TN 18 - Artigo Do Dossiê - Marcelo Badaró-2

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    TrabalhoNecessriowww.uff.br/trabalhonecessario; Ano 12, N 18/2014.

    A FORMAO DA CLASSE OPERRIA INGLESA: HISTRIA EINTERVENO

    Marcelo Badar Mattos1

    Resumo

    O artigo faz uma sinttica recuperao da ampla repercusso internacional e doprofundo impacto no Brasil da obra do historiador ingls Edward Thompson.

    Analisando alguns escritos anteriores a 1963 e comparando-os s ideias-chavedo clssico A formao da classe operria inglesa, pretende-se demonstrar queas contribuies mais importantes de Thompson ao domnio especificamentehistrico/historiogrfico tiveram origem em suas intervenes no debate e namilitncia polticos.

    Palavras-chave: E. P. Thompson; Teoria da Histria; Historiografia.

    Abstract

    The article makes a synthetic recovery of wide international repercussions andprofound impact on Brazil of the work of the English historian Edward Thompson.

    Analyzing some of his writings, previous to 1963, and comparing them to the key

    ideas of the classic The Making of the English working class, the article intendedto demonstrate that Thompsons most important contributions to thehistorical/historiograph domain had their origins in his interventions in politicaldebate and militancy.

    Keywords: E. P. Thompson; Theory of History; Historiography

    1Professor Titular de Histria do Brasil na Universidade Federal Fluminense e pesquisador do

    CNPq.

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    Um livro e suas repercusses

    Em 1963 E. P. Thompson publicou The making of the English working class

    (A formao da classe trabalhadora inglesa, no ttulo em portugus). A

    encomenda do livro chegou a Thompson depois de ter sido passada pelo editor

    atravs de Asa Briggs, que indicou John Saville para escrev-lo e este, recusandoa tarefa, repassou a indicao para Thompson, que a aceitou em 1959. Seu

    motivo para aceitar a tarefa, como alegaria depois, era estar precisando de

    dinheiro, mas claro que se pode argumentar que escrever o livro seria, em

    grande medida, uma decorrncia dos cursos que ministrava havia mais de uma

    dcada para as turmas de trabalhadores da WEA (a sigla em ingls da

    Associao Educacional dos Trabalhadores). A proposta do editor era

    originalmente muito distinta do resultado final. A ideia era escrever um livro

    voltado para estudantes universitrios e de cursos livres, contando a histria da

    classe trabalhadora inglesa entre as dcadas de 1830 e 1940. Thompson solicitou

    ao editor incluir um captulo introdutrio sobre o perodo dos anos 1780 a 1830 e

    esse acabou por se tornar o conjunto da obra2.

    Quando o livro foi publicado, Thompson era uma figura conhecida apenas

    pela intelectualidade de esquerda britnica por seu ativismo poltico. Em 1956

    havia sido uma das mais destacadas lideranas da dissidncia do Partido

    Comunista e, nos anos seguintes, um dos construtores do movimento poltico que

    ganharia o nome de New Left (Nova Esquerda), tendo desde ento publicado uma

    srie de escritos de polmica poltica com o estalinismo, em peridicos como The

    New Reasoner (que fundara com John Saville e outros ativistas) e New Left

    Review (que surgiu da fuso do anterior com a Universities and Left Review).

    Embora j houvesse publicado uma obra de flego sobre a trajetria e as

    2A esse respeito, ver SAVILLE, 2003, p. 119 e PALMER, 1996, p. 123.

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    propostas de William Morris, no era conhecido em 1963 como historiador, nem

    tampouco como professor universitrio, visto que desde o final dos anos 1940 se

    dedicava ao ensino de adultos de origem trabalhadora, em cursos vinculados ao

    Departamento Extra-Muros da Universidade de Leeds, quase sempre em

    cooperao com a WEA.

    Face falta de credenciais acadmicas de Thompson, a repercussopositiva do livro e sua rpida transformao em obra de referncia para a histria

    da classe trabalhadora inglesa surpreendeu profundamente ao autor. Nas

    palavras de sua companheira Dorothy Thompson: Ns ficamos surpresos com a

    recepo que teve o livro de Edward. Ns no podamos acreditar que havia mais

    pessoas a nossa volta que iriam produzir uma resenha favorvel(THOMPSON,

    D., 2000, 8).

    Em alguns anos o livro seria publicado em verso de bolso, com altas

    tiragens, e comearia a ser traduzido para diversos idiomas, ganhando circulao

    amplssima. Eric Hobsbawm, citando indexadores de lngua inglesa, afirma que A

    formaofoi o livro de histria mais citado do sculo XX (HOBSBAWM, 1993).

    Avaliaes de crticos, assim como de admiradores, so hoje quase

    unnimes em reconhecer que a obra foi um marco. Bryan Palmer, em sua

    biografia intelectual de Thompson, afirma que a grande virtude de A formao

    reside na irrefutvel ruptura a que forou a literatura histrica, pois a partir

    daquela obra no mais se poderia impor a formao das classes, tanto por

    radicais como por reacionrios, como um reflexo mecnico de mudanas de

    ordem econmica (PALMER, 1996, 127). J Marcel van der Linden, que defende

    a necessidade de superao de limites da abordagem de Thompson em A

    formao (especialmente por considerar que Thompson menospreza as ligaes

    internacionais da formao do proletariado ingls), reconhece que a obra foi a

    mais importante referncia da passagem de uma velha a uma nova histria do

    trabalho, qualificando-a como uma revoluo intelectual(LINDEN, 2009, 3).

