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TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTO

TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTO...TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTO Ailton Benedito Alberto Passos G. Filho Amilcar Baiardi Ana Amélia de Melo Antonio Carlos Máximo Antonio José Barbosa

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TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTO

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Ailton BeneditoAlberto Passos G. FilhoAmilcar BaiardiAna Amélia de MeloAntonio Carlos MáximoAntonio José BarbosaArlindo Fernandes de OliveiraArthur José PoernerAspásia CamargoAugusto de FrancoBernardo RicuperoCelso FredericoCésar BenjaminCícero Péricles de CarvalhoCleia SchiavoDélio MendesDimas MacedoDiogo Tourino de SousaEdgar Leite Ferreira NetoFabrício MacielFernando de la Cuadra

Fernando PerlattoFlávio KotheFrancisco Fausto Mato GrossoGilvan Cavalcanti de MeloHamilton GarciaJosé Antonio SegattoJosé Carlos CapinamJosé Cláudio BarriguelliJosé Monserrat FilhoLucília GarcezLuiz Carlos AzedoLuiz Eduardo SoaresLuiz Gonzaga BeluzzoLuiz Werneck ViannaMarco Aurélio NogueiraMarco MondainiMaria Alice RezendeMartin Cézar FeijóMércio Pereira GomesMichel ZaidanMilton Lahuerta

Oscar D’Alva e Souza FilhoOthon JambeiroPaulo Alves de LimaPaulo BonavidesPaulo César NascimentoPaulo Fábio Dantas NetoPierre LucenaRicardo Cravo AlbinRicardo MaranhãoRubem Barboza FilhoRudá RicciSérgio Augusto de MoraesSérgio BessermanSinclair Mallet-Guy GuerraSocorro FerrazTelma LoboUlrich HoffmannWashington BonfimWillame JansenWilliam (Billy) MelloZander Navarro

Fundação Astrojildo PereiraSEPN 509, Bloco D, Lojas 27/28, Edifício Isis – 70750-504

Fone: (61) 3224-2269 Fax: (61) 3226-9756 – [email protected]

Presidente de Honra: Armênio Guedes (In memoriam)Presidente: Alberto Aggio

Política DemocráticaRevista de Política e Culturawww.políticademocratica.com.br

Conselho de Redação

EditorMarco Antonio T. Coelho(In memoriam)

Editor ExecutivoFrancisco Inácio de Almeida

Alberto Aggio Anivaldo Miranda Caetano E. P. AraújoDavi EmerichDina Lida Kinoshita Ferreira Gullar

George Gurgel de OliveiraGiovanni Menegoz Ivan Alves FilhoLuiz Sérgio HenriquesRaimundo Santos

Copyright © 2016 by Fundação Astrojildo Pereira

Obra da capa: Coisas penduradas em varais, de Alano de Freitas.

Os artigos publicados em Política Democrática são de responsabilidade dos respectivos autores.Podem ser livremente veiculados desde que identificada a fonte.

Conselho Editorial

Política Democrática – Revista de Política e Cultura – Brasília/DF : Fundação Astrojildo Pereira, 2016.ISSN 1518-7446 No 44

200p.

CDU 32.008 (05)

DistribuiçãoFUNDAÇÃO ASTROJILDO PEREIRATel.: (61) 3224-2269Fax: (61) 3226-9756contato@fundacaoastrojildo.org.brwww.fundacaoastrojildo.org.br

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Política DemocráticaRevista de Política e CulturaFundação Astrojildo Pereira

Abril /2016

TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTO

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Sobre a capa

As pinturas e desenhos que ilustram e embelezam esta edição da nossa Política Democrática são de autoria do conhecido artista plástico cearense Alano de Freitas.

Nascido em Fortaleza, há 66 anos, ele já exibiu suas criativas e emocionantes obras em um infindável número de mostras indivi-duais e coletivas, não só na querida terra natal, que o admira e o tem na maior conta, mas também em várias outras capitais como São Paulo, Recife, Salvador e Teresina. Em Brasília, fez memorável exposição no hall da Casa do Ceará, em 1975, a convite de Meire Calmon que, à época, presidia esta conhecida instituição.

Fora do Brasil, expôs algumas de suas mais conhecidas telas, em uma individual na cidade de Cremona, na Itália, e uma outra, na galeria do Subte Municipal de Montevidéu, no Uruguai.

A qualidade dos seus trabalhos foi reconhecida, por meio de oito prêmios de desenho e menção honrosa em pintura, por conta de sua participação em mostras organizadas pelo Salão Pernam-bucano de Arte Contemporânea, pelo Salão de Abril, pela Universi-dade de Fortaleza (Unifor Plástica), pelo Salão Norman Rockwell do Desenho e da Gravura, e pelo Salão Nacional de Artes Plásticas.

Sua contribuição artística à nossa publicação é motivo de justo orgulho para quantos a editam.

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Sumário

EDITORIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

I. TEMA DE CAPA: TIRAR O PAÍS DO VOLUME MORTOCrimes de irresponsabilidade com a HistóriaCristovam Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11O bolchevismo tardioLuiz Carlos Azedo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 16Destruição criativaAntonio Machado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 22Especulações em torno do dia seguinteHamilton Garcia de Lima . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 27

II. OBSERVATÓRIOA fraqueza de um homem sóGabriel Burnatelli de Antonio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 33Brasil caminha na contramão do ContinenteNelson Rojas de Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 37

O Gramsci que “conhecemos” e o que ele inspirouAlberto Aggio . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40Eleição municipal e mudanças na Lei EleitoralArlindo Fernandes de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45

III. CONJUNTURAPara além da conjuntura. E aquém da decadência?Elimar Pinheiro do Nascimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?Ivan Alves Filho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 58A incrível fábrica de mitosSérgio C . Buarque . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 67

IV. ECONOMIA E DESENVOLVIMENTOAs perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão socialLaécio Noronha Xavier . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 77Brasil fica mais distante da fronteira global da economia, do conhecimento e da inovaçãoRicardo Abramovay . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 88Convulsão econômica, social e política no BrasilJosé Osmar Monte Rocha . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94

V. QUESTÕES DO ESTADO E DA CIDADANIAAs violências contra as mulheresThiago Pierobom . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99

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Segurança pública não é caso de polícia!Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 102

VI. EDUCAÇÃOPolíticas educacionais e educação científica no Brasil e na França: considerações preliminares de um projeto em parceriaRenata Cabrera / Faouzia Kalali . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 111Biblioteca Pública Estadual da Paraíba, um retratoTiago Eloy Zaidan . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 120

VII. ENSAIODa revolução à democracia: uma transição incompletaMarcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 125

VIII. AS CIDADES E A GOVERNANÇA DEMOCRÁTICAOs desafios da Governança Democrática municipal George Gurgel de Oliveira . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 137

Sobre “tudo que está aí”Maria Alice Rezende Carvalho . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 143A cidade traídaCleia Schiavo Weyrauch . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 148

IX. BATALHA DAS IDEIASCoxinhas e petralhas: para além de mais um falso dilema da classe média brasileiraMércio Gomes . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153Implicações políticas da tese de doutoramento de Karl MarxGastão Rúbio de Sá Weyne . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 162O combate às desigualdades sociais no capitalismo: segundo Marx e PikettyFernando Alcoforado . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 168

X. MUNDOEspectros do terrorJosé Antonio Segatto . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175O impeachment, a autonomia e o mundoJosé Flávio Sombra Saraiva . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 186Políticas afirmativas e Forças Armadas nos EUASionei Ricardo Leão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 188

XI. RESENHACompreender bem a democracia e a RepúblicaNicolau da Rocha Cavalcanti . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 195A história de três mulheres valentesElio Gaspari . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 198

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Editorial

Esta edição, prezado leitor, chega às suas mãos, após a apro-vação pela Câmara dos Deputados do pedido de impeach-ment da presidente da República, formulado pelos juris-

tas Hélio Bicudo, Miguel Reale Jr. e Janaína Paschoal. Admitido por mais de 70% dos deputados, o delicado pedido entra em fase de julgamento no Senado. A obediência ao rito estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, no final de 2015, é a garantia decisiva da constitucionalidade. Por amargo que seja, o remédio extremo do impedimento da chefe do Executivo foi entregue pelos consti-tuintes de 1987/88 à cidadania para enfrentar os males advindos do mau exercício do poder por parte dos governantes.

Em relação ao outro impedimento, o de 1992, o de agora carrega carga de dramaticidade maior. Collor de Mello, um intruso, tinha atrás de si um partido de ocasião, o Partido de Reconstrução Nacio-nal, e uma invulgar inabilidade para tratar com o Parlamento. Esta invulgar inabilidade também caracteriza a presidente Dilma Rous-seff, cuja proverbial arrogância a fez afastar-se irremediavelmente da “classe política”. Mas, bem ou mal, ela tem atrás de si um partido de esquerda (populista), com implantação na “sociedade organi-zada” e, portanto, com capacidade de mobilizar e de propor, com ajuda de seus intelectuais, a narrativa consolatória de um “golpe das elites” contra o “governo nacional e popular”. Na verdade, trata-se de manter-se no poder, a qualquer preço.

Curioso a considerar é que, ao contrário do que tenta fazer a enganosa propaganda do petismo, 367 representantes do povo – eleitos no mesmo pleito de outubro de 2014 junto com a presidente e o seu vice – contra apenas 137 a favor, 7 abstenções e duas ausên-cias, manifestaram-se favoravelmente pela saída de Dilma e de seu partido do Palácio do Planalto, por terem simultaneamente “quebrado o país” e “mascarado” a situação econômica para garan-tir a reeleição.

Pouco importa que a narrativa do golpe mal se sustente, haja vista não só os fatos capitulados na denúncia aceita pela Câmara

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dos Deputados – as “pedaladas fiscais” e a abertura de créditos sem a anuência do Legislativo em 2015 –, mas também o conjunto da obra do ciclo petista de poder. Estão diante de nós, como moldura indispensável para os argumentos jurídicos, a catástrofe econô-mica e a crise social que afetam brutalmente milhões de famílias com o desemprego, a inflação e o quadro depressivo. Não há quem não tenha parente, amigo ou pessoa próxima vítima destes flage-los, e só isso basta para tirar legitimidade de qualquer pretensão de continuidade do lulopetismo.

Se tal continuidade é difícil, a missão imediata vai além de sustentar e viabilizar o novo governo do PMDB e demais forças da oposição democrática que vai tomando forma. Em outros termos, ainda mais importante é a necessidade de acumular recursos inte-lectuais e argumentativos para corroer a falsa descrição lulopetista sobre os acontecimentos. A obstinação patológica de Dilma na defesa de seu mandato não lhe dá ou dará força para governar, mas fornecerá elementos para vitaminar o discurso vitimista com o qual buscará recobrir o malogro.

Dilma, contudo, é pouca coisa, politicamente falando. Irrele-vante no começo do processo, à irrelevância retornará em seu final. Como dissemos, há um partido de esquerda (populista) forte, na circunstância brasileira, tal como durante todo este ciclo houve, e ainda há, um sujeito nem tão oculto assim: o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a quem alguns gostariam, não se sabe por que diabos, de coroar como uma espécie de imperador informal do Brasil. Pois é este partido e este capo carismático que ora nos ameaçam com o radicalismo de uma oposição social, que, se é péssima para governar, é, no entanto, bem capaz de perturbar enormemente as tentativas de conter e superar o caos em torno de nós, contribuindo bem menos para defender os mais desfavoreci-dos do que para agravar seu indiscutível sofrimento social.

Por tudo isso, urge a constituição de um governo de salvação e unidade, com capacidade técnica, audácia política e apoio congres-sual. Estabilizar a crise política e preparar o caminho da retomada do crescimento são suas tarefas urgentes. E erguer bem alto os valores constitucionais, com o pleno respeito aos ritos e à substân-cia da vida democrática, é sua tarefa permanente, assim como de toda a cidadania. Só ficam de fora os que de caso pensado se deixa-rem aprisionar pelo fanatismo ideológico.

Acreditamos, firmemente, que a democracia haverá de domá-los.

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I. Tema de Capa: Tirar o país

do volume morto

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Autores

Antônio MachadoJornalista . Comentarista econômico e político .

Cristovam BuarqueEngenheiro, doutor em Economia, foi reitor da Universidade de Brasília, governador do Distrito Federal, ministro da Educação, atualmente é senador da República (PPS-DF) .

Hamilton Garcia de LimaCientista político e professor do Lesce (Laboratório de Estudos da Sociedade Civil e do Estado)/Universidade Estadual de Nova Friburgo/RJ .

Luiz Carlos AzedoJornalista . Colunista do Correio Braziliense.

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Crimes de irresponsabilidade com a História

Cristovam Buarque

Há um debate acirrado no Brasil de hoje sobre os crimes de responsabilidade que teriam sido cometidos pela presidente da República, Dilma Rousseff. Mas não se

vê um debate sobre os crimes cometidos pela presidente e seu governo contra o futuro do Brasil: crimes de irresponsabilidade com a História.

O quadro social, econômico e político do país e suas conse-quências no futuro mostram que decisões e omissões governa-mentais comprometeram o futuro do Brasil, como se verdadeiros crimes históricos tivessem sido cometidos.

Desajustes estruturais na economia

Ao longo dos anos, desde 2011, especialmente em 2014, o governo Dilma, apesar de muitos alertas, cometeu crimes históri-cos que comprometem não apenas o dia a dia da sociedade, mas o próprio futuro da economia brasileira, por décadas. Um texto de 2011, publicado pelo Senado Federal, com o título de “A economia está bem, mas não vai bem”, lista problemas que visivelmente ameaçavam a economia brasileira por causa da leviandade ou eleitoralismo oportunista e míope do governo: endividamento das famílias, dívida pública; aumento e composição dos gastos públi-cos; dívida das empresas em moeda nacional e moeda estran-geira; deficiências em infraestrutura; fragilidade de nosso quadro institucional (incluindo os temas burocracia, corrupção e corpo-

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1212 Cristovam Buarque

rativismo); vulnerabilidade no comércio exterior; tamanho e inefi-ciência da nossa carga fiscal; má qualidade da educação básica; incapacidade de inovação e falta de investimento em ciência e tecnologia; baixo nível da poupança pública e privada; persistên-cia da desigualdade e da pobreza; elevado nível de violência; descuido e depredação do meio ambiente; amarras constitucio-nais e euforia ilusória com o quadro econômico, que impedia de enxergar os importantes riscos no médio prazo.

Endividamento

Por causa do aumento dos gastos, a dívida pública cresceu nos últimos anos, passando de R$ 2 trilhões (53,4% do PIB), em 2010, para quase R$ 4 trilhões (66,2% do PIB), em 2015. Esta situação ameaça o futuro do Brasil. Cada brasileiro nasce hoje devendo R$ 20 mil, por causa da dívida pública contraída por seus governos, especialmente o atual. O futuro está amarrado a esta dívida, comprometendo uma percentagem do PIB ao longo de décadas. Por isso, o futuro de cada brasileiro está comprometido com o pagamento da dívida; porque deverá deixar de usar estes recursos como investimento para pagar a conta dos juros.

O governo Dilma/Lula não cometeu apenas o crime de supe-rendividamento público. Políticas sistematicamente utilizadas de incentivo ao consumo levaram a um endividamento crescente das famílias.

No ano de 2010, as famílias brasileiras estavam endividadas em 35% da renda familiar; em 2015, este endividamento era de 44,3% da renda familiar total. Mesmo que, no momento em que foi contraído, o empréstimo significasse uma elevação no consumo, esta situação compromete o bem-estar das famílias no presente e ao longo dos anos. As consequências já estão visíveis: famílias obrigadas a reduzir gastos com saúde, alimentação, educação; e a vender patrimônio a preços deprimidos.

Da mesma forma que o endividamento público compromete as próximas décadas da história do país, o endividamento familiar compromete o futuro das pessoas por longos anos de suas vidas.

Baixa taxa de poupança

Paralelamente ao comprometimento do futuro, em função do endividamento, as políticas de incentivo ao consumo comprome-teram o futuro do país devido ao baixo índice de poupança que leva a um baixo índice de investimento. Embora a baixa poupança

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1313Crimes de irresponsabilidade com a História

da economia brasileira tenha razões históricas, inclusive cultu-rais, pela preferência brasileira com o imediato e o consumo, as decisões governamentais não buscaram reverter esta preferência comprometedora do futuro, e até acirraram a tendência negativa.

Corrupção e aparelhamento do Estado

Em 2010, a Petrobras era a mais importante empresa brasi-leira: o valor de suas ações estava em cerca de U$ 200 bilhões; seu papel estratégico era reconhecido e o prestígio que gozava no imaginário da população dava orgulho aos brasileiros como uma das grandes conquistas de nossa história. Além da esperança que representava, a Petrobras era o vetor de exploração do Pré-sal. Representava também a vitória de nossa população, na luta pelo “Petróleo é Nosso”. Para um país que não faz guerras, a Petrobras era como a conquista de um território estrangeiro.

A Petrobras ruiu, perdeu seu valor que caiu para menos de U$30 bilhões; perdeu sua capacidade estratégica e sua possibili-dade de explorar a riqueza do Pré-sal. De orgulho nacional passou a vergonha que vai perdurar por décadas.

Tudo isto ocorreu devido ao crime histórico do irresponsável aparelhamento da Petrobras e seu uso por uma quadrilha que se apropriou de seus recursos, depredou sua saúde financeira em benefício de enriquecimento pessoal e proveito eleitoral.

Este crime compromete de forma grave o futuro do país. A corrupção é a mais visível face dos crimes do governo Dilma contra o futuro do Brasil, mas não mostra toda dimensão do crime que o petrolão representa para o futuro; desorganizando a máquina do Estado.

A degradação dos Fundos de Pensão é um grave exemplo do crime histórico: centenas de milhares de brasileiros serão sacrifica-dos por causa da administração irresponsável do patrimônio público dos fundos, aparelhados pelos partidos no governo com pessoas despreparadas, ocupando cargos apenas para atender interesses partidários ou mesmo escusos. O resultado é a quebra dos fundos e a cobrança de contribuições adicionais aos segurados para cobrir os déficits criados por incompetência e irresponsabilidade.

Descrença com a política

O descrédito consequente da corrupção trouxe um outro crime contra o futuro do Brasil: a descrença da população em relação à

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política, aos políticos e às instituições democráticas. Por seus atos, o governo Lula/Dilma conseguiu provocar descrença absoluta na credibilidade dos dirigentes nacionais. Esta descrença é ampliada pelo fato de que o Partido dos Trabalhadores oferecia a alternativa de honestidade e da pureza política. Era a esperança. Sua degradação provoca uma descrença com as mesmas proporções da esperança que ele representava. A população não aceita o desmoralizante argu-mento usado pelo PT, de que a corrupção é inerente à política: todos são iguais. Porque o PT se elegeu prometendo ser diferente.

O governo provoca um crime histórico ao cooptar e alienar, desconscientizar os movimentos sociais. A polarização surgida nos últimos meses entre impeachment e não impeachment mostra uma discussão política, mas com retrocesso na consciência polí-tica: é um intenso debate, mas pobre politicamente.

Serão necessárias décadas para retomar uma militância estu-dantil progressista, independente, livre de financiamentos por recur-sos públicos, consciente e motivada pelos propósitos nacionais.

A perda de credibilidade nas políticas é um crime histórico que pode condenar o Brasil por anos e décadas. Não menor é o crime da perda de credibilidade do Brasil no exterior. No século da globalização, a perda de credibilidade entre os investidores internacionais, como o Brasil enfrenta hoje, carrega o elevado risco de barrar a vinda de investimentos produtivos, atraindo apenas capital especulativo de curto prazo, graças a elevadas taxas de juros; afasta o país do circuito financeiro internacional e exige anos, décadas, para recuperar sua credibilidade. Os escândalos de corrupção e as irresponsabilidades na política econômica estão tendo impacto equivalente às declarações de moratória feitas no passado: suspende-se o pagamento imediata-mente da dívida, mas fica-se anos fora do mercado financeiro.

O crime de irresponsabilidade histórica condena o país a déca-das ou mesmo todo um século perdido, este é um crime que o governo Lula/Dilma, especialmente o último, cometeu contra o Brasil.

Os crimes de irresponsabilidade que permitem cassar o mandato da presidente provocam crises de curto prazo na econo-mia do país. Os crimes históricos, embora menos perceptíveis, são nocivos para o futuro do país, provocam decadência civilizatória.

Desprezo ao diálogo e à justiça

Isto se agrava com o insuflamento à violência por estas entida-des, sob o olhar cúmplice do governo. Este comportamento tem a

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1515Crimes de irresponsabilidade com a História

ver com o crime de constante desprezo da presidente ao diálogo e à coalizão.

Ao passar a ideia de que nomeou o ex-presidente Lula com o propósito de protegê-lo da justiça, o governo Dilma cometeu um crime histórico, porque abriu a probabilidade de uso do poder do Executivo como forma de obstruir a justiça.

Ainda mais grave é o fato de fazer uma reforma ministerial com a nítida tarefa de salvar o mandato, e não de fazer o governo funcionar a serviço da população. No momento em que o país atravessa uma gravíssima crise na saúde, o governo comete um crime histórico ao acenar que pode negociar o cargo de Ministro da Saúde conforme o número de deputados que o novo ministro e seu partido possam atrair para barrar seu impeachment e não para barrar a praga do mosquito Aedes Aegypti, o vírus Zika, a gripe H1Nl ou resolver o caos na saúde.

O mesmo vale para outros ministérios. Escolher ministros por negociata política sem preocupação com o desempenho deles, o que vem caracterizando o governo Dilma há anos, é um crime não apenas pelas consequências negativas ao bom funcionamento do governo, como também pelo descrédito que este estilo provoca no grau de confiança da população em seus dirigentes.

Promiscuidade antirrepublicana

Ao misturar Estado, governo e partido, o PT aprisionou a nação, dificultou a visão republicana. Isto foi um crime de irresponsabili-dade histórica visível agora na disputa relacionada ao impeachment. Os interesses da República exigem mudança do governo incompe-tente e sitiado pela corrupção, dentro das normas constitucionais.

Negação das propostas e compromissos

Ao longo dos meses, o governo Dilma foi pródigo de crimes históricos por promessas não cumpridas. O próprio lema de “Pátria Educadora”, a criação e o abandono de programas como o Pronatec, Ciência sem Fronteiras, Fies, Prouni geram duplo crime histórico: pela falta de educação, ciência, tecnologia e inovação que o Brasil precisa para construir o futuro, e pela descrença nas promessas de campanha. Estes fatos comprometem o futuro por décadas ou todo o século adiante.

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O bolchevismo tardio

Luiz Carlos Azedo

Não é normal, por mais grave que seja uma crise política, o presidente da República repetir a todo instante que não vai renunciar ao mandato, como disse Dilma Rousseff no

meeting organizado por seus partidários do mundo jurídico no Palácio do Planalto, no dia 22 de março. Transmitido ao vivo e em cores pela tevê estatal NBR, a solenidade foi um encontro do tipo “nós com nós” para injetar ânimo nos militantes petistas e construir a narrativa de que há um golpe de Estado em marcha no país. Esses comícios vêm se repetindo, cada semana, na sede da Presidência da República.

O advogado-geral da União, ministro José Eduardo Cardozo, deu caráter oficial à agitação política ao invocar a frase famosa da lendária líder comunista Dolores Ibarruri na defesa de Madrid, durante a Guerra Civil Espanhola: “Não passarão!” O que tem a ver a crise tríplice que estamos vivendo no Brasil – ética, política e econômica – com os acontecimentos da Espanha que antecede-ram a II Guerra Mundial? Absolutamente nada, exceto a retórica esquerdista adotada por Dilma e seu ministro para jogar areia nos olhos da opinião pública.

Dilma lançou uma campanha “pela legalidade”, para barrar suposta conspiração golpista liderada pelos partidos de oposição, quando se sabe que as gigantescas manifestações contra o governo passaram ao largo dos partidos. Investiu outra vez contra o juiz Sérgio Moro, de Curitiba, uma autoridade constituída, que acusa de colocar em risco a segurança nacional. E disse que o processo de impeachment em curso na Câmara é um golpe de Estado, embora siga rigorosamente o rito determinado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) para garantir sua constitucionalidade.

Foi-se a época em que o presidente da República era o primeiro a dizer que decisão da Justiça não se discute. O Diário Oficial da União circulou, na edição de 22 de março, com o nome do ex-pre-sidente Luiz Inácio Lula da Silva no expediente como ministro-chefe da Casa Civil, cargo ao qual foi impedido de tomar posse, por decisão do ministro Gilmar Mendes, que só pode ser revogada pelo plenário da Corte. Duas tentativas de reverter a decisão

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1717O bolchevismo tardio

foram negadas pelos ministros Luiz Fux e Rosa Weber. Toda essa confusão já seria suficiente para uma autocrítica: cada dia fica mais evidente que a nomeação de Lula para a Casa Civil foi um erro crasso. Levou a Operação Lava-Jato para a antessala de Dilma Rousseff.

Aliás, o que não falta na trajetória de Dilma são erros crassos, na economia e na política. Mas parece que a presidente da Repú-blica se considera infalível. Quando algo dá errado, a culpa é dos outros. Se não aprende com os próprios erros, menos ainda com os que foram cometidos coletivamente pela esquerda ao longo da história. No ato de ontem, Dilma fez referência à “campanha da legalidade”, liderada pelo então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, para garantir a posse de Jango, após a renúncia de Jânio Quadros, em agosto de 1961. A mobilização resultou num grande acordo político: a adoção do parlamentarismo.

O gabinete liderado por Tancredo Neves, porém, não durou muito. O nome de San Thiago Dantas nem sequer foi aprovado pelo Congresso. Ambos foram acusados de conciliação com o imperialismo. A esquerda nunca engoliu o acordo e fez campanha pela volta do presidencialismo, que acabou aprovado num plebis-cito, em 1963. Na equivocada avaliação da esquerda, estava na hora de aprovar as reformas de base, na “lei ou na marra”. Não havia, porém, correlação de forças para isso. A classe média se mobilizou contra o governo, os conservadores açularam os milita-res e os Estados Unidos, em plena guerra fria, apoiaram a desti-tuição de João Goulart.

Os petistas evocam os fantasmas do golpe de 31 de março de 1964 para construir a sua narrativa. Essa comparação não faz o menor sentido. A começar pela situação internacional, que mudou da água para o vinho, haja vista a visita de Barack Obama a Cuba, encerrada com um discurso do presidente dos Estados Unidos no Gran Teatro de Havana, que foi transmitido ao vivo pela tevê oficial para todos os cubanos. Cadê a conspiração imperialista?

Do ponto de vista interno, também não se pode falar em golpe de Estado. Os militares não se meteram na confusão. O poder moderador é o Supremo Tribunal Federal (STF), como manda a Constituição, inclusive em relação às decisões do juiz Sergio Moro que foi enquadrado pelo ministro Teori Zavascki, relator da Opera-ção Lava-Jato no STF, ao requisitar para si o caso de Lula e exigir explicações sobre a divulgação das interceptações telefônicas.

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1818 Luiz Carlos Azedo

Ademais, o governo estava mancomunado com os grandes grupos econômicos nos mandatos de Lula e Dilma. E jamais a esquerda defendeu a concentração de capital e a formação de monopólios como o PT no poder, com sua política de “campeões nacionais”. No caso das empreiteiras, o pacto era tão perverso que resultou no escândalo da Petrobras e suas ramificações, como as reveladas pela contabilidade da propina distribuída pela Odebrecht, que anunciou que seus executivos vão colaborar com as investiga-ções da Operação Lava-Jato, inclusive Marcelo Odebrecht.

A origem

A matriz ideológica da esquerda brasileira é uma mistura de anarquismo, marxismo e positivismo. Leandro Konder, no livro A derrota da dialética, explica que a chegada das ideias de Marx ao Brasil se deu logo após a Comuna de Paris de 1871. Contra elas reagiram as elites políticas escravocratas do Império, mas muitos estudantes receberam essas ideias com entusiasmo. Os princi-pais intelectuais do país, porém, não se empolgaram com elas.

Tobias Barreto considerava Marx um reformista ingênuo. Clóvis Bevilacqua via a desigualdade como o resultado do progresso. O grande ideólogo da proclamação da República seria Benjamin Constant, líder positivista ortodoxo, que lecionava na Escola Mili-tar da Praia Vermelha. Somente em 1900, 11 anos depois, o profes-sor italiano Antônio Piccariolo (1868-1957) criou o centro socialista paulistano. Era formado por anarco-sindicalistas, sindicalistas-re-volucionários, reformistas e socialdemocratas.

Como hoje, o socialismo era algo distante da realidade brasi-leira. Após a Revolução Russa de 1917, no rastro da I Guerra Mundial, as ideias socialistas voltaram a ter eco no Brasil, sob forte influência do Partido Bolchevique, liderado por Vladimir Lênin. Pouco depois, em 1922, sindicalistas de origem anarquista, liderados pelo jornalista Astrojildo Pereira (RJ) e o contador Cris-tiano Cordeiro (PE), fundaram o Partido Comunista do Brasil (PCB). Alguns anos depois, Astrojildo converteu ao comunismo o líder tenentista Luiz Carlos Prestes.

A adesão de Prestes completou a simbiose entre as ideias anar-quistas, marxistas e positivistas, que depois influenciou o compor-tamento de toda a esquerda brasileira. Houve uma espécie de fusão da visão bolchevique, cuja política considerava a luta de classes como parte de uma guerra civil mundial, com o golpismo

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1919O bolchevismo tardio

dos militares brasileiros de formação positivista. Seu ponto alto foi a tentativa dos comunistas de tomada do poder pelas armas em 1935. Como os militares tutelaram a República de 1889 a 1985 – com destaque para a Revolução de 1930 e o golpe militar de 1964 –, a concepção de “revolução social pelo alto” adotada por comunistas e militares nacionalistas era a outra face da moeda de uma concepção de modernização do país por uma “via prussiana”. Durante 100 anos da história republicana, o golpismo provocou graves crises políticas.

O melhor cenário para examinar essa questão é a crise do governo João Goulart (PTB), em 1964, depois de uma sucessão de tentativas de golpe de Estado por parte da direita militar e dos seto-res conservadores. O programa de reformas do governo defendia a nacionalização das empresas estrangeiras e a reforma agrária, mas não reunia apoio efetivo no Congresso. A esquerda, porém, queria que Jango fizesse as reformas “na lei ou na marra”. Além disso, havia o problema da sucessão de Jango, na qual os candidatos mais fortes eram o ex-presidente Juscelino Kubitscheck (PSD) e o então governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda (UDN).

A esquerda nacionalista atacava a “política de conciliação” de Jango e defendia a candidatura do ex-governador gaúcho Leonel Brizola (PTB). O líder comunista Luiz Carlos Prestes, porém, já articulava a reeleição de Jango. Pela Constituição, nenhum dos dois poderia ser candidato. Como o mundo vivia o auge da guerra fria, a radicalização política no Brasil era quase inexorável, com os Estados Unidos incentivando a tomada de poder pelos milita-res. Foi nesse contexto que houve o golpe de 1964.

A destituição de Jango provocou um racha na esquerda, porque não houve resistência armada ao golpe, por decisão de Jango e de Prestes. Liderada por Carlos Marighella, parcela expressiva resolveu partir para a luta armada, com apoio de Cuba e da China. Prestes e o PCB, com apoio da antiga União Soviética, defendiam uma frente ampla contra o regime militar e a luta pela redemocratização do país por meios pacíficos.

De modo geral, o “bolchevismo” adotava três ideias-força: a implantação do socialismo a partir do Estado, a inevitabilidade da “guerra civil” para a manutenção do poder e a necessidade de neutralizar a reação das potências imperialistas. Essa visão pautou o comportamento da esquerda no Brasil, principalmente dos setores que optaram pela luta armada contra o regime mili-tar, alguns dos quais nunca fizeram autocrítica do seu fracasso.

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2020 Luiz Carlos Azedo

A presidente Dilma Rousseff e o presidente do PT, Rui Falcão, são remanescentes da guerrilha urbana. A ideia de renúncia ao poder não passa por suas cabeças. Diante da crise econômica, política e ética, a postura da esquerda governista cada vez mais reflete uma espécie de “bolchevismo tardio”. Aposta no Estado para controlar o país, sua economia e a sociedade. Usa de todos os meios para se manter no governo e considera um retrocesso a alternância de poder. Adota a retórica nacionalista para tratar os adversários como inimigos do povo e traidores da pátria. Vê o crescimento da oposição como suposta conspiração golpista arti-culada pelos Estados Unidos. Viola as regras do Estado democrá-tico de Direito, ao mesmo tempo que pretende usufruir de suas prerrogativas e garantias.

A cortina da crise

Num antológico ensaio sobre o romance, o escritor tcheco Milan Kundera enaltece a importância da obra de Cervantes para toda a literatura contemporânea: “Uma cortina mágica, tecida de lendas, estava suspensa diante do mundo. Cervantes mandou Dom Quixote viajar e rasgou essa cortina. O mundo se abriu diante do cavaleiro errante em toda nudez cômica de sua prosa”. É a invenção do romance, a “marca de identidade” de uma arte.

A Operação Lava-Jato se desenrola como um grande romance, pois rasga a cortina de um mundo político maquiado, mascarado e pré-interpretado. Entretanto, nada pode contra a cegueira mani-queísta, causada por um conjunto de ideias que se tornaram anacrônicas após a queda do Muro de Berlim, a dissolução da União Soviética e o fim da guerra fria. Postas em prática, essas ideias levam a economia à bancarrota e bloqueiam a renovação política, além de resultar numa crise ética sem precedentes.

A cortina da política brasileira pode ser bem traduzida pelas palavras do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso, numa conversa informal com estudantes de pós-graduação em economia, gravadas sem que ele soubesse pelo sistema de tevê da Corte: “Quando, anteontem, o jornal exibia que o PMDB desembarcou do governo e mostrava as pessoas que erguiam as mãos, eu olhei e pensei, meu Deus do céu, essa é a nossa alternativa de poder! Eu não vou fulanizar, mas quem viu a foto sabe do que estou falando”.

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2121O bolchevismo tardio

“O problema da política neste momento, eu diria, é a falta de alternativa. Não tem para onde correr. Isso é um desastre. Numa sociedade democrática, a política é um gênero de primeira neces-sidade. A política morreu. Talvez eu tenha exagerado, mas ela está gravemente enferma. É preciso mudar”, disparou o ministro. Como rasgar esta cortina? Essa é a questão que está posta. Gostem ou não os políticos, para a sociedade, quem está rasgando a cortina é a Operação Lava-Jato.

Na raiz do impasse nacional, há duas concepções que tecem a crise tríplice: de um lado, a ideia de que o Estado é o tutor e provedor da sociedade; de outro, a de que os fins justificam os meios, ainda mais se os objetivos são, digamos, (pseudo)revolu-cionários. O fracasso do governo Dilma pode ser atribuído a esses dois aspectos, basta fazer uma retrospectiva dos erros cometidos na condução da economia e agora mesmo, no fragor da batalha, das ações em curso para reorganizar a base do governo contra o impeachment.

A presidente mobiliza correligionários e aliados, montou um palanque no Palácio do Planalto para atacar a Operação Lava-Jato e defender seu mandato. Recorre ao passado e compara a situação atual às crises que levaram o presidente Getúlio Vargas ao suicídio, em 1954, e os militares ao golpe de Estado que desti-tuiu João Goulart, em 1964. Mascara, porém, a realidade e tenta fechar a cortina de seu mundo maquiado e pré-interpretado. Será mesmo essa a alternativa que nos resta?

Fala-se muito em defesa do Estado democrático e das garan-tias e direitos individuais, embora os militares (protagonistas das rupturas de 1889, 1930 e 1964) estejam quietos no seu canto. A economia está se desmanchando. A democracia brasileira foi bloqueada. Um pacto perverso garroteou suas instituições. Quem pode impedir que a cortina seja remendada pelo Executivo? O Congresso Nacional, se também purgar seus pecados e cortar na própria carne; ou o Supremo Tribunal Federal, se levar adiante a Operação Lava-Jato e iluminar o palco da renovação política.

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Destruição criativa

Antonio Machado

As multidões de decepcionados com a condução do país pelo PT e aos petistas ressentidos com a ação conjunta do Judi-ciário e da polícia sobre o partido e seus líderes, em espe-

cial o ex-presidente Lula, é lícito esperar que o progresso do Brasil seja o denominador comum.

Talvez seja mais fácil um diálogo civilizado quando as partes veem pontos de encontro entre seus anseios, juízos e reclama-ções. Embora soe como platitude dizer que ninguém é contra o Brasil, às vezes se faz necessário buscar convergências para enfrentar o mal-estar.

O brasileiro está abespinhado e apreensivo com “tudo isso que está ai”, como demonstram as enquetes de opinião e os índices econômicos e sociais certificam. Esse sentimento da sociedade é insofismável e é a partir dele que o governo de Dilma Rousseff e o PT, que se veem injuriados com a perda de popularidade e o colapso da confiança em suas ações, devem refletir sobre o que se passa e o que fazer.

Não os aproximam da sociedade que, em peso, repudia o governo, como estampam as pesquisas, ignorar as responsabili-dades pela recessão, pela inflação renitente e pela volta do desem-prego – que de FHC não são mais, após 13 anos e três meses de seu mandato –, nem resultam do noticiário negativo, baseado em fatos oficiais, não em ficção.

Também ajuda à dinâmica de grupo sobre a situação deprê do país, e não só da economia, apartar a baciada de maus resultados do governo Dilma dos dissabores de Lula. Ambos são do PT, sob investigação dos dois elos da Operação Lava-Jato: de Curitiba, agrupado em torno do juiz Sérgio Moro, e do Supremo Tribunal Federal, reunido ao redor do ministro Teori Zavascki, relator do caso, com o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, na condição de promotor das denúncias.

A afiliação comum os une, mas Dilma, por ora, desceu ao inferno só pela sua inépcia e ruína da economia. Lula encara outros demônios, que também assombram os palácios, mas leva-

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2323Destruição criativa

dos pela sua pressão para safar-se do sufoco. Como? Sem brilho próprio, ela cedeu, ao afastar Aloizio Mercadante, da Casa Civil, e José Eduardo Cardozo, da pasta da Justiça, deslocando-os para outros postos. Enfim, chamou Lula para ocupar o ministério que quiser. Na prática, está abdicando de sua autoridade, temendo o impeachment e a derrocada total do governo.

Fato, versão e intenção

Certamente, ameaças e palavrões, tal como Lula reagiu à condução coercitiva para depor aos procuradores e delegados federais, não ajudam a aclarar as dúvidas da Justiça sobre sua responsabilidade no esquema apurado pela Lava-Jato. O fato é que ex-presidentes não têm foro privilegiado nem são inimputá-veis. É duvidoso também que a tática de desqualificar o juiz Sérgio Moro melhore a sua situação.

É legítimo que Lula se sinta ofendido e suspeite de armações para inviabilizá-lo politicamente. No caso da denúncia mal ajam-brada dos procuradores da Justiça de São Paulo contra ele, ficou difícil não supor tal intenção à véspera dos protestos contra Dilma e o PT.

Já o processo da Lava-Jato se ampara em delações que estão gerando provas consistentes sobre o desvio sistemático de recur-sos públicos sob a forma, sobretudo, de contratos superfaturados, com repasse de parte do butim a partidos e pessoas. Isso é fato, não insinuação.

Até agora, salvo informações desconhecidas, não apareceu o chamado “batom na cueca” contra Lula e Dilma, a prova indiscu-tível. A linha de atuação de Moro, Teori e o STF sugere que não pretendem valer-se da teoria do “domínio do fato”, usada em várias condenações no caso do mensalão. Significa que o processo será à base do tudo ou nada.

Exímio orador, Lula apelou ao confronto para inflamar sua base de apoio. Arrisca-se a reunir não muito mais que militantes de crachá, se a sua defesa não for convincente, caso venha a ser acusado, aos brasileiros indignados com o vulto do ataque à Petrobras, além de impor um sério abalo nas correntes de esquerda do país. E ainda há a resolver a espantosa inaptidão de Dilma para governar – tão ruim, que muitos torcem pela Lava-Jato achar razões para impugná-la.

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2424 Antonio Machado

A situação chegou a um ponto de não retorno para o governo – hoje sem base parlamentar –, e também para Lula, questionado por setores do PT que só esperam a poeira assentar para contes-tar os líderes do partido. Discute-se uma frente de esquerda, nos moldes do Podemos – partido criado em 2014, na Espanha, e sensação nas últimas eleições, tal como o Cidadãos, de 2006, de centro-direita progressista.

O caminho de rupturas da política tradicional tende a avançar como sequela da razia da Lava-Jato entre os partidos no Congresso. Senso comum é que novos líderes vão emergir até 2018, especialmente junto a grupos hoje sem atividade parlamen-tar. Tal movimento será mais ou menos arrebatador conforme a eficácia da transição que se avista.

A recuperação da economia não será indolor, ao envolver cortes de subsídios com dinheiro público e mudança de prioridades. Não é nada muito diferente do plano de emergência proposto pelo lado pensante do PMDB. Não precisa ter um viés extremo de austeri-dade, já que há economias a recuperar revisando políticas mal desenhadas e com escasso controle social, como alerta o plano.

O ponto de partida é definir com precisão a população neces-sitada de ajuda, grosso modo balizada pelo programa do PMDB, com sugestões de muita gente, como os 40% mais pobres da socie-dade, 80 milhões de pessoas. Elas carecem de assistência e meios para terem autonomia.

Essa linha de corte orienta a reforma fiscal necessária, sem ter o aumento de impostos como eixo central (erro desde 1994), seguida de um acordo de que só o investimento promove cresci-mento sustentado. Função, vale dizer, do bom equilíbrio entre lucros e salários.

O Livro Sagrado

Algumas questões comezinhas têm escapado aos contendores em torno do que já apresenta risco real de descambar em anar-quia. A primeira questão é um dos pilares constitucionais: a sobe-rania do Judiciário e do Legislativo, instituições às quais se subordina o Executivo, e não o contrário, como sugerem os críti-cos da Operação Lava-Jato.

Presidente nenhum tem o poder delegado de fazer o que quiser, como ilustra a elaboração do orçamento anual de receita e

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despesa, cujos valores agregados e os de cada rubrica são propos-tos, não impostos, ao Congresso, que pode ou não aceitá-los. É a única lei renovada a cada ano, e nem sua aprovação exime o presidente de prestar contas bimestralmente do que fez com os dinheiros à Câmara e ao Senado – e ao Tribunal de Contas da União (TCU), órgão auxiliar do Congresso.

O mandato cominado pelo voto ao presidente, portanto, não é pleno, seus poderes são regrados pela Constituição. Ela é que consagra a independência e a harmonia entre as três instâncias da República – o Executivo, o Congresso e o Judiciário, todos com total autonomia financeira, observados os limites da Lei Orça-mentária Anual (LOA).

Se algo referente ao mandato atribuído ao presidente configurar um conflito de prerrogativas, recorre-se ao Supremo Tribunal Fede-ral (STF), a instância encarregada de aclarar questões controversas e zelar para que todos cumpram a Constituição. Os ministros do STF são indicados pelo presidente da República ao Senado, que pode ou não aprová-los. A partir daí, tais juízes são indemissíveis, embora, tal qual o chefe do governo, sujeitos a processos de impeachment.

O que a Constituição determina, contudo, não é o que a socie-dade intui, já que prevalece a falsa ideia de que o presidente pode tudo – e, quando se atém democraticamente ao que lhe é permi-tido fazer, é visto como fraco e sem liderança. Não vamos tratar da causa dessa crença, de resto comum na América Latina, mas é certo que as partes no Brasil, a Presidência e o Congresso, alimen-tam esses equívocos.

O modo de operar do governo e do Parlamento está na raiz tanto da corrupção sistêmica, que hoje atingiu níveis epidêmicos, quanto da perigosa linha de defesa adotada pela presidente Dilma Rousseff, ao atribuir intenção golpista aos processos contra o seu mandato.

Boca dura não funciona

Ao reunir advogados, militantes e simpatizantes do PT e do PCdoB, no Palácio do Planalto, para o que teve a alegoria dos comícios, de claque a palavras de ordem, Dilma cometeu diversas impropriedades. A promoção de evento partidário na sede do governo foi uma delas.

Mais sério, no entanto, foi, mais uma vez, ignorar os funda-mentos do pedido de impeachment, ao afirmar não ter cometido

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nenhum crime de responsabilidade, embora todo o rito orçamen-tário, assim como sua execução, incluindo as relações do Tesouro Nacional com os bancos estatais, seja a pedra fundamental da democracia representativa.

Não foi só. Depois de ouvir discursos contra o juiz da Lava-Jato, o Ministério Público, a Polícia Federal, inclusive de um procurador (noutra irregularidade), Dilma declarou que o ato era pelo Estado democrático de Direito e encerrou dizendo que não vai ter golpe.

Não é com golpe que Dilma e Lula, investigado pela Lava-Jato e, mesmo assim, nomeado chefe da Casa Civil (e ainda sem assu-mir o cargo), se o STF entender que tal ato não configura obstru-ção da Justiça, deveriam preocupar-se. Mas com as consequên-cias do ambiente deletério em formação no país por questionarem ações previstas na Constituição e com amplo direito de defesa. Não se acende fósforo com material inflamável ao redor.

A verdade é que a eleição de presidentes sem maioria parla-mentar (caso do PT e anexos, que nunca tiveram mais que 20% dos deputados) e que governam agregando partidos amorfos, atraídos por cargos que lhes facilitem desvios como os flagrados na Petrobras, é a raiz mais profunda da corrupção que corroeu a alma do Estado. Aliás, não é nada que o PT ignorasse, já que Lula se elegeu em 2002 prometendo moralizar a política. É disso que se trata – ainda. Onde há golpe?

