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76 • Rolling Stone Brasil, Abril, 2009 Gutter Photo Credit tradução: ana Ban 92 • Rolling Stone Brasil, Abril, 2010 LIGADOS PELAS CORDAS Clapton e Beck na casa de campo de Beck, em Wadhurst, Inglaterra, em janeiro deste ano

Tinindo Trincando - Novos Baianos e o melhor da música brasileira

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O maior entre os grandes discos nacionais de todos os tempos, a obra prima Acabou Chorare é fruto de uma experiência coletiva e livre, que tem no samba e no rock suas mais fortes raízes. Rolling Stone

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novos baianos e o melhor

da música brasileira

o maior entre os grandes discos nacionais de todos os tempos,

a obra prima acabou Chorare é fruto de uma experiência coletiva

e livre, que tem no samba e no rock suas mais fortes raízes

Por Cristiano Bastos

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Em 1823, o patriarca da independência José Bonifácio de Andrada e Silva decla-rou que a crucial diferença entre o Brasil e os outros países cabia numa única palavra: “amálgama”. No entendimento de Bonifácio, o DNA cultural da nação estaria profunda-mente amalgamado. Os demais povos te-riam “diversidade”. A profusão verde-ama-

rela também é perfeita para entender as razões da atemporalidade do álbum Acabou Chorare, gravado há 38 anos pelos Novos Baianos. Em votação feita com especialistas, em 2007 a Rolling Stone elegeu o disco “o maior da música brasileira de todos os tem-pos”. Este ano, lançamentos (veja no box) evidencia-rão o “bando” que, no fundo, nunca se desfez, e arre-batarão velhos e novos fãs com gravações, filmes e livros. Todos com força para novamente erigi-los ao panteão da memória musical brasileira – da qual, na verdade, nunca foram deletados. A mais aguardada novidade é o documentário Filhos de João – O Admi-rável Mundo Novo Baiano, de Henrique Dantas.

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Paulinho Boca de Cantor, para o qual a artesanal me-todologia deu ao disco a sensação de “quentura”, como se gravado ao vivo. Moreira é certeiro: “Parecia que a gente tinha ensaiado a vida toda”. Araújo foi majoritá-rio responsável pela confecção de Acabou Chorare (cuja gravação chegou ser cogitada em dois canais) em qua-tro pistas – o que, no final, mudou a história da obra por completo. O disco foi gravado no estúdio carioca Somil, especializado em áudio para cinema. A nascente Som Livre, na época, ainda não tinha estúdio próprio.

Araújo previu o fatal sucesso dos hoje clássicos “Bes-ta é Tu” e “Preta Pretinha”. Animava a todos dizendo: “Será nossa consagração! Venderá mais de cem mil dis-cos”, recorda Boca de Cantor. “Preta Pretinha” foi a pri-meira a vazar e também a estourar. Semanas antes de ser lançada, a canção ensejava o frêmito que viria a se tornar. “Algumas pessoas tinham assistido nossos en-saios abertos e a disseminaram”, conta Paulinho. E não deu outra: “Preta Pretinha” foi arroubo instantâneo. Glória maior só logrou “Acabou Chorare”. A faixa-título estacionou no dial das rádios e por lá ficou 30 semanas entre as mais executadas. Em 1972, a nova-bossa dos baianos era a mais ouvida de Norte a Sul.

A Som Livre estreou seu cast (que, entre outros ar-tistas, abrigou Tim Maia e Rita Lee) com a contratação dos Novos Baianos. Tudo começou com um telefonema de Caetano Veloso. O baiano ligou à tarde recomendan-do seus conterrâneos e, na mesma noite, a turma baixou na residência do produtor: “Pepeu, Moraes, Paulinho e Baby Consuelo, toda de branco e com a cabeça enfeita-da por um retrovisor de Fusca. Parecia uma ‘Mãe-de-Santo da Volkswagen’”, diverte-se Araújo ao reviver o frutífero encontro. Contando sete anos de idade, Ca-zuza ficou fascinado com a extravagante estampa dos Novos Baianos. “Cazuza ia ao refrigerador e buscava comida pra eles”, ri o pai. Baby conclui: “Ele (Cazuza) deve ter oferecido a geladeira inteira pra gente”. Futu-ramente, Cazuza revelaria que fora essa a primeira vez que pensara em ser artista.

