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    Historiografia e ps-modernismo:

    reconsideraes*

    Perez Zagorin

    Ahistoriografia hoje em dia tornou-se to pluralista e sujeita s influn-cias de modismos que no devemos nos surpreender ao ver F. R.Ankersmit recomendar, em seu recente texto publicado naHistory andTheory, que os historiadores devam adotar a perspectiva ps-moderna comoa forma nova e superior de compreenso dentro desta disciplina.1 Tal po-sio seria de se esperar, considerando a atual influncia do ps-modernoem algumas das artes, bem como na teoria literria e em outras reas, atra-vs de uma ligao com o desconstrutivismo. Ankersmit pode nem ser oprimeiro a abraar o ps-moderno para a historiografia, apesar de talvezrealmente ser o primeiro a faz-lo explicitamente. A mesma tendncia evidente entre os discpulos de Foucault. Alguns dos textos que advogamo carter predominantemente retrico da histria e das cincias sociais con-tidos em um volume publicado h pouco podem tambm ser compreen-didos de forma semelhante.2

    At este momento, Ankersmit era mais conhecido devido sua con-tribuio a uma recente coletnea de textos sobre aspectos atuais das dis-cusses anglo-americanas a respeito da filosofia da histria para oHistory

    and Theory.3

    Em artigo de sua autoria, contido nessa coletnea, posiciona-se como ardente defensor da concepo narrativo-retrica da historiogra-fia, que Hayden White lanou em sua obraMetahistory(1973) e em textosposteriores. Ele vem sublinhando a importncia revolucionria do pensa-mento de White quanto primazia, no pensamento histrico, dos troposliterrios e de estruturas verbais, considerando-o como a onda do futuro., portanto, digno de nota que, ao inverso dos tericos literrios, que tmsido a maioria dos apoiadores da viso de White, a maioria dos filsofos e

    dos historiadores de tendncia filosfica tem se mostrado decididamentecrtica, quando no simplesmente ignorado tal pensamento. Muitos his-

    Topoi, Rio de Janeiro, mar. 2001, pp. 137-152.

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    lucionou as artes no sculo XX, aliado a um igual repdio filosofia deno-minada logocentrismo a crena no papel estruturante da linguagem, nafuno determinante do significado textual e na presena de um mundosignificante ao qual se relacionam linguagem e conhecimento. portantonotvel que estas idias ps-modernas no se sustentem por um sentimen-to de lan ou pela convico de progresso ou evoluo. Pelo contrrio: ops-modernismo, como implica seu prprio nome, traz consigo fortesconotaes de declnio, exausto, e de estarmos no fim e no no comeode uma era.

    Finalmente, um elemento central do ps-moderno a hostilidade aohumanismo. Ao predizer, como Foucault desejosamente vaticinou, o fimdo homem, rejeita o humanismo como uma relquia datada ou como umailuso da ideologia burguesa; a iluso de sujeitos criando sua prpria hist-ria por meio de suas atividades livres, o que compreendido como umdisfarce para a opresso das mulheres, das classes trabalhadoras, dos no-brancos, dos desviantes sexuais e dos nativos colonizados pela sociedadeburguesa. Como corolrio, critica como elitista e opressiva a idia de c-

    nones, com sua necessria hierarquizao e discriminao entre as criaesculturais, idia esta que ambos, modernismo e humanismo trazem forte-mente. A conseqncia disso que o ps-modernismo se presta a ummarcado relaxamento dos padres culturais e sanciona um extremo ecle-tismo e heterogeneidade sem qualquer princpio crtico ou regulador. Narea cultural como um todo, implica apagar totalmente as distines entrea cultura elevada ou de elite e a cultura popular de massa, formada e domi-nada em grande parte pela propaganda e meios de comunicao comer-ciais; distino essa que tanto o humanismo como o modernismo consi-deravam axiomtica.

