Origem miacutetica dos Atenienses (109b-d)

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2 Populaccedilatildeo (109d-110d)3 Territoacuterio (110d-112e)31 Regiatildeo da Aacutetica (110e-111e)32 Cidade de Atenas (111e-112e)

C Descriccedilatildeo da Atlacircntida (113a-121c)1 Advertecircncia sobre as condiccedilotildees de transmissatildeo da narrativa (113a-b)2 Origem miacutetica dos Atlantes (113c-114d)3 Territoacuterio (114d-119b)31 Recursos naturais da ilha (114d-115b)32 A metroacutepole (115b-117e)33 Recursos forjados pelos habitantes (117e-119b)4 Organizaccedilatildeo poliacutetica (119b-121c)

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Timeu

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17a

b

Soacutecrates Um dois trecircs mas onde estaacute meu caro Timeu o quarto dos nossos convidados1 de ontem nossos anfitriotildees de hoje

Timeu Alguma doenccedila o atingiu oacute Soacutecrates pois se dependesse de si proacuteprio natildeo faltaria a este encontro

Soacutecrates Entatildeo a tarefa de preencher o lugar do que estaacute ausente cabe-te a ti e a estes aqui natildeo eacute verdade

Timeu Sem duacutevida e dentro dos possiacuteveis natildeo falharemos na nossa tarefa De facto natildeo seria justo se depois de nos teres recebido como eacute adequado fazecirc-lo com os hoacutespedes noacutes ndash os que restamos ndash natildeo te retribuiacutessemos de bom grado o festim

Soacutecrates Entatildeo e vocecircs ainda se lembram de qual era o teor e o assunto que vos propus para a nossa conversa

1 Natildeo eacute possiacutevel sequer supor quem seja esta personagem anoacutenima Quanto aos restantes vide Introduccedilatildeo pp 20-23

Platatildeo

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c

d

18a

b

Timeu Lembramo-nos de alguns temas e os que nos tiverem escapado tu estaraacutes caacute para no-los relembrar ou melhor ainda se natildeo achares inconveniente passa-os em revista de forma breve e desde o princiacutepio de modo a que fiquem mais clarificados entre noacutes

Soacutecrates Assim seja O essencial das minhas palavras de ontem tinha que ver com o tipo de Estado2 que me parece ser o melhor e a partir de que tipo de homens havia de ser composto

Timeu E de facto Soacutecrates o que nos disseste estaacute perfeitamente de acordo com o que todos noacutes pensamos

Soacutecrates E natildeo comeccedilaacutemos por dividir a classe dos que trabalham a terra em si e por separar este e os outros ofiacutecios de artesatildeos da classe daqueles que defendem a cidade3

Timeu Sim

Soacutecrates E quando atribuiacutemos de acordo com a sua natureza especiacutefica uma uacutenica profissatildeo e ocupaccedilatildeo

2 politeia Embora ldquoEstadordquo seja um conceito medieval eacute o uacutenico termo portuguecircs que engloba as instituiccedilotildees poliacuteticas e a forma de governo eacute o que estaacute implicado em politeia Trata-se evidentemente do assunto principal da Repuacuteblica (Politeia) cujo resumo parcial (sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo pp 16-17 62-63) os participantes traratildeo agrave memoacuteria nesta secccedilatildeo inicial por esse motivo remeteremos em nota para uma das passagens daquele diaacutelogo aludidas ao longo dos proacuteximos paraacutegrafos

3 Cf Repuacuteblica 374a-d

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a cada cidadatildeo que lhe fosse adequada4 dissemos que aqueles que tivessem de lutar em favor de todos deviam ser exclusivamente guardiotildees da cidade em relaccedilatildeo a algueacutem de fora ou de dentro que cometesse algum crime Deviam ainda aplicar a justiccedila com moderaccedilatildeo sobre aqueles que satildeo regidos por eles e que por natureza satildeo seus amigos e de tratar com aspereza os inimigos a defrontar no campo de batalha5

Timeu Sem qualquer duacutevida

Soacutecrates Com efeito diziacuteamos segundo creio que a natureza da alma dos guardiotildees devia ser eneacutergica e ao mesmo tempo particularmente inclinada para a sabedoria de modo a que conseguissem ser em igual medida moderados para uns e aacutesperos para os outros6

Timeu Sim

Soacutecrates E quanto agrave formaccedilatildeo Natildeo haviam de ter formaccedilatildeo no acircmbito da ginaacutestica e da muacutesica e de todas as mateacuterias adequadas para eles7

Timeu Com certeza

Soacutecrates Aleacutem disso foi dito que os homens assim formados natildeo deviam nunca considerar sua pertenccedila

4 Cf Repuacuteblica 369e-370c 423d5 Cf Repuacuteblica 375c 414b 415d-e6 Cf Repuacuteblica 374e-376c7 Cf Repuacuteblica 376e-sqq 403c-sqq 410c-sqq

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nem ouro nem prata nem qualquer outro bem antes como guardas deveriam receber daqueles que protegem um pagamento pela sua guarniccedilatildeo para ser gasto numa vida de partilha e convivecircncia entre si em permanente exerciacutecio da excelecircncia e dispensados do desempenho de outras funccedilotildees8

Timeu Tambeacutem isso foi dito desse modo

Soacutecrates E no que respeita agraves mulheres tambeacutem mencionaacutemos que a natureza delas devia ser concordante com a dos homens e com a deles harmonizado e lhes deviam ser atribuiacutedas as mesmas funccedilotildees que a eles na guerra e nos restantes assuntos do dia-a-dia9

Timeu Tambeacutem isso se disse desse modo

Soacutecrates E no que respeita agrave procriaccedilatildeo Seraacute que o caraacutecter inusitado dessas consideraccedilotildees faz com que seja recordado facilmente porque estabelecemos que todos os casamentos e os filhos seriam comuns Deste modo se conseguia que ningueacutem reconhecesse como seus filhos o engendrado por si antes que todos considerariam todos como sendo da mesma famiacutelia tendo por irmatildes e irmatildeos aqueles que fossem de idade aproximada por pais ou avoacutes dos pais os mais velhos e por filhos gerados pelos filhos os mais novos10

8 Cf Repuacuteblica 416d-417b 464b-c9 Cf Repuacuteblica 456a-sqq10 Cf Repuacuteblica 460c-461e

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Timeu Sim tambeacutem isto eacute faacutecil de relembrar como dizes

Soacutecrates E para que as crianccedilas na medida do possiacutevel fossem agrave partida de natureza excelente lembraacutemos o que tiacutenhamos dito sobre os governantes e as governantes que deviam celebrar contratos de casamento em segredo por meio de uma espeacutecie de sorteio para que os piores e os melhores se unissem separada e respectivamente com as suas semelhantes de modo a que natildeo se criasse entre eles qualquer inimizade por causa disso uma vez convencidos de que o acaso era o motivo da sua uniatildeo

Timeu Lembraacutemos

Soacutecrates E tambeacutem que tiacutenhamos dito que deveriam ser criados os filhos dos naturalmente bons enquanto que os dos piores deveriam ser dispersos pelo resto da cidade11 Mantidos todos sob observaccedilatildeo durante o seu crescimento deviam ser trazidos sempre de volta aqueles que se mostrassem dignos de tal e ser remetidos os inaptos para o local de onde aqueles tinham vindo

Timeu Assim foi

Soacutecrates Seraacute que jaacute passaacutemos em revista exactamente o que ontem dissemos na medida do que

11 eis tecircn allecircn polin Porque precedido de artigo o pronome allos deve traduzir-se por ldquoo restordquo por isso seria descabida a versatildeo ldquopara outra cidaderdquo

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se pode recuperar dos assuntos principais meu caro Timeu ou querem regressar ainda a algum dos assuntos de que falaacutemos e que eu tenha deixado para traacutes

Timeu De modo algum pois isto foi exactamente o que dissemos oacute Soacutecrates

Soacutecrates Porventura querem ouvir agora o que diz respeito ao Estado que descrevemos e aos sentimentos que eu possa nutrir em relaccedilatildeo a ele Parecem-me ser semelhantes aos de algueacutem a que ao contemplar animais belos representados em pinturas ou efectivamente vivos mas a descansar sobreveacutem o desejo de os ver em movimento e a exercitar como numa competiccedilatildeo alguma das capacidades que parecem ser proacuteprias dos seus corpos Eacute isso mesmo que eu sinto em relaccedilatildeo agrave cidade que descrevemos De facto com prazer ouviria de algueacutem o relato sobre as disputas que uma cidade trava as que ela manteacutem contra outras cidades a forma correcta como chega agrave guerra e como no seu decurso se apresenta de acordo com a sua educaccedilatildeo e formaccedilatildeo natildeo soacute nas praacuteticas de combate como tambeacutem na negociaccedilatildeo de tratados com as outras cidades Reconheccedilo Criacutetias e Hermoacutecrates que eu proacuteprio natildeo serei capaz de elogiar os homens e a cidade convenientemente E esta minha posiccedilatildeo nada tem de surpreendente pelo contraacuterio mantenho a mesma opiniatildeo em relaccedilatildeo aos poetas antigos e contemporacircneos Natildeo eacute que eu desconsidere a estirpe dos poetas mas eacute perfeitamente evidente que a raccedila dos imitadores imitaraacute com facilidade e de modo

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excelente aquilo em que foi educada poreacutem torna-se difiacutecil para qualquer um imitar bem o que natildeo pertence agrave sua educaccedilatildeo sendo ainda mais difiacutecil se a imitaccedilatildeo for feita por meio de palavras

Penso que a casta dos sofistas se destaca por ter muita experiecircncia em variados tipos de discurso e noutras coisas belas No entanto tendo em conta que ela vagueia de cidade em cidade e pelas casas sem dispor de uma morada proacutepria eu temo que natildeo atinja12 o que homens simultaneamente filoacutesofos e poliacuteticos fazem na guerra e no campo de batalha por meio de actos e palavras e como se relacionam entre si a falar e a agir Sobra portanto a classe de pessoas da vossa condiccedilatildeo que por natureza e formaccedilatildeo toma parte de ambas as categorias Eacute que Timeu que aqui temos cidadatildeo de Loacutecride a cidade na Itaacutelia com melhor organizaccedilatildeo poliacutetica13 que natildeo fica atraacutes de nenhum dos outros em riqueza e linhagem ocupou os mais altos cargos e recebeu as maiores das honras naquela cidade e na minha opiniatildeo alcanccedilou o ponto mais alto de toda a filosofia Suponho que todos noacutes sabemos que Criacutetias natildeo eacute um desconhecedor em qualquer das mateacuterias de que falamos Aleacutem disso visto que muitos o testemunham devemos acreditar que Hermoacutecrates em virtude da sua natureza e formaccedilatildeo eacute competente em todos estes assuntos Foi por isso que ontem quando vocecircs pediram para discursar sobre o Estado acedi de

12 astochon literalmente ldquoalgo que falha o alvordquo13 O sistema poliacutetico-administrativo de Loacutecride eacute elogiado

nas Leis (638b) e tambeacutem por Piacutendaro numa das Odes Oliacutempicas (1013)

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bom grado porque depois de ter reflectido percebi que ningueacutem seria mais adequado do que vocecircs para dar seguimento a esse discurso se assim quiserem Eacute que entre os nossos contemporacircneos vocecircs satildeo os uacutenicos que depois de preparar a cidade para uma guerra justificaacutevel podem proporcionar-lhe tudo quanto lhe eacute conveniente Uma vez que dissertei sobre o assunto que me tinha sido atribuiacutedo a vosso cargo deixo aquilo a que agora me refiro Tinham acordado que depois de terem reflectido em conjunto me seria retribuiacutedo por vocecircs mesmos o banquete de discursos14 Aqui estou entatildeo preparado para tal e mais do que ningueacutem pronto para recebecirc-los

Hermoacutecrates De facto Soacutecrates tal como disse Timeu15 nem faltaraacute boa-vontade nem haveraacute qualquer motivo a impedir que tal se cumpra De igual modo tambeacutem noacutes ontem logo depois de nos termos retirado daqui e chegado agrave casa de Criacutetias o nosso anfitriatildeo e ainda antes disso enquanto percorriacuteamos o caminho faziacuteamos observaccedilotildees sobre isto mesmo Este contou-nos uma estoacuteria de antiga tradiccedilatildeo Conta-a agora tambeacutem a Soacutecrates oacute Criacutetias para que ele considere se eacute adequada ou desadequada ao fim em vista

14 Embora xenia signifique simplesmente ldquopresentes de hospitalidaderdquo pode tambeacutem representar a cerimoacutenia comensal com que o anfitriatildeo recebia os convidados Neste caso parece que Soacutecrates usa a palavra com esse sentido repetindo a metaacutefora do banquete de palavras que usara neste (27b) e noutros diaacutelogos (Goacutergias 447a Repuacuteblica 352b 354a-b)

15 Cf supra 17a-b

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Criacutetias Faacute-lo-ei se igualmente parecer bem a Timeu o nosso terceiro conviva

Timeu Parece-me bem pois

Criacutetias Escuta entatildeo Soacutecrates uma estoacuteria deveras iacutempar e contudo absolutamente verdadeira como uma vez a contou Soacutelon o mais saacutebio de entre os Sete Saacutebios que era familiar e muito amigo do meu bisavocirc Dropidas tal como ele afirma com frequecircncia na sua obra poeacutetica16 Contou-a a Criacutetias nosso avocirc que jaacute velho nos narrava de memoacuteria que grandes e admiraacuteveis feitos17 dos tempos antigos desta cidade que tinham sido esquecidos graccedilas ao tempo e agrave destruiccedilatildeo da humanidade18 e a mais grandiosa de todas seria conveniente que ta deacutessemos a conhecer agora para te oferecer um agradecimento e ao mesmo tempo em jeito de hino para elogiar neste louvor a deusa de forma justa e autecircntica no dia da sua festa19

Soacutecrates Falas correctamente Mas que feito eacute esse de que natildeo temos notiacutecia e que foi realmente cumprido

16 No que sobrou da obra de Soacutelon natildeo haacute qualquer referecircncia a este nome Sobre esta figura vide Introduccedilatildeo pp 21-22

17 megala kai thaumasta eacute curiosamente uma expressatildeo formular proacutepria do discurso histoacuterico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 57-sqq esp n 21

18 Trata-se dos vaacuterios diluacutevios que quase extinguiram a espeacutecie humana (21d 22c-sqq) cf Criacutetias 109d 111a-sqq Leis 677A-sqq Poliacutetico 270c-d Entre eles conta-se evidentemente o que vai ser descrito de seguida

19 O Festival das Panateneias dedicado agrave deusa Atena durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica

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pela nossa cidade em tempos antigos o qual Criacutetias vai narrar de acordo com o testemunho de Soacutelon

Criacutetias Passo a contaacute-lo ainda que sob a forma de relato antigo que ouvi da boca de um homem entrado em anos Eacute que Criacutetias20 como dizia tinha jaacute perto de 90 anos enquanto que eu ainda natildeo teria bem dez Por acaso era o dia de Cureoacutetis o terceiro das Apatuacuterias21 Para as crianccedilas estava reservado o que tambeacutem nessa altura era costume por ocasiatildeo de cada uma dessas festas os nossos pais organizavam-nos concursos de recitaccedilatildeo Foram declamados muitos poemas de muitos poetas mas como naquele tempo os de Soacutelon constituiacuteam ainda novidade muitos de noacutes crianccedilas cantaacutemo-los Um dos elementos da fratria22 fosse por realmente pensar desse modo fosse para prestar como que uma homenagem a Criacutetias disse considerar que aleacutem de Soacutelon ser o homem mais saacutebio noutros assuntos no que respeitava agrave poesia considerava-o o mais independente de todos os poetas23 Entatildeo o anciatildeo ndash lembro-me bem ndash muito

20 Este Criacutetias natildeo eacute o participante no diaacutelogo mas sim o seu avocirc Sobre esta relaccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp 21-22

21 Festival que decorria em todas as cidades ioacutenicas agrave excepccedilatildeo de Eacutefeso e Coacutelofon segundo Heroacutedoto 1147 O terceiro e uacuteltimo dia (dito ldquode Cureoacutetisrdquo) estava reservado agrave apresentaccedilatildeo das crianccedilas que tinham nascido nos 12 meses precedentes

22 Uma fratria era um grupo de cidadatildeos unidos por uma mesma ascendecircncia Era considerada uma marca da tradiccedilatildeo ioacutenica e como tal frequente em muitas cidades desta origem entre as quais Atenas A cerimoacutenia que celebrava esta tradiccedilatildeo era justamente as Apatuacuterias que segundo Heroacutedoto (1147) consistiam no criteacuterio de identidade desta heranccedila cultural

23 Cremos que eleutheriocirctaton natildeo se refere ao conteuacutedo temaacutetico ou qualquer outro aspecto literaacuterio da obra de Soacutelon mas

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agradado disse a sorrir ldquooacute Aminandro24 era bom que ele natildeo tivesse usado a poesia como passatempo mas sim que se tivesse empenhado como os outros e dado corpo ao relato que para aqui trouxe do Egipto Se as revoltas entre outros males que encontrou quando caacute chegou25 natildeo o tivessem obrigado a descurar a poesia nem Hesiacuteodo nem Homero nem qualquer outro poeta se teria tornado mais ceacutelebre do que elerdquo ldquoMas que relato eacute esse Criacutetiasrdquo ndash perguntou o outro ldquondash O relato era sobre o feito mais grandioso e com toda a justiccedila mais notaacutevel de todos quantos a nossa cidade praticou mas que natildeo perdurou ateacute agora por causa do tempo e da morte daqueles que nele participaramrdquo ndash respondeu ele ldquoConta desde o princiacutepio o que relatou e como o relatou Soacutelon e da boca de quem o ouviu como sendo verdadeirordquo ndash pediu o outro

ldquoHaacute no Egipto ndash comeccedilou Criacutetias ndash no extremo inferior do Delta em redor da zona onde se divide a corrente do Nilo uma regiatildeo chamada Saiticos26 e da maior cidade dessa regiatildeo Sais27 ndash precisamente de onde era natural o rei Amaacutesis28 ndash foi fundadora uma deusa

sim ao proacuteprio homem ndash de facto a palavra tem uma conotaccedilatildeo principalmente socioloacutegica e poliacutetica Eacute que ao contraacuterio da maioria dos poetas do seu tempo Soacutelon natildeo compunha por indicaccedilatildeo de um patrono

24 Personagem totalmente desconhecida25 Referecircncia provaacutevel agraves revoltas que nos finais do seacuteculo VI

aC afrontaram Atenas antes de Soacutelon ter tomado o poder26 Sobre esta regiatildeo vide Heroacutedoto 2152 165 17227 Sobre esta cidade vide Heroacutedoto 228 59 62 130-132

163 169-171 31628 Heroacutedoto refere que Soacutelon depois de ter composto as leis

para os Atenienses se ausentou durante dez anos e esteve em casa de

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cujo nome em Egiacutepcio eacute Neith e em Grego segundo dizem os que laacute vivem Atena29 Eles nutrem profunda simpatia pelos Atenienses e dizem que de certo modo com estes tecircm afinidades

Dizia Soacutelon que enquanto por ali andou era muitiacutessimo respeitado por eles e que a certa altura ao questionar os sacerdotes30 mais versados sobre acontecimentos antigos descobriu que nem ele nem nenhum outro grego sabia por assim dizer quase nada sobre aquele assunto Como ele pretendia induzir os anciatildeos a conversarem sobre acontecimentos antigos pocircs-se a contar as tradiccedilotildees ancestrais que haacute entre noacutes Falou de Foroneu que se diz ter sido o primeiro homem31 e de Niacuteobe32 de como Deucaliatildeo e Pirra sobreviveram ao diluacutevio33 e discorreu sobre a genealogia dos que lhes sucederam e tentou calcular haacute quantos anos tinha acontecido aquilo que contara trazendo agrave memoacuteria as Amaacutesis (cf 129-30) Ainda que seja quase certa a estadia de Soacutelon no Egipto eacute cronologicamente impossiacutevel que tenha acontecido no tempo de Amaacutesis cf Introduccedilatildeo pp 57-58

29 Tambeacutem Heroacutedoto estabelece esta relaccedilatildeo entre Atena e Neith e chega a referir um grande festival religioso que os egiacutepcios organizavam em honra da deusa (cf 259)

30 Plutarco na Vida de Soacutelon (261) tambeacutem refere este episoacutedio e adianta os nomes dos sacerdotes Socircnquis de Sais e Pseacutenopis de Helioacutepolis

31 As uacutenicas referecircncias a Foroneu como primeiro homem satildeo bastante posteriores (Clemente de Alexandria Stromata 1102 Pausacircnias 2155) Por isso natildeo eacute possiacutevel perceber a que tradiccedilatildeo Platatildeo se refere

32 Filha de Foroneu33 Deucaliatildeo filho de Prometeu e a esposa Pirra filha de

Epimeteu correspondem na mitologia grega ao arqueacutetipo biacuteblico de Noeacute avisados pelos deuses de um diluacutevio contruiacuteram uma arca para sobreviver e posteriormente repovoar a Terra

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suas idades Foi entatildeo que um dos sacerdotes jaacute de muita idade lhe disse ldquoOacute Soacutelon Soacutelon34 voacutes Gregos sois todos umas crianccedilas natildeo haacute um grego que seja velhordquo Ouvindo tais palavras Soacutelon indagou ldquoO que queres dizer com issordquo ldquoQuanto agrave alma35 sois todos novos ndash disse ele Eacute que nela natildeo tendes nenhuma crenccedila antiga transmitida pela tradiccedilatildeo nem nenhum saber encanecido pelo tempo A causa exacta eacute a seguinte muitas foram as destruiccedilotildees que a humanidade sofreu e muitas mais haveraacute as maiores pelo fogo e pela aacutegua mas tambeacutem outras menores por outras causas incontaacuteveis Tomemos um exemplo como o de Faetonte filho de Heacutelios que um dia atrelou o carro do pai mas por natildeo ser capaz de seguir a rota do pai lanccedilou o fogo sobre a terra e ele proacuteprio morreu fulminado Isto eacute contado sob a forma de um mito36 pois a verdade eacute que os corpos que no ceacuteu giram agrave volta da terra sofrem uma variaccedilatildeo e de muito em muito tempo sobreveacutem a destruiccedilatildeo na terra por causa do excesso de fogo Nessa altura aqueles que vivem nas montanhas e em locais elevados e secos morrem em maior nuacutemero do que os que vivem junto de rios ou do mar Quanto a noacutes eacute o Nilo nosso salvador tambeacutem em outras ocasiotildees que nos livra de tais apuros com as suas cheias Por outro lado sempre que os deuses provocam um diluacutevio para purificar a

34 Note-se que a repeticcedilatildeo da palavra ldquoSoacutelonrdquo eacute propositada35 psychecirc Neste caso ldquoalmardquo natildeo tem um sentido cosmoloacutegico

nem psicoloacutegico mas sim cultural36 mythou men schecircma echon Segundo a concepccedilatildeo do sacerdote

ldquomitordquo tem o sentido mais tradicional estoacuteria falsa Tornar-se-aacute evidente que a de Timeu eacute diametralmente oposta e bastante mais elaborada

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terra com aacutegua satildeo os boieiros e os pastores que ficam a salvo nas montanhas37 enquanto que os que entre voacutes vivem nas cidades satildeo arrastados para o mar pelos rios Mas aqui nesta terra nem num caso nem no outro as aacuteguas correm pelos nossos campos mas pelo contraacuterio irrompem naturalmente do fundo da terra Daiacute que seja este o motivo pelo qual se diz que as tradiccedilotildees mais antigas se conservam nesta regiatildeo Em boa verdade em todos os locais onde nem o frio geacutelido nem o calor ardente perturbam aiacute estaacute sempre em maior ou menor nuacutemero a raccedila humana Assim desde tempos remotos que de tudo quanto se passa na vossa terra aqui ou em qualquer outro local de que noacutes tomemos conhecimento pelo que ouvimos dizer se porventura se tratar de qualquer coisa de belo grandioso ou de qualquer outra natureza isso fica gravado nos nossos templos e manteacutem-se conservado Por outro lado acontece que em relaccedilatildeo ao que se passa entre voacutes e entre outros mal acaba de se ordenar o sistema de escrita e tudo o resto que faz falta a uma cidade recai novamente sobre voacutes durante o habitual nuacutemero de anos uma torrente vinda do ceacuteu semelhante a uma doenccedila e apenas deixa entre voacutes os analfabetos e os que satildeo estranhos agraves Musas de tal forma que nasceis de novo do princiacutepio tal como crianccedilas sem saber nada do que aconteceu em tempos remotos quer aqui quer entre voacutes

37 Como Criacutetias faraacute questatildeo de referir no seu discurso (Criacutetias 109d) soacute as populaccedilotildees que vivem nas montanhas escapam aos diluacutevios O facto de estas pessoas desconhecerem a escrita justifica a inexistecircncia de registos posteriores a essas calamidades

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Em todo o caso oacute Soacutelon as genealogias sobre as figuras de que acabas de nos falar diferem em pouco dos contos para crianccedilas pois eles recuperam apenas um uacutenico diluacutevio na terra ao passo que houve muitos antes desse Mas aleacutem disso voacutes natildeo sabeis que foi na vossa regiatildeo que apareceu a mais bela e grandiosa casta de homens da qual descendes tu e toda a cidade que eacute agora vossa por ter restado desse tempo uma pequena semente Eacute que voacutes perdestes a memoacuteria pois morreram os sobreviventes sem terem legado o seu depoimento agrave escrita durante muitas geraccedilotildees E de facto oacute Soacutelon na eacutepoca anterior agrave maior destruiccedilatildeo causada pela aacutegua a cidade que agora eacute dos Atenienses era a mais brava na guerra e incomparavelmente a mais bem governada em todos os aspectos Dizem que deu origem aos mais belos feitos e agraves mais belas instituiccedilotildees poliacuteticas38 de entre todas as que debaixo do ceacuteu obtivemos notiacuteciardquo

Soacutelon disse ter ficado surpreendido pelo que tinha ouvido e absolutamente desejoso de pedir aos sacerdotes que discorressem com pormenor e exactidatildeo sobre tudo o que soubessem acerca dos seus concidadatildeos de outrora Entatildeo o sacerdote respondeu o seguinte ldquoEacute sem reserva alguma que to contarei oacute Soacutelon por consideraccedilatildeo a ti e agrave vossa cidade e acima de tudo por gratidatildeo agrave deusa a quem coube em sorte a vossa cidade e tambeacutem esta que ela criou e educou ndash primeiro a vossa mil anos antes da nossa depois de ter recebido de Geia e de Hefesto

38 politeia Note-se que a palavra estaacute no plural por isto e tambeacutem pelo que sugere o contexto natildeo diraacute respeito a todo o Estado mas apenas agraves instituiccedilotildees

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a semente de onde voacutes nascestes39 e depois esta aqui Segundo os nuacutemeros gravados nos escritos sagrados a nossa cidade foi organizada haacute oito mil anos Portanto vou falar-te brevemente sobre as leis dos cidadatildeos que viveram haacute nove mil anos e tambeacutem do mais nobre dos feitos que levaram a cabo Posteriormente discorreremos sobre os pormenores referentes a todas estas questotildees e em seguida com vagar pegaremos nos proacuteprios textos

Quanto agraves leis observa-as agrave luz das daqui pois encontraraacutes caacute muitos exemplos de leis que vigoravam naquele tempo entre voacutes em primeiro lugar a classe dos sacerdotes estaacute separada agrave parte das outras em seguida no que respeita aos artesatildeos a cada um cabe uma funccedilatildeo sem que se misturem umas com as outras (uma aos pastores outra aos caccediladores e outra aos agricultores) Jaacute a classe dos guerreiros conforme reparaste estaacute separada de todas as outras classes estando obrigados por lei a natildeo se dedicarem a nada mais aleacutem do que diz respeito agrave guerra40 aleacutem disso em relaccedilatildeo ao seu armamento fomos noacutes os primeiros na Aacutesia41 a equipaacute-los com escudos e lanccedilas Eacute que a deusa

39 Esta referecircncia miacutetica estaacute intimamente relacionada com o Festival das Panateneias durante o qual decorre a acccedilatildeo dramaacutetica Segundo o mito quando Atena se dirigiu junto de Hefesto para lhe pedir que fabricasse as suas armas este tentou violaacute-la tendo Atena escapado o seacutemen caiu agrave terra ndash Geia ndash da qual nasceu Erictoacutenio um dos fundadores da cidade de Atenas As Panateneias celebravam precisamente o nascimento de Erictoacutenio

40 Sobre o sistema de castas que vigoraria no Egipto vide Heroacutedoto 2164-168 As semelhanccedilas com o arqueacutetipo ateniense proposto na Repuacuteblica e concretizado no discurso de Criacutetias satildeo evidentes

41 Segundo os relatos do Timeu e do Criacutetias a Aacutesia estendia-se

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o ensinou tal como a voacutes que fostes os primeiros a fazecirc-lo nesta regiatildeo Vecircs tambeacutem quatildeo diligente foi a nossa lei no que diz respeito agrave sabedoria42 e desde o princiacutepio estabeleceu harmoniosamente a ordem das coisas pois tudo descobriu a partir dos deuses em favor da acccedilatildeo humana incluindo a arte da divinaccedilatildeo e a medicina em benefiacutecio da sauacutede e adquiriu todos os outros saberes que derivam daqueles43 Toda esta ordem e sistematizaccedilatildeo partilhou a deusa convosco nesse tempo e fixou-vos uma paacutetria antes de o fazer a outros por aiacute ter identificado um equiliacutebrio de estaccedilotildees que haveria de dar origem aos homens mais inteligentes Visto que a deusa era amante simultaneamente da guerra e da sabedoria escolheu esse lugar e povoou-o antes de outros porque era propiacutecio para criar os homens que mais se lhe assemelhassem Viviacuteeis pois regidos por aquelas leis ainda melhores do que as nossas e aleacutem disso com uma boa organizaccedilatildeo poliacutetica e eacutereis melhores do que todos os homens em virtude como eacute de esperar de rebentos e disciacutepulos dos deuses

Muitos e grandes foram os feitos da vossa cidade que satildeo motivo de admiraccedilatildeo nos registos que deles aqui ficaram Mas entre todos eles destaca-se um em grandeza e beleza os nossos escritos referem como a vossa cidade um dia extinguiu uma potecircncia que marchava insolente em toda a Europa e na Aacutesia depois de ter partido do Oceano Atlacircntico Em tempos este

da margem direita do Rio Nilo para Este42 phronecircsis43 Sobre a praacutetica da medicina pelos Egiacutepcios vide Aristoacuteteles

Poliacutetica 1286a10-22 Diodoro Siacuteculo 1823

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mar podia ser atravessado pois havia uma ilha junto ao estreito a que voacutes chamais Colunas de Heacuteracles44 ndash como voacutes dizeis ilha essa que era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia juntas a partir da qual havia um acesso para os homens daquele tempo irem agraves outras ilhas e destas ilhas iam directamente para todo o territoacuterio continental que se encontrava diante delas e rodeava o verdadeiro oceano De facto aquilo que estaacute aqueacutem do estreito de que falamos parece um porto com uma entrada apertada No lado de laacute eacute que estaacute o verdadeiro mar e eacute a terra que o rodeia por completo que deve ser chamada com absoluta exactidatildeo ldquocontinenterdquo45

Nesta ilha a Atlacircntida havia uma enorme confederaccedilatildeo de reis com uma autoridade admiraacutevel que dominava toda a ilha bem como vaacuterias outras ilhas e algumas partes do continente aleacutem desses dominavam ainda alguns locais aqueacutem da desembocadura desde a Liacutebia46 ao Egipto e na Europa ateacute agrave Tirreacutenia47 Esta potecircncia tentou toda unida escravizar com uma soacute ofensiva toda a vossa regiatildeo a nossa e tambeacutem todos os locais aqueacutem do estreito Foi nessa altura oacute Soacutelon que pela valentia e pela forccedila se revelou a todos os homens o poderio da vossa cidade pois sobrepocircs-se a todos em

44 O Estreito de Gibraltar45 Segundo esta descriccedilatildeo que recupera alguns elementos do

Feacutedon (108c-114c) a bacia mediterracircnica eacute apenas a parte central da superfiacutecie terrestre e natildeo a sua totalidade eacute circundada pelo Oceano onde se situa a Atlacircntida e eacute aleacutem deste que se situa o territoacuterio continental No fundo a zona do mediterracircneo equivale a um conjunto de ilhas desse verdadeiro mar

46 Todo territoacuterio entre o Egipto e a costa ocidental de Aacutefrica47 Parte ocidental da Peniacutensula Itaacutelica

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coragem e nas artes da guerra quando liderou o exeacutercito grego e depois quando foi deixada agrave sua proacutepria mercecirc por forccedila da desistecircncia dos outros povos e correu riscos extremos Mas veio a erigir o monumento da vitoacuteria ao dominar quem nos atacava impediu que escravizassem entre outros quem nunca tinha sido escravizado bem como todos os que habitavam aqueacutem das Colunas de Heacuteracles e libertou-os a todos sem qualquer reserva48 Posteriormente por causa de um sismo incomensuraacutevel e de um diluacutevio que sobreveio num soacute dia e numa noite terriacuteveis49 toda a vossa classe guerreira foi de uma soacute vez engolida pela terra e a ilha da Atlacircntida desapareceu da mesma maneira afundada no mar Eacute por isso que nesse local o oceano eacute intransitaacutevel e imperscrutaacutevel em virtude da lama que aiacute existe em grande quantidade e da pouca profundidade provocada pela ilha que submergiu50rdquo

Acabas de ouvir oacute Soacutecrates o essencial do relato de Criacutetias o anciatildeo segundo o que ele ouviu de Soacutelon Ontem enquanto tu falavas sobre o Estado e dos homens que referias eu fiquei atoacutenito ao recordar-me disto de que agora vos falo por me aperceber de que miraculosamente e por obra de um acaso sem que fosse tua intenccedilatildeo tinhas coligido muito do que Soacutelon dissera Ainda assim natildeo quis falar de improviso pois natildeo me

48 No Meneacutexeno (239a-sqq) eacute descrita em termos muito semelhantes a prestaccedilatildeo ateniense contra a invasatildeo dos Persas

49 Este diluacutevio eacute igualmente referido no Criacutetias (112a) e tambeacutem por outros autores (Aristoacuteteles Meteoroloacutegicos 28 368a33-b13 Pausacircnias 724)

50 Semelhante testemunho daacute Aristoacuteteles nos Meteoroloacutegicos (21 354a11-31)

Platatildeo

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lembrava o suficiente em virtude do tempo decorrido Portanto decidi que seria preciso que eu proacuteprio recuperasse adequadamente tudo isto antes de vo-lo contar deste modo Por isso concordei prontamente com as tuas determinaccedilotildees de ontem acreditando que em todos os casos como este o encargo mais importante eacute propor um discurso que seja adequado aos objectivos e possa ser suficientemente vantajoso para noacutes Assim tal como Hermoacutecrates disse mal ontem saiacute daqui repeti-lhes aquilo de que me lembrava e depois de me ter ido embora reflecti durante a noite e recuperei quase tudo Em boa verdade o que se aprende na infacircncia segundo se diz fica admiravelmente retido na memoacuteria Com efeito o que ouvi ontem natildeo sei se eu o conseguirei trazer de novo agrave memoacuteria por completo mas em relaccedilatildeo ao que apreendi haacute jaacute muito tempo ficaria absolutamente admirado se me escapasse alguma coisa De facto era com tanto prazer e entusiasmo infantil que as escutava aleacutem de o anciatildeo mas contar de bom grado (enquanto lhe fazia perguntas repetidamente) que tal como aquele tipo de escrita em pintura encaacuteustica51 que subsiste se tornaram para mim indeleacuteveis Assim logo ao amanhecer contei-lhes isto de modo a que me acompanhassem no relato E agora pois foi por causa disso que referi tudo isto estou preparado oacute Soacutecrates a relataacute-lo natildeo soacute no que se refere aos seus aspectos principais mas tambeacutem ao pormenor tal como o ouvi Quanto aos cidadatildeos e agrave

51 Meacutetodo de pintura que consistia em aplicar cera aquecida numa base metaacutelica pelo que garantia grande durabilidade Pliacutenio na sua Histoacuteria Natural (35149) daacute uma descriccedilatildeo deste procedimento

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Timeu

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cidade que tu ontem nos descreveste como num mito ponhamo-los aqui transportando-os para a realidade52 como se aquela cidade fosse esta aqui e suponhamos que aqueles cidadatildeos que tu tinhas em mente satildeo os nossos antepassados ndash os reais aqueles de que falava o sacerdote Estaratildeo em absoluta harmonia e noacutes natildeo estaremos fora de tom se dissermos que eles satildeo os que existiram naquele tempo Assim dentro dos possiacuteveis tentaremos todos em conjunto ocupar-nos da tarefa que nos entregaste Portanto oacute Soacutecrates eacute preciso ter em atenccedilatildeo se este discurso estaacute de acordo com o nosso propoacutesito ou se devemos procurar um outro em substituiccedilatildeo dele

Soacutecrates E que outro discurso oacute Criacutetias poderiacuteamos noacutes preferir melhor que este que seja ainda mais adequado ao festival da deusa que celebramos pois estaacute-lhe intimamente ligado e aleacutem disso eacute muito relevante o facto de natildeo se tratar de uma narrativa forjada mas sim de um discurso real Na verdade como e onde encontrariacuteamos outros caso deixaacutessemos este de lado Natildeo eacute possiacutevel Agora boa sorte pois eacute a voacutes que compete falar Quanto a mim em troca dos discursos de ontem mantenho-me em silecircncio e retribuo o papel de ouvinte

Criacutetias Observa entatildeo oacute Soacutecrates o programa que preparaacutemos para a tua recepccedilatildeo Com efeito

52 epi talecircthes Sobre este sentido de ldquorealidaderdquo vide Introduccedilatildeo pp 62-63

Platatildeo

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28a

pareceu-nos que Timeu por de noacutes ser o mais entendido em astronomia e o que mais se empenhou em conhecer a natureza do mundo53 deveria ser o primeiro a falar comeccedilando pela origem do mundo e terminando na natureza do homem Depois dele serei eu como se dele tenha recebido os homens gerados pelo seu discurso e de ti um certo nuacutemero de homens educados de forma particularmente apurada Entatildeo de acordo com as palavras e a lei de Soacutelon depois de os trazer agrave nossa presenccedila como se estivessem perante juiacutezes faacute-los-ei cidadatildeos desta cidade como se fossem os Atenienses de outrora cuja existecircncia permanece esquecida e foi agora desvelada pelo testemunho dos escritos sagrados Daqui em diante farei o meu discurso como se na verdade se tratasse de cidadatildeos e de Atenienses

Soacutecrates Perfeito e brilhante me parece o banquete de discursos que vou receber em troca do que ofereci Eacute entatildeo a tua vez de discursar segundo me parece oacute Timeu depois de invocares os deuses de acordo com o costume54

Timeu Eacute bem certo oacute Soacutecrates que todos quantos partilhem o miacutenimo de bom-senso55 sempre que iniciam algum empreendimento pequeno ou grande invocam sempre de algum modo um deus Quanto a noacutes que nos preparamos para produzir discursos sobre o

53 kosmos54 Eacute comum em Platatildeo a invocaccedilatildeo de uma divindade antes de

iniciar um discurso (Filebo 25b Leis 887c)55 socircphrosynecirc

92 93

Timeu

92 93

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universo ndash sobre como deveio ou se de facto nem o toca o devir56 ndash caso natildeo tenhamos perdido por completo o discernimento eacute inevitaacutevel que invoquemos deuses e deusas bem como roguemos que tudo o que dissermos seja conforme ao seu intelecto57 e esteja em concordacircncia com o nosso E no que respeita aos deuses seja esta a nossa invocaccedilatildeo No que nos toca conveacutem que os invoquemos para que vocecircs aprendam com facilidade e que eu exponha da melhor forma possiacutevel o que penso sobre o assunto que tenho perante mim

Na minha opiniatildeo temos primeiro que distinguir o seguinte o que eacute aquilo que eacute sempre e natildeo deveacutem e o que eacute aquilo que deveacutem58 sem nunca ser59 Um pode ser apreendido pelo pensamento com o auxiacutelio da razatildeo60

56 Traduzimos gignomai por ldquodevirrdquo sempre que a oposiccedilatildeo ontoloacutegico ser-devir estiver patente Nos outros casos optaacutemos por ldquogerarrdquo um termo complementar que manteacutem a noccedilatildeo de pertenccedila ao devir (Santos 2003 p 16 n 13) ao mesmo tempo que garante a proximidade semacircntica com o original principalmente no que respeita agrave acccedilatildeo demiuacutergica a qual no fundo consiste num processo de geraccedilatildeo

57 nous Trata-se da faculdade de inteligir as Ideias eacute partilhada por deuses daimones homens e inclusivamente pela alma do mundo Esta mesma designaccedilatildeo eacute aplicada agrave sede humana dessa faculdade a parte racional e imortal da alma razatildeo pela qual a traduziremos do mesmo modo

58 ti to gignomenon A ediccedilatildeo de Burnet regista tambeacutem aei (ldquosemprerdquo) implicando a traduccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute sempre em devirrdquo Apesar de compatiacutevel com os conteuacutedos do texto trata-se de um acrescento posterior como claramente demonstrou Whittaker (1969 1973) Seguimos pois neste ponto a omissatildeo de aei

59 Distinccedilatildeo ontoloacutegica entre ldquoo que eacuterdquo (to on) e ldquoo que deveacutemrdquo (to gignomenon) isto eacute entre o que pertence ao inteligiacutevel e o que diz respeito ao mundo sensiacutevel Eacute agrave luz deste axioma que se vai desenvolver todo o discurso de Timeu

60 noecircsei meta logou perilecircpton

Platatildeo

94 9594 95

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29a

pois eacute imutaacutevel61 Ao inveacutes o segundo eacute objecto da opiniatildeo acompanhada da irracionalidade dos sentidos62 e porque deveacutem e se corrompe natildeo pode ser nunca Ora tudo aquilo que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa pois eacute impossiacutevel que alguma coisa devenha sem o contributo duma causa63 Deste modo o demiurgo potildee os olhos no que eacute imutaacutevel e que utiliza como arqueacutetipo64 quando daacute a forma e as propriedades ao que cria Eacute inevitaacutevel que tudo aquilo que perfaz deste modo seja belo Se pelo contraacuterio pusesse os olhos no que deveacutem e tomasse como arqueacutetipo algo deveniente a sua obra natildeo seria bela