Nessa fatídica noite, a animada (e esfaimada) cara-vana levantou acampamento na residência do mecenas Araújo. Vararam a madrugada cantando e proseando. Moraes pegou no violão e não soltou mais, o produtor recorda. Os quatro baianos sacaram a recém-composta “Preta Pretinha” e a apresentaram. “Desfilaram uma porção de canções e entendi que sobrava originalidade. Muito ‘porra-louquismo’, sim, mas com carisma e apelo irresistíveis. O repertório era todo comercial, cantável e variado”, elogia. Começava aí a “Invasão Baiana”.

Acabou Chorare foi a bomba-relógio com data mar-cada para eclodir em matizes verde-amarelas naquela alvorada cinzenta de 1972. A trupe inteira envolveu-se efusivamente no entrelaçamento do artefato. Burburi-nhos sobre sua inevitável explosão corriam pela cidade. Repórteres eram destacados ao estúdio Somil com a missão de desvendar a causa de tanto falatório em tor-no daquele “bando de freaks”. Detalhe importante: o vinil foi trabalhdo às altas-horas da madrugada, o que só amplia o seu esoterismo. A “orquestra” baiana ingres-sava no estúdio à noite e saia apenas ao raiar do dia.

Os inúmeros e imprevisíveis contratempos, os Novos Baianos sublimavam com os melhores predicados tra-zidos por cada um deles: criatividade, inventividade, engenhosidade. O engenheiro de áudio João Kibelkstis (que gravou o LP Força Bruta, de Jorge Ben) recorda que, em 1973, os Novos Baianos inauguraram o grava-dor Scully oito pistas recém-comprado pela Continen-

mes. Em parceria com Moraes, Pepeu cinzeleva os tran-çados arranjos das canções, além de cuidar da afinação de todos os instrumentos. A tripulação completava-se com Jorginho (bongô e cavaquinho), Baixinho (bateria e bumbo), Dadi (baixo) e Bolacha (bongô), recentemen-te falecido. Ainda juntavam-se a eles o dançarino Gatto Felix e o percussionista Charles Negrita.

Jóia do neologismo brasileiro, a expressão “Acabou Chorare” foi cunhada pela então criança, hoje a inter-nacional cantora Bebel Gilberto, filha de João Gilberto e da compositora Miúcha. O novo vocábulo, literalmen-te, “caiu de maduro”. Encerrada longa temporada entre México e Estados Unidos, o bossa-novista declarara “chega de saudade” e regressara ao Brasil. A pequeni-na Bebel ainda confundia-se com a indefinidade fluên-cia entre três idiomas: inglês, espanhol e português. A frase escapou após a arteira menina ter espatifado-se no chão batido do Cantinho do Vovô. A infante abriu o berreiro. O zeloso pai levava um som com os pupilos e na hora largou o violão para acudi-la. Bebel notou a preocupação do pai. Para deixá-lo tranquilo, soltou fra-se singela que a todos enfeitiçou:

– Não machucou papai: acabou chorare. Os músicos apaixonaram-se de cara tanto pela poé-

tica como pela fonética da sentença, quase um slogan. “Na minha cabeça, até hoje Acabou Chorare é um dis-co que foi ‘feito pra mim’”, segreda Bebel. A madrinha Baby Consuelo lê o significado da frase vinculado ao cerco político repressor daqueles dias. “Esotericamente saídas da boca de uma criança, tais palavras nos mos-travam que chegara a hora de acabar com o choro. Tí-nhamos lacrimejado demais. Queríamos o Brasil alegre de volta”, metaforiza Baby.