Entre as tantas decepções, sobretudo a incapacidade de o governo tirar a economia da recessão, e lá se vão 15 meses da reeleição (e antes ainda, evitar no primeiro mandato o experimen-talismo que nos legou essa ruína), provoca pesar assistir a profes-sores acadêmicos investindo contra a Lava-Jato. Apesar de exces-sos, como a condução coercitiva de Lula, nada mitiga o alcance dos crimes já apurados.

Ninguém nega a enorme corrupção da antiga diretoria da Petrobras, por exemplo. Ela aconteceu. Está provada. A derrocada da estatal é insofismável. Seu prejuízo em 2015, o segundo em dois anos, atingiu chocantes R$ 34,8 bilhões. Contra a debacle da economia, o ministro da Fazenda, Nelson Barbosa, acatando a vontade de Lula, quer reeditar o buraco de 2015, ao propor outro déficit fiscal, equivalente a 1,55% do PIB. E não vai funcionar: a economia não carece de demanda, mas de medidas para reerguer o investimento produtivo sem a ajuda de muletas. No fim, pensando bem, o golpe que Dilma tanto teme já houve: foi dado por ela mesma na economia, e estamos pagando caro por isso.

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Especulações em torno do dia seguinte

Hamilton Garcia de Lima

Alguns analistas da cena política têm aventado a hipótese de que o dia seguinte à votação do impedimento de Dilma Rousseff será de um grande alívio para a crise em curso:

se aprovado, os aloprados seriam postos de lado e um presidente equilibrado assumiria o leme, com o PT alquebrado, levando a uma reversão das más expectativas econômicas; de outro, se rejei-tado, à oposição restaria apenas apostar no processo de cassação da chapa “Com a força do povo”, no TSE, como se isso atenuasse a pressão social contra o lulopetismo ou abrisse alguma janela para a normalização econômica.

Na verdade, a hipótese mais provável é de um aumento da tensão em curto e médio prazos: da tensão política, no caso do impedimento; da tensão social e econômica, no caso do conti-nuísmo. Explico melhor.

Aprovado o impedimento, o PT teria dois caminhos a seguir: tentar se reconstruir em torno de lideranças mais sensatas e responsáveis, ou enveredar pela política de resgate de seu legado originário, que hoje teria mais ares de anacronismo do que de radicalismo democrático-pluralista, como outrora.

A julgar pela trajetória do PT até aqui, a segunda via é a mais provável, não só por se nutrir da nostalgia de um Lula com ampla credibilidade, mas porque o PT já não é mais o mesmo e a militância que hoje vai às ruas defender seus dirigentes enca-lacrados exala o cheiro de naftalina dos velhos métodos de manipulação do stalinismo, com seus cacoetes fanático-ines-crupulosos; exatamente o oposto daquilo outrora representado pela miríade de grupos alternativos enfeixados no PT dos anos 1980, que empolgou a sociedade exatamente por combater o autoritarismo, a mentira sistemática e o conformismo insosso da política moderada.

Ademais, o tempo fez do PT um partido parlamentar pragmá-tico e, dos movimentos sociais tradicionais, um mero apêndice de partidos que há décadas os controlam, o que implica perda de radicalidade original, cuja fonte era a proximidade verdadeira com as bases sociais. A doença senil da esquerda envolveu a

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doença infantil, que hoje serve apenas de chamariz para os neófi-tos, além de eterno combustível dos sectários, comprometendo a promessa do elixir da utopia, que hoje estufa as velas do volunta-rismo romântico das seitas anencéfalas que se fizeram sentir na vazante das jornadas de junho de 2013.

A possibilidade de uma repentina tomada autocrítica de cons-ciência dos petistas fica prejudicada também pelo modo como seus setores não degenerados se comportaram diante da orgia que tomou conta da legenda, preferindo sempre compactuar com a cleptocracia dirigente ao invés de sustentar a divergência com vistas ao inevitável desenlace, que agora se vislumbra. Deste modo, não apenas se limitou o alcance e credibilidade das justas críticas ao desvio de rota partidário, como se deixou aberta a porta para a saída de quadros e seguidores que poderiam susten-tar esta luta no plano interno das convenções.

Isto tudo pode significar o lento e seguro isolamento político-social do PT em longo prazo, e mesmo assim na dependência do êxito dos governos que virão. Em curto e médio prazos, todavia, a cleptocracia petista ainda pode contar com uma reserva de apoio entre jovens, intelectuais e sindicalistas, capaz de lançar labare-das na direção de uma sociedade frustrada, em meio a uma crise econômica grave e, até aqui, sem lideranças alternativas capazes de mostrar novos caminhos para a recuperação do país.

No caso da impugnação do impedimento, naturalmente os partidos de oposição refarão seus cálculos na direção do TSE. Porém, é sabido que a influência desses partidos sobre o movi-mento social de rua é tênue, seja pela desconfiança do público nas lideranças tradicionais, seja porque as lideranças alternati-vas (PPS e Rede) ainda não se mostraram à altura deste desafio.

Assim, a direita radicalizada, pioneira no enfrentamento ao lulopetismo, poderia ocupar o vácuo, no contexto da grande frutração que se seguiria, quer empurrando alguns segmentos para a violência aberta nas ruas, quer alimentando grupos ilegais no intuito de desestabilizar a ordem pública e provocar uma inter-venção militar. Do outro lado do ringue, encontrariam seus antí-podas dispostos a colaborar, estúpida e involuntariamente, quer nas milícias sindicais petistas e no, ainda ausente, “exército do Stedile”, quer na juventude carbonária a postos desde 2013 – tendo, inclusive, já produzido um cadáver, em 2014, sem que a Justiça os tenha efetivamente punido e sem que perdessem o status de “ativistas sociais”.

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2929Especulações em torno do dia seguinte

Tudo isso pode não se realizar. Mas, em meio ao ambiente tóxico criado pelo lulopetismo, desde a desastrosa campanha de 2014, não se pode deixar de considerar a hipótese do agravamento político. Mesmo que se possa debitá-lo na conta daqueles que entendam a corrupção como um instrumento legítimo da ativi-dade política e justifiquem sua torpeza com base no equivocado princípio de tirar vantagem do atraso, supostamente para produ-zir progresso, seus efeitos serão para todos.

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II. Observatório

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Autores

Alberto AggioHistoriador e professor da Unesp, presidente do Conselho Curador da FAP .

Arlindo Fernandes de OliveiraAdvogado, consultor legislativo do Núcleo de Direito do Senado Federal .

Gabriel Burnatelli de AntonioDoutor em Ciência Política pela UFSCar e pesquisador do Laboratório de Política e Governo da Unesp .

Nelson Rojas de CarvalhoProfessor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro e pesquisador do Observatório das Metrópoles/Ippur/UFRJ .

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A fraqueza de um homem só

Gabriel Burnatelli de Antonio

A riqueza da democracia não se encontra, a priori, no êxito de seus resultados econômicos, políticos e sociais, sobretudo porque os indivíduos democráticos reconhecem que quais-

quer decisões tomadas sem o escrutínio do maior número possível de partes interessadas e/ou implicadas nas consequências de uma escolha redundará, inexoravelmente, em ineficácia, mesmo que, a longo prazo, e, acima de tudo, em injustiça, pois minorias restarão alijadas do exercício ativo da cidadania e, como corolário, serão as primeiras a experimentar o passivo de decisões mal elocubradas.

Se somos seres políticos (zoon politikon) e, acima de tudo, demo-cratas, reconhecemos que a razão e a justiça, nos assuntos huma-nos, não são um apanágio dos heróis ou de homens e mulheres dotados de excepcional clarividência; não resultam da mera inspira-ção ou do improviso de líderes que desfrutam de profunda aclama-ção popular; não surgem naturalmente pela punição dos corrompi-dos; não florescem no vácuo institucional; e, por fim, não dependem de circunstâncias excepcionais, como a crise, para que emerjam.

A democracia é um regime político desejável porque, acima de tudo, pressupõe 1) a reavaliação permanente das instituições, seja para aperfeiçoá-las, quando funcionam bem, seja para refor-má-las, quando soçobram; 2) a crítica e a autocrítica da socie-dade; 3) a existência de freios e contrapesos que salvaguardam o exercício das liberdades públicas e privadas; 4) a instituição de procedimentos que limitam o fluxo das paixões e obrigam os cida-

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dãos participantes ao exercício da política, ou seja, da negociação e, acima de tudo, do respeito à liturgia da lei.

Todavia, para que o regime democrático engrene suas peças e produza movimento, é preciso que o leito socializador dos indivíduos seja consentâneo às exigências e expectativas da vida democrática. Em outros termos, é preciso que a democracia seja ensinada, exem-plificada e transubstanciada em valor cultural, algo que indubitavel-mente não é fácil, mormente se considerarmos que, passados quase 28 anos do retorno à democracia no Brasil, continuamos majorita-riamente presos ao facciosismo ideológico, ao moralismo que clama por justiçamento, à busca de heróis e interventores (sobretudo juízes) que se obriguem às tarefas que somos incapazes de realizar coleti-vamente, à intolerância e, por conseguinte, à incapacidade de cons-truir pontes e coalizões que suportem alguma unidade na diferença e, acima de tudo, na divergência.

O aziago fla-flu entre PT e PSDB, sobejamente alimentado, nas últimas décadas, pelos próceres de ambos os partidos, mas, urge salientar, especialmente mobilizado por Lula, com sua retórica verborrágica que costumeiramente inicia-se com um “nunca antes na história desse país”, criou uma espécie de jactância ideo-lógica da esquerda petista, cuja soberba sequer foi capaz de tran-sigir com diversas outras tendências internas ao partido, que foram sendo paulatinamente expulsas ou tangidas para a margem e esquecidas pelo conjunto mais amplo da militância e, obvia-mente, pelos quadros dirigentes do partido que comanda o governo federal há mais de uma década.

Se um partido é incapaz de construir unidade internamente de forma democrática – por meio da divergência, mas visando à construção do consenso –, como pode alçar-se à condição de diri-gente nacional, ainda mais quando, por força do voluntarismo de um homem só, lança à presidência da República uma pessoa completamente destituída de aptidão para a política? Ao conse-guir eleger Dilma como presidente, Lula consumou o fla-flu, desfazendo, por completo, os elos que o ligavam, de maneira mais orgânica, ao partido e à sociedade.

Lula comportou-se como um desorganizador da cultura, cevando polarizações que foram se açodando ao longo dos últimos anos, culminando na bipolarização mentecapta que, de um lado, acolhe aqueles que rotulam genericamente de “coxinhas” todos os que desaprovam os procedimentos nada republicanos do PT no poder, e, de outro, abre flancos para uma direita fascista que,

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como um vírus, aproveita-se do momento de fragilidade institu-cional e de aguda radicalização política para açular os ânimos dos descontentes e conclamá-los à ruptura da democracia.

Em Os intelectuais e a organização da cultura, Gramsci adverte:

O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloquência, motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente”, já que não apenas orador puro – e superior, todavia, ao espírito mate-mático abstrato; da técnica-trabalho, eleva-se à técnica-ciência e à concepção humanista histórica, sem a qual se permanece “especialista” e não se chega a “dirigente” (especialista mais político). (GRAMSCI, 1982, p. 8).

O intelectual moderno, para Gramsci, é capaz de articular o conhecimento especializado com o senso comum, construindo, organizando e persuadindo aqueles que, inseridos na trama das questões práticas da vida, ele pretende dirigir. Se, por um lado, o intelectual-dirigente “dribla” as armadilhas da oratória (“motor exterior e momentâneo dos afetos e das paixões”), por outro, ele dispõe de predicados que o levam a superar o caráter abstrato da técnica, inserindo-a numa “concepção humanista histórica”, dotada, portanto, de sensibilidade política e orientada à realiza-ção de uma teleologia emancipatória.

Lula poderia ter consagrado a aliança entre política, técnica e cultura, não só pelo que representa (um nordestino, oriundo do “Brasil esquecido”, que se tornou moderno, a princípio, pela via operária, e, posteriormente, pela política, alcançando, por meio da última, a presidência da República), mas pelo que efetivamente ele teve a oportunidade de fazer, e não fez: reconhecer aberta-mente os ganhos constitucionais e políticos do país nas décadas que precederam o seu mandato presidencial, aproximando os setores socialmente emergentes das camadas sociais mais moder-nas e empoderadas, entre as quais, inclusive, diversos setores sociais ligados à oposição, como o PSDB.

Ao afastar uma parcela politicamente significativa do Brasil moderno – constituída majoritariamente por frações mais favore-cidas da classe média – do discurso e da performance propagan-dista do PT, Lula isolou ainda mais aquela que por intermédio dele foi eleita, e cuja habilidade para a concertação e o diálogo é reconhecidamente desastrosa. Dilma, de perfil estritamente técnico, imbuída de convicções pessoais bastante empedernidas,

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e Lula, eminentemente político, dotado de uma oratória bastante peculiar, que por vezes beira à bufonaria e ao escracho, represen-tam justamente a cisão daquilo que é fundamental para a forma-ção de um bom dirigente.

Não há arcabouço institucional, por mais avançado que seja, capaz de resistir ao desleixo dos dirigentes para com a política. A exemplaridade, o respeito à coisa pública, o diálogo aberto e democrático com toda a sociedade são fundamentais para o exer-cício da política e, ao mesmo tempo, para o aperfeiçoamento da cultura democrática, sobretudo num país cujas tradições políti-cas são marcadamente autoritárias.

Em “Como tirar proveito de seus inimigos”, Plutarco observa que um homem estará mais distante de invejar a sorte de seus amigos, ou o sucesso de seus parentes, se ele adquirir o hábito de elogiar seus inimigos, não sentindo nenhum resquício de ressen-timento quando estes prosperarem. Com isto, grosso modo, Plutarco quis dizer que quanto mais somos capazes de lidar civi-lizadamente com quem nos defrontamos, mais somos capazes de governar a nós mesmos: aquele que se deixa consumir pela inveja é, antes de tudo, incapaz de aceitar que o outro possa ser aquilo que ele mesmo não é. Talvez, salvo engano, isto sirva de lição a Lula e ao PT: à medida que a jactância e a soberba foram se impondo ao PT governista, mais frágil ele se apresentou diante daqueles com os quais escolheu rivalizar, ao passo que menos dúctil ele se tornou perante os que dele ainda esperavam algum resquício de grandeza e generosidade.

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Brasil caminha na contramão do Continente

Nelson Rojas de Carvalho

Como sabem politólogos e constitucionalistas, ao contrário da dinâmica dos sistemas parlamentares, nos quais os governos se fazem e refazem ao sabor do alinhamento das

forças legislativas do dia, no presidencialismo confere-se ao chefe do Executivo a certeza de mandato fixo; mandato forte, suavi-zado pelo mecanismo do controle mútuo entre os poderes. Muito embora os chefes de governo em nosso Continente gozem desta certeza constitucional, a dinâmica política na América do Sul, com frequência, tem tornado letra morta o que consiste em cláu-sula central dos regimes presidencialistas.

De fato, nas últimas três décadas, em sete países sul-america-nos, nada menos do que 12 presidentes tiveram seus mandatos interrompidos: os argentinos Raul Alfonsín (1989) e Fernando de la Rúa (2001), o brasileiro Collor de Mello (1992), o venezuelano Carlos Andrés Perez (1993), os equatorianos Abdalá Bucarám (1997), Jamil Mahuad (2000) e Lucio Gutierrez (2005), os para-guaios Raúl Cubas (1999) e Fernando Lugo (2012), o peruano Alberto Fujimori (2000) e os bolivianos Sánchez de Lozada (2003) e Carlos Mesa (2005).

Se as interrupções de mandato representam pontos traumáti-cos de inflexão política associados à dinâmica interna de cada país, é possível, no entanto, identificarmos conexões plausíveis entre eventos só na aparência tão díspares.

Como há anos destacou o analista político argentino Rosendo Fraga, as crises políticas que ocorreram na América do Sul, entre 1989 e 1997, apresentaram três ingredientes em comum: a inter-rupção dos mandatos de presidentes eleitos ocorreu com o inter-valo médio de dois anos, os chefes de governo lograram atravessar pelo menos metade de seus mandatos e, mais importante, os conflitos se equacionaram por intermédio de mecanismos institu-cionais – pela entrega antecipada do poder, no caso de Alfonsín, ou pela destituição, nos casos de Collor, Perez e Bucarám.

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3838 Nelson Rojas de Carvalho

Vale lembrar aqui que essa primeira onda de turbulências no Continente recém-democratizado antes de haver sido interpre-tada como crise, foi lida como uma série de testes a que se viram submetidas as instituições, testes pelos quais teriam passado com louvor: o impeachment de Collor foi então festejado interna-cionalmente como prova inequívoca do vigor da democracia no Brasil, leitura que se estendeu – em menor medida – ao processo contra Perez e à remoção de Bucarám.

Ora, as crises ocorridas na América do Sul, entre 1999 e 2005, apresentaram traços marcadamente diferenciados daqueles observados na etapa anterior: a interrupção dos mandatos presi-denciais se processou com o intervalo médio de menos de um ano, os chefes de governo se viram destituídos do poder antes mesmo de cumprirem metade dos seus mandatos e, mais grave, os confli-tos deixaram de se equacionar pelos canais institucionais; os desfechos foram caóticos, com golpes (Mahuad) ou renúncias presidenciais em ambiente de violência, ingovernabilidade e suble-vação das ruas (Cubas, Fujimori, De la Rua e Sánchez de Lozada).

Essa segunda etapa de crises do presidencialismo no Conti-nente – quando mecanismos institucionais como o Legislativo ou o sistema de partidos se mostraram insuficientes para a canaliza-ção e equacionamento de conflitos – se acompanhou de descrença na legitimidade das instituições na região. De acordo com pesqui-sas então realizadas pelo instituto Latinobarômetro, não mais de 54% dos sul-americanos apoiavam a democracia, em 2003.

No que poderia ser identificado como terceiro capítulo do presidencialismo no Continente, os chefes de governo eleitos na última década na América do Sul – com a exceção de Fernando Lugo, no Paraguai – lograram chegar ao fim de seus respectivos mandatos, em consonância com ditame central dos sistemas presidencialistas: a garantia de mandato fixo ao chefe de governo, independentemente de seu desempenho.

Não há como negar que a estabilidade política observada no período coincidiu com um ciclo de crescimento econômico inédito no Continente, crescimento que se acompanhou tanto da dimi-nuição dos níveis de pobreza como do apoio crescente às insti-tuições democráticas.

Importa aqui assinalar que, muito embora alterações ocorri-das no cenário econômico internacional no último triênio, com o arrefecimento do preço das commodities, tenham reposicionado a taxa de crescimento do Continente no seu patamar histórico, nem

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3939Brasil caminha na contramão do Continente

por isso a América do Sul se aproximou de um quadro recessivo ou de situação de crise político-institucional.

Tanto na economia, como na política, o Brasil caminha assim na contramão do Continente. A retração econômica e, sobretudo, a grave crise de governabilidade que marcam a conjuntura recoloca-ram no centro da agenda alternativa política que parecia destinada aos arquivos históricos: o impedimento do chefe do Executivo.

Limitada inicialmente a um nicho minoritário da oposição e a segmentos extremados de direita, a tese do impeachment hoje ganha terreno não só na sociedade, mas, sobretudo, entre os atores políticos: aglutina o conjunto das oposições e se infiltra na base de sustentação do governo, mais precisamente nas fileiras do PMDB. Como tem ocorrido nos últimos meses, tudo leva a crer que também nesse episódio a posição do PMDB indicará o rumo dos acontecimentos: o seu afastamento da base do governo está sendo interpretada como adesão do partido majoritário à opção pelo encurtamento do mandato da presidente – alternativa que está ganhando densidade.

Caberá, nesse caso, lembrar que, em regimes presidencialis-tas, na posse caneta, é de competência exclusiva do presidente um último ato: a renúncia ao cargo. Ato que, como sabemos, é seguido de consequências pouco previsíveis para a vida e para os atores políticos.

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O Gramsci que “conhecemos” e o que ele inspirou1

Alberto Aggio

Gramsci é, no Brasil, um autor bastante conhecido e com um número estável de leitores. A primeira edição dos Cadernos do Cárcere é da década de 1960 e foi reeditada

no final da década seguinte, num contexto de luta contra a dita-dura. Uma nova edição dos Cadernos, que mescla a edição temá-tica dos anos sessenta com a edição crítica publicada na Itália a partir de 1975, veio à luz nos últimos anos do século passado, com vários dos seus volumes já reimpressos. Há tempos registra--se uma difusa assimilação do pensamento gramsciano.

As teorias de Gramsci se tornaram de uso comum e identificá-veis por meio de conceitos como “hegemonia”, “guerra de posi-ções”, “revolução passiva”, “transformismo”, “americanismo” e outros. O pertencimento dele à história do marxismo e do comu-nismo é patente, ainda que seja reconhecido, mas não generaliza-damente, como um pensador político original.

Desde o final da década de 1970, a progressiva difusão do pensamento gramsciano contribuiu e alimentou um novo “programa de ação” para a esquerda brasileira: organizar a luta contra o auto-ritarismo. Além de Gramsci, outros pensadores animaram esse movimento, como Norberto Bobbio, Hannah Harendt e Jürgen Habermas. Mas foi com Gramsci que se instituiu no universo de reflexão da esquerda as temáticas e as visões críticas da história brasileira a partir de uma perspectiva de longa duração.

Com a difusão e a assimilação de Gramsci se começa a pensar o Brasil tomando como referência a Alemanha e a Itália, países que não chegaram à ordem burguesa por meio do percurso revolucio-nário francês. Por meio das referências gramscianas, se passa a reconhecer que o país era “ocidental” e que se havia estruturado como um país moderno pela via autoritária, sobretudo a partir de 1964. Isso requeria da esquerda uma nova leitura da democracia.

1 Esta é a versão em português do artigo publicado no L’Unità, em 7 de dezembro de 2015, com o título “Studiavamo Gramsci nel Brasile senza libertà” (http://www.unita.tv/opinioni/studiavamo-gramsci-nel-brasile-senza-liberta/) e que corresponde a uma súmula da palestra realizada na Fondazione Istituto Grams-ci de Roma, em 25 de novembro de 2015.

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4141O Gramsci que “conhecemos” e o que ele inspirou

Sem ela, a esquerda não seria capaz de se tornar um ator relevante na luta contra o autoritarismo e lhe faltaria uma “grande política” que pudesse lhe guiar numa nova situação democrática.

Naquele contexto, o Gramsci que conheceríamos não seria aquele da luta operária, mas o Gramsci inspirador de uma luta política geral, cuja tradução política se exprimia na ideia de que, para combater o autoritarismo, era necessário “fazer política” e construir alianças que objetivassem a conquista da democracia. O Gramsci dos intelectuais, da hegemonia e da guerra de posição se encontrava então em campo aberto, em diálogo com outras correntes de pensamento, em particular as liberais, jogando a esquerda para dentro do debate público sobre as questões do pluralismo como horizonte político-cultural: um diálogo que nem a esquerda nem os liberais estavam acostumados. Em síntese, a difusão das ideias dele contribuiu para amadurecer na esquerda brasileira uma perspectiva crítica a respeito da sua história prece-dente, de forte matriz golpista e autoritária, pouco afeita aos temas decorrentes da política democrática.

No contexto de luta pela democracia no Brasil, o mais impor-tante ensaio de corte gramsciano foi, sem dúvida, A democracia como valor universal, de Carlos Nelson Coutinho (1979), que repre-sentou um marco divisório na cultura política da esquerda brasi-leira, sobretudo no que diz respeito à revalorização da democracia. O ensaio tem muitos méritos e foi extremamente influente. Embora Carlos Nelson valorizasse temáticas como a “ampliação do Estado”, ajudando a esquerda a compreender a natureza “ocidental” da sociedade brasileira, entendia que não se deveria cogitar nenhuma “leitura mais complexa” do conceito gramsciano de revolução passiva. No ensaio de 1979, as formulações a respeito da realidade brasileira aparecem inteiramente subordinadas ao enfoque leni-nista, assim sintetizada no subtítulo do seu segundo item: “o caso brasileiro: a renovação democrática como alternativa à via prus-siana”. A ênfase não era irrelevante e nem foi esporádica. Em diver-sos textos posteriores, Carlos Nelson se empenhou em definir a transição brasileira à modernidade capitalista identificando revo-lução passiva a uma “contrarrevolução prolongada” (a expressão é de Florestan Fernandes), por definição reativa à mudança social.

Este é um tema importante na discussão sobre Gramsci no Brasil: se admitirmos que o conceito de “via prussiana” descreve uma situação histórica na qual está anulada a possibilidade do ator da antítese ao capitalismo de assumir, pela política, um papel afirmativo no processo de modernização capitalista, a pergunta

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que emerge naturalmente é se a categoria de “revolução passiva”, elaborada por Gramsci, pode ser compreendida no sentido de se admitir um novo protagonismo do ator da antítese no interior do processo de modernização capitalista.

Luiz Werneck Vianna, em seu livro Revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil (1997), responde afirmativa-mente a esta pergunta, esclarecendo que na revolução passiva se pode desenvolver a ação de um ator que represente uma “antítese vigorosa” e empenhe de maneira intransigente todas as suas potencialidades (p. 78). A revolução passiva, como critério de interpretação de processos históricos, é útil ao ator que se invista da representação de portador das mudanças, “capacitando-o, a partir de uma adequada avaliação das circunstâncias que bloqueiam seu sucesso imediato e fulmi-nante, a disputar a hegemonia numa longa ‘guerra de posições’, e a dirigir o seu empenho no sentido de um transformismo ‘de registro positivo’, assim desorganizando molecularmente a hegemonia dominante, ao tempo em que procura dar vida àquela que deve sucedê-la”. (...)

“A exploração do transformismo de ‘registro positivo’ é indi-cada em processos societais novos na sociedade brasileira, muito especialmente depois da institucionalização da democracia polí-tica em meados dos anos 80” (p. 9). A revolução passiva é, portanto, um critério de interpretação “que poderia servi-lo no sentido de mudar a chave da direção do transformismo: de negativo para positivo”. Graças a esse conceito, Gramsci cria “a possibilidade de uma tradução do marxismo como uma teoria da transformação sem revolução ‘explosiva’ de tipo francês”.

Como se sabe, a história brasileira nunca protagonizou uma revolução de tipo “jacobino”. As grandes transformações históricas do país foram moleculares ou caracterizadas por uma “dialética sem síntese”, no interior da qual os elementos de novidade e de modernidade foram introduzidos, no mais das vezes, por grupos sociais anteriormente contrários à modernização. Os ciclos da longa “revolução passiva á brasileira” (L. W. Vianna) vão da funda-ção do Estado Nacional até o recente processo de democratização vivido pelo país, passando pelo período Vargas, pela democracia de 1946 e pelo autoritarismo das décadas de 1960 e 1970.

Neste longo período histórico, o Estado assume o papel de agente modernizador e condutor das transformações históricas, em geral sem a participação da sociedade civil, estabelecendo a

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lógica de conservar-mudando. Essa lógica faz com que as trans-formações históricas no Brasil ocorram sem abalos violentos, o que ajuda a conservar a precedente hegemonia dos grupos sociais mais atrasados.

Nos dias que correm, contrariando as enormes esperanças, os governos do PT, desde 2003, não se constituíram numa alterna-tiva ao longo processo da “revolução passiva à brasileira”. Ao contrário, no governo, o PT conduziu a modernização associando-se às elites agrárias e industriais, abrigando-as no seio de um enorme Estado, inteiramente dependente do Poder Executivo. O alargamento do poder de consumo das classes populares fez parte dessa estratégia e a figura de Lula passou a ser essencial a esse tipo de transformismo. Mantiveram-se o dirigismo estatal, o patrimonialismo e o corporativismo ao invés de se estabelecer um nexo renovador entre democracia, autonomia, mercado e bem-es-tar. Nascido do moderno parque industrial paulista, isto é, da face americanista mais visível do país, o PT no governo foi derivando progressivamente para a velha tradição ibérica de supremacia do Estado sobre a sociedade que havia marcado a história brasileira. O PT é, como já se disse, uma monografia particular do Brasil, articulada por uma síntese de americanismo e iberismo, na qual o Estado continua a contrapor-se à sociedade civil, controlando molecularmente as transformações, obedecendo à lógica do conservar-mudando, e impedindo consequentemente o desenvol-vimento autônomo da sociedade civil.

Mudar as relações entre a sociedade civil e o Estado e fazer com que a mudança dirija a conservação, não significa adotar uma espécie de antirrevolução passiva, instalando um processo de rupturas de corte jacobino. Transformar o caráter recessivo da “revolução passiva à brasileira” demanda a construção de uma cultura política republicana, que contribua para a geração de uma sociedade civil autônoma, capaz de associar-se politicamente para a condução dos destinos do país. É esse o desafio que está colocado: buscar, com realismo, as balizas e os parâmetros de uma grande reforma da política, de caráter republicano, que reverta os termos da atual modalidade de “revolução passiva à brasileira” e ao mesmo tempo recomponha a confiança do país em continuar vivenciando e ampliando a democracia política.

O pensamento de Gramsci apresenta-se hoje no Brasil essen-cialmente por meio de uma disjuntiva. De um lado, o Gramsci da “política democrática”, ou seja, da política-hegemonia, enquanto “hegemonia civil”. De outro lado, temos o Gramsci como expres-

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são da “política revolucionária”. Na primeira “leitura”, a revolução não é mais o centro da elaboração política e a perspectiva se deslocou no sentido de exercitar o conceito de revolução passiva até seus limites, isto é, acionar permanente e intransigentemente a política democrática no interior da perspectiva de “rovesciare” a longa revolução passiva à brasileira, de marca autoritária e exclu-dente, e lhe dar finalmente outro direcionamento.

Essa perspectiva implica compreender que Gramsci se desco-lou da sua originária demarcação revolucionária, distanciando-se assim de um marxismo que ainda tem como referência uma época histórica de revoluções. De outro lado, a perspectiva de um “outro Gramsci” se desdobrou gradativamente em “outros Gramsci”, mantendo-os, contudo, no universo diversificado da noção de “representação”, agora num duplo sentido: representa-ção de classe, como fora anteriormente, e portanto numa perspec-tiva revolucionária, e, noutro sentido, representação como conser-vação e difusão de um imaginário revolucionário, no qual se quer resguardar os signos e significados de uma época revolucionária terminada há décadas.

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Eleição municipal e mudanças na Lei Eleitoral

Arlindo Fernandes de Oliveira

A Lei 13.165, de 2015, promove diversas mudanças nas regras legais aplicáveis às eleições municipais que interessam de perto a todos os que participam desse processo: partidos e

candidatos, especialmente ao cargo de vereador, são afetados por essas mudanças.

Pela primeira vez desde 1997, quando foi aprovada a chamada Lei Eleitoral Geral (Lei nº 9.504, de 1997), promove-se uma alte-ração no sistema eleitoral brasileiro aplicável às eleições propor-cionais, ao se exigir, de cada candidato, tomado isoladamente, que alcance 10% do quociente eleitoral pertinente ao cargo de vereador em sua cidade.

Recorde-se que, conforme as regras vigentes até então, um partido ou coligação deve alcançar, primeiro, o quociente eleito-ral (número de votos mínimos para eleger um candidato). O quociente eleitoral é calculado dividindo-se o total de votos válidos conferidos naquela eleição (fiquemos aqui com uma elei-ção para o cargo de vereador), dividido pelo número de vagas da Câmara Municipal respectiva.

Elege um candidato, ou mais, o partido ou coligação cujos votos, somando os de todos os candidatos do partido – ou da coli-gação – com os de legenda, alcançam o quociente eleitoral. Um quociente garante uma vaga, dois quocientes duas vagas e assim por diante. Os candidatos mais votados, independentemente de sua votação, são eleitos.

Caso existam sobras – costuma haver – faz-se um cálculo suplementar para definir os partidos ou coligação que ocuparão essas sobras, utilizando-se a famosa Fórmula D’Ondt, ou, nos termos do Código Eleitoral, a fórmula das maiores médias.

A partir das eleições de 2016, a Lei Eleitoral passará a exigir de cada candidato que alcance, em sua votação individual, os referidos 10% do quociente eleitoral. Essa medida é adotada para mitigar o efeito de um candidato com muitos votos trazer consigo a eleição de candidatos pouco votados em seu partido ou coliga-ção. Podemos chamar essa norma de Cláusula de AntiTiririca, ou

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AntiEnéas, para exemplificar com dois candidatos a deputado federal muito bem votados que ajudaram seu partido a eleger candidatos com pouca expressão eleitoral.

Há nessa norma algo contraditório com o princípio constitu-cional que rege as eleições proporcionais – para deputado federal, estadual e distrital, conforme a Constituição, e para vereador, conforme o Código Eleitoral – à medida em que pode excluir da cadeira um partido que, na proporção de seus votos, teria direito a tal mandato. Por isso, deve ser objeto de controle de constitucio-nalidade no Supremo Tribunal Federal.

O problema da constitucionalidade é substancialmente menor, entretanto, na eleição para o cargo de vereador porque, nesse caso, a Constituição é omissa quanto ao sistema eleitoral. A Carta Magna apenas o define sistema proporcional para o cargo de deputado federal e o manda aplicar às eleições para deputado estadual e distrital.

Assim, é possível que a mudança trazida pelo Lei 13.165, de 2015, seja aplicada já nas eleições de 2016 para as câmaras muni-cipais dos mais de 5.560 municípios brasileiros.

Para que se tenha uma ideia da dimensão da mudança e, com base nela, avaliar qual a melhor tática numa eleição para o cargo de vereador, ajuda se tomarmos como referência concreta o resul-tado das eleições municipais de 2012. É importante que os parti-dos e seus candidatos se detenham nessa questão.

Na cidade de São Paulo, por exemplo, conforme o TSE, 5.711.364 (cinco milhões, setecentos e onze mil e trezentos e sessenta e quatro) eleitores votaram validamente, ou seja, em um candidato ou em uma legenda partidária. O quociente eleitoral, assim, calcula-se dividindo essa quantidade de votos pelo número de vagas na Câmara, que é 55, o quociente eleitoral para o cargo de vereador na cidade foi de 103.843 votos no ano de 2012.

Aplicado o novo sistema eleitoral a essa eleição, teríamos que cada candidato isoladamente deveria ter alcançado 10% de 103.843 votos, ou seja, 10.384 votos. Por exemplo, não seria eleito – ficaria na suplência, de acordo com a nova norma – um candi-dato de partido que tenha direito a duas vagas mas apenas um candidato obteve mais – às vezes, muito mais – de 10.384 votos, ainda que o partido ou coligação tenha direito a mais vagas.

Essa nova conformação legal do sistema eleitoral brasileiro quanto às eleições proporcionais deve implicar, naturalmente,

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4747Eleição municipal e mudanças na Lei Eleitoral

mudanças no comportamento dos atores políticos, pois não valerá a pena – será contraproducente – o partido lançar um número excessivo de candidatos, entre eles distribuir os seus votos, alcan-çar o quociente eleitoral sem que os seus candidatos individual-mente atinjam 10% desse quociente.

Este contexto normativo recoloca, especialmente para os partidos médios e pequenos (e todos os partidos são médios ou pequenos em uma grande quantidade de municípios), a necessi-dade de alguma forma de concentração: provavelmente teremos um número menor de candidatos, em face dessas novas regras.

Uma alternativa seria o partido definir de forma clara, espe-cialmente nas cidades maiores, que irá lançar dois tipos de candidato a vereador: aquele que efetivamente disputará a vaga, pois intentará alcançar 10% do quociente eleitoral, sozinho (recorde-se, mais de dez mil votos, por exemplo, na cidade de São Paulo), e aquele que será candidato com o duplo propósito de contribuir para que o partido alcance o quociente eleitoral e firmar seu nome como liderança de segmento, categoria, bairro, comunidade ou como expressão de uma determinada temática, mas sem chances de ser eleito.

A realização de uma tática eleitoral dessa natureza, entre-tanto, cresce em complexidade se o partido participar do processo eleitoral para vereador em coligação com outras formações políti-cas. Nesse caso, o lançamento de candidaturas frágeis assume tons ainda mais dramáticos, pois esses candidatos irão operar para eleger os parceiros da coligação, que não necessariamente serão de seu partido.

Alguns desses problemas já existem com o atual sistema elei-toral. A nova norma, entretanto, traz tintas e cores novas, ao impor um cálculo muito específico, que reúne elementos políticos, eleitorais e legais para se chegar à melhor tática em cada caso.

Um aspecto a ser levando em conta, nesse cálculo, será se o partido concorre sozinho ou coligado. Isolado, o partido terá maior liberdade para escolher sua tática: lhe bastará que uns poucos candidatos obtenham os tais 10% do quociente eleitoral. Coligado, entretanto, o problema cresce em complexidade.

Vale anotar também que o eleitorado brasileiro cresceu desde 2014 e os municípios são a expressão desse crescimento. Assim, quem pretender usar os dados das eleições de 2012, aqui referi-

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4848 Arlindo Fernandes de Oliveira

dos, para fazer sua avaliação eleitoral deve acrescentar aos núme-ros o crescimento do eleitorado de sua cidade.

Outro dado de avaliação mais complexa é a capacidade de o pleito municipal de 2016 atrair o interesse do eleitor, circunstân-cia que faz crescer a quantidade de votos válidos de um pleito.

Caso em que a melhor tática deve comportar um elemento de prudência: para eleger um vereador nas eleições de 2016, na cidade de São Paulo, deve um partido lançar candidato que tenha condições de alcançar a expressiva votação de 11.000 (onze mil votos). Mantidas as regras aqui referidas, muito dificilmente um candidato será eleito com menos votos.

Por último, vale acompanhar a decisão do STF a respeito de eventual questionamento sobre a constitucionalidade dessas normas. Cabe perceber, entretanto, que o Tribunal Superior Elei-toral já aprovou a regulamentação das eleições de 2016, e nelas mantém as novas regras aqui referidas, sem as questionar.

Recordemos, finalmente, que esta pequena, mas relevante mudança no sistema eleitoral brasileiro aplicável às eleições proporcionais revela o quanto de resiliência há em nossa legisla-ção quanto a esse tema: desde 1945, quando foi aplicado pela primeira vez, apenas duas mudanças significativas foram promo-vidas em nosso sistema eleitoral proporcional. Uma em 1955, para impedir que uma mesma pessoa se candidatasse a deputado por diversos estados – que podemos chamar de cláusula antiPrestes, eleito deputado por 14 estados em 1945 – e a alteração promovida em 1997, pela vigente Lei Geral das Eleições, para excluir o voto em branco do cômputo do quociente eleitoral.

Nesse período, esse sistema foi aplicado a dezessete eleições para os cargos de deputado federal e estadual e igual número de pleitos para vereador. Encontramo-nos diante da histórica expe-riência de promover, nas eleições de 2016, uma terceira mudança no quadro normativo quanto a esta importante matéria.

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III. Conjuntura

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Autores

Elimar Pinheiro do NascimentoSociólogo, professor associado do Programa de Pós-Graduação do Centro de Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Brasília (UnB) .

Ivan Alves FilhoHistoriador, autor de mais de uma dezena de obras, a última das quais é O historiador e o tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira .

Sérgio C. BuarqueEconomista, mestre em Sociologia, professor da FCAP/UPE, consultor em planejamento estratégico com base em cenários e desenvolvimento regional e local . Fundador e diretor da revista eletrônica Será?

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Para além da conjuntura. E aquém da decadência?

Elimar Pinheiro do Nascimento

Estamos mergulhados em uma conjuntura nacional, quase que nela afogados, pelas más notícias que se acumulam e mudam, a cada par de horas. Entre as piores pode-se

citar a queda de arrecadação fiscal e do PIB, o aumento do déficit público, do desemprego e das falências de empresas. As portas se fecham e o povo fica na rua, exposto à violência crescente. Há também boas notícias: as prisões e condenações de executivos e políticos decorrentes da Operação Lava-Jato. Que pode não durar muito, com tantos interesses contrariados e o volume de resistên-cias e reações que se ergue de todos os lados.

A conjuntura nos afoga e, segundo o sociólogo pernambucano Paulo Henrique Martins, nos impede de pensar, de ver para onde estamos indo, de ver longe. E, aparentemente, ela está resumida, em artigo do jornalista Luiz Carlos Azedo no Correio Braziliense (27/03/2016), em três cenários: a) impeachment da Dilma; b) não impeachment da Dilma; e c) cassação da presidente e do seu vice, pelo TSE. Nenhum desdobramento da conjuntura, impeachment ou não impeachment, nos levará a uma situação fácil. Em todas, os sentimentos devem se acerbar, as manifestações de rua devem crescer, as contradições devem se acirrar. Espera-se que a crise econômica se encolha. Contudo, este último aspecto é uma incóg-nita. Não existe qualquer segurança de superação imediata da crise. Este consenso, paradoxalmente, soma-se a outro: mas a crise será vencida. Pode ser que em 2018 ou em 2020, mas será vencida. O Brasil é muito grande para quebrar.

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5252 Elimar Pinheiro do Nascimento

E depois da crise superada? Caminharemos como antes, à espera de uma nova crise, ou tomaremos as medidas necessárias para introduzir mudanças que nos liguem ao futuro que se dese-nha no mundo com o mercado globalizado, a sociedade do conhe-cimento crescendo, as inovações tecnológicas se sucedendo e novas políticas de descarbonização da economia sendo adotadas? Quando tomaremos conhecimento de que a nave Terra caminha para o suicídio, com sua ideologia do crescimento infinito em um mundo finito? Quando tomaremos as primeiras decisões de mudar a dinâmica do desenvolvimento baseado em um consumo desen-freado que nos dá uma eterna sensação de felicidade para logo se acabar, nos reconduzindo à prática de um novo consumo, novo conforto e nova ansiedade? Quando seremos capazes de definir o que é efetivamente importante para criar um novo desenvolvi-mento, mais qualitativo do que quantitativo? Quanto estaremos dispostos a fazer nossa revolução nas prioridades, como clama, há décadas, o senador Cristovam Buarque? Estes são alguns dos desafios de criação de uma nova esquerda, adequada às mudan-ças do século XXI.

Convite para enfrentar esse desafio é o objeto do presente artigo: descortinar os eixos estratégicos a serem percorridos para criar um novo tipo de desenvolvimento, com economia constante de consumo, de uso de recursos naturais e de energia, com aumento da qualidade de vida. Uma prosperidade sem destruir a natureza e sem congelar a desigualdade social, o que implicará um novo estilo de vida, novos valores e posturas dos membros da sociedade. O nome deste novo desenvolvimento, ou nova socie-dade, é um nome pouco usual nas ciências sociais e, mais ainda, em nossos meios de comunicação, na mídia, no nosso cotidiano – resiliência. De maneira simples, ela indica a capacidade de um sistema (humano, natural ou artificial) se reconstruir constante-mente. Uma economia é resiliente, quando os recursos naturais que ela retira do meio ambiente, ou devolve como dejetos, para produzir os bens (sejam eles mercadorias ou não) necessários à sua produção e reprodução, não ultrapassam a capacidade da natureza em repor os recursos retirados e absorver os dejetos. Se retirarmos de um ecossistema um volume de recursos naturais superior ao que ele é capaz de produzir, ele morre. É assim que se formam os processos de desertificação, de crise hídrica, de extin-ção de espécies e do efeito estufa com aquecimento global, que acarreta aumento dos eventos críticos do clima. Da mesma forma, se lançamos de volta na natureza dejetos em quantidade que ela

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5353Para além da conjuntura. E aquém da decadência?

não possa absorver, como a queima de combustíveis fosseis (CO2), teremos uma aceleração do aquecimento da Terra.

Os limites do crescimento, identificados desde metade do século passado, têm se manifestado com mais frequência neste século com o aumento de eventos críticos climáticos: variações extremas de temperaturas e quedas pluviais, entre outros. E as consequências são cada vez mais perceptíveis, como seca, crise de recursos hídricos, temperaturas ineditamente altas ou baixas, impactando a produção de alimentos e a qualidade de vida de segmentos humanos crescentes.

É um fenômeno global, mas as respostas são múltiplas, distin-tas e articuladas, desde locais a globais, passando pelas nacio-nais. E percorrem necessariamente a adoção de novas práticas econômicas, de melhorias substantivas nos campos da educação e da inovação, ou seja, no grande campo do conhecimento. Ação que demanda uma máquina estatal moderna, eficiente e lúcida, com programas sociais que efetivamente eliminem a pobreza e reduza a desigualdade.

Parece estranho escrever sobre isto quando estamos em meio à maior crise de nossa história republicana. No entanto, ou o fazemos agora ou iremos sair da crise com as mesmas estruturas e as mesmas condições para mergulhar, pouco depois, em nova crise, distanciando-nos cada vez mais dos países desenvolvidos, distanciando-nos do futuro.