    Algumas dessas caractersticas acima mencionadas so tambm anali-sadas, de forma mais favorvel, por Fredric Jameson, um terico literriomarxista, em seu trabalho de largo escopo Postmodernism, or the culturallogic of late capitalism. Considerando a influncia do ps-moderno sobre ahistoriografia, ser proveitoso olhar rapidamente seu texto, para ampliar

    nosso entendimento do conceito de ps-moderno.A parte mais notvel do entender de Jameson sua anlise do ps-moderno atravs de exemplos de produtos culturais contemporneos den-

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    tro da esfera das artes. O fato de que ele atribui a alguns destes, como spinturas de Andy Warhol ou arquitetura do Hotel Bonaventure no cen-tro de Los Angeles, por John Portman, no somente uma importncia re-presentativa e sintomtica, mas tambm um valor artstico que altamen-te discutvel no nos concerne. O que significativo, porm, a constela-o de traos genricos que seu escrutnio desses trabalhos o leva a identi-ficar como sinnimos do ps-moderno. Eles incluem os seguintes: umanova falta de profundidade e uma superficialidade; uma cultura fixada so-bre a imagem; a diminuio do afeto e a libertao ou o desaparecimento

    da emoo; o abandono do conceito de verdade como bagagem metafsicadesnecessria; o desaparecimento do indivduo autnomo e a morte dosujeito; a perda da historicidade e do passado; a desintegrao do sentidode tempo em uma srie de presentes puros e no-relacionados; a prevalnciado pastiche e a canibalizao de estilos passados. Estas esto entre as maisfortes caractersticas e temas, de acordo com a observao perceptiva deJameson, do ps-moderno como o estilo inapelavelmente ascendente dacultura do capitalismo de hoje.5

    Ankersmit sem dvida no aceitaria nenhuma dessas caractersticascomo representativas do que ele advoga como ps-moderno. Mesmo as-sim, a afinidade entre elas e o seu ponto de vista evidente. O fatalismohistoricista implcito na teoria do ps-modernismo est refletido em suaobservao de que o outono chegou para a historiografia ocidental, queno mais tem um tema ou uma metanarrativa, agora que a Europa, a partirdo fim da II Guerra Mundial, deixou de ser sinnimo de histria universale definhou para um apndice do continente eurasiano. Esse afastamentodo passado visvel em sua rejeio da importncia da origem e contextohistricos e em sua convico de que as evidncias nada tm a ver com umarealidade passada, mas sim apontam apenas para as interpretaes dos his-toriadores. A similaridade entre os dois torna-se ainda mais clara no con-ceito de historiografia proposto por Ankersmit. De acordo com sua teoriaps-moderna, o historiador deve renunciar tarefa da explicao e ao prin-cpio da causalidade, alm da idia de verdade, os quais so considerados

    como parte de um essencialismo superado. Em vez disto, deveria reco-nhecer a historiografia como atividade esttica na qual o estilo o maisimportante.

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    Tenho certeza de que a maior parte dos historiadores concordaria comesta opinio. O que ela significa que apesar do fardo de um nmero cres-cente de obras histricas efmeras e medocres, existe tambm, como con-traste, um corpusconsidervel de obras de originalidade, conhecimento einsightexcepcionais, as quais no s alargaram nossos horizontes intelec-tuais como tambm aprofundaram e mesmo transformaram nosso conhe-cimento do passado.

    Mesmo que por vezes o fenmeno da superproduo na histria pos-sa nos deprimir e parecer de difcil manejo, podemos ao menos nos con-

    tentar com o fato de que, atravs dos tempos, esse efeito seja normalmentecontrabalanado por um processo seletivo que relega as publicaes triviais obscuridade e assegura que as publicaes mais importantes venham aoconhecimento dos especialistas e, caso meream, a uma grande parte dosprofissionais da histria.

    Mas como poderia, mesmo assim, a condio de superproduo his-trica nos roubar ambos o texto e o passado, nos deixando somente inter-pretaes? Eu, assim como Ankersmit, nutro um interesse especial porHobbes, sobre quem j escrevi ocasionalmente. Em um estudo recenteprocurei analisar a literatura sobre Hobbes produzida nos ltimos anos. 7

    Ao contrrio do que coloca Ankersmit, mesmo h vinte anos no seriasuficiente, para quem buscasse um norte na discusso da poltica filosficade Hobbes, ler apenas Warrender e Watkins. Essa pessoa deveria ao menosconhecer tambm a obra clssica de Leo Strauss, a introduo escrita porOakeshott para a sua edio deLeviathane aThe Political Theory of Possessive

    Individualism de MacPherson. Se quisesse aprofundar-se, teria tambm defamiliarizar-se com outras contribuies importantes como o artigo de A.E. Taylor sobre a doutrina tica de Hobbes e o estudo de David Gauthiersobre oLeviathan, sem mencionar outras obras pertinentes.