Com raras exceções, em 1972 as condições técnicas dos estúdios brasileiros sofriam de crônica anemia. O registro de Acabou Chorare, porém, fluiu sintonizado no alto-astral do Cantinho do Vovô. João Araújo desta-cou o músico Eustáquio Sena para produzir a “bolacha”, mas ele próprio acompanhou de perto todo o proces-so. As sessões foram tramadas em quatro diminutos canais – quase insignificantes, se comparados ao sun-tuoso padrão atual. Em estúdio, não se permitia errar. Sempre o lema: acertar. Primeiramente, os fonogramas eram gravados em quatro canais, os quais depois eram reduzidos para dois. Por último, eram inseridas as vo-calizações na master mixada. “Se um marcava bobeira todos tinham de repetir o take. Só que estávamos pra lá de ensaiados. O repertório ‘tinia e trincava’”, graceja

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A produção focaliza a interferência “divina” do mes-tre João Gilberto, “produtor espiritual”, parafraseando o novo baiano Moraes Moreira, sobre os rumos da ban-da. E, por outro ângulo, enquadra o segundo capítulo deste encontro que resultou na obra-prima Acabou Chorare. Na última edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o documentário amealhou o Prêmio do Júri Popular e, neste ano, ganha os cinemas nacio-nalmente. O poeta do Kaos Jorge Mautner saúda a po-derosa amálgama de Acabou Chorare como “o segredo brasileiro”. Moraes, um dos fundadores, endossa: “Os Novos Baianos só foram possíveis por causa da congre-gação de pessoas. A união fez a música”, abrevia o “va-queiro do som”, apelido dado pelo preceptor João Gil-berto. Conterrâneo, o múltiplo Tom Zé foi outro deles.

Antigamente, explica Mautner, quando o Brasil ain-da não havia descoberto sua identidade cultural, co-mentava-se que o país fora amaldiçoado por “três raças tristonhas” – negra, indígena e lusitana. Hipótese que, obviamente, ele refuta. Mas ufaniza: “Os brasileiros são a etnia mais otimista e alegre do planeta!”. Distante daqui, outros pensadores deram-se conta da “verdade tropical”. No século 19, o bardo norte-americano Walt Whitman professou que o Brasil seria o “vértice da hu-manidade” – probabilidade que, a história prova, não passou batida pelo olhar de gênios pátreos da estatu-ra de Villa-Lobos, Mario de Andrade e Ary Barroso. O amálgama também seduziu outros menos bem-suce-didos, mas banhados em criatividade. Caso do grande compositor, e exímio fracassado, Assis Valente. Em 1940, o carioca teve destreza para criar o samba-exalta-ção “Brasil Pandeiro” (que prefacia Acabou Chorare) e, inversamente, autenticar a “valentia” sugerida por seu sobrenome. Endividado, Valente suicidou-se ingerindo uma dose de guaraná e formicida. Até na escolha do ve-neno celebrou amor à pátria. Assis Valente vende o País como ninguém nos versos de “Brasil Pandeiro”: “O Tio Sam está querendo conhecer a nossa batucada”.

Dá para dizer que cada um dos “lados” do LP Acabou Chorare foi arquitetado em endereços distintos. O A no apartamento em Botafogo, Zona Sul do Rio de Janei-ro, onde os Novos Baianos aquartelavam-se; e o B no sítio-comuna alugado em Jacarepaguá, Zona Oeste. Na plaqueta em formato de bandeira do Brasil afixada na porteira do sítio, onde se deveria ler “Ordem e Progres-so” estava escrito “Cantinho do Vovô”. De 1971 a 1975, o combo se resguardou das agruras militares no retiro que também foi lar, estúdio e campo de futebol – três das coisas que mais interessavam a todos ali conjuga-dos. No Cantinho do Vovô, o samba cinco estrelas dos Novos Baianos pulsava suave, contente e distorcida-mente roqueiro.

Acabou Chorare deu o pontapé inicial (verdadeiro “gol de placa”) no cast da recém-criada gravadora Som Livre, fundada pelo produtor João Araújo, também conhecido como pai do astro Cazuza. As gravações de-ram-se no estúdio fluminense Somil, especializado em áudio para cinema. Como “centroavantes”, o time que tocou no álbum reunia Moraes Moreira (violão-base), Paulinho Boca de Cantor (vocais e pandeiro) e Baby Consuelo (afoxé, triângulo e maracas). Luiz Galvão era o “médium” que decodificava a loucura coletiva em poe-sia. Estes quatro são núcleo-base da banda reunida em Salvador, em 1969. A armada baiana também arregi-mentava outros guerrilheiros. O sólido “wall of sound” dos Novos Baianos era cimentado pelo conjunto A Côr do Som, cuja batuta pertencia ao guitarrista Pepeu Go-