Para tanto, identifiquemos rapidamente os entraves para se construir uma sociedade com PIB de nova cara, sem consumismo desenfreado, e amiga da natureza e do futuro. Eles se distribuem em diversos campos, relativamente conhecidos, como educação de má qualidade, com escolas muito desiguais; perfil de Ciência, Tecnologia e Inovação frágil, sem ambiente favorável e estruturas apropriadas; economia de baixa produtividade e fechada, com carga tributária alta e injusta, ambiente de negócios pouco favorá-vel, insegurança jurídica, sem acordos comerciais importantes e pauta de exportação baseada em commodities; infraestrutura de transporte e logística envelhecida, deficiente e de alto custo, impac-tando negativamente na competitividade econômica; fragilidade institucional com gestão pública ineficiente, corrupção elevada, justiça morosa, sem transparência e um sistema eleitoral apro-priado pelos grandes interesses econômicos, produzindo condições desfavoráveis à governabilidade e distorções no mecanismo de representação, e um sistema previdenciário deficitário, antiquado e

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insustentável no médio e longo prazos; política ambiental pouco eficaz, baseada na punição, fiscalização precária e sem envolvi-mento da população; cidades “monstrópoles”, desordenadas, com baixa mobilidade urbana, altos índices de criminalidade, e eleva-das perdas de vidas humanas, sobretudo de jovens; desprezo pela cultura indígena e discriminação em relação às mulheres, aos negros e aos LGBT; desigualdades sociais e regionais marcantes, e bolsões de pobreza significativos, com perdas de coesão social e exclusão social inadmissível em pleno século XXI. E finalmente, uma política externa pouco eficaz na promoção dos interesses comerciais do país, poucos acordos bilaterais e baixa inserção de nossa economia nas cadeias econômicas globais. Diagnóstico que nada tem de novo, e aqui apenas o relembramos.

Superar os entraves que amarram o Brasil aos séculos passa-dos implica na construção, coletiva e democrática, de uma estra-tégia eficaz. Nela não podem faltar os dez eixos seguintes:

• desenvolver talentos, com uma escola de qualidade e chan-ces iguais para todos;

• preservar vidas: aumentar o tempo e a qualidade de vida, com melhor segurança pública e promoção, prevenção e bons serviços de saúde;

• viver em harmonia: com fortalecimento da coesão social, eliminação da pobreza e redução da desigualdade;

• promover a solidariedade com as novas gerações: um meio ambiente de qualidade;

• humanizar as cidades: espaço público para as pessoas e não para as máquinas;

• reformar o Estado: com instituições que ofereçam segu-rança, agilidade e transparência;

• consolidar a democracia: com participação na vida pública e respeito à diferença;

• criar uma infraestrutura adequada às mudanças: energia, transporte e comunicação;

• fomentar um novo desenvolvimento: criar uma economia de alta produtividade, inovadora, de baixo carbono, com as riquezas justamente distribuídas;

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• Desempenhar um protagonismo internacional: um país inse-rido no mundo, nas cadeias produtivas globais, nos fluxos de conhecimento e em prol da paz e do respeito à diversidade.

Entre os entraves destacam-se a má qualidade da educação e a fragilidade institucional, que se relacionam com os dois únicos elementos recorrentes entre os países desenvolvidos: alta escola-ridade e instituições confiáveis. É por eles que temos que iniciar nossas mudanças. Gostaria, porém, de enfatizar um dos dois eixos mais relevantes: a superação da fragilidade institucional. E, mais especificamente, o aspecto da modernização do Estado, ação iniciada pelo governo Fernando Henrique Cardoso, sob a tutela de Bresser-Pereira, mas interrompida pelo populismo e falta de visão estratégica de país, por parte dos governos Lula e Dilma.

Uma das características comuns aos países desenvolvidos é o de serem dotados de instituições estáveis, confiáveis e eficientes. A instabilidade institucional no Brasil é um dos grandes obstácu-los ao desenvolvimento nacional. Temos uma atividade legisfe-rante febril. As leis mudam segundo a vontade indecifrável dos dirigentes de plantão, acarretando consequências perversas aos investidores, empresários, gestores e cidadãos em geral. A cada dia leis, decretos e portaria, dos governos federal, estadual e municipal são publicados. Ao que se deve acrescentar, a morosi-dade e complexidade do arcabouço jurídico, aliada a sentenças contraditórias proferidas em função do tribunal a que se recorre, que criam uma enorme insegurança jurídica.

O Estado é moroso e caro. Arrecada muito, gasta mal e entrega pouco. O Brasil ocupa a última posição no ranking que mede o retorno da aplicação dos impostos arrecadados, segundo estudo divulgado pelo Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário. Este desempenho estatal ruim está centrado em uma concepção arcaica do Estado, a qual prega sua intervenção excessiva na socie-dade, inibindo os fatores de desenvolvimento social. A corrupção é um dos legados deste Estado gigante. Por outro lado, sua concep-ção confunde o estatal com o público. Serviço público é aquele que permite o acesso a todos os cidadãos, sendo realizado diretamente ou indiretamente pelo Estado. Neste último caso, por meio de ação intermediada por organizações sociais ou similares.

Com custos excessivos, o Estado adota o procedimento perverso de subtrair poupança da sociedade, por meio do endividamento que, hoje, quase atinge 70% do PIB. Somado à má qualidade dos gastos, não tem recursos para investimento, e, sobretudo, provoca

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constante desequilíbrio fiscal, o que o conduz a sucessivos aumen-tos de impostos. Cria-se, assim, um círculo vicioso que compro-mete nosso desenvolvimento. Círculo que precisa ser quebrado.

Para modernizar esta máquina envelhecida, apropriada de um lado pelo grande capital e de outro pelas corporações em seu âmbito, será necessário um grande e longo esforço de mudança, mas que necessita começar o mais cedo possível. Porém, sem açodamento, de forma planejada e eficientemente implantada. O que demandará um grande acordo político entre as diversas forças da sociedade, dos trabalhadores aos empresários, dos movimentos sociais aos partidos políticos.

1. Adotar regras que produzam o equilíbrio fiscal e amplie a capacidade de investimento, por meio de orçamento de base zero – avaliação constante dos programas governamentais em todos os entes federativos; definição de limites claros e objetivos de gasto público, buscando a meta de redução gradativa da dívida pública num prazo de dez anos, até alcançar o patamar de 50%. Adoção de medidas de uma cultura de austeridade será essencial ao Estado, iniciando pela Presidência da República.

2. Estabelecer um sistema de simplificação permanente dos procedimentos da gestão estatal, com ruptura do excesso de normas e rigidez nos procedimentos, atribuindo agilidade e eficiência ao Estado.

3. Ampliar a eficiência estatal, com concentração de suas atividades no planejamento, regulação e fiscalização, reduzindo o tamanho do Estado por meio de privatizações de empresas defici-tárias e pouco relevantes, de venda de imóveis sem uso, de elimi-nação das unidades administrativas que realizam retrabalho e dos programas e políticas que demonstram pouca efetividade. Ganhar foco e eficiência, privilegiando os resultados.

4. Reduzir a máquina estatal com aumento da eficiência nos campos essenciais como planejamento, regulação, segurança e fiscalização por meio da redução dos ministérios e órgãos anexos e dos cargos comissionados, e fortalecimento da presença dos servidores nos cargos de direção (secretaria-geral, por exemplo).

5. Melhorar a qualidade dos gastos públicos, entre outros, por meio da adoção da profissionalização da gestão pública, inicial-mente com preenchimento de cargos técnicos comissionados por meio de editais, com valorização do mérito sobre as indicações

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políticas e por meio da ampliação do e-governo, utilizando de forma inteligente as tecnologias de informação e comunicação.

6. Fortalecer as Agências de Regulação independentes, e insti-tuir novos modelos de governança das empresas estatais: trans-parentes e profissionais, com exclusão de agentes políticos e fortalecimento dos atores econômicos e sociais.

7. Adotar legislação e mecanismos eficientes de combate à corrupção, com mais rigor e menos recursos. Entre outros, apro-vando a proposta do Ministério Público, apoiada pela sociedade.

8. Adotar formas de parceria para prestação de serviços públi-cos, reduzindo os gastos, ganhando agilidade e melhorando os serviços ofertados (fornecimento de energia e água; limpeza urbana; transporte coletivo; sistema penitenciário; sistema de saúde de média e alta complexidade).

9. Implantar um sistema de planejamento e gestão voltado para resultados, com monitoramento e avaliação das metas definidas para cada ação e unidade administrativa, e adoção do sistema de consequências, superando a deficiência das informações, a ausên-cia de indicadores e, sobretudo, a inexistência de cobranças.

10. Estabelecer um novo pacto federativo que redefina, de forma justa e eficiente, as atribuições e recursos dos diversos entes da Federação.

Por si só, essas medidas não serão capazes de criar uma máquina estatal moderna, serão necessárias ainda mudanças de cultura, de organização e de procedimentos ao nível do microes-paço organizacional, mas, caso adotadas, serão um bom começo para se ter um Estado com entregas melhores, mais essenciais e mais baratas, abrindo espaço para mudanças nos outros poderes constitucionais e no sistema tributário.

Encerro, alertando ao leitor, mais uma vez, que se trata de propostas iniciais para o debate com o intuito de dar um toque na bola para a construção de propostas essenciais no campo institu-cional, que qualquer partido que tenha como objetivo a transfor-mação do Brasil deverá adotar. No meio da crise, quem tiver propostas de mudanças mais substantivas tende a ganhar o apoio, senão de todo o eleitorado, pelo menos de um segmento essencial, mais qualificado e formador de opinião pública. Pensar o estratégico, hoje, é evitar a possível decadência, amanhã. Pensar as novas reformas, hoje, é se posicionar, de forma lúcida, na cria-ção de um novo campo da esquerda.

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O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?1

Ivan Alves Filho

Basta abrir as páginas de alguns jornais ou revistas para nos inteirarmos de que muita coisa ocorreu no Brasil e no mundo nos três primeiros meses de 2016, tamanho o

dinamismo da vida política contemporânea. A crise brasileira, por exemplo, se aprofundou terrivelmente na esteira do trans-formismo – conceito tão trabalhado por Antonio Gramsci – ou da passagem de partidos ou agrupamentos do campo progres-sista para o campo político oposto. Contudo, não existem apenas retrocessos no país e fortes avanços democráticos também foram concretizados, até como resposta a determinados desmandos. A abertura de um processo de impeachment contra o Governo Dilma no Congresso Nacional é mais uma prova disso. O que se passa na esfera jurídica no Brasil hoje tem muitas semelhanças, por exemplo, com a operação Mani Pulite (Mãos Limpas) que sacu-diu a Itália nos anos 90 do século passado. Com efeito, desde março de 2014 dezenas de empresários, altos funcionários do Estado e políticos corruptos brasileiros começaram a tomar o rumo da cadeia. O próprio ex-presidente Lula não escapou de ter sua casa vasculhada pela Polícia Federal, que o conduziu de forma coercitiva para depor, revelando assim que ninguém está acima das leis. Toda essa situação, diga-se de passagem, teve início com a ida de centenas de milhares de pessoas às ruas de quase todo o Brasil em junho de 2013.

E não só: as apurações vão apontando cada vez mais para o fato de que houve ingerência nas eleições de 2014, manipuladas por um esquema que não vacilou em violar o processo democrá-tico. Aqueles que desviaram recursos públicos – ao menos em condições sistêmicas – parecem estar com os dias contados no Brasil atual. Vale dizer, soou a hora dos valores republicanos. O que acaba com a corrupção não é tanto a luta contra o capita-lismo: havia corrupção também no chamado socialismo real e países capitalistas como a Noruega e a Dinamarca exibem índices baixíssimos de corrupção. O que de fato conta é a luta por mais

1 Este artigo foi publicado inicialmente no site Gramsci e o Brasil (no início de março de 2016), sendo atualizado, no início de abril, quando já se estruturava o pedido de impeachment de Dilma Rousseff.

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5959O Brasil completa sua Revolução Burguesa. E para onde vai?

democracia, isto é, pela afirmação da sociedade civil diante do Estado. No Brasil, tudo indica que a sociedade finalmente saiu à captura do Estado, exigindo mais transparência no trato com a questão pública. Estarreceu o Brasil a publicação, em meados de março, de áudios revelando o quanto a promiscuidade – expressa, até, em linguagem chula, de baixíssimo calão – grassava nas mais altas esferas do poder em Brasília. Urge colocar um ponto final nisso. O Brasil não é uma casa de tolerância.

Sabemos todos que o momento vivido pelo país é extrema-mente delicado. Basta citarmos a incrível violência que campeia nas nossas cidades, o desemprego que atinge as mais diferentes camadas da população e ainda o desencanto crescente com a ladroagem nas diferentes esferas governamentais e nas empresas estatais. Isso, para não aludirmos aos desastres ambientais, como aquele que infelicitou recentemente a histórica cidade de Mariana, em Minas Gerais. A lama que se deslocou pelas centenas de quilô-metros que separam a cidade do oceano Atlântico chega a ter um efeito simbólico, metafórico.

Porém, a sociedade é sempre maior que o Estado e nós sabere-mos encontrar uma saída coletiva para a crise que nos assola. Aliás, esse movimento já começou, a partir justamente da abertura do processo de impeachment contra o PT e seus aliados nessa desas-trosa administração Dilma e das tratativas para a formação de um governo composto pelas mais diferentes forças do campo democrá-tico. Vale dizer, apesar de o risco de decomposição social estar presente entre nós, podemos destacar, por outro lado, que o processo de afirmação da cidadania avança de forma inexorável. Um quadro difícil de entender, até. Mas uma coisa é certa: o Brasil vive hoje uma verdadeira revolução cidadã, com o início do fim do Estado privati-zado pelos grandes grupos econômicos, ou do patrimonialismo de corte praticamente feudal, de um lado; e, de outro, com o aumento da consciência popular no tocante a fazer prevalecer seus direitos à educação, saúde, segurança e bem-estar. É como se a Revolução Burguesa finalmente se completasse, o país vivenciando uma espé-cie de 1789 em 2016, devidamente atualizado. Não por acaso os fran-ceses tratavam-se uns aos outros por citoyens – ou cidadãos – no período da Revolução. Fui firmando esse juízo em minhas andanças pelo país e não apenas pelas leituras.

Curiosamente, a Revolução Burguesa no Brasil – uma Revolu-ção Burguesa sem Robespierre e o Terror, diga-se de passagem, afirmando-se pela via jurídica – surpreendeu o Partido dos Traba-lhadores, que se posicionou à direita do liberalismo clássico. Ou

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6060 Ivan Alves Filho

se preferirmos: a Revolução Burguesa colocou-se à esquerda do partido que se reivindicava da luta dos trabalhadores, em alguns momentos fazendo até mesmo a apologia do socialismo (nunca definido, diga-se também). Em realidade, o PT assumiu uma série de práticas do velho coronelismo, travestido em política de Estado, como o assistencialismo, escancarando seu viés semifeudal. Ironias da História, seguramente. Na verdade, vai se firmando a convicção de que o despertar da cidadania – com o consequente aprofundamento de instrumentos de intervenção tais como uma mídia vigilante, o crescimento do papel das redes sociais e da própria transparência administrativa – é central para o pleno florescimento da democracia.

Em outras palavras, é preciso empoderar o cidadão comum em seu local de estudo, trabalho e moradia, em plena ligação com as esferas institucionais. O que se nota é que a autonomia ainda vai dar o que falar neste século: surge com força um tipo de cida-dão que não se conforma em ser apenas governado, isto é, alguém que deseja igualmente opinar e mesmo influir nos assuntos gover-namentais a partir da sua própria realidade. Nesse sentido, a democracia não deve se limitar aos representantes institucionais do povo, podendo ainda se alastrar para o conjunto da sociedade, ao seu cotidiano. Da democracia dos políticos profissionais à democracia de toda a cidadania e de toda a militância – este o desafio maior da contemporaneidade, talvez. Pois não é possível administrar mais à moda antiga e uma nova governança se impõe. Partidos políticos continuam sendo necessários (até porque não apareceu nada capaz de substitui-los), todavia é preciso renovar as formas de participação sempre. Ou, se considerarmos melhor, democratizar um pouco mais os próprios partidos.

Há muitas mudanças no ar na América Latina. E elas são positivas. O populismo local, cada vez mais aparentado ao fascismo, vem recuando em países como a Argentina, Brasil, Bolí-via e a Venezuela. Sintomaticamente, o Chile e o Uruguai – nações onde a esquerda democrática, de base socialista ou comunista, sempre teve um certo peso político – escaparam dessa prática demagógica. O populismo opera, justamente, a partir do vácuo deixado pela esquerda democrática, identificando-se, cada vez mais, com aquilo que Karl Marx e Friedrich Engels no livro A ideo-logia alemã denominaram por lumpenproletariat, composto por indivíduos sem vínculo social maior. Como sabemos, a lógica dos marginais não é aquela dos incluídos socialmente, que passa pela prática da negociação. Em outros termos, os marginais traba-

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lham com a noção do extermínio: o adversário político é, portanto, um inimigo e como tal precisa ser varrido do mapa. Com o inimigo não se negocia, não é verdade? As SS alemãs procediam dessa maneira e não por acaso alguns dos responsáveis pelo Partido Nazista eram oriundos do mundo do crime. Vinham do lumpen – ou trapo, em alemão –, justamente. Os kapos, ou responsáveis pelos campos de concentração nazistas, eram recrutados entre os prisioneiros de direito comum.

Infelizmente, a História parece se repetir em parte e o funda-dor de um movimento extremista de direita na Alemanha, o Pegida, é um ex-condenado por furto e tráfico de drogas. Nessa linha de cumplicidade com o crime, diversas autoridades vene-zuelanas já foram acusadas de controlar o comércio de drogas e o próprio presidente da República teve dois sobrinhos presos por ligações com o narcotráfico, em 2015, no Haiti. O ex-chefe de gabinete de Cristina Kirschner, Aníbal Fernández, foi acusado de controlar o tráfico na Argentina. O poderio dos traficantes avança de forma impressionante no México. Manuel Noriega, ex-militar e ex-ditador do Panamá, com notórias ligações com a CIA e veleida-des populistas, se encontra preso desde 1990 por envolvimento com o comércio de cocaína e em diversos assassinatos de oposito-res. Na Bolívia, vários mandatários tiveram ligações com o mundo das drogas. Formou-se assim uma espécie de burguesia do crime na América Latina e o pior é que, ao propalar a ideia de que gover-nos populistas são governos de esquerda ou progressistas, essas para lá de duvidosas lideranças chamuscam a própria prática de esquerda no subcontinente. Da mesma forma que o autoritarismo político, a escalada da inflação e a corrupção financeira, a força crescente do crime organizado na América Latina é uma ameaça ao Estado Democrático de Direito, a duras penas conquistado pelos povos da região. Ultranacionalismo, lideranças carismáti-cas buscando contato direto com o “povo” e os “pobres”, corpora-tivismo, corrupção desenfreada, instrumentalização dos sindica-tos e manipulação demagógica dos anseios das massas têm endereço certo: fascismo.

Há motivos, no entanto, para algum regozijo, com as derrotas eleitorais recentes de Cristina Kirschner, Evo Morales e Nicolás Maduro, conforme apontamos acima. Fora isso, o restabeleci-mento de relações diplomáticas entre Cuba e os Estados Unidos em 2014, assim como o avanço dos acordos de paz para pôr fim à guerra civil na Colômbia, parecem indicar que estamos final-mente assistindo ao início de um processo político mais amadure-

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cido e consequentemente menos sujeito a manipulações por parte do autoritarismo na região. A histórica viagem do presidente Barack Obama a Havana contribuiu para melhorar substancial-mente o clima no subcontinente. Na Argentina, Obama como que se superou, rendendo homenagem às milhares de pessoas assas-sinadas durante a ditadura militar naquele país. A lógica oriunda da guerra fria parece estar com os dias contados nas Américas. Já não era sem tempo. Entretanto, é preciso cautela e não pode-mos descartar artimanhas de toda sorte por parte das forças autoritárias em países como a Venezuela e a Argentina. Por seu turno, Evo Morales, na Bolívia, parece ter entendido o recado das urnas, que lhe negou um novo mandato. O verdadeiro sentido desses fatos recentíssimos que ocorrem na América Latina é a reto-mada do processo democrático ou uma espécie de adeus ao popu-lismo. E aqui cabe uma observação: o termo populista, que migrou para a América Latina a partir da experiência dos narodniks russos no século XIX, não se coaduna no entanto com a prática política em curso no subcontinente, a qual se assemelha muito mais à experiência do fascismo europeu.

Falando mais claramente ainda, pensamos que nenhuma democracia é de direita e nenhuma ditadura é de esquerda. Quanto mais examinamos as ditaduras, mais valorizamos o papel das instituições na contenção da violência. É a velha batalha entre civilização e barbárie na marcha da História. O Estado Democrático de Direito tem que ser para todos, uma vez que é uma conquista da Humanidade, atravessando o sistema de clas-ses e os espaços nacionais. Não há razão para que as conquistas obtidas nos últimos 150 anos – direito de voto, liberdade de reunião e de opinião, entre outras – não sejam mantidas e mesmo ampliadas hoje. Se o povo adquiriu determinados direitos demo-cráticos sob o sistema capitalista, isso só reforça a necessidade de incorporá-los a um projeto de sociedade que se quer ainda mais avançado, sob pena de se praticar uma incoerência ou mesmo um retrocesso. A História é sempre um processo e nunca é demais lembrar que a experiência do século XX demonstrou que um dos grandes adversários da esquerda é o autoritarismo – venha de onde vier. O outro grande adversário é o dogmatismo – conforme já assinalara há várias décadas o saudoso crítico literário Otto Maria Carpeaux, em texto que enaltecia a lucidez de outro crítico extraordinário, Astrojildo Pereira.

O melhor seria que uma nova ordem mundial democrática seguisse à risca os ideais de justiça internacional esboçados pelo

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Tribunal de Nuremberg, entre 1945 e 1946, para julgar os crimes do nazismo. Faltou, sem dúvida alguma, um Tribunal de Nurem-berg que julgasse igualmente a máquina de guerra pilotada por Richard Nixon no Vietnã. Contudo, a existência, desde 1998, de um Tribunal Penal Internacional, criado em Roma, foi um grande passo no julgamento de atos como os praticados na antiga Iugos-lávia. Ainda antes de o ano de 2015 terminar, o Tribunal Regional de Frankfurt condenava, segundo a agência de notícias Deutsche Welle, um político ruandês à prisão perpétua, recusando-se a devolvê-lo às autoridades de Ruanda, temendo que ele pudesse vir a ser solto uma vez em seu país. Também os crimes hediondos cometidos pela ditadura de Bashar al-Assad, na Síria, merecem a atenção da consciência e do juízo democráticos internacionais.

Tudo indica que caminhamos para o entendimento de que os direitos humanos não têm fronteira nacional e que a integridade das pessoas está acima da lógica dos Estados. Evidentemente, ninguém pode viver isolado apenas dentro sua própria cultura, mas direito à diferença não significa tampouco tolerância para com situações de opressão. Afinal, tortura nunca foi cultura. Ainda que tentando se esconder sob o manto da política, facínora é facínora, seja ele Adolf Hitler, Muammar Khadafi, Papa Doc, Chiang Kai-shek, Idi Amin Dada, Pol Pot, Anastacio Somoza, Augusto Pinochet ou Bashar Al-Assad, para ficarmos apenas em alguns notórios delinquentes do nosso tempo. Em outras pala-vras, os limites da nossa atuação nos parecem bem delineados e não há a menor compatibilidade entre democracia e racismo, avil-tamento da condição feminina ou ainda propaganda de propostas fascistas. O sistema democrático não pode compactuar com propósitos anti-humanistas, sob pena de cavar sua própria aniquilação, banalizando o mal, ou seja, a mediocridade. Acredi-tamos na existência de uma razão humana universal e que fora dela não há saída possível.

Evidentemente, pertencemos a um mundo de nações, ainda que cada vez mais globalizado. E tudo que acontece no plano internacional nos afeta enormemente. É verdade que a situação em algumas partes do mundo vem se complicando, com os aten-tados terroristas perpetrados por mercenários e fanáticos, tanto no Oriente Médio quanto na África subsaariana e na Europa Ocidental. O alvo desses ataques é a própria vida das pessoas, além da democracia e da cultura humanista obviamente. O Papa Francisco tem alertado constantemente a opinião pública para as ameaças que pairam sobre o processo civilizatório no mundo.

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Toda vez que as bases desse processo são atacadas, a barbárie se apresenta. Assim, democracia, humanismo, coexistência pacífica entre os povos, direito de ir e vir são conquistas da Humanidade e não de uma determinada região ou de um dado sistema político. Ou muito menos de uma classe social. Afora alguns mercadores de armas, ditadores e grupos terroristas covardes, alguém teria dúvida em escolher entre a paz e a guerra?

Mas precisamos também admitir que muitas vezes o horror está dentro de nós mesmos e os riscos de um conflito generalizado são reais. No seu belíssimo e oportuno relato intitulado Infiel, Ayaan Hinsi Ali, uma corajosa intelectual feminista somali, foi direto ao assunto, criticando aqueles que pretendem impor a centenas de milhões de seres humanos de hoje “a mentalidade do deserto árabe do século VII”. Evidentemente, isso não pode dar certo nem para quem vive no deserto árabe no século XXI. Têm culpa nesse cartório não somente o autoproclamado Estado Islâ-mico como também as intervenções militares promovidas pelas potências expansionistas e, ainda, algumas ditaduras sanguiná-rias que resistem aos ventos libertários que assolam o Oriente Médio. Tenderíamos a dizer que a batalha política atual implica evitar que a Síria seja a Espanha da Terceira Guerra Mundial. Como sabemos, a aliança da União Soviética – então se reivindi-cando do socialismo – com os Estados Unidos – país ainda hoje símbolo do liberalismo – foi fundamental para barrar o nazismo e o fascismo no mundo, possibilitando estancar a escalada terrível da Segunda Grande Guerra. Se os homens então no poder na União Soviética se aliaram aos liberais, mais uma razão para que aqueles que se reclamam da esquerda – hoje infinitamente menos influentes, por sinal, do que naquela época – percebam a impor-tância histórica de um acordo com os liberais de hoje para evitar o pior. Convém lembrar que o dirigente comunista búlgaro Georgi Dmitrov foi o grande artífice dessa política de alianças, cada vez mais necessária e atual.

Sob esse prisma, nos parece fundamental a defesa que o Partido Democrático da Itália faz do espaço europeu, por exemplo. De qualquer forma, os dados estão lançados e o que não falta são ingredientes explosivos no tabuleiro. Todo o cuidado é pouco: posturas reacionárias e belicistas da Rússia de Vladimir Putin, surgimento das candidaturas Trump e Cruz beirando a psicopa-tia nos Estados Unidos, avanço das ações terroristas no plano internacional, desempenhos eleitorais surpreendentes da extrema-direita na Escandinávia e na Suíça, abalos no comporta-

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mento da economia chinesa, problemas com a integração de imigrantes na Europa Ocidental, na esteira do desmoronamento do mundo colonial e das dificuldades que as democracias ociden-tais tiveram de incorporar esses novos cidadãos. Dados divulga-dos pela ONU, em dezembro de 2015, indicavam que havia 60 milhões de refugiados no mundo. Uma catástrofe humanitária, realmente, em meio à farra que se promove com o dinheiro dos povos nos paraísos fiscais. Uma excelente notícia, contudo, foi a derrota da proposta racista reunida em torno da Frente Nacional na França, nas eleições regionais de 2015. A provável – e por nós para lá de desejável – vitória do Partido Democrata nos Estados Unidos nas eleições presidenciais de 2016 certamente dará algum alento ao quadro internacional também. O recuo de Vladimir Putin na questão da Síria – caso realmente se confirme a partir da retirada parcial das tropas russas do país – representa ainda um passo importante para o futuro da paz no Oriente Médio e no mundo. Outra boa notícia decorre do fato de que as relações entre o Ocidente e o Irã tendem a se normalizar. E nem é preciso lembrar novamente o quanto a estabilidade na União Europeia é condição básica para a própria estabilidade mundial.

A democracia, até para poder se firmar como um valor de fato universal, como sonhou o líder comunista italiano Enrico Berlin-guer, tem de estar em permanente construção, alimentando-se da seiva de todas as lutas travadas pelos homens, em todos os quadrantes. A busca por um novo processo civilizatório não pode prescindir das liberdades cívicas e dos direitos e deveres de cada um de nós. Isso é certo. Mas também é correto apontar que se faz necessário repensar a organização da vida econômica sob outros moldes. Constatar, por exemplo, que a polarização não se dá entre a propriedade estatal, de um lado, e o mercado ou a propriedade privada dos grandes grupos econômicos, de outro. Isso porque a noção de propriedade pública e do trabalho por conta própria começa a abrir espaços, sinalizando para novas formas de se viver e produzir em sociedade. É necessário entender que o mercado é um dado da economia e não um sinônimo de modo de produção capitalista. E que é possível reinventá-lo, ou seja, pensar em um mercado diferente desse que aí está. No embate entre Estado e mercado, a sociedade detém a palavra final. E mercado algum pode se sobrepor à sociedade. As forças progressistas têm de estar antenadas com esse novo tempo, retirando todas as consequên-cias advindas disso. Um sistema econômico voltado unicamente para o lucro conduz a sociedade humana a um impasse.

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Centrando sua crítica à visão utilitária da cultura, um intelec-tual como Nuccio Ordine tem batido ultimamente nessa tecla com muita propriedade. Desemprego em massa no mundo, instrumen-talização da cultura, danos terríveis ou até irreversíveis causados ao meio ambiente, lucros exorbitantes na esfera financeira – tudo isso vai tornando as sociedades humanas irrespiráveis, inviáveis. A luta pela igualdade de oportunidades econômicas e culturais areja a própria estrutura política pois a Democracia é sempre uma totalidade e não existe uma liberdade separada das demais. O avanço da automação, como salientamos, tem um potencial transformador extraordinário, se encararmos a economia como algo voltado para a satisfação das necessidades das pessoas e não apenas do grande capital. Entendida assim, a automação é a base técnica da sociedade sem classes. Ela contribui para implodir o sistema de classes sob o capitalismo da mesma forma que, em seu tempo, a Revolução Industrial abrira a via para a superação defi-nitiva do sistema de ordens sob o feudalismo.

Como nos revelam os quadros de Marc Chagall, os filmes de Vittorio De Sica, os romances de Maximo Górki, a arquitetura de Oscar Niemeyer ou as canções de John Lennon, o sonho é funda-mental em nossa existência. Vida é risco, e não há motivo para que nos identifiquemos com Enrico Brentani, personagem de Italo Svevo em Senilidade, “que ia atravessando a vida cauto, deixando de parte todos os perigos mas também todo o deleite, toda a feli-cidade”. O engajamento é o outro nome do sonho. Aprendemos com Thomas Mann o quanto é dúbio, para dizer o mínimo, um comportamento pautado pelo “intimismo à sombra do poder”. Daí a necessidade de contribuirmos para a reconstrução da esquerda, até como forma de revitalizar o próprio Humanismo.

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A incrível fábrica de mitos

Sérgio C . Buarque

O Partido dos Trabalhadores e o seu líder máximo, o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, têm demonstrado uma especial e insuperável capacidade para fabricar

mitos utilizando com maestria imagens e símbolos em narrati-vas fantasiosas, exageradas e distorcidas de eventos e fatos reais. Mito é a imagem simplificada, exagerada e ilusória dos fatos que, sendo aceita pelos grupos humanos, passa a constituir explica-ção da realidade (segundo Aurélio Buarque de Holanda). Como tal, os mitos resistem aos fatos, aos dados empíricos das estatís-ticas oficiais e mesmo aos argumentos consistentes e relevantes.

Na história recente do Brasil, alguns mitos fabricados pelo PT passaram a constituir verdades definitivas e indiscutíveis para seus militantes e simpatizantes, para algumas organizações sociais e para parcela não desprezível da população (e mesmo para parte da imprensa internacional e alguns intelectuais estrangeiros), apesar dos fatos, dados e análises que vêm demons-trando, nos últimos anos, o evidente fracasso do governo petista e a desmoralização ética do partido e seus principais líderes. Para a maioria da população, parte significativa dos que votaram no PT, iludidos por estes mitos, estas narrativas fantasiosas, estão desmoronando, mas ainda resistem fortemente arraigados em parte da opinião pública, mas não sobrevivem às evidências e aos fatos da história. A fábrica de mitos do PT está na iminência de fechar as portas por falta de suprimento e desmoralização no mercado das ideias.

Os mitos confundem e poluem o debate político, criam fanatis-mos e comportamentos irracionais que podem levar à violência e, no mínimo, a narrativas irreais que alimentam decisões equivo-cadas e perigosas. Desfazer mitos políticos é tão importante quanto difícil na medida em que deve enfrentar imagens e narra-tivas simples e ilusórias ainda pouco permeáveis a fatos reais e argumentos consistentes. Mas, esta crítica dos mitos políticos é uma tarefa fundamental para orientar um debate, para conhecer melhor a realidade e, desta forma, contribuir para a interpretação da realidade e para despoluir os debates e os processos decisórios que decidem o presente e o futuro do Brasil.

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Primeiro mito

As políticas sociais dos governos do PT, especialmente a distri-buição de renda do “Bolsa Família”, promoveram uma drástica redução da pobreza e desconcentração de renda, tirando milhões de brasileiros da condição de miséria . Os governos petistas reali-zaram a maior redistribuição de renda da história mundial .

Não se pode negar que, efetivamente, tem havido no Brasil uma redução forte da pobreza e das desigualdades nas últimas décadas, confirmada pelos dados e análises dos especialistas. Na verdade, quase todos os indicadores sociais, incluindo pobreza e desigualdades sociais, vêm melhorando continuamente, desde a década de 80, mesmo sem qualquer política explicita e ainda em momentos de alta inflação e baixo crescimento, quase como um processo inercial. A redução da pobreza ganhou força a partir de 1993 pelo efeito combinado de três fatores: queda da inflação que corroía a renda da população pobre, moderado crescimento da economia a partir de 2004, e mudança demográfica com redução do tamanho médio das famílias.

A primeira grande queda da pobreza e das desigualdades no Brasil ocorreu bem antes do governo do PT, com o Plano Real, por conta da redução drástica da inflação, melhoria decorrente, portanto, do comportamento da economia e não de políticas sociais, mesmo que não se possa ignorar iniciativas de formação de uma rede de proteção social pelo governo de Fernando Henri-que Cardoso. A taxa de pobreza extrema no Brasil caiu em torno de 4,41% ao ano, de 1993 a 2002 (período de maturação do Plano Real) e a desigualdade social também declinou lenta mas conti-nuamente, de 1993 a 2002.

No governo Lula, a melhoria dos indicadores sociais, princi-palmente a redução da pobreza, também tem mais a ver com a economia que com políticas de assistência social como o Bolsa Família. A continuidade da política macroeconômica pelo presi-dente Lula, operando com um superávit fiscal maior do que no governo anterior, manteve a inflação em patamares baixos e criou as bases para um crescimento econômico médio. Os seis primei-ros anos da gestão petista contaram com excepcionais condições externas de acelerado crescimento econômico, fluxo amplo de capital e elevada demanda de commodities.

O crescimento da economia brasileira, nenhum milagre econô-mico, diga-se de passagem (taxa média anual de 4%, de 2002 a 2010), coincidiu com o aprofundamento de importantes mudan-

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ças demográficas: baixa elevação da População em Idade Ativa e queda significativa do tamanho médio das famílias.

Desde 1991, a PIA-População em Idade Ativa no Brasil (acima de 15 e abaixo de 65 anos) vem crescendo a taxas fortemente decli-nantes: de 2,6% ao ano (de 1991 a 2000), caiu para 1,9% nos cinco anos seguintes (de 2000 a 2005) e para apenas 1,2% (de 2005 a 2010). Mesmo considerando que parte desta população apta para o trabalho não busca emprego (cerca de 50% da PIA busca trabalho, ou seja, constitui a PEA-População Economicamente Ativa) é deste segmento etário que emerge a oferta de mão de obra no país. Tama-nha redução no ritmo de expansão da PIA explica o aparente misté-rio de queda do desemprego em um período de crescimento mesmo moderado da economia (4% no mesmo período): a oferta de mão de obra cresce bem menos que a demanda, o que promove também o aumento do salário real do trabalhador. O “exército industrial de reserva”, destacado por Marx no século XIX, vem declinando de forma acelerada no Brasil, retirando a pressão para baixo que exerce na formação dos salários.

Ao longo do período 1991/2010, enquanto a população apta para o trabalho crescia cada vez menos, a economia melhorava aos poucos o seu desempenho. E como a produtividade do traba-lho praticamente estacionou no Brasil, o desemprego caiu e os salários reais cresceram pelo jogo do mercado de trabalho, de forma completamente independente de políticas.

A esta alteração na estrutura etária da população do Brasil corresponde uma drástica diminuição da fecundidade (número muito menor de filhos) e, como decorrência, do tamanho médio das famílias brasileiras. Em 1991, nossas famílias tinham, em média, 2,9 filhos (eram 5,3, em 1970), declinando para 2,4, em 2000, e apenas 1,9 filhos, em 2010, o que corresponde a famílias com média de apenas 3,3 membros. Nestas últimas décadas, segundo o demógrafo mineiro José Alberto Magno de Carvalho (matéria da Piauí, nº 80), a redução da fecundidade e do tamanho das famílias foi mais acentuada na população pobre, mesmo porque este movimento já tinha ocorrido antes entre os mais ricos. De modo que a renda domiciliar per capita entre os pobres cresceu mais que na média da população, na medida em que o denominador da relação – tamanho da família – despencou ao mesmo tempo em que o salário real também cresceu.

Como resultado destes dois movimentos – aumento do salário real e redução do tamanho das famílias – a renda domiciliar per

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capita cresceu bastante (maior renda para menos pessoas na famí-lia), levando ao declínio da pobreza e das desigualdades de renda. Conclusão: o silencioso processo de mudança demográfica levou à melhoria dos indicadores sociais independente das políticas sociais. O problema é que esta mudança não aparece visível nem é propagada pela máquina de construir mitos dos governos que insiste em dizer que o milagre está no programa Bolsa Família e nas transferências de renda. E como o fenômeno demográfico não é perceptível pela opinião pública, tornou convincente o mito do “milagre” dos governos petistas Tanto é assim que, nestes últimos dois anos, a recessão econômica (estagnação em 2014 e queda de 3,8% do PIB em 2015) jogou no desemprego cerca de 10 milhões de pessoas, o nível médio da renda caiu e a inflação cresceu, corroendo a renda da população.

Segundo mito

O Nordeste foi a região que mais se beneficiou das políticas sociais dos governos do PT, registrando maior crescimento econô-mico, recebendo mais assistência social que teria promovido a redução da pobreza nordestina .

O PIB-Produto Interno Bruto do Nordeste vem se mantendo, ao longo das décadas, inclusive nos governos do PT em torno de 13% do PIB nacional (chegou a 13,6%, em 2012); e como a população nordestina cresce mais que a média do Brasil, o PIB per capita regional continua representando menos da metade do PIB per capita brasileiro. Evidente que uma mudança de peso nesta posi-ção relativa do Nordeste na economia e no PIB per capita do Brasil demanda muito mais tempo que os 12 anos do governo do PT.

Durante as últimas décadas, incluindo o período dos governos do PT, a pobreza vem caindo no Nordeste, acompanhando de perto o declínio no país e em todas as outras macrorregiões. Ocorre, contudo, que apesar do Nordeste ter recebido bem metade dos benefícios do Bolsa Família, até porque tem a metade da popula-ção pobre, a pobreza nordestina caiu menos que a média do Brasil e mesmo das outras macrorregiões, excetuando a Região Norte que teve o pior desempenho. Com efeito, de 2004 a 2014, o percen-tual de famílias pobres no Brasil caiu cerca de 8,7% ao ano mas no Nordeste a redução foi levemente inferior (8,3% ao ano). Quando se compara com outras regiões, o mito do PT desmorona: a redu-ção da pobreza na região Sul foi da ordem de 12,1% ao ano, no Sudeste a queda foi de 10,9% ao ano, e o Centro-oeste registrou um declínio de 14,2% ao ano.

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Terceiro mito

O crescimento econômico brasileiro de 2003 a 2010 foi resultado da política do presidente Lula, sem qualquer relação com o que foi implementado no governo anterior e independente do grande boom da economia internacional até 2008 . E o Brasil soube lidar bem com a crise internacional iniciada em 2008 graças à política anticíclica de estímulo ao consumo da população e da ampliação do crédito . Entretanto, segundo o mito, as dificuldades econômicas do governo Dilma são totalmente decorrentes da crise externa .

Para o mito que mostra o PT grande gestor da macroeconomia, a economia externa não teve nenhuma relevância no sucesso econômico de 2004 a 2010, mas passou a ser determinante na crise e no desmantelo da economia brasileira nos anos recentes. Na verdade, o desempenho da economia mundial condicionou decisivamente o crescimento da economia brasileira na primeira década do século como está influenciando a crise brasileira atual, embora a evolução da economia (pra melhor ou pior) tenha sido resultado também das condições endógenas.

O desempenho positivo no governo de Lula só foi possível pela sua decisão correta e corajosa, considerando o discurso expansio-nista e estatizante dominante no PT, de manutenção da política macroeconômica – superávit fiscal, regime de metas de inflação, e câmbio livre – e das mudanças institucionais realizadas antes – privatização, agências reguladoras, e lei de responsabilidade fiscal – fatores determinantes da estabilidade econômica e da confiança aos agentes econômicos. A manutenção das políticas e a maturação destas ao longo de mais dez anos criaram o ambiente macro e microeconômico interno para aproveitamento das condi-ções excepcionais da economia mundial: alta liquidez, elevada demanda de commodities, termos de troca muito favoráveis ao Brasil e entrada líquida de capital.

Nos dois primeiros anos da crise, o Brasil reagiu bem e não afundou na crise mundial, teve uma pequena queda do PIB em 2009 e uma recuperação forte em 2010 mas iniciou desde 2011 um ciclo de retração que se aguçou em 2014 e 2015. O Brasil conseguiu moderar o impacto da crise global nos primeiros anos graças a dois fatores combinados: os fundamentos macroeconô-micos, e a liquidez do sistema bancário e financeiro do Brasil. Este último aspecto – liquidez do sistema bancário e financeiro do Brasil – foi obtido, lá atrás, pelo Proer-Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacio-

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nal (duramente criticado pelo PT no governo de Fernando Henri-que Cardoso), fundamental para moderar o impacto da crise externa, considerando que o desequilíbrio mundial teve origem na completa desorganização do sistema financeiro.

Depois de atravessar os primeiros anos da crise mundial com relativa estabilidade e mesmo crescimento, a partir de 2011 a economia brasileira iniciou um processo de deterioração e retra-ção. Precisamente quando começava uma recuperação da econo-mia global, o Brasil afundava; em 2015 nossa economia foi uma das poucas com crescimento negativo, na lamentável companhia da Venezuela. Embora as condições externas não sejam tão favorá-veis quanto na primeira década, o desempenho brasileiro vai na direção contrária da economia mundial. A crise atual da economia brasileira decorre diretamente dos equívocos e voluntarismos da chamada “nova matriz econômica” com expansão do gasto, promo-ção de mais consumo, descontrole e leniência com o déficit público, manipulação de tarifas e represamento artificial da inflação.

Quarto mito

O PT e os seus governos são representantes da esquerda e, sendo esquerda é bom, e todos que criticam e se opõem às suas políticas são de direita e, sendo direita são representantes do mau .

O recorrente discurso “Nós e Eles”, utilizado à exaustão pelas lideranças petistas e seus aliados, carrega um maniqueísmo simplista e autorreferente na medida em que tentam demonizar seus adversários com a divisão dos brasileiros entre os bons e os perversos. Além de tentar diluir as enormes nuances de visão de mundo, interesses e posturas políticas na população brasileira e nos políticos, este discurso mistifica o PT com destaque para o seu líder messiânico. Apresentados como os representantes do bem e da ética, os fatos recentes desmoralizaram o mito do PT que se limita agora a reclamar que não são os únicos corruptos do Brasil.

A diferença esquerda-direita não parece muito pouco apro-priada para analisar o espectro político-ideológico do Brasil contemporâneo. Quem é esquerda neste momento no Brasil? Pode ser dito, genericamente que esquerda é a tendência política compro-metida com a redução das desigualdades sociais. Além de muito pouco, o conceito deixa de considerar a diferença entre os fins – redução das desigualdades sociais – e os meios, medidas e progra-mas que promovam mudança relevante e consistente na sociedade.

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A prática dos governos do PT, centrada nas políticas de distribui-ção de renda, está muito longe de atacar as causas estruturais das desigualdades e da pobreza. Os seus programas, principalmente o “Bolsa Família”, atuam nos efeitos e não nas causas e, desta forma, não garantem a superação da pobreza e das desigualdades.

A desigualdade de renda não é causa e sim a consequência de uma desastrosa disparidade de oportunidades na sociedade. A fonte primária das desigualdades no Brasil reside no abismo que separa a qualidade das escolas públicas, frequentadas pela maioria esmagadora da população, das escolas particulares. Os que não podem frequentar uma escola particular de qualidade estão condenados à vulnerabilidade e deficiência de formação profissional, desenvolvimento dos seus talentos e vocações e da construção de uma vida digna e confortável.

O fundamental da perspectiva de um novo socialismo (nova esquerda) é a eliminação, no longo prazo, das desigualdades de oportunidades na sociedade e não apenas a “redução das desigual-dades de renda”. A diferença entre esquerda e o populismo assis-tencialista do PT reside nos meios para eliminação (e não apenas redução) das desigualdades de oportunidades na sociedade. A sociedade desejada é aquela na qual os cidadãos, desde o nasci-mento, possam ter acesso igualitário ao desenvolvimento das suas potencialidades, o que significa, em primeira linha, acesso à educa-ção pública igualitária de qualidade. A igualdade de oportunidades não significa igualdade de renda e sim igualdade de condições sociais que permitam explorar suas capacidades para a sua forma-ção como cidadão, o desenvolvimento dos seus talentos e vocações e a construção de uma vida digna e confortável.