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    Pode se dar alguma razo crtica de Van der Linden, mas se a

    abordagem de Thompson sobre a classe trabalhadora inglesa , em certos

    momentos, por demais insular, a avaliao de sua obra como uma

    ruptura/revoluo intelectual extravasou em muito os limites do debate ingls. o

    que percebe Rajanarayan Chandavarkar, em um artigo cujo objetivo era examinar

    a influncia do trabalho de Thompson nos estudos sobre a classe trabalhadorana histria indiana. O artigo chama a ateno para alguns paradoxos levantados

    pela grande influncia de Thompson entre os historiadores indianos. E um dos

    mais interessantes justamente o que se explicita quando percebemos que os

    escritos de Thompson eram caracterizados por seu foco exclusivo na Inglaterra,

    porm para algum que estava to atento s especificidades de um contexto

    social e cultural peculiar, notvel que a influncia de seu trabalho seja global

    (CHANDAVARKAR, 1997, 177).

    Chandavarkar tambm apresentou um interessante caminho de anlise

    para estudar a recepo do historiador ingls na ndia (e que pode nos orientar na

    discusso de outras recepes), procurando responder, basicamente, a trs

    diferentes questes: como os historiadores indianos leram Thompson; o que

    eles tiraram dessas leituras; e como exploraram as possibilidades e expectativas

    abertas por sua teoria social quando confrontadas com as evidncias da histria

    da classe trabalhadora indiana(CHANDAVARKAR, 1997, 177-178).

    Outros autores encontraram uma explicao para o sucesso do livro em

    regies do Globo nas intenes polticas explicitadas por Thompson no famoso

    prefcio de A formao. Scott Hamilton, desde a Nova Zelndia, em um livro

    recente e original, retoma uma passagem daquele prefcio quando Thompson

    afirma que causas que foram perdidas na Inglaterra poderiam ser ganhas na

    frica e na sia , para lembrar que ao escrever sobre o processo de formao

    da classe trabalhadora nos primrdios da industrializao inglesa, Thompson

    estava tratando de um processo anlogo ao vivido por boa parte do chamado

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    Terceiro Mundo que, nos anos 1950-1960, dava os primeiros passos em direo

    industrializao acelerada. Assim, segundo Hamilton, para muitos leitores,

    Thompson no est s descrevendo a histria distante da primeira potncia

    industrial do mundo; ele est dizendo alguma coisa sobre a situao de bilhes de

    seus contemporneos(HAMILTON, 2011, 123).

    No Brasil

    Na historiografia brasileira, o impacto da obra de Thompson foi no mnimo

    to profundo quanto o apontado por Chandavarkar para o caso indiano. A

    hiptese de Hamilton tentadora. Afinal, o Brasil um pas do Terceiro Mundo, ou

    melhor situando, uma periferia capitalista que se industrializou tardiamente em

    relao aos pases de industrializao mais antiga. Nos anos 1960, entretanto,

    quando Thompson publicou seu livro, a industrializao brasileira vivia um estgio

    muito diferente daquela transio do artesanato maquinofatura do contexto

    ingls a que se refere a obra. Apesar das caractersticas desiguais e combinadas

    do desenvolvimento capitalista na periferia envolverem a combinao de relaes

    de trabalho supostamente mais arcaicas com aquelas consideradas mais

    modernas, o paralelo com a situao inglesa da virada do sculo XVIII para o

    XIX s poderia ser vlido para as principais cidades brasileiras no incio do sculo

    XX.

    Ainda assim, importante tentar entender as condies que explicam

    porque Thompson foi (e ) to influente na historiografia brasileira.3Com leitores

    no Brasil desde o final dos anos 1960, Thompson comea a ser citado

    sistematicamente pelos historiadores (e outros cientistas sociais) brasileiros a

    partir de meados da dcada de 1970. A formao, porm, s foi publicado em

    3 Desenvolvo um esforo mais sistemtico para discutir essa questo no quarto captulo deMATTOS, 2012.

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    portugus em 1987. A recepo inicial do livro, incluindo sua traduo ao

    portugus, portanto, correspondeu aos anos finais da ditadura militar instalada no

    pas em 1964 e ao incio do processo de redemocratizao.

    Naquele contexto, uma das marcas da luta contra a ditadura, foi a (re)

    emergncia, a partir de 1978, do movimento sindical na cena poltica brasileira,

    atravs de greves que enfrentavam os empresrios e a poltica salarial daditadura (ncleo de sua poltica econmica, que at ali fora o principal argumento

    da busca de legitimidade do regime). Um novo sindicalismo, como ficou

    conhecido na poca, que apresentava um discurso fortemente marcado pela

    defesa da autonomia, dos sindicatos e da classe trabalhadora. Algo que foi

    entendido como uma novidade, pois as primeiras pesquisas universitrias sobre a

    temtica dos trabalhadores, nos anos 1960/70, tenderam a enxerg-los como

    incapazes de uma ao poltica efetivamente autnoma, pois que limitados por

    uma estrutura sindical corporativista e um quadro poltico dominado, primeiro,

    pelo populismo e, depois, pelo autoritarismo ditatorial. No cabe aqui comentar os

    limites daquelas interpretaes, mas o fato que Thompson, acentuando a

    agncia da classe trabalhadora, foi tomado como referncia fundamental para

    uma histria do trabalho, que comeava a enxergar os trabalhadores como

    sujeitos de sua prpria histria.