Quanto ao conjunto do ceacuteu ou mundo ndash ou ainda se preferirmos chamar-lhe outro nome mais adequado chamemos-lhe esse ndash temos que apurar primeiro no que lhe diz respeito aquilo que subjaz a todas as questotildees e deve ser apurado logo no princiacutepio

61 aei kata tauta on literalmente ldquoaquilo que eacute sempre de acordo com o mesmordquo Trata-se das Ideias que satildeo imutaacuteveis porquanto isentas das oscilaccedilotildees do devir (vide Feacutedon 78d)

62 metrsquoaisthecircseocircs alogou doxaston literalmente ldquoopinaacutevel com o auxiacutelio da percepccedilatildeo sensiacutevel privada de razatildeordquo Ao contraacuterio ldquodo que eacuterdquo ldquoo que deveacutemrdquo natildeo eacute fonte de saber estaacutevel pois aleacutem de se encontrar em constante mutaccedilatildeo soacute pode ser apreendido pela falibilidade dos sentidos e natildeo por meio da razatildeo

63 Tal como eacute referido em muitos outros diaacutelogos de Platatildeo (Leis 891e Feacutedon 98c 99b Filebo 27b) tambeacutem no Timeu natildeo soacute neste ponto como tambeacutem noutras ocasiotildees (29d 38d 44c 46d-e 57e 64d 68e-69a 87e) o que pertence agrave dimensatildeo do devir depende de uma causa

64 paradeigma No Timeu as Ideias satildeo tomadas na sua totalidade sob o conceito de ldquoarqueacutetipordquo este representa pois a soma de todas elas que serve de modelo inteligiacutevel de racionalidade para a criaccedilatildeo

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se sempre foi sem ter tido origem no devir ou se deveio originado a partir de algum princiacutepio Deveio pois eacute visiacutevel e tangiacutevel e tem corpo assumindo todas as propriedades do que eacute sensiacutevel65 e o que eacute sensiacutevel que pode ser compreendido por uma opiniatildeo fundamentada na percepccedilatildeo dos sentidos deveacutem e eacute deveniente como jaacute foi dito66 Dissemos tambeacutem que o que deveacutem eacute inevitaacutevel que devenha por alguma causa Poreacutem descobrir o criador e pai do mundo eacute uma tarefa difiacutecil e a descobri-lo eacute impossiacutevel falar sobre ele a toda a gente67 Mas ainda quanto ao mundo temos que apurar o seguinte aquele que o fabricou produziu-o a partir de qual dos dois arqueacutetipos daquele que eacute imutaacutevel e inalteraacutevel68 ou do que deveacutem Ora se o mundo eacute belo e o demiurgo eacute bom eacute evidente que pocircs os olhos que eacute eterno se fosse ao contraacuterio ndash o que nem eacute correcto supor ndash teria posto os olhos no que deveacutem Portanto eacute evidente para todos que pocircs os olhos no que eacute eterno pois o mundo eacute a mais bela das coisas devenientes e o demiurgo eacute a mais perfeita das causas Deste modo

65 aisthecircton66 Cf supra 27d-28a67 Este passo em que Timeu chama ao demiurgo ldquopai e criador

do mundordquo foi extensivamente citada e discutida ao longo dos seacuteculos por autores de todas as orientaccedilotildees filosoacuteficas e religiosas especificamente por teoacutelogos judeus e cristatildeos que o utilizaram para fundamentar a crenccedila monoteiacutesta Sobre este assunto vide Nock (1962 pp 79-83)

68 ocircsautocircs Isto eacute que nunca se torna ldquooutrordquo Aleacutem de isento de corrupccedilatildeo por acccedilatildeo do devir e por isso imutaacutevel (cf supra n 70) o arqueacutetipo eacute sempre idecircntico a si mesmo nunca assumindo atributos de outra coisa Trata-se no fundo do princiacutepio de identidade que define as Ideias (vide Feacutedon 78d)

Platatildeo

96 9796 97

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o que deveio foi fabricado pelo demiurgo que pocircs os olhos no que eacute imutaacutevel e apreensiacutevel pela razatildeo e pelo pensamento69

Assim sendo de acordo com estes pressupostos eacute absolutamente inevitaacutevel que este mundo seja uma imagem de algo70 Mas em tudo o mais importante eacute comeccedilar pelo princiacutepio de acordo com a natureza Deste modo no que diz respeito a uma imagem e ao seu arqueacutetipo temos que distinguir o seguinte os discursos explicam aquilo que eacute seu congeacutenere71 Por isso os discursos claros estaacuteveis e invariaacuteveis explicam com a colaboraccedilatildeo do intelecto o que eacute estaacutevel e fixo ndash e tanto quanto conveacutem aos discursos serem irrefutaacuteveis e insuperaacuteveis em nada devem afrouxar esta relaccedilatildeo Em relaccedilatildeo aos que se reportam ao que eacute copiado do arqueacutetipo por se tratar de uma coacutepia estabelecem com essa coacutepia uma relaccedilatildeo de verosimilhanccedila e analogia conforme o ser72 estaacute para o devir73 assim a verdade estaacute para a crenccedila74 Portanto oacute Soacutecrates se no que diz respeito a variadiacutessimas questotildees sobre os deuses e sobre a geraccedilatildeo do universo natildeo formos capazes de propor explicaccedilotildees perfeitas e totalmente concordantes consigo mesmas natildeo te admires Mas se providenciarmos discursos verosiacutemeis que natildeo sejam inferiores a nenhum

69 pros to logocirc kai phronecircsei perilecircpton70 ton kosmon eikona tinos71 Sobre as implicaccedilotildees desta proposiccedilatildeo vide Introduccedilatildeo pp

33-3472 ousia73 genesis74 Conclusatildeo da alegoria episteacutemico-ontoloacutegica da linha dividida

formulada na Repuacuteblica (509d-511e)

96 97

Timeu

96 97

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30a

outro eacute forccediloso que fiquemos satisfeitos tendo em mente que eu que discurso e voacutes os juiacutezes somos de natureza humana de tal forma que em relaccedilatildeo a estes assuntos eacute apropriado aceitarmos uma narrativa verosiacutemil75 e natildeo procurar nada aleacutem disso

Soacutecrates Excelente oacute Timeu Devemos sem duacutevida alguma aceitaacute-lo tal como propotildees Acolhemos o teu preluacutedio com admiraccedilatildeo mas agora termina a aacuteria sem interrupccedilatildeo76

Timeu Digamos pois por que motivo aquele que constituiu o devir e o mundo os constituiu Ele era bom e no que eacute bom jamais nasce inveja de qualquer espeacutecie77 Porque estava livre de inveja quis que tudo fosse o mais semelhante a si possiacutevel Quem aceitar de homens sensatos que esta eacute a origem mais vaacutelida do devir e do mundo estaraacute a aceitar o raciociacutenio mais acertado Na verdade o deus quis que todas as coisas fossem boas e que no que estivesse agrave medida do seu poder78 natildeo existisse nada imperfeito Deste modo pegando em tudo quanto havia de visiacutevel que natildeo estava em repouso mas se movia irregular e desordenadamente da desordem tudo conduziu a uma ordem por achar que

75 eikota mython Sobre as implicaccedilotildees desta expressatildeo vide Introduccedilatildeo pp 48-53

76 A mesma metaacutefora eacute utilizada na Repuacuteblica (531d)77 Para Platatildeo um deus eacute sempre bom e tudo o que eacute bom estaacute

livre de inveja (cf Fedro 247a Repuacuteblica 379b)78 Esta noccedilatildeo de limitaccedilatildeo relativa associada ao demiurgo eacute

muitiacutessimo frequente ao longo do texto (32b 37d 38c 42e 53b 65c 71d 89d)

Platatildeo

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esta eacute sem duacutevida melhor do que aquela Com efeito a ele sendo supremo foi e eacute de justiccedila que outra coisa natildeo faccedila senatildeo o mais belo

Reflectindo descobriu que a partir do que eacute visiacutevel por natureza de forma alguma faria um todo privado de intelecto que fosse mais belo do que um todo com intelecto e que seria impossiacutevel que o intelecto se gerasse em algum lugar fora da alma79 Por meio deste raciociacutenio80 fabricou o mundo estabelecendo o intelecto na alma e a alma no corpo realizando deste modo a mais bela e excelente obra por natureza Assim de acordo com um discurso verosiacutemil eacute necessaacuterio dizer que este mundo que eacute na verdade um ser dotado de alma e de intelecto81 foi gerado pela providecircncia82 do deus

Dito isto devemos agora ocupar-nos do que se deu a seguir agrave semelhanccedila de qual dos seres constituiu o mundo aquele que o constituiu Assumamos que natildeo foi agrave semelhanccedila de qualquer um daqueles seres que por natureza formam uma espeacutecie particular ndash pois nada do que se assemelha ao que eacute incompleto pode tornar-se belo Estabeleccedilamos em vez disso que o universo se

79 Reafirmaccedilatildeo do postulado jaacute referido na Repuacuteblica (478a-b) e no Sofista (249a) segundo o qual todo o acto intelectivo soacute pode ter lugar na alma

80 logismos81 zocircon empsychon ennoun te82 pronoia Note-se que nesta e nas restantes ocorrecircncias

(44c7 45b1) ldquoprovidecircnciardquo implica apenas presciecircncia enquanto capacidade de antecipar necessidades futuras natildeo tendo pois o sentido religioso de ldquogoverno do mundordquo tanto que o demiurgo se retira apoacutes a criaccedilatildeo

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Timeu

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assemelha o mais possiacutevel agravequele ser de que os outros satildeo parte quer individualmente quer como classe De facto esse ser compreende em si mesmo e encerra todos os seres inteligiacuteveis83 tal como este mundo nos compreende a noacutes e a todas as outras criaturas visiacuteveis Assim por querer assemelhaacute-lo ao mais belo de entre os seres inteligiacuteveis ao mais perfeito de todos o deus constituiu um ser uacutenico que contivesse em si mesmo todos os seres que se lhe assemelhassem por natureza

Entatildeo seraacute correcto declarar que haacute um uacutenico ceacuteu ou seraacute mais correcto dizer que haacute vaacuterios ou ateacute infinitos Haacute um uacutenico jaacute que foi fabricado pelo demiurgo de acordo com o arqueacutetipo84 Eacute que aquele que abrange todos os seres inteligiacuteveis natildeo pode de modo algum vir em segundo lugar a seguir a outro Caso contraacuterio deveria haver um outro ser que abrangesse aqueles dois do qual esses dois seriam uma parte e seria mais correcto dizer que o mundo natildeo se assemelharia a esses dois mas sim agravequele que os abrangia Portanto foi para que se assemelhasse ao ser absoluto na sua singularidade85

83 noecircta zocirca84 Nas secccedilotildees subsequentes seratildeo implicitamente refutadas

duas teses centrais do atomismo a pluralidade de mundos (eg DK 67A1 68A40) e a existecircncia do vazio (eg DK 67A6-7 DK 68A37) Ambos os problemas estatildeo interligados e a sua explicaccedilatildeo depende das mesmas razotildees visto que foi necessaacuteria a totalidade dos elementos na criaccedilatildeo eacute impossiacutevel que os mundos sejam inumeraacuteveis posto que natildeo sobrou qualquer mateacuteria de que fossem ou viessem a ser formados (31a-33b) de modo a que o mundo englobasse todos os seres foi-lhe dada a forma que engloba todas as formas (a esfeacuterica) natildeo restando pois nada mais para ocupar (33b-34a)

85 monocircsis

Platatildeo

100 101100 101

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que aquele que fez o mundo natildeo fez dois nem uma infinidade de mundos deste modo o ceacuteu foi gerado como unigeacutenito ndash assim eacute e assim continuaraacute a ser

Eacute forccediloso que aquilo que deveio seja corpoacutereo visiacutevel e tangiacutevel mas separado do fogo sem duacutevida que nada pode ser visiacutevel nem nada pode ser tangiacutevel sem qualquer coisa soacutelida e nada pode ser soacutelido sem terra Daiacute que o deus quando comeccedilou a constituir o corpo do mundo o tenha feito a partir de fogo e de terra Todavia natildeo eacute possiacutevel que somente duas coisas sejam compostas de forma bela sem uma terceira pois eacute necessaacuterio gerar entre ambas um elo que as una O mais belo dos elos seraacute aquele que faccedila a melhor uniatildeo entre si mesmo e aquilo a que se liga o que eacute por natureza alcanccedilado da forma mais bela atraveacutes da proporccedilatildeo86 Sempre que de trecircs nuacutemeros sejam eles inteiros ou em potecircncia87 o do meio tenha um caraacutecter tal que o primeiro estaacute para ele como ele estaacute para o uacuteltimo e em sentido inverso o uacuteltimo estaacute para o do meio como o do meio estaacute para o primeiro o do meio torna-se primeiro e uacuteltimo e o uacuteltimo e o primeiro passam ambos a estar no meio sendo deste modo obrigatoacuterio que se ajustem entre si e tendo-se assim ajustado uns aos outros entre si seratildeo todos um soacute Ora se o corpo do mundo tivesse sido gerado como uma superfiacutecie plana sem nenhuma

86 analogia A formaccedilatildeo do mundo organizado a partir dos quatro elementos obedece inevitavelmente agrave proporccedilatildeo isto eacute agrave relaccedilatildeo matemaacutetica Como se tornaraacute evidente ateacute o proacuteprio demiurgo estaacute atido agraves imposiccedilotildees da proporccedilatildeo matemaacutetica

87 A distinccedilatildeo entre nuacutemeros inteiros e em potecircncia eacute tambeacutem referida no Teeteto (148a-b) e nas Leis (737c)

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Timeu

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profundidade um soacute elemento intermeacutedio teria sido suficiente para o unir aos outros termos88 Poreacutem convinha que o mundo fosse de natureza soacutelida e para harmonizar o que eacute soacutelido natildeo basta um soacute elemento intermeacutedio mas sim sempre dois Foi por isso que tendo colocado a aacutegua e o ar entre o fogo e a terra e na medida do possiacutevel produzido entre eles a mesma proporccedilatildeo de modo a que o fogo estivesse para o ar como o ar estava para a aacutegua e o ar estivesse para a aacutegua como a aacutegua estava para a terra o deus uniu estes elementos e constituiu um ceacuteu visiacutevel e tangiacutevel Foi por causa disto e a partir destes elementos ndash elementos esses que satildeo em nuacutemero de quatro ndash que o corpo do mundo foi engendrado posto em concordacircncia atraveacutes de uma proporccedilatildeo e a partir destes elementos obteve a amizade89 de tal forma que tornando-se idecircntico a si mesmo eacute indissoluacutevel por outra entidade que natildeo aquela que o uniu

Assim a constituiccedilatildeo do mundo tomou cada um destes quatro elementos na sua totalidade Foi a partir da totalidade do fogo da aacutegua do ar e da terra que aquele que constituiu o mundo o constituiu natildeo deixando de fora parte alguma nem propriedade alguma pois este era o seu desiacutegnio90 em primeiro lugar que fosse acima

88 Referecircncia ao problema da duplicaccedilatildeo do quadrado que estaria jaacute resolvido no tempo de Platatildeo (vide Meacutenon 81e-84b)

89 A noccedilatildeo de amizade (philia) que Timeu introduz neste ponto em que aborda a combinaccedilatildeo dos quatro elementos convida a uma relaccedilatildeo intertextual com a Philia de que fala Empeacutedocles como entidade mediadora desses mesmos elementos Sobre esta questatildeo vide Introduccedilatildeo p 25

90 dianoeocirc

Platatildeo

102 103102 103

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de tudo um ser-vivo completo e perfeito91 constituiacutedo a partir de partes perfeitas em seguida que fosse uacutenico posto que natildeo sobraria nada a partir do qual pudesse ser gerado um outro da mesma natureza e ainda que estivesse imune ao envelhecimento e agrave doenccedila pois ele92 tinha perfeita consciecircncia de que o calor o frio e outras forccedilas violentas cercando de fora um corpo composto e caindo sobre ele dissolvem-no e impondo-lhe doenccedilas e envelhecimento causam a sua destruiccedilatildeo Foi por este motivo e com base neste raciociacutenio que a partir da globalidade dos todos produziu um soacute todo perfeito imune ao envelhecimento e agrave doenccedila

Aleacutem disso deu-lhe a figura adequada e congeacutenere De facto a forma adequada ao ser-vivo que deve compreender em si mesmo todos os seres-vivos seraacute aquela que compreenda em si mesma todas as formas93 Por isso para o arredondar como que por meio de um torno deu-lhe uma forma esfeacuterica cujo centro estaacute agrave mesma distacircncia de todos os pontos do extremo envolvente ndash e de todas as figuras eacute essa a mais perfeita e semelhante a si proacutepria ndash considerando que o semelhante eacute infinitamente mais belo do que o dissemelhante

Rematou o lado exterior de forma completamente lisa e arredondada por vaacuterias razotildees Eacute que este ser-vivo natildeo tinha necessidade de olhos pois fora dele natildeo restava

91 holon () zocircon teleon92 O demiurgo93 A possibilidade de a esfera englobar todas as formas

estereomeacutetricas seraacute mais tarde desenvolvida por Euclides (1313-17)

102 103

Timeu

102 103

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nada para ver nem de ouvidos pois natildeo havia nada para ouvir natildeo havia ar agrave sua volta que fosse preciso respirar nem precisava de ter qualquer oacutergatildeo atraveacutes do qual absorvesse alimentos para si proacuteprio nem por outro lado que segregasse o que tinha anteriormente filtrado Na verdade nada entrava nele nem nada saiacutea dali pois natildeo havia mais nada Ele fora gerado de tal forma que o seu alimento seria garantido pela sua proacutepria consumpccedilatildeo94 de modo que tudo quanto sofre resulta de si mesmo e tudo quanto faz eacute em si mesmo Aquele que o compocircs achou que para ser mais forte seria melhor que fosse auto-suficiente95 do que tivesse necessidade de outros Quanto a matildeos natildeo sendo preciso que com elas pegasse em nada ou afastasse algo considerou que natildeo seria necessaacuterio aplicar-lhas nem peacutes nem de um modo geral nenhum apetrecho para andar Quanto ao movimento atribuiu-lhe aquele que eacute caracteriacutestico do corpo dos sete aquele que mais tem que ver com o intelecto e com o pensamento96 Foi por isso que ao pocirc-lo girar em torno de si mesmo e no mesmo local fez com que se movimentasse num ciacuterculo em rotaccedilatildeo tendo-o despojado de todos os outros seis movimentos e tornado imoacutevel em relaccedilatildeo a

94 phtisis95 autarkecircs Eacute inevitaacutevel ler neste passo um eco da autarkeia

de Demoacutecrito (eg DK 68B176) Poreacutem como oportunamente observa Taylor (1928 pp 105-106) conveacutem ter em conta que algo deveniente natildeo eacute absolutamente auto-suficiente porquanto deve a sua causa agraves Ideias o mundo secirc-lo-aacute na medida em que natildeo tem interacccedilotildees com outro deveniente

96 phronecircsis

Platatildeo

104 105104 105

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35a

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eles97 Como para esse percurso natildeo eram precisos peacutes engendrou-o sem pernas nem peacutes

Este foi de um modo global o desiacutegnio98 do deus que eacute eternamente para o deus que havia de vir a existir um dia99 tendo assim raciocinado fez-lhe um corpo liso e totalmente uniforme em todos os pontos equidistante do centro e perfeito a partir de corpos perfeitos Depois no centro pocircs uma alma que espalhou por todo o corpo e mesmo por fora cobrindo-o com ela Constituiu um uacutenico ceacuteu solitaacuterio e redondo a girar em ciacuterculos com capacidade pela sua proacutepria virtude de conviver consigo mesmo e sem depender de nenhuma outra coisa pois conhece-se e estima-se a si mesmo o suficiente Foi por todos estes motivos que engendrou um deus bem-aventurado

No que respeita agrave alma ainda que soacute agora vamos tratar de falar dela natildeo eacute posterior ao corpo O deus natildeo os estruturou desse modo como se ela fosse mais nova ndash ao constituiacute-los natildeo permitiu que o mais velho pudesse ser governado pelo mais novo Ao passo que noacutes somos muito afectados pela casualidade e consequentemente falamos tambeacutem ao acaso100 jaacute

97 Trata-se dos seis movimentos rectiliacuteneos ldquopara cimardquo ldquopara baixordquo ldquopara a frenterdquo ldquopara traacutesrdquo ldquopara a direitardquo e ldquopara a esquerdardquo Quanto ao seacutetimo a rotaccedilatildeo sobre si mesmo seraacute aquele mais afim agrave razatildeo (cf supra 40a Leis 897c-sqq) e por isso o apropriado para o corpo do mundo

98 logismos99 Isto eacute o corpo do mundo Apesar de utilizar em ambos os

casos o verbo eimi (ldquoserrdquo) parece-nos que a distinccedilatildeo entre ldquoserrdquo (enquanto eterno e atemporal) e ldquoexistirrdquo (enquanto corruptiacutevel) eacute evidente e deve ser marcada deste modo

100 Timeu recorda a imprecisatildeo da linguagem humana ndash um

104 105

Timeu

104 105

b

c

35a

b

o deus graccedilas agrave sua condiccedilatildeo e virtude constituiu a alma anterior ao corpo e mais velha do que ele para o dominar e governar ndash sendo ele o governado ndash a partir dos seguintes recursos e do modo que se expotildee entre o ser101 indivisiacutevel que eacute imutaacutevel102 e o ser divisiacutevel que eacute gerado nos corpos misturou uma terceira forma103 de ser feita a partir daquelas duas E quanto agrave natureza do Mesmo e do Outro104 estabeleceu de igual modo uma outra natureza entre o indivisiacutevel e o divisiacutevel dos seus corpos Tomando as trecircs naturezas misturou-as todas numa soacute forma e pela forccedila harmonizou a natureza do Outro ndash que eacute difiacutecil de misturar ndash com o Mesmo Procedendo agrave mistura de acordo com o ser formou uma unidade a partir das trecircs e depois distribuiu o todo por tantas partes quantas era conveniente distribuir sendo cada uma delas uma mistura de Mesmo de Outro e de

tema a que voltaraacute mais tarde (46e) e que tambeacutem Criacutetias retomaraacute (107b-108a) Sobre esta questatildeo vide supra pp 55-59

101 ousia102 aei kata tauta103 eidos Embora seja esta a palavra (em concorrecircncia com

idea) que Platatildeo usa em muitos diaacutelogos para definir as Ideias no Timeu isso acontece apenas uma vez (51c-d) em todas as outras ocorrecircncias tem o sentido de ldquotipo espeacutecierdquo (42d2 48a7 48b6 48e6 49a4 51a7 51c4 etc)

104 Os conceitos ldquoMesmordquo (tauton) ldquoOutrordquo (to heteron) e neste contexto ldquoserrdquo (ousia) soacute se esclarecem pelo Sofista Neste diaacutelogo (254d-259b) eacute estabelecido que uma Ideia comporta encerra outros dois elementos constitutivos aleacutem do ser o Mesmo (a sua identidade) resulta de ela ser o que ldquoaquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo natildeo eacute o Outro (a sua alteridade) representa o outro lado desta implicaccedilatildeo pois uma Ideia difere de ldquotudo aquilo que natildeo eacute ela proacutepriardquo Sobre esta questatildeo vide Dixsaut (2003 pp 158-165) Mesquita (1995 pp 262-265)

Platatildeo

106 107106 107

c

36a

b

c

d

e

ser105 Entatildeo comeccedilou a dividir do seguinte modo em primeiro lugar retirou uma parte do todo em seguida retirou outra que era o dobro da primeira uma terceira que corresponde a uma vez e meia a segunda e ao triplo da primeira uma quarta que era o dobro da segunda uma quinta o triplo da terceira uma sexta oito vezes a primeira e uma seacutetima que corresponde a vinte e sete vezes a primeira Depois disto preencheu os intervalos106 duplos e triplos subtraindo partes da mistura inicial e colocando-as entre as outras de tal forma que cada intervalo tivesse dois centros um que transpotildee um dos extremos e eacute transposto pelo outro na mesma fracccedilatildeo e outro que transpotildee o extremo que lhe eacute numericamente idecircntico e tambeacutem ele eacute transposto Destas ligaccedilotildees foram gerados nos intervalos atraacutes referidos outros intervalos de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo Atraveacutes do intervalo de um e um oitavo preencheu todos os de um e um terccedilo e deixou uma parte de cada um deles tendo este intervalo sobrante sido definido pela relaccedilatildeo entre o nuacutemero duzentos e cinquenta e seis e o nuacutemero duzentos e quarenta e trecircs Foi deste modo que a mistura da qual retirou aquelas partes foi utilizada na sua plenitude Entatildeo cortou toda esta composiccedilatildeo em duas partes no sentido do comprimento e sobrepondo-as ao fazer coincidir o centro de uma com o centro da outra

105 Ou seja a alma do mundo foi formada com os mesmos trecircs elementos que constituem as Ideias ser Mesmo e Outro Sobre as implicaccedilotildees desta equivalecircncia constitutiva vide Johansen (2004 pp 138-142)

106 diastecircma Aleacutem de espacial este termo tem tambeacutem uma aplicaccedilatildeo musical designando nesse caso os intervalos entre os sons (Filebo 17c-d Repuacuteblica 531a)

106 107

Timeu

106 107

c

36a

b

c

d

e

(semelhante a um X) dobrou-as em ciacuterculo juntando-as uma agrave outra pelo ponto oposto agravequele pelo qual tinham sido ligadas e impocircs-lhes aquele movimento circular que gira no mesmo local destes dois ciacuterculos fez um exterior e outro interior Entatildeo determinou que o movimento exterior corresponderia agrave natureza do Mesmo e o interior agrave do Outro Fez com que o movimento do Mesmo se orientasse para a direita girando lateralmente e que o do Outro se orientasse para a esquerda girando diagonalmente e deu preeminecircncia agrave oacuterbita do Mesmo e do Semelhante pois a ela soacute deixou ficar indivisa Por outro lado a oacuterbita interior dividiu-a em seis partes e formou sete ciacuterculos desiguais fazendo corresponder cada um deles a um intervalo duplo ou triplo de tal forma que havia trecircs tipos de intervalos Definiu que os ciacuterculos andariam em sentido contraacuterio uns aos outros trecircs dos quais com velocidade semelhante e os outros quatro com velocidade diferente uns dos outros e dos outros trecircs mas movendo-se uniformemente

Logo que a constituiccedilatildeo da alma foi gerada de acordo com o intelecto107 de quem a constituiu este passou agrave fabricaccedilatildeo de tudo quanto dentro dela eacute corpoacutereo e ajustando o centro de um ao centro do outro uniu-os Deste modo entrelaccedilada em todas as direcccedilotildees desde o centro ateacute agrave extremidade do ceacuteu abarcando-o do exterior num ciacuterculo e ela girando em torno de si mesma a alma deu iniacutecio ao comeccedilo divino de uma vida inextinguiacutevel e racional108 para todo o sempre Assim foi

107 nous Neste caso trata-se obviamente do intelecto do demiurgo

108 emphron ldquoRacionalrdquo no sentido em que manteraacute ao

Platatildeo

108 109108 109

37a

b

c

d

e

gerado o corpo do ceacuteu que eacute visiacutevel e a alma invisiacutevel e que participa da razatildeo109 e da harmonia e eacute a melhor das coisas engendradas pelo melhor dos seres dotados de intelecto que satildeo eternamente Constituiacuteda pela mistura dessas trecircs partes da natureza do Mesmo do Outro e do ser dividida e unida segundo a proporccedilatildeo ela gira em torno de si proacutepria e sempre que contacta com qualquer coisa cujo ser pode ser dividido ou com qualquer coisa cujo ser natildeo pode ser dividido eacute movimentada na sua totalidade ela informa a que entidade isso eacute semelhante de que entidade eacute diferente e principalmente em relaccedilatildeo a que entidade e em que circunstacircncias acontece afectar o que deveacutem e o que eacute eternamente e por cada um destes eacute afectada110

Este discurso que eacute ele proacuteprio verdadeiro quer diga respeito ao Mesmo quer ao Outro sempre que eacute levado sem voz nem som para aquele que eacute movimentado por si proacuteprio converte-se num discurso sobre o sensiacutevel111 e o ciacuterculo do Outro que se move em linha recta dissemina-o por toda a alma e geram-se opiniotildees e crenccedilas firmes e verdadeiras112 Todavia sempre que se aplica ao racional e sempre que o ciacuterculo do Mesmo que se movimenta com destreza revela isto

longo dos tempos a conformidade ao arqueacutetipo (um modelo de racionalidade)

109 logismos110 Esta passagem marcada por uma sintaxe imbricada daacute conta

das funccedilotildees cognitivas da alma do mundo Sobre este assunto vide Brisson (1998 pp 340-352)

111 peri to aisthecircton112 doxai kai pisteis gignontai bebaioi kai alecirctheis

108 109

Timeu

108 109

37a

b

c

d

e

eacute forccediloso que daiacute resulte saber113 e intelecccedilatildeo114 No que respeita agravequilo em que se geram estes dois modos de conhecer se alguma vez algueacutem disser que eacute outra coisa que natildeo a alma esse algueacutem estaraacute a dizer tudo menos a verdade115

Ora quando o pai que o engendrou se deu conta de que tinha gerado uma representaccedilatildeo dos deuses eternos animada e dotada de movimento rejubilou por estar tatildeo satisfeito pensou como tornaacute-la ainda mais semelhante ao arqueacutetipo Como acontece que este eacute um ser eterno tentou na medida do possiacutevel tornar o mundo tambeacutem ele eterno Mas acontecia que a natureza daquele ser era eterna e natildeo era possiacutevel ajustaacute-la por completo ao ser gerado Entatildeo pensou em construir uma imagem moacutevel da eternidade116 e quando ordenou o ceacuteu construiu a partir da eternidade que permanece uma unidade uma imagem eterna que avanccedila de acordo com o nuacutemero eacute aquilo a que chamamos tempo117 De facto os dias as noites os meses e os anos natildeo existiam antes de o ceacuteu ter sido gerado pois ele preparou a geraccedilatildeo daqueles ao mesmo tempo que este era constituiacutedo Todos eles satildeo partes do tempo

113 epistecircmecirc114 nous Neste caso natildeo se trata da faculdade de inteligir nem

tampouco da sede dessa faculdade trata-se sim da sua actividade isto eacute da intelecccedilatildeo sendo o saber (epistecircmecirc) o resultado desse processo Neste contexto particular nous equivale em absoluto a noecircsis o termo mais frequente para designar a actividade intelectiva

115 De acordo com a doutrina formulada no Sofista (249a) a alma aleacutem de intelecccedilatildeo (cf supra n 79) eacute tambeacutem a uacutenica sede de actividade cognitiva (cf supra 30b infra 46d Filebo 30c)

116 eikocirc kinecircton tina aiocircnos117 Sobre esta concepccedilatildeo de tempo vide Fialho (1990)

Platatildeo

110 111110 111

38a

b

c

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e ldquoo que erardquo e ldquoo que seraacuterdquo satildeo modalidades devenientes do tempo que aplicamos de forma incorrecta ao ser eterno por via da nossa ignoracircncia Dizemos que ldquoeacuterdquo que ldquofoirdquo e que ldquoseraacuterdquo mas ldquoeacuterdquo eacute a uacutenica palavra que lhe eacute proacutepria de acordo com a verdade ao passo que ldquoerardquo e ldquoseraacuterdquo satildeo adequadas para referir aquilo que deveacutem ao longo do tempo ndash pois ambos satildeo movimentos No entanto aquilo que eacute sempre imutaacutevel e imoacutevel118 natildeo eacute passiacutevel de se tornar mais velho nem mais novo pelo passar do tempo nem tornar-se de todo (nem no que eacute agora nem no que seraacute no futuro) bem como em nada daquilo que o devir atribui agraves coisas que os sentidos trazem jaacute que elas satildeo modalidades devenientes119 do tempo que imita a eternidade e circulam de acordo com o nuacutemero Aleacutem destas haacute ainda as seguintes o que aconteceu ldquoeacuterdquo o que aconteceu o que estaacute a acontecer ldquoeacuterdquo o que estaacute a acontecer o que aconteceraacute ldquoeacuterdquo o que aconteceraacute e o que natildeo eacute ldquoeacuterdquo o que natildeo eacute120 sendo que nenhuma destas afirmaccedilotildees eacute exacta Mas este natildeo seraacute o momento oportuno e adequado para nos determos nestas questotildees

Assim o tempo foi pois gerado ao mesmo tempo que o ceacuteu para que engendrados simultaneamente

118 to de aei kata tauta echon akinecirctocircs119 gegonen eidecirc120 Neste caso particular optaacutemos por traduzir gignomai por

ldquoacontecerrdquo em vez de por ldquodevirrdquo porque a oposiccedilatildeo estabelecida com eimi natildeo se prende directamente com o axioma ontoloacutegico ser-devir Em vez disso Timeu pretende sublinhar um defeito da linguagem designar algo que ocorre num determinado momento cronoloacutegico (na dimensatildeo do sensiacutevel) nos mesmos termos em que refere aquilo que eacute atemporal (e por isso inteligiacutevel)

110 111

Timeu

110 111

38a

b

c

d

tambeacutem simultaneamente sejam dissolvidos121 ndash se eacute que alguma vez a dissoluccedilatildeo122 surja nalgum deles Foram gerados tambeacutem de acordo com o arqueacutetipo da natureza eterna para que lhe fossem o mais semelhantes possiacutevel eacute que o arqueacutetipo eacute ser para toda a eternidade enquanto que a representaccedilatildeo foi eacute e seraacute continuamente e para todo o sempre deveniente

A partir do raciociacutenio e do desiacutegnio de um deus123 em relaccedilatildeo agrave geraccedilatildeo do tempo para que ele fosse engendrado gerou o Sol a Lua e cinco astros que tecircm o nome ldquoplanetasrdquo124 para definirem e guardarem os nuacutemeros do tempo Tendo construiacutedo os corpos de cada um deles ndash sete ao todo ndash o deus estabeleceu-os nas oacuterbitas que o percurso do Outro seguia em nuacutemero de sete delas na primeira a Lua agrave volta da Terra na segunda o Sol por cima da Terra125 a Estrela da Manhatilde126 e o astro que dizem ser consagrado a Hermes127 na rota circular128 que tem a mesma velocidade que o Sol ainda que lhes tenha cabido em sorte um iacutempeto contraacuterio ao dele Daiacute decorre que o Sol e a Estrela da Manhatilde (o

121 lyocirc122 lysis123 ex oun logou kai dianoias124 planecirctos Literalmente ldquoerranterdquo A metaacutefora deve-se ao

facto de os planetas terem uma oacuterbita proacutepria (39d-40b) como se ldquovagueassemrdquo pelo universo

125 Tenhamos em conta que este modelo eacute geocecircntrico126 Veacutenus127 Mercuacuterio128 Para Platatildeo as oacuterbitas dos planetas e do Sol em torno da

Terra descreviam ciacuterculos perfeitos Esta teoria que hoje sabemos ser errada perdurou como paradigma cientiacutefico ateacute ao seacuteculo XVI quando Kepler demonstrou que as oacuterbitas dos astros eram eliacutepticas e natildeo circulares

Platatildeo

112 113112 113

e

39a

b

c

d

astro de Hermes) sucessivamente se alcancem e sejam alcanccedilados mutuamente Quanto aos outros astros se algueacutem quisesse precisar onde e por que motivos o deus os estabeleceu sem deixar de lado nenhum deles esse discurso que eacute secundaacuterio causaria mais dificuldades do que o objectivo principal em funccedilatildeo do qual seria desenvolvido Quanto a este assunto pode ser que mais tarde o abordemos com a atenccedilatildeo que merece129

Assim logo que cada um dos astros que eram necessaacuterios para constituir o tempo obteve o movimento que lhe era adequado e depois de terem sido engendrados como corpos vivos vinculados agraves almas130 aprenderam aquilo que lhes estava prescrito a oacuterbita do Outro que por ser obliacutequa atravessa a oacuterbita do Mesmo e eacute dominada por ele Alguns astros deslocam-se em ciacuterculos maiores e outros em ciacuterculos mais pequenos os que estatildeo nos ciacuterculos mais pequenos deslocam-se mais rapidamente e os que estatildeo nos ciacuterculos maiores deslocam-se mais lentamente E por causa da oacuterbita do Mesmo parecia que os que se deslocavam mais rapidamente eram alcanccedilados pelos que se deslocavam mais lentamente quando eram aqueles que alcanccedilavam estes Com efeito o deus ao fazer girar em torno do eixo todos os ciacuterculos dos astros como uma espiral fazia parecer que o movimento era duplo e em sentidos opostos e que o que se afastava mais lentamente do que era mais raacutepido era o que estava mais perto Para que houvesse uma

129 Infelizmente o assunto natildeo chega a ser retomado130 Tambeacutem os astros satildeo entidades duais com uma alma

aprisionada num corpo (cf Leis 898)

112 113

Timeu

112 113

e

39a

b

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d

medida evidente para a lentidatildeo e para a rapidez com que se cumprissem as oito oacuterbitas o deus instalou uma luz na segunda oacuterbita a contar da Terra a que agora chamamos Sol de modo a que o ceacuteu brilhasse ainda mais para todos e que os seres-vivos aos quais isso dissesse respeito participassem do nuacutemero de modo a ficarem a conhecer a oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Deste modo e por estas razotildees foram gerados a noite e o dia ndash o percurso circular uniforme e regular Temos um mecircs quando a Lua depois de ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo alcanccedila o Sol temos um ano depois de o Sol ter percorrido o seu proacuteprio ciacuterculo Agrave excepccedilatildeo de uma minoria131 a maior parte dos homens natildeo teve em conta os ciacuterculos dos outros astros nem lhes deu nomes nem observando-os estudou atraveacutes dos nuacutemeros as relaccedilotildees entre eles de tal forma que por assim dizer natildeo sabe que haacute um tempo definido para os seus cursos errantes132 nem que satildeo inconcebivelmente numerosos e admiravelmente variegados Em todo o caso eacute pelo menos possiacutevel perceber que o nuacutemero perfeito do tempo preenche o ano perfeito cada vez que as velocidades relativas da totalidade das oito oacuterbitas medidas pelo ciacuterculo do Mesmo em progressatildeo uniforme se completam e voltam ao iniacutecio Foi deste modo e por estas razotildees que esses astros engendrados que percorrem o ceacuteu assumiram um ponto de retorno para que o mundo fosse o mais semelhante possiacutevel ao ser

131 Este grupo restrito seraacute o nuacutemero de homens versados em astronomia isto eacute os filoacutesofos

132 planas Cf supra n XXX

Platatildeo

114 115114 115

e

40a

b

c

d

perfeito e inteligiacutevel133 bem como para que constituiacutesse uma imitaccedilatildeo da sua natureza eterna

Tudo o resto ateacute agrave geraccedilatildeo do tempo tinha sido feito dentro da maior semelhanccedila ao que lhe tinha servido de modelo Todavia o mundo ainda natildeo englobava todos os seres-vivos que dentro dele seriam gerados pelo que ainda denunciava dissemelhanccedilas Por isso o demiurgo completou a parte que lhe restava fazer agrave imagem da natureza do arqueacutetipo Assim tal como o intelecto percebe as formas do ser que eacute ndash tantas quantas haacute nele ndash o demiurgo olhou para baixo e decidiu que o mundo deveria ter tantas formas quantas aquele tem E eles satildeo quatro a primeira eacute a espeacutecie celeste dos deuses outra eacute a alada e anda pelo ar a terceira eacute a forma aquaacutetica e a quarta eacute a que caminha sobre a terra Tratando-se da divina o deus construiu-a na sua maioria a partir do fogo para que fosse a mais brilhante e a mais agradaacutevel agrave vista e de modo a ser semelhante ao universo fecirc-la redonda Atribuiu-a agrave inteligecircncia do supremo134 de modo a segui-lo e distribuiu-a em ciacuterculo por todo o ceacuteu a fim de que fosse um verdadeiro adorno bordado em toda a sua extensatildeo Atribuiu dois movimentos a cada uma das divindades um uniforme e no mesmo local para que cada uma reflectisse sempre da mesma forma sobre o mesmo e outro dirigido para a frente pois cada uma delas eacute dominada pela oacuterbita do Mesmo e do Semelhante Em relaccedilatildeo aos outros cinco movimentos as divindades mantecircm-se imoacuteveis e em

133 teleocirc kai noecirctocirc134 eis tecircn tou kratistou phronecircsin Trata-se da oacuterbita do Mesmo

onde foram fixas as estrelas

114 115

Timeu

114 115

e

40a

b

c

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repouso para que cada uma delas seja o mais perfeita possiacutevel

Foram estes os motivos pelos quais foram gerados todos os astros natildeo errantes seres-vivos divinos e eternos que permanecem para sempre imutaacuteveis e a girar sobre si mesmos Jaacute os que mudam de direcccedilatildeo e se mantecircm assim errantes tal como foi dito atraacutes135 foram gerados ao mesmo tempo que estes Quanto agrave Terra o nosso sustento a qual roda136 em torno do eixo que atravessa o universo foi estabelecida como guardiatilde e produtora da noite e do dia ela que eacute a primeira e a mais velha das divindades geradas dentro do ceacuteu Explicar as danccedilas destes astros e as confluecircncias que mantecircm uns com os outros os recuos e os avanccedilos dos seus ciacuterculos uns em relaccedilatildeo aos outros quais satildeo os deuses que se encontram em conjunccedilatildeo e quantos estatildeo opostos uns aos outros e ainda quais se colocam uns diante dos outros e durante quanto tempo se escondem de noacutes para tornarem a aparecer e enviam maus pressaacutegios e sinais de eventos que hatildeo-de acontecer agravequeles que natildeo conseguem entendecirc-los agrave luz da razatildeo sem ter diante dos olhos uma imitaccedilatildeo destes fenoacutemenos essa explicaccedilatildeo seria