Para isso, são necessárias mudanças estruturais e radical orientação dos recursos públicos em larga escala para a redistri-buição de ativos sociais que promovam a igualdade de oportuni-dades: Educação pública de qualidade (ativo conhecimento), Qualificação profissional (ativo tecnológico) e Saneamento básico (ativo sanitário). Distribuição de renda com os pobres, como o “Bolsa Família”, mesmo que possa ser aceitável como pequeno e transitório alívio da pobreza, não promove nenhuma transforma-ção efetiva da realidade social e econômica capaz de eliminar esta condição indigna de milhões de brasileiros. Na verdade, estes programas compensatórios perpetuam a pobreza e as desigualda-des sob o mito da generosidade de esquerda que termina contri-buindo para o populismo que propaga a figura de Lula como o “pai dos pobres” no velho estilo messiânico.

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IV. Economia e Desenvolvimento

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Autores

José Osmar Monte RochaContador, auditor, analista de Controle e Finanças do Ministério da Fazenda (aposentado) e professor da Universidade do Distrito Federal (UDF) .

Laécio Noronha XavierAdvogado, doutor em Direito Público/UFPE, mestre em Direito Constitucional/UFC, especialista em Economia Política/UECE e professor de Direito Internacional Público/Unifor e Ciência Política/FCRS .

Ricardo AbramovayProfessor titular do Departamento de Economia da Faculdade de Economia e Administração da USP, autor de Muito Além da Economia Verde.

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As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social

Laécio Noronha Xavier

O Brasil assiste estupefato, em 2016, a recessão econômica e as contraditórias tentativas de ajustes patrocinadas pelo governo federal. O primeiro desses ajustes, fiscal, com

corte de investimentos sociais e aumento de impostos visando equilibrar as contas públicas e diminuir o déficit nominal, mas sem manter o superávit primário e impedir a queda no PIB. O segundo, “parafiscal”, com redução do crédito público subsi-diado pelo Tesouro, mas, ao mesmo tempo, lança novas linhas de crédito sem que haja demanda de tomadores. O terceiro, cambial, em face da alta do dólar, visando deter o déficit em conta-corrente e elevar o superávit comercial, somente conquistado com a queda de 19% do volume do comércio exterior, em especial as importa-ções. O quarto, de contenção inflacionária, dada a correção dos preços administrados que ficaram congelados, apesar da redução do consumo e alta no desemprego. E o monetário, em que o Banco Central não pode usar de estímulos para reativar a economia (diminuir juros, ampliar crédito ou liberar recolhimento compul-sório dos bancos), obrigando-se a aumentar os juros pelo cresci-mento da inflação, queda de arrecadação e alta dívida bruta.

Todos estes fatos juntos, além do crescimento mundial baixo, a China desacelerando seu PIB, os preços das commodities tendo caído e os Estados Unidos subido sua taxa de juros e, por consequência, elevado o dólar, jamais justificarão a atual crise econômica brasi-leira, que foi largamente anunciada e era perfeitamente evitável. Mas, o governo que semeou ventos com desenfreada gastança num passado recente, atualmente colhe uma “tempestade perfeita”, já que

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continua a gastar mais que arrecada e o Estado demonstra não caber mais no orçamento. Lista-se pelo menos dez erros dos gover-nos Lula e Dilma como um breve diagnóstico da maior recessão econômica dos últimos 35 anos no Brasil.

Aponta-se como primeiro erro a subestimação da crise dos subprimes dos EUA (2008) pelo presidente Lula, que a tratou como “marolinha”. Ao sentir a força da queda do PIB em 2009 (-0,3%) em relação a 2008 (5,2%), o governo estimulou o crescimento da economia pelo consumo, ampliação do crédito, desoneração de impostos para bens de consumo (carros e eletrodomésticos), concessão de reajustes generosos ao funcionalismo e mais aumen-tos do salário mínimo, com indexação dos benefícios de menor valor para aposentados. O resultado imediato foi espetacular: crescimento de 7,5% do PIB em 2010. Contudo, Lula exagerou nas doses da medida anticíclica e a manteve até as eleições/2010, com Dilma não corrigindo os excessos e levando à insuficiência do caixa do Tesouro nos anos seguintes. (LEITÃO, 2015).

Indica-se como segundo erro a redução artificial dos juros. Dilma forçou o Banco Central a reduzir os juros para atender promessas de campanha, com a taxa Selic caindo de 12,50%, em julho/2011, para 7,25%, em março/2013, e daí subindo sucessi-vamente até 14,25%, em novembro/2015 (LEITÃO, 2015). Taxa de juros baixos é objetivo desejável, mas caso seja reduzida, sem atentar para a autonomia do Banco Central, pode acabar elevando a inflação, e posteriormente, ampliar-se, uma vez que em março/2016 ainda permanecia em 14,25%.

Define-se como terceiro erro a inflação fora da meta. Desde 2010, ela permanece acima da meta oficial (4,5%), como demonstra o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), o indicador oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE): 2010 – 5,90%; 2011 – 6,50%; 2012 – 5,83%; 2013 – 5,91%; 2014 – 6,41%. E, em 2015, o índice fechou em dois dígitos (10,67%). Outra razão da elevada inflação foi o represamento pelo governo dos reajustes da energia e da gasolina entre 2012-2014, implicando no estouro em 2015 de seu volume reprimido. Portanto, o governo federal foi pouco cuidadoso com a meta de inflação, com o limite da tolerância se transformando no teto da meta: 6,5%. (FUCS, 2016).

Evidencia-se como quarto erro a administração temerária da Petrobras e seu uso ilegal político e econômico, repleto de ilicitu-des. Medidas adotadas (ou omissões) pelos presidentes Lula e

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Dilma foram desastrosas para a empresa e o país, entre as quais (LEITÃO, 2015):

a) investimentos realizados para agradar aliados políticos, como as refinarias Premium I e II (Maranhão e Ceará) que vira-ram prejuízo, e a Refinaria Abreu e Lima (Pernambuco) em parceria com a empresa venezuelana PDVSA que desistiu de ficar no negócio;

b) o governo Lula mudou o marco regulatório do Pré-sal de concessão para partilha, além das regras de aquisição de compo-nentes com conteúdo nacional, paralisando por cinco anos as lici-tações dos lotes, bem como a queda no interesse pelo petróleo do Brasil quando surgiram outras novidades, como o gás de xisto nos EUA, as áreas de Pré-sal na África, México e Colômbia, o retorno do Irã ao mercado depois de décadas de sanções comer-ciais e a diminuição do preço do barril de petróleo de US$ 115 (junho/2014) para US$ 30 (dezembro/2015), arbitrada pela Orga-nização dos Países Exportadores de Petróleo (Opep);

c) quando a cotação do petróleo estava alta em 2012, Dilma interferiu nos preços internos, impedindo o reajuste dos combus-tíveis e produzindo um prejuízo bilionário para a Petrobras;

d) a corrupção na Petrobras representou um fator desestabili-zador das finanças e da credibilidade da empresa, cuja ação passou de R$ 44,66, em maio/2008, para R$ 4,01, em janeiro/2016, além do alto endividamento (R$ 506 bilhões em 2015) e queda no valor da empresa (R$ 510,3 bilhões, em maio/2008, e R$ 73,7 bilhões, em janeiro/2016).

Pontua-se como quinto erro a política de “empresas campeãs nacionais” e as transferências de recursos do Tesouro ao Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Entre 2008-2014, o governo ampliou os recursos injetados no BNDES (20% do crédito do país ou R$ 500 bilhões) e que passaram a ser contados como ativos, apesar da pouca probabilidade desse dinheiro voltar aos cofres do Tesouro. Os financiamentos bilioná-rios privilegiaram grandes empresas, respondendo por cerca de 2/3 do volume de seu crédito anual. Encaixam-se nessa categoria os negócios do BNDES com EBX, JBS Friboi, Votorantim, BRF, D’Or, São Luiz, Cutrale, EMS, Riachuelo, Americanas, Boticário e Natura, bem como a ampliação dos financiamentos de infraestru-tura realizados por empreiteiras brasileiras em Cuba, Venezuela, Equador, Argentina, Uruguai, Peru, Bolívia, Panamá, Nicarágua, Angola e Moçambique. (LIMA, 2015).

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Identifica-se como sexto erro o aumento do déficit fiscal. Quando Delfim Netto (2013) propôs em 2005 e 2013, respectivamente, aos ministros da Fazenda, Antonio Palocci e Guido Mantega, aumentar o superávit primário (saldo entre receita/despesa, menos os gastos com os juros das dívidas interna e externa) até alcançar o déficit nominal zero (economizar para pagar todas as despesas do governo, inclusive com juros), Dilma, como ministra da Casa Civil e presi-dente da República, fulminou a ideia. Entretanto, sua política fiscal, a partir de 2011, fez o déficit tornar-se recorrente (estrutu-ral) e atingir 9,5% do PIB, em 2015. Sem mencionar que, em 2016, haverá aumento de despesas indexadas de R$ 75 bilhões (previdên-cia, seguro-desemprego e outros benefícios). A única despesa que o governo conseguiu reduzir no período foram os investimentos (40% em 2015), que caíram a patamares de 2010. E a conta dos subsí-dios concedidos nos anos anteriores continuará sendo paga nos próximos anos. Para cortar R$ 30 bilhões e chegar à meta de poupar 0,7% do PIB (superávit primário defendido por Joaquim Levy em 2015), seria preciso acabar com subsídios ao Minha Casa, Minha Vida (R$ 15 bilhões) e ao setor agrícola (R$ 7 bilhões) e cortar novamente os investimentos em 20% (ALMEIDA, 2015). Caso a concepção econômica fosse reduzir custos públicos e conter a dívida pública via superávit primário (2% do PIB), Levy nem neces-sitaria sair do governo.

Avalia-se como sétimo erro a Medida Provisória 579/12 que força a baixa do preço da energia do consumidor doméstico (18%) e dos segmentos produtivos (32%) em 2013, desequilibrando o setor energético. Tal fato ocorreu quando a inflação era ascen-dente e os níveis dos reservatórios das hidrelétricas caíam (escas-sez de chuvas), com as usinas térmicas tendo de ser acionadas (energia mais cara que a de hidrelétricas). Companhias de vários estados (Cesp/SP, Cemig/MG, Copel/PR, Celg/GO) rejeitaram o acordo proposto pelo governo federal, que ordenou ao setor ener-gético tomar empréstimos bancários dando como garantia aumen-tos futuros nas tarifas. Passada a eleição/2014, os preços da energia saltaram (47,95%), contribuindo para elevar a inflação em 2015. (MONTEIRO; MOURA, 2013).

Assevera-se como oitavo erro a maquiagem nas contas públi-cas, com pedaladas fiscais e decretos de elevação de gastos sem autorização do Congresso e descumprindo o orçamento. O governo federal manteve suas despesas em alta (e acima da arrecadação), mas, em vez de apertar o cinto, recorreu a truques contábeis e à criação de receitas extraordinárias (não recorrentes). Mesmo com

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o país tendo uma das maiores cargas tributárias do planeta, os recursos não são ainda suficientes para as demandas do governo. Como o Estado não cabe em seu orçamento, o governo pressiona por aumento do dinheiro em circulação, dificulta o combate à infla-ção e eleva o endividamento público. E o resultado da “dominância fiscal” é a necessidade de maior financiamento público (e refinan-ciamento da dívida) competindo pela poupança privada e exau-rindo os mercados de capitais, que existe quase exclusivamente para carregar a dívida pública, com a política fiscal elevando as taxas de juros (com repasse da culpa para o Banco Central) e redu-zindo os recursos privados disponíveis para os investimentos priva-dos, com tal desequilíbrio acirrando a queda no ritmo de cresci-mento da economia. (GUANDALINI, 2014).

Considera-se como nono erro a falta de reformas institucio-nais. Em especial, previdenciária, tributária e trabalhista, quando o Brasil tinha condição para reformar-se (2003-2012), diferente do atual momento recessivo. Em 2015, o déficit da previdência foi de R$ 40 bilhões, e considerando estados e municípios, a cifra atingiu R$ 85,8 bilhões (projeção de R$ 120 bilhões para 2016), implicando na insustentabilidade financeira da Previdência em médio prazo, e gerando impactos imediatos nas contas públicas e economia. (VARELA, 2016).

Sobre a questão tributária, mesmo com alto nível de arrecada-ção de impostos e distribuição de renda desigual no Brasil, as receitas dos impostos sobre rendimento pessoal são proporcional-mente baixas, devendo o Imposto de Renda ser a principal fonte de receita e recolhido a partir de pelo menos 15 alíquotas, ao invés das 05 atuais. Para Pazzianotto (2015), os sindicatos deveriam seguir a Convenção nº 87, da Organização Internacional do Traba-lho (OIT), e desligarem-se totalmente do Estado, significando a autonomia da organização sindical, reconhecimento pleno como pessoa jurídica de direito privado, encerramento do processo de registro no Ministério do Trabalho e fim das contribuições compul-sórias e dos repasses do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

Analisa-se como décimo erro a ausência de ajuste fiscal em 2015 e 2016. O papel de Joaquim Levy era ajustar a economia, cortar gastos, aumentar impostos e entregar um superávit nas contas públicas em 2015, fato que significaria a transição das ideias econômicas da Universidade de Campinas (capitalismo de Estado) para as da Universidade de Chicago (capitalismo liberal). Mas a recessão econômica tornou impossível cumprir tais metas. Mesmo com as alíquotas de impostos subindo, a arrecadação caiu

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5,6% (R$ 1,27 trilhão, em 2014, para R$ 1,22 trilhão, em 2015). E o forte, no corte dos gastos públicos, ocorreu justamente nos investimentos (saúde, educação, infraestrutura), enquanto aumen-tavam as despesas com a Previdência e subsídios empresariais, além da economia temporária com o adiamento do pagamento de despesas (alteração do cronograma de abonos salariais e atraso na quitação de fornecedores). Portanto, Levy não fez ajuste fiscal nenhum, até porque o governo manteve sua herança maldita nas contas públicas e não realizou as reformas institucionais previden-ciárias, trabalhistas e tributárias. (ALMEIDA, 2015).

Ajuste fiscal é um remédio obrigatório que implica em efeitos colaterais. Todavia, o receituário econômico contraditório do governo federal, ao invés do remédio, indica mais doses do mesmo veneno. Como a inflação ficou em 12,67%, em 2015, a saída foi subir a taxa de juros (14,25%) visando inibir o crédito e reduzir a demanda. Todavia, como a economia encontra-se em recessão, a alta de juros reduziu o crescimento econômico (-3,8% do PIB), ampliou o déficit nominal para 9,5% do PIB, aumentou a dívida pública bruta (65,7% do PIB) e fez crescer a cotação do dólar, uma vez que fechou 2015 em R$ 4,02. Em fevereiro/2016, Nelson Barbosa anunciou medidas complexas, projetos que sequer foram formula-dos e corte de despesas de R$ 23,4 bilhões, e ao mesmo tempo fez o oposto, uma vez que o governo pode ter déficit de 0,97% do PIB em 2016, caso peça ao Congresso Nacional um “espaço para rela-xamento fiscal” de até R$ 82,4 bilhões para descumprir a meta. Não é à toa que o Orçamento/2016 encontra-se repleto de suposi-ções de receitas: CPMF, dinheiro da Lei de Repatriação, dividendos pagos pelas estatais se tiverem lucros, pagamento das concessões ainda não licitadas e não pagamento de precatórios. Com tal arre-cadação duvidosa, o governo poderá afirmar ao Congresso que houve frustração de receitas e solicitar espaço para gastar, inven-tar dinheiro, produzir déficit e aumentar o desequilíbrio fiscal (LEITÃO, 2016). Ou seja, como sintetiza David Ricardo em seu Princípio da Equivalência: Não existe gasto público sem imposto, dívida pública ou calote, ontem, hoje ou amanhã .

Observa-se que a economia brasileira está colhendo os resulta-dos dos erros crassos cometidos num passado recente. E a situa-ção do ministro Nelson Barbosa é a pior dos mundos, tendo em vista que não pode acusar muito o antecessor e culpar a situação em que encontrou as contas públicas, por fazer parte da equipe econômica entre 2003-2013, e ter sido ministro do Planejamento em 2014 da mesma presidente Dilma. Definitivamente, distorcer a

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realidade, negar a gravidade da crise e escolher “vilões irreais” não são as medidas mais indicadas para as lideranças políticas enfren-tarem o atual quadro de problemas econômicos estruturais. Portanto, com base no quadro econômico delineado pode-se cons-truir um cenário “pessimista” para o segundo mandato de Dilma e considerar a atual década como perdida: política econômica hete-rodoxa, desonerações tributárias seletivas, inflação acima do teto da meta, delicada situação das contas públicas, perda do grau de investimento e desempenho negativo do PIB. Principalmente, porque a crise é fruto de uma “tempestade perfeita” e envolve fatos desastrosos sob o ponto de vista econômico, político e ético. E não foi por falta de alerta, uma vez que o colapso foi anunciado por um farto quadro de analistas econômicos.

As projeções mais otimistas indicam que o brasileiro chegará mais pobre em 2020 do que estava em 2011, já que a renda não conseguirá vencer a inflação, nem a produção conseguirá superar a pobreza com crescimento inferior a 2,5% ao ano e menor que a média de crescimento global em 2015 (3%). Prognósticos do FMI, Banco Central e IBGE mostram que: o PIB per capita recuou dos US$ 13,2 mil (2011) para US$ 11,6 mil (2014) e cairá para US$ 9,7 mil em 2020; o PIB cresceu abaixo do necessário para abrir postos de trabalho suficientes; os juros que estavam no patamar de 11,50%, em 2011, chegaram a 14,25%, em 2015, e somente em 2020 estabilizarão em 9%; a inflação que estava no teto da meta em 2011 (6,5%), estourou em 2015 (10,67%), e apenas em 2020 alcançará a meta (4,5%). Uma possível reversão somente se dará a partir de 2019 e com uma nova concepção econômica e renova-ção de lideranças políticas. E crescer em ritmo forte daqui a alguns anos será mais difícil para o Brasil, porque a população estará estável e envelhecendo. Por isso, a perda de uma década na economia significa uma tragédia social. (OLIVEIRA, 2015).

E a perda de credibilidade social no governo federal para conduzir a política econômica e realizar o ajuste fiscal com seu conjunto de convicções econômicas equivocadas fundamenta a queda do PIB, aumento da inflação, elevação dos juros, alta do déficit nominal, retração dos investimentos produtivos, diminui-ção no volume do comércio exterior e cortes nos programas sociais em 2015, com a população sentindo intensamente os efeitos da recessão, tanto na diminuição da produtividade e competitividade das empresas, como na deterioração dos serviços públicos, além do desemprego crescente, perda de aumento real do salário mínimo e paralisação na redução da pobreza.

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O crescimento do PIB nos governos Dilma (2011– 2015) aponta para o pior resultado da história econômica brasileira, com 0,5% em média/ano. E os prognósticos do FMI pioram o quadro com -3,5, em 2016, e estagnação, em 2017. Conforme o FMI, entre 2011-2014 a variação média anual do PIB do Brasil foi de 1% em comparação com o mundo (3,2%). O IPCA chegou a 10,67%, em 2015, a maior taxa desde 2002. E a inflação nas faixas de baixa renda, medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), via IBGE, chegou a 11,3%, com a alta média de preços para as classes D e E sendo ainda maior (13,5%). E como a maio-ria dos países vivencia inflação baixa ou deflação, a alta da infla-ção no Brasil está na contramão do mundo. Já as taxas de inves-timento/PIB passaram de 20,5%, em 2010, para 17,4%, em 2015, com os índices de produtividade do trabalho caindo de 5,4% para 0,3% no mesmo período. E a participação da indústria no PIB, conforme o IBGE/Fiesp, retraiu em 2015 (10,9%) para indicadores aquém de 1950 (11,5%). Não sem razão, o índice de confiança da indústria caiu de 113,5 pontos, em 2010, para 76,7 pontos, em 2015. (FUCS, 2016).

O fim do boom das commodities (2004-2012), a retração de 3,8 da economia em 2015 e a desvalorização cambial (dólar subiu de R$ 2,65, em dezembro/2014, para R$ 4,02, em dezembro/2015) contribuíram para que o Brasil registrasse, em 2015, um saldo positivo de US$ 19,7 bilhões nas operações de comércio exterior, mas tendo como justificativa a queda de volume total comerciali-zado de 14,1% nas exportações (US$ 191,1 bilhões) e de 24,3% (US$ 171,4 bilhões) nas importações, com redução de todas as catego-rias de importações (bens intermediários, bens de capital, bens de consumo e combustíveis), conforme dados do Ministério do Desen-volvimento, Indústria e Comércio Exterior. (CUCOLO, 2016).

O governo federal vai registrar, em 2016, o terceiro ano de défi-cit primário. O resultado da gastança em volume superior ao orçamento foi mascarado pelas “pedaladas fiscais” (2008-2014), imaginando-se que desonerações tributárias e subsídios de crédito de bancos (BNDES, Caixa, BNB, Banco do Brasil) leva-riam necessariamente ao crescimento econômico. As receitas do Tesouro, em 2015, foram de R$ 1,035 trilhão e as despesas soma-ram R$ 1,150 trilhão, com déficit de R$ 115 bilhões e um resul-tado primário de -1,6% do PIB, implicando numa queda do crédito bancário para novos empréstimos, já que em 2014 somava R$ 3,78 bilhões, e em 2015, diminuiu para R$ 3,66 bilhões, uma diferença de R$ 120 bilhões. E com os juros em 14,25% ao final de

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2015, os gastos anuais com a dívida pública bruta representaram cerca de 9,5% do PIB, ou seja, em dezembro/2010, passou de R$ 2 trilhões (51,8% do PIB) para R$ 3,8 trilhões (65,7% do PIB) em dezembro/2015. (FUCS, 2016).

O resultado de uma década de estímulo ao consumo das famí-lias mostra que de março/2005 a outubro/2015 o custo dos juros pulou de 4,6% para 10,1% da renda dos brasileiros ampliando o endividamento (46%) e a inadimplência total das famílias. Por outro lado, os bancos incorporaram proteção contra o calote, tornando-se mais seletivos na concessão de empréstimos, escolhendo melhor os tomadores de crédito, pedindo mais garantias, encurtando prazos e elevando o spread bancário, fato que agrava ainda mais o quadro econômico. Conforme o Banco Central, os juros no Cheque Especial dispararam de 138,2% (2012) para 287,1% (2015), e os saques na Caderneta de Poupança bateram recordes em relação aos depósitos: – R$ 53,6 bilhões, em 2015, em relação aos + R$ 23,8 bilhões, em 2014. Já o Sistema de Proteção ao Crédito (SPC) indica atrasos nas dívidas financeiras e nos serviços (telecomuni-cações, água, luz e outras taxas). E o principal efeito é o retarda-mento da recuperação do PIB, dificultando a reorganização do orçamento familiar via consumo e do setor privado, com a queda da produção e dos investimentos. (LEITÃO, 2016).

De acordo com o Pnad/IBGE, em dezembro/2013 os desem-pregados no Brasil eram 6,1 milhões, passando em dezembro/2015 para 9,5 milhões (10,1%, em 2015, e projeção de 12%, em 2016). No primeiro momento, contam com indenização trabalhista, recursos do FGTS e seguro-desemprego. Mas, depois de algum tempo, essas pessoas dificilmente conseguirão novo trabalho formal. E no mercado informal, fatalmente terão renda menor (ALMEIDA, 2015). Já o salário mínimo (R$ 880,00, em janeiro/2016), a remuneração de 50 milhões de trabalhadores e de 22,5 milhões de aposentados, pensionistas e beneficiários da Lei Orgânica de Assistência Social repassados pelo Instituto Nacional do Seguro Social (INSS) não terá aumento real até 2019, porque a fórmula definida desde 2003 entre governo e centrais sindicais estabelece sua subida conforme a inflação (INPC) do ano anterior e o crescimento do PIB de dois anos antes. Como o país teve recessão em 2015, continuará com crescimento negativo em 2016 e deve ficar sem crescer em 2017, somente haverá aumento real (acima da inflação) em 2020, e caso o país cresça em 2018. (LEITÃO, 2016).

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8686 Laécio Noronha Xavier

De 2000 a 2010, o número de pessoas inseridas no mercado de trabalho formal duplicou, com o poder de compra do salário mínimo tendo dobrado entre 2003-2013. O número de famílias beneficiadas, via Bolsa Família, passou de 3,6 milhões para 13,8 milhões e atingiu 40 milhões de pessoas, com o volume das trans-ferências representando R$ 18,5 bilhões ou 0,5% do PIB. O volume pago conseguiu tirar as pessoas da miséria, mas não da pobreza, com 16 milhões ainda vivendo na miséria e 43 milhões na linha de pobreza (CNBB, 2015). Em 2013, pela primeira vez em dez anos, a velocidade da redução da pobreza e da desigualdade caiu de 3,4% (2011) para 0,6% (2013). Em 2015, depois de dez anos, a renda da população caiu. O ganho médio real teve queda de 3,7% nas regiões metropolitanas, passando de R$ 2.353 (2014) para R$ 2.265 (2015), com as estimativas apontando que, em 2020, a renda per capita será de R$ 2.103, a mesma de 2010, mas, superior à de 2003: R$ 1.763,85. (FUCS, 2016).

Com base no Orçamento da União, oito dos nove principais programas sociais dos governos Lula e Dilma perderam recursos em 2015, e para 2016 apontam mais retração. Excetuando o Fies, quatro programas tiveram corte nominal, como Pronatec (-44%), Prouni (-14%), Brasil Carinhoso (-51%) e Minha Casa Minha Vida (-58%), e outros quatro programas tiveram seus valores nominais corroídos pela inflação, registrando perda real em relação a 2014: Bolsa Família, Brasil Sorridente, Pronaf e Luz Para Todos. Como o forte do “ajuste fiscal” de 2015 foi cortar gastos com políticas sociais, o aumento do desemprego e a queda nos rendimentos médios farão com que a população mais pobre pague a conta da crise, uma vez que, conforme o IBGE, a nova classe média perdeu força em 2015, com 3,7 milhões de pessoas saindo da classe C para as classes D e E. (BONFIM, 2016).

Mesmo com enorme capital político na fase de alta das exporta-ções (2004-2012), os governos do PT não o utilizaram para fazer as reformas necessárias, priorizar a poupança pública, realizar investi-mentos em infraestrutura. Lógico, não haverá crise social como nos anos 1980, até porque a rede de cidadania criada com a Constitui-ção/1988 tornou o Brasil mais resiliente às crises econômicas. Toda-via, o risco da manutenção da atual política econômica é prejudicar os mais pobres, com a implosão tanto do legado de bem-estar social dos governos do PT da década passada, como da herança da estabi-lidade econômica patrocinada na década de 1990 por Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso, pondo fim, assim, ao mito que gover-nos populistas, como os do PT, governam para os mais pobres.

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8787As perdas dos legados da estabilidade econômica e da inclusão social

Referências

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BONFIM, Isabela. 8 dos 9 principais programas sociais do governo perderam recursos. O Estado de S . Paulo. 8/02/2016. Economia, p. 3

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Brasil fica mais distante da fronteira global da economia, do conhecimento e da inovação

Ricardo Abramovay

Exaltar as virtudes de um suposto modelo inclusivo de cres-cimento econômico que marcaria o Brasil do século XXI, como faz recente coletânea do International Policy Centre

for Inclusive Growth, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, é transformar vício em virtude. Não há dúvida que – da mesma forma que na grande maioria do mundo em desen-volvimento, especialmente na China e na Índia, mas também em vários países da África e da América Latina – a miséria absoluta foi sensivelmente reduzida, o emprego formal aumentou e a esco-larização cresceu. Da mesma forma, nunca é demais ressaltar a drástica redução no desmatamento da Amazônia brasileira, que isoladamente pode ser considerada como a maior conquista global na luta contra as mudanças climáticas.

O que, entretanto, a coletânea deixa na sombra e que agora vem tragicamente à luz é a fragilidade das bases econômicas destas conquistas e a natureza conservadora das redes e coali-sões sociais em que elas se apoiaram. Do que se trata?

O Brasil – e, com ele, os mais importantes países da América Latina – distanciou-se da fronteira global da economia do conhe-cimento e da inovação. Isso reduz as oportunidades de retomar o crescimento econômico e, portanto, de manter e aprofundar as importantes conquistas dos últimos anos. A demonstração empí-rica desta distância vem de um indicador que acaba de ser divul-gado pelo Center for International Development da Universidade de Harvard, num trabalho dirigido pelo economista venezuelano Ricardo Hausmann e pelo físico chileno Cesar Hidalgo. Seu Atlas da Complexidade Econômica é uma das mais importantes contri-buições recentes para compreender a maneira como diferentes países usam seus recursos materiais, energéticos e bióticos e os impactos deste uso sobre sua prosperidade.

O Brasil, por exemplo, em 2012, exportou para a China US$ 41 bilhões e dela importou US$ 33 bilhões. Esta relação comercial aparentemente favorável para nós esconde algo muito preocu-

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pante. Enquanto os produtos exportados pelo Brasil são pouco densos em conhecimento teórico e prático (minério de ferro, soja, petróleo, açúcar) o que importamos dos chineses (telefones, computadores, circuitos integrados e imensa diversidade de produtos industriais) supõe alta capacidade de imprimir informa-ção à matéria.

A complexidade de uma economia relaciona-se à “multiplici-dade dos conhecimentos úteis nela embutidos”. Estes conheci-mentos, por sua vez, não são apenas teóricos, mas envolvem o “saber fazer” (know how), ou seja, uma dimensão prática e tácita fundamental. Em última análise, o que marca as sociedades humanas é a capacidade não só de imaginar produtos, mas de operar transformações materiais capazes de trazê-los à existên-cia, que se trate de uma lança, de uma carruagem ou de um smart phone.

A esmagadora maioria dos objetos de que dependemos expri-mem nossa capacidade de incorporar conhecimento teórico e prático à matéria. E esta incorporação não depende apenas do conhecimento dos indivíduos, mas, antes de tudo, das redes sociais em que eles estão imersos e que têm capacidade de acumu-lar, materialmente, conhecimentos teóricos e práticos, informa-ção, obviamente muito superior à de qualquer pessoa, por mais inteligente que seja.

Cesar Hidalgo, num livro fascinante recentemente publicado, mostra que estas redes não são apenas entre indivíduos, mas também entre empresas: o iPod da Apple, por exemplo, só foi possí-vel em função de um dispositivo inventado pela Toshiba. De forma geral, os computadores (mas este raciocínio vai muito além deste produto específico, claro) são construídos por uma rede de empre-sas, mais que por uma empresa. Hidalgo apoia-se em estudos de sociologia da vida econômica para mostrar que a complexidade (ou seja, a capacidade de imprimir conhecimento à matéria) depende diretamente da natureza das redes sociais e não simplesmente do abstrato funcionamento dos mecanismos de mercado.

As sociedades mais prósperas são as que alcançam redes sociais extensas, que não derivam de relações familiares ou do domínio político de um restrito grupo sobre os recursos econômi-cos. Produtos que exigem grandes volumes de conhecimento só podem ser fabricados ali onde emergiram redes sociais capazes de lhes dar sustentação. Ao contrário, ali onde estas redes sociais são pouco densas e restritas, a tendência é fabricar aquilo que

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uma grande quantidade de países fabrica, já que isso supõe baixa acumulação social de conhecimentos, sob o ângulo da informa-ção neles contida.

Uma comparação entre o que os países importam e exportam dá uma boa medida destas redes e, portanto, da complexidade da vida econômica de cada um. O Brasil, por exemplo, em 2012, exportou para a China US$ 41 bilhões e dela importou US$ 33 bilhões. Esta relação comercial aparentemente favorável para nós esconde algo muito preocupante. Enquanto os produtos exporta-dos pelo Brasil são pouco densos em conhecimento teórico e prático (minério de ferro, soja, petróleo, açúcar) o que importamos dos chineses (telefones, computadores, circuitos integrados e imensa diversidade de produtos industriais) supõe alta capaci-dade de imprimir informação à matéria. Tanto o Atlas da Comple-xidade Econômica como o livro de Cesar Hidalgo oferecem ilustra-tivas figuras mostrando, país por país, a estrutura de suas exportações e a maneira como se relacionam tanto com a econo-mia global como, individualmente, uns com os outros. O que estas figuras revelam é a propensão de as redes sociais de cada país estimularem a ampliação do conhecimento teórico e prático (como na China) ou, ao contrário, de se restringirem a produzir basica-mente o que seus recursos oferecem e o que não supõe alto nível de informação (como, de forma geral, na América Latina).

O modelo econômico que fez da exportação de commodities agrícolas e minerais a base essencial da riqueza que permitiu melhorar a situação social dos mais pobres no Brasil está se decom-pondo. E uma das expressões mais trágicas desta decomposição foi divulgada há alguns dias numa atualização do Atlas da Complexi-dade Econômica: entre 2004 e 2014, o Brasil perdeu nada menos que dez posições no Índice de Complexidade Econômica. Colômbia, Argentina e Chile também perderam várias posições.

A desindustrialização brasileira é apenas a face mais visível de um problema muito maior e mais comprometedor. Enquanto China e Índia apoiam cada vez mais sua vida econômica em redes sociais que fazem do conhecimento teórico e prático a base de suas relações, o Brasil enreda-se nas coalisões em que fósseis, hidrelétricas caras e ineficientes e baixa capacidade de agregar valor aos produtos formam sua cultura empresarial dominante. Promover justiça social sobre uma base tão conservadora é conde-nar-se ao recuo que hoje, perplexo, o Brasil está sofrendo.

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Os riscos políticos da desindustrialização prematura

Em nenhum lugar do mundo foi maior que na América Latina o aumento na renda dos 40% mais pobres da população, na primeira década do milênio. No entanto, como mostra um traba-lho recente do Banco Mundial, este inédito surto equitativo foi efêmero: o Continente encontra-se em seu quarto ano consecutivo de baixo crescimento. Na raiz deste desempenho errático está o mau preparo da região para um “crescimento de longo prazo”. A “dependência de commodities agrícolas e minerais” está entre os componentes decisivos deste despreparo.

É verdade que o início do século XXI entrará para a história como o período de ascensão econômica do hemisfério Sul. Mas as diferenças entre a Ásia do Leste e a América Latina nos respectivos padrões de crescimento contribuem para explicar as perdas das importantes conquistas sociais que marcaram os primeiros anos do milênio entre nós, tema cuja abordagem foi feita anteriormente.

O relatório do Banco Mundial mostra que os países do Hemis-fério Sul representavam 20% do PIB global no início dos anos 1970 e dobraram esta proporção em 2012, com a China represen-tando sozinha 12% do total. Os aumentos foram espetaculares também nos fluxos comerciais e destacaram-se nas exportações de manufaturados que aumentaram, entre 2000 e 2012, de 32% para 48% das vendas globais. Hoje, metade do que o mundo compra e vende em produtos industriais origina-se em países em desenvolvimento. E é exatamente aí que as coisas se complicam para a América Latina.

Uma classe operária numerosa apoiada em sindicatos e parti-dos com ela identificados é um fator decisivo de participação polí-tica, de negociação e esta foi uma das bases dos virtuosos proces-sos que, nos países desenvolvidos, reduziram de forma expressiva as desigualdades e ampliaram direitos desde a II Guerra Mundial até o início dos anos 1980.

É inevitável a comparação com países como Coreia do Sul, Taiwan e China que tinham renda per capita, produtividade do trabalho e grau de diversificação de suas estruturas econômicas e comerciais equivalentes ou piores que as da América Latina. O economista Lucas Mations, do Ipea, mostra que a produtividade do trabalho na América Latina (excetuando o Brasil) era quase o dobro da do Leste da Ásia, em 1960. Já nesta época, estávamos na lanterninha do Continente, um pouco abaixo do desempenho do Leste da Ásia. Em 2011, continuamos abaixo da média da América

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Latina e do Caribe, mas o Leste da Ásia deslanchou deixando a América Latina para trás em produtividade do trabalho. A econo-mia brasileira cresceu, é verdade, mas seu vetor fundamental não foi o melhor desempenho de nossos trabalhadores.

No que se refere às redes regionais de comércio, até 1980, elas tinham formato muito semelhante na América Latina e no Leste da Ásia, ambas centradas em alguns poucos países dominantes. Já em 2012, mostra o Banco Mundial, o Leste da Ásia diversifica sua inserção global, o mesmo nem de longe ocorrendo com a América Latina.

Mais importante, porém, do que saber para quem se vende é o quê cada região coloca no fluxo do comércio internacional. O que ficou obscurecido pela associação entre redução da pobreza e forte dependência de commodities agrícolas e minerais é que nosso Continente (junto com a África) ocupa hoje os mais baixos patamares das cadeias globais de valor. Sua capacidade de atrair investimentos é dada exatamente por esta pouco virtuosa vanta-gem comparativa e não por sua capacidade de inserir no mercado mundial produtos com alto valor agregado.

Isso se exprime na maneira como nos relacionamos com o resto do mundo e, sobretudo, com sua parcela mais dinâmica, que se encontra justamente no Leste da Ásia. O Século XXI é marcado pela intensificação dos vínculos entre países em desenvolvimento. No entanto, diz o relatório do Banco Mundial, os “laços da América Latina com outros países do hemisfério Sul é guiado em grande medida por vantagens comparativas baseadas em dotações natu-rais, muito mais que pela integração manufatureira nas cadeias globais de valor”. Os vultosos investimentos chineses na América Latina hoje voltam-se fundamentalmente a fortalecer o lugar que já ocupamos nas cadeias globais de valor e concentram-se em setores marcados por baixo grau de inovação tecnológica e ameaçadores impactos socioambientais. Hidrelétricas, fósseis e exploração mine-ral são suas expressões mais emblemáticas.

Isso significa que a recente redução da pobreza de renda na América Latina não teve lastro num processo de mudanças estru-turais da vida econômica, mas, ao contrário, apoiou-se exatamente em coalizões sociais, em comportamentos e em instituições que aprofundaram esta forma inferior de inserção nas cadeias globais de valor. A impressionante desindustrialização do Continente é a principal expressão desta fragilidade. Contrariamente ao que ocor-reu no Leste da Ásia, em que o fortalecimento da indústria trouxe

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consigo não só novas oportunidades de trabalho, mas, sobretudo, abriu caminho à emergência de novos atores sociais e de uma densa rede voltada à inovação, a América Latina vive o drama de ter-se desindustrializado, antes de ter chegado a uma renda que lhe permita transitar a uma economia moderna de serviços.

O economista Dani Rodrik, da Universidade de Princeton, chama este processo de “desindustrialização prematura” e mostra que a América Latina e a África são hoje suas principais vítimas. Os dados de Rodrik convergem com os do Banco Mundial no sentido de que a atrofia industrial latino-americana não só inibe a inovação, mas é também um obstáculo consistente para que o aumento nos ganhos dos mais pobres se origine nas melhorias vindas do próprio mercado de trabalho.

Mas Rodrik mostra que o risco desta desindustrialização prematura não é apenas econômico. É também político. “Histori-camente, a industrialização desempenhou o papel fundacional na Europa e nos Estados Unidos, na criação dos Estados modernos e na emergência da democracia política”, diz ele. Uma classe operária numerosa apoiada em sindicatos e partidos com ela identificados é um fator decisivo de participação política, de nego-ciação e esta foi uma das bases dos virtuosos processos que, nos países desenvolvidos, reduziram de forma expressiva as desigual-dades e ampliaram direitos desde a II Guerra Mundial até o início dos anos 1980.

Ao contrário, elites que têm diante de si segmentos sociais frágeis, desorganizados e cujos interesses comuns são difíceis de definir tendem a comportamentos políticos predatórios. “Elas podem prefe-rir – e têm a habilidade para fazê-lo – dividir e dominar cultivando o populismo e a política da patronagem e colocando grupos que não pertencem às elites uns contra os outros”. Qualquer semelhança com a realidade não parece ser mera coincidência.

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Convulsão econômica, social e política no BrasilJosé Osmar Monte Rocha

O momento conturbado que vive a sociedade brasileira, diante de um quadro alarmante na área social, na econo-mia e na política, faz tirar o sono e a tranquilidade dos

cidadãos; exige uma reflexão sobre o cenário nacional e uma deci-são de fé e coragem para superar a crise instalada pelo governo; o país vive uma verdadeira convulsão social, econômica e política; a preocupação dos trabalhadores, das famílias e dos empreende-dores é o sinal de alerta, para enfrentar a crise desoladora que tomou conta do país.

A inflação desenfreada cresce todo dia; a taxa de juros dispara num ritmo que nenhum tomador de empréstimo suporta; o Produto Interno Bruto encolhe como bucho de menino pobre em época de frio; a corrupção se alastra de ponta a ponta como uma epidemia ainda sem vacina para imunizar o povo brasileiro; a política devaneia e tremula na base e no parlamento; a economia fraqueja como sertanejo sem água para beber, plantar e matar a sede dos animais – é uma total convulsão social, econômica e política no Brasil!

O povo não aguenta mais essa situação: a disparada de preços dos alimentos, transportes, escolas, combustíveis, energia elétrica e demais serviços; a taxa Selic do Banco Central subiu para apro-ximados 15% ao ano; os juros praticados pelos bancos e operado-ras de cartões de crédito estão beirando a casa dos 400% ao ano; a inflação oficial até agora estimada em 10% ao ano, derrubou todas as previsões do governo, estraçalhou a meta anual de infla-ção projetada pelo BC e fez encolher a economia com um PIB na faixa de 3% negativos. Nem Adam Smith, o pai da economia, dá jeito no cenário econômico que enlameia o povo brasileiro.

O desemprego aflige os trabalhadores inquietando famílias que pagam aluguéis, escolas, planos de saúde e outras despesas para a sobrevivência familiar; os benefícios sociais, principalmente o seguro desemprego, foram duramente golpeados pelo governo, em flagrante delito social; a ausência dessa garantia temporária é motivo para o desespero daqueles que perdem a única fonte de receita e não conseguem encontrar um novo emprego.

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9595Convulsão econômica, social e política no Brasil

A Bolsa de Valores de São Paulo cai vertiginosamente pela baixa cotação das ações de empresas de capital aberto que nego-ciam no mercado. O exemplo mais contundente é o da Petrobras que perdeu, no Brasil e no exterior, o interesse de investidores na companhia. As agências de classificação de riscos rebaixaram o grau do Brasil como local seguro para investimentos; e um conjunto de empresas brasileiras também foram rebaixadas, perdendo a capacidade de captação de capitais no exterior. A moeda brasileira – o Real, em pouco tempo perdeu 50% do valor em relação ao dólar americano, provocando aumento vultoso na dívida pública e desequilíbrio na balança comercial. O trabalha-dor, o empresário e demais cidadãos estão apavorados com o quadro estarrecedor da economia.

O governo federal perdeu as rédeas da economia, castigou a população com medidas econômicas baseadas em retirada de benefícios e aumento da carga tributária; quando deveria reduzir ministérios e secretarias com status de ministério. É preciso cortar gastos, sobretudo o excesso de cargos comissionados; eliminar as viagens de servidores com passagens e hospedagens por conta do erário; retirar as mordomias praticadas por servido-res e dirigentes ocupantes de cargos comissionados, tais como carros oficiais e de serviços, telefonia fixa e móvel, auxílio mora-dia e o uso de energia elétrica e água, de forma desordenada; todas as salas deveriam dispor de interruptores para que em horário de almoço se pudesse apagar as luzes; os contratos de manutenção, de limpeza, de vigilância e outros, deveriam ser revistos, com a adoção de uma tabela de preços aprovada pelo Ministério do Planejamento Orçamento e Gestão.

É hora de refletir, analisar e chamar toda a sociedade para opinar na busca de uma saída para a crise instalada no país. Por que deixar tudo a cargo dos economistas? É um ônus muito pesado para esses dedicados estudiosos! Os economistas já formalizaram diversas ideias e tudo falhou. É hora de chamar vários segmentos da sociedade: administradores, contadores, auditores, advogados, engenheiros, matemáticos, sindicalistas, filósofos, etc, e principal-mente chamar as donas de casas – essas sabem planejar e contro-lar o orçamento doméstico; conhecem o sacrifício de conter gastos, e creem na esperança de dias melhores.

Em passado recente, no governo Itamar Franco, foi o então ministro Fernando Henrique Cardoso (sociólogo) que debelou a inflação com a criação do Plano Real – mudou a moeda, tornou-se forte e deu novo ânimo aos brasileiros com a melhoria do poder aquisitivo e o crescimento do Produto Interno Bruto. Foi no

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governo de FHC que o economista (deputado, senador, governa-dor) José Serra, no cargo de ministro da Saúde revolucionou a pasta, com a implementação de medidas técnicas e administrati-vas. Assim temos exemplos de dois estudiosos de áreas diferentes, atuando com êxito em campos distintos de suas especializações e conquistando melhorias para a nação brasileira.

A área política brasileira sofreu um duro golpe aplicado pela corrupção; o ringue político foi abalado; os partidos citados nos recentes escândalos, e os nomes divulgados pela mídia, abalaram as instituições partidárias e deixaram os eleitores frustrados e indignados pelos fatos narrados diariamente nos veículos de comu-nicação. Mas é bom lembrar que nem todos os políticos fazem parte desses escândalos; existem representantes do povo em todos os partidos, trabalhando com seriedade e dignidade para a melhoria da nação brasileira. Com tudo isso, certamente os eleitores cons-cientes vão dar respostas aos candidatos às eleições de 2016 para prefeitos e vereadores; e em 2018 nas eleições gerais para presi-dente da República, senadores, governadores e deputados federais e estaduais. É só esperar e conferir a força do voto popular.