    Por outro lado, conforme o processo de redemocratizao avanou e a as

    organizaes sindicais e partidrias originrias daquelas lutas contra a ditadura

    foram se institucionalizando, os aportes tericos de Thompson sobre lei e direito

    foram tomados como referncia para o desenvolvimento de toda uma discusso

    que associava as lutas dos trabalhadores, ao longo do sculo XX brasileiro,

    conquista e defesa de direitos, civis, polticos e sociais (mais especialmente

    trabalhistas).

    No se pode supor, porm, que a historiografia social inglesa em geral, e

    Thompson em particular, estivessem sendo semeados em solo virgem. Os

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    historiadores universitrios brasileiros, desde os formados pelas primeiras turmas

    do curso nos anos 1930/40, foram fortemente influenciados pela historiografia

    francesa. Assim, possvel entender que, se A misria da teoria recebida como

    antdoto eficaz contra a rigidez do esquema estruturalista althusseriano, sua

    leitura se faz em paralelo e combinada influncia da terceira gerao da escola

    dos Annales, com sua nfase na dimenso mental colet iva da histria e suapredileo pelos temas microscpicos e marginais. Tambm no interior desse

    quadro combinaram-se entre os leitores de Thompson no Brasil, sua influncia

    com a de autores como Michel Foucault. Quando, a partir dos anos 1990, a

    chamada histria cultural de matriz francesa passou a dominar a historiografia

    brasileira, Thompson chegou a ser definido como uma espcie de verso

    marxista da histria cultural, entendida como uma evoluo da histria das

    mentalidades (VAINFAS, 1998, 155). Indo alm, um outro historiador ilustre

    chegou a dizer que o trabalho de Thompson poderia estar na Nova Histria

    (NOVAIS, 2002, 130).

    Podemos dizer que hoje Thompson representa mais um autor na estante

    das obras lidas em cursos universitrios de Histria no Brasil, sendo reconhecido

    por alguns como um clssico e por outros como o equivalente ingls de

    alguma nova moda intelectual francesa. Como clssico, perde-se a vitalidade de

    seus trabalhos e acaba dominando uma viso de sua obra como coisa do

    passado, mais uma etapa da histria da historiografia que se precisa conhecer por

    mera erudio acadmica. Como equivalente a qualquer outra coisa, perde-se a

    particularidade da filiao a uma determinada tradio terica, a qual Thompson

    explicitamente reivindicou.

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    Marxismo e compromisso poltico

    Quanto a este ltimo aspecto, a relao entre a obra de Thompson e o

    marxismo fica eludida, ou sua filiao terica mitigada por uma suposta

    heterodoxia. Por certo que afirmar que Thompson era um marxista resolve muito

    pouco diante dos diferentes entendimentos do que venha a ser o marxismo, oudos diferentes marxismos. Thompson, porm, foi claro em definir a herana que

    reivindicava como a de crtica ativa e razo aberta do materialismo histrico,

    apresentada em oposio ao marxismo como uma teologia vulgar e dogmtica

    que havia dominado o cenrio desde a estalinizao do movimento comunista

    mundial (com razes no pensamento marxista dominante na II Internacional).

    Assim, em A misria da teoria, afirmou que existiam na verdade duas tradies

    irreconciliveis do marxismo:

    O fosso que se abriu no foi entre diferentes nfases ao vocabulrio de conceitos, entreesta analogia e aquela categoria, mas entre modos de pensar idealista e materialista,entre o marxismo como um fechamento e como uma tradio, derivada de Marx, deinvestigao e crtica abertas. O primeiro uma tradio de teologia. O segundo umatradio de razo ativa. Ambos podem buscar uma certa autorizao em Marx, embora osegundo tenha credenciais imensamente melhores quanto sua linhagem(THOMPSON, 1981, 208).

    Por outro lado, Thompson no pode caber numa estante de obras

    acadmicas cannicas petrificadas. Sua obra exemplo de explicitao do

    compromisso entre pesquisa sistemtica sobre o passado e projeto de

    sociedade.4Ou seja, o contedo de interveno presente em seus escritos no

    pode ser menosprezado, j que Thompson era, assumidamente, um historiador

    militante. Quando afirmo isso, acredito estar em sintonia com a prpria concepo

    4Estou aqui concordando inteiramente com Josep Fontana (1998, 10) alis, editor de vriasobras de Thompson na Espanha , quando afirma que toda anlise do passado produzida peloshistoriadores comporta uma dada leitura da realidade presente quando da realizao de tal anlisee um certo projeto de futuro (ainda que implcito).

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    de intelectual de esquerda explicitada por Thompson. Afinal, em meados dos anos

    1960, quando dirigiu fortes interpelaes ao que comeava a ficar conhecido

    como 2a. Gerao da Nova Esquerda britnica, apresentou o apartamento das

    lutas sociais reais como principal motivo da debilidade de suas interpretaes.