135 Cf supra 39c136 illomenecircn Desde os primeiros disciacutepulos de Platatildeo que se

tem discutido o sentido desta palavra O verbo eilocirc pode significar entre outras coisas ldquocomprimirrdquo ou ldquorodarrdquo de acordo com o primeiro a Terra estaria comprimida pelo eixo do universo e pela segunda hipoacutetese giraria em torno dele Seguimos a interpretaccedilatildeo de Aristoacuteteles (Sobre o Ceacuteu 213 293b30-31) que faz equivaler eilocirc a kineocirc implicando um movimento da Terra em torno de si proacutepria Cf Cornford 1937 pp 120-134 Brisson 1998 p 395 n 1 Dillon 1989 p 67

Platatildeo

116 117116 117

e

41a

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c

d

um encargo vatildeo No entanto isto eacute suficiente para noacutes pelo que seja este o fim da narrativa sobre a natureza dos deuses visiacuteveis e engendrados

No que respeita agraves outras divindades dizer e conhecer a sua geraccedilatildeo eacute algo que nos supera devemos portanto confiar nos que falaram outrora pois satildeo descendentes dos deuses segundo dizem e conhecem distintamente os seus ascendentes Eacute de facto impossiacutevel desconfiar dos filhos dos deuses mesmo que falem sem recurso a argumentos verosiacutemeis ou rigorosos Quando tratam de dar conta dos episoacutedios que dizem respeito agrave famiacutelia devemos entatildeo confiar neles de acordo com o costume Deste modo reproduzamos o discurso deles e faccedilamos o nosso sobre o que foi a geacutenese dos deuses De Geia e Urano foram gerados Oceano e Teacutetis seus filhos e destes foram gerados Foacutercis Cronos e Reia e todos aqueles que os seguiram de Cronos e de Reia foram gerados Zeus e Hera e todos aqueles que segundo a tradiccedilatildeo sabemos serem seus irmatildeos e ainda outros descendentes destes foram gerados137 Quando foram gerados todos os deuses quer os que se movimentam em ciacuterculos e satildeo visiacuteveis quer os que se mostram soacute quando desejam aquele que engendrou o universo disse-lhes o seguinte

ldquoDeuses gerados de deuses de quem e de cujas obras eu sou pai e demiurgo por terem sido gerados por mim natildeo podem ser dissolvidos enquanto eu natildeo

137 Esta teogenealogia difere bastante da que Hesiacuteodo estabeleceu na Teogonia eacute provaacutevel que misture elementos de tradiccedilotildees variadas nomeadamente da oacuterfica (vide Brisson 2001 p 239 n 229)

116 117

Timeu

116 117

e

41a

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c

d

quiser Na verdade embora o que tenha sido unido seja dissoluacutevel eacute uma maldade querer dissolver aquilo que pelo bem foi composto em harmonia Por isso mesmo que tenhais sido gerados e ainda que natildeo sejais imortais nem completamente impassiacuteveis de dissoluccedilatildeo de modo algum sereis dissolvidos nem tomareis parte na morte porque fostes unidos pela minha vontade que eacute mais forte e mais poderosa do que os elos que vos couberam em sorte e com os quais fostes gerados Agora aprendei aquilo que vos vou dizer e mostrar

Restam trecircs espeacutecies mortais que ainda natildeo foram engendradas Se elas natildeo chegarem a ser geradas o ceacuteu ficaraacute incompleto pois natildeo conteraacute em si todas as espeacutecies de seres-vivos mas eacute forccediloso que as tenha para que fique efectivamente perfeito Todavia se elas fossem geradas por mim e tomassem parte na vida atraveacutes de mim seriam equivalentes aos deuses Portanto para que sejam mortais e que o universo seja realmente um todo tratai de acordo com a vossa natureza de fabricar estes seres-vivos imitando o meu poder de quando vos gerei E no que respeita agrave parte desses seres a que pertence ter o mesmo nome que os imortais a parte a que chamamos divina e que comanda os que entre eles praticam sempre a justiccedila e vos querem servir que eu semeei e quis que se originasse essa vo-la confio Quanto ao resto entretecei uma parte mortal nessa parte imortal formai e engendrai seres-vivos fazei-os crescer providenciando-lhes o alimento e quando perecerem recebei-os outra vezrdquo138

138 Referecircncia agrave teoria da transmigraccedilatildeo das almas formulada no

Platatildeo

118 119118 119

e

42a

b

c

d

Assim falou e voltando ao recipiente em que anteriormente tinha composto a alma do universo por meio de uma mistura deitou nele os restos que tinha para os misturar mais ou menos da mesma maneira poreacutem comparativamente agrave primeira mistura esta natildeo ficou com o mesmo teor de pureza mas sim com um segundo ou terceiro grau Depois de ter constituiacutedo o todo dividiu-o em nuacutemero de almas igual ao de astros e atribuiu uma a cada um Fazendo-as embarcar como num carro mostrou-lhes a natureza do universo e deu-lhes a conhecer as leis que lhes estavam destinadas a saber a primeira geacutenese seria estabelecida como idecircntica para todas de modo a que nenhuma fosse depreciada por ele Era obrigatoacuterio que uma vez disseminadas pelos instrumentos do tempo adequados a cada uma gerassem dos seres-vivos o que mais venerasse os deuses e por a natureza humana ser dupla139 aquela espeacutecie mais forte seria a que posteriormente se chamaria macho Sempre que fossem implantadas nos corpos por necessidade e lhes fossem acrescentadas partes enquanto outras seriam retiradas do corpo em todas elas surgiria necessariamente e em primeiro lugar uma sensaccedilatildeo uacutenica e congeacutenita gerada por impressotildees violentas140 em segundo lugar o desejo amoroso que

Fedro (246a-250c)139 Isto eacute masculina e feminina140 Uma sensaccedilatildeo (aisthecircsis) eacute uma manifestaccedilatildeo somaacutetica de uma

impressatildeo (pathecircma) sofrida ou seja uma resposta a um estiacutemulo externo Por sensaccedilatildeo Timeu entende tanto os sentimentos como a coacutelera ou o temor (42a) como os sentidos por exemplo a visatildeo eacute uma aisthecircsis cujo pathecircma eacute o fogo exterior que contacta com os olhos (45b-c)

118 119

Timeu

118 119

e

42a

b

c

d

eacute uma mistura de prazer e sofrimento depois destes o temor a coacutelera e todas as sensaccedilotildees que se lhes seguem e todas as que por natureza satildeo contraacuterias e se diferenciam destas Se as dominarem viveratildeo de forma justa mas se forem comandados por elas viveratildeo de forma injusta Aquele que viver bem durante o tempo que lhe cabe regressaraacute agrave morada do astro que lhe estaacute associado para aiacute ter uma vida feliz e conforme Mas se se extraviar recairaacute sobre si a natureza de mulher na segunda geraccedilatildeo e se mesmo nessa condiccedilatildeo natildeo cessar de praticar o mal seraacute sempre gerado com uma natureza de animal assumindo uma ou outra forma conforme o tipo de mal que pratique141 Ao mudar o seu estado anterior natildeo se veraacute livre destes sofrimentos enquanto for arrastado pelo percurso do Mesmo e do Semelhante com a vasta massa formada de fogo aacutegua ar e terra que depois se juntou a ele soacute quando dominasse por meio da razatildeo essa massa turbulenta e irracional142 voltaria agrave forma do seu estado primeiro e ideal Assim o deus depois de lhes ter dado todas as prescriccedilotildees para que natildeo fosse responsaacutevel pelo mal que pudesse existir entre elas semeou algumas na terra e outras na Lua e ainda outras nos restantes instrumentos do tempo Depois da sementeira concedeu aos jovens deuses a tarefa de formar os corpos mortais e de adicionar o que restava e era necessaacuterio agrave alma humana e depois de terem

141 Como seraacute desenvolvido mais adiante (90e-sqq) os homens que levem a vida de forma indigna assumiratildeo formas animais em nascimentos futuros Cf Feacutedon 81e-82b Fedro 249a-c Repuacuteblica 614b-sqq

142 thorubocircdecirc kai alogon onta logocirc kratecircsas

Platatildeo

120 121120 121

e

43a

b

c

d

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completado tudo quanto restava fazer concedeu-lhes a tarefa de governaacute-la na medida do possiacutevel para que orientassem este ser-vivo mortal da forma melhor e mais bela de modo a que natildeo fosse a causa dos seus proacuteprios males

Depois de ter disposto tudo isto manteve-se no estado que lhe eacute proacuteprio e habitual E assim se mantendo os filhos reflectiam sobre as disposiccedilotildees do pai e obedeceram-lhe Pegando no princiacutepio imortal do ser-vivo mortal e imitando o seu demiurgo tomaram de empreacutestimo ao mundo partes de fogo terra aacutegua e ar que depois seriam devolvidas Colaram numa soacute entidade os elementos que haviam tomado natildeo com os laccedilos insoluacuteveis com que eles proacuteprios haviam sido apertados mas fundiram-nas com cavilhas apertadas que graccedilas ao seu reduzido tamanho eram invisiacuteveis A partir de tudo isto fabricaram cada corpo introduzindo as oacuterbitas da alma imortal num corpo submetido a fluxos e refluxos Presas a um rio impetuoso natildeo dominavam nem eram dominadas pelo rio mas ora o moviam ora eram movidas pela forccedila dele de tal forma que o ser-vivo se movia globalmente ndash mas fazia-o de forma desordenada irracional e ao acaso pois tinha em si todos os seis movimentos Com efeito andava para a frente e para traacutes e ainda para a direita e para a esquerda e para baixo e para cima errante avanccedilava em todas as direcccedilotildees Eacute que por ser abundante a torrente de fluxo e refluxo que transportava o alimento as impressotildees que com eles chocavam causavam um tumulto ainda maior sempre que o corpo de algum colidia com um

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fogo externo que por acaso encontrasse no exterior ou com a dureza e firmeza da terra ou com a humidade deslizante da aacutegua ou apanhado pela tempestade dos ventos transportados pelo ar ou seja quando causados por todas essas entidades os movimentos imprimidos ao corpo recaiacuteam sobre a alma Por causa disso esses movimentos foram chamados sensaccedilotildees e ainda agora no seu conjunto satildeo assim chamados Visto que no momento em que ocorrem elas provocam um movimento muito poderoso e intenso que se junta ao do canal em que segue uma torrente de forma contiacutenua e agitando com violecircncia as oacuterbitas da alma bloqueiam por completo a oacuterbita do Mesmo por correrem em sentido oposto ao dele impedindo-o de progredir e de governar o que chega a desestabilizar a oacuterbita do Outro de tal forma que cada um dos trecircs intervalos duplos e triplos os intervalos e as ligaccedilotildees de um e meio um e um terccedilo e um e um oitavo que de modo algum eram resoluacuteveis a natildeo ser por aquele que as ligou fizeram-nas girar todas em ciacuterculos criando todo o tipo de rupturas e desordens nos ciacuterculos ndash tantas quantas conseguiram Deste modo a custo se mantiveram ligados uns com os outros movendo-se irracionalmente ora voltadas ao contraacuterio ora de forma obliacutequa ora invertidas Por exemplo quando algueacutem se coloca em posiccedilatildeo invertida com a cabeccedila para o chatildeo e projectando os peacutes para cima contra qualquer coisa enquanto assim estaacute tanto do ponto de vista de quem nela se encontra como de quem estaacute a observaacute-lo parece-lhes tanto a uns como a outros que a direita eacute a esquerda e a esquerda

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eacute a direita Eacute exactamente isto e algo do mesmo geacutenero que as oacuterbitas sofrem violentamente sempre que por acaso encontram algum elemento do exterior quer seja da espeacutecie do Mesmo quer seja da do Outro atribuem ao Mesmo e ao Outro designaccedilotildees contraacuterias agrave verdade tornando-se mentirosas e dementes visto que nenhuma das oacuterbitas que haacute nelas governa ou orienta Poreacutem quando nelas recaem certas sensaccedilotildees vindas do exterior143 arrastando consigo todo o invoacutelucro da alma as oacuterbitas aparentam estar no comando quando satildeo elas as comandadas Eacute por causa de todas estas impressotildees que agora e tal como na sua origem a alma eacute primeiro gerada sem intelecto144 cada vez que eacute aprisionada num corpo mortal Mas logo que diminui o fluxo do que alimenta e faz crescer as oacuterbitas retomam a acalmia e seguem o caminho que lhes eacute proacuteprio e vatildeo adquirindo maior estabilidade com o passar do tempo entatildeo as oacuterbitas de cada um dos ciacuterculos que seguem a sua trajectoacuteria natural acertam-se atribuindo correctamente as designaccedilotildees de Outro e de Mesmo e acabam por tornar racional145 quem os possui Se depois algum alimento correcto servir de complemento agrave educaccedilatildeo este tornar-se-aacute completamente perfeito e saudaacutevel pois escapou agrave doenccedila mais grave146 Mas se for negligente levando ao longo da vida uma existecircncia desequilibrada iraacute novamente para o Hades em estado de imperfeiccedilatildeo

143 Isto eacute provocadas por uma impressatildeo Cf supra n 140144 anous145 emphrocircn146 Isto eacute a ignoracircncia (cf supra 44a infra 86b 88b)

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e demente Isto acontece numa altura posterior147 mas no que respeita ao que temos agora diante de noacutes eacute necessaacuterio empreendermos uma explicaccedilatildeo mais apurada e quanto aos assuntos anteriores ndash a geraccedilatildeo de cada parte dos corpos o que respeita agrave alma o que concerne agraves causas e agrave providecircncia dos deuses pelas quais foi gerada ndash temos que os descrever apoiando-nos no que eacute mais verosiacutemil seguindo o nosso caminho deste modo e de acordo com estas prerrogativas

Agrave imagem da figura do universo que eacute esfeacuterica as divindades prenderam as oacuterbitas divinas que satildeo duas num corpo esfeacuterico este a que chamamos cabeccedila que eacute a parte mais divina e domina todas as outras partes que haacute em noacutes a ela os deuses entregaram todo o corpo como servo ao qual a juntaram percebendo que tomaria parte em todos os movimentos e em tudo quanto ele tivesse Para que natildeo rolasse sobre a terra que tem altos e depressotildees de todo o tipo e natildeo tivesse dificuldade em transpor umas e sair de outras deram-lhe este veiacuteculo para faacutecil deslocaccedilatildeo daiacute que o corpo seja comprido e tenha por natureza quatro membros extensiacuteveis e flexiacuteveis fabricados pelo deus para a deslocaccedilatildeo Recorrendo a eles para se apoiar e se agarrar era capaz de se deslocar por todos os locais enquanto transportava no topo a morada daquilo que em noacutes eacute mais divino e sagrado Foi por este motivo e deste modo que a todos foram anexadas pernas e matildeos

Considerando que a parte da frente eacute mais nobre e proacutepria para governar do que a de traacutes os deuses

147 Cf infra 87b 89d

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deram-nos a capacidade de caminhar melhor nesse sentido Portanto era preciso que a parte da frente do corpo humano fosse distintiva e dissemelhante Foi por isso que em primeiro lugar estabeleceram neste lado da parte exterior da cabeccedila o siacutetio do rosto e em seguida firmaram os instrumentos relacionados com todas as capacidades de providecircncia da alma e estabeleceram que de acordo com a natureza seria na parte anterior que ficariam situados os oacutergatildeos que tomam parte na governaccedilatildeo

Entre os instrumentos fabricaram em primeiro lugar os olhos portadores da luz tendo-os ali fixado pela seguinte razatildeo essa espeacutecie de fogo que natildeo arde antes oferece uma luz suave os deuses engendraram-no de modo a que a cada dia se gerasse um corpo aparentado O fogo puro que haacute dentro de noacutes irmatildeo do outro fizeram com que ele corresse pelos nossos olhos com suavidade e de modo contiacutenuo pelo que comprimiram ao maacuteximo o centro dos olhos de tal forma que sustivesse a outra espeacutecie mais espessa na sua totalidade e filtrasse apenas esta espeacutecie pura Deste modo quando a luz do dia cerca o fluxo da visatildeo o semelhante recai sobre o semelhante tornam-se compactos unindo-se e conciliando-se num soacute corpo ao longo do eixo da visatildeo o que acontece onde quer que aquele fogo que sai do interior contacte com o que vem do exterior Assim gera-se uma homogeneidade de impressotildees pois o todo eacute muito semelhante se esse todo tocar em algo ou se algo tocar nele distribui os seus movimentos por todo o corpo ateacute agrave alma e produz a sensaccedilatildeo a que

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noacutes chamamos ldquoverrdquo Quando o fogo se afasta ao cair da noite separa-se do fogo de que eacute congeacutenere148 por cair sobre algo que lhe eacute dissemelhante ele altera-se e extingue-se pois a sua natureza natildeo eacute congeacutenere agrave do ar que o rodeia jaacute que este natildeo tem fogo Entatildeo a visatildeo acaba e gera-se o convite ao sono De facto quando se cerra a protecccedilatildeo que os deuses engendraram para a visatildeo ndash as paacutelpebras ndash essa protecccedilatildeo susteacutem o poder do fogo interno Este dispersa-se e acalma os movimentos do interior Uma vez acalmados gera-se o sossego e uma vez gerado um sossego profundo abate-se um sono com poucos sonhos mas quando restam alguns movimentos fortes conforme a sua natureza e os locais onde ficam produzem no interior simulacros que se assemelham quanto agrave natureza e ao nuacutemero ao exterior e que seratildeo recordados ao acordar Assim jaacute natildeo eacute difiacutecil perceber a formaccedilatildeo de imagens em espelhos e em todas as superfiacutecies reflectoras e lisas Por causa da relaccedilatildeo reciacuteproca que o fogo interior e o fogo exterior mantecircm entre si cada vez que um deles encontra uma superfiacutecie lisa mudando constantemente de forma todas estas imagens aparecem por necessidade graccedilas agrave conjunccedilatildeo entre o fogo que circunda o rosto e o fogo que circunda a visatildeo quando se deparam com uma superfiacutecie lisa e brilhante Aquilo que estaacute agrave direita aparece agrave esquerda porque eacute com as partes contraacuterias da visatildeo que as partes contraacuterias do fogo exterior estabelecem contacto em oposiccedilatildeo ao que habitualmente acontece quando chocam entre si Pelo contraacuterio a direita estaacute agrave direita e

148 sungenecircs

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a esquerda agrave esquerda quando a luz muda de direcccedilatildeo por se fundir com o objecto com que se funde o que acontece sempre que a superfiacutecie lisa dos espelhos por adquirir uma saliecircncia de um lado e de outro empurra para o lado esquerdo da visatildeo a luz que vem do lado direito e vice-versa Mas se o espelho for redondo transversalmente em relaccedilatildeo ao rosto faraacute com que tudo apareccedila invertido porque empurra para cima a luz que vem de baixo e para baixo a que vem de cima

Todas estas satildeo causas acessoacuterias149 que um deus utiliza como auxiliares para cumprir o que lhe compete conforme pode a ideia do melhor150 No entanto a maioria considera que natildeo satildeo causas acessoacuterias mas sim as causas de tudo visto que produzem o arrefecimento e o aquecimento a solidificaccedilatildeo e a fusatildeo e efeitos desse tipo Mas natildeo eacute possiacutevel que tais causas possuam razatildeo ou intelecto151 em relaccedilatildeo ao que quer que seja Temos que dizer que entre todos os seres o uacutenico ao qual eacute adequado possuir intelecto eacute a alma152 ndash pois esta eacute invisiacutevel enquanto que o fogo a aacutegua a terra e o ar foram todos gerados como corpos visiacuteveis ndash e que o amante da intelecccedilatildeo153 e do saber154 persegue por necessidade as causas primeiras do que na natureza

149 synaitiai150 tecircn you aristou kata to dynaton idean apotelocircn Eacute bastante

evidente a orientaccedilatildeo teleoloacutegica da acccedilatildeo demiuacutergica o mundo eacute criado para o bem

151 logon de oudena oude noun152 Sobre a alma como uacutenica sede possiacutevel do nous vide supra

n 115153 Sobre este sentido particular de nous vide supra n 114154 epistecircmecirc

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eacute racional aquelas que satildeo movimentadas por outros seres e que por necessidade transmitem o movimento a outras essas satildeo causas secundaacuterias Tambeacutem noacutes devemos fazer isso devemos falar de ambos os geacuteneros de causas distinguindo as que fabricam coisas belas e boas com o intelecto das que isentas de intelecccedilatildeo155 cada vez que produzem algo o fazem ao acaso e sem ordem156 Coube-nos entatildeo falar das causas acessoacuterias pelas quais os olhos obtiveram o poder que agora tecircm Da obra mais importante do ponto de vista da sua utilidade razatildeo pela qual o deus no-la ofereceu eacute sobre ela que noacutes devemos falar

Em meu entender a visatildeo foi gerada como causa de maior utilidade para noacutes visto que nenhum dos discursos que temos vindo a fazer sobre o universo poderia de algum modo ser proferido sem termos visto os astros o Sol e o ceacuteu Foi o facto de vermos o dia e a noite os meses o circuito dos anos os equinoacutecios e os solstiacutecios que deu origem aos nuacutemeros que nos proporcionam a noccedilatildeo de tempo e a investigaccedilatildeo sobre a natureza do universo A partir deles foi-nos aberto o caminho da filosofia um bem maior do que qualquer outro que veio ou possa vir alguma vez para a espeacutecie mortal oferecido pelos deuses Afirmo que este foi o maior bem facultado pelos olhos Por que razatildeo havemos de celebrar os outros que satildeo inferiores a estes pelos quais soacute um natildeo-filoacutesofo choraria se ficasse cego com lamentos em vatildeo Quanto a noacutes declaremos que

155 phronecircsis156 to tychon atakton

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esse bem nos foi dado pelo seguinte motivo o deus descobriu e concedeu-nos a visatildeo em nosso favor para que ao contemplar as oacuterbitas do Intelecto no ceacuteu as aplicaacutessemos agraves oacuterbitas da nossa actividade intelectiva157 que satildeo congeacuteneres daquele ainda que as nossas tenham perturbaccedilotildees e as deles sejam imperturbaacuteveis Soacute depois de termos analisado aqueles movimentos calculando-os correctamente em conformidade com o que se passa na natureza e de termos imitado esses movimentos do deus absolutamente impassiacuteveis de errar podemos estabilizar os que em noacutes satildeo errantes Quanto agrave voz e agrave audiccedilatildeo o raciociacutenio eacute mais uma vez o mesmo os deuses concederam-no-las pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins Na verdade foi com o mesmo fim que nos foi atribuiacuteda a fala que tem um papel fundamental na nossa interacccedilatildeo tudo quanto eacute uacutetil agrave voz no contexto da muacutesica isso nos foi dado por causa da harmonia da audiccedilatildeo Com efeito para aquele que se relaciona com as Musas com o intelecto a harmonia feita de movimentos congeacuteneres das oacuterbitas da nossa alma natildeo eacute um instrumento para um prazer irracional ndash como agora se julga ser158 ndash mas em virtude de as oacuterbitas da nossa alma serem desprovidas de harmonia desde a geraccedilatildeo aquela foi concedida pelas Musas como aliado da alma para a pocircr em ordem e em concordacircncia159 E

157 dianoecircsis158 A criacutetica ao senso-comum que concebe a muacutesica unicamente

como fonte de prazer eacute tambeacutem referida nas Leis (656c) De igual modo pensa Aristoacuteteles o qual considera que soacute acidentalmente a muacutesica pode ser causadora de prazer (85 Poliacutetica 1339b11-1340b19)

159 Sobre a muacutesica como agente harmonizador da alma vide

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o ritmo por a maioria de noacutes ser privada de medida e falta de graccedila foi-nos concedido como auxiliar pelas mesmas razotildees e com os mesmos fins

O que acabaacutemos de passar em revista agrave excepccedilatildeo de pequenos aspectos ilustra o que foi fabricado pelo Intelecto Eacute necessaacuterio que justaponhamos ao discurso aquilo que foi gerado pela Necessidade160 De facto a geraccedilatildeo deste mundo resulta de uma mistura engendrada por uma combinaccedilatildeo de Necessidade e Intelecto Mas como o Intelecto dominava a Necessidade persuadindo-a a orientar para o melhor a maioria das coisas devenientes foi deste modo (atraveacutes da cedecircncia da Necessidade a uma persuasatildeo racional161) que o universo foi constituiacutedo desde a sua origem Portanto se algueacutem quiser dizer como foi realmente gerado de acordo com estes pressupostos teraacute que incluir tambeacutem a espeacutecie da causa errante162 tanto quanto a sua natureza o admita163 Portanto recuando um pouco atraacutes

Repuacuteblica 530d-532b160 Aleacutem da intervenccedilatildeo do Intelecto ndash racional matematicamente

estruturada e teleoloacutegica ndash o mundo sensiacutevel eacute formado tambeacutem com o contributo da Necessidade um princiacutepio de causalidade marcado pelo acidental casual material e exclusivamente mecacircnico Sobre este assunto vide Introduccedilatildeo pp 34-37

161 hypo peithous emphronos162 to tecircs planocircmenecircs eidos aitias163 ecirc pherein pephyken Passagem bastante obscura e por isso

muitiacutessimo discutida A principal dificuldade reside no sentido de pherein que pode ser traduzido tanto por ldquomovimentar pocircr em movimentordquo (Cornford 1937 p 160 n 2 Brisson 1998 p 145) como por ldquopermitir admitirrdquo (Taylor 1928 p 304) Pensamos que a segunda opccedilatildeo eacute mais acertada na medida em que neste paraacutegrafo se insiste bastante nas limitaccedilotildees epistemoloacutegicas aleacutem de que em todo ele natildeo satildeo mencionados os movimentos

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teremos que comeccedilar do iniacutecio tomando para o mesmo assunto um outro ponto de partida anterior que lhe seja adequado tal como fizemos em relaccedilatildeo aos assuntos que abordaacutemos ateacute agora Antes da geraccedilatildeo do ceacuteu teremos que rever a natureza do fogo do ar da aacutegua e da terra bem como os comportamentos que tinham antes disso na verdade ateacute agora ningueacutem revelou a sua origem mas discursamos como se nos dirigiacutessemos a quem soubesse o que possa ser o fogo e cada um dos outros elementos dispondo-os como princiacutepios e164 letras do universo Ora eacute prudente que com um miacutenimo de verosimilhanccedila nem sequer agraves siacutelabas sejam comparados por quem tenha um pouco de inteligecircncia165 Quanto a noacutes agora diremos o seguinte seja qual for o que achamos sobre o princiacutepio ou princiacutepios do universo conveacutem que natildeo nos pronunciemos sobre isso agora por nenhum outro motivo que natildeo por ser difiacutecil expressar as nossas opiniotildees de acordo com o tipo de exposiccedilatildeo que nos estaacute disponiacutevel nem voacutes esperais que seja da minha obrigaccedilatildeo dizecirc-lo nem eu proacuteprio me tentarei convencer de que eu seja capaz de me atirar a uma tarefa dessa natureza Mas prestando atenccedilatildeo ao que foi dito no iniacutecio e ao

164 O texto de Burnet natildeo regista qualquer indiacutecio de coordenaccedilatildeo entre ldquoprinciacutepiosrdquo (archecirc) e ldquoletrasrdquo (stoicheion) Seguimos a emenda de West (1977 p 301) que introduz kai entre as duas palavras

165 Mais que provaacutevel reacccedilatildeo agrave explicaccedilatildeo atomista que compara os aacutetomos agraves letras que formam as palavras (DK 68A38) Segundo Platatildeo os quatro elementos satildeo soacutelidos que obedecem a figuras e estas a triacircngulos daiacute que as letras sejam sim os triacircngulos (54d) Dentro deste quadro metafoacuterico as siacutelabas seriam as figuras e os elementos seriam as palavras Sobre esta questatildeo vide Hershbell (1974 pp 153-sqq)

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poder dos discursos verosiacutemeis voltando ao princiacutepio tentarei abordar de forma natildeo menos verosiacutemil mas ateacute mais cada pormenor e tambeacutem a totalidade do que dissemos Voltando agora ao princiacutepio dos discursos invoquemos o deus para que nos assista novamente e a partir de uma exposiccedilatildeo estranha e inusitada166 nos guie numa conclusatildeo verosiacutemil

Assim no que respeita ao universo o novo ponto de partida deve ser mais diferenciado do que anteriormente Na verdade noacutes tiacutenhamos distinguido dois tipos de ser mas agora temos que estabelecer um terceiro de outra espeacutecie167 Decerto que aqueles dois eram suficientes para o que expusemos anteriormente um foi proposto como sendo o tipo do arqueacutetipo inteligiacutevel e que eacute sempre imutaacutevel168 e o segundo como uma imitaccedilatildeo do arqueacutetipo sujeito ao devir169 e visiacutevel Nesse momento natildeo distinguimos o terceiro por considerarmos que os dois seriam suficientes Mas agora o discurso parece obrigar-nos a empreender uma exposiccedilatildeo que esclareccedila um tipo difiacutecil e obscuro Que propriedade temos noacutes de supor que ele teraacute de acordo com a natureza Seraacute sobretudo a seguinte ser o receptaacuteculo e por assim dizer a ama de tudo quanto deveacutem Falaacutemos agora com verdade mas eacute forccediloso que digamos algo mais expliacutecito acerca dele o que poreacutem eacute difiacutecil pelo facto de ser inevitaacutevel esclarecer algumas

166 ex atopou kai aecircthous diecircgecircseocircs167 Sobre o terceiro princiacutepio ontoloacutegico vide Introduccedilatildeo pp

XXX168 paradeigmatos eidos () noecircton kai aei kata tauta on169 mimecircma de paradeigmatos deuteron genesin echon

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questotildees preacutevias relacionadas com o fogo e com os outros elementos aleacutem do fogo Destes elementos eacute difiacutecil dizer que qualidade cada um deve ter para lhe chamarmos ldquoaacuteguardquo em vez de ldquofogordquo ou que qualidade deve ter para lhe chamarmos qualquer outra coisa em vez de todas ao mesmo tempo ou cada uma em especial e deste modo utilizar um discurso fidedigno e soacutelido Como de que modo e com que dificuldade razoavelmente superada poderemos noacutes dizer uma coisa dessas

Primeiro em relaccedilatildeo agravequilo a que chamamos aacutegua quando congela parece-nos estar a olhar para algo que se tornou pedra ou terra mas quando derrete e se dispersa esta torna-se bafo e ar o ar quando eacute queimado torna-se fogo e inversamente o fogo quando se contrai e se extingue regressa agrave forma do ar o ar novamente concentrado e contraiacutedo torna-se nuvem e nevoeiro mas a partir destes estados se for ainda mais comprimido torna-se aacutegua corrente e de aacutegua torna-se novamente terra e pedras e deste modo como nos parece datildeo geraccedilatildeo uns aos outros de forma ciacuteclica Por isso visto que nenhum de todos eles nos aparece do mesmo modo qual deles podemos afirmar com firmeza que eacute uma coisa seja ela qual for e natildeo outra sem nos sentirmos envergonhados Natildeo eacute viaacutevel mas para os estabelecer da forma mais segura possiacutevel conveacutem falar sobre eles do seguinte modo sobre o que por vezes vemos tornar-se em outra coisa como o fogo natildeo podemos dizer que fogo eacute ldquoistordquo mas sim que eacute ldquoaquilo que em determinadas circunstacircncias estaacute

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assimrdquo170 nem que aacutegua eacute ldquoistordquo mas sim ldquoaquilo que estaacute sempre assimrdquo nem nenhuma outra coisa como se algum tivesse algo de estaacutevel usando palavras como ldquoistordquo ou ldquoaquilordquo para dar a conhecer tais realidades quando cremos estar a esclarecer alguma coisa Eacute que eles escapam ao ldquoistordquo ao ldquoaquilordquo e ao ldquopara istordquo e natildeo os admitem nem qualquer outra designaccedilatildeo que os apresente como realidades estaacuteveis Mas natildeo se deve falar delas como realidades distintas ndash antes sim chamar ldquoo que estaacute assimrdquo ao que perdura sempre igual em todos os casos e em cada um em particular chamar ldquofogordquo ao que permanece como tal apesar do que quer que seja e assim sucessivamente a tudo quanto devenha Mas aquilo em que cada coisa deveniente aparece171 e daiacute torna a desaparecer soacute isso referiremos usando as designaccedilotildees ldquoistordquo e ldquoaquilordquo enquanto que o que for de um certo tipo seja quente seja branco ou seja qualquer um dos seus opostos bem como tudo o que deles se origine nenhum deles o referiremos deste modo

Mas esforcemo-nos por explicar novamente este assunto de forma ainda mais clara Se algueacutem forjasse todas as formas possiacuteveis de ouro e nunca cessasse de as transformar a todas elas em outras e lhe fosse mostrada uma de entre elas e lhe fosse perguntado o que era com toda a certeza responderia em abono da

170 A oposiccedilatildeo entre ldquoistordquo (touto) e ldquoque estaacute assimrdquo (to toiouton) pretende esclarecer a diferenccedila constitutiva entre a chocircra que natildeo se altera e por isso merece a designaccedilatildeo touto e o que nela entra a que por estar em constante mutaccedilatildeo soacute poderemos chamar to toiouton A criacutetica de Soacutecrates agrave teoria do fluxo no Teeteto (157b) eacute formulada em termos semelhantes

171 en ocirc de engignomena aei ekasta autocircn phantazetai

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verdade que era ouro No entanto de modo algum se pode dizer que o triacircngulo e quantas outras figuras que foram plasmadas no ouro satildeo ldquoistordquo pois logo que lhes eacute aplicado esse termo comeccedilam a sofrer mudanccedilas Contentemo-nos se todas elas consentirem receber com alguma seguranccedila a designaccedilatildeo ldquoaquilo que estaacute assimrdquo O mesmo discurso deve ser feito acerca da natureza que recebe todos os corpos A ela se haacute-de designar sempre do mesmo modo pois ela natildeo perde de modo algum as suas propriedades recebe sempre tudo e nunca em circunstacircncia alguma assume uma forma que seja semelhante a algo que nela entra jaz por natureza como um suporte de impressatildeo para todas as coisas sendo alterada e moldada pelo que laacute entra e por tal motivo parece ora uma forma ora outra mas o que nela entra e dela sai satildeo sempre imitaccedilotildees do que eacute sempre172 impressas nela de um modo misterioso e admiraacutevel que investigaremos posteriormente Por enquanto eacute necessaacuterio que tenhamos em mente que haacute trecircs geacuteneros aquilo que deveacutem aquilo em que algo deveacutem e aquilo agrave semelhanccedila do qual se cria o que deveacutem173

Eacute adequado assemelhar o receptaacuteculo a uma matildee o ponto de partida a um pai e a natureza do que nasce entre eles a um filho e compreender ainda que se a marca de impressatildeo for diversificada e se apresentar agrave vista essa diversidade em todos os aspectos o suporte que recebe o que vai ser impresso natildeo estaria bem preparado se natildeo fosse completamente amorfo e

172 tocircn ontocircn aei mimecircmata173 to men gignomenon to drsquoen ocirc gignetai to drsquoen ocirc gignetai to

drsquohothen aphomoioumenon phyetai to gignomenon

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desprovido de todos aqueles tipos que esteja destinado a receber Se o receptaacuteculo fosse semelhante a alguma das figuras que entra nele cada vez que entrasse alguma figura de natureza contraacuteria ou heterogeacutenea assumiria mal a sua semelhanccedila na medida em que estava a exibir a sua proacutepria aparecircncia Por isso eacute necessaacuterio que aquele que recebe em si todos os geacuteneros esteja desprovido de todas as formas Eacute o que se passa de modo idecircntico com os oacuteleos que satildeo perfumados artificialmente Para fabricaacute-los em primeiro lugar eacute necessaacuterio que se comece por tornar o mais inodoros possiacutevel os liacutequidos que vatildeo receber as fragracircncias Eacute como aqueles que se dedicam a modelar figuras em superfiacutecies moldaacuteveis natildeo permitem que fique visiacutevel figura alguma que jaacute laacute estivesse nivelando-as de antematildeo para que fiquem o mais lisas que lhes seja possiacutevel O mesmo se passa com aquilo que deve receber vaacuterias vezes e de forma adequada e bela as representaccedilotildees de todos os seres eternos eacute-lhe conveniente por natureza que seja desprovido de todas as formas Eacute por isso que dizemos que a matildee do devir do que eacute visiacutevel e de todo sensiacutevel que eacute o receptaacuteculo natildeo eacute terra nem ar nem fogo nem aacutegua nem nada que provenha dos elementos nem nada deveniente a partir deles Mas se dissermos que ela eacute uma certa espeacutecie invisiacutevel e amorfa174 que tudo recebe e que participa do inteligiacutevel de um modo imperscrutaacutevel e difiacutecil de compreender175 natildeo estaremos a mentir E visto que a partir do que foi dito eacute possiacutevel alcanccedilar a sua natureza

174 anoraton eidos ti kai amorphon175 metalambanon de aporocirctata pecirc tou noecirctou kai dysalocirctotaton

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eis o modo mais correcto de falar dela a sua parte que estaacute a arder aparece sempre como fogo a que estaacute huacutemida aparece como aacutegua e a que aparece como terra e como ar faacute-lo de acordo com as imitaccedilotildees que recebe de cada um

Tendo noacutes estabelecido estes limites mais precisos no nosso discurso temos que tecer consideraccedilotildees sobre esses assuntos Seraacute que algum fogo eacute em si e quanto a todas as coisas de que sempre falamos seraacute que alguma delas eacute em si176 ou seraacute aquilo que vemos e tudo o resto que sentimos atraveacutes do corpo a uacutenica coisa que eacute real e natildeo existe outra aleacutem dessa de modo nenhum e em nenhuma circunstacircncia mas seraacute em vatildeo cada vez que dizemos que haacute uma Ideia inteligiacutevel177 de cada coisa natildeo sendo tudo isto nada senatildeo palavras Por um lado natildeo nos eacute permitido deixar a questatildeo que temos agrave nossa frente por julgar e por decidir pois merece que o faccedilamos nem abandonaacute-la afirmando com certeza que eacute assim mas por outro lado natildeo podemos inserir um longo discurso acessoacuterio ao lado de outro que jaacute eacute longo Poreacutem se ao estipularmos um limite focaacutessemos aspectos decisivos em pouco tempo seria extremamente oportuno No que me diz respeito eacute esse o sentido do meu voto

Se a intelecccedilatildeo178 e a opiniatildeo verdadeira satildeo dois geacuteneros pois tecircm em si modos de existir independentes teremos Ideias que natildeo podem por noacutes sentidas

176 kathrsquoauta onta Esta mesma foacutermula eacute usada no Feacutedon (66a) tambeacutem para caracterizar as Ideias

177 eidos noecircton178 nous Sobre este sentido do termo vide supra n XXX

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mas somente inteligidas179 Mas se como a alguns parece a opiniatildeo verdadeira natildeo difere em nada da intelecccedilatildeo devemos estabelecer que tudo quanto eacute apreendido pelos sentidos do nosso corpo eacute o que de mais seguro existe Ainda assim temos que afirmar que se trata de duas coisas distintas pois eles satildeo gerados separadamente e tecircm uma existecircncia dissemelhante um deles eacute gerado em noacutes atraveacutes da aprendizagem e o outro eacute-o pela persuasatildeo180 Aleacutem disso o primeiro eacute sempre acompanhado de uma justificaccedilatildeo verdadeira enquanto que o segundo eacute desprovido de justificaccedilatildeo181 Um natildeo se move pela persuasatildeo enquanto que o outro estaacute aberto agrave persuasatildeo Devemos tambeacutem dizer que todos os homens tomam parte em um mas na intelecccedilatildeo soacute tomam parte os deuses e um reduzido tipo de homens182 Sendo assim convenhamos que haacute uma primeira espeacutecie que eacute imutaacutevel natildeo estaacute sujeita ao devir nem agrave destruiccedilatildeo183 que natildeo recebe em si nada vindo de parte alguma nem entra em nada seja o que for natildeo eacute visiacutevel nem de outro modo sensiacutevel e cabe ao pensamento184 examinaacute-la Haacute uma segunda que tem

179 Tal como fora estabelecido na Repuacuteblica (478a-b) se eacute verdade que as faculdades intelectiva e sensiacutevel satildeo distintas tambeacutem os seus objectos hatildeo-de ser distintos

180 Cf Goacutergias 454c-455a Teeteto 200e-201c181 metrsquoalecircthous logou Formulaccedilatildeo aproximada da terceira

definiccedilatildeo de epistecircmecirc do Teeteto (200c9-201d1 meta logou alecircthecirc doxan) difere no facto de associar a verdade agrave justificaccedilatildeo (logos) e natildeo agrave opiniatildeo (doxa) pois que prescinde desta Cf Banquete 202a Feacutedon 76b 97d-99d Meacutenon 97c-98b Repuacuteblica 534b

182 Isto eacute os filoacutesofos183 to kata tauta eidos echon agennecircton kai anocirclethron184 noecircsis

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um nome igual agravequela que eacute sensiacutevel eacute deveniente estaacute sempre em movimento eacute gerada num determinado local para de seguida se dissolver de novo aleacutem de que eacute apreendida pela opiniatildeo e pelos sentidos Haacute um terceiro geacutenero que eacute sempre o do lugar185 natildeo admite destruiccedilatildeo e providencia uma localizaccedilatildeo a tudo quanto pertence ao devir eacute acessiacutevel por meio de um certo raciociacutenio bastardo186 sem recurso aos sentidos a custo crediacutevel Quando olhamos para ele como em sonhos dizemos que eacute inevitaacutevel que tudo quanto eacute seja num determinado local e lhes caiba um determinado lugar e que aquilo que natildeo eacute em nenhum siacutetio da Terra nem no ceacuteu natildeo eacute Todas estas coisas e outras que satildeo irmatildes daquelas que pertencem agrave natureza do que eacute privado de sono e eacute verdadeiro por causa de estarmos a sonhar natildeo as conseguimos definir enquanto estamos acordados nem dizer a verdade Eacute que uma imagem que natildeo tem em si mesma nada daquilo a partir do qual se gerou (eacute um simulacro que estaacute sempre a fugir de outra coisa) assenta por estes motivos o seu devir numa outra coisa aderindo assim a uma existecircncia qualquer que ela seja caso contraacuterio ela natildeo seraacute absolutamente nada No que diz respeito ao que realmente eacute o discurso verdadeiro atraveacutes da exactidatildeo vai em seu auxiacutelio porque enquanto alguma coisa for uma outra e essa for outra ainda nenhuma das duas poderaacute nascer na outra pois