“...chegara a hora de acabar com o choro. tínhamos lacrimejado demais. queríamos o brasil alegre de volta”

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Caminhos Cruzados

(1) o Yardbirds durante o breve período em que contou com o futuro guitarrista do LedZeppelin, Jimmy Page, e Jeff Beck (os dois ao fundo) na mesma formação. (2) Jeff Beck e Eric Clapton tocando juntos em 2009, no Japão, onde

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tal, major onde editaram o disco seguinte, Novos Baia-nos F.C. O experimentado engenheiro afirma que oito ou mais canais não faziam diferença. “A expertise com gravações diretas era um grande trunfo que tinham.” Moraes Moreira diz que nem queriam saber: “Nosso lance era tocar”. Kibelkstis vem com o irrefutável ensi-namento: “Máquinas serão sempre acessórios”, prega o homem que cuidou das intocadas vozes de Nelson Gon-çalves e de Orlando Silva.

Todavia, a aberrante distorção evitada pelos técnicos de som da velha-guarda, justamente, era um dos efeitos perseguidos pelo hábil guitarrista Pepeu Gomes. Para obtê-lo, lançava mão de muita “maluquice e pesquisa”. A Gianinni Supersonic de Pepeu fende suas bem-vindas distorções em números mais nervosos de Acabou Cho-rare, como “Mistério do Planeta” e “Bilhete pra Didi” (do irmão Jorginho Gomes). Embora careta, o engenheiro e amigo Paulo César Salomão materializava os loucos in-sights do guitar-hero. Pepeu o exortava: “Quando tocar meu som no rádio quero que digam: ‘É a guitarra do Pe-peu!’”. Diligente, Salomão varava madrugadas estudan-do eletrônica. Seu mérito deve ser reconhecido: são as pequenas filigranas que qualificam a alta envergadura desta obra. Ainda não havia recursos para comprar pe-ças novas para a guitarra. Salomão melhorou o som da Supersonic entalhando o instrumento, dentro do qual acoplou capacitores removidos do televisor (não-assis-tido) que a família tinha no sítio. As façanhas obtidas com o “truque do televisor” estão premidas na abelhuda estridência de faixas como “Bilhete pra Didi” e, especial-mente, no solo hendrixiano de “Mistério do Planeta”.

O popular alarido de Acabou Chorare catapultou os Novos Baianos às massas. Aos borbotões, convites de emissoras de TV desaguavam no Recanto do Vovô. Desde os populares Fantástico e Chacrinha, estrela-ram os programas mais apurados, como o Ensaio, na TV Tupi. Os brasileiros ansiavam “ver” as súbitas vozes cuja musicalidade irradiava para a intimidade de seus lares. O interesse também foi internacional. Em 1973, no auge da fama o diretor Solano Ribeiro filmou o tele-visivo Novos Baianos F.C. Realizado sob encomenda da TV alemã, o especial foi premiado no Festival Europeu de Televisão, na Áustria.

Fora a elementar síntese de rock, samba e brasilida-des afins (inconcebível há 38 anos) alinhavada em Aca-bou Chorare, outra saliente presença é a do samba de roda alforjada por Moraes Moreira de sua Ituaçú, no interior baiano. “Eu trazia a influência do rádio, das serenatas, das bandas marciais e do auto-falante”, ele pontua. Para Tom Zé (mestre que, em Salvador, trans-mitiu a Moares suas primeiras lições de violão), o regio-nal atuante por trás de todo Acabou Chorare nada mais é do que “samba de roda elevado à categoria de erudito”. Antes de prosseguir na afortunada trip que foi a con-cepção de Acabou Chorare convém, brevemente, deter-se na enxuta discografia da banda até então. Em 1969, colheram alguns louros com o LP É Ferro na Boneca!, cuja música-título tocou bastante na rádios. Também editaram os compactos simples Colégio de Aplicação (1969) e Volta que o Mundo Dá (1970). No mesmo ano, ainda lançaram o duplo contendo as faixas “Psiu/29 Beijos” e “Globo da Morte/Mini Planeta Íris”, embrio-