    Hoje em dia, a literatura sobre Hobbes tornou-se, claro, realmentemuito vasta. Mesmo assim, como quase bvio demais para repetir, tantoem textos anteriores como nesses mais recentes, o relacionamento entro otexto de teoria poltica de Hobbes e suas interpretaes permanece extre-

    mamente prximo. Longe de estar mal-colocado ou perdido, ele sempreescrutinado e discutido como a base para qualquer concluso interpretati-

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    va a que se queira chegar. Entre os estudiosos de Hobbes, alguns, comoQuentin Skinner, em sua meta de reaver a inteno e o significado deHobbes, insistem em uma leitura que se baseia no contexto histrico, peloqual se compreende dominar a tradio intelectual, a situao poltica,ideolgica e as convenes da linguagem poltica utilizadas por Hobbes.Para os que vem na filosofia poltica uma disciplina essencialmente hist-rica, a interpretao no eclipsa o passado; este ltimo, ento, que fun-ciona como um teste crucial da validade da primeira.

    Tambm claro que uma interpretao pode cair ou manter-se de p

    em bases textuais ou histricas. Duas das interpretaes mais discutidassobre Hobbes no passado foram as de Warrender e MacPherson. O pri-meiro buscou explicar a teoria da moral e da obrigao poltica de Hobbescomo em ltima instncia fundadas sobre os comandos de Deus; o segun-do argiu que a concepo do estado da natureza e da ordem poltica emHobbes era um reflexo do nascente mercado capitalista competitivo deindividualismo possessivo. Nenhuma das duas interpretaes, seria justodizer, se imps maioria dos estudiosos de Hobbes, que as julgaram in-

    compatveis, seja com o significado do texto de Hobbes e com o carter desuas crenas, seja com uma compreenso correta de sua sociedade.

    O que disse sobre Hobbes tambm verdadeiro para outras reas doincio da histria moderna inglesa e europia, com as quais estou familia-rizado como parte de meu mais importante campo de estudo. Quando,em uma dessas reas, um estudo revisionista apresentado, evidncias tex-tuais (dentre as quais incluo no somente fontes literrias e textos filosfi-cos, mas tambm toda forma de documentos de arquivos), bem comoconsideraes contextuais so invariavelmente de importncia central nadiscusso. Seria suprfluo sublinhar isso no fosse pela curiosa descobertade Ankersmit de que em nossa era ps-moderna a interpretao aboliu otexto e o passado.

    Mesmo que as obras de Gadamer, Ricoeur e outros pensadores tenhamajudado a recolocar o problema da interpretao e da compreenso her-menutica como um tema central da filosofia da histria, o estudo de

    Ankersmit no traz nenhuma luz sobre o assunto. Ao contrrio, concentraalgumas de suas consideraes sobre o pressuposto de que a interpretaoganhou novo statusna historiografia ps-moderna. Observou que em nos-

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    sa sociedade contempornea a informao e as interpretaes multiplicam-se como se sob leis prprias, e sublinha o que chama do paradoxo de quemesmo poderosas e novas interpretaes no do um fim produo detextos, mas sim geram ainda mais textos. Esse fato dito paradoxal consi-derado explicvel apenas atravs de uma perspectiva ps-moderna. Mas porque deve ser considerado um paradoxo? As interpretaes histricas asse-melham-se em alguns aspectos s teorias e hipteses cientficas. Assim comoestas, qualquer interpretao nova e original ter tanto aderentes quantooponentes. Os primeiros tentaro aplicar, fortalecer e estend-la para de-

    monstrar sua superioridade s dos competidores. Os ltimos procurarosuas fraquezas e tentaro refut-la. Caso uma interpretao histrica ve-nha a ser largamente aceita, pode vir a no mais ser objeto de debate e to-mar seu lugar em nossa compreenso do passado. Isto pode, claro, nodurar. O aparecimento subseqente de outra teoria poder for-la a so-frer novos desafios, questionamentos que podem talvez derrub-la. Noexiste nada de paradoxal, ou de prprio dos tempos atuais, sobre o fato deque novas interpretaes significativas estimulam e no calam os debates.