185 chocircra A traduccedilatildeo deste termo seraacute sempre insuficiente em virtude das dificuldades hermenecircuticas que esta secccedilatildeo levanta A versatildeo por ldquolugarrdquo deve ser entendida agrave luz do que foi dito sobre a chocircra na Introduccedilatildeo pp 42-44

186 logismocirc tini nothocirc

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uma coisa natildeo pode ser uma soacute e a mesma e ao mesmo tempo ser duas diversas

Esta eacute portanto a explicaccedilatildeo que vai ao encontro do meu voto concedamos uma descriccedilatildeo em jeito de siacutentese o ser o lugar e o devir187 satildeo trecircs coisas distintas de trecircs maneiras diversas e anteriores agrave geraccedilatildeo do ceacuteu A ama do devir188 por ficar humedecida e ardente e receber as formas da terra e do ar e por sofrer todas as impressotildees que as acompanham aparece agrave visatildeo sob muacuteltiplas feiccedilotildees mas por causa de estar plena de propriedades que natildeo satildeo semelhantes nem equilibradas natildeo estando ela proacutepria nada equilibrada a balanccedilar irregularmente para todos os lados eacute sacudida pelos elementos e ao ser movimentada ela proacutepria novamente os sacode Sendo os elementos assim postos em movimento separam-se por serem movimentados de um lado para o outro tal como acontece com as sementes quando satildeo agitadas e peneiradas por meio de joeiras ou de outros instrumentos usados para a depuraccedilatildeo dos cereais as partes densas e pesadas vatildeo para um lado enquanto que as esparsas e leves satildeo transportadas e assentam noutro local Assim os quatro elementos satildeo ao mesmo tempo sacudidos pelo receptaacuteculo Ele proacuteprio produzindo um movimento semelhante ao de um instrumento para sacudir separou ao maacuteximo esses elementos dissemelhantes dos outros e comprimiu o mais que pocircde os semelhantes num soacute por isso uns ocuparam um lugar e os outros outro ainda antes de o universo ser organizado e gerado a partir deles

187 on te kai chocircran kai genesin188 Outra das designaccedilotildees para chocircra

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Na verdade antes de isto acontecer todos os elementos estavam privados de proporccedilatildeo e de medida na altura em que foi empreendida a organizaccedilatildeo do universo primeiro o fogo depois a aacutegua a terra e o ar ainda que contivessem certos indiacutecios de como satildeo estavam exactamente num estado em que se espera que esteja tudo aquilo de que um deus estaacute ausente A partir deste modo e desta condiccedilatildeo comeccedilaram a ser configurados atraveacutes de formas e de nuacutemeros Como eacute possiacutevel que o deus os tenha composto de forma tatildeo bela e excelente a partir de elementos que natildeo satildeo assim isto seraacute antes de tudo e como sempre o que comeccedilaremos por explicar Agora devo entatildeo tentar esclarecer para voacutes a ordenaccedilatildeo e a geacutenese destes elementos por meio de um discurso insoacutelito mas como graccedilas agrave educaccedilatildeo partilhais dos meacutetodos pelos quais se demonstra o que eacute necessaacuterio ser explicado voacutes ireis acompanhar-me

Em primeiro lugar que o fogo a terra a aacutegua e o ar satildeo corpos isso eacute claro para todos tudo o que eacute da espeacutecie do corpo tem profundidade Mas a profundidade envolve necessariamente e por natureza a superfiacutecie e uma superfiacutecie plana eacute composta a partir de triacircngulos Todos os triacircngulos tecircm origem em dois triacircngulos cada um dos quais com um acircngulo recto e com os outros agudos Destes um tem em cada lado uma parte do acircngulo recto dividido em lados iguais enquanto que o outro tem partes desiguais do acircngulo recto dividas por lados desiguais Este eacute o princiacutepio que supomos aplicar-se ao fogo e aos outros corpos ao seguirmos uma explicaccedilatildeo que combina necessidade e

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verosimilhanccedila quanto aos princiacutepios ainda anteriores agravequeles conhece-os o deus e aqueles de quem entre os homens ele for amigo Eacute necessaacuterio que se diga entatildeo como satildeo esses quatro corpos mais belos dissemelhantes uns em relaccedilatildeo aos outros e que tecircm a capacidade de se gerarem uns aos outros se porventura forem dissolvidos Se o conseguirmos obteremos a verdade sobre a geraccedilatildeo da terra do fogo e dos elementos intermediaacuterios que estatildeo entre eles segundo a proporccedilatildeo E natildeo aceitaremos a ningueacutem a seguinte argumentaccedilatildeo que existem e podem ser observados corpos mais belos do que estes cada um correspondendo a um soacute geacutenero Devemos portanto empenhar-nos em estabelecer uma relaccedilatildeo harmoacutenica entre os quatro geacuteneros de corpos que se distinguem pela beleza e demonstrar que compreendemos satisfatoriamente a sua natureza

Dos dois triacircngulos o isoacutesceles encerra uma soacute espeacutecie ao passo que o escaleno encerra uma infinidade delas entre esta infinidade temos que escolher a mais bela se quisermos comeccedilar pelo siacutetio certo Se algueacutem conseguir referir uma mais bela que tenha escolhido em funccedilatildeo da sua composiccedilatildeo seraacute ele quem prevalece natildeo como antagonista mas sim como aliado Estabeleccedilamos portanto que de entre os vaacuterios triacircngulos haacute um que eacute o mais belo e deixemos de parte os outros

Trata-se daquele a partir do qual se pode constituir um triacircngulo equilaacutetero Dizer por que razatildeo eacute assim exigiria um discurso muito longo poreacutem a quem refute esta afirmaccedilatildeo e descubra que natildeo eacute deste modo seraacute atribuiacutedo o preacutemio com amizade Seleccionemos entatildeo

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dois triacircngulos a partir dos quais o fogo e os outros corpos foram engendrados um eacute isoacutesceles e quanto ao outro o seu lado maior seraacute sempre o quadrado do triplo do mais pequeno189 Agora devemos esclarecer melhor o que anteriormente dissemos de forma nada clara Parecia-nos que os quatro geacuteneros de corpos tinham sido todos gerados uns pelos outros mas isso eacute uma concepccedilatildeo que natildeo estaacute correcta pois em boa verdade os quatro geacuteneros satildeo gerados a partir dos triacircngulos que elegecircramos trecircs dos quais a partir do uacutenico que tem os lados desiguais e o quarto foi o uacutenico harmonicamente constituiacutedo a partir do triacircngulo isoacutesceles Portanto natildeo eacute possiacutevel que todos eles se decomponham uns nos outros que poucos grandes se gerem a partir de muitos pequenos e vice-versa Todavia trecircs podem visto que todos eles provecircm de um soacute triacircngulo se os maiores forem decompostos muitos pequenos seratildeo compostos a partir deles recebendo o aspecto que eacute adequado a cada um e quando um grande nuacutemero de pequenos se difunde pelos triacircngulos sendo gerado um nuacutemero uacutenico num uacutenico todo ele produziraacute uma outra forma uacutenica e grande Eis o que fica dito acerca da sua geraccedilatildeo reciacuteproca O tipo de forma em que cada um deles foi gerado e a partir de que combinaccedilotildees numeacutericas constituiraacute o objecto da exposiccedilatildeo que se segue

Comeccedilaremos pela primeira espeacutecie constituiacuteda como a mais pequena o seu elemento eacute o triacircngulo cujo comprimento da sua hipotenusa eacute o dobro do do lado

189 A noccedilatildeo de ldquoquadradordquo isto eacute x2 estaacute contida no termo dynamis tambeacutem com este sentido aparece no Teeteto (147d)

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mais pequeno190 Se justapusermos dois destes triacircngulos pela sua diagonal fazendo isto trecircs vezes fixando no mesmo ponto ndash que serviraacute de centro ndash as diagonais e os lados mais pequenos seraacute gerado um uacutenico triacircngulo equilaacutetero a partir de um nuacutemero de seis triacircngulos Quatro desses triacircngulos constituiacutedos por quatro lados iguais unidos a trecircs acircngulos planos191 formam um uacutenico acircngulo soacutelido192 que eacute gerado imediatamente a seguir ao mais obtuso dos acircngulos planos Uma vez formados quatro acircngulos desse tipo estaacute composta a primeira figura soacutelida193 que divide um todo esfeacuterico em partes iguais e semelhantes A segunda figura eacute formada a partir dos mesmos triacircngulos combinando-se oito triacircngulos equilaacuteteros que produzem um soacute acircngulo soacutelido a partir de quatro acircngulos planos e quando se geram seis acircngulos deste tipo o segundo corpo194 estaacute deste modo terminado A terceira figura eacute constituiacuteda pela conjunccedilatildeo de cento e vinte triacircngulos elementares e de doze acircngulos soacutelidos cada um dos quais envolvido por cinco triacircngulos planos equilaacuteteros e eacute gerada com

190 Triacircngulo rectacircngulo escaleno191 Isto eacute trecircs acircngulos de 60o192 Acircngulo raso de 180o193 Tetraedro regular (piracircmide) Comeccedila aqui a descriccedilatildeo

da formaccedilatildeo dos cinco soacutelidos elementares que se combinam na esfera final Mais tarde Euclides partiraacute deste passo do Timeu para abordar estas figuras Dedica-lhes todo o Livro XIII onde descreve as suas propriedades e constituiccedilatildeo bem como as caracteriza matematicamente determinando a proporccedilatildeo existente entre cada uma delas e a esfera Conclui que natildeo existe mais nenhum soacutelido regular aleacutem destes

194 Octaedro regular

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vinte bases que satildeo triacircngulos equilaacuteteros195 Engendrados estes soacutelidos o outro triacircngulo elementar foi deixado de parte e o triacircngulo isoacutesceles engendrou a natureza do quarto constituindo quatro triacircngulos que coincidiram no centro os seus acircngulos rectos formando um uacutenico quadrilaacutetero equilateral Quando foram conjugados seis deste tipo produziu oito acircngulos soacutelidos sendo cada um deles constituiacutedo pela harmonia de trecircs acircngulos planos rectos a figura do corpo constituiacutedo foi a do cubo que tem seis faces planas quadrangulares e equilaterais196 Visto que havia ainda uma quinta combinaccedilatildeo197 o deus utilizou-a para pintar animais no universo198

Quem considerar tudo isto de forma adequada pode encontrar dificuldades quanto ao que se deve dizer

195 Icosaedro regular196 Hexaedro regular197 Dodecaedro Esta figura geomeacutetrica constituiacuteda por 12

faces sendo cada uma delas um pentaacutegono (cf Euclides 1128) aproxima-se bastante da forma da esfera Sabendo que no Feacutedon (110b) o formato esfeacuterico da Terra eacute comparado agraves lsquodoze esferasrsquo (uma espeacutecie de bolas feitas com doze pedaccedilos de pele cosidos uns com os outros) e que os siacutembolos do Zodiacuteaco satildeo tambeacutem 12 e representados de forma geometricamente semelhante a relaccedilatildeo parece-nos oacutebvia na verdade Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1003C-D) citando este passo do Timeu diz que a representaccedilatildeo do Zodiacuteaco se deve precisamente a esta relaccedilatildeo

198 Eacute bastante complicado apurar o sentido exacto de diazocircgrapheocirc pois o elemento zocirc- ainda que originalmente siginificasse ldquoanimalrdquo pelo uso passou tambeacutem a ter o sentido de ldquofigurardquo daiacute que este verbo possa tambeacutem significar ldquopintar de vaacuterias coresrdquo Contudo sabendo que o universo visto a olho nu como era observado no tempo de Platatildeo natildeo apresenta quaisquer variaccedilotildees cromaacuteticas e de acordo com o que dissemos na nota anterior pensamos que este sentido de ldquopintar animaisrdquo estaacute relacionado com o Zodiacuteaco maioritariamente formado por animais

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se haacute uma infinidade de mundos ou em nuacutemero limitado Pode considerar que dizer que haacute uma infinidade de universos eacute um parecer de algueacutem que eacute inexperiente num um assunto sobre o qual deveria ser experiente199 mas entatildeo o que eacute adequado dizer em abono da verdade Que haacute soacute um mundo ou que haacute cinco ndash eacute uma questatildeo em que eacute razoaacutevel que possamos ter muita dificuldade Ora bem em nosso parecer de acordo com o discurso verosiacutemil o deus indica que um soacute mundo foi gerado poreacutem outra pessoa ao analisar outros pressupostos teraacute outra opiniatildeo Mas deixemos agora esse assunto e distribuamos os geacuteneros que foram gerados pelo nosso discurso em fogo terra aacutegua e ar Atribuamos agrave terra a forma cuacutebica pois a terra dos quatro elementos eacute o que tem mais dificuldade em mover-se e dos corpos o mais adequado para ser moldado ndash inevitavelmente e com certeza que foi gerado deste modo para que tivesse as bases mais estaacuteveis De entre os triacircngulos que estabelecemos no princiacutepio200 a base de lados iguais eacute mais estaacutevel de acordo com a natureza do que a de lados desiguais e quanto agrave superfiacutecie quadrangular equilateral composta a partir de cada um daqueles201 estaacute assente de um modo necessariamente mais estaacutevel em relaccedilatildeo quer agraves partes quer ao todo do que o triacircngulo equilaacutetero Por isso manteremos a salvo o discurso verosiacutemil se atribuirmos esta forma agrave terra e das que restam a forma mais difiacutecil de movimentar agrave aacutegua a que se movimenta melhor ao

199 Note-se o jogo de palavras provocado entre apeiros (ldquoilimitadordquo) empeiros (ldquoexperienterdquo) e apeiros (ldquoinexperienterdquo)

200 Cf supra 53c-55c201 Triacircngulos rectacircngulo isoacutesceles e escaleno

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fogo e a intermeacutedia ao ar o corpo mais pequeno ao fogo o maior agrave aacutegua e o meacutedio ao ar o que eacute mais agudo ao fogo o segundo mais agudo ao ar e o terceiro agrave aacutegua Considerando todos estes corpos aquele que tem as bases mais pequenas seraacute por natureza necessariamente o que melhor se movimenta pois de todos eles eacute absolutamente o mais pungente e mais agudo e ainda o mais leve pelo facto de ser constituiacutedo por um menor nuacutemero de partes iguais O segundo corpo deveraacute vir em segundo lugar de acordo com estes pressupostos e o terceiro em terceiro Portanto de acordo com o raciociacutenio correcto e verosiacutemil estabeleccedilamos que a figura soacutelida da piracircmide eacute o elemento que gerou o fogo e a sua semente digamos que na ordem de geraccedilatildeo o ar eacute o segundo e a aacutegua o terceiro Eacute necessaacuterio ter em mente que todos os corpos satildeo de tal forma pequenos que tomando cada um deles de acordo com o seu geacutenero nenhum pode ser observado por noacutes por causa da sua pequenez mas soacute satildeo visiacuteveis quando reunidos em grande nuacutemero numa massa consistente E quanto agraves proporccedilotildees que determinam as suas quantidades aos movimentos e agraves outras propriedades em geral eacute loacutegico que o deus tanto quanto a natureza da Necessidade cedeu ao deixar-se persuadir de bom grado harmonizou isto de acordo com a proporccedilatildeo de modo a que em cada caso tudo fosse produzido por ele com precisatildeo

A partir de tudo quanto acabaacutemos de dizer sobre os geacuteneros eis o que deve ter ocorrido de acordo com o maacuteximo de verosimilhanccedila quando a terra encontra o fogo e eacute dividida pelo que nela haacute de cortante pode ser

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arrastada por dissoluccedilatildeo no proacuteprio fogo ou ao deparar-se com uma massa de ar ou de aacutegua ateacute que as suas partes se reencontrem e se harmonizem novamente umas com as outras tornando-se terra outra vez ndash pois jamais pode passar a outra espeacutecie Mas quando a aacutegua eacute dividida pelo fogo ou ateacute pelo ar eacute possiacutevel que decirc origem a um corpo uacutenico constituiacutedo de fogo e a dois de ar a partir da dissoluccedilatildeo de uma partiacutecula de ar os seus segmentos podem dar origem a dois corpos de fogo E por outro lado quando o fogo eacute envolvido em ar em aacutegua ou numa porccedilatildeo de terra posto em movimento pelos elementos que o arrastam entra em conflito com eles eacute castigado e desfeito em pedaccedilos Entatildeo dois corpos de fogo combinam-se num elemento de ar e quando o ar eacute dominado e cortado em pedaccedilos a partir de duas partes e meia uma forma de ar eacute compactada num soacute corpuacutesculo de aacutegua

Mas calculemos novamente estas questotildees do seguinte modo logo que um dos outros elementos ao ser envolvido em fogo e cortado pela agudeza dos seus acircngulos e das suas arestas eacute constituiacutedo na natureza do fogo o corte acaba Eacute que cada geacutenero eacute semelhante e idecircntico a si proacuteprio e natildeo eacute possiacutevel produzir qualquer alteraccedilatildeo num outro que tem uma condiccedilatildeo semelhante agrave sua nem dele sofrer nenhuma mas se se tornar num outro geacutenero haveraacute um mais fraco a combater com um mais forte e natildeo paacutera de ser dissolvido Quando as partiacuteculas mais pequenas e em menor nuacutemero satildeo envolvidas pelas maiores e mais numerosas satildeo dissolvidas e extinguem-se mas se se

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deixarem constituir na forma do elemento dominante param de se extinguir e do fogo eacute gerado ar e do ar eacute gerada aacutegua Todavia se enquanto os corpuacutesculos se estiverem a unir num todo uma massa de outros elementos entrar em conflito com eles natildeo param de se dissolver ateacute que sejam completamente afastados e dissolvidos refugiando-se junto do que eacute seu congeacutenere ou sendo vencidos se convertam numa massa uacutenica semelhante agrave que os dominou e permaneccedilam com ela Decerto que estas impressotildees originam mudanccedilas de lugar eacute que as massas de cada geacutenero estatildeo separadas cada uma no siacutetio que lhe compete em virtude do movimento do receptaacuteculo mas as que por vezes se tornam dissemelhantes de si proacuteprias e semelhantes a outras satildeo levadas por via das agitaccedilotildees para o lugar daquelas a que se tornaram semelhantes

Eis as causas por que foram gerados os corpos primeiros e puros mas quanto ao motivo por que nascerem outros geacuteneros nas suas formas devemos apontar como causa a constituiccedilatildeo dos elementos de cada corpo pois cada uma delas natildeo foi feita desde o princiacutepio de modo a que o seu triacircngulo fosse uacutenico e de um tamanho soacute ndash jaacute que havia uns mais pequenos e outros maiores ndash com um nuacutemero de variaccedilotildees tatildeo grande quanto o de geacuteneros que haacute dentro das formas Por isso eacute que quando esses triacircngulos se misturam entre si ou com outros decorre daiacute uma variedade infinita Essa variedade deve merecer a atenccedilatildeo daqueles que tencionam fazer uso de um discurso verosiacutemil sobre a natureza

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No que respeita ao movimento e ao repouso se natildeo chegarmos a um acordo sobre a forma e em que condiccedilotildees se geram haveraacute vaacuterios impedimentos ao raciociacutenio que se segue Decerto que jaacute se falou sobre este assunto202 mas acrescentemos ainda o seguinte de modo algum o movimento consente existir na uniformidade Eacute difiacutecil ndash ou melhor impossiacutevel ndash haver um movido203 sem um movente204 ou um movente sem um movido natildeo eacute possiacutevel haver movimento sem a existecircncia destes termos mas eacute impossiacutevel que de algum modo eles sejam uniformes Assim estabeleccedilamos definitivamente que o repouso existe na uniformidade205 e o movimento na natildeo-uniformidade a causa da natureza do que eacute natildeo-uniforme eacute a desigualdade Noacutes jaacute discorremos sobre a geraccedilatildeo da desigualdade206 mas natildeo dissemos como se separaram os elementos uns dos outros de acordo com o seu geacutenero e desse modo cessaram de se mover e passar uns pelos outros Eis o que diremos novamente a oacuterbita do universo visto que engloba todos os geacuteneros e eacute circular tende por natureza a querer concentrar-se em si mesma e comprime todas as coisas natildeo permitindo que lugar algum permaneccedila vazio Foi por isso que o fogo principalmente penetrou em tudo e em seguida o ar que eacute por natureza o segundo em subtileza e assim sucessivamente para os restantes De facto os corpos gerados a partir de partiacuteculas maiores satildeo os que deixam

202 Cf supra 52d-53a 57a-c203 to kinecircsomenon204 to kinecircson205 stasin men en omalotecircti206 Cf supra 57c-d

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maiores interstiacutecios durante a sua composiccedilatildeo enquanto que os mais pequenos deixam interstiacutecios muito pequenos O processo de compressatildeo impele os mais pequenos para os interstiacutecios dos maiores Quando os pequenos se encontram estabelecidos entre os grandes separando entre si os maiores e os maiores comprimem os mais pequenos todos satildeo levados para cima e para baixo em direcccedilatildeo aos lugares que lhes satildeo proacuteprios Eacute que cada um ao mudar de tamanho eacute levado igualmente a mudar de posiccedilatildeo Eacute deste modo e por estes motivos que se gera e perdura a natildeo-uniformidade fornecendo a esses corpos este movimento que existe sempre de forma contiacutenua

Aleacutem dos mencionados eacute necessaacuterio ter em conta que existem outros geacuteneros de fogo como a chama e aquilo que emana da chama que natildeo queima mas fornece aos olhos a luz e aquilo que quando a chama se extingue dela subsiste nos corpos inflamados O mesmo se aplica ao ar a que naquela forma mais pura nos referimos com o termo ldquoeacuteterrdquo enquanto que para mais turva designamos por ldquonevoeirordquo e ldquoescuridatildeordquo existindo tambeacutem noutras formas que natildeo tecircm nome e que satildeo geradas por causa da desigualdade dos triacircngulos Quanto aos tipos de aacutegua em primeira instacircncia dividem-se em dois geacuteneros o liacutequido e o passiacutevel de se liquefazer O liacutequido que tem partes dos mais pequenos compostos de aacutegua (os quais satildeo desiguais) eacute moviacutevel por si mesmo ou por outro elemento em virtude da sua irregularidade e da forma da sua figura Por outro lado o que eacute feito a partir de compostos grandes e uniformes eacute mais estaacutevel do que

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aquele e mais pesado pois foi compactado por causa da uniformidade Mas sob efeito do fogo que o penetra e dissolve perde a uniformidade e depois de a perder participa mais do movimento ao tornar-se facilmente moviacutevel eacute impregnado pelo ar circundante e espalhado sobre a terra Cada uma destas impressotildees recebeu um nome ldquoderreterrdquo para a decomposiccedilatildeo das suas massas e ldquofluirrdquo para a sua dispersatildeo sobre a terra Mas quando o fogo se precipita novamente e de forma espontacircnea visto que natildeo se precipita para o vazio o ar circundante repele a massa huacutemida que ainda eacute faacutecil de mover em direcccedilatildeo aos lugares que o fogo ocupava obrigando-a a misturar-se com ela proacutepria Sendo o liacutequido assim comprimido recupera a sua homogeneidade visto que o fogo que criara esta irregularidade tinha-se retirado assim eacute restabelecido ao seu estado original E porque o afastamento do fogo eacute ldquocongelamentordquo a constriccedilatildeo subsequente ao seu afastamento significa o que chamamos ldquoestado soacutelidordquo Dentre todos os tipos de aacutegua a que chamaacutemos ldquopassiacutevel de se liquefazerrdquo uma que eacute muito densa por ser gerada atraveacutes de partiacuteculas muito finas e uniformes (uacutenica na sua espeacutecie) foi tingida com uma cor brilhante e amarela e que eacute o bem mais precioso o ouro ndash filtrado atraveacutes das pedras solidificou-se Quanto ao rebento do ouro que eacute muito duro em virtude da sua densidade e de cor negra eacute chamado ldquoadamanterdquo207

207 adamas Pelo facto de lhe ser atribuiacuteda uma cor negra e ser chamada ldquorebento do ourordquo esta misteriosa substacircncia tambeacutem referida no Poliacutetico (303e) e na Repuacuteblica (616c) corresponderaacute muito provavelmente agrave hematite Sobre este assunto vide Lopes (2009 pp 29-30)

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Afim ao ouro por causa das partiacuteculas mas tendo mais do que uma espeacutecie mais compacto em densidade do que o ouro e com pequenas e poucas partiacuteculas de terra de tal modo que eacute mais duro embora seja mais leve por ter em si interstiacutecios maiores eacute o geacutenero do cobre ndash uma combinaccedilatildeo gerada a partir de aacuteguas liacutempidas e densas Quanto agrave porccedilatildeo de terra aiacute misturada logo que se torna a separar deste com o passar do tempo torna-se visiacutevel por si soacute e gera-se aquilo a que se chama ldquoverdeterdquo

No que respeita agraves outras substacircncias deste tipo natildeo seraacute complicado discorrer sobre elas se investigarmos a modalidade da narrativa verosiacutemil Algueacutem que ponha de parte os discursos relativos ao que eacute eternamente e analise o verosiacutemil que diz respeito ao devir obteacutem como que um prazer de que natildeo se arrepende e produziraacute na sua vida uma recriaccedilatildeo comedida e prudente Por isso deixemos tambeacutem noacutes agora aqueles assuntos e prossigamos a buscar a verosimilhanccedila nestas questotildees e do seguinte modo

A aacutegua misturada com fogo toda ela fina e liacutequida em virtude do seu movimento e do seu percurso eacute chamada ldquoliacutequidardquo208 Ela rola macia sobre a terra e por as suas bases menos estaacuteveis do que as da terra cederem a aacutegua quando eacute separada do fogo e do ar fica sozinha e eacute mais uniforme e comprimida sobre si mesma por aquilo que dela sai Solidificada deste modo a que eacute mais afectada pelo que estaacute por cima da terra chama-se ldquogranizordquo e sobre a terra chama-se ldquogelordquo

208Caracterizaccedilatildeo tipicamente homeacuterica do percurso da aacutegua (Odisseia 371)

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aquela que ficou menos afectada se natildeo for mais do que meio congelada chama-se ldquoneverdquo e se condensar sobre a terra a partir do orvalho chama-se ldquogeadardquo No que respeita agraves espeacutecies de aacutegua mais numerosas por estarem misturadas umas com as outras ndash a todo esse geacutenero por ter sido filtrado pelas plantas da terra chamamos sucos ndash todas elas por causa das misturas tecircm dissemelhanccedilas Muitos geacuteneros seus foram produzidos que ficaram sem nome Mas haacute quatro espeacutecies que contecircm fogo tendo sido as mais conspiacutecuas as que receberam nomes a que consegue aquecer tanto a alma como o corpo eacute o vinho a que eacute suave e divide o raio visual e por estas razotildees eacute brilhante e reluzente para a visatildeo e tem uma aparecircncia lustrosa eacute o oacuteleo o pez o oacuteleo de riacutecino o proacuteprio azeite e todos os outros produtos que tecircm esta mesma propriedade E o que tem a capacidade de dissolver nos limites da sua natureza as partes compactas agrave volta da boca proporcionando a doccedilura atraveacutes dessa propriedade tem a designaccedilatildeo geral de ldquomelrdquo a espeacutecie que dissolve a carne por queimaacute-la um geacutenero espumoso que estaacute aparte de todos os outros sucos recebeu o nome ldquofermentordquo

Quanto agraves espeacutecies de terra a que foi filtrada pela aacutegua torna-se num corpo pedregoso do seguinte modo Quando a aacutegua que estava misturada se separa durante a mistura torna-se numa espeacutecie de ar transformada em ar vai disparada para o lugar que lhe eacute proacuteprio Como natildeo havia nenhum vazio em redor deles empurrou o ar circundante Visto que ele eacute pesado quando eacute empurrado e espalhado na massa da terra comprime-a

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atirando-a com forccedila para os locais de onde saiacutera o novo ar comprimida pelo ar e insoluacutevel pela aacutegua209 a terra constitui a pedra que eacute mais bela quando eacute brilhante (pois tem origem em partes iguais e uniformes) e mais feia quando acontece o contraacuterio Quando toda a humidade eacute retirada por causa da rapidez do fogo e se constitui um corpo mais seco do que a pedra gera-se aquele geacutenero a que chamamos ldquobarrordquo Mas acontece que se restar humidade a terra torna-se passiacutevel de fusatildeo por acccedilatildeo do fogo e quando arrefece gera-se uma pedra de cor negra210 Restam dois geacuteneros que igualmente resultam de uma mistura com muita aacutegua Sendo constituiacutedos por partes mais pequenas de terra e ambos salgados tornam-se semicondensados e novamente dissoluacuteveis pela aacutegua um eacute o geacutenero do salitre que limpa o azeite e a terra o outro que se mistura harmoniosamente em combinaccedilotildees de sabores eacute o sal que segundo a tradiccedilatildeo eacute considerado um corpo amado pelos deuses211 Quanto aos que satildeo compostos de ambos soluacuteveis natildeo em aacutegua mas sim no fogo solidificam-se do seguinte modo e pelos seguintes motivos nem o fogo nem o ar dissolvem as massas de terra pois as suas partiacuteculas satildeo por natureza mais pequenas do que os interstiacutecios da estrutura da terra e como haacute muito espaccedilo por onde podem passar sem ser pela forccedila permitem que ela fique

209 Questatildeo que seraacute detalhadamente analisada por Aristoacuteteles (Meteoroloacutegicos 383b19-sqq)

210 A lava depois de seca211 Esta concepccedilatildeo remonta a Homero Plutarco em No

Banquete (684F-sqq) citando este passo do Timeu dedica-lhe uma quaestio inteira

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indissoluacutevel e indissociaacutevel por outro lado as partiacuteculas de aacutegua que satildeo por natureza maiores forccedilam a passagem e ao fazecirc-lo dissociam a terra dissolvendo-a De facto quando a terra natildeo se solidifica pela forccedila soacute a aacutegua a dissolve deste modo mas se se solidificar dessa forma nada a natildeo ser o fogo a pode dissolver pois natildeo resta entrada para nada a natildeo ser para o fogo Quanto agrave estrutura da aacutegua extremamente forte soacute o fogo a pode destruir poreacutem quando enfraquece ambos os elementos a podem destruir o fogo pelos triacircngulos e o ar pelos interstiacutecios Quanto ao ar comprimido pela forccedila nada o dissolve a natildeo ser que dissolva o elemento propriamente dito e quando foi comprimido sem forccedila soacute o fogo o dissolve No que respeita aos corpos misturados a partir de terra e de aacutegua enquanto a aacutegua ocupar os interstiacutecios da terra que satildeo comprimidos pela forccedila as partes de aacutegua que vecircm do exterior natildeo tecircm entrada pelo que correm em torno de toda a massa sem que ela permita ser dissolvida mas as partes do fogo entram pelos interstiacutecios de aacutegua e o que a aacutegua faz agrave terra o fogo o faz ao ar ndash satildeo as uacutenicas causas que levam este corpo composto a dissolver-se e a fluir Acontece que entre estes seres uns tecircm menos aacutegua do que terra geacutenero a que diz respeito todo o tipo de vidro e as pedras a que chamamos ldquofundiacuteveisrdquo mas outros tecircm mais aacutegua satildeo todos os corpos constituiacutedos de cera e incenso

Estatildeo entatildeo mais ou menos demonstradas as variedades de espeacutecies em funccedilatildeo das figuras combinaccedilotildees e alteraccedilotildees de uns para os outros Temos agora que tentar esclarecer por que causas se geram essas

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impressotildees Primeiro eacute obrigatoacuterio que pressuponhamos sempre nos nossos discursos a existecircncia de sensaccedilotildees mesmo que ainda natildeo tenhamos discorrido sobre o que respeita agrave carne e agrave geraccedilatildeo da carne212 nem sobre a parte mortal da alma213 Acontece que natildeo eacute possiacutevel falar-se disso satisfatoriamente sem que se aborde as impressotildees sensiacuteveis nem falar daquela separadamente destas todavia tratar dos dois assuntos ao mesmo tempo eacute quase impossiacutevel Assim temos que pressupor que um dos dois jaacute foi tratado anteriormente mas regressaremos mais tarde ao que supusemos tratado

Portanto para que falemos sobre as propriedades a seguir ao que as gera tenhamos em conta o que respeita agrave existecircncia do corpo e da alma Em primeiro lugar procuremos saber por que dizemos que o fogo eacute quente tendo em conta que ele gera dissociaccedilatildeo e corte no nosso corpo Todos noacutes temos mais ou menos noccedilatildeo de que a sensaccedilatildeo que provoca eacute como qualquer coisa aguda no que trata agrave fineza das suas arestas agrave agudeza dos seus acircngulos agrave pequenez das suas partiacuteculas e agrave rapidez dos seus movimentos que em todos os sentidos fazem do fogo algo veemente e cortante que corta de forma pungente o que quer que lhe apareccedila devemos consideraacute-las relembrando a origem da sua figura e sobretudo que essa e natildeo outra a natureza que divide os nossos corpos e os fragmenta em pequenas partes eacute justamente o que deu o nome e a sensaccedilatildeo ao que noacutes agora chamamos ldquoquenterdquo

212 Vide infra 73b-sqq213 Vide infra 69a-sqq

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O contraacuterio disto eacute evidente todavia que natildeo fique privada de explicaccedilatildeo Dentre os liacutequidos que circundam o corpo quando aqueles que tecircm partiacuteculas maiores se aproximam para expelirem os de partiacuteculas mais pequenas (como natildeo lhes eacute possiacutevel ocupar os lugares deles comprimem a humidade que haacute em noacutes) fazem uma coisa inamoviacutevel a partir de uma que eacute dotada de um movimento irregular atraveacutes de homogeneizaccedilatildeo compressatildeo e solidificaccedilatildeo Poreacutem aquilo que eacute unido de forma contraacuteria agrave natureza luta de acordo com a sua natureza para se afastar no sentido contraacuterio que eacute o seu estado proacuteprio A este embate e a este abalo pusemos os nomes ldquotremorrdquo e ldquoarrepiordquo enquanto que esta impressatildeo em geral e aquilo que a provoca tem o nome ldquofriordquo

Duro eacute aquilo a que a nossa carne cede e mole eacute aquilo que cede agrave carne determinam-se relativamente uns aos outros Cede aquilo que estaacute assente numa base pequena Aquele que tem uma base de quadrados estando assente firmemente eacute a forma mais resistente porque pode reunir grande densidade e tem muita firmeza

Para que se explique com o maacuteximo de clareza o ldquopesadordquo e o ldquoleverdquo examinemo-los juntamente com aquilo a que chamamos ldquopor baixordquo e ldquopor cimardquo Natildeo eacute nada acertado pensar que haacute por natureza dois lugares determinados e opostos que dividem o universo em duas partes a de baixo para onde eacute levado tudo quanto tenha uma massa corpoacuterea e a de cima para onde tudo se dirige contrariado Sabendo que o ceacuteu tem todo ele uma forma esfeacuterica todos os pontos que satildeo extremos

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por estarem agrave mesma distacircncia do centro devem ser em igual medida extremidades e quanto ao centro afastado agrave mesma distacircncia das extremidades eacute forccediloso acreditar que seja o oposto de todas as extremidades Visto que o mundo eacute por natureza formado deste modo qual dos pontos se diga estar no alto ou em baixo para que natildeo pareccedila com justiccedila que se estaacute a aplicar designaccedilotildees nada adequadas Com efeito natildeo eacute certo dizer que o local que estaacute no centro do mundo seja por natureza em baixo ou em cima mas sim no centro jaacute a periferia natildeo estaacute no centro nem tem em si nenhuma parte mais diferenciada do que outra em relaccedilatildeo ao centro ou a qualquer outro dos opostos Portanto que tipo de designaccedilotildees contraacuterias se poderaacute aplicar agravequilo que eacute em si mesmo semelhante em todos os aspectos e como se pode acreditar que estaacute a falar correctamente Se houver um soacutelido em equiliacutebrio no centro do universo de modo algum seraacute levado em direcccedilatildeo a qualquer das extremidades em virtude de serem semelhantes em todas as direcccedilotildees Mas se algo andasse em ciacuterculos agrave volta dele achar-se-ia frequentemente nos antiacutepodas e referir-se-ia ao mesmo ponto como ldquoem baixordquo e ldquoem cimardquo214 Portanto se o universo eacute todo esfeacuterico tal como acabo de dizer natildeo faz sentido dizer que um siacutetio eacute em baixo e outro eacute em cima de onde provecircm estas designaccedilotildees e aquilo a que elas se aplicam por causa das quais nos acostumaacutemos a descrever o ceacuteu como um todo e a dividi-lo deste modo eis aquilo em que devemos estar de acordo ao supormos o que se segue

214 No Sobre o Ceacuteu (42 308a34-b28) Aristoacuteteles parafraseia esta secccedilatildeo do texto para especular sobre a esfericidade da Terra e a sua posiccedilatildeo central no universo

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No siacutetio do universo de que a natureza do fogo mais participa e onde haacute mais quantidade acumulada daquilo a que ele se dirige se algueacutem aiacute se aproximasse dele supondo que tinha esse poder e tirasse partes de fogo para as pesar numa balanccedila e erguendo a balanccedila arrastasse agrave forccedila o fogo para o ar que lhe eacute dissemelhante eacute evidente que as partes mais pequenas cederiam mais facilmente do que as maiores ndash eacute que quando dois corpos satildeo levantados por uma soacute forccedila torna-se inevitaacutevel que o mais pequeno anua mais facilmente agrave forccedila e o maior menos pois resiste ateacute um certo ponto Ao maior que eacute levado para baixo chamemos ldquopesadordquo e ao pequeno que eacute levado para cima chamemos ldquoleverdquo Eacute forccediloso que noacutes sejamos levados a fazer isto mesmo em relaccedilatildeo a este local Por andarmos sobre a terra separamos geacuteneros teacuterreos agraves vezes ateacute a proacutepria terra e contra a natureza atiramo-los com violecircncia para o ar que eacute dissemelhante pois ambos se mantecircm naquilo de que satildeo congeacuteneres mas o mais pequeno acompanha mais facilmente o arrastamento para o dissemelhante do que o maior Por isso lhe atribuiacutemos a propriedade ldquoleverdquo a ele e ldquoem cimardquo ao local para onde foi arrastado e ao oposto ldquopesadordquo e ldquoem baixordquo Consequentemente eacute inevitaacutevel que essas propriedades se relacionem umas com as outras de maneiras diversas em virtude de as massas destes geacuteneros ocuparem um local oposto umas em relaccedilatildeo agraves outras ndash se compararmos o que eacute leve num lugar com o que eacute leve no lugar oposto o que eacute pesado com aquilo que eacute pesado o que estaacute em baixo com o que estaacute em baixo o que estaacute em cima com o

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que estaacute em cima descobriremos que todos se tornam e satildeo opostos obliacutequos e em tudo diferentes uns dos outros Mas o aspecto particular que devemos ter em mente em relaccedilatildeo a todos eles eacute que para cada corpo eacute o trajecto que conduz ao congeacutenere que torna ldquopesadordquo aquele que o percorre e ldquoem baixordquo o lugar para onde se dirige e o contraacuterio eacute vaacutelido para os opostos destes215 Estatildeo estabelecidas as causas que dizem respeito a estas propriedades No que respeita agrave causa da impressatildeo do ldquolisordquo e do ldquorugosordquo qualquer pessoa pode percebecirc-la e explicaacute-la a outra pessoa um resulta da dureza misturada com a irregularidade o outro eacute produzido pela homogeneidade combinada com densidade

No que respeita agraves questotildees que satildeo comuns a todo o corpo resta uma importantiacutessima que eacute a causa dos prazeres e das dores devidos agraves impressotildees sobre as quais temos discorrido que por receberem as sensaccedilotildees atraveacutes de todas as partes do corpo trazem consigo mesmas dor e prazer simultaneamente216 Tomemos pois as causas que tecircm que ver com todas as impressotildees sensiacuteveis ou natildeo sensiacuteveis relembrando a distinccedilatildeo que estabelecemos anteriormente217 entre a natureza do que se move facilmente e do que se move a custo Eacute de acordo com ela que devemos procurar tudo aquilo que temos a intenccedilatildeo de perceber

Quando ao que por natureza se movimenta facilmente sobreveacutem uma impressatildeo por mais

215 Isto eacute aplica-se o mesmo princiacutepio agraves noccedilotildees ldquoleverdquo e ldquoem cimardquo

216 Sobre a relaccedilatildeo entre prazer e dor vide Feacutedon 60b-c Filebo 51a-sqq Leis 732d-734e Repuacuteblica 584b

217Cf supra 55e-56a

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brevemente que seja as suas partiacuteculas diferentes espalham-se em ciacuterculo pelas outras partiacuteculas produzindo nelas essa mesma impressatildeo ateacute que ao atingirem o discernimento218 datildeo a conhecer a propriedade do agente Pelo contraacuterio o que eacute estaacutetico e natildeo tem nenhum movimento em ciacuterculo apenas sofre a impressatildeo e natildeo movimenta nenhuma das partiacuteculas circundantes de tal forma que em virtude de as partiacuteculas natildeo a transmitirem umas agraves outras a impressatildeo inicial permanece neles imoacutevel sem que esteja na totalidade do ser-vivo nem proporcione nenhuma sensaccedilatildeo agrave parte afectada Isto eacute o que acontece aos ossos aos cabelos e a todas as outras partes maioritariamente teacuterreas que temos em noacutes Mas o que dissemos anteriormente tem que ver sobretudo com a visatildeo e com a audiccedilatildeo porque eacute o fogo e o ar que exercem sobre eles uma influecircncia mais importante Quanto ao prazer e agrave dor eacute necessaacuterio que tenhamos em mente o seguinte uma impressatildeo violenta e em desacordo com a natureza que se gera em noacutes de forma suacutebita eacute dolorosa mas pelo contraacuterio o regresso ao estado natural de forma suacutebita eacute apraziacutevel jaacute uma impressatildeo moderada e faseada natildeo eacute sentida aplicando-se o oposto aos seus opostos Mas todas as impressotildees que se geram com facilidade satildeo extremamente sensiacuteveis poreacutem delas natildeo participam nem dor nem prazer como por exemplo as impressotildees que dizem respeito agrave visatildeo em si que como foi dito anteriormente eacute um corpo que durante o dia nos eacute aparentado De facto os cortes as queimaduras e tudo