    Sua crtica se dirigia ao que considerava um marxismo muito sofisticado, mas

    preso a um carter teolgico, importado do continente por intelectuais ingleses,que se combinava ao desenho negativo do contexto em que se davam essas

    transies intelectuais desafortunadas:

    Isto foi seguido por um perodo especialmente castigado, em finais dos anos sessenta,em que existia um movimento intelectual de esquerda divorciado dos mais amplosmovimentos populares, e que de algum modo convertia esse isolamento em virtude eno tomava medidas para travar contato com o movimento operrio e outros movimentospopulares de grandes dimenses (THOMPSON, 1979, 300).

    O que no significa dizer que possamos reduzir sua obra a uma ilustraocom exemplos histricos de teses j previamente desenhadas para interveno

    no presente. Pelo contrrio, repudiando a ideia de que toda histria ideolgica,

    de direita ou de esquerda, Thompson afirmava o imperativo do mtodo para o

    exerccio apropriado da disciplina:

    O que se intenta fazer aproximar-se de problemas objetivos muito complexos doprocesso histrico (isto o que fazia Marx). Isto supe uma disciplina precisa quecongrega o distanciamento e a objetivao ser consciente das prprias inclinaes,

    consciente das perguntas que est produzindo e em grande parte do trabalho comohistoriador intenta-se ou bem fazer patente a intruso das prprias atitudes e valores, se que esto influindo, ou manter a distncia e evitar que essa intruso ocorra. De outromodo o que se faz supor que o processo histrico no apresenta problemas para osquais as prprias convices no tenham resposta. E isto no certo (THOMPSON,1979, 297).

    As origens de A formao

    Tenho insistido em afirmar, para um pblico oriundo de uma formao

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    universitria cada vez mais distante das lutas sociais das classes subalternas, na

    qual o discurso dominante no campo das Cincias Humanas e Sociais costuma

    estigmatizar qualquer tipo de militncia como uma contaminao da pureza

    cientfica do trabalho intelectual, que as contribuies mais importantes de

    Thompson ao domnio especificamente histrico/historiogrfico tiveram origem em

    suas intervenes no debate e na militncia polticos.Comeo meu esforo para comprovar essa hiptese afirmando que a

    definio de classe apresentada em A formao da classe operria inglesa foi

    construda nas suas intervenes no debate poltico na virada da dcada de 1950

    para 1960.

    Para corretamente avaliar tal debate necessrio situar o contexto de seu

    surgimento numa poca em que a diminuio das disparidades na distribuio de

    renda e a ampliao no poder de consumo da classe operria dos pases

    industrializados europeus levaram alguns cientistas sociais a proclamarem o fim

    da classe operria e a homogeneizao das sociedades de capitalismo avanado,

    com a afirmao de uma onipresente "classe mdia".

    Vrios questionamentos tese do "aburguesamento" operrio foram mais

    tarde levantados, tendo por base estudos sobre a classe operria no mundo do

    trabalho, na esfera da produo, e no apenas no mbito do mercado de

    consumo (GOLDTHORPE et alli, 1968). Nessa mesma linha de questionamentos

    tese da afluncia operria, teve grande repercusso o estudo sociolgico

    coletivo Coal is our life, em que se procurava estudar o impacto da nacionalizao

    das minas de carvo e de outras reformas sociais promovidas pelos governos de

    maioria trabalhista do ps-guerra sobre a vida dos mineiros britnicos. As

    constataes do trabalho, que inspiraria toda uma srie de estudos de

    comunidades operrias, enfatizavam que, apesar de todas as mudanas da

    nova era, as divises de classe mantiveram-se e sua percepo pelos mineiros

    havia mudado muito pouco. A partir de uma perspectiva de classe muito ntida,

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    construda no apenas no espao de trabalho, mas tambm na vida comunitria

    cotidiana, os mineiros de carvo continuavam a manifestar um profundo

    antagonismo contra os administradores das mineradoras e contra os privilegiados

    da sociedade em geral. Havia, entretanto, mudanas perceptveis nas relaes

    dos mineiros com o Partido Trabalhista, que apesar de bem votado nas

    comunidades mineiras parecia ter cada vez menos presena no cotidiano dascomunidades.5

    Algumas das contribuies mais ricas para esta discusso viriam, porm,

    de uma abordagem que destacava as matrizes culturais do comportamento

    operrio. Por esta poca, Raymond Williams lanava as bases para o campo que

    viria a ser denominado dos estudos culturais. Em suas obras de fins dos anos

    1950 e incios da dcada seguinte, Williams propunha uma abordagem, crtica em

    relao tanto concepo empobrecida do marxismo (que ele inicialmente

    percebia como o marxismo) que remetia a cultura para o reino da

    superestrutura , quanto viso idealista de cultura, tomada como produto das

    mentes educadas dos artistas e literatos.6

    Richard Hoggart, em obra fundamental lanada em 1957, que contribui

    para que fosse apontado como fundador dos estudos culturais, reconhecia a

    tendncia a transformaes profundas na cultura da classe operria, decorrentes

    da fora dos produtos da chamada indstria cultural. Porm, destacou a

    persistncia de padres de comportamento e valores tradicionais de classe,

    atravs da observao ativa da vida numa comunidade operria, algo que lhe era

    muito prximo, pois remetia a sua prpria origem social (HOGGART, s.d.). O

    centro de suas preocupaes no livro era a anlise da circulao e repercusso

    5DENNIS, HENRIQUES & SLAUGHTER, 1969. (1a. ed. 1956). Um bom comentrio sobre o livroem seu contexto pode ser encontrado em SAVAGE & MILES, 1994, 4-5.