    A falta de substncia da posio de Ankersmit ainda mais bem ilus-trada pelos seus comentrios sobre a atitude da historiografia ps-moder-na quanto cincia, que ele descreve como sendo distante e separada, masno de oposio, donde a-cientfica e no anticientfica. Isso muitopouco consistente, porm, com sua colocao de que o ps-modernismoconseguiu desestabilizar a cincia e tambm a acertou onde ela mais sen-svel, ao desconstruir o conceito de causalidade, um dos pilares principais

    do pensamento cientfico. A demonstrao que se segue a mesma dadapor Jonathan Culler em On deconstruction, e deriva da fonte de inspiraodeste ltimo, Nietzsche. Procede da seguinte maneira: quando considera-mos um efeito, ele nos faz examinar a causa; o efeito ento precede ou setorna a causa da causa; donde o efeito a origem da causa. Isso portantoinverte a hierarquia de causa e efeito e prova sua artificialidade.

    Este malabarismo verbal uma confuso transparente, conforme j odemonstrou John Searle em sua leitura crtica do livro de Culler.8 Mesmo

    que um efeito seja a fonte epistmica de uma procura por sua causa, issono pode querer dizer que temporalmente anterior ou que ele produz ou

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    causa a causa. Se meu carro pra por falta de gasolina, vou buscar a causa.Ela o tanque vazio, e no foi minha curiosidade em relao a porque eleno anda que o fez parar. O efeito, resumindo, a origem do meu interes-se, mas no da causa. Como aqui tambm no existe questo de concebercausa e efeito como uma hierarquia, um tema totalmente irrelevante. Osdois so apenas correlatos, um acarretando o outro.

    Ao realizar essas crticas, no me ative a nenhum significado particu-lar que o historiador deveria atribuir noo de causalidade quando a forutilizar. Se causa, no linguajar do historiador, sempre significar uma ra-

    zo ou motivo por parte dos agentes histricos, ou a assuno de um even-to, ao ou fenmeno sob uma lei causal geral, dependendo do objeto aser considerado, ela continua a ser uma questo debatida na filosofia dahistria. uma iluso, mesmo assim, assumir que a historiografia possaprescindir do conceito de causalidade. Enquanto a explicao for um deseus motivos, a atribuio causal permanecer como um ingrediente ne-cessrio no pensamento histrico. A revelao ps-moderna do contrrio no somente equivocada, mas ftil.

    Uma das principais metas do trabalho de Ankersmit demonstrar anatureza revolucionria do ps-modernismo, que lhe permite realizar suafuno subversiva. Como manifestaes deste ltimo ele aduz no somen-te a essa sua alegada desconstruo do princpio da causalidade, mas tam-bm a sua viso de que todas as nossas certezas cientficas esto logicamenteimplicadas no paradoxo do mentiroso. Como uma verso sucinta desteparadoxo, ele cita o enunciado este enunciado falso. Por meio dessa arma

    lgica, imagina, o ps-modernismo puxa o tapete debaixo da cincia e domodernismo. A historiografia supostamente providencia uma ilustraodessa operao dentro do carter intrinsecamente paradoxal da interpreta-o.

    A falta de clareza e a frouxido dessas asseres tornam difcil lidarcom elas de forma sria como argumento. Pode-se dizer o seguinte, po-rm, sobre a concluso proposta. O paradoxo do mentiroso coloca o pro-blema da reflexibilidade no qual o enunciado est logicamente includo

    em seu prprio veredicto de falsidade sobre uma classe de enunciados dosquais ele mesmo faz parte. Mas como essa reflexibilidade aplica-se histo-

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    riografia ou s teorias da cincia? Ankersmit no apresenta nenhuma razopara sua colocao de que as interpretaes ou constataes de fatos porparte dos historiadores sejam, segundo esta formula, paradoxais. Alm dessafalha, tambm duvidoso que esse paradoxo escolhido como exemplo sejarealmente um paradoxo. Isso se deve ao fato do enunciado no falar sobrenada, na verdade, portanto, no ser uma proposio. Para s-lo, precisariaacarretar um valor de verdade ou condies particulares de verdade, o queele no pode fazer. Dificilmente poderia, ento, produzir o efeito subver-sivo que Ankersmit supe.