218 to phronimon

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o resto que a afectam natildeo lhes provocam dor nem prazer quando regressa novamente agrave sua forma original embora cause sensaccedilotildees intensas e manifestas em funccedilatildeo das impressotildees que sofra e dos corpos com que de certo modo contacta quando contra eles colide pois natildeo haacute qualquer violecircncia na sua dissociaccedilatildeo e associaccedilatildeo Mas os corpos com partes maiores que cedem com relutacircncia ao que age sobre eles e transmitem os movimentos ao todo sofrem prazer e dor ndash dor quando satildeo alterados prazer quando regressam novamente ao estado original Todos os que se desvanecem a si proacuteprios gradualmente e se esvaziam mas que se enchem de forma suacutebita e em larga escala tornam-se insensiacuteveis quando se esvaziam e sensiacuteveis quando se enchem e natildeo provocam dores agrave parte mortal da alma mas sim prazeres intensos Isto eacute evidente em relaccedilatildeo a substacircncias fragrantes219 Mas todos os que satildeo alterados de forma suacutebita e regressam gradualmente e com relutacircncia ao seu estado original proporcionam sensaccedilotildees absolutamente contraacuterias agraves que atraacutes referimos eacute evidente que eacute o que acontece em relaccedilatildeo agraves queimaduras e aos cortes no corpo

Eis uma explicaccedilatildeo razoaacutevel das impressotildees comuns a todo o corpo e dos nomes que foram dados aos agentes que as geram Devemos agora tentar falar tanto quanto nos for possiacutevel do que se gera nas partes especiacuteficas do nosso corpo das suas impressotildees e mais uma vez das causas dos seus agentes Primeiro devemos esclarecer na medida do possiacutevel tudo quanto deixaacutemos

219 Semelhante ideia surge tambeacutem no Filebo (51b) e na Repuacuteblica (584b)

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por dizer nos discursos anteriores acerca dos sucos220 e das impressotildees particulares da liacutengua Eacute evidente que tambeacutem estas tal como outras se geram por meio de algumas associaccedilotildees e dissociaccedilotildees mas aleacutem disso estatildeo mais do que qualquer outra coisa relacionadas com a rugosidade e a lisura Com efeito todas as partiacuteculas terrosas que entram pelos vasos sanguiacuteneos que se prolongam ateacute ao coraccedilatildeo satildeo para a liacutengua uma espeacutecie de instrumentos de teste colidem com as partes huacutemidas e tenras da carne e ao dissolverem-se contraem e secam os vasos sanguiacuteneos221 As mais rugosas apresentam-se-nos como amargas e as que satildeo menos rugosas como azedas De entre elas as que limpam os vasos sanguiacuteneos lavam toda a superfiacutecie da liacutengua Fazem-no aleacutem da justa medida e excedem-se a ponto de dissolver parte da proacutepria natureza da liacutengua (tal como os salitres) e satildeo todas chamadas ldquopicantesrdquo ao passo que as que satildeo mais fracas do que o salitre e tecircm uma acccedilatildeo de limpeza na medida justa satildeo ldquosalgadasrdquo ndash sem amargor aacutespero e evidenciando uma sensaccedilatildeo mais amistosa

Outras que por terem partilhado do calor da boca e sido trituradas por ela satildeo inflamadas em conjunto e em sentido inverso queimam aquilo que as sobreaqueceu satildeo levadas para cima (em virtude da sua leveza) para junto da parte sensorial da cabeccedila cortando tudo o que lhes sobrevenha graccedilas agrave natureza das propriedades que

220 Cf supra 60a221 Posteriormente Aristoacuteteles defenderaacute a mesma concepccedilatildeo o

paladar estaacute sempre dependente de substacircncias em estado liacutequido (Sobre a Alma 210 422a8-35)

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todas estas substacircncias tecircm elas foram chamadas ldquoacresrdquo Por outro lado haacute partiacuteculas que foram diminuiacutedas por putrefacccedilatildeo Elas imiscuiacuteram-se nos vasos sanguiacuteneos estreitos por terem a mesma dimensatildeo que as partiacuteculas terrosas e a mesma quantidade de ar que existe nos vasos sanguiacuteneos de tal forma que fazem com que eles se movimentem e misturem uns com os outros quando estatildeo misturadas formam uma cerca e como as de um tipo se imiscuem nas de outro tipo datildeo origem a espaccedilos vazios que satildeo distendidos pelas partiacuteculas que entram Quando um espaccedilo vazio huacutemido seja terroso ou em estado puro se distende em torno do ar forma um reservatoacuterio huacutemido com ar e gera-se um espaccedilo vazio de aacutegua arredondado os que satildeo de aacutegua pura e transluacutecidos em toda a volta receberam o nome ldquobolhardquo enquanto que os que satildeo terrosos e ao mesmo tempo movimentados e efervescentes satildeo referidos com as designaccedilotildees ldquoebuliccedilatildeordquo e ldquofermentaccedilatildeordquo O responsaacutevel por estas impressotildees eacute chamado ldquoaacutecidordquo

Uma impressatildeo que seja contraacuteria ao conjunto das que acabaacutemos de falar eacute fruto de uma causa contraacuteria Sempre que a estrutura das partiacuteculas que entram em algo liacutequido eacute de natureza afim agrave da liacutengua aquelas alisam-na lubrificando as rugosidades relaxando aquilo que foi comprimido em desacordo com a natureza e comprimindo aquilo que foi relaxado em desacordo com a natureza e restabelecendo tudo tanto quanto possiacutevel de acordo com a natureza por todos estes remeacutedios para as impressotildees violentas serem em tudo apraziacuteveis e amigaacuteveis eles foram chamados ldquodocesrdquo

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Eis o que haacute a dizer sobre estes assuntos Em relaccedilatildeo agrave propriedade que diz respeito agraves narinas natildeo haacute formas a definir Eacute que todos os odores satildeo semigerados e acontece que natildeo haacute qualquer forma com dimensatildeo para ter um cheiro Pelo contraacuterio os nossos vasos sanguiacuteneos tecircm uma constituiccedilatildeo demasiado estreita para os geacuteneros de terra e de aacutegua e demasiado larga para os de fogo e ar razatildeo pela qual ningueacutem nunca sentiu nenhum cheiro destes corpos pois os cheiros satildeo gerados a partir daquilo que se liquefaz apodrece se dissolve ou evapora Com efeito os cheiros satildeo gerados durante o estado intermeacutedio em que a aacutegua se estaacute a transformar em ar ou o ar em aacutegua e todos eles satildeo vapor ou nevoeiro Entre eles o nevoeiro eacute o que passa de ar para aacutegua e o vapor eacute o que passa de aacutegua para ar daiacute que todos os cheiros sejam mais finos do que a aacutegua e mais espessos do que o ar Isso eacute evidente quando um obstaacuteculo se interpotildee agrave respiraccedilatildeo de algueacutem e outra pessoa lhe aspira o sopro respiratoacuterio com forccedila Nenhum cheiro eacute filtrado juntamente com ele e passa somente um sopro respiratoacuterio livre de cheiros Deste modo as suas variedades formam dois grupos desprovidos de nome visto que natildeo advecircm de uma determinada quantidade de espeacutecies simples entatildeo agraves uacutenicas duas que com justiccedila satildeo manifestas chamemos-lhes ldquoapraziacutevelrdquo e ldquodesagradaacutevelrdquo uma exaspera e constringe toda a cavidade que em noacutes estaacute situada entre a cabeccedila e o umbigo a outra amacia esta zona e devolve-lhe alegremente o seu estado natural

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Analisemos agora a terceira parte sensiacutevel que haacute em noacutes a que diz respeito agrave audiccedilatildeo Devemos explicar por meio de que causas surgem as impressotildees que lhe dizem respeito Estabeleccedilamos que de um modo geral o som eacute uma pancada infligida pelo ar e transmitida pelos ouvidos ceacuterebro e sangue ateacute agrave alma enquanto que a audiccedilatildeo eacute o movimento dessa pancada que comeccedila na cabeccedila e termina na regiatildeo do fiacutegado Quando o movimento eacute raacutepido o som eacute agudo quando eacute mais lento o som eacute mais grave222 se o movimento for constante o som eacute uniforme e suave no caso contraacuterio seraacute aacutespero Se o movimento for possante o som seraacute amplo caso contraacuterio seraacute breve No que trata agrave harmonia entre os sons eacute inevitaacutevel que falemos dela em discursos posteriores223

Resta-nos ainda um quarto geacutenero de sensaccedilatildeo que eacute forccediloso que determinemos pois envolve em si mesmo um grande nuacutemero de variedades a todas elas chamaacutemos ldquocoresrdquo Trata-se de uma chama que emana de todos os corpos cujas partiacuteculas tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de visatildeo de modo a produzir a sensaccedilatildeo nos discursos anteriores dissemos algo sobre as causas da origem da visatildeo224 No que respeita agraves cores eis a explicaccedilatildeo que estaacute mais de acordo com a verosimilhanccedila e que parece ser adequada para expor detalhadamente As partiacuteculas que vecircm de outros corpos e chocam com o raio de visatildeo satildeo por vezes mais pequenas por vezes maiores e por outras tecircm a mesma dimensatildeo que as do raio de

222 Princiacutepio atribuiacutedo a Arquitas de Tarento (DK 47B1)223 Cf infra 79e-80c224 Cf supra 45b-46c

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visatildeo As que satildeo do mesmo tamanho satildeo insensiacuteveis e a essas chamamos-lhe ldquotransparentesrdquo mas as maiores que associam o raio de visatildeo e as mais pequenas que o dissociam satildeo irmatildes das que parecem quentes e frias agrave carne e amargas agrave liacutengua assim chamamos-lhes ldquoacresrdquo porque aquecem Quanto ao branco e ao preto satildeo impressotildees semelhantes agravequelas mas satildeo geradas noutro oacutergatildeo motivo pelo qual aparecem de um modo diferente Eis o modo como devemos nomeaacute-las o ldquobrancordquo eacute o que dilata o raio visual e o ldquopretordquo eacute o que faz o contraacuterio Quando se trata de um movimento mais pungente e de um outro geacutenero de fogo que chocam com o raio de visatildeo e o dissociam ateacute aos olhos irrompendo com violecircncia pelas entradas dos olhos dissolvendo-as fazem correr delas essa torrente de aacutegua e fogo a que chamamos ldquolaacutegrimasrdquo Quando este movimento que eacute proacuteprio fogo se encontra com o fogo que vem no sentido oposto um deles salta como um relacircmpago e o outro entra e extingue-se entre a humidade gerando-se neste alvoroccedilo todo o tipo de cores a esta impressatildeo chamamos ldquoofuscaccedilatildeordquo e agravequilo que a produz damos os nomes ldquobrilhanterdquo e ldquoresplandecenterdquo Poreacutem quando o geacutenero de fogo intermeacutedio entre estes dois chega agrave parte huacutemida dos olhos e se mistura com ela natildeo eacute resplandecente em virtude de a humidade se misturar com o claratildeo do fogo produz-se uma cor sanguiacutenea a que damos o nome ldquoencarnadordquo Misturando o encarnado com o brilhante e o branco gera-se o amarelo em que proporccedilatildeo satildeo misturados natildeo seria prudente explicaacute-lo mesmo que algueacutem soubesse pois a partir deles

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natildeo seria possiacutevel expressar razoavelmente nem uma necessidade nem um discurso verosiacutemil O encarnado misturado com o preto e o branco daacute puacuterpura ou bistre quando esta mistura eacute queimada e lhe eacute acrescentado mais preto O fulvo gera-se com a mistura de amarelo e cinzento o cinzento com a mistura de branco e preto e o ocre de branco misturado com amarelo Quando se combina branco com brilhante e se mergulha esta mistura em preto carregado produz-se o azul-escuro o azul-escuro misturado com branco daacute azul-claro e o fulvo misturado com preto daacute verde225

Quanto agraves restantes cores eacute relativamente evidente a partir destes exemplos a que misturas se devem assemelhar de modo a salvaguardar a narrativa verosiacutemil Mas se algueacutem quiser examinaacute-las por meio de um teste praacutetico estaria a ignorar a distinccedilatildeo entre a natureza humana e a divina porque enquanto um deus eacute suficientemente conhecedor e ao mesmo tempo capaz226 de fazer a mistura de muitas coisas em conjunto numa soacute e novamente de dissolver o que eacute uno em muacuteltiplas coisas nenhum homem eacute neste momento nem alguma vez seraacute capaz de fazer qualquer das duas operaccedilotildees

Uma vez criadas todas estas coisas deste modo e de acordo com a necessidade o demiurgo do que eacute mais belo e melhor colocou-as como acessoacuterias naquilo que eacute gerado de modo a engendrar o deus auto-suficiente e mais perfeito servindo-se a esse respeito das causas

225 Sobre as relaccedilotildees entre estas e outras cores vide Teofrasto Histoacuteria das Plantas 625

226 hikanocircs epistamenos ama kai dynatos

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instrumentais mas foi ele proacuteprio que forjou o bom funcionamento em tudo o que eacute deveniente Por isso eacute necessaacuterio distinguir duas espeacutecies de causas a necessaacuteria e a divina E eacute a divina que devemos procurar em tudo com vista agrave obtenccedilatildeo de uma vida feliz na medida em que a nossa natureza o admita quanto agrave necessaacuteria eacute em funccedilatildeo da divina que a procuramos tendo em mente que sem as causas necessaacuterias natildeo nos podemos ocupar das proacuteprias causas divinas as uacutenicas com que nos preocupamos nem apreendecirc-las nem participar delas de qualquer modo

Assim tal como os carpinteiros tecircm a madeira jaacute preparada para trabalhar temos noacutes agora tambeacutem agrave nossa disposiccedilatildeo os geacuteneros das causas jaacute filtrados a partir dos quais eacute forccediloso que teccedilamos o resto do discurso Regressemos por um breve instante de novo ao princiacutepio do discurso e voltemos rapidamente ao ponto a partir do qual aqui chegaacutemos tentemos providenciar uma cabeccedila (como final) agrave nossa narrativa227 que esteja em harmonia com o que dissemos ateacute aqui Eacute que tal como foi dito de princiacutepio228 em virtude de estas coisas estarem desordenadas o deus criou em cada uma delas uma medida que servisse de referecircncia tanto a cada uma em relaccedilatildeo a si mesma como tambeacutem em relaccedilatildeo agraves outras de modo a serem proporcionais Essas proporccedilotildees eram tantas quantas podiam ser e possuiacuteam analogia e proporcionalidade Eacute que ateacute agravequele momento nenhuma delas tomava parte

227 A mesma imagem eacute utilizada no Goacutergias (505c-d) e nas Leis (752a)

228 Cf 30a 53a-b 56c

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na ordem a natildeo ser que fosse por acaso e nenhuma era inteiramente digna de ser chamada do modo que agora satildeo chamadas como ldquofogordquo ldquoaacuteguardquo e qualquer um dos outros Mas tudo isto o deus comeccedilou por organizar e em seguida constituiu o universo a partir delas ndash um ser-vivo uacutenico que conteacutem em si mesmo todos os outros seres-vivos mortais e imortais E ele mesmo se tornou demiurgo dos seres divinos enquanto que atribuiu o encargo de fabricar os mortais agravequeles que tinham sido gerados por si Estes imitando-o depois de terem recebido o princiacutepio imortal da alma tornearam para ele um corpo mortal a que deram como veiacuteculo todo o corpo e nele construiacuteram uma outra forma de alma mortal que conteacutem em si mesma impressotildees terriacuteveis e inevitaacuteveis primeiro o prazer o maior engodo do mal em seguida as dores que fogem do bem e ainda a audaacutecia e o temor dois conselheiros insensatos a paixatildeo difiacutecil de apaziguar e a esperanccedila que induz em erro Tendo misturado estas paixotildees juntamente com a sensaccedilatildeo irracional e com o desejo amoroso que tudo empreende constituiacuteram a espeacutecie mortal submetida agrave Necessidade229

Por este motivo temendo conspurcar a parte divina o que natildeo era de todo inevitaacutevel estabeleceram a parte mortal numa outra morada do corpo separada daquela e construiacuteram um istmo e um limite entre

229 Tal como Brisson (2001 p 266 n 599) cremos que seraacute este o sentido na medida em que a estrutura humana foi formada com uma parte de Necessidade que apesar de irracional se revela essencial agrave sua sobrevivecircncia neste caso trata-se do desejo amoroso que potencia a procriaccedilatildeo e garante a perenidade da espeacutecie

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a cabeccedila e o peito ao estabelecerem no meio deles o pescoccedilo para que fosse um separador No peito tambeacutem chamado toacuterax sediaram a parte mortal da alma Visto que uma parte dela eacute por natureza mais forte e outra mais fraca construiacuteram uma divisoacuteria na cavidade do toacuterax (70a) como se delimitam os aposentos das mulheres separados dos dos homens Entre elas puseram o diafragma a servir de barreira Assim estabeleceram a parte da alma que participa da coragem e do fervor que eacute adepta da vitoacuteria230 mais perto da cabeccedila entre o diafragma e o pescoccedilo para que escutasse a razatildeo231 e em conjunto com ela refreasse pela forccedila a espeacutecie dos desejos sempre que estes natildeo quisessem de modo algum obedecer prontamente agraves ordens e aos decretos da cidadela do alto Quanto ao coraccedilatildeo o entroncamento dos vasos sanguiacuteneos e a fonte do sangue que circula com energia por todos os membros estabeleceram-no na morada dos guardiotildees para que quando o sentimento de coacutelera fervilhasse por a razatildeo anunciar que uma acccedilatildeo injusta a partir de causas exteriores ou que alguma se prepara a partir do iacutentimo causada pelos desejos tudo aquilo que no corpo haacute de sensiacutevel apreendesse imediatamente atraveacutes de todos os canais estreitos as advertecircncias e ameaccedilas estivesse atento obedecesse em absoluto e desta forma permitisse que a parte mais nobre prevalecesse sobre tudo No que respeita ao bater do coraccedilatildeo perante a expectativa de perigos e o despertar de paixotildees jaacute que sabiam de antematildeo que era por causa

230 Trata-se do thymos a parte passional da alma231 logos

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do fogo que toda esta dilataccedilatildeo se produzia nas pessoas encolerizadas os deuses engendraram um reforccedilo implantando a forma do pulmatildeo que primeiro que tudo eacute mole e exangue e por outro lado tem no seu interior cavidades perfuradas como as de uma esponja para que ao receberem o ar e as bebidas232 arrefecessem o coraccedilatildeo e o dotassem de focirclego e acalmia quando aquece Por isso talharam um canal desde a traqueia ateacute ao pulmatildeo e estabeleceram-no em volta do coraccedilatildeo como uma almofada para que quando a paixatildeo se desencadeasse dentro dele ressaltasse contra algo que amortece e arrefece para que se esforccedilasse menos e juntamente com as paixotildees pudesse submeter-se mais facilmente agrave razatildeo233

Quanto agrave parte da alma que deseja comida e bebida e tudo aquilo de que o corpo tem necessidade por natureza essa parte eles estabeleceram entre o diafragma e o limite do umbigo fabricando em toda esta regiatildeo uma espeacutecie de manjedoura para o sustento do corpo Foi nesse lugar que aprisionaram esta parte da alma como se fosse uma criatura selvagem234 mas que era necessaacuterio alimentar para que no futuro pudesse existir uma espeacutecie mortal De modo a que estivesse sempre situada junto agrave manjedoura e estabelecida bem mais longe do centro de decisotildees provocando nele o menos possiacutevel de distuacuterbios e clamores e a parte

232 Note-se que o sistema digestivo descrito por Timeu prevecirc que os alimentos e os liacutequidos ingeridos passem pelos pulmotildees

233 logos234 Sobre a necessidade de aprisionar a alma vide Repuacuteblica

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mais poderosa pudesse deliberar com tranquilidade sobre tudo o que respeita ao conjunto e a cada parte atribuiacuteram-lhe esta arrumaccedilatildeo espacial Estavam conscientes de que ela natildeo conseguia compreender a razatildeo e se de algum modo apreendesse alguma das sensaccedilotildees natildeo estaria na sua natureza a capacidade de perceber algo que pertencesse agrave razatildeo em vez disso de noite e de dia seria extremamente influenciada por representaccedilotildees e simulacros235 De acordo com isto um deus delineou um plano conforme agrave sua intenccedilatildeo constituiu a espeacutecie do fiacutegado e estabeleceu-o na morada desta parte da alma Fabricou-o espesso liso e brilhante e contendo doce e amargor para que a potecircncia das noccedilotildees ao transportaacute-las do intelecto ateacute ele como num espelho que recebe impressotildees e fornece reflexos a quem o contemplar o atemorizasse ao trazer-lhe ameaccedilas terriacuteveis e fazendo uso da sua parte congeacutenere que tem amargor espalhasse o amargo por todo ele e fizesse aparecer as cores da biacutelis contraindo-o ateacute se fazer aacutespero e todo rugoso vergando e contraindo o lobo a partir da posiccedilatildeo correcta e obstruindo e fechando a vesiacutecula e as entradas de modo a provocar dores e naacuteuseas Em sentido oposto quando algum movimento inspiratoacuterio reflecte do pensamento236 simulacros de suavidade converte o amargor em tranquilidade pois esse movimento natildeo quer ser anexado a uma natureza contraacuteria agrave sua Em vez disso com recurso agrave doccedilura que estaacute por natureza presente no fiacutegado corrige tudo

235 hypo de eidocirclocircn kai phantasmatocircn236 dianoia

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para ficar correcto liso e livre tornando agradaacutevel e de bom humor a parte da alma que estaacute estabelecida junto do fiacutegado passando a noite de forma tranquila e fazendo uso da divinaccedilatildeo durante o sono dado que natildeo participa da razatildeo nem do pensamento237 Aqueles que nos constituiacuteram ao lembrarem-se da ordem do seu pai que lhes tinha mandado fazer o geacutenero mortal da melhor forma possiacutevel dentro das suas capacidades rectificaram as suas deficiecircncias deste modo (com o estabelecimento da divinaccedilatildeo) para que de algum modo ele tivesse ligaccedilatildeo agrave verdade Eis um indiacutecio suficiente de que o deus concedeu a divinaccedilatildeo agrave insensatez humana eacute que ningueacutem participa da divinaccedilatildeo inspirada e verdadeira em consciecircncia mas sim quando o seu pensamento238 eacute suspenso durante o sono ou pela doenccedila ou se for adulterado por qualquer tipo de deliacuterio Por outro lado eacute em consciecircncia que o Homem deve compreender o que foi dito ndash depois de o trazer de novo agrave memoacuteria ndash em sonhos ou em estado de vigiacutelia sob o efeito da natureza da divinaccedilatildeo e do deliacuterio quanto aos simulacros que tenha visto deve por meio da reflexatildeo explicar de que modo e por que motivo cada um deles possa significar algo de mau ou de bom quer pertenccedila ao futuro ao passado ou ao presente Enquanto aquele que estaacute possuiacutedo se mantiver neste estado natildeo cumpriraacute a tarefa de distinguir por si proacuteprio o que lhe foi dado a conhecer ou a ouvir pois estaacute certo o velho dito ldquoPertence somente ao saacutebio cumprir a sua tarefa de se conhecer a si mesmordquo239 Daiacute

237 logou kai phronecircseocircs ou meteiche238 phronecircsis239 Eacute logo no Caacutermides (161b 164d) que eacute referida a

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que a norma tenha estabelecido que o geacutenero dos profetas seja inteacuterprete das divinaccedilotildees inspiradas Haacute quem lhes chame ldquoadivinhosrdquo ignorando por completo que eles interpretam revelaccedilotildees e apariccedilotildees por meio de enigmas e de modo algum satildeo adivinhos pelo que seraacute mais justo chamar-lhes ldquoprofetas de assuntos divinatoacuteriosrdquo

Eacute por isto que a natureza do fiacutegado eacute assim e foi graccedilas agrave divinaccedilatildeo que lhe foi atribuiacutedo este lugar que descrevemos Aleacutem disso eacute ainda enquanto cada criatura estaacute viva que este oacutergatildeo fornece os sinais mais visiacuteveis jaacute que depois de lhe ter sido privada a vida torna-se cego e os sinais que fornece satildeo muito obscuros para terem uma significaccedilatildeo evidente Mas a estrutura do oacutergatildeo vizinho240 e o facto de o lugar desta entranha ser agrave esquerda eacute em favor do fiacutegado para o manter sempre brilhante e limpo como se fosse um trapo de limpar o espelho que estaacute sempre agrave matildeo e disponiacutevel para ser utilizado Por isso sempre que por causa de uma doenccedila do corpo se geram impurezas junto do fiacutegado a porosidade do baccedilo depura-as e absorve-as todas pois eacute feito de uma trama permeaacutevel e exangue Daiacute que quando fica preenchido por aquilo que filtra aumenta de tamanho e fica ulcerado poreacutem quando o corpo eacute purgado diminui de tamanho e retoma a sua forma original

Portanto no que diz respeito agrave alma se noacutes falaacutemos com verdade sobre a sua parte mortal sobre a divina de que modo com a colaboraccedilatildeo de quecirc e por que razatildeo obrigatoriedade de o filoacutesofo procurar cumprir a maacutexima deacutelfica ldquoconhece-te a ti mesmordquo

240 O baccedilo

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foi estabelecida separadamente somente o poderemos afirmar com certeza depois de um deus o confirmar Que o que noacutes dissemos eacute verosiacutemil devemos arriscar a declaraacute-lo agora e mais ainda quando reflectirmos sobre essa mateacuteria E declaremo-lo entatildeo

De acordo com os mesmos pressupostos devemos abordar agora o que se segue como foi gerado o resto do corpo Seraacute mais adequado seguir este raciociacutenio em vez de qualquer outro para explicar a sua constituiccedilatildeo Os que constituiacuteram a nossa espeacutecie estavam a par da licenciosidade que haveria em noacutes em relaccedilatildeo agrave bebida e agrave comida e que por causa da gula consumiriacuteamos muito mais do que a medida necessaacuteria Para que natildeo tiveacutessemos uma morte raacutepida por causa das doenccedilas e para que a espeacutecie dos mortais ainda incompleta natildeo acabasse de imediato ndash uma vez previstas estas coisas ndash os deuses estabeleceram o chamado baixo ventre como receptaacuteculo da bebida e da comida supeacuterfluas e enrolaram em volta dele os intestinos para que os alimentos natildeo passassem pelo corpo rapidamente e isso obrigasse a que ele tivesse necessidade de outro alimento tornando-se insaciaacutevel Por causa da gula a espeacutecie humana tornar-se-ia completamente estranha agrave filosofia e agraves Musas e seria desobediente agrave parte mais divina que haacute em noacutes

No que respeita aos ossos agrave carne e agrave natureza deste tipo de elementos orgacircnicos eis o que se passou Para todas as estruturas o ponto de partida foi a geraccedilatildeo da medula De facto os laccedilos da vida desde que a alma estaacute unida ao corpo foram presos a ela e constituiacuteram a raiz da espeacutecie mortal mas a medula em si foi gerada

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a partir de outras substacircncias Com efeito de entre os triacircngulos os primeiros em regularidade e lisura que em virtude da sua precisatildeo eram mais capazes de produzir fogo aacutegua ar e terra o deus escolheu-os separadamente dos outros geacuteneros misturou-os uns com os outros na medida certa concebendo uma mistura de sementes para todo a espeacutecie mortal e produziu a medula a partir deles Em seguida plantou e aprisionou nela os geacuteneros de alma e na sua distribuiccedilatildeo inicial dividiu imediatamente a medula em figuras equivalentes em nuacutemero e qualidade aos das figuras que estava destinado que cada espeacutecie tivesse Depois moldou em forma de ciacuterculo perfeito essa parte da medula a qual semelhante a um terreno lavrado havia de receber a semente divina e chamou-lhe ldquoenceacutefalordquo de tal forma que quando cada ser-vivo estivesse acabado o recipiente que o contivesse seria a cabeccedila Aquilo que era suposto conter o resto da alma (a sua parte mortal) dividiu-o em figuras redondas e ao mesmo tempo alongadas a este conjunto deu o nome ldquomedulardquo e lanccedilando a partir delas os laccedilos de toda a alma como a partir de acircncoras formou em torno dela todo o nosso corpo tendo primeiro construiacutedo agrave volta de todo o conjunto uma protecccedilatildeo feita de osso

Quanto agrave constituiccedilatildeo do osso ela processou-se do seguinte modo depois de ter peneirado terra pura e lisa misturou-a e humedeceu-a com medula em seguida pocirc-la no fogo depois mergulhou-a em aacutegua pocirc-la novamente no fogo e outra vez em aacutegua Repassando-a vaacuterias vezes deste modo num e noutro tornou-a impassiacutevel de ser dissolvida por ambos Foi desta mistura

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que se serviu para tornear uma esfera oacutessea agrave volta da cabeccedila na qual deixou ficar uma saiacuteda estreita Em redor da medula do pescoccedilo e do dorso estendeu as veacutertebras semelhantes a gonzos que moldou a partir da mesma mistura comeccedilando pela cabeccedila e atravessando todo o dorso Cercou toda a semente para deste modo a manter a salvo com uma vedaccedilatildeo peacutetrea onde criou articulaccedilotildees servindo-se das propriedades do Outro que colocou no meio deles em virtude do movimento e da flexibilidade Mas prevendo que a condiccedilatildeo da natureza oacutessea seria mais fragmentaacutevel do que devia ser e muito inflexiacutevel ndash se fosse aquecida e novamente arrefecida gangrenaria rapidamente ndash e que a semente dentro dela se destruiria concebeu deste modo e por estes motivos o geacutenero dos tendotildees e da carne para que unindo todos os membros com os tendotildees que distendem e contraem em torno das veacutertebras o corpo se pudesse dobrar e estender A carne seria uma protecccedilatildeo contra as queimaduras e um obstaacuteculo para o frio e ainda para as quedas semelhante a uma almofada que cede de forma mole e suave ao peso dos corpos Por conter dentro de si proacutepria uma humidade quente que durante o Veratildeo seria exsudada produziria no exterior de todo o corpo uma agradaacutevel frescura e durante o Inverno novamente por meio deste fogo repeliria adequadamente as investidas do frio que o cerca do exterior Tendo isto em consideraccedilatildeo aquele que nos moldou como se trabalhasse a cera fez uma mistura e uma combinaccedilatildeo harmoniosa de aacutegua fogo e terra aos quais acrescentou um fermento composto de

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aacutecido e de sal e constituiu a carne mole e suculenta No que respeita agrave natureza dos tendotildees de osso e

de carne sem fermento misturou-os num soacute composto com propriedades intermeacutedias agravequeles dois servindo-se da cor amarela Daiacute que os tendotildees apresentem a propriedade de serem mais compactos e viscosos do que a carne mas mais moles e huacutemidos do que os ossos Com eles o deus envolveu os ossos e a medula depois de ter unido os ossos uns com os outros aos tendotildees de seguida cobriu todos eles com carne por cima Os ossos que continham mais alma envolveu-os com muito menos carne e os que tinham menos alma dentro de si envolveu-os com muita e mais compacta Junto agraves articulaccedilotildees dos ossos onde a razatildeo241 mostrava que natildeo havia qualquer necessidade de carne ele fez crescer a carne com pouca espessura para que os corpos natildeo se fizessem difiacuteceis de carregar e se tornassem avessos ao movimento pois impediriam as flexotildees e por outro lado para que as carnes abundantes e excessivamente densas compactadas umas com as outras natildeo causassem insensibilidade em virtude da sua firmeza nem fizessem os corpos muito avessos agrave memoacuteria e torpes de pensamento242 Eacute por isso que as coxas as pernas e a zona das ancas os ossos da zona do braccedilo e do antebraccedilo e todos os que em noacutes satildeo desprovidos de articulaccedilatildeo isto eacute todos os ossos que por terem pouca alma na sua medula satildeo vazios de pensamento243 todas estas zonas estatildeo completamente preenchidas de carne Pelo contraacuterio as partes com

241 logos242 dysmnecircmoneutotera kai kocircphotera ta peri tecircn dianoian243 phronecircsis

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pensamento tecircm menos carne ndash excepto quando o deus constituiu alguma parte de carne autoacutenoma por causa dos sentidos como a espeacutecie da liacutengua por exemplo mas na maior parte dos casos passou-se daquele modo Eacute que a natureza gerada da Necessidade e por ela criada de modo algum admite ao mesmo tempo uma estrutura oacutessea compacta muita carne e acuidade sensorial Mais do que todas seria a estrutura que circunda a cabeccedila que teria estes atributos contanto que elas pudessem ocorrer ao mesmo tempo e por outro lado se o geacutenero dos homens tivesse uma cabeccedila coberta de carne e tendotildees ndash isto eacute forte ndash granjearia uma vida duas ou mais vezes maior mais saudaacutevel e mais livre de dores do que agora Nesse momento os demiurgos da nossa geraccedilatildeo ao reflectirem sobre se o geacutenero que estavam para criar havia de ter uma vida mais longa e pior se uma mais breve e melhor e decidiram que por todos os motivos deviam preferir uma vida mais curta que fosse melhor a uma mais longa que seria mais trivial Daiacute que natildeo tenham recobrido a cabeccedila com carne e tendotildees mas sim com um osso fino pois ela natildeo se destinava a fazer qualquer flexatildeo Foi por todas estas razotildees que a cabeccedila aplicada a todos os homens eacute mais proacutepria para sentir e mais dada ao pensamento e por outro lado muito fraacutegil No que respeita aos tendotildees foi deste modo e por estes motivos que o deus os pocircs em ciacuterculo ao fundo da cabeccedila colando-os uniformemente agrave volta do pescoccedilo e lhes uniu as extremidades dos maxilares por baixo da natureza do rosto Quanto aos outros distribuiu-os por todos os membros unindo cada articulaccedilatildeo agrave sua articulaccedilatildeo contiacutegua

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Em relaccedilatildeo agraves propriedades da nossa boca foi com vista ao que eacute necessaacuterio e melhor que aqueles que a apetrecharam a apetrecharam de dentes liacutengua e laacutebios segundo a forma como hoje estaacute disposta concebendo a entrada com vista agrave necessidade e a saiacuteda com vista ao melhor eacute que tudo quanto entra dado ao corpo como alimento diz respeito ao necessaacuterio e o fluxo de palavras que corre para o exterior e auxilia o pensamento244 eacute o mais belo e excelente de todos os fluxos

Natildeo era possiacutevel deixar a cabeccedila calva soacute com o osso por causa das intempeacuteries de cada uma das estaccedilotildees nem por outro lado consentir que ela ficasse oculta por uma massa de carne que a tornaria muda e insensiacutevel Como a natureza do que tem carne natildeo secasse foi separada dela uma grande camada superficial a que agora chamamos pele Esta camada em virtude da humidade que circunda o ceacuterebro uniu-se a si mesma e propagou-se em ciacuterculos ateacute que cobriu a cabeccedila a humidade que irrompia sob as costuras irrigou-a e encerrou a camada no cume da cabeccedila como se tivesse dado um noacute Haacute variadas formas de sutura em funccedilatildeo da acccedilatildeo das oacuterbitas da alma e do alimento essas suturas satildeo em maior nuacutemero quando essas forccedilas se opotildeem muito umas agraves outras e em menor quando se opotildeem menos Atraveacutes do fogo a divindade perfurou toda a pele em ciacuterculos e as secreccedilotildees eram expelidas ao passarem pela pele para o exterior tudo quanto fosse huacutemido e quente em estado puro saiacutea Por outro lado a mistura constituiacuteda pelos mesmos elementos que a pele

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elevou-se pelo movimento e estendeu-se muito para fora pois tinha uma finura igual agrave das perfuraccedilotildees Mas em virtude da sua lentidatildeo foi empurrada novamente do exterior para o interior pelo ar circundante Encheu a pele e ganhou raiacutezes debaixo dela

Foi por causa destes fenoacutemenos que nasceu na pele o geacutenero do cabelo fibroso e congeacutenere da pele mas mais soacutelido e mais denso por causa da compressatildeo provocada pelo arrefecimento esse processo de compressatildeo ocorre quando cada cabelo eacute separado da pele e arrefece Foi deste modo que aquele que nos fez produziu uma cabeccedila cabeluda servindo-se das causas que referimos por considerar que em vez de carne era necessaacuterio haver uma cobertura agrave volta do ceacuterebro (tendo em vista a sua seguranccedila) que fosse leve e capaz de lhe garantir sombra no Veratildeo e abrigo no Inverno sem que se gerasse qualquer obstaacuteculo que impedisse a capacidade sensorial No local agrave volta dos dedos onde se entrecruza o tendatildeo a pele e o osso a mistura destes trecircs quando secou por completo deu origem a uma uacutenica pele dura que reunia todos os outros ndash fabricada com estas causas acessoacuterias mas produzida com o pensamento como causa principal245 e tendo em vista aqueles que viriam a seguir Eacute que aqueles que nos constituiacuteram tinham conhecimento de que um dia as mulheres e os outros animais selvagens seriam gerados a partir dos homens e tambeacutem sabiam que muitas dessas criaturas teriam que se servir das garras para muitos fins daiacute que ao mesmo tempo que eram gerados os homens

245 tecirc de aitiocirctatecirc dianoia eirgasmenon

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eles fizeram um esboccedilo das garras Foi deste modo e por estes motivos que criaram a pele os pecirclos e as unhas nas extremidades dos membros

Logo que todas as partes e todos os membros do ser-vivo mortal ficaram naturalmente combinados seria forccediloso que este tivesse uma vida exposta ao fogo e ao ar Visto que ele seria consumido e desgastado e por causa disso pereceria entatildeo os deuses conceberam um auxiacutelio para ele Criaram uma natureza congeacutenita da humana tendo misturado outras sensaccedilotildees com outras figuras de modo a que resultasse um outro ser Trata-se das aacutervores das plantas e das sementes actualmente educadas entre noacutes e domesticadas pela agricultura poreacutem antigamente existiam somente geacuteneros bravios os quais eram mais velhos do que os dos nossos dias A tudo quanto participe da vida podemos chamar-lhe correctamente ser-vivo segundo parece Poreacutem esta espeacutecie de que falamos participa da terceira forma de alma246 que estaacute estabelecida entre o diafragma e o umbigo como dissemos e nada tem que ver com a opiniatildeo com o raciociacutenio ou com o intelecto mas sim com a sensaccedilatildeo de prazer ou de dor que acompanha os apetites247 De facto manteacutem-se passiva em relaccedilatildeo a tudo rodando ela proacutepria em si mesma e em torno de si mesma248 repelindo o movimento do exterior e fazendo

246 Trata-se da parte apetitiva (epithymia)247 Ao fazer derivar a alma das plantas da terceira forma de

alma Timeu justifica assim o facto de os seres vegetais estarem desprovidos de pensamento ainda que sejam duais

248 Tambeacutem no Fedro (245c-d) eacute sublinhado o movimento da alma em torno de si mesma

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uso do que eacute seu congeacutenere pois a sua geraccedilatildeo natildeo lhe permitiu perceber por natureza nada de si proacutepria nem raciocinar Por isso ainda que tenha vida e natildeo seja nada senatildeo um ser-vivo manteacutem-se estaacutetica e enraizada privada de movimento proacuteprio

Depois de os seres mais poderosos plantarem todos estes geacuteneros como alimento para os mais fracos (noacutes) equiparam o nosso proacuteprio corpo com canais tal como se talham regos nos jardins para que fosse como que irrigado por uma torrente que o inunda Primeiro talharam dois canais escondidos por baixo do ponto onde se juntam a pele e a carne os vasos sanguiacuteneos dorsais249 (que satildeo dois) porque acontece que o corpo eacute duplo tem um lado direito e um esquerdo Lanccedilaram estes vasos sanguiacuteneos ao longo da coluna encerrando entre eles a medula geratriz250 para que se desenvolvesse ao maacuteximo e fluindo em abundacircncia dali para os outros locais a corrente gerada pudesse providenciar uma irrigaccedilatildeo uniforme Em seguida dividiram os vasos sanguiacuteneos agrave volta da cabeccedila e enlaccedilaram as extremidades de modo a ficarem enrolados uns nos outros flectindo os do lado direito para o lado esquerdo do corpo e os do lado esquerdo para o lado direito de modo a que fizessem uma ligaccedilatildeo com a pele entre a cabeccedila e o corpo jaacute que esta natildeo estava envolvida com tendotildees em ciacuterculo no topo e para que todo o corpo distinguisse o efeito das sensaccedilotildees provenientes de cada uma das partes

249 A arteacuteria aorta e a veia cava (inferior e superior)250 Espinal medula

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Logo de seguida os deuses prepararam a irrigaccedilatildeo da forma que se segue perceberemo-la mais facilmente se concordarmos de antematildeo com isto todos os corpos constituiacutedos a partir de partiacuteculas mais pequenas satildeo impermeaacuteveis aos de partiacuteculas maiores e os de partiacuteculas maiores natildeo conseguem ser impermeaacuteveis aos de partiacuteculas mais pequenas de todos os geacuteneros o fogo eacute o que eacute constituiacutedo por partiacuteculas mais pequenas daiacute que atravesse a estrutura da aacutegua da terra e do ar enquanto nada eacute impermeaacutevel a ele Devemos ter em mente que se passa o mesmo com o nosso abdoacutemen251 quando a comida e a bebida caem dentro dele ficam retidos no entanto o sopro respiratoacuterio e o fogo natildeo conseguem pois satildeo constituiacutedos por partes mais pequenas do que as da constituiccedilatildeo do abdoacutemen Portanto o deus serviu-se deles para fazer a irrigaccedilatildeo desde o toacuterax ateacute aos vasos sanguiacuteneos tecendo uma tranccedila de ar e de fogo semelhante a uma nassa252 com dois funis agrave entrada e fez um desses dois bifurcado a partir destes funis estendeu uma espeacutecie de junco em ciacuterculos por toda a tranccedila ateacute agraves extremidades Todo o interior do entranccedilado era constituiacutedo por fogo enquanto que os funis e o invoacutelucro tinham a forma do ar Pegando nele colocou-o da seguinte forma no interior do ser-vivo que moldava Um dos funis largou-o na boca Como esse era o bifurcado esticou uma das ramificaccedilotildees ateacute ao pulmatildeo pela traqueia abaixo e a outra ateacute ao abdoacutemen ao longo da

251 koilia Este termo designa toda a cavidade toraacutexica que inclui os sistemas digestivo e respiratoacuterio