    6 WILLIAMS, 1969 (1a. ed. Inglesa, 1958). Para uma sntese da contribuio de RaymondWilliams ver CEVASCO, 2001. A trajetria dos estudos culturais estudada pela mesma autoraem CEVASCO, 2003.

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    de livros e peridicos ditos populares, mas a obra de Hoggart foi alm desse

    recorte e produziu uma rica descrio etnogrfica da vida familiar e comunitria

    do operariado britnico, em que procura mostrar a leitura de classe a que so

    submetidas as novas situaes sociais.

    Nos anos anteriores, o Grupo de Historiadores do Partido Comunista

    Britnico do qual participavam Maurice Dobb, Eric Hobsbawm, Cristopher Hill,Dona Torr e Victor Kiernan entre outros , produzia uma srie de contribuies

    que avanava em sentido anlogo. Aqueles historiadores propunham, no interior

    dos marcos conceituais do marxismo, uma Histria no apenas econmica do

    capitalismo ingls, embora valorizassem a Histria Econmica. Forando os

    limites da interpretao marxista dominante na poca, ressaltavam a importncia

    e a autonomia relativa de outros nveis de anlise (poltico, social, cultural),

    destacando a relevncia de estudos historicamente localizados em que tais nveis

    pudessem ser observados na sua dinmica inter-relao.7

    A partir de debates como os deste grupo e de sua experincia na militncia

    poltica e na educao de jovens e adultos de origem operria, E. P. Thompson

    comps, com seu A formao da classe operria, um estudo que, pela nfase na

    dimenso cultural da classe e pela riqueza de uma anlise que reconstitua

    importantes aspectos da vida comunitria dos trabalhadores "pr-industriais",

    pode ser lido a partir de vrios paralelos com outros trabalhos, como o estudo de

    Hoggart, a produo de Raymond Williams, ou as anlises de Coal is our life,

    apesar das diferenas significativas quanto aos marcos conceituais.8

    A produo de A formao da classe operria respondia a um duplo

    comprometimento do autor com a polmica, como ele prprio admite ao afirmar

    que a obra ataca duas ortodoxias ao mesmo tempo, a histria econmica

    7 Sobre esse grupo, ver SCHWARTZ, 1982. Ver tambm, HOBSBAWM, 2002, 191 e ss. EKAYE,1984.

    8 A comparao com o trabalho de Hoggart foi sugerida por vrios autores, como por exemplo,LEVE, et alli, 1992.

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    quantitativa e o marxismo dogmtico(THOMPSON, 1997, 172).

    Tratava-se, de um lado, da rejeio s teses da histria econmica de

    matriz liberal, pautada pelo quantitativismo a-histrico, pela definio da

    capacidade de consumo como o centro da dimenso econmica da classe, pela

    nfase nas escolhas individuais e pela recusa a admitir a explorao de classes.

    Um debate que naquele momento ganhava dimenses polticas evidentes, vistoque o grupo de Mont Plrin, origem do chamado pensamento neoliberal,

    liderado por Friedrich Hayek, havia tomado alguns anos antes a historiografia

    crtica sobre a revoluo industrial e a situao da classe trabalhadora como alvo

    de seu ataque. Um seminrio do grupo foi transformado em livro, em que se

    destacam artigos de T. S. Ashton, agregando uma introduo de Hayek. Na

    Introduo ele sustenta existir uma convergncia entre a oposio dos Tories

    (conservadores) do sculo XIX ao industrialismo e a crtica dos socialistas dos

    sculos XIX e XX (que denunciavam a pauperizao e as condies de vida

    deterioradas dos primeiros trabalhadores industriais). Hayek, com isso,

    contestava a cientificidade da anlise dos socialistas, pois que para ele

    cientfica, claro, era a avaliao positiva dos progressos trazidos pela indstria.

    Thompson menciona o livro em seu captulo sobre Explorao, deplorando a

    mistura de teoria econmica e defesa especial da sociedade livre ali

    apresentada e dirige o raciocnio central dos captulos seguintes a uma refutao

    daqueles argumentos.9

    De outro lado, apresentava-se a recusa ao marxismo vulgar, que derivava

    diretamente a conscincia e a ao coletiva da classe de seu lugar nas relaes

    de produo, sem qualquer mediao, algo que Thompson procurar superar pela

    nfase no conceito de experincia.

    9 HAYEK, 1954. THOMPSON, 1987, 35 e ss. Esse debate destacado por FORTES, 2006, 209-210. Agradeo a Demian Melo por ter me chamado a ateno para essas referncias equestes.