O Ministério Público continua apurando fatos evidenciados na Operação Lava-Jato, com a possibilidade de desvios de bilhões de reais; e o Poder Judiciário firme no exame e julgamento daqueles que são considerados responsáveis pelos prejuízos causados ao erário. Agora resta esperar os diversos processos em andamento para que a sociedade tome conhecimento dos escândalos noticia-dos pela imprensa, com a efetiva apuração e julgamento pelo Judiciário, após o cumprimento do rito com direito ao contraditó-rio e à ampla defesa.

Diante do quadro estarrecedor que aflige o povo brasileiro, restam poucas alternativas para a saída da crise conjuntural; antes de tudo é preciso reconhecer os erros praticados na adminis-tração pública, e as mazelas produzidas: planejamento inade-quado, gastos excessivos com a máquina administrativa, resul-tando em déficit orçamentário; negociações políticas onerosas para o Poder Executivo e desequilíbrio político na base governista.

Vendo tudo isso, considero que há uma verdadeira convulsão social, econômica e política no Brasil, sem precedentes na histó-ria e sem horizonte promissor para o futuro próximo, que alente e estabeleça diretrizes para o bem-estar social, o crescimento econômico e o equilíbrio político, mantendo a harmonia dos três Poderes da União, como está definido na Constituição do Brasil.

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V. Questões do Estado e da Cidadania

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Autor

Rodrigo CosenzaFormado em História pela Universidade Veiga de Almeida, atualmente é professor da rede particular no município de Teresópolis/RJ.

Thiago PierobomPromotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios .

Valdir RibeiroFormado em Filosofia pela Universidade Federal de Juiz de Fora – especialista em Filosofia Moderna. Atualmente é professor da rede estadual de ensino do Estado do Rio de Janeiro.

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As violências contra as mulheres

Thiago Pierobom

Certamente muito avançamos no enfrentamento às violên-cias contra as mulheres, após o advento da Lei Maria da Penha, e das diversas convenções internacionais (Cedaw/

ONU, e de Belém do Pará). Mas ainda há muito a avançar. A violência contra a mulher é uma séria violação de direitos huma-nos. É também uma verdadeira pandemia global: segundo dados da ONU, mais de 70% das mulheres já sofreram alguma forma de violência em sua vida, no mundo. O Brasil ocupa o vergonhoso 5° lugar no ranking dos países que mais matam suas mulheres.

A violência doméstica é a forma mais debatida das violências contra as mulheres. Certamente é a que mais mata. Mas há outras. Inúmeras meninas são vítimas de violência sexual dentro de suas casas. Há atualmente uma CPMI em curso para investi-gar a exploração sexual de meninas atletas, por seus treinadores e equipe técnica. Inúmeras outras meninas são exploradas no turismo sexual, à beira das rodovias e às margens de grandes obras. Um delito em que, na esmagadora maioria, autor e vítima têm sexo determinado: trata-se de uma violência do masculino contra o feminino.

E ainda há quem queira negar às mulheres o acesso às políti-cas públicas de saúde para profilaxia da gestação, mesmo após terem sofrido um crime de estupro, na eterna desconfiança da palavra daquela que supostamente induziu Adão ao pecado.

As mulheres conquistaram o mercado de trabalho, mas não se libertaram da carga exclusiva dos trabalhos domésticos, tendo

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que suportar uma iníqua dupla (quando não tripla e quádrupla) jornada de trabalho. As mulheres possuem salários mais baixos que os dos homens e menor representatividade nos espaços de decisão e poder. Estão mais expostas ao risco do assédio moral e sexual nas relações de trabalho. E se, apesar de toda a competên-cia, galgam uma promoção, haverá sempre o comentário mali-cioso sobre qual favor sexual ela teria feito para merecer a benesse.

As mulheres são sistematicamente expostas nas campanhas publicitárias como um mero objeto sexual, um par de nádegas e seios ligados por uma cintura fina, cuja existência possui uma finalidade: satisfazer a lascívia masculina. A honra das mulheres é, não raro, enxovalhada nas instruções probatórias dos crimes contra a dignidade sexual, na eterna tese defensiva de que elas provocaram e são corresponsáveis pelo crime. Aliás, 25% dos homens no Brasil entendem que se uma mulher usa roupas curtas e é estuprada, ela também é culpada pelo estupro.

O Brasil já foi condenado pela Comissão Cedaw, da ONU, por haver uma verdadeira epidemia de mortalidade materna no momento do parto, a qual anda ao lado da epidemia de cirurgias cesarianas. Há um conjunto de violências às mulheres normali-zado no parto, que deveria ser um momento sagrado de trazer à vida um novo ser.

Muitas mulheres estão morrendo nas mesas de cirurgia plás-tica na exigência de alcançarem um utópico padrão de beleza: que sejam eternamente adolescentes. A sociedade lhes reconhece o valor enquanto cumprem o papel de objeto de desejo sexual. Um padrão de beleza que simplesmente não se exige dos homens: afinal dizem que é dos carecas que elas gostam mais e que cabe-los grisalhos dão um certo charme aos homens.

Tenho um filho de 16 anos e uma filha de 12. Gostaria muito que eles pudessem crescer numa sociedade livre da violência decorrente da divisão estereotipada de papéis entre homens e mulheres. Que minha filha tivesse a liberdade de poder vestir um shorts e andar sozinha na rua, sem o risco de ser sistematica-mente assediada ou mesmo violada. Que meu filho tenha a liber-dade de chorar nos momentos de dor, de se dedicar mais aos filhos, e não precise externar comportamentos violentos ou domi-nadores como prova de sua masculinidade. Que não houvesse qualquer problema em minha filha ganhar mais que seu futuro companheiro, nem em meu filho ganhar menos que sua futura companheira. Acima de tudo, que eles tenham a liberdade de

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101101As violências contra as mulheres

serem eles mesmos, sem pressões por papéis que incentivam a violência. Que eu possa andar na rua abraçado com meu filho sem o risco de ser confundido com um casal homossexual e sermos apedrejados. E que os casais homossexuais igualmente possam viver em uma sociedade livre, justa e solidária, sem nenhuma forma de discriminação.

A violência contra as mulheres é um câncer social. Violenta mulheres e também homens. As mulheres são e devem continuar sendo as protagonistas na luta por seus direitos humanos. Mas eu, homem, sou solidário a essa luta, porque dela também preciso para afirmar a minha própria humanidade. Meu desejo é que possamos refletir sobre as invisíveis micro relações de poder que subalternizam as mulheres e precarizam sua existência, rumo à efetiva igualdade de direitos entre homens e mulheres. Que diga-mos todos não às violências contra as mulheres.

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Segurança pública não é caso de polícia!

Rodrigo Cosenza / Valdir Ribeiro

A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral .

Walter Benjamin

As últimas pesquisas1 sobre as maiores preocupações dos brasileiros revelaram que a segurança pública, ao lado da educação e da saúde, se tornou prioridade. Muito se diz sobre

os problemas ligados ao tráfico de drogas, assaltos, assassinatos e violência, no campo e nas cidades. Mas poucas vezes a questão fundamental é levantada: afinal, o que é segurança pública?

A Constituição de 1988 define que segurança pública2 – dever do Estado e de toda a sociedade – é a organização para garantia da ordem pública e suas atribuições são responsabilidade dos órgãos ligados à segurança como as polícias civil e militar, polícia rodoviá-ria, aduaneira e de fronteiras, corpo de bombeiros e as guardas municipais. Esses órgãos institucionais desempenham ora o papel de fiscais, de investigadores ou de repressores, mas sempre de garantidores do que se chamaria normalidade pública. Nesse sentido, as políticas de segurança pública são as garantidoras de uma normalidade da vida e sua ação liga-se ao controle social.

Em todo o espectro político o tópico recorrente para se iniciar a reflexão sobre segurança é a violência, identificada imediata-mente pelo número de crimes cometidos, destacando-se os homi-cídios. À esquerda e à direita parece haver um consenso em torno da incolumidade do cidadão, isto é, em torno da defesa de sua vida. Segurança pública nesse sentido seriam aquelas políticas que priorizam a proteção à vida.

Alguns defenderiam a instrumentalidade das polícias e acredi-tam que elas são a materialização da força necessária do Estado para o controle social. Outros sustentariam a tese de que o Estado é

1 Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/08/segu-ranca-e-2-maior-preocupacao-dos-brasileiros-segundo-pesquisa.html>. Acesso em: set./2014.

2 Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=1359>.

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dominado por uma classe e as polícias tornar-se-iam as defensoras dos interesses dessa classe dominante. Tanto lá como cá, as políti-cas de segurança são assumidas à luz dos problemas da natureza, organização, gerenciamento ou gestão das diversas esferas policiais. Ou seja, nem esquerda, nem direita prescindem da existência e da centralidade da força policial nas políticas de segurança.

Medidas socioeducativas,3 penas capitais ou privatização das prisões são tópicos recorrentes. A segurança pública pensada a partir do conjunto dos aparatos punitivos e de justiçamento da sociedade, são adequados ao controle social e corresponde à lógica das ações policiais. Isso significa que a necessidade ou não do encarceramento e do tipo de punição esperado determinam as respostas adequadas a essa sorte de questões. Obviamente, os olhares se voltam à eficiência dos tribunais e ao trabalho dos promotores, defensores e juízes.

As consequências dessa forma de se pensar a segurança pública podem ser avaliadas pelos atuais investimentos no setor carcerário. Eles aprofundaram os sistemas de repressão e de controle social por parte do Estado à custa do crescimento verti-ginoso da população e das mazelas do sistema carcerário. Isso tem se mostrado menos uma solução do que um novo problema a ser resolvido.4 Além de não reduzir os índices de criminalidade e violência, aprofundam-nas o que revelam os altos índices de rein-cidência e de violência que a própria vida encarcerada produz.

Na prática, esses elementos criam uma política de opressão e de confronto que recrudesceu a violência policial. Aprofundou-se o número de ações militares de intervenção nas cidades e no campo, investimentos na aquisição de armamento para os órgãos de segurança, em tecnologias de identificação biométrica, treina-mento especializado para ações armadas em territórios urbanos – favelas, por exemplo – e aquisição de armamentos para defesa

3 Apesar de serem medidas socioeducativos, elas mantêm-se na lógica de organi-zação punitiva se não alcançam os níveis desejados de ressocialização e apren-dizagem necessários à reincorporação social daquele cidadão.

4 “O sistema é um sumidouro de verbas. Entre presídios e unidades socioeducati-vas, em 2013 foram gastos 4,9 bilhões de reais, segundo o último Anuário Brasi-leiro de Segurança Pública. A despesa média com cada preso, informa o Depen, situa-se entre 2,5 mil e 3 mil reais por mês (valor aproximado do investimento anual com alunos da rede pública).” Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/838/se-cadeia-resolvesse-4312.html>.

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de fronteiras. Resultado: os números de policiais e indivíduos à margem da lei mortos5 crescem assustadoramente ano após ano.6

Políticas públicas de segurança concebidas como ações de intervenção para controle e repressão são heranças das políticas de segurança no Brasil dos tempos da Ditadura Militar. A Lei de Segurança Nacional daquele tempo via os cidadãos como poten-ciais inimigos internos. Isto era possível graças à existência do estado militar de emergência, ou seja, uma forma permanente de estado de exceção. O encarceramento, a prisão preventiva ou temporária e a ação violenta e direta, excepcionais nas democra-cias, eventualmente tornaram-se o padrão das políticas de segu-rança. Desafortunadamente a constituição de 1988 não conse-guiu superar a lógica e a cultura presentes nos anos de chumbo.

O desafio atual é reinterpretar o sentido das políticas de segu-rança à luz da democracia, isto é, saber como deveriam ser cria-das politicas de segurança pública no regime democrático. Soares (2000) afirma que:

Nesse sentido, a segurança pública democrática seria o tipo ideal regulatório de um processo coletivo que, mesmo animado pelo movimento imprevisível da liberdade e dos efeitos de composição, se orienta pela profecia auto realizada da reprodu-ção das condições apropriadas à celebração do contrato inclu-dente em bases igualitárias.7

O cidadão, como imagina Soares (2000), é prioridade nas polí-ticas de segurança. O direito e a liberdade política nasceriam da cessão por parte dos cidadãos de algo de sua liberdade de agir em nome da segurança. Nesse caso, as políticas de segurança são a condição prévia para a liberdade da ação cidadã, suportando e protegendo a vida e os direitos que se produzem no contrato. Todavia, esse direito à segurança se produz antes da ação conjunta

5 A média de letalidade anual das polícias no Brasil é de 2.000 mortos. RAMOS, Michele.

6 “(...) mais de 60 mil pessoas são assassinadas por ano no país e há um forte viés de cor e condição social nessas mortes: ‘Numa proporção 135% maior do que os não negros. Enquanto a taxa de homicídios de negros é de 36,5 por 100 mil habitantes, no caso de brancos, a relação é de 15,5 por 100 mil habitantes” BEL-CHIOR, D. em: Negros são 70% das vitimas de assassinatos no Brasil reafirma Ipea. Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/18/negros-sao-70-das-vitimas-de-assassinatos-no-brasil-reafirma-ipea/>.

7 Apud SOARES, Luiz Eduardo: Notas sobre segurança pública. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/en-saio3_notas_2.pdf>.

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dos indivíduos. Ele se estabelece no vazio do direito e é soberano, pois dele se originam os demais direitos cidadãos. A defesa contra-tualista de Soares (2000) dirige a segurança pública para um estado de exceção.

Idealmente, a ação soberana do cidadão deveria ocupar a centralidade das políticas de segurança, mas é impossível esca-par daquela situação excepcional, a não ser que, talvez, se pense a segurança pública como meio para a fundação de uma cultura de direitos e não como fim. A esse respeito, Motta (2014) diz:

Ao contrário do que se costuma ler e ouvir, segurança não é nem sinônimo de polícia, nem de prisão. Segurança pública é o resultado da articulação de diversas políticas sociais visando a defesa, garantia e promoção da liberdade. Um estado cheio de prisões e repleto de policiais não é um estado seguro, muito menos livre. Um estado livre é o que se organiza em torno de uma cultura de direitos.8

Sendo assim, os direitos humanos – historicamente considera-dos – poderiam se tornar o fundamento a partir do qual as políti-cas de segurança seriam reconsideradas. Caminha-se para pensar dentro dos marcos da liberdade, da democracia e da vivên-cia plena da cidadania. Fugir da lógica do estado de exceção é pensar um novo caminho para a segurança pública. Eis a tarefa!

Mas quais os impeditivos? Que forças sociais turvam a possibi-lidade de superar o paradigma que hoje direciona tais políticas?

Quando a organização e a burocracia impedem que o público seja tratado como tal, que a liberdade e o cidadão sejam os prota-gonistas do convívio há de se pensar na legitimidade dessa ordem. Ou seja, a atual política de segurança pública fracassou e é preciso repensá-la.

Enquanto se mantiverem as forças econômicas que atuam diretamente para a manutenção do status quo, o lobby das empre-sas de equipamentos de segurança que impede a superação da lógica do enfrentamento bélico e do encarceramento e a campa-nha pela aquisição de equipamentos cada vez mais modernos para combate a violência, a solução para os problemas da segu-rança pública ficará presa no modus operandi policial, o terreno da repressão, da violência e da exceção. Essa parece ser a conclu-são do Ipea. Em uma publicação de 2003, lê-se:

8 MOTTA, Tarcísio: Segurança cidadã. Disponível em: <http://tarcisio50.com.br/2014/08/seguranca-cidada/>.

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Sabe-se que o capital financeiro representa um dos fatores mais importantes para a estruturação do crime organizado. A lava-gem do dinheiro e sua interface com o sistema financeiro permi-tem a reciclagem do capital que financia o comércio de ilícitos que, por sua vez, possibilita a acumulação de capital do crime e as fontes de recursos para a corrupção que em última instância, favorecem a atuação em escala do crime organizado.9

A sugestão é que se pense em aprofundar a construção das políticas de segurança pública elaboradas pelo conjunto da socie-dade e vividas por todos. Tudo o que é público, de direito e respon-sabilidade de todos, garantidos pelos instrumentos da organiza-ção republicana precisa estar sob o cuidado do conjunto dos cidadãos livres.

A análise se direciona pela reinterpretação do conceito de segurança pública – que pode e deve ser pensada a partir da radi-calização da democracia, a fim de garantir a isonomia dos cida-dãos diante das leis e da constituição, bem como de retirar a polí-cia da centralidade de tal discussão, ou mesmo de ser o diapasão único do tema. Sua principal função é assegurar que a democra-cia se realize plenamente. Isso significa que todas as políticas de segurança pública seriam formadas através de debates e com ampla atuação popular e deveriam ser totalmente transparentes ao controle e à fiscalização da sociedade.

O primeiro passo é a desmilitarização das polícias e dessa lógica de funcionamento da segurança pública. Esse padrão de organização impede a atuação cidadã direta sobre as forças de segurança e mantém o policial distante da sociedade com a qual ele trabalha. A desmilitarização permite ainda uma relação hori-zontal entre a sociedade e os agentes de segurança. Isso se completaria pela redistribuição do controle das instituições de segurança. Com o aporte logístico e econômico da Federação e dos Estados o controle e organização das polícias deveriam estar a cargo das comunidades municipais. Deixa-se claro que desmili-tarizar não é somente dar fim a Polícia Militar, mas principal-mente acabar com uma cultura militarizada que há em todos os órgãos ligados direta ou indiretamente a segurança pública.

Uma segunda proposta seria a unificação das secretarias que de alguma forma agem na segurança. Não necessariamente sua união formal, mas obrigatoriamente aproximação prática. Os

9 Disponível em: <http://carceraria.org.br/wpcontent/uploads/2012/07/Plano_Nacional_Seguranca_Publica_analise.pdf>.

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setores de segurança precisariam dialogar constantemente com os demais setores da sociedade. Secretarias de segurança, de assistência social, direitos humanos e o poder judiciário, por exemplo, deveriam compartilhar uma base de dados comum e equipes interdisciplinares atuariam em conjunto em todos os casos necessários.

No Brasil, negros, pobres, o público LGBT e outros grupos minoritários aparentemente não estão incluídos na democracia. Eles são mais suscetíveis à falta de segurança e estão, ao mesmo tempo, mais expostos à violência e menos amparados por qualquer política pública. Pior ainda, estão sujeitos à atual política violenta e militarizada de segurança pública do Estado. Sendo assim, a terceira proposta seriam ações de aprimoramento e treinamento constante dos agentes de segurança, enfatizando a compreensão dos direitos humanos e de tolerância com a diversidade.

As políticas de criminalização das drogas e dos usuários têm lotados os presídios e agravado o contato precoce de jovens com o crime organizado, portanto uma quarta saída seria a reversão dessa forma de abordar a questão das drogas.

Sem pretender esgotar as possibilidades de solução, apre-senta-se aqui uma última sugestão importante: o fortalecimento das Defensorias Públicas Estaduais. Essa é uma medida impor-tante para garantir que o cidadão tenha, de fato, um direito de defesa jurídica de qualidade. Há também a necessidade de forta-lecer o Ministério Público no que tange às suas atribuições, mas enfatizando o que diz a Constituição de 1988 sobre sua natureza, ou seja, comprometendo-se com a defesa da cidadania e da digni-dade da pessoa humana.

Mas e a polícia? E os crimes? Essa é a ínfima parte desse complexo, reificadas, extrapoladas e postas em um status que não lhes pertencem. Tratar de polícia é tratar de prevenção e investigação de crimes, estabelecer estratégias e prover meios para que crimes não ocorram. Caso ocorram, que sejam investi-gados com técnica e percepção de seu lugar social. Polícia é instrumento, segurança pública é cidadania!

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Referências

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua 2ª ed. Belo Horizonte: UFMG, 2014.

______. Estado de exceção . 2. ed. São Paulo: Boitempo, 2004.

BELCHIOR, Douglas. Negros são 70% das vítimas de assassinatos no Brasil reafirma Ipea. Disponível em: <http://negrobelchior.cartacapital.com.br/2013/10/18/negros-sao-70-das-vitimas-de-assassinatos-no-brasil-reafirma-ipea/>. Acesso em: set./2014

BARROCAL, André. Se cadeia resolvesse o Brasil seria exemplar. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/revista/838/se-cadeia-resolvesse-4312.html>.

BRASIL. Constituição 1988 . Disponível em: <http://www.stf.jus.br/portal/constituicao/artigoBd.asp?item=1359>.

G1. Segurança é 2ª maior preocupação dos brasileiros segundo pesquisa. Disponível em: <http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2014/08/seguranca-e-2-maior-preocupacao-dos-brasileiros-segundo-pesquisa.html>. Acesso em: set./2014.

HOBBES, Thomas. Leviatã. (trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva). 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1979 (col. Os pensadores).

MOTTA, Tarcísio. Segurança cidadã . Disponível em: <http://tarcisio50.com.br/2014/08/seguranca-cidada/>. Acesso em: set./2014.

SOARES, Luiz E. Notas sobre segurança pública. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/politicas_sociais/ensaio3_notas_2.pdf>.

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VI. Educação

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Autores

Faouzia KalaliProfessora doutora da Universidade de Rouen-França <faouzia .kalali@univ-rouen .fr> .

Renata CabreraProfessora doutora do Instituto de Biociências da Universidade Federal de Mato Grosso <renatacabrera@ufmt .br> .

Tiago Eloy ZaidanMestre em Comunicação Social pela Universidade Federal de Pernambuco, coautor do livro Mídia, movimentos sociais e direitos humanos (Org . por Marco Mondaini) e professor do Curso de Comunicação Social na Faculdade Joaquim Nabuco e na Escola Superior de Marketing/Fama, todas no Recife-PE .

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Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França:

considerações preliminares de um projeto em parceria

Renata Cabrera / Faouzia Kalali

As últimas três décadas evidenciam o vigor com o qual o modo de produção capitalista enfrenta suas crises internas e se mostra cada vez mais como meio de garantir a acumulação de riqueza na mão de pequena parcela da população.

As transformações pelas quais passa a sociedade contemporâ-nea implicam em mudanças nas esferas das políticas sociais. Nesse sentido, coadunamos com os argumentos apresentados por Libâneo, Oliveira e Toschi (2008) que relacionam a educação no contexto das transformações da sociedade atual, evidenciando, no caso da formulação das políticas educacionais, a influência que países em desenvolvimento recebem de organismos interna-cionais. Essas transformações interferem no modus vivendi e operandi da escola. Esses autores destacam que:

(...) pensar o papel da escola nos dias atuais implica, portanto, levar em conta questões sumamente importante. A primeira e, talvez, mais importante é que as transformações mencionadas representam uma reavaliação que o sistema capitalista faz de seus objetivos. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2008, p. 53).

A reavaliação dos objetivos feita no interior do modo de produ-ção capitalista traz implicações para a forma de relação entre as nações e no desenvolvimento das políticas sociais. Para permitir a maior acumulação é preciso criar um mercado consumidor de maneira a garantir a circulação de mercadoria. Ganham força, nesse cenário, instituições como o Banco Mundial e o Banco de

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Desenvolvimento Interamericano (BID) que financiam projetos de reformas nos países em desenvolvimento.

Essas reformas atingem, sobretudo, o campo das políticas sociais, onde se inserem as políticas educacionais. O Brasil pôs em prática uma série de reformas em seu sistema educativo, desde a metade da década de 90 do século XX, que seguiram as regras de organismos internacionais como o BID. A título de exemplo pode ser citada a reforma curricular da educação básica, que culminou na elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) em 1996, a expansão do ensino médio e a ênfase na forma-ção dos profissionais da educação.

As publicações na França e na comunidade europeia, ao final do século XX, também evidenciaram o interesse nos domínios da educaçao em geral e das ciências específicas, expressos em rela-tórios e em textos de orientações (European Commission, 2004, 2009; THÉLOT, 2004). Este interesse reflete a importância do ensino científico no devolvimento econômico (European Commis-sion, 2004). As prescrisções e as recomendaçôes são dadas sob a forma de padrões e de objetivos esperados de acordo com a escala internacional. (KALALI; JENKINS, 2012).

O ciclo comum de conhecimento e de competência (THÉLOT, 2004) dotar os alunos de conhecimentos e de bases para que desempenhem seu papel como cidadãos. Os objetivos fixados (BO, 2005), por exemplo, para os cursos de ciências no ensino funda-mental centram em permitir ao aluno construir uma cultura científica que lhe permita ter representação global do mundo no qual ele vive. Os programas escolares centram no desenvolvi-mento de práticas experimentais, no pensamento matemático e nas ferramentas de informação.

Essa reforma do ciclo comum coloca destaque sobre o compo-nente experimental e reafirma o papel importante que ele desempe-nha. Kalali (2008) mostrou que em cada reforma a dimensão expe-rimental serve de elemento de debate a tal ponto que ela acompanha a história do ensino científico na França desde a revolução.

Várias mudanças de programas seguiram e colocaram desta-que sobre a experimentação, que propiciou o melhor conheci-mento das relações dos seres vivos e do seu meio. Na Biologia, fala-se de uma verdadeira carta para o ensino das Ciências Natu-rais no secundário (KALALI, 2008). Essas mudanças proporcio-naram o rompimento com a tradição de observação das Ciências Naturais e introduziram o estudo dos problemas biológicos.

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113113Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França

O componente experimental teve desde o começo um papel polí-tico. A reforma atual do Ciclo Comum de Conhecimentos e de Competências (THÉLOT, 2005) mobilizou novamente para as ciên-cias o interesse por uma vertente experimental necessária para a promoção de uma visão de uma cultura contemporânea do mundo.

No que se refere ao cenário brasileiro, as principais políticas que incidiram no ensino de Biologia, de 2000 a 2012, centraram na aquisição de laboratórios para o desenvolvimento de atividades didático-experimentais nas escolas de Ensino Médio (CABRERA; CAMPOS, 2013).

Nesse período, por exemplo, a Rede Escolar Estadual de Mato Grosso (REE-MT) fez aquisição de laboratórios para o ensino das Ciências da Natureza para 74 unidades escolares. Estes laborató-rios foram viabilizados por meio de ações de políticas educacio-nais tais como: Programa Ensino Médio Inovador (Proemi), Programa Mais Educação, Programa Brasil Profissionalizado; Programa de Desenvolvimento Escolar (PDE-escola), Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE) e o Programa de Melhoria e Desenvolvimento do Ensino Médio (Promed).

Stephen Ball (2006) discute sobre as novas formas de controle social imbuídas nas reformas que os Estados vêm implementando para atender à lógica mercadológica das políticas neoliberais. Esse autor alerta sobre a necessidade de analisar o contexto onde as políticas públicas são desenvolvidas que segundo esse autor:

(...) a análise política necessita ser acompanhada por cuidadosa pesquisa regional, local e organizacional se nos dispomos a entender os graus de “aplicação” e de “espaço de manobra” envol-vidos na tradução das políticas nas práticas ou na diferencial “trapaça” das disciplinas da reforma. (BALL, 2006, p. 16).

A necessidade de apoiar a ação política pelas pesquisas e conci-liar a agenda política foi discutida por Kalali & Jenkins (2013).

Como vem sendo traduzidas as políticas educacionais que incidem no ensino de Biologia no sistema educacional brasileiro e francês? Como se insere o professor nesse contexto de desenvolvi-mento de políticas que recairão sobre o seu trabalho docente? Que papel tem desempenhado os pesquisadores na orientação das políticas educacionais para a educação científica? Essas são algumas questões que auxiliam no contorno do projeto de parce-ria estabelecido entre o Brasil e a França, por meio da Universi-dade Federal de Mato Grosso e a Universidade de Rouen-França.

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O projeto intitulado “L’entrée dans la vie, l’entrée dans la culture: entre l’actuel et le futur” foca na compreensão das rela-ções que se estabelecem entre cultura científica, cultura escolar e vida em sociedade, e toma como base os questionamentos que sustentam a reforma do sistema educativo francês, implementada desde 2005. São três as questões que orientam a referida reforma, a saber: como se constitui o mundo no qual eu vivo? Qual é o meu lugar? Quais são as responsabilidades individuais e coletivas?

Essas questões são orientadas pelo entendimento de que o desenvolvimento de uma política educacional apresenta entre as suas principais etapas: a formulação – elaboração dos textos, a implantação, implementação, acompanhamento e avaliação. Estamos convictas de que sem a participação efetiva do professor no cerne desse desenvolvimento essas políticas tendem ao fracasso e o trabalho docente pode ser convertido em trabalho alienado, que é alheio a quem o produz, que expropria o Homo sapiens da sua condição humana.

Políticas educacionais para o ensino de Biologia no Brasil e na França: algumas considerações

A análise histórica evidencia convergências entre a história do ensino científico francês (KALALI, 2008) e o brasileiro (SOUZA, 2009). Para a França, nós estabelecemos as mudanças dos programas depois da revolução até os anos 70, passando pela grande reforma de 1902, reiterando os debates recorrentes do cultural versus o utilitário.

Esse debate surgia a cada reforma e atravessou, assim, toda a história do ensino de Ciências. Esse debate reunia as diferentes tendências e correspondia a diferentes aspectos: literários versus científicos; velhos contra modernos; partidários da educação utilitá-ria contra aqueles que defendiam uma educação desinteressada.

O caráter experimental em todos esses debates serviu de argu-mento para justificar todas as reformas desde o século XIX. Atualmente, este caráter não esta mais a situar na oposição espe-cialidade/humanidades – ele não toma esses dois aspectos que opõem Domenach (1989): o homem culto, capaz de apreender os conhecimentos essenciais; o especialista, que se fecha em um saber único –, mas ele se situa hoje antes na distinção entre uma cultura humanista, generalista, unificadora e aberta ao presente

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e uma nova cultura de partilha de saberes, baseada sobre as divergências de opiniões e de contextos.

Souza (2009) analisou os debates que acompanharam as mudanças no currículo brasileiro desde 1902 a 1960 que se inscreveram em uma visão humanista do currículo reunindo diversos atores como os educadores que problematizavam essa questão que guiavam as orientações curriculares, ou seja, os intelectuais de diversas tendências progressistas e aqueles de influência católica.

O contexto contemporâneo milita por um novo humanismo que tenta guiar as diversas reformas que atravessam os países durante este século 21.

O destaque para o aspecto experimental do ensino de Biologia tem orientado as reformas no contexto francês e brasileiro. No caso francofônico, reformas foram introduzidas nos programas curriculares. Na situação brasileira, a ênfase das políticas recaiu sobre a aquisição de material e equipamentos para o desenvolvi-mento de atividades didático-experimentais.

De modo geral, a situação das disciplinas científicas no contexto do sistema educativo francês, durante o século XX, evidencia a organização de um campo disciplinar autônomo, sobre a base da promoção do método experimental. Este, graças ao seu valor educativo que lhes reconhecem os clássicos, serviu para distinguir o ensino de Ciências do ensino da Matemática. Ele serviu, então, para caracterizar o que se tornaria mais tarde o ensino das disciplinas científicas experimentais.

O quadro a seguir apresenta os aspectos que constituíram a evolução do ensino das Ciências Experimentais na França.

Quadro 01 – Evolução do ensino das Ciências Experimentais na França

Especialidade Disciplina

Utilidade práticaValor educativoDiferentes saberes operacionais

Formação do espíritoValor culturalSaberes e questões tipos

Fonte: Kalali, 2008.

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Atualmente, na escola média, a evolução das disciplinas, sobre-tudo da Biologia, alterou os currículos que integraram os aspectos sociais e éticos. Novidades encontradas entre as disciplinas experi-mentais se tornariam então necessárias. A função cultural da partilha de saberes científicos é levantada. Esta nova tendência é afirmada atualmente por temas de convergências previstos pelos programas de 2005, no contexto francês. Seus conteúdos energia, meio ambiente e desenvolvimento durável, meteorologia e climato-logia, estatística aplicada ao olhar científico sobre o mundo, saúde e segurança, evidenciam a procura da dialética recaída sobre os conhecimentos científicos e sociais. Esses novos programas são ligados à nova reforma em curso do Ciclo Comum. (THÉLOT, 2004).

No contexto brasileiro, as pesquisas têm mostrado distancia-mento do professor no desenvolvimento de políticas educacionais que têm incidido sobre o seu trabalho e o foco dessas políticas para a educação científica tem sido a aquisição de equipamentos para laboratório. (CABRERA, 2015).

Libâneo, Oliveira e Toschi (2008, p. 39) alertam para a necessi-dade de relacionar o trabalho do professor ao contexto mais amplo onde suas práticas estão inseridas, nas palavras desses autores:

É certo que a sala de aula representa o principal espaço de atuação dos professores, mas a prática docente não acontece apenas ali. Ressalta-se, assim, a importância de compreender as ligações do espaço escolar com o sistema de ensino e com o sistema social, para articular as práticas pedagógico-didáticas com as demais práticas sociais concorrentes.

Ademais, quando o professor é tomado como mero operador prático de programas e ações oriundas das políticas educacionais gestadas, sem levar em conta a participação desse profissional, abre-se espaço para que esse trabalhador seja expropriado do produto do seu trabalho, no sentido de que será limitada a compreensão dos múltiplos determinantes que estão a agir sobre a sua ação em sala de aula.

Nesse sentido, o trabalho docente é entendido para além do domínio das práticas pedagógico-didáticas, desenvolvidas no âmbito da sala de aula, pois o professor é compreendido como sujeito da sua própria ação, ou seja, que faz história ao mesmo tempo em que se tem a consciência sobre a mesma.

A experimentação por si só não garante a apreensão de uma cultura científica que atrele questões do saber elaborado ao saber social e ético, questões que nos coloquem em termos de indagar e

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de compreender nossas responsabilidades com as gerações presente e futura.

É necessário o engajamento dos pesquisadores, da comuni-dade científica e professores no que se refere ao desenvolvimento das políticas educacionais voltadas para a educação científica de maneira que as indagações a respeito de “conhecimento sobre” e o “conhecimento para” estejam na linha condutora.

Para além da apropriação mecânica dos saberes escolares, é necessária a apreensão crítica dos mesmos, de modo a proporcio-nar que a difusão de uma cultura científica e tecnológica esteja a serviço de uma cidadania planetária.

Considerações preliminares

A análise do quadro da política educacional nos contextos francês e brasileiro evidencia que as reformas que estes países vêm implementando se inserem no quadro das transformações e mutações pelas quais passam as sociedades contemporâneas. Indagações sobre o papel e importância da educação científica, da atividade experimental no ensino de Biologia, ganham destaque na formulação de políticas para esse setor.

A experimentação no ensino de Biologia tem sido objeto das reformas que o Brasil e a França implementaram nas últimas décadas. Analisar como essas políticas têm incidido sobre o traba-lho do professor é questão imperiosa, pois é esse o profissional que as implementa em sala de aula.

Da mesma maneira, é salutar desvelar as dimensões das políticas educacionais sobre a educação científica e o papel que têm desempenhado pesquisadores da área no desenvolvimento das mesmas.

Dados de pesquisas (KALALI, 2010; CABRERA; CAMPOS, 2013; CABRERA, 2015) evidenciam que a lacuna existente entre o que se realiza na escola e o que se formula como política educacional para o ensino de Biologia. Estes dados articulados com a indagação sobre a maneira como a escola tem contribuído para a formação de uma cultura científica e tecnológica, que permita aos indivíduos que por ela passem a compreenderem e explicarem o mundo, cons-tituem o cerne do projeto de cooperação que ora se desenvolve entre duas universidades parceiras no Brasil e na França, a Universi-dade Federal de Mato Grosso e a Universidade de Rouen.

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Referências

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CABRERA, R. C. Laboratório para o ensino de Biologia: relações entre o desenvolvimento de políticas educacionais e o trabalho docente na Rede Escolar Estadual de Mato Grosso. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Educação para a Ciência, Faculdade de Ciências, Unesp, Campus de Bauru-SP, 2015.

DOMENACH, J.-M. Ce qu’il faut enseigner. Paris: Le Seuil, 1989.

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KALALI, F. L’enseignement des sciences expérimentales ou le débat récurrent du culturel versus utilitaire. Revue Spirale, n. 42, 2008, p. 183-194. Disponible sur: <http://spirale-edurevue.fr/IMG/pdf/Kalali_Spirale_42.pdf>.

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119119Políticas educacionais e educação científica no Brasil e na França

MINISTÈRE NATIONAL DE L’ÉDUCATION EN FRANCE Programmes des enseignements de mathématiques, de sciences de la vie et de la terre, de physique-chimie pour les classes du cycle central du collège (classes de cinquième et de quatrième). Bulletin Officiel 5, 25/aout/2005.

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Biblioteca Pública Estadual da Paraíba, um retrato

Tiago Eloy Zaidan

A Biblioteca Pública da Paraíba foi fundada em 1859, por Henrique Baurepaire Rohan, mas, apenas em 1939, foi estabele-cida no atual prédio que a abriga, na Avenida General Osório, região central de João Pessoa. Trata-se de um casarão ventilado, com estrutura imponente, que já abrigou, antes dos livros, a primeira Escola de Ensino Primário e o Tribunal de Justiça. Tal edificação, cuja pedra fundamental data de 26 de março de 1874, foi concluída somente em 1884.1

Depois disso, a biblioteca e o casarão histórico ainda foram separados uma vez. Foi em 1982, ano marcado pelos derradeiros atos da ditadura militar no Brasil. Naquele ano, o acervo foi trans-ferido para o Espaço Cultural da Paraíba, deixando o centro da capital paraibana órfão de biblioteca. O limbo durou até 1998, quando a Biblioteca Pública retornou ao prédio, o qual já lhe confere identidade.2

Atualmente, sob a alcunha de Biblioteca Pública Estadual Augusto dos Anjos, o espaço possui cerca de 26 mil títulos, dos quais 16 mil estão cadastrados digitalmente. Entre 1.500 e 1.800 títulos são infantis, e ficam em estantes à parte. Trata-se de um acervo basicamente conquistado por meio de doações, como o são as cerca de 300 revistas em quadrinhos em espanhol, inglês e português, doadas por um usuário. Também constam periódicos, gentileza dos frequentadores os quais possuem assinaturas de revistas. As informações são de Severina Kátia Augusta da Silva, a abnegada coordenadora da biblioteca.

Fisicamente, a estrutura é composta por uma recepção, o salão do acervo e um amplo salão de leitura, com sete computa-dores ligados à internet disponíveis para os usuários. “Cada um tem o direito de usar por uma hora, podendo renovar por mais uma hora. Eles têm acesso ao que eles quiserem, com exceção de sites pornográficos e jogos. Essa parte eles não podem acessar”,

1 GOVERNO DO ESTADO DA PARAÍBA. Secretaria de Educação. Biblioteca Públi-ca Estadual Augusto dos Anjos. João Pessoa, 2014. Folder.

2 Ibidem.

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esclarece Severina Kátia. O salão de leitura abriga ainda eventos, como saraus poéticos, lançamentos de livros e exposições, a exemplo da recentemente realizada mostra em memória de Augusto dos Anjos, ilustre poeta paraibano e patrono da institui-ção. Periodicamente, o salão também é adaptado para receber crianças de escolas municipais e estaduais, em ações de imersão dos infantes no mundo da leitura.

O fluxo diário de visitantes ao espaço é de 60 pessoas, em média. Embora este número possa variar, Kátia esclarece que, em época de alta estação turística, o prédio recebe visitantes de outros estados e, até mesmo, de outros países, curiosos em desco-brir o acervo da biblioteca local.

Para o futuro, pelo menos dois projetos de infraestrutura estão em pauta. A climatização do ambiente – o que demandaria a apro-vação do Instituto Histórico e Geográfico, uma vez que o prédio é tombado, conforme faz saber a bibliotecária – e a disponibilização de wi fi para os usuários, já que a internet é acessível apenas nos sete computadores alocados no salão de leitura.

O encetamento de tais projetos depende diretamente de nego-ciações junto à Secretaria de Educação do Estado, à qual a biblio-teca está vinculada atualmente. A instituição não possui verba própria e depende da emissão de projetos e ofícios à Secretaria para as ações, como os eventos, incluindo aqueles destinados aos estudantes da rede pública, e reparos na estrutura física. Foi assim que a biblioteca recebeu os seus equipamentos mais recen-tes, como computadores e um aparelho de reprografia. Antes, Kátia lembra que precisava valer-se de uma máquina de datilo-grafia elétrica.

Apesar das conquistas, nem todas são boas notícias. “A gente tem muitos projetos, mas não é certeza que eles vão sair”, admite a bibliotecária. O motivo é patente: a limitação dos recursos. Por falta de verba, o miniauditório da biblioteca, com capacidade para cerca de 25 pessoas, foi desativado. Isso porque as cadeiras preci-saram ser deslocadas para o salão de leitura, onde os usuários não podiam prescindir delas.

O arrocho afetou, da mesma forma, o horário de funciona-mento da Biblioteca Pública Estadual. Antes, o espaço funcionava das 8 da manhã às 21h30. Hoje, sob o pretexto de economizar energia elétrica, o expediente foi encolhido para as 16h30, para a frustração dos usuários, muitos dos quais comerciários, impossi-

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bilitados de usufruir do espaço, durante à manhã e à tarde, conforme reconhece Kátia.

Como se não bastasse, alguns problemas podem residir justa-mente naquele que é o principal motivo da biblioteca existir: o usuário. Há leitores que, diante de uma página cujo assunto lhe interessa, não titubeiam: arrancam a folha do livro. Deste impro-pério estavam padecendo, sobretudo, os títulos de história da Paraíba, bastante procurados pelos candidatos em concursos públicos. Agora, tais obras ficam guardadas na recepção, e o usuário interessado deve solicitar o livro no balcão.

A despeito dessa atitude, o desrespeito à biblioteca e ao seu acervo não é a regra. Muitos dos frequentadores possuem uma relação com o espaço, a qual vai muito além do pragmatismo. Chega à admiração e à afabilidade.

Durante a nossa conversa, Kátia me aponta um senhor que se deleitava como criança, em uma mesa, de posse de alguns livros. “Esse senhor de amarelo. Ele já está aqui na biblioteca há 50 anos. Quando ele era jovem, vinha estudar aqui. Terminou, aposentou-se, e continua lendo aqui. Todo o acervo daqui ele conhece. Ele vem sempre”.

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VII. Ensaio

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Autor

Marcus Vinícius Furtado da Silva OliveiraJornalista paraense .

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Da revolução à democracia: uma transição incompleta

Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira

A revolução, como aponta Alberto Aggio (1997), se configura como um mito. Tal perspectiva mítica anuncia a possibi-lidade de criação de um tempo inteiramente novo a partir

de um determinado evento fundador. Nesse sentido, a revolução se comporta como um fiat do desenvolvimento da História. No Brasil, como aponta Marcelo Ridenti (2010), a revolução é apro-priada como uma necessidade nas esquerdas brasileiras a partir dos anos 1950. Diante do quadro de subdesenvolvimento brasi-leiro, grande parcela das esquerdas apostava na possibilidade de uma revolução que, fincada nos valores nacionais, seria capaz de romper com esse cenário, inaugurando um novo tempo para o Brasil. Essa brasilidade revolucionária, na perspectiva de Ridenti, é o eixo central das esquerdas brasileiras até meados dos anos 1970. A democracia, por outro lado, foi experimentada de modo bastante diverso nas culturas políticas das esquerdas brasileiras. Ao longo do século XX, sobretudo os comunistas, concebiam a democracia de modo instrumental. A democracia, nessa perspec-tiva, constitui apenas uma etapa do processo revolucionário.

Os anos 1970 marcam um processo de revisão no interior das esquerdas mundial e nacionalmente. Os ecos dessa renovação atingem o continente sul-americano, como demonstra Norbert Lechner (1988). Experimentando períodos ditatoriais, as esquerdas sul-americanas iniciam um processo de descobrimento dos valores da democracia, colocando-a como eixo central em suas discussões. No Brasil, como atesta Daniel Pécaut (1990), em seu estudo sobre os intelectuais, a rejeição do Estado autoritário leva os intelectuais

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a rediscutirem suas apreciações acerca da democracia, fazendo com que a revolução deixasse o centro dos debates.

Diante disso, esse trabalho objetiva analisar as relações entre revolução e democracia no Brasil dos anos 1970 e 1980 no debate intelectual, tomando como fontes e objetos as discussões promo-vidas por Carlos Nelson Coutinho, em A democracia como valor universal (1979), Marilena Chauí, em Cultura e Democracia (1980), e Francisco Weffort, em Por que Democracia (1984). Com a análise desses intelectuais pretendemos problematizar que a transição para a democracia das esquerdas brasileiras, entre anos 1970 e 1980, ainda se encontra em aberto, demonstrando o papel ainda central que a revolução ocupa nesses debates.

Para tanto, é necessário pensar historicamente o que possibi-lita essa reapreciação das esquerdas em relação à democracia. A rejeição ao autoritarismo do Estado levantada por Pécaut contri-bui para explicar essa problemática, todavia é preciso notar a ocorrência de um importante deslocamento na estruturação dos intelectuais na sociedade brasileira do período.