252 Uma espeacutecie de camaroeiro utilizado pelos pescadores para reter o peixe

Platatildeo

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traqueia a outra dividiu-a e fez passar cada uma das duas partes em conjunto pelos canais do nariz de tal forma que visto que a segunda natildeo passa pela boca todos os fluxos daquela satildeo cumpridos por esta Quanto ao resto da nassa o invoacutelucro ele fecirc-la crescer agrave volta de toda a cavidade do nosso corpo e fez tudo de forma a que umas vezes todo ele fluiacutesse docemente pelos funis ndash os quais satildeo feitos de ar ndash e outras vezes os funis se esvaziassem Visto que o corpo eacute permeaacutevel fez por outro lado que a tranccedila entrasse por ele e novamente saiacutesse Jaacute os raios de fogo encerrados dentro dele eles seguiriam o ar de um lado para o outro e isto natildeo cessaria enquanto o ser-vivo mortal mantivesse a sua constituiccedilatildeo Foi por isso que aquele que estabeleceu as designaccedilotildees se referiu a isto pondo-lhes os nomes ldquoinspiraccedilatildeordquo e ldquoexpiraccedilatildeordquo Todas estas acccedilotildees e impressotildees foram geradas no nosso corpo para que ele sendo irrigado e refrescado se alimentasse e vivesse Eacute que sempre que a respiraccedilatildeo se dirige de dentro para fora e de fora para dentro o fogo unido ao seu interior segue-a Neste constante vaiveacutem entra pelo abdoacutemen e apropria-se da comida e da bebida dissolve-os dividindo-os em pequenas partes leva-os pelos poros por onde se desloca e despeja-os nos vasos sanguiacuteneos como a aacutegua de uma fonte em canais e faz fluir pelo corpo as torrentes dos vasos sanguiacuteneos como num aqueduto

Vejamos novamente as impressotildees da respiraccedilatildeo e de que causas se serve para ser do modo como eacute agora Passa-se o seguinte quando jaacute natildeo haacute nenhum vazio em que possa entrar alguma das coisas que se movimentam

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e como o sopro respiratoacuterio sai de dentro de noacutes o que se sucede eacute evidente para todos ele natildeo vai para o vazio mas empurra o ar que estaacute proacuteximo de si para fora do seu lugar este ao ser empurrado desloca incessantemente o ar proacuteximo de si e de acordo com esta necessidade todo ele se desloca num movimento circular em direcccedilatildeo ao lugar de onde sai o sopro respiratoacuterio Entra nesse lugar e preenche-o seguindo o sopro respiratoacuterio E tudo isto ocorre em simultacircneo semelhante ao girar de uma roda por natildeo existir qualquer vazio Eacute por isso que a zona do peito e do pulmatildeo quando expele o sopro respiratoacuterio para o exterior fica novamente cheia do ar que circunda o corpo pois este entra atraveacutes da carne porosa e circula dentro dele quando o ar regressa e se dirige para o exterior atraveacutes do corpo forccedila o ar inspirado a entrar pela passagem das narinas e pela boca Devemos estabelecer que a causa deste princiacutepio eacute a seguinte em todos os seres vivos as partes interiores que circundam o sangue e os vasos sanguiacuteneos satildeo as mais quentes como se dentro do proacuteprio corpo houvesse uma fonte de fogo foi isto que comparaacutemos agrave tranccedila da nassa quando foi dito que toda ela estava entretecida com fogo no centro e as outras partes do exterior com ar Portanto devemos admitir que o que eacute quente se dirige por natureza para o exterior em direcccedilatildeo ao lugar de que eacute congeacutenere Como haacute duas saiacutedas ndash uma atraveacutes do corpo para o exterior outra atraveacutes das boca e das narinas ndash quando corre para uma empurra o ar em ciacuterculos na outra o ar empurrado em ciacuterculos choca contra o fogo e eacute aquecido o que sai eacute arrefecido Agrave medida que se daacute o intercacircmbio de calor

Platatildeo

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e o ar que transita pela outra saiacuteda fica mais quente este por ser mais quente eacute o que estaacute mais inclinado a voltar agravequela saiacuteda movimentando-se por natureza na sua direcccedilatildeo empurra em ciacuterculos o ar que vai para a outra Por receber sempre os mesmos impulsos e reagir sempre da mesma maneira ao oscilar de um lado para o outro e ao produzir este movimento circular provoca por meio desta duplicidade a formaccedilatildeo de inspiraccedilatildeo e expiraccedilatildeo

Devemos em igual medida procurar tambeacutem a explicaccedilatildeo para os efeitos relacionados com as ventosas medicinais253 com a degluticcedilatildeo e com os projeacutecteis ndash quer os que satildeo lanccedilados para o ar quer os que satildeo lanccedilados para a terra ndash e tambeacutem de todos os sons raacutepidos ou lentos que nos aparecem como agudos e graves os quais recebemos como estando desprovidos de harmonia por causa da dissemelhanccedila do movimento que geram em noacutes ou como sendo harmoniosos em virtude da semelhanccedila De facto os sons mais lentos apanham os movimentos que de entre os mais raacutepidos chegaram primeiro e quando esses movimentos estatildeo a cessar e atingem a constacircncia chocam com os uacuteltimos e potildeem-nos em movimento Contudo quando os apanham natildeo lhes incutem um outro movimento que os transtorne Ao ajustar a origem do movimento mais lento e o termo do mais raacutepido quando este estaacute a abrandar na altura em que atingiu a semelhanccedila o deus misturou o agudo e o grave em conjunto numa

253 Plutarco nas Questotildees Platoacutenicas (1004D-1006D) fornece uma explicaccedilatildeo pormenorizada deste meacutetodo terapecircutico

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soacute impressatildeo daiacute que cause prazer aos insensatos e boa-disposiccedilatildeo aos intelectuais254 por representar a harmonia divina em movimentos mortais

O mesmo se passa com todos os fluxos de aacutegua a queda de raios as maravilhas da atracccedilatildeo do acircmbar e da pedra de Heacuteracles255 A atracccedilatildeo natildeo interveacutem de qualquer modo em nenhum de todos estes objectos mas seraacute evidente para quem os investigar adequadamente que eacute por causa destes acidentes (em virtude de natildeo existir o vazio e de eles se empurrarem em ciacuterculos entre si por vezes separando-se e por vezes combinando-se trocando de lugar entre si e dirigindo-se todos para o que lhes eacute proacuteprio) que eles se entretecem uns com os outros e fabricam fenoacutemenos admiraacuteveis

Tambeacutem o processo de respiraccedilatildeo a partir de onde este discurso comeccedilou eacute gerado de acordo com estes pressupostos e pelas mesmas causas como foi dito em discursos anteriores256 O fogo desfaz os alimentos e eacute elevado dentro de noacutes ao acompanhar o sopro respiratoacuterio e por meio dessa oscilaccedilatildeo enche os vasos sanguiacuteneos desde o abdoacutemen irrigando-os com o que nele desfez eacute por isto que em todos os seres-vivos a corrente de alimentos circula deste modo por todo o corpo Estas partiacuteculas acabadas de ser cortadas das suas congeacuteneres umas de frutas outras de vegetais que o deus plantou para noacutes com esta finalidade ndash ser alimento

254 Este duplo efeito da muacutesica em funccedilatildeo da natureza do ouvinte fora jaacute abordado em 47d

255 Magnetite Esta concepccedilatildeo eacute tambeacutem atribuiacuteda a Empeacutedocles (DK 31A89)

256 Cf supra 79a-e

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ndash assumem cores variadas por terem sido misturadas conjuntamente poreacutem o encarnado eacute a cor que mais as envolve pois consiste na aparecircncia produzida no liacutequido pelo corte do fogo Daiacute que o fluido que corre pelo nosso corpo ndash a que chamamos ldquosanguerdquo e que eacute o alimento da carne e da totalidade do corpo graccedilas ao qual cada parte irrigada enche o siacutetio que se esvazia ndash tenha a cor e o aspecto que descrevemos O mecanismo de enchimento e esvaziamento eacute gerado tal como o movimento de todo o universo foi gerado segundo o qual tudo o que eacute seu congeacutenere se movimenta em direcccedilatildeo a si proacuteprio Aquilo que nos rodeia no exterior dissolve-nos e decompotildee-nos incessantemente remetendo cada espeacutecie para aquilo que lhe eacute aparentado mas as partiacuteculas de sangue fragmentadas dentro de noacutes e envolvidas pela estrutura de cada um dos seres-vivos como por um ceacuteu satildeo obrigadas a imitar o movimento do universo como cada uma das partiacuteculas divididas dentro de noacutes se dirige ao que eacute nosso congeacutenere o vazio deixado eacute novamente preenchido Quando desprendem mais do que recebem todos os seres perecem mas quando desprendem menos crescem No tempo em que toda a estrutura do ser-vivo eacute jovem quando os seus triacircngulos satildeo novos como acabados de acabados de sair da oficina257 mantecircm-se resistentes e coesos mutuamente embora todo o corpo seja uma composiccedilatildeo delicada visto que foi acabada de gerar a partir da medula e alimenta-se de leite Quanto aos triacircngulos que envolve em si mesma e que provecircm do exterior (aqueles de que se hatildeo-de formar o alimento

257 Metaacutefora importada de Aristoacutefanes (Tesmofoacuterias 52)

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e a bebida) por serem mais velhos e mais fraacutegeis do que os triacircngulos dela domina-os e corta-os com os seus que satildeo novos e o ser-vivo faz-se maior por ser alimentado por muitas substacircncias semelhantes258 Mas quando o sustentaacuteculo dos triacircngulos relaxa em virtude de eles terem disputado muitos confrontos durante muito tempo e contra muitos inimigos eles jaacute natildeo conseguem cortar e assimilar nenhum dos triacircngulos do alimento que entram mas pelo contraacuterio os seus satildeo facilmente divididos pelos que entram do exterior ndash todo o ser-vivo perece ao ser deste modo dominado e a esta impressatildeo chamamos ldquovelhicerdquo Por fim quando os elos dos triacircngulos que estatildeo unidos em torno da medula jaacute natildeo aguentam e satildeo separados pelo esforccedilo desprendem os laccedilos da alma que ao ser libertada de acordo com a natureza desvanece-se de forma apraziacutevel eacute que tudo o que acontece em desacordo com a natureza eacute doloroso mas o que se gera de forma natural eacute agradaacutevel Por isso de acordo com este pressuposto a morte eacute dolorosa e violenta se for causada por ferimentos ou decorrente de doenccedilas e a morte que ocorre na sequecircncia da velhice ndash de que eacute por natureza o culminar ndash eacute a menos penosa e tem mais prazer do que dor

De onde provecircm as doenccedilas isso eacute evidente para todos Visto que o corpo eacute composto de quatro elementos ndash terra fogo aacutegua e ar ndash uma doenccedila eacute gerada pelo excesso ou pela falta (contra a natureza) de algum deles ou por uma mudanccedila de lugar quando um elemento

258 A ideia de que as substacircncias se alimentam daquilo que lhes eacute afim seraacute tambeacutem partilhada por Aristoacuteteles (Sobre a Geraccedilatildeo e a Corrupccedilatildeo 333a36-b16)

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abandona o lugar que lhe corresponde por natureza para ocupar um que lhe eacute estranho ou entatildeo pois acontece que existe mais do que um geacutenero de fogo e de outros elementos quando um deles toma para si mesmo algo que natildeo lhe eacute adequado ndash todos os fenoacutemenos desta natureza provocam distuacuterbios e doenccedilas Quando cada um deles eacute gerado ou deslocado contra a natureza torna-se quente o que outrora fora frio o que eacute seco vai tornar-se huacutemido o que eacute leve torna-se pesado e eles sofrem toda a espeacutecie de mudanccedilas Eacute que segundo dizemos soacute se o mesmo for adicionado ou subtraiacutedo ao mesmo na mesma medida e da mesma maneira segundo a proporccedilatildeo correcta eacute que o mesmo poderaacute ser ele proacuteprio satildeo e saudaacutevel mas aquele que transgredir algum destes limites separando-se ou adicionando-se produziraacute todo o tipo de alteraccedilotildees doenccedilas e destruiccedilotildees incontaacuteveis

Visto que foram constituiacutedas estruturas secundaacuterias de acordo com a natureza haacute uma segunda ordem de consideraccedilotildees a fazer sobre as doenccedilas por aquele que quer percebecirc-las Eacute que a medula o osso a carne e o tendatildeo satildeo compostos a partir daquelas estruturas ndash tambeacutem o sangue embora de um modo diferente foi gerado a partir dos mesmos elementos A maioria das doenccedilas sobreveacutem do modo que foi descrito mas com as mais graves de entre elas as mais difiacuteceis de suportar passa-se o seguinte quando a geacutenese daquelas estruturas sofre uma inflexatildeo em relaccedilatildeo ao que lhe eacute natural elas corrompem-se De acordo com a natureza a carne e os tendotildees satildeo gerados a partir do sangue ndash os

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tendotildees a partir das fibras de natureza idecircntica agrave sua e a carne a partir do coaacutegulo que se forma quando se separa das fibras A partir dos tendotildees e da carne escorre uma substacircncia viscosa e brilhante que cola a carne agrave natureza dos ossos e ao alimentar os ossos que estatildeo em torno da medula faacute-lo crescer enquanto que o geacutenero mais puro mais liso e mais brilhante dos triacircngulos ao ser filtrado pela espessura dos ossos e liquefeito vai pingando dos ossos e irriga a medula Quando cada etapa se processa desta maneira surge em grande parte dos casos a sauacutede mas ocorre a doenccedila quando se passa o contraacuterio Eacute que quando a carne se liquefaz e inversamente expele para os vasos sanguiacuteneos o resultado da dissoluccedilatildeo entatildeo nos vasos sanguiacuteneos fica muito sangue diacutespar pois estaacute multiplamente alterado por cores e azedumes e ainda por propriedades aacutecidas e salinas aleacutem de que conteacutem toda a espeacutecie de biacutelis259 soros e fleumas Depois de todos serem reconstituiacutedos e corrompidos comeccedilam por deteriorar o proacuteprio sangue e sem que eles forneccedilam qualquer alimento ao corpo circulam por todo lado atraveacutes dos vasos sanguiacuteneos sem obedecerem agrave ordem natural das oacuterbitas hostis a si mesmos por natildeo retirarem qualquer proveito de si proacuteprios e inimigos das estruturas do corpo que se mantecircm no lugar que lhes compete as quais por seu turno deterioram e dissolvem

Quando a parte da carne que se vai dissolver eacute muito velha torna-se difiacutecil de assimilar entatildeo eacute enegrecida

259 Haacute dois tipos de biacutelis a branca e a negra (cf infra 82e 83c)

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por um incecircndio prolongado e por ser completamente consumida torna-se amarga e ataca de forma terriacutevel por todo o corpo ndash mesmo aquilo que ainda natildeo foi consumido Por vezes quando a parte amarga eacute reduzida a partes mais pequenas em vez de amargor a cor negra faz-se acompanhar de acidez outras vezes quando o amargor eacute mergulhado no sangue adquire uma cor mais avermelhada e como o negro se mistura com ele adquire a cor biliosa ou ainda a cor amarela mistura-se com o azedume quando a carne nova eacute dissolvida com a chama do fogo E o nome comum a todas as substacircncias desta natureza eacute ldquobiacutelisrdquo atribuiacutedo por alguns meacutedicos ou por algueacutem que eacute capaz de observar muitas coisas dissemelhantes e de identificar entre todas elas um geacutenero uacutenico merecedor de uma designaccedilatildeo comum Quanto a todos os outros fluidos que dizemos serem formas de biacutelis cada um tem uma designaccedilatildeo proacutepria em funccedilatildeo da sua cor No que respeita ao soro eacute brando quando se trata da parte aquosa do sangue mas eacute rude quando se trata da biacutelis negra e aacutecida porque se mistura por meio do calor com uma potecircncia salgada ao que eacute misturado deste modo chama-se ldquofleuma aacutecidardquo Aquilo que combinado com o ar resulta da dissoluccedilatildeo de carne nova e tenra isto eacute quando eacute preenchida por ar e envolvida por liacutequido e quando se constituem bolhas a partir deste processo ndash cada uma delas torna-se invisiacutevel em virtude da sua pequenez mas o conjunto apresenta-se como uma massa visiacutevel que por gerar espuma tem uma cor branca aos nossos olhos ndash dizemos que toda esta dissoluccedilatildeo de carne tenra entretecida com o sopro

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respiratoacuterio eacute fleuma branca A parte aquosa da fleuma constituiacuteda recentemente eacute o suor as laacutegrimas e tudo o mais que os corpos segregam todos os dias para se purificarem Todos eles se tornam agentes causadores de doenccedilas quando o sangue em vez de estar preenchido por comida e bebida de acordo com a natureza recebe uma massa de substacircncias que estatildeo em desacordo com as leis da natureza Mesmo que os vaacuterios tipos de carne sejam desfeitos pelas doenccedilas enquanto as suas fundaccedilotildees aguentarem a gravidade do problema seraacute meacutedia para elas ndash ainda eacute possiacutevel uma recuperaccedilatildeo com facilidade Mas se aquilo que liga a carne aos ossos chegar a adoecer e se ela proacutepria se separar simultaneamente das fibras e dos tendotildees e natildeo alimentar os ossos nem mantiver a ligaccedilatildeo entre a carne e os ossos e de brilhante lisa e viscosa passe a aacutespera salgada e ressequida por um regime prejudicial tudo o que eacute afectado deste modo eacute mais uma vez desagregado sob a carne e os tendotildees Ao separar-se dos ossos a carne eacute arrancada do sustentaacuteculo e deixa os tendotildees nus e cheios de salinidade ela proacutepria remetida novamente para o sangue torna ainda piores as doenccedilas de que falaacutemos anteriormente260

Mesmo que se trate de impressotildees graves para o corpo ainda mais graves satildeo as que se geram numa camada anterior quando o osso que em virtude da espessura da carne natildeo toma ar suficiente e eacute aquecido pelo bolor fica gangrenado natildeo recebe o alimento e segue pelo sentido contraacuterio desfazendo-se ele proacuteprio em alimento eacute remetido para a carne e a carne eacute

260 Cf supra 82e-83a

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remetida para o sangue o que produz doenccedilas todas elas mais severas do que as anteriores O caso mais extremo de todos daacute-se quando a natureza da medula adoece por falta ou excesso de algo o que provoca os maiores e mais poderosos distuacuterbios que podem levar agrave morte dado que toda a natureza do corpo eacute obrigada a fluir em sentido contraacuterio

Haacute uma terceira espeacutecie de doenccedilas que eacute necessaacuterio considerar as quais satildeo geradas a partir de trecircs causas do sopro respiratoacuterio da fleuma e da biacutelis Quando o pulmatildeo que eacute o controlador dos sopros respiratoacuterios no corpo natildeo consegue manter limpas as vias de saiacuteda que estatildeo bloqueadas por secreccedilotildees o sopro respiratoacuterio natildeo chega a certas partes mas chega a outras mais do que o necessaacuterio o que as faz apodrecer por natildeo conseguirem o arrefecimento enquanto que invadindo outros vasos sanguiacuteneos retorcendo-os e destruindo-os dissolve o corpo ateacute ao seu centro ndash laacute onde o diafragma o refreia e intercepta Por este motivo produz-se uma infinidade de distuacuterbios dolorosos muitas vezes acompanhados de uma abundacircncia de suores Frequentemente quando a carne eacute dissolvida forma-se ar dentro do corpo e eacute impossiacutevel levaacute-lo para o exterior o que causa os mesmos tormentos que quando vem do exterior Satildeo maiores quando o ar afecta os tendotildees e os vasos sanguiacuteneos mais proacuteximos e os faz inchar retesando deste modo para traacutes o extensor e os tendotildees contiacuteguos eacute desta tensatildeo e por este motivo que estas doenccedilas foram chamadas ldquoteacutetanordquo e ldquoopistoacutetonordquo261 Satildeo difiacuteceis de tratar e as febres que

261 opisthotonos Trata-se muito provavelmente do espasmo

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nelas tecircm origem satildeo o factor que leva agrave sua extinccedilatildeo A fleuma branca eacute dolorosa quando o ar das bolhas fica retido mas se for exalada para fora do corpo torna-se mais suave embora peje o corpo com erupccedilotildees brancas e crie distuacuterbios congeacuteneres Mas quando estaacute misturada com biacutelis negra e eacute difundida ateacute agraves oacuterbitas na cabeccedila que satildeo as mais divinas potildee-as em desordem quando acontece durante o sono eacute mais suave mas se se instala enquanto se estaacute acordado torna-se mais difiacutecil de nos vermos livres dela Enquanto distuacuterbio da parte divina eacute com toda a justiccedila que se lhe chama ldquosagradardquo262

A fleuma aacutecida e salgada eacute a fonte de todas as doenccedilas que o catarro gera mas em virtude de os lugares para os quais corre serem variados tomam todo o tipo de nomes Sempre que se diz que haacute uma inflamaccedilatildeo no corpo por causa de ele estar a arder e inflamado tudo isso eacute gerado pela biacutelis Quando ela encontra uma via respiratoacuteria para o exterior entra em ebuliccedilatildeo e expele todo o tipo de abcessos mas se ficar encerrada no interior cria muacuteltiplos distuacuterbios inflamatoacuterios e o mais grave ocorre quando ao misturar-se com o sangue puro altera a organizaccedilatildeo natural do geacutenero das fibras as quais estatildeo espalhadas pelo sangue para que este mantenha a relaccedilatildeo correcta entre fluidez e espessura e natildeo escorra

opistoacutetono (arqueamento suacutebito do corpo que faz projectar a cabeccedila e as pernas para traacutes) que consiste num dos sintomas do teacutetano ou de meningite No entanto o contexto parece sugerir que ldquoopistoacutetonordquo designaria a doenccedila em si e natildeo um sintoma

262 Timeu refere-se agrave epilepsia O facto de lhe chamar ldquosagradardquo deve-se a um tratado do Corpus Hippocraticum dedicado a esta doenccedila cujo tiacutetulo (Sobre a Doenccedila Sagrada) e conteuacutedo lhe apontam causas divinas

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pelos poros do corpo em virtude de ser liquefeito pelo calor nem por outro lado se mantenha sempre nos vasos sanguiacuteneos fluindo a custo por se tornar espesso As fibras graccedilas agrave sua constituiccedilatildeo natural preservam este equiliacutebrio mesmo depois de o sangue ter morrido e comeccedilar a arrefecer se juntarmos as fibras umas com as outras tudo o que resta do sangue fica liquefeito mas se deixarmos ficar as fibras como estatildeo rapidamente o sangue coagula com a colaboraccedilatildeo do frio circundante Como as fibras tecircm esta propriedade sobre o sangue a biacutelis (que por natureza tem a sua origem em sangue velho e volta novamente dissolvida da carne para o sangue) quando primeiro entra em estado liacutequido e quente em pequenas quantidades coagula por causa da propriedade das fibras enquanto coagula e arrefece agrave forccedila causa calafrios e arrepios no interior do corpo Mas quando corre em maior quantidade ao dominar as fibras com o calor que traz consigo sacode-as ateacute agrave desordem ao entrar em ebuliccedilatildeo e se for capaz de dominaacute-las por completo penetra na medula e depois de a incendiar desata daiacute os viacutenculos da alma como se fossem as amarras de um barco e solta-a para a liberdade No entanto quando vem em menor quantidade o corpo resiste a ser dissolvido e ela eacute dominada ou eacute dispersa por todo o corpo ou eacute forccedilada pelos vasos sanguiacuteneos a ir para a parte inferior ou para a parte superior do abdoacutemen Eacute entatildeo expulsa do corpo como os exilados de uma cidade em revolta porque causa diarreias e disenterias e todos os distuacuterbios dessa natureza Quando o corpo adoece sobretudo por um excesso de fogo produzem-se

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inflamaccedilotildees e febres constantes por um excesso de ar tem febres quotidianas por um excesso de aacutegua tem febres terccedilatildes pois a aacutegua eacute mais lenta do que o ar e do que o fogo e por um excesso de terra que eacute a quarta mais lenta deles o corpo eacute purgado durante um periacuteodo de tempo de quatro dias e criam-se febres quartatildes que custam muito a desaparecer

Eacute deste modo que se geram os distuacuterbios que afectam o corpo enquanto que os que afectam a alma e que resultam da condiccedilatildeo do corpo ocorrem do modo que se segue Temos que admitir que a doenccedila da alma eacute a demecircncia e haacute dois geacuteneros de demecircncia a loucura e a ignoracircncia A todas a impressotildees que algueacutem sofra e que englobem uma das duas devemos chamar ldquodoenccedilardquo Devemos tambeacutem estabelecer que os prazeres e as dores em excesso satildeo as mais graves das doenccedilas para a alma Eacute que quando um homem estaacute excessivamente contente ou pelo contraacuterio sofre por causa da dor apressando-se a arrebatar inoportunamente algum objecto ou a fugir do outro natildeo eacute capaz de ver nem de ouvir nada correctamente pois estaacute louco e a sua capacidade de participar do raciociacutenio encontra-se reduzida ao miacutenimo Aquele em quem se gera uma semente abundante que corre livremente pela medula como se fosse uma aacutervore com uma carga de frutos superior agrave medida estipulada pela natureza adquire repetidamente muacuteltiplas anguacutestias e muacuteltiplos prazeres nos seus apetites e nos frutos que nascem dessa condiccedilatildeo Torna-se louco durante a maior parte da vida por causa dos prazeres e dores extremos pois tem a alma doente e eacute mantida na

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insensatez por via do corpo ele eacute tido natildeo por doente mas por propositadamente mau263 A verdade eacute que esta licenciosidade em relaccedilatildeo aos prazeres sexuais eacute uma doenccedila da alma que se deve em grande medida a uma soacute substacircncia que por causa da porosidade dos ossos corre pelo corpo e humedece-o De um modo geral natildeo eacute correcto repreender tudo quanto respeita agrave incontinecircncia de prazeres e ao que eacute considerado digno de repreensatildeo como se os maus o fossem propositadamente ningueacutem eacute mau propositadamente pois o mau torna-se mau por causa de alguma disposiccedilatildeo maligna do corpo ou de uma educaccedilatildeo mal dirigida ndash estas satildeo inimigas de todos e acontecem contra a nossa vontade Novamente no que respeita agraves dores a alma adquire do mesmo modo uma grande quantidade de males atraveacutes do corpo Quando as fleumas aacutecidas e salinas e todos os sucos amargos e biliosos que vagueiam pelo corpo natildeo tomam um fluxo respiratoacuterio para o exterior mas ficam agraves voltas no interior se cruzam com o movimento da alma misturando com ela os seus proacuteprios vapores e introduzem na alma distuacuterbios de toda a espeacutecie mais ou menos graves em menor ou maior quantidade Faz-se transportar ateacute agraves trecircs regiotildees da alma e conforme qual delas ataquem pejam tudo de todas as formas e variedades de mau-humor de

263 Esta concepccedilatildeo assenta no famoso postulado platoacutenico segundo o qual a virtude eacute identificada com o conhecimento e inversamente o viacutecio com a ignoracircncia A sua formulaccedilatildeo eacute amplamente discutida um pouco por todo o corpus platoacutenico (Apologia de Soacutecrates 26a Goacutergias 467c-468c Leis 731c 734b 860d Protaacutegoras 345d-e 357c-e 358c-d Sofista 230a)

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desgosto e pejam tudo de audaacutecia de cobardia e ainda de esquecimento e dificuldade em aprender Aleacutem disto quando haacute homens assim mal constituiacutedos pelas cidades as instituiccedilotildees poliacuteticas264 e os discursos produzidos em privado ou em puacuteblico satildeo maus e quando ainda por cima natildeo existem ensinamentos aprendidos por estes homens desde a infacircncia que de nenhum modo curam destes males entatildeo todos os maus os tornaram maus por via de duas coisas completamente alheias agrave sua vontade Entre eles devemos lanccedilar a acusaccedilatildeo muito mais sobre os que concebem do que os que satildeo concebidos muito mais sobre os que educam do que os que satildeo educados Todavia devemos esforccedilar-nos na medida do possiacutevel atraveacutes da educaccedilatildeo e de haacutebitos de aprendizagem a fugir do mal e a alcanccedilar o seu contraacuterio Mas estes assuntos pertencem a outro tipo de discussatildeo265

No entanto eacute adequado proceder a reflexotildees inversas agravequelas por acccedilatildeo de que meios a sauacutede do corpo e do intelecto266 pode ser cuidada e conservada eacute mais justo atermo-nos a um discurso sobre o bem do que sobre o mal Tudo o que eacute bom eacute belo e o que eacute belo natildeo eacute assimeacutetrico267 estabeleccedilamos que um ser-vivo para ter estes atributos teraacute que ser simeacutetrico Mas entre essas simetrias reconhecemos e distinguimos as

264 politeia Sobre esta traduccedilatildeo do termo vide supra n 38265 O paralelo com a degeneraccedilatildeo dos regimes poliacuteticos no Livro

VIII da Repuacuteblica eacute inevitaacutevel266 dianoecircsis Neste contexto natildeo se trata da actividade

intelectiva mas sim e apenas do proacuteprio intelecto como faculdade que tal como o corpo deve ser exercitada e salvaguardada

267 Sobre a necessidade de algo belo ser simeacutetrico vide Filebo 64e-65a Repuacuteblica 402d

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pequenas enquanto que as mais importantes e as mais grandiosas mantemo-las indefinidas No que respeita agrave sauacutede e agrave doenccedila agrave virtude e agrave maldade natildeo haacute simetria ou assimetria maior do que a da proacutepria alma em relaccedilatildeo ao proacuteprio corpo natildeo temos nada disto em mente nem supomos que quando uma estrutura fraacutegil e pequena carrega uma alma forte e em tudo grandiosa e quando os dois satildeo unidos de acordo com a relaccedilatildeo inversa o conjunto do ser-vivo natildeo seraacute belo ndash eacute assimeacutetrico em relaccedilatildeo agraves simetrias principais No entanto quando estaacute na situaccedilatildeo inversa mostra a quem consegue ver a mais bela e mais agradaacutevel de todas as maravilhas Um corpo com as pernas demasiadamente compridas ou com qualquer outro excesso eacute em si mesmo simultaneamente aberrante e assimeacutetrico ao mesmo tempo quando conjuga esforccedilos provoca muitos sofrimentos muitas roturas e quedas em virtude do seu movimento cambaleante o que eacute uma causa de incontaacuteveis males para si proacuteprio

Devemos pensar o mesmo acerca do composto dual a que chamamos ser-vivo porque quando nele a alma por ser mais poderosa do que o corpo se apresenta irasciacutevel sacode-o violentamente e inunda-o todo de doenccedilas por todo o lado e consome-o quando se debruccedila intensamente sobre algum ensinamento ou investigaccedilatildeo quando ela se dedica agrave aprendizagem ou a discussotildees oratoacuterias em puacuteblico ou em privado agita-o e torna-o ardente nas disputas e rivalidades que se geram Ao induzir fluxos engana a maioria dos chamados meacutedicos e faacute-los responsabilizar as causas contraacuterias

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Quando um corpo demasiado grande e demasiado forte para a alma eacute congeminado com uma actividade intelectual268 diminuta e fraacutegil como nos homens existem dois tipos de apetites ndash um de alimento que proveacutem do corpo e outro de pensamento269 que proveacutem da parte mais divina que haacute em noacutes ndash e visto que os movimentos da parte mais poderosa dominam e aumentam o seu poder tornam a alma obtusa avessa agrave aprendizagem e privada de memoacuteria e produzem a pior doenccedila a ignoracircncia270 Haacute uma soacute salvaccedilatildeo para estas duas doenccedilas natildeo movimentar a alma sem o corpo nem o corpo sem a alma para que defendendo-se um ao outro mantenham equiliacutebrio e sauacutede Por isso o matemaacutetico ou qualquer outra pessoa que se dedique intensamente a uma actividade intelectual271 deve compensaacute-la com o movimento do seu corpo associando-lhe ginaacutestica em sentido inverso aquele que molda o corpo cuidadosamente deve compensar com os movimentos da alma servindo-se da muacutesica e de tudo quanto diz respeito agrave filosofia se espera que se diga com justiccedila e correctamente que eacute simultaneamente belo e bom272 Eacute tambeacutem deste modo que devemos tratar estas partes imitando o padratildeo do universo

268 dianoia269 phronecircsis270 amathia ldquoIgnoracircnciardquo no sentido mais literal de ldquodificuldade

em aprenderrdquo271 dianoia272 Referecircncia ao homem kalos kagathos o estado de perfeiccedilatildeo

educativa discutido e desenvolvido em vaacuterios diaacutelogos (Protaacutegoras 315d Repuacuteblica 376c 396c Teeteto 185e)

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Na verdade o corpo eacute aquecido e arrefecido por aquilo que nele entra e novamente eacute seco e humedecido pelo que vem do exterior Ele eacute afectado por este duplo movimento e por aquilo que dele decorre Assim quando algueacutem abandona o corpo em repouso ao sabor destes movimentos eacute dominado e destruiacutedo por eles Mas se algueacutem imitar aquilo a que chamaacutemos ldquoama e sustento do universordquo273 antes de mais natildeo pode deixar de modo algum o corpo em repouso antes o deve manter sempre em movimento e imprimir-lhe uma certa agitaccedilatildeo constante o que o protegeraacute normalmente dos movimentos interiores e exteriores No entanto se agitarmos na justa medida as propriedades e as partes em desordem no corpo ordenaremos as partes umas em relaccedilatildeo agraves outras seguindo a disposiccedilatildeo que lhes eacute congeacutenere de acordo com o discurso que fizemos anteriormente sobre o universo274 impedindo que o inimigo sendo posto ao lado do inimigo crie guerras e doenccedilas para o corpo antes fazendo com que o amigo posto ao lado do amigo ofereccedila sauacutede O melhor dos movimentos do corpo eacute aquele que eacute produzido por ele proacuteprio e nele proacuteprio ndash pois eacute o movimento de natureza mais proacutexima do pensamento e do do universo ndash e os produzidos por outra coisa satildeo inferiores mas de todos o pior eacute aquele que por meio de causas externas move algumas partes de um corpo em repouso que se manteacutem estaacutetico Eacute por isso que entre as formas de purificaccedilatildeo e reforccedilo do corpo a melhor eacute a que se alcanccedila atraveacutes

273 Cf supra 52d-sqq274 Cf supra 53a-b 69b

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da ginaacutestica A segunda eacute a que se consegue atraveacutes das oscilaccedilotildees ritmadas nas viagens de barco ou noutro meio de transporte que nos mantenha livres de fadiga A terceira forma de movimento uacutetil para quem em certas alturas tenha extrema necessidade mas que natildeo deve ser empregue em nenhuma outra circunstacircncia por quem tenha bom-senso275 trata-se do tratamento meacutedico de purificaccedilatildeo farmacecircutica eacute que natildeo devemos irritar com faacutermacos as doenccedilas que natildeo constituem grandes perigos

Toda a estrutura das doenccedilas se assemelha de algum modo agrave natureza dos seres-vivos Eacute que a constituiccedilatildeo dos seres-vivos em todo o conjunto das espeacutecies tem uma duraccedilatildeo de vida preacute-definida e cada ser-vivo nasce com a existecircncia que lhe foi destinada agrave parte as impressotildees produzidas pela Necessidade pois desde a origem de cada um os triacircngulos conseguem guardar a propriedade que possuem de se manterem constituiacutedos ateacute um determinado tempo altura aleacutem da qual a vida natildeo pode de modo algum prolongar-se Passa-se o mesmo com a constituiccedilatildeo das doenccedilas quando algueacutem potildee fim a uma doenccedila por meio de faacutermacos antes da duraccedilatildeo que lhe foi destinada eacute frequente gerarem-se graves doenccedilas a partir de doenccedilas fracas e um grande nuacutemero a partir de poucas Por isso eacute que eacute necessaacuterio educar todas as manifestaccedilotildees desta natureza atraveacutes de haacutebitos de vida quando se tiver tempo para isso e natildeo se deve irritar um mal coleacuterico com a aplicaccedilatildeo de faacutermacos

275 nous

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Fica assim descrito o que respeita ao conjunto do ser-vivo no que respeita agrave sua parte corporal e ao modo como algueacutem deve governar e ser governado por si mesmo para que tenha uma existecircncia em maacuteximo acordo com a razatildeo276 Quanto agrave parte que governa devemos preparaacute-la para que dentro dos possiacuteveis seja a mais bela e melhor para governar Discorrer com exactidatildeo sobre este assunto seria por si soacute suficiente para dar origem a uma obra exclusiva mas como assunto acessoacuterio no seguimento do que dissemos anteriormente natildeo seria despropositado retomar e concluir o discurso do seguinte modo Como jaacute dissemos muitas vezes277 foram estabelecidas em noacutes trecircs espeacutecies de alma em trecircs regiotildees e aconteceu que cada uma ficou com um movimento Deste modo de acordo com estes pressupostos temos que mencionar do modo mais breve possiacutevel que aquela das espeacutecies que se manteacutem em descanso e em repouso em relaccedilatildeo aos movimentos que lhe satildeo proacuteprios torna-se necessariamente mais fraca enquanto que aquela que se manteacutem em exerciacutecio fica mais forte por isso devemos zelar para que possam manter os movimentos coordenados umas com as outras

Quanto agrave espeacutecie de alma que nos domina eacute necessaacuterio ter em conta o seguinte um deus deu a cada um de noacutes um daimon278 aquilo que dizemos habitar no

276 logos277 Cf supra 69d-sqq278 Toda esta secccedilatildeo faz lembrar o mito escatoloacutegico com que

termina a Repuacuteblica (614b-621b) segundo o qual as almas satildeo redistribuiacutedas pelos novos corpos em funccedilatildeo da orientaccedilatildeo seguida

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alto do nosso corpo ndash e dizemo-lo muito correctamente ndash e nos eleva desde a terra ateacute agravequilo que eacute nosso congeacutenere no ceacuteu porque somos uma planta celeste e natildeo terrena Foi desse lugar onde se engendrou a primeira geacutenese da alma que a parte divina fez depender a nossa cabeccedila que eacute como uma raiz e manteacutem todo o nosso corpo da posiccedilatildeo erecta Assim quando algueacutem se entregou aos apetites e agraves ambiccedilotildees e cultivou excessivamente esses viacutecios eacute inevitaacutevel que todos os seus pensamentos sejam mortais em tudo se tornou mortal tanto quanto possiacutevel e nada nele deixa de ser mortal pois foi essa a natureza que desenvolveu Por outro lado para aquele que se ocupou do gosto de aprender e de pensamentos verdadeiros279 exercitando sobretudo essa vertente em si mesmo eacute absolutamente inevitaacutevel que nele surjam pensamentos imortais e divinos jaacute que se ateve ao que eacute verdadeiro E tanto quanto eacute permitido agrave natureza humana participar da imortalidade dessa condiccedilatildeo natildeo deixe de lado nem a miacutenima parte Ao cuidar sempre da parte divina que conteacutem em si tenha em ordem o daimon que habita dentro de si bem como seja particularmente feliz

Para todos os seres haacute somente um cuidado a ter em atenccedilatildeo atribuir a cada coisa os alimentos e os movimentos que lhes satildeo proacuteprios Os movimentos congeacuteneres do que haacute de divino em noacutes satildeo os pensamentos280 e as oacuterbitas do universo Eacute necessaacuterio que cada um os acompanhe corrigindo atraveacutes da nas vidas anteriores

279 peri philomathian kai peri tas alecirctheis phronecircseis280 dianoecircsis

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aprendizagem das harmonias e das oacuterbitas do universo as oacuterbitas destruiacutedas nas nossas cabeccedilas na altura da geraccedilatildeo tornando aquilo que pensa semelhante ao objecto pensado281 de acordo com a natureza original e depois de ter feito esta assimilaccedilatildeo atingir o sumo objectivo de vida estabelecido aos homens pelos deuses para o presente e para o futuro

Parece que agora estaacute perto do fim aquilo que desde o princiacutepio estaacutevamos obrigados a fazer discorrer sobre o universo ateacute agrave geraccedilatildeo do homem282 Quanto aos outros seres vivos no que toca ao modo como foram gerados devemos mencionaacute-lo ainda que de forma breve pois natildeo haacute qualquer necessidade de nos demorarmos sobre esse assunto Se fosse esse o caso poderia algueacutem achar que eu estava a ser mais minucioso em relaccedilatildeo a estes assuntos do que agravequeles

Eis o que iremos dizer Entre os que foram gerados machos todos os que satildeo cobardes e levaram a vida de forma injusta de acordo com o discurso verosiacutemil renascem mulheres na segunda geraccedilatildeo Por esse motivo e nessa altura os deuses conceberam o desejo da copulaccedilatildeo constituindo dentro de noacutes e dentro das mulheres um ser-vivo animado e criaram cada um deles do seguinte modo A via de saiacuteda da bebida onde o liacutequido chega depois passar pelo pulmatildeo e pelos rins ateacute agrave bexiga que ao ser pressionado pelo sopro respiratoacuterio283 ela recebe e expele juntaram-na por meio de uma perfuraccedilatildeo agrave medula ndash a que nos discursos anteriores chamaacutemos

281 tocirc katanooumenocirc to katanooun exomoiocircsai282 Cf supra 27a283 pneuma

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semente284 ndash que da cabeccedila desce ateacute ao pescoccedilo e passa pela espinha A medula que eacute dotada de alma e recebe respiraccedilatildeo ao criar no oacutergatildeo por onde se ventila um apetite vital de ejaculaccedilatildeo engendra o desejo amoroso criador Eacute por isso que a natureza das partes iacutentimas dos homens eacute desobediente e autoacutenoma semelhante a um ser-vivo desobediente da razatildeo285 e empreende dominaacute-lo por meio destes apetites acutilantes Pelas mesmas razotildees aquilo a que nas mulheres se chama ldquomatrizrdquo ou ldquouacuteterordquo um ser-vivo aacutevido de criaccedilatildeo quando estaacute infrutiacutefero durante muito tempo aleacutem da eacutepoca torna-se irritado ndash um estado em que sofre terrivelmente Em virtude de vaguear por todo o lado no corpo e bloquear as vias de saiacuteda do sopro respiratoacuterio natildeo o deixando respirar atira-o para extremas dificuldades e provoca-lhe outras doenccedilas de toda a espeacutecie ateacute que o apetite e o desejo amoroso de cada um deles se reuacutenam para colherem o fruto como de uma aacutervore e semearem na matriz como num campo lavrado os seres-vivos invisiacuteveis (por causa da sua extrema pequenez) e ainda informes os quais depois separam e alimentam dentro de si tornando-os grandes depois disto datildeo-nos agrave luz e completam a geraccedilatildeo dos seres-vivos