nária da mística “Mistério do Planeta”.Em 1972, a capa de Acabou Chorare recebeu prêmio

de melhor produção gráfica do ano. A arte leva assinatu-ra de Antônio Luis Martins, melhor reconhecido como “Lula”, protagonista do cult-movie Meteorango Kid – O Herói Intergalactico (1970), de André Luiz de Oliveira. A produção de Meteorango emaranha-se aos primór-dios soteropolitanos do grupo. Na RGE, o artista fizera a capa do compacto Os Novos Bahianos. Para Acabou Chorare, desenvolveu uma técnica de desenhos à base de canetas hidrocor e esferográficas. Lula afirmava pintar “a cor do som”. Questões financeiras, porém, reduziram o número de fotos coloridas, o que veio alterar o proje-to originalmente concebido. “Mais tarde observando vi que os retratos em preto-e-branco acentuavam o gra-fismo da arte”. Outra feita por Martins, é a surrealística capa do álbum Caia Na Estrada E Perigas Ver, de 1976.

As letras de Acabou Chorare são caso – ou capítulo – particular. A começar pelo resgate, sugerido por João Gilberto, de “Brasil Pandeiro”. O grande sucesso “Pre-ta Pretinha” surge duas vezes no LP. A primeira versão tem seis minutos de duração, e a segunda, editada pela Som Livre, pouco mais de três minutos. “Por fim, a mais tocada foi a mais extensa”, observa Moraes Moreira. Nos shows, entrava emendada num pout-pourri que tinha “29 Beijos” e “Oba-Lá-Lá” – pinçada de Chega de Saudade, disco de 1959 do paterno João Gilberto.

“Tinindo Trincando” e “A Menina Dança” possuem valor pessoal para sua intérprete, a niteroiense Ber-nadete Dinorah de Carvalho – eterna Baby Consuelo. Luiz Galvão, o “interlocutor”, as escreveu sob medida

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para ela. Com seu “nariz arrebitado”, Baby refresca-nos a memória: “A letra diz que ‘estava tudo virado’ e que cheguei ‘após esgotar o tempo regulamentar’. Significa-va que no tempo em que cantoras fabulosas, como Elis Regina e Gal Costa, bombavam eu trazia meu estilo particular”, desvenda. Esbanjando brejeira brasilidade, aflorada de seu ousado jeito de ser – aliada ao rock e ao blues (do qual evocava o canto spiritual de Janis Joplin) –, Baby Consuelo é uma das fêmeas que fincaram as ba-ses do “rock brasileiro”. A outra é Rita Lee. No caso dos Novos Baianos, Baby também “deu a luz” (maternidade é outra especialidade sua) ao “rockarnaval” – oficial in-sígnia da banda.

Nos bastidores, borbulham causos sobre a criação do repertório letrístico, muitas vezes cifrado, de Acabou Chorare. “Swing de Campo Grande”, assinada por Boca de Cantor, é uma delas. Ele conta que, na temporada chumbo-grosso da ditadura, os militares imaginavam que eles fossem “terroristas fantasiados de hippies”. “Pra-ticamente começaram a nos caçar”, ele diz. Em seu bojo, a letra, que carrega forte carga mística, tem a ver com o contexto militar. Naqueles dias, Boca de Cantor co-nheceu um rezador que lhe aconselhara “tranquilidade” nas horas difíceis. “Ele dizia: ‘Vocês (Os Novos Baianos) são gente legal. O mal não colocará seus olhos em vós’. Nossos perseguidores não nos veriam”. Foi então que o místico ensinou a simpatia que foi parar na letra da can-ção: “Quando receberem mal-olhado virem ‘toco’, virem ‘moita’”. O macete, conforme Paulinho, funcionava tão bem que eles ficaram cinco anos sem pagar o IPVA do automóvel. “Passávamos pelos postos da Polícia Rodovi-ária e olhávamos para nossas próprias línguas. Ele nos ensinara que se olhássemos para nós mesmos ninguém nos veria”. A música é sobre invisibilidade, portanto. O aconselhamento do rezador afina com o ensinamento transmitido por João Gilberto de que, na busca do la-tente Brasil, olhassem para si mesmos.