    O insightmais importante atribudo por Ankersmit ao ps-moder-nismo o seu reconhecimento da natureza esttica da historiografia. Elerelata esse insightsob a nova tica do pensamento contemporneo de quea distino entre linguagem e realidade perdeu sua raison dtre. Com odesaparecimento dessa distino, diz Ankersmit, o esteticismo expande suainfluncia por sobre todos as formas de representao. A historiografia ento finalmente percebida como produto literrio no qual o historiadorno produz uma representao da realidade (ou do passado, poderamosdizer), mas sim um substituto ou uma reposio desta. O estilo visto comimportncia anterior ao contedo e o contedo como uma derivao doestilo. As diferenas histricas seriam tambm devidas a diferenas de estilo.

    Uma das caractersticas das teorias ps-modernas desconstrutivistastem sido buscar obliterar as fronteiras entre literatura e outras disciplinasatravs da reduo de todas as formas do pensar sua condio comum detexto. Donde dizer que a filosofia, como a historiografia, apenas um outro

    tipo de texto e, portanto, sujeita s suas leis, e no uma espcie de reflexo parte que lida com questes distintamente filosficas.9 Sem mencionar aidentificao de linguagem e realidade, uma tese que pode ser desenvolvidade muitas formas diferentes (o que, de qualquer forma, est alm do meuobjeto de discusso), eu me atreveria a dizer que poucos historiadores con-cordariam com a transformao, proposta por Ankersmit, da historiogra-fia em categoria da esttica. Nem estariam propensos a aprovar uma carac-terizao que d primazia sua qualidade de literatura. Conforme nos dis-

    seram os formalistas russos e Roman Jakobson, a qualidade da literaturaconsiste na forma pela qual esta coloca linguagem e expresso em primeiro

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    plano e lhes d valor e importncia independentes. Apesar de Ankersmitconsiderar que obras histricas e literrias so similares desta forma, istocertamente no verdade. Na historiografia, uma tentativa da linguagemde chamar a ateno para si mesma seria considerada altamente inadequa-da e uma quebra evidente das regras da escrita histrica. Dentro da hist-ria, a linguagem est subordinada ao esforo do historiador de transmitirda forma mais clara, ampla e sensvel a compreenso ou o entendimentode algo do passado.

    Para sustentar sua opinio de que o estilo o fator predominante na

    historiografia, Ankersmit sublinha o carter e contexto intensificado daspalavras e frases na obra histrica, o que determina sua impossibilidade desubstituio por outras frases equivalentes. Esta opinio me parece estarigualmente equivocada. Se fosse verdadeira, seria impossvel parafrasear ouresumir uma obra histrica sem alterar sua substncia ou significado. Mastais resumos so possveis, podemos dar perfeitamente uma descrio so-bre algo de estilo to particular quanto a narrativa de Gibbon sobre a ori-gem e o triunfo do cristianismo no Imprio Romano, que efetivamente

    transmita no somente sua compreenso de onde e como estes fatos ocor-reram, como tambm a ironia que permeia sua narrativa.

    Em linhas gerais, deve-se situar que Ankersmit no providencia qual-quer explicao sobre como o estilo possa determinar ou mesmo gerar ocontedo de obras histricas. Assim como a noo de que a interpretaotenha eliminado o texto e o passado, essa mais uma das alegaes extre-mas que, no obstante sua implausibilidade inerente, os ps-modernistasgostam de colocar como provas da importncia revolucionria de suas idias.Ela certamente contrape-se a algumas das convices e intuies mais fortesdos historiadores a respeito de sua disciplina. Seus comentrios seriam, maisprovavelmente, no sentido de que o contedo deriva da leitura crtica defontes e evidncias, da leitura crtica de outros textos sobre o assunto e desuas percepes sobre os inter-relacionamentos existentes na indefinidamultiplicidade de fatos relativos ao seu objeto de estudo.