Assim nasceram as mulheres e todas as fecircmeas Quanto agrave raccedila das aves eacute produzida de uma forma diferente pois tem por natureza penas em vez de pecirclos a partir de homens sem maldade e leves conhecedores dos fenoacutemenos celestes mas que na sua ingenuidade

284 sperma Cf supra 74a 77d 86c-d285 logos

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acreditam que as evidecircncias mais seguras sobre estes assuntos satildeo as fornecidas pela visatildeo Quanto agrave espeacutecie dos animais terrestres e das feras ela gera-se daqueles que natildeo fazem uso da filosofia nem prestam qualquer atenccedilatildeo agrave natureza do que diz respeito ao ceacuteu por jamais se servirem das oacuterbitas que tecircm dentro da cabeccedila mas seguem os conselhos das partes da alma que estatildeo em torno do peito Por causa destes haacutebitos os seus membros anteriores e as suas cabeccedilas foram arrastados em direcccedilatildeo agrave terra para se fixarem naquilo de que satildeo congeacuteneres Tecircm o topo da cabeccedila alongado e multiforme em funccedilatildeo do modo como as oacuterbitas de cada um foram esmagadas pela preguiccedila (92a)O seu geacutenero foi criado com quatro ou mais patas pelo seguinte motivo o deus apocircs mais suportes aos mais irracionais porque iriam ser mais arrastados para a terra Aos mais irracionais de entre eles e aos que tecircm o corpo completamente estendido pela terra visto natildeo terem qualquer necessidade de patas engendraram-nos privados de patas e a rastejar sobre a terra (92b) A quarta espeacutecie a que estaacute na aacutegua foi gerada a partir daqueles que eram mais desprovidos de intelecto e ignorantes aqueles que os tornaram a moldar nem sequer os acharam dignos de respirar ar puro porque graccedilas aos erros tinham a alma completamente conspurcada pelo que em vez de uma respiraccedilatildeo de ar leve e puro obrigaram-nos a respirar um ar turvo e pesado na aacutegua Por isso se gerou a raccedila dos peixes e de todos os crustaacuteceos que vivem na aacutegua como pena pelo grau de ignoracircncia a que desceram coube-lhes a mais baixa morada Eacute de acordo com todos estes pressupostos

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que outrora e agora os seres-vivos se transformam uns nos outros de acordo com o facto de perderem ou ganharem em intelecto ou em demecircncia

Agora declaremos que o nosso discurso sobre o universo chegou ao fim tendo recebido seres-vivos mortais e imortais ndash ficando deste modo preenchido ndash assim foi gerado o mundo como um ser-vivo visiacutevel que engloba todas as coisas visiacuteveis deus sensiacutevel imagem do inteligiacutevel286 o mais grandioso o melhor o mais belo e mais perfeito o ceacuteu que eacute uacutenico e unigeacutenito

286 eikocircn tou noecirctou theos aisthecirctos

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Timeu Como estou feliz oacute Soacutecrates agora que termino com regozijo a viagem do meu discurso tal como se descansasse de uma longa caminhada1 Ao deus que foi gerado outrora na realidade e agora mesmo em palavras2 eu rogo que de entre aquilo que dissemos garanta a perenidade do que foi mencionado correctamente mas se em relaccedilatildeo a algum assunto proferimos inadvertidamente algo fora de tom que nos aplique a pena que seja adequada Ora a pena acertada para quem daacute uma nota em falso eacute entrar no tom portanto para que exponhamos correctamente os discursos relativos ao que resta dizer sobre a geraccedilatildeo dos deuses rogamos-lhe que nos forneccedila o remeacutedio mais

1 A metaacutefora do discurso como viagem eacute bastante recorrente em Platatildeo (eg Filebo 14a Leis 645a)

2 Trata-se do mundo sensiacutevel que por diversas vezes eacute chamado ldquodeusrdquo (34a-b 68e 92c) A oposiccedilatildeo ldquona realidadeem palavrasrdquo e ldquooutroraagorardquo acentua os planos absolutamente distintos em que se encontram os dois ldquofabricadoresrdquo em causa o demiurgo gerou (literalmente) o mundo num tempo anterior ao humano e natildeo cronoloacutegico ao passo que Timeu o reconstituiu em palavras obedecendo a um ldquoagorardquo cronoloacutegico e diegeacutetico

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perfeito e excelente de entre os remeacutedios ndash o saber Feitas as preces entreguemos o discurso seguinte a Criacutetias de acordo com o combinado3

Criacutetias E eu aceito-o oacute Timeu mas tal como tambeacutem tu o abordaste no iniacutecio quando pediste toleracircncia4 porque estavas prestes a falar sobre assuntos de grande importacircncia igualmente eu neste momento apelo a isso mesmo pois considero-me merecedor de obter ainda mais toleracircncia em virtude dos assuntos sobre os quais estou prestes a falar Com efeito tenho noccedilatildeo de que o pedido que vos vou dirigir eacute bastante ambicioso e mais indelicado do que eacute devido mas ainda assim tenho que dizecirc-lo Quanto ao que foi referido por ti quem no seu juiacutezo perfeito ousaria dizer que isso natildeo eacute acertado Mas que aquilo de que eu vou falar carece de mais toleracircncia por ser mais problemaacutetico isso terei que explicar de uma maneira ou de outra

Na verdade oacute Timeu sempre que dizemos aos homens algo sobre os deuses eacute mais faacutecil parecer falar adequadamente do que quando dizemos a noacutes homens algo sobre os mortais Eacute que a inexperiecircncia e a ignoracircncia extremas dos ouvintes em relaccedilatildeo aos assuntos a tratar proporcionam uma destreza acrescida agravequele que estaacute prestes a dizer algo sobre eles no que diz respeito aos deuses sabemos que eacute essa a nossa condiccedilatildeo

3 O programa dos discursos fora estabelecido logo no iniacutecio do Timeu (27a-b) Eacute provaacutevel que se trate dos astros como sugere Brisson (2001 p 380 n 8) mas natildeo existem quaisquer dados que confirmem essa suspeita

4 Cf Timeu 29c-d

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Mas para que explique com maior clareza aquilo que digo acompanhem-me no seguinte raciociacutenio Aquilo que todos noacutes pronunciamos eacute necessariamente uma imitaccedilatildeo uma representaccedilatildeo5 No que trata agrave reproduccedilatildeo de imagens de corpos humanos ou divinos produzida pelos pintores apercebemo-nos de que no apuramento da facilidade ou dificuldade do processo imitativo para quem as observa a aparecircncia eacute suficiente Tambeacutem reparamos que no que diz respeito agrave terra a montanhas rios uma floresta ao ceacuteu e a tudo quanto existe e circula em torno dele ficamos satisfeitos acima de tudo se algueacutem for capaz de os reproduzir com um miacutenimo de semelhanccedila Aleacutem disso como natildeo sabemos nada de rigoroso sobre assuntos dessa natureza natildeo examinamos nem pomos agrave prova o que foi pintado e apreciamos uma pintura de sombreados indistinta e ilusoacuteria6 Por outro lado sempre que algueacutem tenta representar os nossos corpos em virtude de nos apercebermos com acuidade daquilo que foi negligenciado graccedilas agrave constante observaccedilatildeo iacutentima tornamo-nos juiacutezes implacaacuteveis de tudo aquilo que natildeo esteja absolutamente dotado de semelhanccedila

Eacute forccediloso que compreendamos que acontece o mesmo com os discursos jaacute que devemos ficar satisfeitos

5 Criacutetias propotildee uma teoria da linguagem muito proacutexima da concepccedilatildeo platoacutenica da arte em geral que fora estabelecida na Repuacuteblica (597a-e) e no final do Sofista Tanto que o exemplo a que vai recorrer para ilustrar esta sua posiccedilatildeo releva precisamente do acircmbito da pintura

6 A teacutecnica da pintura com sombreados (skiagraphia) era considerada por Platatildeo uma forma de ilusatildeo propositada (cf Repuacuteblica 602c-e)

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se o que dissermos sobre assuntos celestes e divinos for minimamente verosiacutemil ao passo que podemos examinar minuciosamente os mortais e humanos7 Quanto ao discurso que agora faremos fruto do improviso se natildeo conseguirmos dotaacute-lo de clareza em relaccedilatildeo a todos os aspectos teremos necessariamente que ser condescendentes eacute que eacute preciso ter em conta que natildeo eacute nada faacutecil senatildeo extremamente difiacutecil produzir representaccedilotildees dos assuntos mortais que relevam do acircmbito da opiniatildeo

108a Eacute disto que eu vos quero recordar e foi pelo facto de vos pedir natildeo menos mas sim mais toleracircncia em relaccedilatildeo ao que estou prestes a dizer que mencionei tudo isto oacute Soacutecrates Se vos pareccedilo pedir justificadamente a oferenda concedei-me-la de bom grado

Soacutecrates E por que motivo natildeo ta haveriacuteamos de conceder oacute Criacutetias Tambeacutem ao terceiro Hermoacutecrates noacutes havemos de lhe conceder a mesma toleracircncia De facto eacute evidente que um pouco mais tarde quando lhe competir a ele discursar a pediraacute tal como vocecircs8 Deste modo para que planeie um iniacutecio diferente e natildeo esteja compelido a dizer o mesmo ele que discurse partindo do princiacutepio que deste modo e neste momento lhe foi garantida a toleracircncia Quanto a ti meu caro Criacutetias dir-te-ei de antematildeo qual eacute a disposiccedilatildeo do puacuteblico o

7 Note-se que tambeacutem no discurso de Criacutetias a verosimilhanccedila eacute tida por exigecircncia racional

8 Hermoacutecrates seria o terceiro (a seguir a Criacutetias) a intervir (vide Introduccedilatildeo pp 14-15)

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poeta anterior a ti9 granjeou diante dele grande estima de tal forma que precisaraacutes de toleracircncia ilimitada a teu favor se te consideras capaz de a obter

Hermoacutecrates Daacutes-me a mesma recomendaccedilatildeo que a este aqui oacute Soacutecrates Mas com efeito oacute Criacutetias nunca homens sem valor obtiveram um trofeacuteu10 Por isso conveacutem que avances corajosamente com o teu discurso invocando o Salvador11 e as Musas para dares a conhecer os ilustres cidadatildeos antepassados e lhes dedicares um hino12

Criacutetias Oacute caro Hermoacutecrates por teres sido posicionado na linha mais recuada e teres outra pessoa agrave tua frente estaacutes ainda cheio de coragem O que eacute estar nesta situaccedilatildeo isso em breve te seraacute revelado mas tenho que obedecer ao teu incentivo e estiacutemulo e aleacutem dos deuses que mencionaste temos que invocar ainda outros principalmente Mnemoacutesine13 Eacute que quase todos os assuntos do nosso discurso dizem respeito a

9 Refere-se a Timeu10 Neste contexto a metaacutefora eacute puramente beacutelica sendo que o

trofeacuteu (tropaion) refere um pequeno monumento que era erigido no campo de batalha como siacutembolo de vitoacuteria O acircmbito semacircntico militar vai manter-se pelas proacuteximas linhas como que anunciando o longo discurso de Criacutetias sobre o confronto militar

11 Epiacuteteto de Apolo12 Foi referido ainda no resumo do Timeu (21a) que a narrativa

sobre a lendaacuteria guerra visava glorificar a cidade de Atenas no dia da sua festa (as Panateneias durante as quais se desenvolve a acccedilatildeo)

13 Personificaccedilatildeo divinizada da memoacuteria de quem eram filhas as Musas Esta invocaccedilatildeo era bastante comum nos poetas e historiadores

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essa deusa pois se lembrarmos o suficiente do que foi dito pelos sacerdotes de outrora trazido ateacute aqui por Soacutelon14 e o dermos a conhecer creio que aos olhos do puacuteblico pareceremos cumprir razoavelmente aquilo a que nos comprometecircramos Eacute isso que devemos fazer de imediato e natildeo podemos demorar nem mais um pouco

Primeiro que tudo recordemos o principal15 passaram nove mil anos desde a referida guerra entre os que habitavam aleacutem das Colunas de Heacuteracles16 e todos aqueles que estavam para aqueacutem conveacutem agora que discorramos sobre ela em pormenor De um lado segundo se diz estava a nossa cidade que comandou e travou a guerra ateacute ao fim enquanto que do outro estavam os reis da Ilha da Atlacircntida ilha essa que como dissemos haacute pouco era maior do que a Liacutebia e a Aacutesia17 juntas Mas actualmente por estar submersa graccedilas aos tremores de terra constitui um obstaacuteculo de lama intransitaacutevel para aqueles que querem navegar dali para o alto-mar de tal forma que nunca mais pode ser ultrapassado

Quanto aos vaacuterios povos baacuterbaros e tambeacutem todos os que de entre os Gregos existiam naquele tempo a exposiccedilatildeo do relato no seu desenrolar revelaraacute o que diz respeito a cada um deles sucessivamente e caso a

14 Cf Timeu 21c-sqq15 O essencial do discurso Criacutetias vai iniciar fora jaacute referido no

Timeu (20d-26d)16 O Estreito de Gibraltar17 A Liacutebia corresponde actualmente a todo o Norte de Aacutefrica

e a Aacutesia ao territoacuterio que se estende desde a Peniacutensula Araacutebica ateacute ao Norte da Iacutendia

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caso18 No que diz respeito aos Atenienses de entatildeo e aos seus opositores contra os quais entraram em guerra eacute necessaacuterio que comece por analisar em primeiro lugar o poderio beacutelico e a forma de governo19 de cada um deles De entre eles devemos optar por falar primeiro deste daqui

Em determinada altura os deuses dividiram toda a terra em regiotildees ndash sem recurso a disputa nem seria correcto dizer que os deuses ignoravam o que era apropriado a cada um deles nem tampouco que apesar de saberem o que era mais adequado para os outros tentavam entre si apropriar-se disso para si proacuteprios por meio de disputas ndash e havendo obtido a regiatildeo que lhes agradava de acordo com as sortes da Justiccedila povoaram esses lugares Depois de os terem povoado criaram-nos como se fossem bens ou animais agrave semelhanccedila de pastores com o gado soacute que natildeo subjugavam corpos com corpos como os pastores que orientam os rebanhos agrave pancada mas da melhor maneira para lidar com uma criatura que eacute guiaacute-la pela proa tomando de acordo com o seu proacuteprio desiacutegnio a alma como um leme por meio da persuasatildeo conduziam e governavam deste modo todos os seres mortais20

18 A descriccedilatildeo das forccedilas em conflito antes do combate propriamente dito era um costume dos historiadores (cf Tuciacutedides 189-sqq) Visto que Criacutetias refere que falaraacute detalhadamente de todos os povos envolvidos (Atlantes Gregos e respectivos aliados) descrevendo depois o confronto propriamente dito eacute certo que o diaacutelogo completo era bastante extenso Contudo termina como sabemos quando aborda o iniacutecio da degenerescecircncia social e moral do povo atlante

19 politeia20 Esta metaacutefora do estadista como timoneiro de uma nau

bastante utilizada na trageacutedia remonta aos versos de Arquiacuteloco

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Enquanto que aos outros deuses coube em sorte os restantes locais que ordenaram de um modo diferente Hefesto e Atena por terem uma natureza comum ndash por um lado eram irmatildeos de um mesmo pai e por outro em virtude do gosto pelo saber e pela arte tinham a mesma orientaccedilatildeo21 ndash a ambos assim coube em sorte uma uacutenica porccedilatildeo que eacute este lugar aqui porque era por natureza afim e adequado agrave virtude e agrave sabedoria22 Entatildeo colocaram aqui homens bons os autoacutectones e introduziram-lhes a ordem poliacutetica no intelecto23

Os nomes deles foram conservados mas os feitos graccedilas ao facto de terem perecido aqueles que os herdaram e agrave vastidatildeo do tempo desapareceram Eacute que o geacutenero de pessoas que sempre sobrevive tal como foi dito anteriormente24 manteacutem-se serrano25 e analfabeto estas apenas tinham ouvido falar dos nomes dos governantes daquele lugar e aleacutem disso do pouco que haviam feito Assim eles punham esses nomes aos seus descendentes

(poeta do seacutec VII aC) que compara uma tempestade a uma crise poliacutetica e o timoneiro ao poliacutetico que a pode superar (fr 106 West) Aparece com um sentido anaacutelogo na passagem da Repuacuteblica sobre a nau do estado (488a-499a) e tambeacutem no Poliacutetico onde Cronos eacute chamado ldquotimoneiro do universordquo (272e4)

21 Ambos Atena e Hefesto eram filhos de Zeus bem como se dedicavam a assuntos muito semelhantes Atena nutria especial apreccedilo pelas artes e letras (o saber em geral) e Hefesto dominava a metalurgia como artesatildeo bem como era o deus do fogo (o fogo era siacutembolo da ciecircncia como disso eacute exemplo o famoso mito de Prometeu)

22 aretecirc kai phronecircsis23 nous24 Cf Timeu 22c-d25 O termo oreios (lit ldquoque vive nas montanhasrdquo) eacute neste

contexto usado com um sentido pejorativo

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por isso os agradar mas natildeo conheciam as virtudes e as leis dos antepassados a natildeo ser alguns relatos obscuros em relaccedilatildeo a certos aspectos Por viverem com carecircncia e necessitados durante muitas geraccedilotildees eles e os seus filhos tinham apenas em mente aquilo de que careciam e conversavam apenas sobre isso negligenciando aquilo que acontecera outrora num tempo anterior ao seu Na verdade a mitologia e a investigaccedilatildeo de dados do passado chegam agraves cidades juntamente com o oacutecio apenas quando os habitantes se apercebem de que as necessidades baacutesicas estatildeo garantidas para um certo nuacutemero de pessoas e natildeo antes Foi por este motivo que mantiveram conservados os nomes dos antepassados agrave parte dos feitos Digo isto baseando-me em Soacutelon que referia que os sacerdotes enquanto narravam a guerra de outrora mencionavam com muita frequecircncia os nomes de Ceacutecrope Erecteu Erictoacutenio Erisiacutecton26 e a maior parte daqueles que antecederam Teseu cujos nomes permaneceram recordados e o mesmo no que respeita agraves mulheres ndash de facto visto que naquele tempo as ocupaccedilotildees respeitantes agrave guerra eram comuns agraves mulheres e aos homens a estaacutetua da deusa era por isso representada pelos de entatildeo com armas de acordo com aquele costume como tributo agrave deusa isso eacute uma prova27 de que todos os seres-vivos da mesma condiccedilatildeo

26 Personagens lendaacuterias associadas agrave fundaccedilatildeo da cidade de Atenas Ceacutecrope teria sido o primeiro rei Erecteu o seu pai Erictoacutenio avocirc de Erecteu Erisiacutecton filho de Ceacutecrope

27 Endeigma Embora esta palavra em concreto natildeo seja usada por Heroacutedoto nem por Tuciacutedides daacute igualmente conta da preocupaccedilatildeo historicista no narrador A este propoacutesito vide Introduccedilatildeo pp 57-63

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ndash tanto fecircmeas quanto machos ndash satildeo por natureza capazes de praticar em comum a virtude respeitante a cada espeacutecie28

Por outro lado naquele tempo os outros grupos de cidadatildeos ligados aos ofiacutecios e ao sustento que provinha da terra viviam neste lugar aqui enquanto que o dos combatentes separados desde o princiacutepio por homens divinos viviam agrave parte tendo acesso a tudo o que fosse adequado agrave sua subsistecircncia e educaccedilatildeo Nenhum deles possuiacutea nada a tiacutetulo particular pois todos eles consideravam tudo comum a todos eles e natildeo se achavam no direito de receber dos outros cidadatildeos nada aleacutem do necessaacuterio agrave sua subsistecircncia atarefados que estavam com todas as ocupaccedilotildees de que ontem falaacutemos ndash aquelas que foram referidas a propoacutesito dos guardiotildees que propusemos29

Na verdade ateacute era plausiacutevel e mesmo verdadeiro o que se dizia a propoacutesito da nossa terra30 em primeiro

28 A igualdade de geacuteneros eacute tambeacutem referida no Timeu (18c-sqq) e na Repuacuteblica (456a-sqq)

29 Quando refere que as ocupaccedilotildees destes cidadatildeos satildeo as que descreveram no dia anterior Criacutetias remete para o que foi dito acerca das funccedilotildees da classe dos guardiotildees da cidade ideal descritas na Repuacuteblica (395b-d) e tambeacutem no iniacutecio do Timeu (17d) deviam dedicar-se exclusivamente agrave defesa do Estado Aleacutem disso satildeo tambeacutem evidentes outras semelhanccedilas natildeo possuiacuteam bens a tiacutetulo particular recebiam o sustento dos outros cidadatildeos bem como viviam em comunidade (Repuacuteblica 416e Timeu 18b)

30 Segundo Brisson (2001 p 383 nn 60 64) a descriccedilatildeo que se segue pretende fundamentar algumas reivindicaccedilotildees territoriais atenienses da eacutepoca de Platatildeo Ao alargar as fronteiras da Aacutetica ateacute ao Istmo de Corinto a sudoeste inclui a cidade de Meacutegara (causa de diversos confrontos com os Coriacutentios) e quando aponta o Rio Asopo como fronteira a norte engloba a Oroacutepia cuja principal

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lugar que nessa altura as fronteiras que a circunscreviam se estendiam ateacute ao Istmo [de Corinto] de um lado31 e na direcccedilatildeo da regiatildeo continental ateacute aos cumes do Citeacuteron e do Parnaso32 que essas fronteiras continuavam pelas encostas do lado direito (incluindo a Oroacutepia33) ateacute ao Asopo34 e do lado esquerdo estavam delimitadas pelo mar que toda esta terra superava em fertilidade o restante territoacuterio pelo que na altura este lugar era capaz de manter alimentado um vasto exeacutercito e livre de trabalhos com a terra35 Eis uma grande evidecircncia36 dessa fertilidade o que dela ainda agora resta eacute equiparaacutevel a qualquer outra por ter muita variedade de cultivo e riqueza de colheitas bem como boas pastagens para todo o tipo de animais Aleacutem da qualidade de entatildeo comportava tudo isso em abundacircncia Mas como pode isso ser crediacutevel e com base em quecirc se poderaacute dizer acertadamente que satildeo os restos da terra daquele tempo

Todo o territoacuterio que se estende a partir do resto do continente e desemboca no mar eacute semelhante a um cidade (Oropo) era continuamente disputada com os Beoacutecios

31 Isto eacute para sudoeste32 O Citeacuteron e o Parnaso eram dois montes que se encontravam

entre a Beoacutecia e a Aacutetica33 Vide supra n 3034 Um rio a norte dos Montes Parnaso e Citeacuteron Vide supra

n 3235 Natildeo podemos deixar de notar nesta secccedilatildeo um eco da Idade

do Ouro (periacuteodo em que a Natureza proporcionava todos os bens estando os homens livres de trabalhos agriacutecolas) que Hesiacuteodo descreve nos Trabalhos e Dias (vv 109-126)

36 Tekmecircrion Trata-se de um termo muito usado pelos historiadores para fundamentar o seu discurso (Heroacutedoto 2131 33810 72384 Tuciacutedides 113 2392 31046)

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grande promontoacuterio e acontece que o invoacutelucro de mar que a circunda eacute profundo em todos os pontos da costa Graccedilas a muitos e grandes diluacutevios que ocorreram nestes nove mil anos ndash este foi o nuacutemero de anos que passou desde esse tempo ateacute agora ndash a terra que em virtude do que aconteceu durante essas ocasiotildees deslizou das terras altas natildeo se empilhou num morro digno de menccedilatildeo como acontece noutros locais antes ao escorregar continuamente semelhante a uma roda desapareceu no fundo do mar Comparado ao de entatildeo o que agora restou ndash tal como aconteceu nas pequenas ilhas ndash eacute semelhante aos ossos de um corpo que adoeceu pois tudo o que a terra tinha de gordo e mole escorregou tendo somente restado desse lugar o corpo descascado Mas naquele tempo enquanto esteve intacta tinha montanhas altas e encristadas de terra e quanto agraves planiacutecies a que agora chamamos solo rochoso tinha-as cheias de terra feacutertil Tinha tambeacutem numerosas florestas nas montanhas de que ainda hoje haacute evidecircncias manifestas pois eacute nestas montanhas que actualmente existe o uacutenico alimento para as abelhas e natildeo haacute muito tempo que se cortava aacutervores nesse local para construir os tectos das grandes edificaccedilotildees ndash coberturas essas que ainda estatildeo conservadas Havia tambeacutem muitas e grandes aacutervores benignas bem como a terra providenciava pastos maravilhosos para o gado Aleacutem disso fruiacutea a cada ano de aacutegua vinda de Zeus e natildeo a perdia ao contraacuterio de agora que corre da terra nua ateacute ao mar em vez disso por ter muita terra recebia-a dentro de si e armazenava-a num solo argiloso que a sustinha Ao descarregar a aacutegua dos pontos altos

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para os vales garantia fluxos abundantes de fontes e rios a todos os lugares os templos que outrora foram estabelecidos nessas fontes e ainda hoje laacute permanecem satildeo um indiacutecio37 de que o que agora dizemos sobre ela eacute verdadeiro

Tambeacutem assim era a natureza do resto da regiatildeo que era provavelmente cultivada por agricultores autecircnticos isto eacute que faziam apenas isto ndash vocacionados para as coisas caras agrave beleza e tinham agrave disposiccedilatildeo a melhor terra e aacutegua em muita abundacircncia bem como estaccedilotildees temperadas da forma mais moderada que havia sobre a terra

Quanto agrave cidade nesta altura ela estava estabelecida do seguinte modo em primeiro lugar naquela altura a zona da Acroacutepole natildeo estava como estaacute hoje eacute que uma soacute noite de chuva deixou-a completamente nua pois dissolveu a terra por completo e ao mesmo tempo geraram-se terramotos e um violento diluacutevio ndash o terceiro antes da calamidade da eacutepoca de Deucaliatildeo38 Quanto ao tamanho que tinha outrora noutro tempo chegava ateacute ao Eriacutedano e ao Ilisso39 compreendia em si a Pnix40 e tinha como limite do lado oposto agrave Pnix o Licabeto41 toda ela era terra e excepto em poucos siacutetios formava uma planiacutecie nos pontos mais altos

37 Vide supra n 3638 Trata-se do diluacutevio com que Zeus decidiu destruir a raccedila

humana Escaparam Deucaliatildeo e Pirra sua esposa por meio de uma arca que haviam construiacutedo de antematildeo depois de terem sido avisados pelo deus

39 Dois rios da Aacutetica40 Colina a oeste da Acroacutepole onde desde os iniacutecios do seacuteculo

V aC se reunia a Assembleia41 Um monte a nordeste da Acroacutepole

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A parte exterior junto aos seus proacuteprios vertentes era habitada por artesatildeos e pelos agricultores que cultivavam as imediaccedilotildees Quanto agrave parte superior habitava-a a classe dos guerreiros de forma autoacutenoma e isolada junto ao templo de Atena e Hefesto que eles tinham vedado com uma uacutenica cerca como se fosse uma soacute casa Habitavam em aposentos comuns a parte que dava para norte que equiparam com uma messe para as noites de Inverno e tinham tudo quanto fosse adequado agrave vida em comunidade42 fossem residecircncias ou templos excepto ouro ou prata43 ndash pois natildeo faziam qualquer uso disso para nada mas por buscarem o ponto intermeacutedio entre a arrogacircncia e a subserviecircncia habitavam em residecircncias organizadas em que envelheciam eles proacuteprios e tambeacutem os netos dos seus netos as quais iam ininterruptamente entregando aos outros seus semelhantes Na parte que dava para sul fizeram jardins ginaacutesios e messes para o Veratildeo e usavam-na para isso No lugar onde actualmente estaacute a Acroacutepole havia uma fonte uacutenica que foi destruiacuteda pelos terramotos da qual actualmente restam apenas pequenas linhas de aacutegua em ciacuterculo mas que naquele tempo providenciava a toda a gente uma corrente abundante mantendo a mesma temperatura de Veratildeo e de Inverno E assim viviam eles como guardiotildees dos seus proacuteprios cidadatildeos e comandantes reconhecidos dos outros gregos e garantiam a todo o custo que o

42 tecirc koinecirci politeiai43 Curiosamente a privaccedilatildeo de ouro e prata especificamente

eacute tambeacutem referida na Repuacuteblica (417a) a propoacutesito classe dos guardiotildees

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nuacutemero de homens e mulheres que eram ou viriam a ser capazes de combater fosse sempre o mesmo cerca de vinte mil

Visto que eles eram desta natureza e administravam sempre com a mesma orientaccedilatildeo ndash agrave luz da justiccedila ndash a sua cidade e o resto da Heacutelade gozavam de alta reputaccedilatildeo em toda a Europa e em toda a Aacutesia graccedilas agrave beleza dos seus corpos e a todo o tipo de virtude das suas almas bem como eram famosos entre todos os homens daquele tempo

No que trata agrave condiccedilatildeo daqueles contra quem combateram e ao modo como de princiacutepio se gerou essa condiccedilatildeo se natildeo estiver privado da memoacuteria visto que o ouvi quando ainda era crianccedila restituiacute-lo-ei no meio de voacutes para que seja comum entre amigos

Mas antes ainda do meu discurso impotildee-se um breve esclarecimento para que natildeo fiqueis admirados por muitas vezes ouvirdes nomes gregos aplicados a homens estrangeiros ouvi entatildeo a razatildeo Soacutelon por ter pensado em utilizar esta narrativa na sua poesia procurou o significado destes nomes e descobriu que aqueles primeiros egiacutepcios os tinham redigido vertidos na sua proacutepria liacutengua entatildeo ele por sua vez depois de ter assimilado o sentido de cada um desses nomes registou-os e traduziu-os para a nossa liacutengua Estes escritos estiveram na posse do meu avocirc e neste momento estatildeo ainda comigo com os quais me exercitei enquanto era crianccedila Portanto que natildeo vos cause nenhuma admiraccedilatildeo se ouvirdes alguns nomes como estes aiacute tendes portanto a razatildeo Mas vejamos agora como era o princiacutepio daquela grande narrativa

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Tal como foi dito anteriormente44 acerca da partilha que ocorreu entre os deuses eles dividiram toda a terra aqui em porccedilotildees maiores e acolaacute em mais pequenas onde estabeleceram templos e sacrifiacutecios em seu proacuteprio benefiacutecio Deste modo Posiacutedon quando lhe coube em sorte a Ilha da Atlacircntida estabeleceu aiacute os filhos que gerou de uma mulher mortal num certo local da ilha

Existia ao longo de toda a ilha em direcccedilatildeo ao mar uma planiacutecie central a qual se diz que seria a mais bela de todas as planiacutecies e com uma fertilidade consideraacutevel Nesta planiacutecie havia ainda na parte central uma montanha baixa em todos os pontos que distava cinquenta estaacutedios45 do mar Neste local estava um habitante de entre os homens que aiacute tinham nascido dessa terra em tempos primordiais o seu nome era Evenor e vivia juntamente com a sua mulher Leucipe tiveram uma filha uacutenica Clito Logo que a rapariga atingiu a idade de ter um marido a sua matildee e o seu pai morreram e entatildeo Posiacutedon desejou-a e uniu-se a ela Entatildeo de modo a construir uma cerca segura desfez num ciacuterculo o monte em que ela habitava e construiu agrave volta aneacuteis de terra alternados com outros de mar uns maiores uns mais pequenos ndash dois de terra e trecircs de mar no total torneados a partir do centro da ilha e equidistantes em todos os pontos para que fosse inacessiacutevel aos homens46 com efeito naquela altura ainda nem havia naus nem se navegava

44 Cf supra 109b-c45 8880m46 O sistema de aneacuteis atlante traz agrave memoacuteria uma descriccedilatildeo

do aparelho defensivo da cidade persa de Ecbaacutetana registada por Heroacutedoto (Histoacuterias 198)

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Foi o proacuteprio Posiacutedon que organizou o centro da ilha ndash facilmente pois era um deus ndash fazendo surgir de debaixo da terra duas nascentes de aacutegua ndash uma quente outra fria ndash que corriam de uma fonte e fez brotar da terra alimentos variados e suficientes Engendrou e criou cinco geraccedilotildees de varotildees geacutemeos e dividiu toda a Ilha da Atlacircntida em dez partes entregou a residecircncia materna ao que de entre os mais velhos nascera primeiro juntamente com a porccedilatildeo que a circundava que era a maior e a melhor e nomeou-o rei dos restantes ao passo que fez destes governantes bem como atribuiu a cada um o governo de muitos homens e uma regiatildeo com vastos territoacuterios A todos eles atribuiu nomes ao mais velho ndash o rei ndash deu-lhe o nome do qual toda a ilha e tambeacutem o mar chamado Atlacircntico receberam uma designaccedilatildeo derivada ndash o primeiro que reinou tinha entatildeo o nome Atlas47 Ao segundo geacutemeo ndash o que nasceu depois deste ndash a quem havia cabido em sorte uma porccedilatildeo na extremidade da ilha na direcccedilatildeo das Colunas de Heacuteracles ateacute agrave regiatildeo aleacutem daquele ponto que hoje eacute chamada Gadiacuterica deu o nome Eumelo em grego e Gadiro na liacutengua do paiacutes sendo esta designaccedilatildeo a que deu o nome agravequela zona48 Aos dois que nasceram depois

47 Titatilde que em virtude de ter tentado usurpar o poder de Zeus foi punido com a obrigaccedilatildeo de suster sobre os ombros o ceacuteu Eacute apresentado neste contexto como primeiro rei da Atlacircntida O facto de Atlas (e natildeo Posiacutedon) ser apontado como primeiro rei da Atlacircntida pode estar ligado agrave localizaccedilatildeo miacutetica da ilha de uma filha sua nos confins dos Jardins das Hespeacuterides que segundo Hesiacuteodo (Teogonia vv 215-216 517-518) se situavam precisamente naquela zona

48 Gadiro estaacute na origem do nome da actual cidade de Caacutediz e

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chamou Anferes e Eveacutemon aos terceiros Mneacuteseas ao que nasceu primeiro e Autoacutecton ao que nasceu a seguir ao primeiro dos quartos Elasipo e Mestor ao seguinte aos quintos pocircs o nome Azais ao que nasceu antes e Diaprepes ao seguinte E assim todos eles e os seus descendentes ali viveram durante muitas geraccedilotildees governando sobre todas as outras ilhas do mar e ainda tal conforme dito anteriormente49 como senhores dos territoacuterios aqueacutem das Colunas de Heacuteracles ateacute ao Egipto e a Tirreacutenia50

De Atlas nasceu uma linhagem numerosa e honrada o rei que era o mais velho transmitia a monarquia sempre ao mais velho dos descendentes e assim se preservaram durante muitas geraccedilotildees Aleacutem disso detinham riquezas em nuacutemero tatildeo elevado como nunca houve em quaisquer dinastias de reis anteriores nem eacute faacutecil que haja nas que se sigam pois estavam providos de tudo do que havia necessidade garantir agrave cidade e ao resto do territoacuterio Com efeito ainda que muito viesse de fora por causa do impeacuterio a proacutepria ilha fornecia a grande maioria dos bens essenciais Em primeiro lugar tudo quanto fosse soacutelido e fundiacutevel era extraiacutedo pelo ofiacutecio mineiro bem como aquilo que actualmente apenas nomeamos ndash naquela altura mais do que um nome existia a substacircncia o oricalco51 que a Gadiacuterica seria toda aquela zona circundante

49 Cf Timeu 25a-b50 A Tirreacutenia ou Etruacuteria era a paacutetria dos Etruscos localizada na

parte central da Peniacutensula Itaacutelica51 A letra oreichalcos significa ldquoo cobre das montanhasrdquo Era usado

pelos Atlantes como elemento decorativo para o revestimento de superfiacutecies (as muralhas da muralha central da ilha 116c os tectos

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era extraiacutedo em vaacuterios locais da ilha o qual naquela altura era agrave parte o ouro o material mais valioso ndash e a floresta fornecia tudo quanto pudesse ser trabalhado pelos carpinteiros

A ilha produzia tudo em abundacircncia e no que respeita aos animais alimentava convenientemente os domesticados e os selvagens incluindo a raccedila dos elefantes que nela existia em grande nuacutemero No entanto havia tambeacutem pastagens para os outros seres-vivos tanto os que viviam nos pacircntanos nos lagos e nos rios quanto os que pastavam nas montanhas e nas planiacutecies ndash havia em abundacircncia para todos eles e tambeacutem na mesma medida para este animal52 que era por natureza o maior e o mais voraz Aleacutem disto criava tambeacutem diversos aromas que actualmente a terra tem aqui e ali de raiacutezes folhagens madeiras ou sucos destilados de flores ou de frutos ndash isto produzia e criava a ilha em abundacircncia Mais ainda frutos cultivados secos e tudo quanto usamos na alimentaccedilatildeo e de que aproveitamos o gratildeo ndash chamamos leguminosas a todas as suas variedades ndash os frutos das aacutervores que nos fornecem bebida comida e oacuteleo53 os frutos que crescem em ramos altos os quais satildeo difiacuteceis de armazenar e

paredes colunas e pavimento do templo de Posiacutedon) aleacutem disso tambeacutem a estela que continha gravadas as leis dos primeiros reis era deste material (119d) Embora se tenha tentado identificar esta substacircncia com ldquoum reluzir semelhante ao fogordquo (116c) propondo hipoacuteteses como o latatildeo ou uma liga composta entre ouro e cobre (como sugere a falsa etimologia latina aurichalcum) eacute provaacutevel que se trate de uma substacircncia mitoloacutegica Sobre este assunto vide Halleux (1973)

52 Isto eacute o elefante53 Azeitonas

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que usamos apenas por prazer e divertimento54 e tudo quanto oferecemos como estimulante desejaacutevel depois da ceia a quem sofre por estar cheio55 ndash naquela altura a extraordinaacuteria ilha que entatildeo estava sob o Sol56 fornecia todas estas coisas belas e admiraacuteveis em quantidade ilimitada

Por receberem da terra tudo isto construiacuteram templos residecircncias reais portos estaleiros navais e melhoraram todo o restante territoacuterio organizando tudo do modo que se segue Primeiro fizeram pontes sobre os aneacuteis de mar que estavam agrave volta da metroacutepole antiga criando deste modo um acesso para o exterior e para a zona real Esta zona real fizeram-na logo de princiacutepio no local onde estava estabelecida a do deus e a dos seus antepassados Como cada um quando o recebia do outro adornava aquilo que jaacute estava adornado superava sempre na medida do possiacutevel o anterior ateacute que tornaram o edifiacutecio espantoso de ver graccedilas agrave magnificecircncia e beleza das suas obras

Escavaram um canal com trecircs pletros57 de largura cem peacutes58 de profundidade e cinquenta estaacutedios59 de comprimento que comeccedilaram a partir do mar ateacute ao anel mais exterior e naquele local construiacuteram uma via de acesso do mar agravequele ponto como a um porto

54 Tratar-se-aacute provavelmente de romatildes55 Seraacute com bastante certeza o limatildeo que naquela altura era

utilizado com este fim56 Isto eacute que ainda natildeo tinha sido engolida pelo mar (vide supra

25c-d 108e)57 888m58 296m59 8880m

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tambeacutem abriram uma barra adequada para a entrada de naus muito grandes Tambeacutem abriram os aneacuteis de terra que separavam os de mar obedecendo agrave direcccedilatildeo das pontes de modo a criar uma via de acesso entre os canais para uma soacute trirreme e cobriram a parte superior para que o canal ficasse por baixo eacute que as bordas dos aneacuteis de terra tinham uma altura suficiente para suster o mar

O maior dos aneacuteis aquele pelo qual passava o mar tinha trecircs estaacutedios60 de largura e o anel de terra contiacuteguo tinha a mesma largura Dos segundos o de aacutegua tinha dois estaacutedios61 de largura enquanto que o seco era mais uma vez igual ao anterior de aacutegua aquele que circulava no centro da ilha tinha um estaacutedio62 Quanto agrave ilha onde estava a zona real ela tinha cinco estaacutedios63 de diacircmetro Agrave volta dela a partir dos aneacuteis e de um lado e de outro da ponte que tinha um pletro64 de largura lanccedilaram uma muralha de pedra e colocaram torres e portas em cada um dos lados das pontes vedando o acesso a partir do mar A pedra que era branca negra e vermelha extraiacuteram-na debaixo da ilha do centro e debaixo dos aneacuteis quer da parte de fora quer da de dentro Ao mesmo tempo que a extraiacuteam iam construindo no interior do espaccedilo vazio docas duplas que cobriam com a mesma pedra Algumas das estruturas fizeram-nas simples mas noutras misturaram as pedras e assim

60 5328m61 3552m62 1776m63 888m64 296m

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produziram por divertimento um entranccedilado colorido tornando-as naturalmente apraziacuteveis As muralhas que circundavam a parte exterior do anel a toda a volta do periacutemetro revestiram-nas com cobre que usaram como pintura as da parte interior com estanho fundido e as que circundavam a Acroacutepole com oricalco que tinha um reluzir semelhante ao fogo

Quanto ao modo como estava disposta a zona real no interior da Acroacutepole era o seguinte No centro ndash ali mesmo ndash estava um templo sagrado dedicado a Clito e a Posiacutedon o qual tornaram inacessiacutevel envolvendo-o numa cerca de ouro ndash foi naquele siacutetio que no princiacutepio estes deuses conceberam e geraram a linhagem dos dez priacutencipes era tambeacutem naquele mesmo siacutetio que todos os anos entregavam a cada um deles as primiacutecias sagradas provindas das dez partes da ilha Ali estava o naos65 soacute de Posiacutedon que tinha um estaacutedio66 de comprimento e trecircs pletros67 de largura ndash em altura parecia proporcional a estas medidas mas a aparecircncia era de certa forma baacuterbara Toda a parte exterior do naos tinha sido coberta com prata agrave excepccedilatildeo das extremidades (as extremidades foram cobertas com ouro)