Por mais inverossímel que seja crer, as substâncias não foram uma obsessão essencial nesta mágica histó-ria. Mas também foram importantes, sobretudo, poéti-ca e ludicamente. Moraes conta que banda e agregados disputavam acirradas partidas de futebol (dentro do apartamento) loucos de ácido. Pepeu revela, no entanto, que outras muitas situações psicodélicas foram viven-ciadas “de cara”. “A gente tocava no galinheiro, debai-xo da árvore. Achávamos que a árvore falava conosco. Nada a ver com drogas. Era feeling. Batíamos na árvore

para testar o som. Víamos a natureza em forma de le-tras e de notas musicais”, o guitarrista tenta explicar. Na opinião de Moraes, o mantra “Besta é Tu” é a toada com maior carga lisérgica de Acabou Chorare. “O ‘besta é tu’ é um ritmo baiano do interior repetido à exaustão”. Pegamos emprestado do cancioneiro popular. A gente tomava LSD e desatava a tocar o ‘besta é tu’ intermina-velmente”, ri Moares. Galvão, atualmente, afirma estar “pianinho”. Abandou as diversões perigosas: “Hoje em dia, só bebo suco de uva”. A ministra evangélica Baby (do Brasil) quer mais é distância de tentações. A heavy “Barra-Lúcifer”, do álbum Caia na Estrada Perigas Ver, ela jura nunca mais cantar em sua vida.

Confesso apreciador de Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano, Galvão censura a “fá-bula” representada no filme, segundo a qual João Gil-berto teria “batido à porta” do apartamento dos Novos Baianos, em Botafogo. Ele contesta a verossimilhança do fato narrado pelo baixista Dadi. Originalmente, a infeliz versão não partiu do baixista: foi disseminada em 2000 no livro Noites Tropicais, de Nelson Motta. Conterrâneos de Juazeiro, João e Galvão (sem o qual a banda jamais teria arranjado o encontro) são velhos e íntimos amigos. Galvão chama a versão contada por Motta de fantasiosa: “Uma noite eles (Novos Baianos) receberam uma visita surpreendente, mas esperadís-sima. Antes levaram um susto: o baixista Dadi, de 19 anos, foi abrir a porta e, quando viu aquele senhor de

paletó e óculos, muito sério, virou para dentro e avisou: ‘Ih, pessoal, sujou! Acho que é cana’. Mas não era: João Gilberto foi recebido como um messias no apartamen-to-comunidade de Botafogo”.

“Me decepcionei com Nelson Motta”, desabafa Gal-vão. Dadi não lembrou que, no fatídico dia suposto por Motta, quem batera à porta fora Roberto, filho de Dona Helena, da qual a banda fora inquilina em 1971. Galvão conta que Roberto era careta antes de conhecê-los. Convivendo com eles, entrementes, convertera-se ao “maconheirismo”. “Roberto entrou e logo tacou fogo num baseado. Nem viu que João encontrava-se no recin-to. João olhou para Roberto e falou mansamente: ‘Quer um chiclete, Roberto?’. Ele devolveu surpreso: ‘Hoje ga-nhei o meu ‘chiclete’. Conheci João Gilberto’”, o poeta re-monta. Galvão assevera: João Gilberto jamais apertou a campainha de ninguém e nunca comunicava suas idas ao apartamento. O contato, segundo Pepeu, dava-se te-lepaticamente. João ficava plantado debaixo do prédio e os baianos tinham de se revezar para não deixá-lo partir. “Quando alguém o avistava era soado o alerta geral: ‘O João está lá embaixo!’ Descíamos para capturá-lo”.

Baby Consuelo usa de feminilidade para descrever o primeiro encontro. Os vizinhos nem sonhavam com a presença celeste do músico no edifício. Para não pertur-bá-los com o som que entraria noite adentro, Baby teve a ideia de desmontar um profundo armário embutido que havia em seu quarto e de Pepeu (à época casados). No interior do cômodo, estendeu floreados edredons das Casas Pernambucanas. “Montei no apartamento uma enorme tenda que virou nosso ‘palco’”, ela detalha. Esparramados em volta do Criador, o apostolado baia-no ouviu João Gilberto rezar sua missa. A liturgia ini-ciou com “Brasil Pandeiro”, que, de cara, fez crepitar a brasilidade no coração dos “escolhidos”. Foi a primeira das muitas parábolas que desembainhou para acertá-los. “O conselho de João era apenas um: que nos vol-tássemos para dentro de nós mesmos para despertar o adormecido gene brasileiro. João mostrou-nos um Brasil bonito e iluminado. Brasil de Herivelto Martins, Noel Rosa e Jackson do Pandeiro”. Após o sobrenatural, assumiram de vez o samba, a bossa nova e o carnaval. “Passamos a tocar samba como se fosse rock”.