Os intelectuais brasileiros, desde o início de sua estruturação na sociedade, orbitam em torno da esfera do Estado, traçando determinados projetos de condução da sociedade brasileira (ALONSO, 2002). Essa ligação dos intelectuais ao Estado é condi-ção fundamental para o desenvolvimento de uma chave negativa da revolução passiva, como aponta Gramsci (1978). Em nosso processo de revolução passiva, isso se liga à presença do iberismo em nossa formação histórica, segundo Luiz Werneck Vianna (2003). É exatamente essa estruturação fortemente ligada ao iberismo que começa a ser deslocada no início dos anos 1970. A introdução do americanismo na sociedade brasileira, conduzida autoritariamente pelos militares, contribui para a valorização da sociedade civil em detrimento do Estado.

Portanto, amparados em Gramsci, podemos afirmar que há um processo de ocidentalização das esquerdas brasileiras iniciado nesse período. O americanismo, na perspectiva gramsciana, se comporta como uma antítese do Oriente. Nas formações históri-cas orientais, o Estado é tudo. Sendo encarado como agente modernizador por excelência, o Estado invade e molda a socie-dade civil, tolhendo a autonomia desta, estabelecendo processos de modernização de modo autoritário. O Ocidente forma-se na perspectiva contrária. A relação entre Estado e sociedade civil é invertida, de modo que a formação do Estado obedece aos movi-

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mentos da sociedade civil. As discussões dos intelectuais aqui em questão estão, nesse sentido, situadas no interior dessa conjun-tura histórica, marcada pela forte introdução do americanismo na sociedade brasileira, que gera a rejeição do Estado autoritário. Cabe agora perceber em que medida tais intelectuais se apropria-ram dessa ocidentalização.

O texto de Carlos Nelson Coutinho (1979), A democracia como valor universal, homônimo da célebre declaração de 1977 de Enrico Berlinguer, é decisivo para a compreensão desse processo de ociden-talização e reapreciação da democracia no interior das esquerdas brasileiras. Coutinho objetiva em suas reflexões estabelecer uma revisão no patrimônio político das esquerdas brasileiras, demons-trando a existência do vínculo entre socialismo e democracia.

A democracia, para Coutinho, em sua gênese, está intima-mente ligada ao liberalismo e a burguesia. Todavia, isso não significa que seus valores universais possam ser abandonados pela esquerda. Aqui, há uma revisão importante. A democracia, na cultura política das esquerdas, era desprezada exatamente pelo fato de ser burguesa. Em Coutinho, aparece uma valorização dessa democracia mesmo em sua versão burguesa.

Isso não significa, por outro lado, que o socialismo é um prolongamento da democracia liberal e burguesa. Para Coutinho, a superação da democracia liberal ocorre com a construção de uma democracia socialista. Essa democracia pode somente ser construída mediante a formação de novos sujeitos coletivos, capa-zes de conduzir a sociedade. Nesse sentido, há uma revisão dentro da própria ideia de socialismo. O socialismo não consiste apenas na socialização dos meios de produção, mas também na crescente socialização dos meios de governar.

Na análise de Coutinho, a democracia e o socialismo nascem das vicissitudes e das contradições impostas pela dinâmica priva-tista da reprodução capitalista. No Brasil, essas vicissitudes atin-gem seu ápice no processo de revolução passiva desencadeado pelos militares. Nesse processo, estão conciliados os interesses do capitalismo dependente e do latifúndio, de modo a excluir a popu-lação autoritariamente da esfera de participação política.

A renovação democrática é a alternativa à revolução passiva, que é aqui igualada ao conceito leninista de via prussiana. A demo-cracia, nessa perspectiva, ao criar sujeitos autônomos coletivos, possibilita a ruptura com as vicissitudes da reprodução capitalista, marcadas pela exclusão da população. Assim, a democracia incor-

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poraria as massas na construção do socialismo, rompendo com a cultura vanguardista e golpista das esquerdas brasileiras.

Nessa equiparação de Gramsci e Lenin, Coutinho perde o significado da revolução passiva. Gramsci ao desenvolver esse conceito partiu de uma leitura da história que detecta o surgi-mento de uma nova morfologia da política. Com isso, Gramsci elaborou um conceito que permitisse compreender novas formas de ingresso no mundo moderno, em países que não experimen-taram processos clássicos de revolução burguesa, como a Itália. Assim, na perspectiva gramsciana, a ideia de revolução passiva permite rever a revolução de tipo explosivo, característica do jacobinismo. Nesse sentido, a revolução passiva jamais pode tornar-se o seu contrário, uma vez que as condições históricas que originaram a possibilidade de uma revolução de caráter ruptural desapareceram.

Estando, portanto, a revolução fora das possibilidades históri-cas, faz-se necessária a construção de um novo tipo de política capaz de levar adiante as transformações sociais. É a partir dessa leitura que Gramsci constrói sua teoria da hegemonia. Tendo consciência de estar inserido em um processo de revolução passiva, os atores precisam disputar a construção da hegemonia, isto é, do consenso em torno de seu projeto. Em virtude disso, as transformações sociais podem ocorrer somente de modo molecu-lar, dentro de uma perspectiva democrática.

Coutinho, contudo, deseja a partir da construção da hegemo-nia e da incorporação das massas à política inverter o sentido da revolução passiva. Isso significa, em outros termos, reativar a ideia de um processo revolucionário. Essa perspectiva ainda se reforça no diálogo com Lenin. Gramsci, ao aparecer atrelado à Lenin, termina por reforçar algumas características do projeto revolucio-nário de Lenin. Embora seja evidente que Coutinho aponte as insuficiências do vanguardismo, característica essencial do leni-nismo, há um apelo para um processo revolucionário de massas.

A saída revolucionária parece inevitável em virtude da análise de Coutinho acerca do processo de reprodução capitalista. Nos moldes em que se estrutura, o capitalismo termina por, necessa-riamente, excluir a população dos processos de decisão política. Dentro desse quadro, somente um processo de esgotamento das contradições pode superar a exclusão. A democracia é, nesse sentido, um dos agravantes dessa contradição, uma vez que

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aumenta a demanda por participação, sendo capaz de inverter as vicissitudes do capitalismo.

Assim, a democracia pode somente surgir dos escombros da sociedade capitalista. Coutinho é claro ao afirmar a necessidade da socialização dos meios de governar e da criação de indivíduos autô-nomos. Todavia, esta socialização pode somente ocorrer após a socialização dos meios de produção e trabalho. É algo a ocorrer processualmente já no interior do socialismo. Nesse sentido, a demo-cracia não se comporta como um valor em si mesmo, mas como um valor fundamental para o desencadeamento do processo revolucio-nário, uma vez que agrava as contradições do sistema capitalista.

Em Marilena Chauí (2001) há também essa intersecção entre a revolução e democracia. Chauí inicia suas discussões partindo da definição de ideologia. Para a autora, a ideologia pertence ao campo do imaginário, sendo um conjunto coerente de imagens capazes de explicar e justificar a realidade. Nesse sentido, a ideo-logia visa à legitimidade do poder de determinada classe. Para tanto, a ideologia cria uma imagem a-histórica da sociedade, para que esta pareça sempre idêntica a si mesma.

A democracia, na visão da autora, permite abrir a sociedade à historicidade. Isso ocorre porque a democracia é, essencial-mente, um regime político que faz com que a sociedade se insti-tua sempre, estando aberto aos conflitos e aos dissensos. Diante disso, Chauí observa a democracia em seus aspectos históricos. Como questão histórica, a democracia abre margem para a supe-ração das ideologias e de seu caráter a-histórico, uma vez que, ao estabelecer a vivência dos conflitos, permite que a sociedade esteja aberta à historicidade.

Além destas questões, Chauí aponta as condições sociais para a existência dessa democracia. Para que a democracia exista é necessária uma transformação no sistema de produção, capaz de eliminar a divisão entre trabalho manual e intelectual. Nesses termos, a democracia, para Chauí, pode ocorrer somente mediante o término da divisão social do trabalho. Diante disso, a autora parece concluir que a democracia não pode ocorrer dentro dos marcos do capitalismo. Partindo de uma perspectiva marxiana, a divisão social do trabalho é a origem da luta de classes. Sua elimi-nação é somente possível em uma sociedade sem classes, ou seja, na construção do comunismo.

A análise de Chauí acerca do Estado também corrobora essa leitura. Assim como Coutinho, Chauí propõe uma revisão no inte-

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rior do marxismo. Partindo das análises gramscianas entre socie-dade civil e Estado, a autora estabelece uma recusa do modelo leninista, alegando que esse modelo produz uma crítica coerente ao Estado representativo, mas não tece críticas à organização do Estado em si. Tal crítica se faz necessária, na perspectiva de Chauí, uma vez que o Estado é uma forma determinada pelo capi-talismo. Em consequência dessa determinação, por mais que os movimentos sociais atuem em direção à esfera estatal em um cenário de democracia participativa, sua participação está condi-cionada aos limites do capitalismo, de modo que as demandas sociais serão repostas pelo próprio capitalismo.

Nessa conjuntura, Chauí propõe que os movimentos sociais inovem suas formas de luta. Para a autora, os movimentos sociais no Brasil nunca se pautaram por uma perspectiva anti-estatal, o que, como vimos, é uma das razões de seus fracassos na transfor-mação da sociedade. Diante disso, Chauí desloca o terreno da luta política do Estado para a sociedade civil, compreendendo que esta é o terreno, por excelência, em que desenvolve a luta de classes.

Assim como Coutinho, Chauí participa do amplo debate das esquerdas sobre a questão da democracia e do Estado. Nesse debate procura rever elementos importantes na cultura política das esquerdas, sobretudo em relação ao leninismo. Aponta as insufi-ciências e o autoritarismo da ideia de vanguarda em Lenin. Para superar as deficiências do leninismo, apoia-se também em Gramsci. Todavia, a leitura de Gramsci estabelecida por Chauí parece não frutificar-se na formulação de uma política democrática.

Ao observar as relações entre Estado e sociedade civil, Chauí terminar por excluir o Estado da esfera de luta, uma vez que este se encontra determinado pela reprodução capitalista. Ao excluir a dimensão estatal da luta pelas transformações, Chauí produz, de fato, uma importante crítica ao caráter autoritário e classista do Estado. Contudo, concomitantemente, exclui as possibilidades de uma transformação gradual e democrática da sociedade. Não havendo possibilidade de hegemonia no interior da sociedade, o socialismo pode ocorrer somente a partir do surgimento de um poder popular que tome esse Estado de assalto. A democracia, nessa perspectiva, surge apenas, no interior do capitalismo, como uma forma de agravar as contradições do sistema.

Portanto, a revolução no pensamento de Marilena Chauí aparece como condição fundamental para o desenvolvimento da democracia. Em sua valorização da democracia, Chauí cria uma

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estrutura que impossibilita o próprio desenvolvimento da demo-cracia. As massas devem se fortalecer e ganhar autonomia, obede-cendo à lógica de criação de um poder paralelo ao Estado que, em dado momento, seja capaz de destruir o sistema vigente.

Francisco Weffort (1985), diferentemente de Coutinho e Chauí, estabelece em suas análises uma equivalência entre os conceitos de democracia e revolução. Para tanto, fixa um balanço da histó-ria brasileira, apontando os equívocos cometidos na apreciação da democracia. Demonstra a existência de tradições autoritárias, que concebem a democracia somente como um instrumento de poder. O conceito de revolução é também revisto por Weffort. Para o autor, em nossa tradição, o conceito de revolução, em virtude do autoritarismo, é marcado por uma cultura golpista.

Observando o processo de transição brasileiro nos anos 1980, o autor procura traçar possibilidades de atuação das esquerdas. Para Weffort, no Brasil as transformações ocorrem sempre pelo alto em virtude do predomínio dos grupos conservadores, ampla-mente marcados pelo autoritarismo e pelo encastelamento no Estado. Nos anos 1970 e 1980, essa relação assimétrica entre Estado e sociedade civil começa a inverter-se, em virtude do forta-lecimento desta última.

Esse crescimento da sociedade civil permite os avanços da transição no Brasil. Nesse avanço, a aliança entre liberais e comu-nistas tende a terminar, abrindo espaço para a emergência de uma sociedade de classes, momento fundamental, na visão do autor, para as lutas de transformação da realidade. Finda a aliança, os liberais, contrários ao regime, se aliariam novamente aos conser-vadores, fechando-se no Estado. Diante dessa recusa dos liberais em gerir a democracia, a classe operária deve emergir como ator fundamental na condução do processo de democratização brasi-leiro, uma vez que surge da sociedade civil, estando, portanto em contraposição ao Estado, fortaleza dos liberais e conservadores.

A transformação desse cenário, para Weffort, deve ocorrer a partir de uma revolução. A revolução, nessa leitura, não se identifica com um fenômeno autoritário. As ditaduras pós-revolucionárias não podem ser confundidas com o a revolução em si, que é um fenômeno essencialmente democrático. Nesse sentido, Weffort afirma categori-camente que “democracia e revolução não são conceitos que se excluam reciprocamente” (WEFFORT, 1985, p. 103). Assim, o cami-nho da revolução é a democracia, pois esta garante o controle popu-lar das reformas a serem efetivas no interior da sociedade.

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Essa revolução, anunciada por Weffort, pode somente ocorrer a partir do fortalecimento da sociedade civil. Esse fortalecimento garante mais autonomia e independência para os trabalhadores, que podem afirmar sua força no cenário político. Além disso, essa força deve valer-se de uma compreensão adequada dos conceitos de revolução e democracia. Com isso, as esquerdas poderão compreender que “a luta pela democracia será também a luta pelo socialismo”. (WEFFORT, 1985, p. 133).

Portanto, Weffort é bastante claro em sua apreciação das rela-ções entre revolução e democracia. Assim como Coutinho e Chauí, Weffort acredita que a democracia é um fenômeno que pode ocor-rer somente mediante uma revolução. No entanto, em diferença dos autores analisados acima, Weffort procura igualar o sentido dos dois conceitos, demonstrando que as revoluções são, em si, movimentos democráticos.

Ademais, como os outros autores, Weffort também procura estabelecer revisões no interior da cultura política das esquerdas. A ênfase do autor recai, nessa perspectiva, na cultura golpista a autoritária. Todavia, essa cultura é mostrada como algo exógeno às esquerdas, tendo sido originado nas direitas conservadoras. Nessa revisão, Weffort parece também desprezar a esfera estatal, deslocando a política para dentro da sociedade civil, uma vez que o Estado aparece como o domínio histórico das classes liberais e conservadoras. Nesse sentido, resta somente, para a construção da democracia, um processo revolucionário de massas que tome esse Estado.

Portanto, tendo analisado até aqui as ideias dos três autores, podemos arriscar algumas problematizações acerca da renovação democrática das esquerdas brasileiras. Como é notável em Couti-nho, Chauí e Weffort, há uma crítica direcionada ao Estado, seu caráter autoritário e suas políticas de modernização conservadora. Em paralelo, há um apelo unânime de fortalecimento da sociedade civil, que seria capaz de inverter essa lógica do Estado. Isso, como vimos nas notas sobre o americanismo de Gramsci, se configura como uma adesão das esquerdas às vantagens do moderno, apon-tando para um claro processo de ocidentalização das esquerdas.

Nesse raciocínio, a democracia é avaliada como uma possibili-dade clara de atuação da sociedade civil. Há uma nítida tentativa de revisão dos valores da democracia dentro da cultura política das esquerdas, que procura superar seus traços vanguardistas, autoritários e golpistas. Nesse bojo, a própria ideia de revolução

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133133Da revolução à democracia: uma transição incompleta

procura ser revista, na tentativa de abarcar os valores da demo-cracia. Todavia, podemos notar que nesses autores a revisão da ideia de revolução é incompleta. Esta ainda aparece como uma tomada do poder, originada por um poder paralelo gestado no interior da sociedade. A recusa da luta política no interior do Estado, gera a recusa da luta por hegemonia e, consequentemente, elimina a possibilidade de uma transição gradual para o socia-lismo, restando apenas a condição de um embate frontal e deci-sivo entre as forças políticas. Somado a isso, a lacuna da renova-ção do conceito de revolução, também impede o desenvolvimento e a aceitação da democracia como um valor universal. Nesse sentido, podemos problematizar, a partir da leitura desses inte-lectuais, que há uma ocidentalização incompleta das esquerdas brasileiras, já apontada por Luiz Werneck Vianna (1989) em suas análises sobre o PCB. A transição para uma esquerda democrá-tica, nesse sentido parece estar, ao menos nos anos 1970 e 1980, aberta e inconclusa. A democracia, apesar de figurar como aspecto importante da discussão das esquerdas, não parece se configurar como seu eixo central.

Referências

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ALONSO, Angela. Ideias em movimento: a geração 1870 na crise do Brasil-Império . Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.

CHAUÍ, Marilena. Cultura e democracia: o discurso competente . São Paulo: Cortez, 9. ed., 2001.

GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a política e o Estado Moderno. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 3. ed., 1978.

LECHNER, Norbert. Los patios interiores de la democracia: subjetividad y política. Santiago: Flacso, 1988.

PÉCAUT, Daniel. Os intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Trad.: Maria Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990.

RIDENTI, Marcelo. Brasilidade revolucionária. São Paulo: Unesp, 2010.

SILVEIRA, Ênio da (et al.) Encontros com a Civilização Brasileira 9. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

VIANNA, Luiz Werneck. A revolução passiva: americanismo e iberismo no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1997.

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134134 Marcus Vinícius Furtado da Silva Oliveira

______. Questão Nacional e democracia: o ocidente incompleto do PCB. In: A transição: da constituinte à sucessão presidencial. Rio de Janeiro: Revan, 1989.

WEFFORT, Francisco. Por que democracia? São Paulo: Brasiliense, 1984.

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VIII. As Cidades e a Governança Democrática

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Autores

Cleia Schiavo WeyrauchProfessora associada do Programa de Políticas Públicas e Formação Humana da UERJ .

George Gurgel de OliveiraProfessor, doutor, da Cátedra da Unesco – Sustentabilidade, da Universidade Federal da Bahia .

Maria Alice Rezende de CarvalhoProfessora do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio e pesquisadora do Centro de Estudos Direito e Sociedade (Cedes/PUC-Rio) .

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Os desafios da Governança Democrática municipal

George Gurgel de Oliveira

O texto a seguir trabalha o conceito de Governança Demo-crática, relacionando-o com a política e a gestão pública local na perspectiva do desenvolvimento e da sustentabili-

dade municipal e regional.

Uma análise da política e da gestão pública dos municípios brasileiros em geral deve considerar a realidade econômica, social e ambiental destes espaços locais.

Atualmente, o Brasil possui 5.570 municípios distribuídos pelos 26 estados da Federação (IBGE, 2014). Minas Gerais concen-tra o maior número deles (853), seguida de São Paulo (645). No outro extremo, os estados localizados na região norte são os que possuem o menor número, apesar da grande extensão territorial: Amazonas (62), Rondônia (52), Acre (22), Amapá (16) e Roraima (15). O mais populoso é São Paulo com mais de 11 milhões de pessoas e o de menor população é Borá, também em território paulista, com apenas 805 habitantes.

A maioria dos municípios brasileiros enfrentam problemas de custeio e contam apenas com as cotas constitucionais. As admi-nistrações não conseguem atender às expectativas de suas popu-lações, excluídas dos seus direitos básicos constitucionais, a saber: moradia, educação, saúde, trabalho e renda.

Quais as razões desta crise permanente da maioria dos municípios? Em que esfera governamental se localiza? O modelo de desenvolvimento brasileiro atende às expectativas dos seus

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municípios e das regiões onde estão inseridos? O atual pacto federativo atende às expectativas da sociedade brasileira? Qual o papel dos governos, do mercado e da sociedade civil no enfren-tamento desta realidade?

A Governança Democrática, a política e a gestão municipal

As crises política, econômica e de valores, vividas, no momento, pela sociedade brasileira, se refletem direta e concretamente na realidade econômica e social dos municípios.

O atual pacto federativo aponta caminhos para a superação destas crises? As relações dos governos estadual e federal aten-dem às expectativas dos municípios?

Quais os fundamentos de uma Governança Democrática para a administração municipal? Quais as questões estruturantes a serem consideradas neste contexto frente a esta realidade brasileira?

A primeira constatação importante para significar o conceito de Governança Democrática é entender que a sociedade contem-porânea está integrada, mundialmente, de uma maneira interde-pendente e funciona em redes. Também é fragmentada, concen-tradora de riquezas e socialmente excludente.

Portanto, são complexos os desafios políticos, econômicos, sociais e ambientais para transformar esta realidade na perspec-tiva de construção de novas relações políticas, econômicas e sociais tanto no plano global, quanto nacional e regional, refle-tindo no dia a dia das populações locais.

Assim, coloca-se a necessidade de uma outra perspectiva de desenvolvimento, com ampliação da democracia, construtora de uma nova economia, para o enfrentamento dos complexos desa-fios sociais e de preservação do meio ambiente nos planos mundial, nacional e regional.

Destaque-se, ainda, que a maioria da população brasileira (cerca de 80%) vive nas cidades. Neste contexto, a vida social é predominantemente urbana. As cidades dão a tônica das regiões onde estão inseridas.

As democracias modernas delegaram a representantes eleitos diretamente pela cidadania a ação de governo. Assim, a qualidade da Governança Democrática será proporcional a relação cons-truída entre estes diversos atores políticos, econômicos e sociais.

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139139Os desafios da Governança Democrática municipal

Uma das variáveis importantes para uma efetiva “Governança Democrática” é o processo de escolha dos governantes. Tanto o processo político-eleitoral, quanto os compromissos construídos nos programas de governo e principalmente, o exercício de governança em si. A autonomia e participação efetiva da sociedade civil neste processo são variáveis importantes na avaliação da qualidade da democracia conquistada e a perspectiva de sua ampliação.

Segundo Josep Pascual (2), as condições necessárias para garantir uma representação política (governo) comprometido com a Governança Democrática são:

1. Dispor de mecanismos de participação e avaliação que permitam conhecer a opinião de todos os setores da cidadania implicados em uma política ou projeto, a fim de garantir que a autonomia em relação aos eleitores seja utilizada para se obter o interesse geral;

2. Assegurar que a liberdade de expressão alcance a todos e, em particular, garantir que se ouça a voz dos setores mais precá-rios como garantia de uma cidade inclusiva;

3. Que as eleições sejam precedidas por uma prestação de contas dos programas de governo e projetos realizados, com requi-sitos de objetividade e transparência e sejam disponibilizadas as fontes alternativas de informação, com as mesmas características;

4. Um amplo uso da deliberação e a geração de ideias por meios eletrônicos e presenciais, não como instrumentos de deci-são sobre recursos públicos, mas para garantir a qualidade das decisões políticas.

Qual é a realidade brasileira? O atual pacto federativo ajuda a esta construção?

As evidências pautadas pela realidade política, econômica e social da maioria dos municípios brasileiros demonstram que não.

Portanto, o que se coloca é a necessidade de construção de um novo pacto federativo, na busca de maior autonomia para os municípios e, ao mesmo tempo de corresponsabilidade com os governos estadual e federal, com participação pró-ativa da socie-dade para o enfrentamento dos desafios políticos, econômicos e sociais da maioria dos municípios na perspectiva do desenvolvi-mento e da sustentabilidade municipal e regional.

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Governança Democrática, desenvolvimento e sustentabilidade

Assim, deve-se discutir a questão do desenvolvimento e da sustentabilidade do município de uma maneira mais ampla, com foco na região onde está inserido.

As cidades concentram a população, a pobreza e as desigualdades.

A crise dos municípios e das administrações locais reflete um conjunto de distorções, disfuncionalidades e limites das atuais estruturas político-administrativas que são responsáveis pela formulação e implementação das políticas públicas municipais, tanto na esfera do próprio município, quanto nas áreas estadual e federal.

Esta crise pode ser resumida na insuficiência de receita, na falta de visibilidade em relação as decisões sobre despesas e investimentos, na insuficiência de recursos técnico-administrati-vos e, ainda, na falta de participação da população na política e na gestão municipal.

Urge, neste contexto, se promover imprescindíveis reformas política, administrativa e tributária que não mudem apenas os critérios de redistribuição de recursos entre União, estados e municípios, melhorando a situação atual da maioria dos municí-pios, como também garantir aos estados e à União recursos que viabilizem a implementação de políticas públicas, particular-mente nas áreas de educação, saúde e saneamento básico, criando as condições para o enfrentamento da difícil realidade econômica e social da maioria dos municípios do país.

Portanto, a crise recorrente vivenciada pelos municípios brasi-leiros se reflete no processo de construção e implementação das políticas públicas. Coloca-se como imperativo o foco em priorida-des que garantam a construção e a implementação de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento municipal, articulado às políticas de desenvolvimento regional, sob as responsabilida-des estadual e federal, em sintonia com a realidade local.

Há que se trabalhar a administração pública municipal como uma questão regional, estadual e nacional.

A gestão local deve estar comprometida com a reorganização do espaço urbano a favor do público, melhoria das condições de moradia, educação, saúde, saneamento básico, segurança, mobi-lidade urbana e ampliação da renda familiar em função dos que mais necessitam.

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141141Os desafios da Governança Democrática municipal

Estes são os desafios permanentes de uma Governança Demo-crática, voltada para o desenvolvimento municipal.

A seguir, algumas questões a serem consideradas no processo de construção de políticas públicas, desafios permanentes de uma Governança Democrática, na perspectiva do desenvolvi-mento e da sustentabilidade municipal.

Os desafios da Governança Democrática

Uma análise sistêmica da realidade econômica, social e ambiental é o fundamento para a construção de uma Governança Democrática no município.

O processo de construção deste governo relacional considera o papel e os interesses dos diversos atores políticos, econômicos e sociais envolvidos no processo de desenvolvimento municipal e as relações do município com a região onde está inserido, conside-rando as realidades nacional e mundial.

Uma Política de Governança Democrática Municipal deve ser construída considerando a necessidade de:

• realizar um diagnóstico da realidade econômica, social e ambiental municipal;

• construir um pacto político-administrativo envolvendo os atores políticos, econômicos, sociais e ambientais a nível municipal, dialogando com os governos estadual e federal e a sociedade civil em geral;

• comprometer, a partir do diagnóstico e do pacto antes mencionados, a administração e a sociedade municipais no processo de construção e implementação das políticas públicas, na busca do desenvolvimento e da sustentabili-dade econômica, social e ambiental.

Importante destacar-se a necessidade da criação de um Conse-lho Consultivo Municipal para o Desenvolvimento e a Sustentabili-dade, como espaço de discussão permanente dos diversos atores sociais no processo de construção, implementação e acompanha-mento dessas políticas públicas. Este Conselho será a garantia de uma participação efetiva das representações da sociedade civil, do mercado e do Estado nesta construção, independente das forças políticas que estejam no Executivo e no Legislativo municipal, na perspectiva do desenvolvimento e da sustentabilidade locais.

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Finalmente, é importante destacar os limites do município neste processo de construção de uma Governança Democrática, limites estes impostos pelo atual pacto federativo, assim como em função das crises política, econômica, social e de valores, vivencia-das pela sociedade brasileira, particularmente na área federal.

Assim, os desafios de uma Governança Democrática no Brasil, particularmente na esfera municipal, é garantir espaços de parti-cipação individual e coletiva, no processo de construção de uma sociedade cada vez mais plural, ampliando os espaços de partici-pação e de decisão da cidadania, na busca de um modelo de desenvolvimento, cuja economia tenha como fundamento estar atenta à inclusão social e à preservação do meio ambiente, consi-derando a história e a cultura brasileiras, especificidades regio-nais, buscando realizar as reformas política, econômica e social tão necessárias e ainda por fazer.

Neste contexto, impõe-se a necessidade de um novo pacto polí-tico entre a sociedade e os entes federativos, reconhecendo a auto-nomia e o potencial dos municípios brasileiros.

Referências

PASCUAL ESTEVE, Joseph Maria, trad. João Carlos Vitor Garcia. Governança democrática: construção coletiva do desenvolvimento das cidades . Juiz de Fora: UFJF, FAP, IC, 2. ed., 2012.

GURGEL DE OLIVEIRA, George. A Governança Democrática, a política e a gestão municipal. Digital, apresentado no Painel V – A construção coletiva do desenvolvimento das cidades, do ENCONTRO DE PREFEITOS, 4. 17 a 20 de set./2015. Bahia.

MARTÍNEZ, Francisco Rodríguez (coord.). Desarrollo regional y territorio . Nuevos planteamientos y perspectivas. Granada: Instituto de Desarrollo Regional, 2007.

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Sobre “tudo que está aí”

Maria Alice Rezende Carvalho

Alguém já disse que o ensaísta Otávio Paz se sentia à vontade “no todo”, no trato de questões que lhe permitiam viajar por largos períodos de tempo, transitando, quase sempre, do domínio da

política para o da cultura, do conjuntural para um aspecto consti-tutivo do modo de existência dos mexicanos. Mas talvez se pudesse dizer que, independente do ensaísta, esse é o propósito do gênero ensaio: um esforço de entendimento de algo que é pressentido no seu contorno, e não no detalhe. Ensaios falam de coisas já sabidas por todos, que, contudo, tomam de assalto a consciência quando arru-madas de um jeito novo. Por isso, quando o contexto expõe fraturas políticas aparentemente profundas, quando a divisão é o elemento dominante no cenário intelectual, o ensaio é um convite à reunião de todos nesse lugar comum, uma convocação a esse recuo de onde é possível avistar mais facilmente o “todo”.

Vive-se hoje uma crise cujo escopo abrange a política, a econo-mia, a legalidade republicana e um modo de existir socialmente, a que se dá o nome – ou, pelo menos, se dava – de Brasil. Se as três primeiras dimensões são constantemente referidas, reve-zando-se na preferência dos analistas, as menções à nossa maneira de viver, isto é, à ética social brasileira e aos deslocamen-tos que se verificam nesse âmbito, têm sido menos frequentes. E talvez seja aí onde se nutre o nosso mal-estar.

No Brasil, guardadas as devidas proporções, as três últimas décadas conheceram uma revolução social comparável à dos anos compreendidos entre 1940 e 1980. Naquela época, a chegada de milhões de brasileiros às cidades era o aspecto que mais se desta-cava e o que melhor traduzia os rumos que a modernidade assu-mia entre nós. O êxodo rural experimentou um momento de grande aceleração e, por volta de 1970, chegou a transferir para as cidades o equivalente a 30% da população rural – cerca de 12 milhões de pessoas. Assim, se o Brasil dos anos 1940 apresentava uma taxa de urbanização de 26,35%, ao final do período mencio-nado, essa taxa já havia atingido 68,86%. Em seu livro A urbani-zação brasileira, onde se encontram tais informações, Milton Santos afirma que, ao longo desses quarenta anos, a população

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total do Brasil triplicou, enquanto a população urbana brasileira se multiplicou por sete vezes e meia.

Os migrantes vinham atrás de melhores condições de vida – o que significava não apenas casa e trabalho dignos, mas também o acesso à educação e, sobretudo, a uma vida livre, que as rela-ções de trabalho nos latifúndios não favoreciam. Movido pelas políticas de substituição de importações, o mercado industrial de trabalho foi uma poderosa miragem para aquele contingente, esti-mulando, nesse sentido, a urbanização dos Estados de São Paulo e da Guanabara, destinos preferenciais de homens pobres do campo, sem adequação imediata ao modo de vida urbano. Muita gente se desprendeu de toda parte do Brasil em busca de melhor destino; e a penosa entrada em um mundo desconhecido não parecia tão ruim, comparada à permanência no campo.

O fato, porém, é que essa revolução demográfica conhecerá assentamento durante a ditadura militar, conformando, nas cida-des, um tipo de experiência social inseparável daquela circuns-tância. Se a experiência política da ditadura vem sendo revolvida – como se observa com a construção de uma memória pública relativa àqueles anos —, o mesmo não se dá com a experiência social da ditadura, ainda que seus efeitos sejam bastante severos e duradouros. É claro que um número significativo de estudos se debruçou sobre a organização da sociedade civil naquele período, apontando, justamente, a destruição – ou, pelo menos, o abranda-mento – do que havia sido conquistado desde o segundo pós-guerra. Mas as organizações sociais, como se sabe, além de habi-tarem a fronteira da política, supõem a participação de cidadãos empenhados. Portanto, a experiência social da ditadura como algo que afeta a todos, indistintamente, e não apenas àqueles que participam do mundo público-político, deve ser buscada em uma específica configuração histórico-espacial que resultou do encon-tro entre aquela gigantesca onda migratória e o autoritarismo político. A esse resultado se pode dar o nome de “cidade da dita-dura”, isto é, o ambiente urbano que, tendo sido fruto de uma determinada conjuntura, se tornou perene.

A súbita movimentação de migrantes em escala superior ao que as cidades brasileiras poderiam comportar gerou uma pressão social latente que terá sido afrouxada com a informalização do trabalho e da habitação, o que não apenas liberou variadas estratégias de subsistência, incluído o improviso habitacional das favelas e corti-ços, como também desmarcou algumas instituições da cidade – sobretudo ruas e espaços públicos, que foram sendo devoradas pela

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145145Sobre “tudo que está aí”

informalidade reinante. Deliberada ou não, foi essa a “política urbana” praticada pelos militares: deixar que as cidades fossem conformadas pela acomodação espontânea entre velhos e novos habitantes, velhos e novos interesses, cabendo os custos materiais e sociais daquela acomodação aos próprios citadinos. Ao fim de algum tempo, a desregulação encontrou operadores que mercantilizaram alguns arranjos e passaram a viver do absenteísmo governamental. Mandões, valentões, toda a florada de patronos dos ajuntamentos populares contiveram a pressão embaixo – alinhados, evidente-mente, pela repressão estatal – enquanto, em cima, mandava a indústria da construção civil, incorporando novos terrenos e dando emprego à mão de obra despreparada e analfabeta que adentrara o mundo urbano. Viadutos, túneis, pontes, conjuntos habitacionais construídos em áreas de fronteira da cidade foram amarrando as gerações futuras a uma era de autoritarismo político que se inscre-veu na própria morfologia das cidades.

É, portanto, nessas “cidades da ditadura” que continuamos a viver – cidades marcadas por arranjos urbanísticos de péssima qualidade e pior inspiração, pela escassez de saneamento, pela proliferação de guetos sociais, pela violência do Estado, pela ausência de participação efetiva da sociedade em experiências de auto-organização, e, como se não bastasse, pelo desrespeito à vida (e mesmo à morte), que se percebe em eventos como o da recente passagem do trem da SuperVia sobre o corpo do jovem que jazia em seus trilhos. Pesquisa realizada posteriormente pelo jornal O Dia constatou que a maioria dos entrevistados apoiou a decisão dos administradores. Quem há de estranhar? A brutali-zação dos passageiros da SuperVia é nutrida, cotidianamente, pela ausência de dignidade que a empresa lhes concede: não há limpeza, conforto, segurança, banheiros públicos, plataformas cobertas nas estações, acessos facilitados aos mais velhos, às crianças e aos deficientes, e, aliás, qualquer certeza quanto aos serviços anunciados. Enfim, esse é o miserável cenário que nos contém, em nada parecido com o de uma cidade livre – vivemos tristes em ruas tristes, aprisionados em cidades da ditadura.

As três últimas décadas no Brasil, de modo similar ao que ocorreu nos anos compreendidos entre 1950-1980, representaram uma mudança estrutural no país, expressa na chegada de milhões de brasileiros ao mundo dos direitos. Não se trata mais da migra-ção campo-cidade, mas da vitória da agenda da igualdade, que conhece enorme desenvoltura em todo o mundo – e, no Brasil, não tem sido diferente. Entre nós, as políticas de transferência de

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renda somadas a um ambiente político democrático pareciam poder impulsionar a participação e, com ela, o aprofundamento das conquistas consagradas pela Carta de 1988. O tema da “inclusão” e a denúncia da desigualdade seguem sendo, desde o início dos anos 2000, os ângulos hegemônicos das análises volta-das aos impasses da democracia brasileira.

Portanto, é impossível não mencionar avanços auferidos nesse âmbito – das políticas focais a estratégias de valorização dos seto-res mais vulneráveis da população. Mas também seria irrespon-sável desconhecer o fato de que tais avanços apenas roçam a superfície do problema. E por dois motivos. O primeiro deles é mais óbvio: não basta apenas ter acesso aos direitos; é preciso que eles se tornem efetivos, cumulativos e cotidianos. Crianças e jovens vão às escolas, mas não necessariamente se alfabetizam ou têm a chance de fazer do conhecimento uma via de ascensão e de reconhecimento social; moradores de favelas têm acesso à eletricidade, mas, se houver um problema no fornecimento, por quantos dias, semanas, em alguns casos, meses, permanecerão sem o serviço? De fato, a democratização dos “bens de cidade” ainda é limitada, pois a simples garantia dos direitos não corres-ponde automaticamente ao seu usufruto.

O segundo motivo, talvez mais importante, é que a cidade, tal como se encontra estruturada, não permite que mesmo as mais bem intencionadas políticas de transferência de renda alterem o círculo vicioso da pobreza urbana, que, como se sabe, supõe uma forte rela-ção entre territórios e oportunidades sociais e ocupacionais. Assim, transferir renda, mantendo, porém, grandes áreas da cidade desti-tuídas de equipamentos e serviços públicos, não promoverá a demo-cratização da sociedade. Afinal, parodiando Luiz Cesar Queiroz Ribeiro, “o que a economia produz como promessa de bem-estar individual, a metrópole transforma em mal-estar coletivo”.

Em suma, a novidade dessa segunda revolução demográfica não é mais a chegada das grandes massas à cidade e sequer sua adequação à pauta de consumo que a cultura urbana impõe, mas, antes, a chegada das grandes massas ao mercado de crédito – fenômeno que cancelou a barreira da “heterogeneidade estrutu-ral” que, na América Latina, impedia o avanço da sociedade de mercado. O argumento é da economista Lena Lavinas, que, no caso brasileiro, observa que o sistema de saúde – mas se poderia dizer o mesmo sobre o sistema educacional – foi financeirizado, como se atesta pela rápida expansão dos planos de saúde. No caso do sistema educacional, vide a multiplicação de escolas e

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faculdades privadas. Ora, esse deslocamento da provisão pública dos “bens de cidade” para a esfera privada não reflete a melhoria das condições de vida das famílias brasileiras. Trata-se, ao contrário, de uma dinâmica de fortalecimento do capital finan-ceiro e de mercantilização da cesta básica de direitos (nela incluí-dos, habitação e transporte), cujo efeito tem sido a ampliação da vulnerabilidade dos segmentos mais pobres da população. Em outras palavras, a política social que acompanha esse segundo grande ciclo de expansão da urbanização brasileira não concorre para a democratização da cidade. Sendo o acesso ao mercado financeiro a grande novidade desse segundo desenvolvimentismo, todas as exigências de uma cidade igualitária vêm sendo progres-sivamente descuidadas, para não dizer canceladas: não há sanea-mento básico para uma grande parte da população metropoli-tana, não se construíram moradias dignas na proporção requerida, o sistema de transportes humilha e avilta seus usuários, a saúde e a educação públicas são deficientes e... se utiliza o crédito para assegurar necessidades básicas. Nesse sentido, à “cidade da dita-dura”, excludente e autoritária, se superpõe a “cidade da inclusão financeira”, que não afeta a morfologia urbana herdada do regime militar e tampouco a desigualdade nela inscrita.

Daí que, paralelamente aos diagnósticos que tomam as jornadas de julho de 2013 como expressão periférica de um movimento global de contestação política, como algo derivado de energias destampa-das pela interação de jovens que, “não sabendo o que querem”, sabem que não desejam ver obstruídos seus esforços de participação, é importante destacar o quanto o modo de vida nas cidades brasileiras contribuiu para a deflagração daquele e de futuros levantes.

É claro que há algo de descontentamento político no movi-mento das ruas, sobretudo se considerarmos o quanto os repre-sentantes se distanciaram da sociedade e de seus anseios. Mas isso talvez seja mais verdadeiro entre os jovens argentinos, que têm proclamado um contundente “que se vayam todos”. O levante das ruas brasileiras, diferentemente, foi e será movido por uma constatação da falência das instituições urbanas, uma sensação de desatendimento das expectativas quanto ao viver em cidade, uma amarga experiência social – além da política – deixada pela ditadura. A (des)organização do espaço, a sofrível oferta de servi-ços públicos, a individualização do acesso a bens de cidadania, a mercantilização, a exclusão, a desregulação, enfim, “tudo isso que está aí” são vestígios do fracasso da democracia brasileira em prover uma cidade livre e justa.

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A cidade traída

Cleia Schiavo Weyrauch

Séculos atrás, a cidade era o lugar da redenção, espaço de liberdade e da organização política, onde ex-servos e vilões assumiam sua individualidade independente dos donos

das terras em que, na origem, nascessem. Nessas cidades, novos horizontes se abriam aos homens, livres das amarras do mundo feudal, espaço aberto de possibilidades e de criação.

Na Idade Média, muitas cidades serviram de ensaio a expe-riências democráticas, na medida em que pouco a pouco cria-ram instituições representativas que dessem conta da nova realidade social. Como espaço de convívio promissor, as cidades foram celebradas pelo que podiam acolher como novas formas de viver e representar politicamente os cidadãos. Assim, políticas foram engendradas na esfera do poder, do conhecimento e mesmo da própria administração espacial do território, entre elas o exemplo de Florença.

Embora a Revolução Industrial tenha convertido as cidades em territórios de desigualdade, com guetos de miséria e insatisfação, assim mesmo elas continuaram a ser concebidas como espaço de utopia social (fosse nas concepções marxista e/ou liberal). O nasci-mento do urbanismo, no início do século XX, deu ênfase ao redese-nho urbano em sua relação com a democracia do espaço e algumas considerando até sua relação com o processo produtivo.

Nessa linha, concepções urbanísticas se sucederam presidi-das por revolucionárias visões de cidade, na qual o conceito de cidade ideal permanecia como um conceito limite a ser alcançado. As práticas, entretanto, mostravam o contrário, evidenciando o poder daqueles que tinham o controle do território.

Enquanto a utopia da igualdade social caminhava na direção de uma cidade valor de uso social, as práticas capitalistas a tornavam valor de troca, ou seja mercadoria a ser vendida a quem poder econômico tivesse ou tenha. O caráter público das cidades, seja sua dimensão coletiva, bem comum da maioria dos cidadãos, foi com o avançar do capitalismo se esvaziando e assim os desfa-vorecidos espalharam-se pelas áreas desvalorizadas, sujeitos à

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insalubridade de todos os tipos, sem que políticas públicas rever-tessem esse quadro.

A partir dos anos 1950, consolidou-se uma classe média que incorporou um padrão de vida de qualidade, em virtude do acesso às instituições socializadoras de educação, saúde e outras. Nessa linha, esse grupo inseriu-se qualitativamente nas instituições sociais, ou seja incorporou o direito à cidade enquanto as cama-das mais desfavorecidas ficaram em sua periferia. Com o tempo, essa população espalhou-se fractalmente pela cidade urbanizada, derramando-se apertada, espremida entre morros e bairros nobres da cidade, caracterizando uma perversa contiguidade social que acentuou todos os tipos de poluição: sonora, ambien-tal, sanitária e mais outras tantas.

A cidade contemporânea tornou-se um espaço de convergência das mazelas sociais estimuladas pelos estrangulamentos urba-nos resultantes da política de privatização do espaço urbano.

Mas, as cidades não responderam as expectativas! Tidas como territórios de civilização e campo aberto de possibilidades, elas foram sufocadas pela voracidade dos circuitos de exploração de seus espaços. Tornada mercadoria, a cidade mascarou sua voca-ção pública em maquiadas políticas públicas assentadas em uma cultura da pobreza, associada ao consumismo patrocinado pelas esferas do poder e incentivado pela mídia. Pouco a pouco, o conceito sociopolítico de cidadania foi substituído pelo das grifes, das estre-las e atores da TV e, em decorrência, uma subcidadania grifada ganhou lugar nos espaços precários da cidade.

As questões propriamente ditas relativas à sociedade urbana, marca da civilização contemporânea, foram rejeitadas em detri-mento de grandes obras e em nome de uma sociedade do espetá-culo que entregou a cidade ao grande capital. A cidade como demanda social e ecológica foi minorizada, sua dimensão pública, no bom sentido, exigia atenção e um novo padrão de intervenção. A inexorabilidade da sociedade urbana com todos seus problemas adjacentes tornou as cidades leito de cruza-mento de todas as questões sociais. Na ausência de padrões urbanos tão necessários à conquista de uma adequada quali-dade de vida, as cidades explodiram elevando a revolta a instru-mento de protesto.

Enfim, o conceito de cidade compreendido como espaço da liberdade e da ascensão social ficou muitíssimo distante, foi traído pelo despotismo de grupos de dirigentes que precisam andar de

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helicóptero para não ver os desacertos das cidades estranguladas por políticas injustas que imprimiram em seus espaços.

Espaço lixeira e prisão da população, a cidade contemporânea busca para si um outro nome que não seja o de cidade moderna. Talvez seja cidade urbana, seja melhor porque considera os direi-tos urbanos imprescindíveis aos cidadãos como ar, luz, silêncio, distância adequada entre habitações de baixa renda, direito à salubridade e aqueles outros já tão debatidos da cidade moderna como educação, saúde, moradia e mobilidade urbana.

Os direitos urbanos constituem hoje a nova utopia social.

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IX. Batalha das ideias

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Autores

Fernando AlcoforadoMembro da Academia Baiana de Educação, engenheiro e doutor em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Regional pela Universidade de Barcelona, professor universitário e consultor nas áreas de planejamento estratégico, planejamento empresarial, planejamento regional e planejamento de sistemas energéticos, e autor de vários livros, entre os quais Globalização e um projeto para o Brasil .