Quanto agrave parte interior o tecto era de marfim maciccedilo com ouro prata e oricalco o que lhe dava uma aparecircncia variegada enquanto que revestiram todas as outras partes ndash paredes colunas e pavimento ndash com oricalco Erigiram estaacutetuas de ouro o deus erguido num

65 Parte interior do templo onde se encontrava a estaacutetua do deus ao qual o edifiacutecio era consagrado

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carro segurando as reacutedeas de seis cavalos alados que graccedilas agrave sua altura tocava no tecto com a cabeccedila agrave volta dele estavam cem Nereides montadas em golfinhos ndash naquele tempo julgavam que elas eram assim tantas68 no interior havia ainda muitas outras estaacutetuas que tinham sido oferecidas por particulares Em torno do naos no exterior estavam erguidas representaccedilotildees de ouro de todas as mulheres e dos descendentes dos dez reis e muitas outras grandes estaacutetuas de reis e tambeacutem de particulares da proacutepria cidade e de quantos territoacuterios no exterior eles governavam Concordante em grandeza e construccedilatildeo com esta edificaccedilatildeo havia um altar bem como a zona real estava tambeacutem de acordo com a grandeza do impeacuterio e com a organizaccedilatildeo que rodeava estes locais sagrados

Quanto agraves fontes a que tinha uma corrente fria e a que tinha uma quente abundantes e inesgotaacuteveis sendo cada uma das quais de uma admiraacutevel utilidade em virtude do sabor e da excelecircncia das suas aacuteguas aproveitavam para construir edifiacutecios em torno delas para plantar aacutervores adequadas agraves suas aacuteguas e para instalar reservatoacuterios ndash uns a ceacuteu aberto outros cobertos tendo em vista os banhos quentes durante o Inverno

68 As Nereides filhas de Nereu e ninfas marinhas associadas ao culto de Posiacutedon eram no tempo de Platatildeo apenas 50 Quanto agrave estaacutetua em si o facto de Criacutetias dizer que quase tocava no tecto do templo que a albergava traz agrave memoacuteria a estaacutetua de Zeus em Oliacutempia uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo Diz Estrabatildeo (Geografia 8330 a traduccedilatildeo deste passo pode ser consultada em Ferreira amp Ferreira 2009 pp 182-184) que se o deus se levantasse (estava representado sentado) arrancaria seguramente o telhado do edifiacutecio

Platatildeo

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De um lado estavam os reais do outro os particulares outros ainda para as mulheres e os restantes para os cavalos e para os outros animais de jugo atribuindo a cada um deles a organizaccedilatildeo que lhe era adequada De modo a dirigir a corrente para o bosque sagrado de Posiacutedon que tinha todo o tipo de aacutervores de uma beleza e uma altura divinas graccedilas agrave fertilidade da terra e para os territoacuterios perifeacutericos canalizaram-na por meio de condutas ao longo das pontes Ali construiacuteram vaacuterios templos de muitos deuses vaacuterios jardins e ginaacutesios uns para os homens outros agrave parte para os cavalos em cada uma das ilhas dos aneacuteis

Entre outras coisas havia no centro da ilha grande um hipoacutedromo agrave parte com um estaacutedio69 de largura cujo comprimento compreendia a totalidade do periacutemetro do anel para a competiccedilatildeo dos cavalos Em toda a volta havia por toda a parte aquartelamentos para um grande nuacutemero de guarda-costas ndash a guarniccedilatildeo dos que eram mais fieacuteis estava disposta no anel mais pequeno no ponto mais proacuteximo da Acroacutepole e aos que de entre todos estes se distinguiam em fidelidade foram concedidas residecircncias no interior da Acroacutepole junto agraves proacuteprias residecircncias reais Os estaleiros navais estavam preenchidos de trirremes e de quantos acessoacuterios satildeo adequados agraves trirremes tudo preparado de forma capaz

Quanto agraves periferias da residecircncia dos reis elas estavam dispostas do seguinte modo quando se atravessava os portos ndash que eram trecircs ndash vindo do exterior

69 1776m

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uma muralha estendia-se em ciacuterculo que comeccedilava no mar distando em todos os pontos cinquenta estaacutedios70 do maior anel e do porto e fechava-se na barra do canal que dava para o lado do mar Todo este local estava povoado por edifiacutecios numerosos e concentrados ao passo que o canal e o porto maior estavam preenchidos por naus e comerciantes que vinham de todo o lado que por serem em grande nuacutemero causavam um clamor e um ruiacutedo produzido por toda a espeacutecie de barulhos tanto de dia quanto durante a noite

Temos agora na memoacuteria uma aproximaccedilatildeo daquilo que foi narrado naquele tempo sobre a cidade e a zona circundante das antigas edificaccedilotildees devemos entatildeo tentar relembrar qual era a natureza do resto da regiatildeo e o tipo de organizaccedilatildeo que tinha Primeiro todo este lugar segundo se dizia era muitiacutessimo alto e escarpado desde o mar mas a periferia da cidade era toda plana Esta zona que rodeava a cidade era ela proacutepria rodeada por montanhas em ciacuterculo que se estendiam ateacute ao mar ndash aleacutem disso era plana e nivelada toda ela oblonga com trecircs mil estaacutedios71 numa direcccedilatildeo e pela parte central dois mil estaacutedios72 do mar ateacute ao topo Esta regiatildeo da ilha estava orientada para Sul abrigada do Norte As montanhas que a circunscreviam naquele tempo eram famosas pelo nuacutemero grandeza e beleza superando todas as que hoje existem nelas havia aldeias ricas e numerosas rios lagos prados que forneciam alimento suficiente para todos os animais domeacutesticos

70 8880m71 5328km72 3552km

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e selvagens e uma floresta toda ela abundante e com grande variedade de espeacutecies ndash uma fonte inesgotaacutevel para todo o tipo de obras em geral e para cada uma em particular

A planiacutecie foi mantida pela natureza e tambeacutem por muitos reis durante muito tempo do seguinte modo A maior parte da sua aacuterea formava um quadrilaacutetero rectangular e oblongo e o restante aplanaram-no por meio de uma vala que escavaram em ciacuterculo Na medida em que se tratava de uma obra feita agrave matildeo a profundidade largura e comprimento desta fossa de que se fala satildeo duvidosos se a compararmos aos outros empreendimentos mas devemos dar a conhecer aquilo que ouvimos dizer foi escavada com um pletro73 de profundidade um estaacutedio de largura em todos os pontos e visto que tinha sido escavada agrave volta de toda a planiacutecie a largura era coincidente 10000 estaacutedios74 Como recebia as correntes de aacutegua que desciam das montanhas e sabendo que rodeava a planiacutecie chegava agrave cidade por ambos os lados descarregava deste modo o fluxo no mar Assim talharam vaacuterios canais perpendiculares com 100 peacutes75 de largura e cada um dos quais 100 estaacutedios76 afastado dos outros dispostos transversalmente ao longo da planiacutecie desde as montanhas que iam por seu turno desaguar na outra ponta da vala na direcccedilatildeo do mar Era deste modo que transportavam a madeira das montanhas ateacute agrave cidade

73 296m74 1776km75 296m76 1776km

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e expediam os restantes produtos da eacutepoca por meio de barcos visto que haviam talhado vias de navegaccedilatildeo transversais de uns canais para outros e para a cidade ndash colhiam os frutos da terra duas vezes por ano Usavam no Inverno a aacutegua que vinha de Zeus e no Veratildeo a que a terra fornecesse e os fluxos que faziam correr dos canais77

No que respeita agrave populaccedilatildeo foi estabelecido que na planiacutecie cada distrito forneceria um homem que comandasse aqueles que pudessem servir para a guerra sendo que o tamanho de cada regiatildeo era de dez por dez estaacutedios78 e no total havia sessenta mil distritos Dizia-se que o nuacutemero de homens das montanhas e do resto do territoacuterio era infinito e todos eles em funccedilatildeo dos lugares e das aldeias estavam distribuiacutedos pelos distritos e adscritos a quem as comandava conforme o lugar e a aldeia

Estava prescrito que caso houvesse guerra cada comandante fornecesse uma sexta parte de um carro de guerra para um total de dez mil carros dois cavalos e respectivos cavaleiros mais um par de cavalos sem carro um soldado que combatesse com um pequeno escudo a peacute e tambeacutem dentro do carro bem como pudesse conduzir ambos os cavalos dois hoplitas79 arqueiros e fundeiros80 ndash tambeacutem dois de cada soldados

77 Este sistema de irrigaccedilatildeo faz lembrar descriccedilatildeo de Heroacutedoto (Histoacuterias 3117) da planiacutecie miacutetica que constituiacutea o centro da Aacutesia

78 1776m por 1776m79 Soldados de infantaria pesada que usavam uma lanccedila

comprida e estavam munidos de uma pesada armadura80 Atiradores que manejavam a funda ndash uma arma constituiacuteda

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de infantaria ligeira uns que lanccedilassem pedras e outros dardos ndash trecircs de cada quatro marinheiros para formar tripulaccedilatildeo de mil e duzentas naus Assim estavam organizadas as tarefas militares da cidade real quanto agraves restantes nove regiotildees era de outro modo mas isso levaria muito tempo para explicar

Quanto agrave organizaccedilatildeo inicial das instituiccedilotildees de governo e dos cargos processou-se do seguinte modo Cada um dos dez reis na sua regiatildeo e na sua cidade detinha um poder absoluto sobre as leis e sobre os homens pois castigava e condenava agrave morte quem quer que quisesse Por outro lado a autoridade que tinham uns sobre os outros e as relaccedilotildees muacutetuas dependiam das determinaccedilotildees de Posiacutedon tal como lhes transmitira a lei que havia sido fixada na escrita pelos primeiros reis numa estela de oricalco que se encontrava no centro da ilha num templo de Posiacutedon Nesse local os reis reuniam-se de cinco em cinco e de seis em seis anos alternadamente distribuindo assim equitativamente ciclos de anos pares e iacutempares durante essas reuniotildees deliberavam sobre assuntos de interesse comum verificavam se algum deles tinha transgredido alguma norma e julgavam-no Quando chegava a altura de julgar trocavam antes votos de boa feacute entre si do seguinte modo81 Depois de terem

por um entranccedilado de couro ou corda para arremessar pedras81 O ritual que Criacutetias estaacute prestes a descrever tinha por objectivo

um contacto com o deus Posiacutedon que ao escolher um touro para sacrificar inspiraria os dez reis nas suas decisotildees e reforccedilaria a obediecircncia agraves leis divinas Na origem deste sacrifiacutecio poderaacute estar um episoacutedio relatado por Heroacutedoto (Histoacuterias 2 147-sqq) segundo este autor foi estabelecida uma monarquia no Egipto cujos moldes eram muito semelhantes previa uma divisatildeo territorial sendo

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sido largados os touros no templo de Posiacutedon os dez reis que estavam sozinhos faziam imprecaccedilotildees ao deus para que eles capturassem a viacutetima que lhe agradasse depois perseguiam-na sem armas de ferro mas sim com paus e laccedilos Desses touros aquele que tivessem capturado levavam-no para junto da estela e degolavam-no no topo dela para que o sangue corresse pelas letras ndash na estela junto agraves leis estava um juramento que imprecava grandes maldiccedilotildees para aqueles que o violassem Entatildeo depois de sacrificarem o touro de acordo com as suas leis queimavam todos os seus membros enchiam um kratecircr82 de vinho misturado e deitavam um pedaccedilo de sangue coagulado sobre cada um em seguida limpavam a estela e lanccedilavam o restante para o fogo Depois disto retirando vinho do kratecircr com phiales83 de ouro e fazendo libaccedilotildees na direcccedilatildeo do fogo juravam julgar de acordo com as leis que estavam na estela punir quem anteriormente as tivesse transgredido em algum ponto natildeo transgredir propositadamente nenhuma daquelas escrituras no futuro e natildeo governar nem obedecer a nenhum governante a natildeo ser ao que estava estabelecido de acordo com as leis do pai Depois de fazer estas

cada regiatildeo (12 em vez de 10) administrada por um rei esses reis reuniam-se em assembleia em ambiente ritual e tambeacutem junto a um templo e durante esse encontro faziam sacrifiacutecios libaccedilotildees bem como ingeriam uma bebida sacrificial Aleacutem disso faziam juramentos de fidelidade e entreajuda e elegiam um dos reis como soberano Curiosamente esta civilizaccedilatildeo tambeacutem cultivava uma arquitectura rica e monumental

82 Recipiente utilizado para misturar o vinho com aacutegua antes de ser servido

83 Espeacutecie de copo ndash largo baixo sem asa nem peacute ndash utilizado para retirar o vinho do kratecircr durante as libaccedilotildees

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imprecaccedilotildees para si proacuteprio e para aqueles que de si nascessem cada rei bebia e oferecia como ex-voto a phiale ao templo do deus e dedicava-se ao jantar e a tudo o resto de que tinha necessidade Quando chegava a escuridatildeo e o fogo do sacrifiacutecio se extinguia entatildeo todos eles vestidos com um beliacutessimo manto azul-escuro sentavam-se no chatildeo junto agraves cinzas sacrificiais Agrave noite depois de apagarem por completo o fogo junto ao templo eram julgados e julgavam caso algum deles acusasse outro de ter transgredido algum ponto Depois de julgarem quando chegava a claridade registavam as determinaccedilotildees numa placa de ouro que vestidos com o manto ofereciam como monumento

Havia muitas outras leis particulares sobre as prerrogativas de cada rei mas as mais importantes eram as seguintes nunca em circunstacircncia alguma lutarem entre si ajudarem-se todos uns aos outros caso algum deles tentasse alguma vez destituir a famiacutelia real numa cidade e tal como os antepassados deliberar em comunhatildeo as resoluccedilotildees respeitantes agrave guerra e a outros assuntos atribuindo o comando agrave estirpe de Atlas Natildeo era liacutecito que um rei determinasse a morte de nenhum membro da sua famiacutelia se natildeo tivesse o voto de metade dos dez reis

Esta era segundo o relato a natureza e o poderio que outrora existia naquelas terras e que o deus84 por sua vez organizou e dali trouxe aqui para estas terras pelo seguinte motivo Durante vaacuterias geraccedilotildees

84 Tratar-se-aacute provavelmente de Zeus pois na uacuteltima secccedilatildeo que resta do diaacutelogo (121c) eacute dito que este deus decide aplicar uma puniccedilatildeo aos Atlantes

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enquanto a natureza do deus85 os engrandecia foram obedientes agraves leis e mantiveram-se indulgentes agrave ascendecircncia divina em todos os aspectos aspiravam a pensamentos verdadeiros e grandiosos e faziam sempre uso da delicadeza86 juntamente com a prudecircncia87 perante as vicissitudes e nas relaccedilotildees entre si ndash daiacute que desprezavam tudo menos a virtude pouco apreciavam a sua condiccedilatildeo e suportavam com facilidade tal como um fardo o peso do ouro e das outras riquezas Assim por natildeo se inebriarem pela sumptuosidade causada pela riqueza nem se descontrolarem natildeo capitulavam Pelo contraacuterio mantendo-se soacutebrios percebiam com acuidade que tudo isso aumentava graccedilas agrave amizade muacutetua acompanhada da virtude mas que isso mesmo decaiacutea por causa da acircnsia e da veneraccedilatildeo bem como a virtude era destruiacuteda pelo mesmo motivo

Foi graccedilas a esta maneira de pensar e agrave natureza divina que mantinham em si que aumentavam todas estas riquezas de que temos falado Mas quando a parte divina neles se comeccedilou a extinguir em virtude de ter sido excessivamente misturada com o elemento mortal passando o caraacutecter humano a dominar entatildeo incapazes de suportar a sua condiccedilatildeo caiacuteram em desgraccedila e aos olhos de quem tem discernimento pareciam desavergonhados pois haviam destruiacutedo os bens mais nobres que advecircm da honra88 Mas aos olhos

85 Neste caso o deus seraacute Posiacutedon pois era dele que descendiam os Atlantes

86 praotecircs87 phronecircsis88 Note-se a ideia da condiccedilatildeo humana enquanto degeneraccedilatildeo

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daqueles que natildeo conseguem discernir a conduta que corresponde agrave verdadeira felicidade davam a impressatildeo de ser extremamente belos e felizes mas estavam impregnados de uma arrogacircncia injuriosa e de poder89

O deus dos deuses ndash Zeus ndash que reina por meio de leis como tem capacidade para discernir este tipo de acontecimentos apercebeu-se de que uma estirpe iacutentegra estava organizada de um modo lastimoso Entatildeo decidiu aplicar-lhes uma puniccedilatildeo de modo a que eles se tornassem razoaacuteveis e moderados Reuniu todos os deuses na sua nobiliacutessima morada que se encontra estabelecida no centro do mundo e contempla tudo quanto participa no devir90 e depois de os ter reunido disse91

progressiva de uma origem divina89 O processo de queda da civilizaccedilatildeo atlante motivado por

uma degenerescecircncia moral faz lembrar a anaacutelise histoacuterica que Platatildeo dedica ao desmembramento do impeacuterio persa nas Leis Neste diaacutelogo o Estrangeiro de Atenas estabelece um contraste entre o reinado de Ciro eacutepoca em que este povo vivia ldquona justa medida entre a servidatildeo e a liberdaderdquo (694a) e o tempo dos seus descendentes que preferiam a luxuacuteria a desmesura e a licenciosidade (695a-b) para explicar a perdiccedilatildeo persa culminada nos exageros de Xerxes (695d-696b)

90 Ao colocar os deuses liderados por Zeus no centro do mundo criado o discurso de Criacutetias confirma a transmissatildeo de poderes por parte do demiurgo jaacute adianta durante o discurso de Timeu Quando o demiurgo entrega agraves divindades menores a tarefa de fabricar as partes mortais da espeacutecie humana (69c) delega-lhes ao mesmo tempo a tarefa de os governar (42e)

91 O texto termina abruptamente neste ponto por motivos que natildeo se conhecem

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Apecircndices

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Iacutendice analiacutetico

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Iacutendice analIacutetico1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

abdoacutemen 78a-e 80d 85eaacutecido 66b 74cactividade intelectual 88a cadamante 59badivinhaccedilatildeo v divinaccedilatildeoagudeza 53d 56a 57a 61e

67b 80a-balma 18a 22b 38e 69c

do homem [36-38 41] 27c n57 42d 43a-d 44a-c 45a d 46d 47d 60a 61c-d 65a 67b 69e 72d 73b-d 74e-75a 76a 81d 85e 86b-88c 89e 90a 91b e 92b 109c 112e 121c n90

parte desiderante 70d-e 71b d 77bparte passional 70aparte racional v intelecto

do mundo [26-27 36 40 50] 30b-c 34b-c 36d-e 37b-c 41d

acircnguloagudo 53d 57a 61eplano (60ordm) 54e-55a crecto 53d 55b-csoacutelido (180ordm) 54e-55b

aquilo em que (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar re-ceptaacuteculo suporte) [43-44] 49e 50c

armas 24b 119a-b e 110barqueacutetipo (cf Ideia ser) [33-

34 39 41-42 45-47] 28a-b e 29b 31a 37c 38b 39e 48e

associaccedilatildeo (cf dissociaccedilatildeo) 64e 65c

biacutelis 71b 82e 83b-c 84d 85a-d

bom-senso 89bcausa [23-24 33-38 51] 22c

28a c 29a 44c 46e-47a 57c-d 58a 61b-c 63e-64a

Iacutendice analiacutetico

256 257256 257

65b 66b 67b-c 69a 70b 76c 79a c 80d 84b 85b n262 87e-88a 89a

acessoacuteria 46c-e 68e 76ddivina 69aerrante 48ainstrumental 68enecessaacuteria 68e-69aprimeira 46dprincipal 76dsecundaacuteria 46e

ceacuterebro 67b 76a ccomposiccedilatildeo (cf decomposi-

ccedilatildeo) [40 49] 33a d 36b 41a d 53b 54a c 55a e 58b e 60e 61b 74c-d 81b e 82c 87e

congeacutenere [34 52] 29b 33b 45d 47b d 57b 63c e 71b 76c 77c 79d 80d 81a-b 85a 88e 90a c 91e

coacutepia 29b-ccores 67c-68dcorpo [37 44 49 58] 19c

33a 34b 35a 36d 43c 45c 46d 50b 53c-e 54b 55c-d 56a-e 57c-d 58b-c 60b-c 61b-d 63c-64a d-e 66d 67c-d 92a 109bceleste [30 35 40] 22d 38c edo homem [40 41] 42a d 43a c 44b-47e 51c-d 53c 60a 61d 62a 65b 69c-e 70b-e 72c-76e 77c-86a 87c-89a 90a 91c 107b d 111b 112edo mundo [25 27 33 50]

28b 30b 31b-40d 44ddaimon 27c n57 90a cdecomposiccedilatildeo (cf composi-

ccedilatildeo) 54c 58edemiurgo [26 33 35-36 38-

42 49-50 52-53] 28a 29a-30c 31a 33a 36d n107 39e 41a 42e 68e-69c 106a n2 121c n90

densidade 59b 62c 64adesejo amoroso [37] 42a

69d 91a-cdevir [24 31-33 37 42 44 47

52-53] 27c 28b 29c-e 38a 49a 51a 52a-d 59d 121c

diluacutevio 20e n18 22b d 23b 25c 111a 112a

discurso verosiacutemil (cf verosi-milhanccedila narrativa verosiacute-mil) [48-53] 30b 55d-e 57d 68b 90e

dissemelhanccedila 33b 39e 45a d 51e 53a e 57c 60a 63b-d 80a 83c

dissociaccedilatildeo (cf associaccedilatildeo) 61d 64e 65c

dissoluccedilatildeo 33a 38b 41a-b 52a 53e 56c-d 57a-b 58e 60b-61b 65d 66d 67e 68d 73e 79a 81a 82e-83d 84d-e 85d-e 111e

divinaccedilatildeo 24c 71d-72bdoce v doccediluradoccedilura 60b 66c 71b-c 78ddoenccedila 17a 23a 71e

da alma 44c 86b-92cdo corpo 33a 72c e 81e-86a

256 257

Iacutendice analiacutetico

256 257

dor (cf prazer) 42a 64a-65b 69d 71c 75b 77b 81e 86b d-e

duplicaccedilatildeodo cubo [21 n7]do quadrado 32a-b

dureza 43c 59b 62b 63e 76d

elementos [24-26 29 41 49] 32a-c 43a 44a 48b-c 49b 51a 52d-61c 73a 76b 81e-82c 121aaacutegua [23 29 41 46] 32b-c 42c e 43c 46d 48b 49b-d 51a-b 53b-c 55d 56a-e 57b 58d 59b-61c 66b-e 68a 69b 73b e 74c 78a 79a 80b 82a 86a 92bar [23 29 41] 32b-c 33c 42d-e 45d 46d 48b 49c 51a-b 52d 53b-c 55d-61c 63b-c 64c 66a-67b 73b 77a 78a-d 79b-80a 82a 83c 84b-85a 86a 92bfogo [29 41] 31b 32b-c 40a 42c-e 43c 45b-46d 48b 49b-2 51a-b 53b-54b 55d-61e 63b 64c-d 67e-68b 69b 70c 73b-e 74c 76b 77a 78a-e 79d-e 80d-e 82a 83b 86aterra [29 40-41] 31b 32b-c 42d-43c 44d 46d 48b 49c 51a-b 52d-53e 55d-e 56d-e 58e-61b 63c 66d 73b-e 74c 78a 82a 86a

epilepsia 85b n262

esfera [25 40] 33b 44d 55a c n197 62c 63a 73e

espelho 46a-c 71b 72cEstado [15-16 58 62] 17c

19b 20b 25e 110d n29estaacutedio (medida) 113c 115d-

116c 117c-119aestaleiro naval 115c 117devidecircncia [57] 91e 110e

111cfebre 84e 86afleuma 82e 83c-d 84d-85b

86efluxo (cf refluxo) 43a-b 44b

45c 75e 78c 80b 86e 88a

frio 22e 33a 62b 74b-c 82a 85d

guerra [22 38 54 62 64] 18c 19c-20b 23c 24b d 25b 88e 108c n12 108e-109a 110a-b 119a 120d 121c n90

harmonia [25 30-31] 26d 37a 41a 47c-d 55c 67c 69b 80a-b 90d

hipotenusa 54dhumidade v huacutemidohuacutemido 43c 51b 59a 60c-d

62a 65d-66b 68a-b 74c-d 76a-b 82b

Ideia (cf arqueacutetipo ser) [18-20 31 39 52-53] 27c n57 28a nn 61 64 29a n68 33d n95 35a nn103 104 51c-d

imagem [34 52] 29b 37d 52c 92c

Iacutendice analiacutetico

258 259258 259

imitaccedilatildeo [39 45-46 52-53 62] 19d 38a 39e 40d 41c 42e 47c 48e 50c 51b 69c 81b 88c 107b-c

impressatildeo 42a 43b 44a 45c 52d 57c 58e 61c

instituiccedilatildeo poliacutetica 23c 87aintelecccedilatildeo 37c 46d-e 51d-eintelecto [50] 27c 29b-30c

34a 36d-37a 39e 44a 46d 47d 71b 77b 87c 92b-c 109d 121c n90

Intelecto [23-24 35-37 42] 47b-48a

inteligiacutevel [31-33 43-44 53] 28a nn59 64 30c-31a 38b n120 39e 48e 51a c 92c

interstiacutecio 58b 59c-61birracionalidade [32 36-37]

28a 42d 43b e 47d 69dirregularidade 30a 52e 58d

59a 62b 63ejusticcedila 17d 41c 112ekratecircr 120alei 21e n28 23e-24d 27b

41e 83e 109e 114e n51 119c-120e 121b

limite 51b-c 55c d n199 60b 69e-70e 82b 112a

localizaccedilatildeo (cf aquilo em que lugar receptaacuteculo suporte) [42-47] 52b

loucura 86b-clugar (cf aquilo em que locali-

zaccedilatildeo receptaacuteculo suporte) [42-47] 52a-d

medula [40-41] 73b-75a 77d 81c-d 82c-d 84b 85e

86c 91a-bMesmo [26] 35a-b 36c-40b

42d 43d-44b 83e-84bmito [54 61 n24 62-63]

22b n33 22c 23e n39 26c 90a n278 109c n21 110a

movimento [26 30 35 58 63] 19b 34a 36c 37c 38a 38e-39a 40a-b 43b-c 44d 45d-e 46e 47c-d 48a n163 52a-53a 56c e 57c-58e 59d 61e 62b 64b e 67b-68a 71c 74a e 76b 77c 79b-80b 81a-b 86e 87e 88b-90c

mulher [50] 18c 42b 70a 76d 90e-91d 110b 112d 113c-d 116e 117b

muacutesica [29-31] 18a 35c n106 47c 80b n254 88c

naos 116cnarrativa verosiacutemil (cf discurso

verosiacutemil verosimilhanccedila) [48-53] 29c 59c 68d

nassa [40] 78b-d 79dNecessidade [35-37] 47e

56c 69d 75a 89bordem [35 39 41-42 53]

24b-c 30a 37d 46e 47e 53b 69b 83a 88e 90c 109c-d

organizaccedilatildeo [41-42 54 65] 20a 21b 23e 24d 53a 69c 85c 112c 113e 115c 117a-b 118a 119b-c 120d 121b

oricalco 114e 116c-d 119d

258 259

Iacutendice analiacutetico

258 259

osso 64c 73a-e 74d-75e 76d 82c-d 83d-84b 86d 111b

ouro 18b 50a-b 59b 112c 114e 116c-e 120a c 121a

Outro [26] 35a-b 36c 37a-b 38c-e 43d-44b 74a

pai [22 42] 22c 28c 37c 41a 42e 50d 71d 109c 110b n26 113d 120b

peacute (medida) 115d 118dpensamento 47b 87c 90cpercepccedilatildeo [31] 28bpintura [58] 19b 116b

encaacuteustica 26cde sombreados 107d

phiale 120a-bplanta [31] 59e 77a-c 90apletro 115d 116a d 118cpoesia 21b-c 113apoeta [39-40 56] 19d 21b-d

108bpoliedros regulares

dodecaedro 55c n297hexaedro 55c n196icosaedro [29] 55b n195octaedro [29] 55a n194tetraedro 55a n 193

poro v porosidadeporosidade 72c 79a-c 85c

86dporto 25a 115c-d 117d-epotecircncia (sentido filosoacutefico)

71b 83c (sentido matemaacute-tico) 31c (sentido poliacutetico-militar) [60 64] 24e 25b

prata 18b 112c 116dprazer (cf dor) 42a 47d 59d

64a-65b 69d 77b 80b

81e 86b-e 115bproporccedilatildeo [25 30 41 49]

31c-32c 37a 53a e 56c 68b 69b 82b 116d

providecircncia 30c 44c 45aquente 50a 61d-62a 67d

74c 76b 79d-e 82a 85d 113e 117a-b

raciociacutenio [29 39 43-44 49] 29e 30b 33a 34a 38c 47c 52b 56b 57d 72e 77b-c 86c 107b

receptaacuteculo (cf aquilo em que localizaccedilatildeo lugar suporte) [43] 49a 50d-51a 53a 57c

refluxo (cf fluxo) 43a-brepresentaccedilatildeo [34 61-62]

37c 38c 51a 71a 107b e 116e

sabedoria 18a 24b d 109csangue 67b 70b 79d 80e-

81a 82c-84c 85c-d 119e-120a

seco 22d 60c 76d 82b 88d 115a e

sensaccedilatildeo v sensiacutevelsensiacutevel [23 31-33 37 39 44

50] 28b 37b 38b n120 42a 43c 44a 45d 47e n160 51a d 52a-b 61c-62a 64a-65e 67a-d 69d 70b 71a e 74e 75b e 76d 77a-e 80b 92c 106a n2

sentidos [32] 28a-b 38a 42a n140 75aaudiccedilatildeo 47c 64c 67a-colfacto 66c-67a

Iacutendice analiacutetico

260 261260 261

paladar 65b-66ctacto 61c-64avisatildeo 45b-47a 52d 60a 64c-d 67c-68d 91e

ser (op devir cf arqueacutetipo Ideia) [32 42 51-52] 27c n56 27d-28d 29c 34e-35b 37a-38c 48e 52d

sonho 45e 52b 71esopro respiratoacuterio 66e 78a

79b-c 80d 83d 84d 91a c

soro 82e 83csuor 83d 84esuporte (cf aquilo em que lo-

calizaccedilatildeo lugar receptaacuteculo) [43 45] 50c-d

templo [60] 23a 111d 112b-c 113c 114e n51 115b 116c 117c 119d 120b-c

teacutetano 84etouro [60] 119d-etriacircngulo [30] 48c n165 50b

53c 54a-55e 57d 58d 61a 73b 81b-d 82d 89cequilaacutetero [30] 54a-55eisoacutesceles [30] 54a-c 55brectacircngulo [30] 54d

verosimilhanccedila (cf discurso ve-rosiacutemil narrativa verosiacutemil) [32 35 39] 29c 44c 48b d 53d 56b-c 59d 67d 72d 107d

virtude [65] 24d 34b-c 86d n263 87d 109c 110c 112e 120e-121a

260 261

Iacutendice de nomes e lugares

260 261

Iacutendice de nomes e lugares1

1 As paacuteginas indicadas entre ldquo[]rdquo dizem respeito agrave Introduccedilatildeo

Anferes 114bApatuacuterias 21bApolo 108cAacutesia [60] 24b e 112e 118eAsopo 110eAtena [16 n2] 20e n19 21e

23e n39 109c 112bAtenas [16 22-23 53-54 61-

62 64-65 67-68] 21b n22 c n25 23e n39 108c n13 110b n27 121b n90

Atenienses [23 61 n24 64-65 68] 21e 23c 24b n40 27b 109a 121c n90

Aacutetica [59 68] 110eAtlantes [68] 109a n18 114e

n51 120d nn84 85Atlacircntida [16 22 53-56 59-

62 64 68] 25a-sqq 108e 113c e 114b n47

Atlas [59] 114b d 120dAutoacutecton 114c

Azais 114cCiteacuteron 110eColunas de Heacuteracles (Estrei-

to de Gibraltar) 24e 25c 108e 114b-c

Cureoacutetis 21bDeucaliatildeo 22b 112aDiaprepes 114cEgipto [22 57-58 60-61]

21c e 24b n40 25b 114c 119d n81

Elasipo 114cErictoacutenio 23e n39 110bErisiacutecton 110bEriacutedano 112aEumelo 114bEuropa [64] 24e 25b 112eEveacutemon 114bFaetonte 22cFoacutercis 40eForoneu 22aGadiacuterica [60] 114b

Iacutendice de nomes e lugares

262 263262 263

Gadiro [60] 114bGeia 23e 40eHefesto 23e 109c 112bHeacutelios 22cHera 40eHesiacuteodo 21cHomero 21cIstmo de Corinto 110dItaacutelia [21] 20aJusticcedila (divindade) 109bLiacutebia 24e 25b 108eLoacutecride [21 27] 20aMestor 114cMnemoacutesine 108dMneacuteseas 114bMusas 23a 47d-e 73a 108cNeith (Atena) 21eNereides 116eNilo 21e 22d 24b n41Niacuteobe 22aOceano (divindade) 40eOceano Atlacircntico [56 n18]

24e 114aOroacutepia 110eOropo 110d n30Panateneias [16-17 65] 21a

n19 23e n39 108c n12Parnaso 110ePirra 22b 112a n38Posiacutedon [60] 113c-e 114b

n47 e n51 116c 117b 119c-d 119d n81 120e n85

Pseacutenopis de Helioacutepolis 22a n30

Reia 40eSais 21e 22a n30Saiticos 21e

Soacutelon [22 57-58] 20e 21a-22b 23b-c 25b e 27b 110a 113a

Socircnquis de Sais 22a n30Teacutetis 40eTirreacutenia 25b 114cZeus [38 60] 40e 109c n21

111d 114b n47 116e n68 118e 120d n84 121b c n90

262 263

Glossaacuterio

262 263

glossaacuterio

agalma representaccedilatildeoagnoia ignoracircnciaaisthecircsis sensaccedilatildeo percepccedilatildeoaitia causaalogos irracionalamathia ignoracircnciaanankecirc Necessidadeanalogia proporccedilatildeoanocircmalos irregularanomoiotecircs dissemelhanccedilaapeikasia representaccedilatildeoapollymenon corruptiacutevel (sujei-

to agrave corrupccedilatildeo)aretecirc virtudeblepocirc contemplar (ldquopocircr os

olhos emrdquo)chocircra lugar(to) diakenon interstiacuteciodiakosmecircsis organizaccedilatildeodiakrisis dissociaccedilatildeodialyocirc desintegrardianoecircsis actividade intelecti-

va intelecto

dianoia actividade intelectual desiacutegnio disposiccedilatildeo pensa-mento

diataxis ordenaccedilatildeodynamis potecircncia proprieda-

deeidos Ideia formaeikocircn coacutepia imagemeikos verosiacutemileikos logos discurso verosiacutemileikos mythos narrativa verosiacute-

milekmageion suporte(to) en ocirc aquilo em queepistecircmecirc saberepithymia parte desiderante da

alma (v alma)erocircs desejo amorosogenesis devir geraccedilatildeogenos espeacutecie linhagemgignomai gerar(to) gignomenon deveniente (v

devir)

Glossaacuterio

264 265264 265

harmonia harmoniahedra localizaccedilatildeo(to) heteron Outrohypodochecirc receptaacuteculokoilia abdoacutemenkata tauta aei imutaacutevelkenos vaziokenocircsis esvaziamentokerannymi misturar (v mistu-

ra)kinecircsis movimentokosmos mundologismos desiacutegnio raciociacuteniologos discursolysis dissoluccedilatildeolyocirc dissolvermania loucurameignymi misturar (v mistu-

ra)meixis misturamimecircma mimecircsis imitaccedilatildeomonimos estaacutevelmonocircsis singularidadenoecirctos inteligiacutevelnous intelecto intelecccedilatildeo pro-

poacutesito bom-sensohomoiotecircs semelhanccedila(to) on o que eacute (v ser)ousia ser (to) pan universopathecircma afecccedilatildeoparadeigma arqueacutetipo exem-

plopaideia paideusis educaccedilatildeophronecircsis inteligecircncia pensa-

mento sabedoriaphthora destruiccedilatildeophysis natureza

plecircrocircsis enchimentopneuma sopro respiratoacuteriopoliteia Estado instituiccedilatildeo

poliacutetica (p koinecirc) vida em comunidade

praotecircs delicadezapronoia providecircncia (divina)

capacidade de antecipaccedilatildeo (da alma humana)

syngenecircs congeacuteneresynkrisis associaccedilatildeosynaitia causa acessoacuteriasynisthecircmi constituirsyntithecircmi comporsymmetria proporcionalidadesystasis constituiccedilatildeo estruturasyntaxis sistematizaccedilatildeotaxis ordemtauton Mesmotekmecircrion evidecircnciatecirckocirc derreter dissolverthymos parte passional da alma

(v alma)zocircon ser-vivo

264 265264 265

volumes puBlicados na ColeCccedilatildeo Autores GreGos e lAtinos ndash seacuterie textos GreGos

1 Delfim F Leatildeo e Maria do Ceacuteu Fialho Plutarco Vidas Paralelas ndash Teseu e Roacutemulo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

2 Delfim F Leatildeo Plutarco Obras Morais ndash O banquete dos Sete Saacutebios Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

3 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Banquete Apologia de Soacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

4 Carlos de Jesus Joseacute Luiacutes Brandatildeo Martinho Soares Rodolfo Lopes Plutarco Obras Morais ndash No Banquete I ndash Livros I-IV Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

5 Aacutelia Rodrigues Ana Elias Pinheiro Acircndrea Seiccedila Carlos de Jesus Joseacute Ribeiro Ferreira Plutarco Obras Morais ndash No Banquete II ndash Livros V-IX Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas Coordenaccedilatildeo de Joseacute Ribeiro Ferreira (Coimbra CECH 2008)

6 Joaquim Pinheiro Plutarco Obras Morais ndash Da Educaccedilatildeo das Crianccedilas Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2008)

7 Ana Elias Pinheiro Xenofonte Memoraacuteveis Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

8 Carlos de Jesus Plutarco Diaacutelogo sobre o Amor Relatos de Amor Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2009)

9 Ana Maria Guedes Ferreira e Aacutelia Rosa Conceiccedilatildeo Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Peacutericles e Faacutebio Maacuteximo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

10 Paula Barata Dias Plutarco Obras Morais - Como Distinguir um Adulador de um Amigo Como Retirar Benefiacutecio dos Inimigos Acerca do Nuacutemero Excessivo de Amigos Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

11 Bernardo Mota Plutarco Obras Morais - Sobre a Face Visiacutevel no Orbe da Lua Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

12 J A Segurado e Campos Licurgo Oraccedilatildeo Contra Leoacutecrates Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH CEC 2010)

13 Carmen Soares e Roosevelt Rocha Plutarco Obras Morais - Sobre o Afecto aos Filhos Sobre a Muacutesica Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

14 Joseacute Luiacutes Lopes Brandatildeo Plutarco Vidas de Galba e Otatildeo Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

15 Marta Vaacuterzeas Plutarco Vidas Paralelas ndash Demoacutestenes e Ciacutecero Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

16 Maria do Ceacuteu Fialho e Nuno Simotildees Rodrigues Plutarco Vidas Paralelas ndash Alcibiacuteades e Coriolano Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2010)

17 Gloacuteria Onelley e Ana Luacutecia Curado Apolodoro Contra Neera [Demoacutestenes] 59 Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo e notas (Coimbra CECH 2011)

18 Rodolfo Lopes Platatildeo Timeu-Criacutetias Traduccedilatildeo do grego introduccedilatildeo notas e iacutendices (Coimbra CECH 2011)

ImpressatildeoSimotildees amp Linhares Lda

Av Fernando Namora nordm 83 - Loja 43000 Coimbra

O projecto Timeu-Criacutetias circula todo ele em torno dos conceitos de origem criaccedilatildeo e constituiccedilatildeo ordenada num primeiro momento cosmoloacutegicas e num segundo soacutecio‑poliacuteticas ou mesmo civilizacionaisNo Timeu um princiacutepio divino inteligente (o demiurgo) molda como um artiacutefice a mateacuteria preacute‑coacutesmica em obediecircncia a um modelo de racionalidade externo (o arqueacutetipo) O resultado eacute o mundo uma imagem do modelo e o Homem um microcosmosNo Criacutetias depois de suposta a cosmologia encena‑se uma guerra entre duas civilizaccedilotildees contrastantes (e tambeacutem elas arquetiacutepicas) que serve de paradigma para a constituiccedilatildeo originaacuteria das sociedades e tambeacutem para a natureza ciacuteclica da supremacia poliacutetica Deste breve texto natildeo resta senatildeo a parte inicial que permite natildeo mais do que suposiccedilotildees instaacuteveis Sobreviveu poreacutem um patrimoacutenio ficcional riquiacutessimo em tudo o que se tem criado sobre a suposta Ilha da Atlacircntida e o mito a que deu origem

  • Capa
  • Folha de rosto
  • Ficha teacutecnica
  • Iacutendice
  • Nota preacutevia
  • Introduccedilatildeo
    • I Aspectos extratextuais
      • 1 O projecto Timeu-Criacutetias
      • 2 Data dramaacutetica e data real de composiccedilatildeo
      • 3 Personagens
        • II Aspectos temaacutetico-estruturais
          • 1 Antecedentes cosmoloacutegicos
          • 2 O discurso de Timeu
          • 21 Pressupostos iniciais
          • 22 Intelecto e Necessidade
          • 23 O demiurgo
          • 24 O terceiro niacutevel ontoloacutegico
          • 25 O estatuto do discurso
          • 3 O discurso de Criacutetias
          • 31 A historicidade da narrativa sobre aAtlacircntida
          • 32 A narrativa sobre a Atlacircntida eacute uma invenccedilatildeode Platatildeo
          • 33 Leituras alegoacutericas
          • 4 Estrutura dos diaacutelogos
              • Timeu
              • Criacutetias
              • Apecircndices
                • Bibliografia
                • Iacutendice analiacutetico
                • Iacutendice de nomes e lugares
                • Glossaacuterio
                  • Volumes publicados na Colecccedilatildeo Autores Gregos e Latinos ndash Seacuterie Textos Gregos
                  • Coacutelofon
                  • Contracapa
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