De 1969 a 1979, profundos valores de amizade e de respeito mútuo amalgamaram-se numa entidade musi-cal única chamada Novos Baianos, a qual vive até hoje. A verdadeira alegria de estarem tocando irmanados impressionou o bandeonista argentino Astor Piazzolla, que os conheceu dos tempos dos Festivais Internacio-nais da Canção da Rede Globo. O argentino dissera jamais ter visto tantos músicos juntos tocando tão con-tentes. A felicidade da qual falava Piazzolla é a mesma eternizada nos impecáveis 36 minutos da obra máxima do Novos Baianos: Acabou Chorare.

É justo saldar débito histórico com o concretismo, vanguarda poética chefiada, no Brasil, pelos irmãos Au-gusto e Haroldo de Campos e Décio Pignatari. Augusto de Campos redigiu o texto de apresentação de Acabou Chorare (e também do álbum É Ferro na Boneca!) – no qual entreviu: “O dom eles tinham. Agora o som mais perto, mais esperto, mais certo. Descobriram o silêncio”. Anos antes, o russo Vladimir Maiakovski, pai do con-cretismo, evocara milenar presságio sobre um paraíso oculto nos trópicos: “Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz”. Ainda hoje, Au-gusto de Campos ecoa a sentença grafada há 38 anos so-bre os Novos Bainos: “As cartas ainda estão na mesa”.

Além do documentário Filhos de João, outras películas sobre Novos Baianos ganharão o mercado em breve. Filmado em 1977 por Luiz Galvão, Lirismo e Surreal costura quatro distintas historietas. A cena em que Baby Consuelo e Caetano Veloso rolam pela grama, apesar de pouco vista, desde sempre é célebre. Galvão pretende captar recursos para lançá-lo. Baby Consuelo, hoje a Baby do Brasil, terá sua traje-tória contada em Baby do Brasil, documentário dirigido pelo baiano Rafael Saar. O curta-metragem A Gente é Isso, realizado em “caráter artesanal” pelo fotógrafo Pedro de Moraes, encontra-se em processo de captação de recursos para res-

tauração e relançamento. Seus 20 minutos são um dos mais preciosos registros sobre a banda. Outra pro-dução é Hermeto, Macalé e Novos Baianos, filmado em 1978 em 16 mm por Andrea Tonacci. O filme é dado praticamente como perdido, porém, uma cópia está sendo procurada pela diretora. Segundo Moraes, existe, também, a possibilidade de relançamento da célebre participa-ção dos Novos Baianos no programa Ensaio. O mais “ambicioso” projeto dos Novos Baianos, porém, seria a possível gravação de um Acústico Novos Baianos – Acabou Chorare. Sondagens foram feitas, mas, de concreto não ficou nada. Pepeu Gomes acredita que seria maravilho-

so regravar o disco com a tecno-logia atual, porém, obedecendo o velho padrão quatro canais. Moraes opõe-se: “Numa coisa dessas não se mexe”. Recentemente, ele publi-cou o volume A História dos Novos Baianos e Outros Versos, que narra a história da banda em linguagem de cordel. Sonhos Elétricos, seu novo livro de memórias, está no prelo. A previsão de lançamento é para este ano. Em 1997, Galvão escreveu Anos 70: Novos e Baianos, obra na qual detalha sua vivência com o grupo, a qual vem ampliada e revista pelo autor. Como bons novos baianos, todos os lançamentos, claro, chega-rão aos fãs somente após a Copa do Mundo de Futebol.

“a gente tocava debaixo da árvore. achávamos que ela falava conosco. nada a ver com drogas. era feeling”