Gastão Rúbio de Sá WeyneProfessor Associado aposentado do Departamento de Engenharia Química da Escola Politécnica da USP; tenente-coronel reformado do Exército; advogado e doutor em Direito, na Área de Filosofia do Direito (USP).

Mércio Pereira GomesAntropólogo, professor de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, ex-presidente da Fundação Nacional do Indio (Funai) e autor, dentre outros, dos livros O índio na história e Darcy Ribeiro .

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Coxinhas e petralhas: Para além de mais um falso dilema

da classe média brasileira

Mércio Pereira Gomes

Eu sou oposição ao seu governo, presidenta Dilma, mas eu tenho um contentamento em poder dizer isso na sua frente e dizer que vivo num Estado que se pretende utopicamente em realidade, em transformação, em exercício, nesse momento, nesse governo, de ser um Estado democrático . (Atriz Letícia Sabatella, Palácio do Planalto – 31/03/2016)

Eu estava em São Paulo, há uns cinco anos atrás, quando ouvi a palavra coxinha pela primeira vez usada para carac-terizar uma pessoa. Meu amigo, que mora num bairro de

classe média paulistana, rotulou um colega por esse nome e me explicou: “É aquele cara todo certinho, bem formado, com espí-rito competitivo, ideias moderninhas, carro bom, bem viajado etc.” Ah, como fulano, eu disse, mencionando uma pessoa que conhecemos com essas características: formado na USP, dono de Audi, fala línguas, sedutor etc. “Não, não, esse é gente boa, não é coxinha”. Então como sicrano, disse-lhe eu mais uma vez mencionando outro conhecido: fez PUC, direito, jornalista, Land Rover velho, aventureiro etc. “Não, não, quer dizer, talvez, mas ... não”. Então, quem é coxinha, meu caro amigo? “É o cara que tem ideias meio de direita, pensa muito em grana e status, e frequenta lugares da moda”. É evidente que, naquele momento, nada ficou claro para mim. De algum modo, esse meu amigo me parecia meio coxinha por várias características, mas também não, por outras.

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Passados uns tempos, comecei a ouvir a palavra sendo vocali-zada mais frequentemente. Logo entendi. Coxinha é a pessoa que não se afina com o PT, ou com partidos que fazem parte direta-mente dos governos do PT, ou com o apoio ao governo atual. Coxi-nha, consequentemente, é o cara marcado como de direita, mas também como de uma esquerda infiel por não ser PT, nem PSOL, nem PCdoB.

Nos últimos tempos, coxinha virou um epíteto acusatório, e a palavra corre solta pelas redes sociais. Sob muitos aspectos, no calor das disputas político-ideológicas do momento, coxinha se opõe à mortadela, que representa o sanduiche doado aos partici-pantes de passeatas de sindicalistas, ou petralha, palavra criada pelo jornalista Reinaldo Azevedo, que seria o petista radical (para Reinaldo, mancomunado ou insensível às roubalheiras de políti-cos dos governos do PT), que não vacila por suas convicções, suas benesses e seus heróis. Ou que se tornou um ferrenho militante do governo atual.

Acontece que não se precisa ir muito longe para se compreen-der que aquilo que as pessoas dizem de si mesmas e aquilo que falam sobre os outros está quase sempre em polos opostos. A autoimagem do indivíduo é sempre delineada por um desejo muito grande de se parecer sempre bem, de quem os melhores adjetivos podem ser servidos para caracterizá-lo. Já, ao contrário, a imagem do outro é carregada de tintas foscas, melhor assim para não fazê-lo brilhar. Portanto, é fácil se autoenganar e não saber as motivações mais recônditas de sua alma.

Um dos aspectos psicológicos que mais afastam a pessoa de sua realidade é não conseguir se inserir no contexto em que está, seja por ignorar sua própria história coletiva, seja por desconside-rar sua própria vivência. Daí o “nunca antes na história deste país” e o “é só você querer”, duas expressões tornadas clássicas pelo uso frequente nos últimos anos pelas hostes petralhas. Portanto, nessas circunstâncias, é fatal a autoenganação. Como já demonstrou o biólogo Robert Travis, a autoenganação, por ser inconsciente, não é desvirtude dos parvos, ao contrário, serve aos espertos para criar uma vantagem para si. Você nem sabe que está se autoenganando porque o resultado disso é que você está se saindo muito bem.

Este é o caso de quem acusa o outro de coxinha ou de petralha. Frequentemente a pessoa partilha das mesmas condições sociais e culturais para ser merecedor de qualquer dos epítetos, mas se

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autoengana ao não se incluir nessas circunstâncias para melhor acusar os outros de uma característica que ele supostamente não detém. Diferença fundamental: o coxinha é acusado de ser elitista e não querer a ascensão do povo; o petralha é visto como um faná-tico por um líder, mas que no fundo quer é ficar no poder.

É preciso que fique claro que esse debate de acusações se dá exclusivamente no âmbito de segmentos de uma mesma classe social brasileira. As pessoas que se acusam mutuamente de coxi-nhas ou petralhas são quase todas da mesma classe social, parti-lham das mesmas condições educacionais e participam do mesmo panorama cultural. Isto é, é gente da classe média brasileira falando de gente da mesma classe média brasileira. Muitas vezes são pessoas da mesma família. O povo trabalhador está, até o momento, totalmente divorciado dessas acusações. Acontece, apenas, que uma, digamos, facção da classe média está com o PT e seu governo e a outra não está; uma acha que o governo foi eleito e deve continuar, a outra acha que o governo perdeu a legitimi-dade por crimes administrativos e outros. Uma espera muito desse governo, a outra nunca esperou ou não espera mais gran-des coisas. Uma acha que sem o PT o Brasil não existiria com a configuração que tem hoje, a outra acha que o Brasil nunca preci-sou do PT para se ter a si mesmo, e, sem o PT, com outra visão, teria outra configuração, quiçá até mais bem disposta. E, no processo de autoenganação, cada qual acredita piamente que o Brasil ou está passando pelo perigo de um golpe político e uma possível volta a tempos autoritários, ou está irremediavelmente afundado na corrupção e na autodestruição.

Em outras épocas, quando a discussão política girava em torno de questões levantadas pela temática do marxismo, os atuais coxi-nhas seriam chamados de pequenos burgueses; e os petralhas de comunas. As discussões eram igualmente virulentas, mas os termos eram diferentes, soavam teóricos e altissonantes. Quem tem razão, Jean-Paul Sartre ou Raymond Aron, por exemplo; Florestan Fernandes ou Gilberto Freyre, outro exemplo. Mas o marxismo deixou de ser o pano de fundo das discussões políticas, tendo sido substituído por uma linguagem propositadamente difusa e imprecisa, porém não menos politicamente influente, característica das contribuições dos filósofos franceses Gilles Deleuze e Michel Foucault, como veremos a seguir. Aí, a discussão, quando esbarra num beco sem saída, naquela zona em que a razão discursiva dá vez à crença, deteriora-se para o deboche.

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O fato é que a visão marxista do Brasil foi ultrapassada nas discussões e celeumas da atualidade por uma visão filosófica e política pós-moderna, na qual a temática de classes, soberania política, desenvolvimento econômico e responsabilidade indivi-dual foi, se não substituída, ao menos diluída por uma nova temá-tica difusa de coletividades localizadas e minoritárias, conexões infrassubjetivas (rizomáticas) entre sujeitos políticos, consu-mismo como base da produção econômica, desconsideração do sentido histórico dos povos e nações e, enfim, uma espécie de fuga coletiva da responsabilidade do indivíduo, agora definitivamente considerado refém da máquina do mundo. É desconcertante, no Brasil de hoje, ver um velho intelectual marxista perorando sobre o caráter revolucionário da classe trabalhadora, assim como, na década de 1950, era já penoso ouvir um defasado intelectual posi-tivista descortinar sua erudição sobre a história inexorável da evolução da humanidade. Hoje, a classe trabalhadora é conside-rada um conjunto maleável de minorias e subjetividades múlti-plas que se identificam como trabalhador caso isto lhe convenha, independente de sua real, objetiva, posição socioeconômica na sociedade. Um ricaço pode virar trabalhador, porque, afinal, ele se conecta com o mundo do trabalho.

Parece muito longe o tempo em que brasileiros de esquerda davam algum valor para uma sociedade que adotasse uma econo-mia com algumas características do tipo socialista. Hoje em dia, qualquer modelo de economia comunista ou socialista não é levado em consideração por ninguém, a não ser, romanticamente, para Cuba e, com desprezo, para a Coreia do Norte. Entretanto, ainda que dominante, no Brasil, o capitalismo brasileiro continua impregnado de instituições de ordem patrimonialista e cliente-lista, de modo que a discussão sobre o modo capitalista de se exercer nas sociedades só penetra nos debates sobre o Brasil de soslaio e frequentemente para servir de boneco de Judas no sábado de Aleluia. Quase todo mundo acha, por exemplo, que a economia brasileira precisa adquirir mais produtividade, porque a maior produtividade é um ganho econômico que reverbera no plano social. Entretanto, logo que o tema é acolhido para se trans-formar em política pública, dá-se a primeira objeção de cunho ideológico (capitalismo com clientelismo): isto não pode acontecer, pois vai provocar uma maior exploração do trabalhador. Os econo-mistas que se assumem capitalistas, chamados de conservadores, propõem que haja mais investimentos em aplicação de tecnologia, em melhora na organização interna das empresas e numa compe-titividade maior entre elas. Como método, isso significaria mudar

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a gestão do trabalho, reforçar a sua contabilização, ampliar a educação técnica, destravar a burocracia e os impostos e, no plano mais geral, reequacionar a relação entre o trabalhador e a previdência. Pontos pacíficos? Nada disso. Na discussão atual o economista formado nas universidades públicas brasileiras só concordaria se essas mudanças viessem para serem aplicadas às empresas privadas, e não às estatais, como a Petrobras, ou ao serviço público, como as universidades. Teme-se por corte de empregos e perda de direitos adquiridos. No exagero, colocar-se-ia em risco direitos pétreos constitucionais. Por sua vez, quando confrontado com a facilitação de verbas públicas do BNDES para algumas poucas empresas, o economista com vergonha de se mostrar capitalista só aceitaria se tal política tivesse como finali-dade fortalecer as empresas estatais.

Enfim, para dizer o mínimo, os economistas não se entendem no Brasil há muitos anos. Os economistas de esquerda ainda carre-gam consigo o trauma da imposição econômica feita durante o período da ditadura militar e, ao procurar proteger os direitos trabalhistas existentes, acobertam a influência do clientelismo de classe, especialmente os direitos de empregos de classe média. Por sua vez, os economistas capitalistas não suportam mais a tendên-cia do governo em proteger as estatais, mas torcem a cara para acusações de favorecimento do patrimonialismo, que é o amparo da classe alta. Eis porque, ao contrário dos Estados Unidos, onde a política nacional se concentra numa discussão sobre ética e identi-dade nacional, a economia no Brasil ainda é o principal osso de disputa na nossa liça política, não porque haja dúvidas sobre o domínio do capitalismo em nosso país, mas porque o tema está encoberto de subterfúgios e autoenganações para fugir das ques-tões do patrimonialismo e do clientelismo de classe.

Voltando à fofoca, mesmo pertencendo à mesma classe social, em sua diversidade estética e de propósitos, há alguns motivos para alguém ser rotulado de coxinha ou de petralha. O petralha mais renitente é em geral um membro do governo do PT, ou de algum partido a ele relacionado, ou de alguma ONG que aufere recursos do governo, ou do estrato social que depende do Estado. O menos renitente pode ser um funcionário público, um sindica-lista de classe média, ou um membro da geração que sentiu tão arduamente as agruras políticas e culturais do período ditatorial que, passados 50 anos, ainda lamenta por sua existência atual. Em muitos casos, o petralha mediano sabe fazer o jogo político e pode correr de um governo a outro sem muitas dificuldades.

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Muitos militantes do petralhismo vieram do tempo do governo FHC, ou antes até.

Faz diferença cultural ser um petralha ou ser um coxinha. Há os puros-sangues petralhas intelectuais, como os professores, estudantes e funcionários públicos que cultivam um discurso de origem marxista porém já encharcado pela penetração triunfante das propostas filosóficas de Deleuze e Foucault, como dito antes, que, inesperadamente, por mais que incompreensíveis sejam para a grande maioria dos seus leitores, se esparramaram e se diluí-ram de muitas formas pela sociedade letrada brasileira, talvez porque se coadunassem como parte das condições econômicas, políticas e culturais dos tempos atuais, tempos pós-modernos.

Os conceitos e argumentações desses autores se tornaram pedras angulares do comportamento social e do pensamento ideo-lógico atual, tais como o sentimento prevalente de que todo compor-tamento humano é dominado pela vontade do poder; que a vida em geral está em eterna transformação sem nenhum sentido, portanto, é algo indefinido; que o ser humano (e também a sociedade e a nação, qualquer que seja ela) não possui propriamente uma identi-dade, mas tão-somente multiplicidades ou o potencial múltiplo de contínuas variações de “identidades” segundo suas conexões “rizo-máticas” com outras multiplicidades, e, para encurtar, que é inútil e fantasioso buscar algo verdadeiro, pois a verdade não passa de uma asserção discursiva momentânea que interrompe o fluxo de olhares e perspectivas, e que, no fundo, só serve a quem a emite (favor ler de novo a epígrafe deste artigo).

Por sua vez, essa visão filosófica se faz extremamente atraente porque estimula uma abertura ilimitada para uma espécie de libertarianismo existencial, cultural e político, e contém altas doses de promessas de autonomia do homem. Por exemplo, no plano político-cultural, para os seguidores conscientes ou incons-cientes de Deleuze, só os segmentos sociais que estão por baixo ou à margem de alguma situação de poder social estabelecido – mulheres, minorias étnicas e sexuais, e o que Marx chamaria de lumpenproletariado – se constituem por aquilo que Deleuze chama de devir, i.e., o ímpeto de mudança, de dispersão e de adaptação – portanto, de espírito crítico e de criatividade. Os demais segmentos sociais de algum modo estabelecidos estariam condenados a estiolar em seus míseros e desbotados lugares do não devir, numa pretensa autossuficiência própria a uma socie-dade capitalista (aliás, capitalista aqui é palavrão mais feio do que quando emitido por um stalinista). Nessa atmosfera político-

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filosófica, com consequências sobre o pensamento e o comporta-mento dos brasileiros de várias gerações pós-1970, petralhas ou não, há algumas variações do pensamento que se assentam no campo teórico de um pós-marxista como Pierre Bourdieu, para fortalecer a ideia de que, nas condições atuais de vida, tudo é embate, tudo é tensão, tudo vem carregado de subterfúgios e manobras. E, ainda que com menos popularidade, se penetra nesse comportamento pós-moderno a visão de que a vida é um conjunto de ações que se interpenetram como numa rede, tal qual se vê nas comunidades da internet, de conexões praticamente infinitas, nas quais os interesses de cada um (pessoa, instituição, grupos) se assumem e se dissimulam para melhor tirar vantagem e estão à espreita dos incautos para pegá-los de surpresa. Em suma, este espírito do nosso tempo brasileiro de classe média nos faz conviver com espectros de todos os tipos e por todos os lados, fazendo do mundo (sua cidade, sua comunidade, até seu próprio lar) não somente uma arena de competição, mas um lugar onde prevalece um sentimento próximo do paranoico e faz do constante embate sua razão de ser. Não é por outro maior e mais profundo motivo que emergiu o discurso vocalizado de vários modos pelos mais eminentes intelectuais acadêmicos brasileiros, segundo o qual a história do Brasil tem sido desde sempre uma farsa completa – no caso, para alguns, só redimível pela chegada do PT.

Tal pensamento, que podemos cognominar de “marxista-deleu-ziano” (por mais que logicamente contraditório isto pareça ser) perpassa com maior ou menor intensidade a sociedade brasileira letrada, de classe média, que está nas ruas em protesto. No caso dos chamados coxinhas, a variação desse pensamento tende a se opor um tanto aos seus pontos mais radicais, isto é, aqueles que recusam a identidade do ser. Pudera, dado o predomínio desse discurso, os coxinhas estão na defensiva – mas ao menos querem que o ser tenha identidade palpável. Entretanto, é preciso apontar desde já que exis-tem dois tipos de coxinha: os de esquerda e os de direita. Os de esquerda tomam como base a velha dialética marxista, à la Lukacz ou Sartre ou até à la Bourdieu, mas fugindo dos filósofos já mencio-nados, agrupados como filósofos da diferença. Acham que entre esses últimos, por insistirem na volatilidade do comportamento e da verdade, falta-lhes sentido ético, por um lado, enquanto prevalece um ilusório radicalismo teórico, por outro. Os coxinhas de esquerda detestam as linguagens próprias de cada um dos filósofos da dife-rença, cheias de conceitos inusitados e aparentemente contraditó-rios, os quais consideram todos carregados de certa ambiguidade e inconsistência, difíceis de serem monitorados por quem não se

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dedica profundamente às novas e cambiantes palavras dos mestres. Os coxinhas pensam que Gilberto Freyre ou Darcy Ribeiro, ainda que de gerações diferentes e inclinações políticas distintas, pensam o Brasil por uma veia culturalista que lhes permite sentir na história do Brasil uma realidade em formação e algum conforto para sua existência atual. Coxinhas esquerdistas, já calejados por prévias ilusões políticas, principalmente a comunista, pensam que só com uma afirmação cultural radical é que o destino do Brasil pode encon-trar seu caminho de desenvolvimento. Por conseguinte, consideram que a democracia é uma negociação política razoável e que as formas atuais do capitalismo devem ser acatadas como parte da moderniza-ção do Brasil, apenas para serem submetidas aos contornos mais característicos da identidade brasileira – que, aliás, deve se consti-tuir. Já os coxinhas de direita, ainda não bem assumidos, ou, quando assumidos, um tanto estrepitosos, estão buscando em auto-res conservadores um caminho mais seguro para a vida que veem se desenrolando pelo mundo. Uma vida que lhes parece caminhando para um abismo pela falta de fé cristã e pelo afã de mudanças e do consumismo. Filósofos como Roger Scruton, Eric Voegelin e o brasi-leiro Olavo de Carvalho são ícones do conservadorismo brasileiro, ou melhor, neoconservadorismo, que se descortina na atualidade. Os neoconservadores brasileiros, apesar de sua estridência verbal e política, se preparam a cada dia para produzir ideias e novos autores que um dia possam ser reconhecidos e influenciar os destinos do Brasil, tal como, imaginam, já o foram Tristão de Athaíde, Alceu Amoroso Lima e Vicente de Carvalho, entre outros. Do ponto de vista político-econômico os coxinhas de direita acatam as condições e exigências clássicas do capitalismo liberal ou socioliberal, se tal ainda puder existir.

Assim, os coxinhas vêm de duas direções opostas. E há eviden-temente uma briga política se oferecendo como palco dessa intensa, obtusa e insciente contenda intelectual de bastidores brasileiros. Por enquanto os coxinhas de direita e esquerda tocam o banjo no mesmo diapasão porque aparentemente têm um adver-sário comum formidável – os petralhas, que, com o poder, ainda que, aparentemente, a se escorrer entre os dedos, se apresenta com um vigor fantástico, com a gana de quem quer sobreviver. Entretanto, em breve, a aliança inopinada desses contrários –Bolsonaro e Gabeira, para exemplificar – se quebrará, na medida em que a causa petista for perdendo o fôlego e diminuindo a resis-tência à perda de poder, no caso, tanto político quanto intelectual. É muito provável que boa parte do atual quadro do petralhismo, os gentis filo-petistas que se apresentam como denodados defen-

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sores de uma democracia unívoca, só possível sob o petismo, debandem para as hostes dos atuais coxinhas de esquerda em busca de uma nova visão de esquerda, mais aberta e mais gene-rosa, na medida em que forem se dando conta de sua desconfor-tável posição filosófica.

Seja como for, atirando ao ar esse jogo de acusações mútuas que cada vez mais vai se transformando em lixo da história, vem chegando a hora de o Brasil não mais poder fazer vistas grossas para a nossa inusitada situação política, econômica e principal-mente cultural. Na política, a principal novidade é o reconheci-mento cabal, por provas evidentes, da corrupção que nos atinge de um modo avassalador. Abrir a janela da verdade está nos levando para o sufoco do fedor que nos penetra, porém, em consequência, nos empurrando para a tomada de atitude determinante. A segunda é a necessidade irrecorrível da transparência do Estado, com tudo a que isso se refere. Na questão econômica está evidente a necessi-dade de se reconhecer que o desenvolvimento do país exigirá um novo modelo da relação entre capital, trabalho, tecnologia e o Estado brasileiro, bem como novos métodos de trabalho, de apura-ção de lucro, de investimento do capital e de distribuição da riqueza privada e social. E no plano cultural, haveremos de nos orientar em torno de um comprometimento firme entre o povão trabalhador e a classe média construtora de um novo discurso político e cultu-ral. Esse comprometimento deve se pautar não só pelas chamadas políticas de compensação e de direitos humanos, mas sobretudo por uma política educacional que reconheça de cara, para melhor superá-lo, o papel nefasto do professorado (de origem majoritaria-mente da classe média) na educação da população pobre brasileira. Papel este exercido por uma retórica de esquerda (o Estado opres-sor), esquentada por discursos de direitos de trabalhadores (o Estado como patrão), mas que serve só a si próprio, irresponsavel-mente relegando seus deveres e comprometendo as mínimas chan-ces de fortalecimento da classe trabalhadora e de sua integração na civilização brasileira.

Portanto, que nos desarmemos todos das mútuas acusações tolas e das firulas de palavreado que nos dominaram nos últimos tempos, e partamos para o que interessa: repensar o Brasil sob um novo paradigma a ser construído depois da iminente borrasca que se nos avizinha, não só por um possível impeachment da presidente do Brasil (ou sua continuidade como pato manco), mas também pela indefinição paralisante sobre como sair do declínio econômico e da depressão cultural que nos acometem.

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Implicações políticas da tese de doutoramento de Karl Marx

Gastão Rúbio de Sá Weyne

O pensamento marxista está indissoluvelmente vinculado à notável coerência de pontos de vista e à marcante perso-nalidade de Karl Marx (1818-1883), que se manifestaram

desde a sua juventude. Ainda jovem, ele já cultuava virtudes de ética e altruísmo.

Um episódio indelével na vida de Marx indica o seu caráter, a sua sólida formação humanista e diferenciada visão social, mostrando a precoce preocupação do grande pensador com os seus semelhantes. Quando realizava seu exame final de língua alemã, no Ginásio de Trèves, cidade em que nasceu, seu professor mandou-o dissertar sobre o tema “Reflexões a propósito da esco-lha de uma profissão”.

Nessa dissertação, desenvolvida por ele, aos 17 anos, foram defendidas duas ideias. A primeira, foi a de que o homem feliz é aquele que faz os outros felizes; e a segunda, que a melhor profis-são deve ser a que proporciona ao homem a oportunidade de trabalhar pela felicidade do maior número de pessoas, isto é, pela humanidade. Este seu trabalho e a tese de doutoramento que, a seguir, elaborou foram publicadas na época em que o autor passou a ser denominado de “o jovem Marx”.

Karl Marx dedicou-se, desde os 20 anos, à elaboração de sua tese de doutorado durante os anos de 1838 a 1840. Como havia sido dispensado do serviço militar, sobrava-lhe tempo para conse-guir seu objetivo.

Em 15 de abril de 1841, aos 23 anos, defendeu brilhantemente a sua tese de doutoramento, intitulada Diferença entre as filoso-fias da natureza em Demócrito e Epicuro, e obteve o diploma na Universidade de Iena, Alemanha.

Com a tese, fundada em bases ateístas, entretanto, ele não conseguiu obter a cátedra que pretendia, pois o governo não queria hegelianos de esquerda pontificando nas universidades alemãs. Além disso, sem dinheiro, foi obrigado a adiar seu casamento.

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163163Implicações políticas da tese de doutoramento de Karl Marx

As concepções de Demócrito e Epicuro, como fundamentos da sua tese de doutoramento

No prefácio da tese, Marx ressaltou: “Deverá considerar-se este trabalho como esboço de uma obra mais importante em que exporei detalhadamente o ciclo das filosofias epicurista, estoica e cética, nas suas relações com o conjunto da especulação grega”. Procurou justificar a escolha do tema, enfatizando: “Parece-me que, se os sistemas anteriores são mais significativos e interes-santes para a análise do conteúdo da filosofia grega, os sistemas pós-aristotélícos – sobretudo o ciclo das escolas epicurista, estoica e cética – o são ainda mais para o estudo de forma objetiva, o caráter dessa filosofia”.

Mostra a história que Demócrito (Demócrito de Abdera), junta-mente com Leucipo, foram os fundadores do atomismo clássico. Demócrito acreditava que a alma é feita de átomos particular-mente perfeitos, mas é um composto e, por esse motivo, tão pere-cível como o corpo. A percepção resulta dos eflúvios dos átomos, emitidos pela superfície dos objetos, que entram em interação com os átomos da alma.

Epicuro acreditava na metafísica atomista de Leucipo e Demó-crito, aceitando, em particular, o espaço vazio, um número infi-nito de átomos e o número infinito de mundos que suas variadas combinações produzem. Contudo, há espaço para os deuses, ainda que não tenham qualquer preocupação por este cosmo, não tendo em especial qualquer papel, quer como causas primeiras, quer como algo que proporciona finalidade à existência. A concep-ção atomista de Epicuro tem, portanto, bases ateístas.

Para os epicuristas, é necessário ter sabedoria prática, adqui-rida por meio da filosofia, para atingir uma vida agradável, que consiste numa preponderância dos prazeres suscetíveis a prolon-gamento indefinido, sobre os prazeres meramente sensoriais e voláteis. Tal como em outras filosofias éticas gregas, a denomi-nada ataraxia constitui o ponto mais alto dos prazeres longos e exige a compreensão dos limites da vida, a supressão do medo da morte, o cultivo da amizade e a eliminação dos desejos desneces-sários e dos falsos prazeres.

Marx considerava Demócrito um físico, cético e empírico, que atribuía ao mundo sensível uma aparência subjetiva. Demócrito dedicava-se à ciência empírica da natureza e aos conhecimentos positivos, e representava a inquietude da observação que experi-mentava, aprendia e errava pelo mundo; considerava a natureza

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do ponto de vista da necessidade, e procurava explicar e apreen-der a existência real das coisas. Epicuro, segundo Marx, conside-rava real o mundo dos fenômenos, desprezava o empirismo, encar-nava o repouso do pensamento que encontrava satisfação em si mesmo, admitia a autonomia que criava o seu saber a partir de um princípio interno, aceitava o fenômeno como real, via apenas o acaso e seu modo de explicação tendia a englobar toda a reali-dade objetiva da natureza.

Demócrito admitia dois tipos de movimento atômico, a queda em linha reta e a repulsão dos diversos átomos, enquanto Epicuro acrescentava um terceiro: a declinação da linha reta, o desvio clinamen. Para Demócrito, o movimento dos átomos seria origina-riamente em todas as direções. A movimentação em linha reta seria decorrência de uma concepção de peso do átomo que existia apenas em Epicuro.

O fator tempo nas filosofias da natureza em Demócrito e Epicuro

Em Demócrito, o tempo carece de importância e não é neces-sário ao seu sistema. Quando ele aborda o tempo, é para suprimi-lo: e quando o determina como eterno, é para que o nascimento e a morte, ou seja o temporal, sejam afastados dos átomos. É o próprio tempo que deve fornecer uma prova de que nem tudo teve necessariamente uma origem, um momento em que se iniciasse.

Em primeiro lugar, Epicuro, diferentemente, considerava a contradição entre a matéria e a forma como o caráter da natureza fenomênica, a qual se torna, desse modo, aquilo para que tende a natureza essencial do átomo. Isso prende-se ao fato de se conside-rar o tempo em oposição ao espaço e a forma ativa do movimento em oposição à forma passiva.

Em segundo lugar, somente em Epicuro o fenômeno é conce-bido efetivamente como fenômeno, isto é, como uma alienação da essência que se afirma, enquanto alienação, em sua realidade efetiva. Em Demócrito, pelo contrário, para quem a composição é a única forma de natureza fenomênica, o fato não se apresenta em sua qualidade de fenômeno, de algo diferente da essência.

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Os corpos celestes nas teorias atomistas de Demócrito e Epicuro

As ideias de Demócrito podem ter sido perspicazes no seu tempo. Mas não têm um maior interesse filosófico, pois não supe-ram o âmbito da reflexão empírica e não têm relações suficiente-mente bem determinadas com a doutrina dos átomos.

Em contrapartida, a teoria de Epicuro sobre os corpos celestes e os processos a eles vinculados, ou sobre os meteoros (expressão em que sintetiza tudo isso), opõe-se não só à opinião de Demó-crito, mas também à de toda a filosofia grega. A veneração dos corpos celestes é um culto celebrado por todos os filósofos gregos; o sistema dos corpos celestes constitui a primeira existência, ingênua e determinada pela natureza, de razão efetivamente real. A consciência de si ocupa a mesma posição no mundo do espírito; é o sistema solar espiritual.

Assim, enquanto Aristóteles, de acordo com os outros filósofos gregos, considera os corpos celestes eternos e imortais, visto que se comportam sempre da mesma maneira, e lhes atribui um elemento próprio, superior, que não está submetido ao peso, Epicuro afirma que acontece exatamente o contrário. Aquilo que, em sua opinião distingue especificamente a teoria dos corpos celestes de todas as outras doutrinas físicas é o fato de que, nos meteoros, tudo se produz de forma múltipla e irregular e que tudo deve ser explicado por um número indeterminado de razões dife-rentes. Epicuro conclui: os corpos celestes não são eternos porque perturbariam a ataraxia da consciência de si; e essa conclusão é necessária e imperiosa.

Mas, como se deve entender essa opinião particular de Epicuro? Todos os autores que escreveram sobre sua filosofia apresentaram a doutrina dos meteoros como não estando relacio-nada com o resto da física, com a doutrina dos átomos. A polê-mica com os estoicos e a luta contra a superstição e a astrologia são razões suficientes para explicar esse comportamento.

Alicerces ideológicos em Demócrito e Epicuro

Na tese de doutoramento de Marx, Epicuro aceitava o espaço vazio, um número infinito de átomos e um número infinito de mundos, havendo, no entanto, espaço para os deuses, sem qual-quer preocupação com o cosmo. Vale lembrar que os epicuristas foram alvo de constantes ataques por parte da igreja católica, por

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negarem a Criação, a providência, o Deus único e onipotente, a imortalidade da alma.

Ressalte-se que a ideologia é um termo que possui diferentes significados e duas concepções: a neutra e a crítica. No senso comum, o termo ideologia é sinônimo do termo ideário, contendo o sentido neutro de conjunto de ideias, de pensamentos, de doutri-nas ou de visões de mundo de um indivíduo ou de um grupo, orientado para suas ações sociais e, principalmente, políticas. Para autores que utilizam o termo sob uma concepção crítica, como Karl Marx, a ideologia age mascarando a realidade.

Com relação a crenças religiosas, Marx considerou-as alie-nantes e dissimuladoras das desigualdades materiais e afirmou que “a religião não faz o homem, mas, ao contrário, o homem faz a religião”. “A religião – para ele – é a autoconsciência e o autos-sentimento do homem que ainda não se encontrou ou que já se perdeu. Mas o homem não é um ser abstrato, isolado do mundo. O homem é o mundo dos homens, o Estado, a sociedade”. Ele, portanto, considerava haver uma inversão de valores, priorizando-se uma divindade em detrimento do homem.

A liberdade, a ética e as implicações políticas da tese

Segundo a tese de doutoramento de Marx, a composição da essência, no pensamento de Epicuro, “é a forma meramente passiva da natureza concreta e o tempo é sua forma ativa. Se for considerada a composição da essência a partir da liberdade, a ética e as implicações políticas do tema relativo ao ser – o átomo, nesse caso –, existirá por trás dela, no vazio, no imaginário”.

Ao analisar a liberdade na sociedade capitalista, Marx demons-tra muito bem que esta liberdade é limitada, assim como o domí-nio do capital sobre o trabalhador também apresenta limites. É essa contradição entre liberdade e não liberdade que domina a sociedade capitalista. O capitalismo não é o reino da liberdade, como afirmam os liberais, presos às aparências do mercado, mas tampouco é o reino do absoluto domínio do capital sobre os homens. A liberdade conquistada pelo capital desenvolveu a liber-dade civil e a igualdade jurídica entre os cidadãos, acabou com os privilégios legais de classe, declarando todos os homens iguais perante a lei.

Para Marx, quer a religião quer a moral são a “autoconsciência e o autossentimento que possui o homem que ainda não se encon-

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trou, ou que tornou a se perder; é um suspiro da criatura opri-mida, o estado de ânimo de um mundo sem coração”. Por sua vez, a crítica da religião e da moral são necessárias, sendo prelimina-res a toda a crítica radical da ordem existente. A moral e a religião não passam “do sol ilusório que gravita em volta do homem, enquanto o homem não gravita em volta de si mesmo”.

Desde o início das suas proposições filosóficas, o “jovem Marx”, apontava que o caminho para a liberdade não se apresentava em um estado livre de religião oficial, mesmo não negando o aspecto progressista de um estatuto político não religioso. Seu pensa-mento não compreende a liberdade do ser humano como é consi-derada no Estado laico, ou seja, mesmo que isso seja um avanço, ele considera que a humanidade deve buscar a emancipação total.

Pode-se resumir afirmando que o homem religioso pode tornar-se cidadão em um estado laico, porém é uma “meia solu-ção”, uma vez que a emancipação política não implica em eman-cipação humana e esta somente ocorre com o homem livre das divindades, da crença na vida eterna e dos milagres divinos.

Referências

BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997.

BOTTOMORE, Tom (edit.). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.

CARTLEDGE, Paul. Demócrito. Trad. de Angelika Elizabeth Köhnke. São Paulo: Unesp, 2001.

FARRINGTON, Benjamin. A doutrina de Epicuro. Trad. de Edmond Jorge. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

MARTINS, Jader Benuzzi. A história do átomo – de Demócrito aos Quarks. Rio de Janeiro: Ciência Moderna, 2001.

MARX, Karl. Diferença entre as Filosofias da Natureza em Demócrito e Epicuro. Trad. de Conceição Jardim e Eduardo Lúcio Nogueira. Lisboa: Presença, 1972.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. São Paulo: Ciências Humanas, 1979.

MORAES, João Quartim de. Epicuro – as luzes da ética. São Paulo: Moderna, 1998.

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O combate às desigualdades sociais no capitalismo: segundo Marx e Piketty

Fernando Alcoforado

Thomas Piketty escreveu um livro chamado Capital in the Twenty-First Century (O Capital no século XXI ) publicado pela The Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, Massa-chusetts, 2014, no qual defende a taxação progressiva e a tributa-ção da riqueza global como único caminho para deter a tendência de uma desigualdade crescente de riqueza e renda no sistema capitalista. Ele coloca em xeque a visão, amplamente aceita, de que o capitalismo de livre mercado distribui riqueza. Piketty demonstra que o capitalismo de livre mercado, na ausência de uma grande intervenção redistributiva por parte do Estado, produz oligarquias antidemocráticas. O livro tem sido frequente-mente apresentado como substituto para o século 21 do trabalho do século 19 de Karl Marx, que leva o mesmo título.

Em seu livro, Piketty não explica as causas mais profundas da crise mundial de 2008, e por que está demorando tanto para o sistema capitalista mundial se recuperar. Ele não ajuda a enten-der por que o crescimento econômico é tão medíocre hoje nos Estados Unidos, ocorre a estagnação da Europa e do Japão e a desaceleração econômica da China. O que Piketty mostra estatis-ticamente é que o capital tendeu, por meio da história, a produzir níveis cada vez maiores de desigualdade. Esta é exatamente a conclusão teórica de Marx, no primeiro volume de sua versão do Capital . Em O Capital, de Marx, a desigualdade é vista não como o resultado da distribuição da riqueza como O Capital no século XXI, de Piketty apresenta, mas como um resultado inevitável da produção da riqueza sob o capitalismo.

Segundo Marx, toda riqueza na sociedade é produto do traba-lho, criada pelos esforços físicos e mentais da classe trabalha-dora. Os lucros, que significam o retorno sobre o capital, são como Marx explicou nada mais do que o trabalho não pago da classe trabalhadora, isto é, a diferença entre o valor que é produ-zido e o valor que reverte aos trabalhadores na forma de salá-rios. Uma taxa crescente de lucro, portanto, apenas implica em uma exploração crescente da classe trabalhadora, o que signi-fica necessariamente uma maior parte da riqueza na sociedade

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se acumulando nas mãos dos capitalistas – uma pequena elite de exploradores.

Marx demonstrou em seus três volumes de O Capital (Boitempo, São Paulo, 2013) como, por vários meios, o capita-lismo pode explorar a classe trabalhadora por maiores lucros: 1) estendendo a jornada de trabalho, por meio de uma intensifica-ção do trabalho dentro de um dado tempo; e, 2) aumentando a eficiência e a produtividade dos trabalhadores, através da substi-tuição de trabalho por máquinas etc. Tudo isto se reflete no aumento da proporção do trabalho não pago em relação ao valor do que é produzido pelos trabalhadores.

Marx viu a economia capitalista como um sistema com proces-sos interconectados, e em última análise como uma luta entre forças vivas – uma luta de classes entre os capitalistas detentores dos meios de produção e os trabalhadores pelo excedente produ-zido na sociedade. Através dos meios descritos acima, os capita-listas podem tentar aumentar seus lucros à custa da classe traba-lhadora. No entanto, onde a classe trabalhadora é organizada, unida e desejosa de lutar, reformas podem ser obtidas e os traba-lhadores podem ganhar uma parcela maior da renda gerada pela atividade produtiva. Este tipo de exploração é inerente ao capita-lismo. Se os trabalhadores não recebem de volta o pleno valor de seu produto – o que é necessariamente o caso em um sistema de propriedade privada e de produção para o lucro – então, não podem comprar de volta todas as mercadorias que produzem. Esta situação tende a criar situações de superprodução que, historicamente, têm resultado na queda da produção e no aumento do desemprego que leva inevitavelmente a crises tendentes à depressão como a que experimentamos em 1929 e atualmente, na qual todas as contradições acumuladas no sistema capitalista mundial estão se agravando.

Pelo exposto, Piketty não é o novo Marx. Enquanto Marx mostra as verdadeiras causas das desigualdades sociais que estão relacionadas com a expropriação da renda dos trabalhadores pelos detentores dos meios de produção, Piketty aponta as conse-quências desta expropriação, isto é, as desigualdades resultantes. Enquanto Karl Marx defende o fim do capitalismo com a implan-tação do socialismo e, mais tarde, do comunismo para acabar com as desigualdades sociais, Piketty propõe medidas para consertar o sistema capitalista e mantê-lo funcionando. O problema para Piketty não é a desigualdade em si, mas o fato de que esta cria injustiça na sociedade que ameaça a existência

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do próprio sistema capitalista. Piketty afirma que é muito difícil fazer o sistema funcionar quando se tem uma desigualdade tão extrema como a que vem se registrando.

Para diminuir as desigualdades sociais, Thomas Piketty propõe uma medida que é considerada utópica que é a taxação de grandes fortunas. O Capital no século XXI sugere, entre outras coisas, a tributação de grandes fortunas, o combate à desigualdade econô-mica e à concentração da riqueza nas mãos de poucos. Com cerca de 500 páginas, O Capital no século XXI é dividido em quatro partes nas quais trata da questão da renda, produção, capital e suas transformações ao longo da história, principalmente a partir da Revolução Industrial e faz uma verdadeira genealogia da questão de renda, sobretudo, com um extensivo levantamento sobre as polí-ticas de salário com focos na França, Reino Unido e Estados Unidos os quais foram muito úteis para uma leitura a respeito da história do capitalismo global e suas problemáticas.

Thomas Piketty analisa, também, a desigualdade, a concen-tração de renda, o rentista enquanto inimigo da democracia, a desigualdade mundial da riqueza no século XXI, a questão das famílias detentoras da riqueza global e, por fim, a taxação e regu-lação da riqueza global. Piketty aborda o “apocalipse marxista” de acúmulo infinito de capital que, para ele, não se concretizou. Porém, afirma que, apesar de não termos um acúmulo infinito de capital, temos cada vez mais poucas famílias detendo quase a metade da riqueza global.

Piketty explica que ocorre uma tendência ao crescimento da desigualdade devido ao contínuo aumento da acumulação de riqueza resultante do fato de que a taxa de retorno sobre o capital (r) sempre excede a taxa de crescimento da renda (g). Isso, diz Piketty, é e sempre foi “a contradição central” do capital. Mas esse tipo de regularidade estatística dificilmente alicerça uma explica-ção adequada, quanto mais uma lei. Então, quais são as forças que produzem e sustentam tal contradição? Piketty não diz. Marx afirma em sua obra O Capital que a existência desta lei resulta do desequilíbrio de poder entre capital e trabalho. E essa explicação ainda é válida hoje. A queda constante da participação do trabalho na renda nacional, desde os anos 1970, é decorrente do declínio do poder político dos trabalhadores à medida que o capital mobilizava tecnologia, aumentava o desemprego, realizava a deslocalização de empresas e adotava políticas antitrabalho (como as de Margaret Thatcher e Ronald Reagan) para destruir qualquer oposição.

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As políticas anti-inflação dos anos 1980 aumentaram o desem-prego que era um modo extremamente desejável de reduzir a força política das classes trabalhadoras. A crise do capitalismo que se seguiu recriava um exército de mão de obra de reserva possibili-tando que os capitalistas lucrassem mais do que nunca. A dispa-ridade entre a remuneração média dos trabalhadores e dos execu-tivos-chefes era cerca de trinta para um em 1970.

Hoje, está bem acima de trezentos para um e, no caso do MacDonalds, cerca de 1200 para um (Outras palavras. David Harvey: leia Piketty, mas não se esqueça de Marx. Disponível no website <http://outraspalavras.net/posts/david-harvey-leia-pi-kettymas-nao-se-esqueca-de-marx/>. Piketty reúne uma grande quantidade de dados para sustentar sua argumentação. Sua descrição das diferenças entre renda e riqueza é bastante útil e faz uma defesa cuidadosa da tributação sobre a herança, do imposto progressivo e de um imposto sobre a riqueza global como possíveis (embora quase certamente não politicamente viável) antídotos contra o avanço da concentração de riqueza e poder.

A solução proposta por Karl Marx de superação das desigual-dades deveria levar ao fim do capitalismo com a implantação do socialismo e, mais tarde, do comunismo a qual é considerada utópica por muitos analistas haja vista o fracasso do socialismo real implantado na União Soviética e em outros países. A solução proposta por Piketty para consertar o sistema capitalista e mantê-lo funcionando é, também, considerada utópica diante do poder do capital porque sugere, entre outras medidas, a tributação de grandes fortunas, o combate à desigualdade econômica e à concentração da riqueza nas mãos de poucos. Em suma, ambas as soluções propostas seriam politicamente inviáveis e, portanto, utópicas por muitos analistas.

Eric Hobsbawn ofereceu uma resposta a este dilema em artigo publicado no jornal britânico The Guardian, em 16/04/2009, sob o título Pressupostos teóricos da “economia mista”, quando afir-mou que conhecemos duas tentativas práticas de realizar ambos os sistemas, socialista e neoliberal, em sua forma pura: por um lado, as economias de planificação estatal, centralizadas, de tipo soviético; por outro, a economia capitalista de livre mercado isenta de qualquer restrição e controle. As primeiras vieram abaixo na década de 1980, e com elas os sistemas políticos comunistas europeus; a segunda está se decompondo diante de nossos olhos na maior crise do capitalismo global ocorrida em 2008.

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Hobsbawm disse que o futuro pertence às economias mistas nas quais o público e o privado estejam mutuamente vinculados de uma ou outra maneira. Isto significa dizer que a Social Demo-cracia com o Estado de bem-estar social, o mais bem sucedido sistema já implantado no mundo, que incorpora elementos tanto do socialismo como do capitalismo, especialmente nos países escandinavos, poderia ser a solução para o problema da desi-gualdade que avassala o planeta em que vivemos. A social demo-cracia do futuro, que deveria resultar do aperfeiçoamento do modelo atual implantado nos países escandinavos, operaria com um tripé estruturado com base na sociedade civil organizada ativa, setor produtivo (estatal e privado) eficiente e eficaz e um Estado neutro, que exerceria a coordenação do planejamento e a regulação do sistema e mediaria os conflitos entre a sociedade civil e o setor produtivo.

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X. Mundo

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Autores

José Antonio SegattoProfessor titular de Sociologia da Unesp .

José Flávio Sombra SaraivaPhO pela Universidade de Birmingham, Inglaterra, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília (UnB) e Pesquisador 1 do CNPq .

Sionei Ricardo LeãoJornalista, assessor de imprensa na Câmara Federal, é ativista de direitos humanos e igualdade racial, o que lhe valeu o Prêmio Palmares de Comunicação (Ministério da Cultura) pelo Documentário Kamba-Racê, que trata do tema igualdade racial e Forças Armadas .

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Espectros do terror

José Antonio Segatto

Os atentados terroristas, em passado recente, promovidos pelo Estado Islâmico (EI) e por grupos ou seitas similares (Al Qaeda, Taleban, Frente al-Nusra, Al Shabaad, Ansar

al Sharia, Boko Haran) na Espanha, na Inglaterra, na Bélgica, na França, nos Estados Unidos, na Turquia, no Líbano, no Mali, na Líbia, na Tunísia, no Egito, no Iêmen, no Quênia, na Somália, na Nigéria e outros que chocaram o mundo – divulgados como atos espetaculares e/ou fantásticos, por parte de certos órgãos da mídia global – não devem ser compreendidos como uma simples reação de seitas político-religiosas fundamentalistas contra o Ocidente cristão e democrático, como muitos ideólogos ou gover-nantes querem fazer parecer. Ou ainda como um epifenômeno do “choque de civilizações”, como quis Samuel Huntington.