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    Demonstrando a explorao de classes e sua apreenso pela conscincia

    da classe trabalhadora em formao nas primeiras dcadas do sculo XIX,

    Thompson estava insistindo em contestar as teses liberais, explicando como as

    posies de classe se estabelecem a partir da produo (no do consumo) e

    como a classe trabalhadora se conscientiza da sua explorao pelos capitalistas

    tendo em conta seus prprios valores (e no os clculos matemticos de padrode vida dos economistas liberais). Mas, a anlise dos valores e tradies culturais

    que, confrontados com uma experincia singular, geraram uma dada conformao

    da conscincia de classe, distanciava-o tambm do marxismo vulgar. Lies

    sobre o passado fundamentais para a crtica noo de afluncia operria no

    momento em que a obra foi escrita.

    O resultado foi sistematizado na definio de classe, como processo e

    relao, que apresentou no Prefcio de A formao, e que , por certo, a mais

    conhecida passagem de seus escritos:

    A classe acontece quando alguns homens, como resultado de experincias comuns(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, econtra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opem) dos seus. Aexperincia de classe determinada, em grande medida, pelas relaes de produoem que os homens nasceram ou entraram involuntariamente. A conscincia de classe a forma como essas experincias so tratadas em termos culturais: encarnadas emtradies, sistemas de valores, ideias e formas institucionais. Se a experincia aparececomo determinada, o mesmo no ocorre com a conscincia de classe (THOMPSON, I,1987, 10).

    O fazer-se dos conceitos

    Thompson j havia explicitado essas propostas tericas alguns poucos

    anos antes. Em 1960, no primeiro ano de existncia da New Left Review,

    Thompson organizou uma coletnea de ensaios sobre o tema da apatia da

    classe trabalhadora inglesa, explicada quase sempre como resultante da

    afluncia. O ltimo captulo do livro, de autoria do historiador, foi publicado

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    previamente no terceiro nmero da revista, com o ttulo de Revolution!. Uma

    srie de comentrios foi publicada no nmero seguinte e, no nmero 6, Thompson

    publicaria sua trplica, com o ttulo de Revolution again! Or shut your ears and

    run. Nesse ltimo artigo, encontramos praticamente toda a discusso sobre

    classe como processo e relao, no como uma categoria esttica, que se

    define a si mesma tanto quanto definida, cuja conscincia se constri naidentificao de interesses comuns e opostos aos de outra classe que ser

    resumida no prefcio de A formao.

    Rebatendo as crticas ao seu primeiro artigo, tanto do que denominava

    como marxistas sectrios, quanto dos antimarxistas, e especificamente

    nominando seus crticos do peridico trotskista International Socialist e o

    socilogo estadunidense C. Wright Mills, Thompson explicava que:

    Ns deveramos notar o caminho atravs do qual um tipo de reducionismo econmicodesabilita a discusso de classe, tanto entre antimarxistas quanto entre marxistassectrios. Na verdade, as ideologias prevalecentes tanto no Leste quanto no Oeste sodominadas por uma caricatura aviltante do marxismo; muito embora, no primeiro caso,ns temos um retrato dos meios de produo espontaneamente gerando conscincia eatividade revolucionria, com a classe trabalhadora aparecendo no como o agente, mascomo intermediria de leis objetivas; ao passo que no segundo espao a imagem emmuito similar, mas o motor da mudana foi retirado, e ns vemos todos os homens(exceto os 'intelectuais') como prisioneiros dos seus interesses econmicos, de sua'estrutura' social, e do seu status. () Ambos argumentam a partir de uma noo estticade classe trabalhadora e de sua conscincia caracterstica () Ambos argumentam queo capitalismo 'afluente' est enxugando algumas das demandas da classe e erodindo aconscincia de classe tradicional (THOMPSON, 1960, 23-24).

    Na sequncia do artigo, Thompson recupera justamente o momento de

    formao da classe que ele estava abordando na redao do que viria a ser A

    formao, ou seja, o perodo dos anos 1780 a 1830, para chamar ateno para o

    fato de que a conscincia de classe se formara num momento em que a maior

    parte da classe trabalhadora militante no era majoritariamente composta por

    operrios fabris tpicos. Afirmava ento, como reiteraria trs anos depois no livro,

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    que para um historiador, uma classe aquela que se define como tal por sua

    agncia histrica (THOMPSON, 1960, 24). E recorreu discusso de Marx no 18

    Brumrio sobre os camponeses detentores de parcela na Frana para afirmar

    que:

    Para Marx, uma classe define a si mesma em termos histricos, no porque foi feita por

    pessoas com relaes comuns com os meios de produo e uma experincia de vidacomum, mas porque essas pessoas tornam-se conscientesdos seus interesses comunse desenvolvem formas apropriadas de organizao e ao comuns.(THOMPSON, 1960,24)

    Ainda no mesmo artigo, Thompson tambm apresentava sua

    argumentao sobre o carter relacional atravs do qual a conscincia de classe

    se definia, no terreno da luta de classes:

    o conceito histrico de classe ou classes implica a noo de relaocom outra classe ou

    classes; o que se evidencia no so apenas os interesses comuns no interior de umaclasse, mas interesses comuns contraoutra classe. E esse processo de definio no apenas uma srie de exploses espontneas em um ponto da produo (considerandoque isso uma parte importante); trata-se de um processo complexo, contraditrio,sempre mutvel e nunca esttico em nossa vida poltica e cultural, no qual a agnciahumana est implicada em cada nvel (THOMPSON, 1960, 24).