Quais seriam então os elementos explicativos para tais atos? Seu entendimento, cremos, envolve um conjunto complexo de fatores histórico-políticos, tanto no passado longínquo e/ou secu-lar, quanto hodierno.

Problemas histórico-políticos

Para não recuar demasiadamente na história, pode-se partir das últimas décadas do século XIX, quando teve início uma outra fase do desenvolvimento capitalista, diversa da anterior – liberal, assentada no e ordenada pelo “mercado não regulado” e pela “livre concorrência”. Uma de suas características fundamentais foi a

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expansão colonial em busca de novos mercados consumidores de produtos manufaturados e fornecedores de matérias-primas, gêne-ros alimentícios e áreas lucrativas para investimento de capital. “Entre 1876 e 1915, cerca de um quarto da superfície continental do globo foi distribuído ou redistribuído, como colônia, entre meia dúzia de Estados”; Inglaterra, França, Bélgica, Alemanha, Itália e Estados Unidos promoveram a divisão territorial do mundo, “confi-gurando um conjunto de colônias formais e informais e de esferas de influência”. (HOBSBAWM, 1988, p. 91 e 93).

Nas regiões de populações muçulmanas da África, Oriente Médio e parte da Ásia, o domínio inglês e francês constituiu fato mais que perceptível e inconteste. A supremacia dessas duas potências europeias acentuou-se com a dissolução do Império Otomano – cuja autoridade abrangia grande parte do Médio Oriente – resultante da Primeira Guerra Mundial (1914-18). Antes mesmo do término do conflito, França e Inglaterra, por meio de acordos secretos de Sykes – Picot (1916), redividiram a região em áreas de influência e controle. A França, que já tinha sob seu jugo a região do Magreb, ficou com a Síria e o Líbano; a Inglaterra, que estendia sua dominação direta ou sob a forma de protetorado, desde o Egito e Sudão até o Aden, Omã, Qatar, Kuwait, etc, apode-rou-se da Transjordânia, do Iraque e da Palestina.

O término da I Guerra Mundial assinalou também o desapare-cimento final do Império Otomano. Das ruínas do império emer-giu um novo Estado independente na Turquia, mas as províncias árabes foram postas sob controle britânico e francês; todo o mundo de língua árabe achava-se agora sob o domínio europeu, a não ser por algumas partes da península arábica. (HOURANI, 1994, p. 270).

Entre os anos de 1920/40, a região ganhou novos contornos e suas fronteiras – praticamente inexistentes ou pouco nítidas – foram redesenhadas com a organização, por parte das potências europeias, de inusitados Estados-nacionais. A criação, desde cima e de fora (sob a supervisão e/ou tutela inglesa ou francesa), de países artificiais, no mais das vezes sem nenhuma tradição, coesão ou fundamento histórico, teria implicações sociopolíticas graves e duradouras.

Há casos em que o poder foi instaurado a partir de tribos e clãs nômades do deserto, por meio de monarquias teocráticas, com a invenção de dinastias ou casas reais, e instituições que pareciam exóticas ou mesmo bizarras. Seu poder e domínio foram

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impostos, em geral, pela força e pela coerção e garantidos pela submissão desses novos Estados aos interesses das potências (EUA e Europa) e aos monopólios da indústria petrolífera e arma-mentista. Na África Setentrional e do Nordeste e na Ásia Central, o processo foi similar, com governos de reduzida legitimidade, regimes opressores e iníquos, tirânicos ou autocratas. Isso gerou situações de permanente instabilidade e conflitos contínuos (étni-cos, religiosos, políticos etc.) na região.

Essas tensões e antagonismos seriam, concomitantemente, potencializados por inúmeras outras razões, envolvendo desde a criação de certos nacionalismos, o ressurgimento de fundamen-talismos político-religiosos, à permanente contrafação árabe-is-raelense na Palestina etc. – todos eles permeados pelos ecos da guerra fria.

Como contraponto às relações de dominação política e explo-ração econômica impostos pelas potências capitalistas, irrompeu no Oriente Médio, na década de 1950/60, um projeto nacionalista, propugnando um pan-arabismo (a construção de uma nação que congregasse todos os povos árabes), com ingredientes de socia-lismo estatista – exemplares foram os casos do nasserismo no Egito e o movimento de libertação nacional da Argélia. Desse fenômeno, redundariam regimes políticos com formato de dita-dura militar, dirigidos por partidos-Estados (em geral laicos). Foram os casos, entre tantos outros, do Egito (Gamal Abdel Nasser, 1952), Síria (Hafez al-Assad, 1970) Iraque (Sadam Hussein, 1969), Líbia (Muammar al-Kadafi, 1969).

Em sincronia com tais acontecimento, irrompeu, em meados dos anos 1960, um movimento político-religioso de cunho funda-mentalista e regressista. Cisma da Irmandade Muçulmana (fundada no Egito em 1928), propunha-se à ressurreição do cali-fado islâmico; e entre os meios para alcançá-lo, o jihadismo (guerra santa contra os hereges, em defesa dos princípios sagrados do Islã) deveria ser conduzido por grupos combatentes (mujahedim) “prepa-rados para a violência e o martírio” (HOURANI, 1994, p. 443). Perseguido pelo governo egípcio, o movimento encontrou guarida e apoio financeiro na monarquia ultraconservadora saudita que, de maneira conveniente, consentiu a difusão de suas concepções e doutrina por meio das madrassas, pois eram congruentes com o integrismo do wahabismo, crença oficial do Estado.

Por último, outro elemento de desequilíbrio e de perturbação na região seriam as intermináveis guerras e hostilidades entre

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árabes e judeus após a criação do Estado de Israel, em 1948. A forma como foi encaminhada a solução dos Estados nacionais judaico e palestino – imbuída pela lógica da guerra fria das geopo-líticas norte-americana e soviética na região, além de contagiada por ideologias sectárias e messiânicas – constituiu-se, historica-mente, em componente fundante e fundamental de transtorno, de desestabilização e insuflador de terrorismo.

Mas, não obstante todas as tensões e paradoxos, Estados e governos fundados e legitimados por poderes, geralmente extra-políticos, mantiveram a ordem imutável, estendendo seus domí-nios por extensas áreas e, em muitos casos, por longo tempo – beneficiados, inclusive, pela crescente importância da exploração do petróleo com seus incomensuráveis lucros.

A pax americana e seus demônios

No pós-II Guerra Mundial (1945), a influência e o domínio britânico foram, gradativamente, sendo substituídos pelos norte-americanos. Tornados grande potência, os Estados Unidos esta-beleceram seu poder e domínio político-econômico na região de maneira evidente. Seja por meio de transações ou outorgas, seja por meio de persuasão ou compulsão, garantiram os interesses e os negócios do seu Estado, dos grandes monopólios da indús-tria do petróleo e do complexo industrial-militar. Para tanto, suas intervenções tornaram-se, nas décadas que se seguiram, constantes e sistemáticas na área. Exemplar foi a operação, por meio de um golpe de Estado bem sucedido, organizado e finan-ciado pela CIA, que depôs o primeiro ministro do Irã, Mohammad Mossadegh, em 1953, pelo fato de ele ter nacionalizado a explo-ração do petróleo.

Desde fins dos anos 1970, os sucessivos governos – mesmo que com matizes partidárias distintas – dos Estados Unidos, por meio de órgãos diplomáticos ou militares e agências secretas de segurança, intensificaram as ações e/ou intervenções para garan-tir seus interesses econômicos e geopolíticos. Jeffrey Sachs, anali-sando essas operações, asseverou há pouco que “A CIA recrutou em grande escala, membros de populações muçulmanas (inclu-sive na Europa) para formar Mujahidin, uma força de combate sunita multinacional mobilizada para expulsar infiéis soviéticos do Afeganistão.” E observou também que, ao fomentar a concep-ção fundada na eclosão da Jihad “para defender as terras do Islã [...] contra forasteiros, a CIA produziu uma força de combate

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inicial – e a ideologia que a motivou – que hoje ainda forma a base das insurgências jihadistas sunitas, incluindo o EI. O alvo origi-nal dos jihadistas era a União Soviética, hoje são EUA, França, Reino Unido e Rússia”. (SACHS, 2015. b.p. A11).

Essas condições e desígnios foram agravados e potencializa-dos pelas ações e intervenções militares americanas e europeias a partir dos anos 1990, continuando no início do século XXI. Ao desestabilizarem ou deporem governos e governantes (Afeganis-tão, Iraque, Líbia, Iêmen, Síria etc.), tais operações provocaram um vácuo de poder ou destruíram, em alguns casos, o que havia de Estado organizado. Isso facultou a liberação de espectros ideo-lógicos extemporâneos e a ressurreição de concepções e atitudes fundamentalistas e/ou messiânicas há séculos adormecidas que irromperam com brutalidade e ódio inauditos – despertando demônios. Ainda que com elementos antediluvianos, essas concepções ganharam organicidade, manifestando-se na forma e por métodos terroristas. Seus alvos: a mercantilização das rela-ções sociais e humanas, os símbolos do capitalismo, as normas da modernidade laica, os valores da civilização ocidental e cristã e as tentativas de impô-los, seja pelo convencimento, seja pela força. Seus juízos e práticas político-ideológicas implicaram em uma espécie de “choque de civilizações” às avessas.

Suas ações, estruturação e difusão não ficaram circunscritas à região de origem. Encontraram condições de desenvolvimento, excepcionalmente propícias, no âmbito europeu, sobretudo na França, na Bélgica, na Inglaterra, países com significativa popu-lação de muçulmanos, advinda das ex-colônias. Migrantes, refu-giados, descendentes; cidadãos de 2ª e 3ª categorias, tratados como estrangeiros, discriminados pela origem e vítimas da isla-mofobia; jovens sem perspectiva ou oportunidade de estudo ou trabalho, marginalizados e abandonados à própria sorte, torna-ram-se alvo do aliciamento e da sedução dessas seitas sectárias e fundamentalistas. Os subúrbios de Paris, Bruxelas, Londres são hoje incubadores do extremismo jihadista.

A reação, por parte dos EUA, da Inglaterra, e da França e de seus aliados não foi menos atroz e desarrazoada. A resposta ao terror foi dada no mesmo tom, informada e guiada pelo princí-pio do “olho por olho, dente por dente”. Especialmente durante o governo G. W. Bush, retomaram-se os velhos paradigmas da “política cruzadista”, baseados na força militar, na supremacia político-econômica dos EUA e nas noções de “guerra justa”, “missão civilizatória”, “exceção permanente” etc. – o que serviu

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para alimentar a ira, acirrar os conflitos e disseminar o terror de parte à parte.

Tornou-se, pois, inconsistente a compreensão de a política internacional ter sido impregnada e mesmo condicionada, neste início de século, por aquilo que tem sido categorizado como “ques-tão islâmica”. E colocam-se problemas que não podem ser enfren-tados, simplesmente, pela coerção ou por “métodos bárbaros” baseados na força bruta. Ou seja, o “processo da islamização da agenda internacional constitui desafio inédito, de natureza distinta aos do passado. Ao envolver a mais dinâmica e numerosa das religiões, a mais resistente até hoje à modernização, ela exigirá muito mais do que a superioridade militar dos EUA”. (RICUPERO, 2009, p. A3).

Ordem política e nova fase do capitalismo

Nos anos oitenta do século XX, foi desencadeado um complexo e diversificado processo transformador que culminou com o ingresso do capitalismo em uma nova fase, expressa em mudan-ças como a reestruturação produtiva, a financeirização da econo-mia, a “revolução” técnico-científica, as políticas socioeconômicas neoliberais, a globalização etc. Em contrapartida, houve o colapso do “socialismo real” no Leste Europeu e em outras regiões, a desa-gregação da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1991), o perecimento dos partidos comunistas, o esgotamento e/ou a metamorfose da social-democracia, a crise nos movimentos sindi-cais e outros fatos e fenômenos.

Esse processo, para alguns, como o historiador inglês Eric J. Hobsbawm, significou “o fim de uma era”, iniciada em 1917, quando “a história mundial girava em torno da Revolução de Outubro” desencadeada na Rússia – época em que, “por mais de setenta anos os governos e as classes dirigentes ocidentais foram atemorizadas pelo fantasma da revolução social e do comunismo” (1992, p. 93). Numa posição antitética, outros, como um funcio-nário do Departamento de Estado Norte-Americano, Francis Fukuyama (1992), chegaram a entender que essa serie de aconte-cimentos significavam a vitória do liberalismo ou do livre mercado, a universalização da civilização ocidental, “o ponto final da evolu-ção ideológica da humanidade”, a “forma definitiva de governo humano” – “o fim da história”.

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Apesar da entusiástica acolhida midiática, o vaticínio apoteó-tico de Fukuyama mostrou-se imediatamente falacioso, redu-zindo-se a um simples espasmo ideológico. O que de fato ocorreu nesse processo foi o início de uma nova fase do modo de produção capitalista – que passou por outras, como a comercial nos séculos XVI-XVIII, a concorrencial de fins do século XVIII ao XIX e a monopolista ou imperialista entre mais ou menos 1870 a 1970 – que muitos denominam de globalização ou mundialização, sem chegar-se ainda a um consenso categorial.

Concomitantemente – e com o desdobramento desse processo – a ordem mundial construída no pós-guerra (1945) será levada de roldão. A derrocada do socialismo soviético e do Leste Euro-peu, simbolizada pela “queda do muro de Berlim” (1989), colocou um fim à guerra fria e à bipolaridade da política internacional que confrontava Estados Unidos e União Soviética. Isso, junto com outros fatores, abriu perspectivas de despolarização e renovação democrática na ordem política internacional.

O que sucedeu, no entanto, foi justamente o inverso. Na nova fase histórica, os Estados Unidos – agora sem o contrapeso geopolítico da URSS – assumiram ou se autoinvestiram do direito e da autoridade legítima de defensores e reguladores da ordem mundial. Seu poder deveria ser inconteste, não podendo ter limi-tes ou ser desafiado. Nesse contexto, recriaram-se, inclusive, noções e categorias como “guerra justa”, “autoridade internacio-nal”, “eixo do mal”, “missão civilizatória”, “excepcionalismo permanente”, “fronteira sem fim” e outras (IANNI, 2004, p. 271-272). Um importante intelectual do establishment norte-a-mericano, Samuel P. Huntington (1996), elaborou a tese do “choque de civilizações”, segundo a qual os conflitos fundamen-tais no “novo mundo” não seriam mais, essencialmente, de cará-ter econômico ou ideológico, mas de ordem cultural ou civilizacio-nal – o antagonismo entre Ocidente e Oriente e mais especificamente entre a civilização ocidental (liberal, cristã, civilizada, racional, desenvolvida) e o mundo islâmico (incivil, bárbaro, atrasado, ímpio, autoritário, cruel). Não por acaso, tal proposição foi ampla-mente difundida e absorvida pela diplomacia norte-americana.

Ainda, nas novas condições históricas, reestabeleceram-se doutrinas e práticas geopolíticas que pareciam pretéritas, como a da contra-insurgência preventiva para combater a criação de possibilidades ou potencial propício à reação e à oposição aos interesses norte-americanos. A velha tese do estrategista militar alemão do século XIX, Karl Von Clausewitz (1960), para quem “a

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guerra é a continuidade da política por outros meios”, foi ressus-citada e reatualizada – ela passou, inclusive a fundamentar sanções e intervenções, além de ser usada para legitimar a busca de estabelecimento do monopólio internacional da força por parte dos Estados Unidos e seus aliados. Dessa forma que, fundadas “na força militar e política do Estado Imperial, as relações inter-nacionais” passaram a ser “submetidas ao regime de exceção permanente” (BELLUZZO, 2004, p. 132). Retomou-se, em toda a sua crueza, concepção de conflito, sanção ou guerra segundo a qual o mais forte, o vencedor sempre tem razão. (BOBBIO, 1982).

Ao mesmo tempo, de acordo com a lógica da globalização, desencadeou-se uma forte ofensiva político-ideológica contra o Estado de Bem-Estar Social e a favor da desregulamentação e eliminação de barreiras para suprimirem-se quaisquer obstácu-los à liberdade das mercadorias e à sua livre circulação conforme os interesses dos grandes conglomerados multinacionais com sede nos Estados Unidos, na Europa, na China e no Japão. Enquanto isso, restringiu-se a ação dos Estados nacionais perifé-ricos, submetidos progressivamente aos mercados financeiros globais. Nesse processo, algumas “das características ‘clássicas’ do Estado nação parecem modificadas, ou radicalmente transfor-madas”, de forma que “a soberania do Estado-nação não está sendo simplesmente limitada, mas abalada pela base” (IANNI, 1995, p. 48-49 e 34), mostrando-se “materialmente limitados em sua autonomia decisória”. (FARIA, 199, p. 23).

Evidencia-se, desse modo, que o processo de globalização tem implicações múltiplas e substanciais: a) o movimento do capital ganhou uma velocidade excepcional e sua capacidade de reprodu-ção foi potencializada; b) o mercado financeiro foi tornado global e virtual e o fluxo de moedas e capitais alcançou agilidade expo-nencial; c) a circulação de mercadorias e capitais, o deslocamento de indivíduos e grupos, em todas as direções e regiões, criaram condições para a desterritorialização econômica e o desenraiza-mento cultural e identitário, desalinhando ou dissipando frontei-ras, reais ou imaginárias; d) as relações de trabalho e/ou de produção, a sociabilidade e a representação, os meios de informa-ção e comunicação viram-se drasticamente alterados e transtor-nados; e) a redefinição das atribuições e soberania dos Estados-nacionais – como unidades geopolíticas, como espaços da livre circulação de mercadorias (entre as quais a mão de obra), como mercados internos (complexa rede de relações sociais mercantili-zadas), mediadas e geridas por um poder soberano e como “comu-

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nidades imaginadas” (ANDERSON, 1989, p. 14-16) – levou à corro-são da autoridade e da jurisdição, à efemeridade das instituições e esferas de decisão ou deliberação, fragilizando a sociedade civil e política (parlamento e Judiciário, partidos e sindicatos, imprensa e ordens, igrejas e associações etc.).

Pode-se dizer que, de fato, a globalização é, simultaneamente e em grande medida, um processo de americanização do mundo – anunciado e iniciado já nas primeiras décadas do século passado – de expansão não só do capital e mercadorias, mas também de disseminação dos valores, da cultura política e da ordem ameri-cana – e impulsionada por organismos internacionais, que se tornaram seus executores: Bird, FMI, BID, OCDE etc. É possível mesmo que seja o desenlace e/ou realização plena do longo movi-mento histórico, inaugurado nos séculos XVI-XVII, de ocidentali-zação das relações sociais mercantis, valores e normas da socie-dade burguesa e da ordem capitalista.

Talvez seja plausível afirmar que os atos terroristas promovi-dos por grupos jihadistas islâmicos sejam, em certa medida, reação às tentativas de imposição da ocidentalização/americani-zação do Oriente por meio de procedimentos nem sempre legíti-mos e/ou lícitos. Além disso, reflete também, em suas formas de organização e difusão, em seus métodos de ação e atitudes, muitos dos elementos da globalização.

Mas, se a globalização tem corroído e reordenado os poderes dos e nos Estados nações, promovido e intensificado o movi-mento de mercadorias e capitais, de povos e etnias em todos os países e continentes, é também realidade inconteste que tem afetado duramente o exercício dos direitos de cidadania. Como eles foram instituídos em outro momento e realidade – pelo menos muitos deles, variando em grau e extensão – no espaço geopolítico de cada país e como prerrogativa dos nacionais ou nativos, o migrante e o refugiado, o estrangeiro ou mesmo o descendente, não são considerados cidadãos plenos ou, em muitos casos (os “ilegais”), nem mesmo parciais. Ou seja, se, por um lado, a globalização promoveu, por meios os mais variados – econômicos ou culturais, pacíficos ou pelo desterro, autoriza-dos ou inválidos – o deslocamento de indivíduos e mão de obra, por outro, não resolveu a contento o problema do exercício dos direitos de cidadania do adventício. Assim, ao mesmo tempo em que criou um mercado mundial de produtos, capitais e mão de obra, não criou o cidadão do mundo.

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Esse fato tem sido tanto um elemento perturbador nas rela-ções econômicas e políticas internacionais, como tem contribuído para precarizar as relações de trabalho, incentivar a discrimina-ção e a opressão étnico-cultural e incitar o reavivamento de ideo-logias políticas e religiosas nacionalistas e/ou fundamentalistas, conservadoras ou regressistas, intolerantes e anti-humanista. É o caso, por exemplo, das seitas islâmicas jihadistas, dos grupos e partidos de extrema direita ou tradicionalistas e hiperconserva-dores que vicejam em várias partes, não só no Oriente e na África, como, em especial, na Europa e nos Estados Unidos.

Não obstante o processo de globalização suscitar novos dile-mas e repor velhos problemas, ele também enseja possibilidades de despolarização e condições propícias para a interdependência entre Estados nacionais, para o fortalecimento dos organismos mediadores das relações internacionais, para a regulação demo-crática, para o estabelecimento de premissas garantidoras da paz e mediadoras de conflitos por meio do direito internacional. Aven-ta-se mesmo a possibilidade de a Organização das Nações Unidas (ONU) voltar a ter um protagonismo indispensável no novo cená-rio. Esse papel foi limitado nas décadas anteriores devido às injunções da guerra fria, mas, como instituição supranacional e com poderes a ela delegados, seria a organização capaz de restrin-gir os poderes dominantes, criar uma ordem mundial pluralista e implementar uma plataforma de valores universais: consolidação da paz, defesa dos direitos humanos, fortalecimento da democra-cia e ampliação dos direitos de cidadania, preservação e recupe-ração do meio ambiente, resolução dos problemas da miséria e das endemias etc.

A renovação democrática da ordem mundial tornou-se um imperativo ou condição sine qua non, em torno da qual poderiam ser criados pressupostos básicos e, a partir deles, poder eliminar a violência e o terror e confinar os demônios de todos os tipos e clas-ses, cores e credos, posições e partidos, nacionalidades e etnias, religiões e doutrinas, concepções e ideologias – caso contrário, a humanidade continuará convivendo com o pesadelo ou em pânico, sobressaltada e assombrada pelos espectros demoníacos.

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Referências

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______. A era dos impérios: 1875-1914. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988

HOURANI, A. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Cia. das Letras, 1994.

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IANNI, O. Capitalismo, violência e terrorismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004.

______. Teorias da globalização. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1995.

RICUPERO, J. A islamização da agenda. Folha de S . Paulo, 10/05/2009, p. A3.

SACHS, J. Como deixar de alimentar o terrorismo. Valor Econômico, São Paulo, 20/11/2015b, p. A11.

______. Um novo século para o Oriente Médio. O Estado de S . Paulo, 24/12/2015. a, p. A9.

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O impeachment, a autonomia e o mundo

José Flávio Sombra Saraiva

Os Estados, atores preponderantes na constelação dos sistemas internacionais, seguem no centro decisório. Governantes globais observam os tempos do impeachment

no Brasil. Líderes mundiais demonstram espanto com os fatos, embora a imprensa da Europa e a dos Estados Unidos tenham mantido muitas matérias razoáveis acerca do Brasil de hoje.

Convergem com a ideia de que o Brasil perdeu fôlego e, mesmo com ajuda dos brasileiros, ainda haverá algum tempo para voltar a ser o país parceiro dos grandes Estados mundiais, quando comparadas com as conexões internacionais do Brasil nos anos 1990 e 2000.

O sistema de Estados atual é hierárquico, dividido entre gran-des, médias e pequenas autonomias. É o mundo que temos. O resto é menor. Apesar da esperança de regimes societários e horizontais – inspirados nos cidadãos, na onda da globalização, nos romantizados sonhos juvenis de constituição global de deve-res e direitos – o que vale no novo mundo ainda se parece com o velho mundo. Capacidade econômica, criação tecnológica, gover-nança estratégica, poder militar, todos influenciam para criar conceitos que monitoram o mundo contemporâneo.

Onde está o Brasil? Há algum tempo se falava em um país que começava a andar por si. No meio internacional, o Brasil já seria uma potência média, ou emergente, uma das grandes democracias do mundo. Falava-se em ser uma potência média, um soft power.

Os últimos anos foram de animação para a diplomacia brasi-leira, merecida pela missão crescente de negociação, particular-mente no campo multilateral, movendo-se na pressão entre gran-des e pequenos Estados.

Mas o país vai e volta, em gangorra que convergiu para a mediocridade em quase todas as métricas de inserção internacio-nais econômicas, políticas e morais. Essa é a expressão das leitu-ras internacionais dos grandes Estados que observam o imbróglio brasileiro nesses dias. O país, nessas quase 20 décadas de cria-

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ção de um Estado independente, caminhando aos 200 anos, ainda se enrola em problemas de governabilidade e na insistência do presidencialismo ora imperial, ora de coalizões sem projetos reais de elevação do patamar civilizatório.

Mas não foi sempre assim. O Brasil ensaiou um caminho razoável de se afirmar entre as estrelas das potências que dirigem o diretório internacional. E ainda há um Brasil à busca de um caminho próprio, histórico, de se inserir no sistema mundial. A ideia da autonomia decisória, ou simplesmente autonomia, permeia a história dos Estados modernos. E o Brasil teve seus teóricos, como Hélio Jaguaribe, nos anos 1960, ao lembrar as condições sine qua non da autonomia do Brasil: viabilidade nacio-nal e permissibilidade internacional.

O impeachment da presidente do Brasil, mesmo que siga ainda entre ritos longos e judicializações, terá implicações na inserção internacional do Brasil. O mundo olha um país-esperança que terá que se fazer de novo, recuperar a tradição de conversar, mediar, colaborar para as controvérsias internacionais. Essas tradições do Brasil parecem que foram afetadas pelo deterioro da capacidade de participar dos grandes temas globais.

No campo econômico, como comentam nossos colegas interna-cionalistas das escolas europeias, o país foi à lona. Será um grande recomeço para o Brasil, como comenta colega e professor de universidade inglesa.

O impeachment passa. Será uma lição para todos os brasilei-ros. Na expressão externa do país, o que urge é a necessidade da busca de um novo modelo de desenvolvimento e a busca de recu-peração da autonomia na inserção internacional do Brasil. Vamos retomar os caminhos da busca de um caminho próprio, mesmo que tenha que ser lenta, com paciência.

O Brasil é grande e saberá superar a crise atual.

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Políticas afirmativas e Forças Armadas nos EUA

Sionei Ricardo Leão

É instigante a propósito da discussão sobre políticas afir-mativas, assunto que entrou na agenda política brasileira, a trajetória das Forças Armadas dos Estados Unidos da

América, que foram as primeiras instituições a pôr fim à segrega-ção racial naquele país.

No caso norte-americano, a II Guerra Mundial foi um divisor histórico e social. Prestes a iniciar o conflito, líderes dos movi-mentos negros estadunidenses discutiram se incentivariam ou não o alistamento dos jovens da comunidade para irem lutar na Europa. Na visão desses ativistas, o tratamento recebido pelos afro-americanos nas Forças Armadas, apesar das contribuições nos conflitos anteriores, permanecia desfavorável. A conclusão a que chegaram esses representantes foi adotar a estratégia baseada numa dupla ação.

Eles decidiram apoiar o ingresso dos jovens nas instituições militares com vistas a alcançar dois objetivos: combater o nazismo na Europa, articulando essa ação com a tática de lutar contra o racismo em seu país.1

Milhares de afro-americanos foram enviados aos vários teatros de guerra em que se desdobrou o conflito. Dos vários corpos orga-nizados o que mais se destacou foi o 99th Squadron, Tuskegee Airmen. Ativado em março de 1941, seus treinamentos começa-ram oficialmente em 19 de julho e as instruções de vôo, em 25 de agosto do mesmo ano, em território norte-americano. Contou inicialmente com 33 pilotos e 27 aeronaves.

Afro-americanos haviam ocupado várias funções nas Forças Armadas, durante os conflitos em que o país se envolveu, mas na condição de pilotos militares era a primeira vez. A ideia de criar a Tuskegee Air Force Flying School foi defendida pela National for the Advancement of Colored People (NAACP), entidade estaduni-dense de combate ao racismo, que vislumbrou na ação um meca-

1 HIGGINBOTHAM, Michael. A military strike against racism. The Boston Globe, 25/07/1998.

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nismo de luta contra a segregação nas organizações militares norte-americanas.

No total, 278 homens afro-americanos receberam treinamen-tos para atuar no 99th Squadron. Os tuskegees foram incluídos no 33rd Group, em Fardjouna, na África do Norte, em 1943. No mês de junho, passaram a integrar a 324th Fighter Group, com o papel de escoltar bombardeiros ao longo da costa da Sicília.

No ano seguinte, participaram da Operação Strangle desti-nada a deter tropas alemãs que pudessem ameaçar posições conquistadas pelos Aliados. Durante a invasão da Normandia, deram apoios aos esquadrões convencionais em 31 operações. O 99th Squadron também tomou parte da conquista de Cassino, em 17 de maio, posição tomada aos alemães.

O desempenho dos tuskegees motivou o general Mark Clark, comandante do 5º Exército norte-americano, a pedir o apoio deles para proteger suas tropas. Da mesma forma, agiu o general Cannon, comandante da 12ª Força Aérea. Ao final, o 99th Squadron estabe-leceu o recorde de realizar centenas de missões sem ter perdido qualquer avião bombardeiro que estivesse protegendo.

Um ano antes de encerrar-se o conflito, o senador McCloy, assistente da Secretaria de Guerra, foi incumbido de coordenar a comissão de estudos sobre o desempenho dos tuskegees. As discussões aconteceram em sigilo, uma vez que havia o temor da reação e pressão da comunidade negra.

Os depoimentos dos seus membros propunham uma suposta inferioridade dos pilotos negros em comparação com o desempenho dos brancos. Pontos de vista apoiados em estudos de caráter antro-pológico com vieses racistas. Com isso, a intenção era a de manter a segregação na Força Aérea. Veio em defesa dos tuskegees o coro-nel Parrish, comandante da Tuskegee Air Force Flying School. Ele evocou as garantias constitucionais a que tinham direito os afro-americanos. Por fim, contestou a inferioridade dos pilotos negros, sugerindo que a participação deles fosse de 10% do efetivo da Força Aérea. O general Alan Gillem, por sua vez, afirmou que a integração racial era a melhor escolha para o país. Tais argumen-tos deram suporte à continuidade da ação dos tuskegees.

Além dos tuskegees, afro-americanos participaram da II Guerra Mundial em outras corporações. Na Marinha, houve o caso do USS Mason, que esteve em atividade no Atlântico Norte. Entre os marines, atuaram cerca de 19 mil jovens, treinados no

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190190 Sionei Ricardo Leão

campo Montford Point, em Lejeune, na Carolina do Norte, alista-dos a partir de 1941, depois da publicação da Ordem Executiva nº 8802, assinada pelo presidente Franklin Delano Roosevelt.

Na logística, papel importante coube aos The Red Ball que atuaram em comboio, transportando suprimentos. Em média, deslocavam entre 700 e 750 toneladas por dia, durante as opera-ções na França e na Bélgica, calculou o general Bradley.2 O esforço desses comboios foi decisivo, por exemplo, para a mobilidade dos carros de combate, sob o comando do general Patton.

Em razão dessas participações exitosas, os EUA encerraram com a segregação nas Forças Armadas seis anos antes do caso Brown v. Board of Education, portanto em 1948. De acordo com o professor Michael Higginbotham, da Universidade de Baltimore, o sistema militar dos EUA é uma das instituições mais radical-mente diversificadas do país. “Mais do que a maioria de nossas escolas, corporações, fundações ou serviços civis”.3

Essa participação não se restringe, analisou Higginbotham, somente aos escalões mais baixos das forças – 5% dos oficiais das Forças Armadas dos EUA são afro-americanos. O percentual sobe a 20%, quando o cálculo inclui as praças e sub-oficiais, o que significa que, proporcionalmente, a presença desse segmento nas instituições militares superou proporcionalmente o quantitativo populacional, uma vez que os negros naquele país somam 12% de toda a população, de acordo com as estatísticas oficiais.

Historicamente, afro-americanos haviam atuado em todos os confrontos bélicos nos quais os EUA se envolveram, com destaque para a Guerra de Secessão. Há também presenças na I Guerra Mundial, Guerra da Coreia e Guerra do Vietnã.

No plano individual, ganharam relevo as atuações de pessoas como Crispus Atucks, durante a Guerra da Independência; a família O. Davis, que teve membros na experiência dos Tuskegges (homens do ar), durante a II Guerra Mundial e o mais conhecido deles foi o general Colin Powel.

Este destacado líder militar foi o comandante das Forças Armadas norte-americanas durante a operação Tempestade no Deserto, que reuniu efetivos europeus e norte-americanos para

2 The History of Buffalo Soldier. Disponível em: <[email protected]>.3 HIGGINBOTHAM, Michael. A military strike against racism. The Boston Globe,

25/07/1998.

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191191Políticas afirmativas e Forças Armadas nos EUA

lutar contra os contingentes militares de Sadam Hussein, no Kwait e no Iraque, em 1991.

Para Michael Higginbotham, Colin Powel serve de exemplo para se demonstrar as possibilidades do sistema de políticas afir-mativas norte-americano. “Powel beneficiou-se no Exército da reserva de cotas, o fato de ele ter conseguido alcançar os mais altos degraus da hierarquia militar aponta que essa iniciativa dá resultados positivos”.4

Algumas corporações cujas fileiras contiveram majoritária ou totalmente afro-americanos ganharam reputação ao longo da história norte-americana, como o 54th Massachusetts Volunteer Infantry (Guerra de Secessão); as 9th e 10th U.S Cavalary (também conhecidos como os soldados búfalos); o 99th Squadron Tuskegee Airmen (II Guerra); o USS Mason (II Guerra), o Montford Point (II Guerra) e o The Red Ball Truck (II Guerra).

As tropas sulistas, comandadas pelo general Lee, já estavam em combate contra as “yankees” do general Grant, quando o governador do Estado de Massachusetts decidiu, em 1862, orga-nizar um regimento de infantaria, cujas praças seriam todos homens negros, a maioria deles cativos. A ideia foi de um afro-americano livre, na verdade ex-escravo, defensor da causa aboli-cionista, Frederick Douglass. Também alistaram-se homens do Tennessee e da Carolina do Sul.

Dois dos recrutas eram filhos do próprio abolicionista (N. Douglass e Charles Douglass). Os treinamentos iniciaram-se em 27 de novembro de 1862, no acampamento de Readville. A missão de comandar a unidade coube ao coronel Robert Gould Shaw – branco da mesma forma que todos os oficiais. As cartas que reme-teu à mãe durante o período em que esteve à frente do 54th Massachusetts Volunteer Infantry estão arquivadas na Universi-dade de Harvard. Elas ajudaram na elaboração do filme Glorie (Tempo de Glória) que popularizou a história do regimento.

4 HIGGINBOTHAM, Michael. Justiça e discriminação racial. Rio de Janeiro, Ple-nário do Conselho Universitário da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ): CONFERÊNCIA NACIONAL DOS ADVOGADOS, DA ORDEM DOS AD-VOGADOS DO BRASIL, 17, 1º/09/1999.

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XI. Resenha

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Autores

Elio GaspariJornalista ítalo-brasileiro, comentarista diário de alguns dos principais jornais do país, e autor, dentre outros, da coleção As Ilusões Armadas, em cinco volumes .

Nicolau da Rocha CavalcantiAdvogado e jornalista .

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Compreender bem a democracia e a República

Nicolau da Rocha Cavalcanti

Os tempos são de crise. Não apenas política e econômica, mas também argumentativa. Não raro o debate público é dominado pela polarização ideológica, na qual os argu-

mentos, despidos de seu contexto e transformados em lugar--comum, servem apenas para atacar o suposto adversário.

Nesse ambiente de pouca reflexão e raso diálogo, o novo livro de Luiz Werneck Vianna, Ensaios sobre Política, Direito e Socie-dade (Hucitec, 2015) é um oásis. Reunião de textos escritos ao longo das últimas três décadas, a obra analisa com serenidade e profundidade, num contínuo diálogo com autores clássicos e contemporâneos, a realidade institucional e social brasileira.

Para Werneck Vianna, a sociedade brasileira está de tal modo configurada pelo Estado que a análise do fenômeno social passa necessariamente pelo estudo das relações entre o seu direito e a sua política. Daí brotará o eixo temático do livro – a judicialização da política. Consciente de que o fenômeno desafia as teorias clás-sicas republicanas centradas na regra da maioria e de que “na democracia não cabe um governo de juízes”, o autor adverte para a necessidade de compreender bem o protagonismo contemporâ-neo do Poder Judiciário. Não vê incompatibilidade entre o aban-dono da neutralidade judicial e a representação. No entanto, desvelar essa harmonia exigirá um novo pensar, com a ampliação do conceito de soberania popular e o reconhecimento de novos lugares de representação popular.

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Nem todos os elementos do fenômeno da judicialização da polí-tica são novos, lembra o autor. Por exemplo, a legislação traba-lhista dos anos 1930, num movimento de publicização da esfera privada. Ao proteger o economicamente vulnerável, introduz-se um elemento de justiça na política, com uma tendência de predo-minância do legislado sobre o negociado. Ocorre, assim, a judicia-lização do mercado de trabalho.

Semelhante movimento se fará notar na Constituição de 1988; agora, no entanto, com outra dinâmica na relação entre Estado e sociedade. A tutela autoritária será substituída por uma nova modalidade de interação. O constituinte buscará na judicializa-ção da política uma forma de realizar as mudanças substantivas na e com a sociedade, convocando-a a participar da defesa e aper-feiçoamento do direito.

Em contraste ao ocorrido em 1891, 1934 e 1946, a Constitui-ção de 1988 não é resultado de um processo político concluso, mas se insere na transição do autoritarismo para a democracia política. Tal circunstância impõe soluções de compromisso entre forças díspares. A estratégia será deslocar para o futuro a imple-mentação da mudança social, por meio de uma ampla e compreen-siva declaração dos direitos fundamentais. Ao enunciar progra-maticamente os direitos sociais, “o constituinte demanda a mediação da sociedade a fim de impedir (...) que as normas e garantias dispostas na Carta fossem interpretadas como de cará-ter simbólico”.

Luiz Werneck Vianna frisa que a judicialização da política não é fruto de um ativismo judicial, mas resultado da vontade expressa do legislador. Não há usurpação de poder, fato comprovado pela jurisprudência dos anos imediatamente seguintes a 1988, quando os magistrados se mostram um tanto reticentes com o novo papel que a Constituição lhes atribui. Aos céticos do caráter democrá-tico dessa nova relação entre os três Poderes, o autor faz impor-tante observação: “Não há registro de nenhum exemplo de judi-cialização em um contexto não democrático”.

A Constituição é, portanto, um continuar-descontinuando. Há o velho e há o novo. Com um diagnóstico cético do Brasil – “país socialmente desigual, sem história de auto-organização e carente de sedimentação das virtudes cívicas” –, o constituinte opta por preservar papéis fortes para a dimensão do público na regulação da vida social, ao mesmo tempo que, numa perspectiva comuni-tarista, redefine o papel democrático do Poder Judiciário. Apesar

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197197Compreender bem a democracia e a República

de não estar submetido ao controle dos eleitores, isto é, não origi-nário da representação, o terceiro Poder exercerá representação dos princípios constitutivos do corpo político. “De poder isolado em sua autonomia institucional, o Judiciário passa a ser incorpo-rado como novo ator na expressão da vontade soberana”, reco-nhece o autor.

Além de conter certo pessimismo com a representação parla-mentar, essa nova perspectiva é também reflexo de uma descrença nas revoluções políticas como meio de mudança social. O futuro deixa de ser concebido em ruptura com o presente. É nas “suces-sivas transformações moleculares” que agora se depositam as esperanças de uma transformação social. É a “revolução sem revolução”, mas já não como mero teatro para o triunfo das forças de conservação, e sim como o fiat da dialética como “tranquila teoria” de Gramsci.

Há um novo direito e, portanto, uma nova noção de Estado. Já não existem respostas prontas. Substituiu-se o direito do preté-rito, com sua pretensa segurança, por um direito do futuro, ainda a ser concretizado, contaminado pelo provisório e configurado mais como rede do que como código. Um sistema aberto, mas nem por isso “alternativo” ou com menor juridicidade. Sua realização não é uma utopia, mas exige a participação da sociedade.

Esse movimento, no entanto, não é isento de riscos. O autor nota que, de uma inicial reticência, o Judiciário brasileiro parece ter abraçado com entusiasmo desmedido seu novo papel, com inge-rências não de todo justificáveis na esfera dos outros Poderes. “Forçando as tintas, pode-se sustentar que o Brasil tornou-se (...) a capital mundial da judicialização da política”. É preciso compreen-der bem a democracia e a república. Tanto para reconhecer os méritos democráticos da nova arena pública em torno do Judiciá-rio, quanto para advertir seus claros limites republicanos.

Sobre a obra: Ensaios sobre política, direito e sociedade, de Luiz Werneck Vianna. São Paulo: Hucitec, 2015. 244p.

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A história de três mulheres valentes

Elio Gaspari

Está chegando às livrarias Luta e memória, organizado pela professora Maria Ciavatta. Nele está contada a história de três mulheres que, nos anos 1970, salvaram o arquivo

de Astrojildo Pereira, um dos fundadores do Partido Comunista Brasileiro. Marly Vianna, Zuleide Faria de Melo e Dora Henrique da Costa montaram aparelhos clandestinos no Rio e em São Paulo para preservar o acervo guardado em 47 caixotes e conseguiram mandá-lo para a Itália, onde ele ficou até 1992, quando voltou ao Brasil. É uma história à espera de um filme.

Aos 73 anos, em 1964, Astrojildo Pereira passou três meses na cadeia e morreu pouco depois. Seu arquivo, com parte da história do movimento operário brasileiro, foi guardado pelo Partido Comunista. O maior interesse de Astrojildo era a literatura, e ele foi o “adolescente de 16 ou 18 anos” que Euclides da Cunha viu chegar à casa de Machado de Assis na noite em que o “Bruxo” agonizava. Beijou-lhe a mão e foi-se embora.

Em 1971, a direção do partido temeu pela segurança do acervo e pediu à professora Marly Vianna que conseguisse um novo abrigo, em São Paulo. Os caixotes foram para um pequeno apartamento.

Estava tudo bem até que, em março de 1974, a ditadura resol-veu cair em cima do Partidão. Favorecidos pelas regras de segu-rança frouxas dos comunistas, em poucos meses capturaram quase toda a sua direção, matando 12 pessoas. Num lance, José Salles, o marido de Marly, com outros dois capas-pretas a bordo de sua Variant, viu que estava sendo seguido. Desvencilhou-se, mas restava um problema: o carro havia sido comprado numa oficina mecânica próxima ao apartamento onde estava o arquivo.

Em agosto, “fiscais do Detran” chegaram ao apartamento. Era a polícia. (A essa altura mais três dirigentes do PCB haviam desa-parecido, para nunca mais serem vistos. As casas de outros dois haviam sido visitadas por estranhos.) Avisada, em três dias Marly transferiu o arquivo, e, quando a polícia voltou, o apartamento estava limpo. Vinte caixas com o acervo político foram para o Rio e ficaram sob a guarda de Zuleide Faria de Mello.

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Cinco anos depois da chegada das caixas ao Rio, Dora Henri-que da Costa, que vivia na França, veio ao Brasil para cuidar da viagem da papelada para a Itália, onde ela seria preservada na Fundação Giangiacomo Feltrinelli, em Milão. Os baús viajaram de navio e o acervo só voltou ao Brasil em 1992.

Hoje, o Arquivo Astrojildo Pereira está bem guardado e acessí-vel, na Universidade Estadual Paulista.

Dora e o resgate do secretário Giocondo

Antes de embarcar os baús de Astrojildo Pereira, Dora Henrique da Costa participou de um resgate bem mais arriscado. Em 1976, a “tigrada” já havia decapitado o Partido Comunista, mas não conse-guira pegar seu secretário-geral, o baiano Giocondo Dias. Dois anos antes, quando sua casa foi visitada por “ladrões”, ele sumiu de todos, tanto da polícia como do PCB, perigosamente infiltrado.

Dora vivia na França e lá, com Marly e José Salles, montou-se um plano para tirar Giocondo do Brasil. Onde ele estava? Não sabiam. Dora chegou a uma militante que trabalhava no consul-tório da psicanalista Helena Besserman Viana (a mãe do Bussunda). O tiro foi certeiro. Giocondo deveria ir a um ponto, sem nada nas mãos. Dora passou de carro, abriu a porta e ele entrou. Com um passaporte argentino falso, atravessou a fron-teira, e, de Buenos Aires, tomou um avião para Genebra, onde Dora o esperava (a história é bem mais complicada, mas está contada no livro). Giocondo voltou ao Brasil com a anistia de 1979 e morreu em 1987, aos 73 anos. Dora, Marly e Zuleide estão aí e contaram suas histórias.

Sobre a obra: Luta e memória . A preservação da memória histórica do Brasil e o resgate de pessoas e de documentos das garras da ditadura, de Maria Ciavatta (coord.). Rio de Janeiro: Revan, 2015. 248p.

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