    Agncia, traduo comumente adotada no Brasil para o termo agency,

    associado noo de que os homens so sujeitos de sua prpria histria, embora

    em condies que no escolhem, seria uma das mais fortes influncias

    historiogrficas que a obra de Thompson legou. Conforme percebe-se por essacitao, esta era outra ideia que j estava muito bem delimitada nas formulaes

    polticas de Thompson, nos anos precedentes redao de A formao. Alis,

    nesse caso, tratamos de uma ideia j desenvolvida quatro anos antes do debate

    sobre a Revoluo! nas pginas da New Left Review.

    Em 1956, no primeiro nmero de The New Reasoner, Thompson

    apresentou a proposta do humanismo socialista, base poltica em torno da qual

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    se agregaria a primeira gerao da Nova Esquerda inglesa. No artigo, Thompson

    definia o humanismo socialista como a possvel afirmao positiva de todo o

    movimento que, no Oeste ou no Leste, configurava-se em oposio ideologia

    estalinista que havia dominado o movimento comunista internacional.

    Ele humanista porque coloca uma vez mais homens e mulheres reais no centro dateoria e da aspirao socialista, ao invs de retumbantes abstraes o Partido,Marxismo-Leninismo-Stalinismo, os Dois Campos, a Vanguarda da classe trabalhadorato caras ao Stalinismo. Ele socialista porque reafirma a perspectiva revolucionria docomunismo, a confiana nas potencialidades revolucionrias no apenas da RaaHumana ou da Ditadura do Proletariado, mas dos homens e mulheres reais(THOMPSON, 1957, 109).

    Desenvolvendo o argumento, Thompson se ope ao stalinismo defendendo

    a agncia humana negada pelo que j ali ele definia como o irracionalismo

    daquela ortodoxia (algo que retomaria com maior nfase em seu Misria da

    Teoria). Segundo seu argumento, A primeira caracterstica do stalinismo, ento, o anti-intelectualismo, o desprezo pela agncia humana consciente no fazer

    histrico; e a revolta contra isso no a revolta de uma nova ideologia mas a

    revolta da razo contra o irracionalismo(THOMPSON, 1957, 115).

    O artigo gerou polmicas, que Thompson responderia alguns nmeros

    depois na revista, num artigo sintomaticamente intitulado Agency and choice1.

    Neste, reafirmava a crtica ao stalinismo e a importncia da agncia. Definindo o

    filistinismo como a aceitao da inevitabilidade do mundo tal qual ele se

    apresenta, como uma capitulao ao senso comum, afirmava:

    Hoje, esse filistinismo infectou os ncleos tanto da ideologia social-democrata quanto dacomunista. Apesar das formas da infeco serem muito diferentes, ela produz em ambosum sintoma comum: a negao da agncia criativa dos homens, quando consideradosno como unidades polticas ou econmicas numa cadeia de circunstnciasdeterminadas, mas como seres morais e intelectuais, no fazer-se de suas prpriashistrias; em outras palavras, a negao de que os homens podem, por um atovoluntrio de vontade social, superar em alguma medida significativa as limitaesimpostas pelas 'circunstncias' ou pela 'necessidade histrica`(THOMPSON, 1957, 109).

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    Tendo conhecimento dessas intervenes polticas de Thompson no

    contexto dos anos 1950/60, entendemos melhor a origem das questes postas

    em A formao. Por isso, seu estudo histrico tratava de explicar como a

    conscincia de classe constri-se historicamente atravs de formas especficas,

    conforme as peculiaridades que definem a experincia de classe em cada

    situao localizada. E o fazia para contrapor-se ao economicismo dos quecreditavam afluncia, vista em termos de acesso a mais bens de consumo, um

    limite conscincia operria, assim como ortodoxia da II Internacional e da III

    Internacional sob Stlin, que afirmavam a derivao direta entre as contradies

    econmicas e a conscincia de classe, transferindo a tarefa da revoluo

    socialista para algum mecanismo natural, independente da agncia humana.

    Experincia educativa

    Experincia era uma chave nova apresentada por Thompson em A

    formao para apresentar a sua discusso sobre a classe. Mas tambm nesse

    caso importante perceber que tal noo no se formou fora da interveno

    militante do historiador, como se brotasse da reflexo solitria do intelectual na

    elaborao de seu livro mais conhecido, em algum tipo de iluminao

    acadmica. Aqui, porm, o espao de desenvolvimento do conceito no foi

    propriamente a polmica poltica direta, mas o engajamento no movimento de

    educao de adultos. Dorothy Thompson chama a ateno no apenas para a

    relao entre a redao do livro e a prtica educativa de Thompson, mas tambm

    para a dimenso poltica que tal relao conferia ao livro. Segundo ela, o livro:

    era baseado no tipo de docncia que Edward esteve exercitando por dez anos. E o tipode docncia que fizemos o tempo todo. O que eu acho que produziu um tal avano, e fezas pessoas verem o livro como to revelador, foi que ele partia da perspectiva de que oque as pessoas comuns fazem digno de interesse e ateno. Hoje isso toamplamente aceito que no visto como revolucionrio. Isso basicamente uma

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    questo fortemente poltica de fato. (THOMPSON, D., 2000, 8)

    Peter Searby recuperou relatrios de Thompson como tutor de cursos do

    Departamento de Educao Extra Muros da Universidade de Leeds, muitos deles

    em convnio com a Associao Educacional de Trabalhadores (WEA), alm de ter

    recolhido depoimentos de alguns dos seus estudantes entre 1948 e 1965

    (SEARBY, 1993). Em documento de discusso interna no Departamento, em

    1950, Thompson expressava seu acordo com os objetivos poltico-educacionais

    da WEA, em termos que demonstram como a ligao entre a experincia de vida

    dos trabalhadores e as manifestaes de sua conscincia de classe era um

    elemento presente na forma como Thompson entendia seu trabalho docente:

    Em primeiro lugar, eles [a WEA] esto limitados por sua definio e estatutos polticos auma nfase nas necessidades educacionais de uma classe na sociedade qual, por

    circunstncias econmicas ou ambientais, negado o acesso integral ao uso de outrasinstituies de ensino superior. Em segundo lugar, eles so dirigidos por uma nfaseespecfica'educao para propsitos sociais' em fazer essa parcela da classe maisefetiva em atividades sociais. Em terceiro lugar, atravs do movimento de educaotutorial, eles esto especificamente preocupados em superar o divrcio entre asinstituies de ensino superior e os centros de experincia social entre 'ostrabalhadores manuais e intelectuais' existente em nossa sociedade. () Elesdemandaram conhecimento com o objetivo de agir com maior eficincia em relaoquelas questes que sua experincia de vida solicita como mais urgentes. Sua atitudefoi uma atitude de classe consciente, o que significa que foram conscientes o tempotodo, na busca da verdade e da ao social a favor dos interesses de sua prpria classeem sua luta pela emancipao social (SEARBY, 1993, 5-6).

    O respeito experincia dos trabalhadores, alis, uma chavefundamental para entendermos de que forma a atividade de Thompson como

    professor de Literatura Inglesa e Histria foi um elemento central de seu

    aprendizado prvio redao de A formao.Assim, em um relatrio sobre uma

    de suas turmas, de 1948-1949, quando Thompson tinha 24-25 anos, ele esclarece

    de que forma a experincia tutorial era importante para sua formao:

    De modo geral, o tutor acredita ter aprendido mais o que ele transmitiu e apesar de

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    alguns erros iniciais, a classe aprendeu a trabalhar no esprito desejado na WEA nocomo o tutor e a audincia passiva, mas como um grupo combinando diversos talentos efundindo diferentes conhecimentos e experincias para um fim comum (SEARBY, 1993,14).

    Os depoimentos de seus ex-alunos so ricos em elogios forma como

    Thompson os cativava em seus cursos, estimulando-os leitura e participao

    em classe, atravs de uma nfase em apresent-los ao contedo histrico eliterrio como algo que lhes pertencia e faz-los perceberem-se como parte ativa

    da histria que aprendiam, tanto quanto faziam. Segundo Peter Thorton, um dos

    que com ele estudaram no incio dos anos 1950:

    As aulas de Edward Thompson tinham esse efeito de fazer com que voc percebesseque a histria no era algo separado e a parte; ela era uma progresso da qual voc eraparte. Eu sempre sentia isso. E quando ele tratava de coisas como os teceles manuaisde Yorkshire, os ludistas, o desenvolvimento social da revoluo industrial nesta parte domundo, voc muito rapidamente percebia o quanto voc e a sua gente eram parte

    daquilo (SEARBY, 1993, 17).

    A militncia educacional na WEA era um dos elementos comuns s

    trajetrias de Thompson, Raymond Williams e Richard Hoggart. Alm disso, a

    confluncia, no isenta de tenso, entre os trabalhos daqueles intelectuais, na

    poca, se dava tambm pelo caminho da militncia comum no mesmo campo

    poltico da Nova Esquerda, constitudo em aliana com movimentos sociais (como

    setores do movimento sindical, a esquerda do Partido Trabalhista e o movimento

    anti-nuclear, por exemplo). Os principais polos de aglutinao dessa militnciaeram peridicos, caracterizados no apenas pelos escritos de interveno como

    tambm por algumas das mais lcidas e instigantes anlises das sociedades

    contemporneas e pretritas.10

    10 Sobre o movimento da nova esquerda e seus peridicos a fuso do New reasonercom aThe university and left review, gerando a New left reviewver a entrevista do fundador e editorda revista nos primeiros anos Stuart Hall, 2003. Hall e uma srie de outros protagonistasdaqueles primeiros anos da Nova Esquerda registraram seus depoimentos em ACHER, 1989.

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    Aps a recepo surpreendentemente consagradora de A formao,

    Thompson ainda se envolveria em inmeras polmicas no campo do marxismo,

    viveria uma fase de intenso ativismo antinuclear e voltaria a escrever importantes

    obras no campo da histria. Uma produo cujas marcas principais foram a

    recusa s explicaes simplistas e dogmticas, s quais opunha a complexidade

    e conflitividade do processo histrico; o ardor do polemista em face das opespolticas e tericas que considerava atravancarem as lutas da classe trabalhadora

    e a indissocivel relao entre produo do conhecimento sobre a histria e

    interveno poltica militante. Obra polmica, mas sobretudo instigante, capaz de

    expressar vrias das mais ricas contribuiesassim como alguns dos impasses

    mais significativosdo marxismo no sculo XX.

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    Recebido em maio de 2014.

    Aprovado em junho de 2014.