    A tentativa ps-modernista de Ankersmit de absorver a historiografia

    para dentro do campo esttico e literrio ignora caractersticas centrais paraa prpria concepo de histria. Uma delas a diferena presumida entrefato ou verdade e fico, sobre a qual a perspectiva esttica no tem nada a

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    dizer. Diferentemente da obra literria, a obra histrica no contm ummundo imaginrio ou inventado. Ela se apresenta como consistindo, emsua maior parte, de fatos e de colocaes verdadeiras ou provveis sobre opassado. Muitas de suas frases so proposies ligadas a condies de ver-dade. Se isto no fosse verdadeiro, o leitor no teria qualquer interesse naobra. O significado caracterstico que a histria se atribui , portanto, to-talmente dependente de sua alegao de veracidade. Mesmo que um textohistrico contenha muitas alegaes e colocaes errneas e que proponhainterpretaes discutveis baseadas em consideraes muito complexas so-

    bre as evidncias, a veracidade, em seu sentido mais amplo, normalmen-te tomada como um de seus princpios reguladores mais bsicos.Outra caracterstica que no tem lugar dentro dos domnios da est-

    tica a funo desempenhada pela evidncia. Os historiadores trabalhamdentro de limites bem definidos, sobre os quais esto inteiramente cons-cientes, limites estes que derivam da natureza e limitaes das suas evidn-cias. Mesmo que lhes caiba determinar o que constitui evidncia e para queela serve, uma vez determinada ela exerce uma presso contnua. No es-

    to livres para ignor-la ou us-la como bem lhes aprouver. Essa presso um dos principais fatores para a formao da obra histrica.

    Ligada a esta ltima, h ainda outra caracterstica intrnseca da histo-riografia: a necessidade da justificao de certas alegaes de conhecimen-to, regra que ela divide com outras formas de pesquisa. Os historiadoressabem que podem ser chamados a justificar a veracidade, adequao econfiabilidade de alegaes em particular, interpretaes ou mesmo do seurelato como um todo. Seu linguajar tende a incorporar muitas justificati-vas para os julgamentos, opinies, descries e anlises que apresentam emseu olhar sobre o passado. Mesmo a mais pura histria narrativa no podedispensar a necessidade de justificativas, se quer ser aceita por estudiosos eleitores crticos.

    A estetizao da historiografia como um importante insightdo ps-modernismo, tal como concebida por Ankersmit, resulta inevitavelmentena trivializao da histria atravs de uma falha em reconhecer caracters-

    ticas que tanto definem a histria como forma de pensar como tambmlhes do significado. Esse efeito visvel nas recomendaes para a histo-riografia que concluem seu artigo. Uma delas que o historiador deve con-

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    centrar-se, como o faz a psicanlise, nos aspectos inconscientes do passadoque foram reprimidos ou que vm luz involuntariamente atravs de lap-sos de linguagem. Mesmo que eu no possa negar que essa meta possuaseu valor, ela de importncia muito menor do que a tentativa de desco-berta e compreenso dos valores, crenas, hipteses, convenes, regras eprticas sociais que constituem grande parte da vida consciente de socie-dades passadas. O estudo destas no somente uma tarefa dificlima querequer insighte imaginao excepcionais, como tambm de uma impor-tncia fundamental, a que as prioridades do ps-modernismo no do

    importncia.Outra das recomendaes de Ankersmit para os historiadores reza que

    eles no mais devem lidar com grandes problemas nem tentar reconstruirou descobrir padres do passado, tarefas a que aspirava a historiografia cien-tfica moderna. Tudo que lhes resta como objeto de estudo so microtemase migalhas histricas, tal como exemplificadas nas obras de historiadoressociais contemporneos, mesmo que textos assim no paream ter muitosentido. Sob o olhar ps-moderno, diz ele, a meta no mais integrao,sntese e totalidade, e os pequenos assuntos agora ocupam o centro dasatenes.

    No necessrio dizer que poucos historiadores apoiariam essa fr-mula para um novo antiquarismo que surge de uma concepo trivializada,cansada e derrotista da pesquisa histrica. Contrariamente crena deAnkersmit, a expanso e fragmentao da historiografia em nosso tempo,atravs do crescimento simultneo da especializao e da expanso de nos-

    sos horizontes histricos trouxe a necessidade de integrao e sntese aindamaiores do que antes. Essa uma necessidade, alm do mais, amplamentereconhecida. No se trata de buscar uma noo plena da histria do mun-do ou do processo histrico, pois isto quase certamente impossvel. Oque no impede ser factvel, porm, pensar em temas de larga escala demaneira geral nem sobre questes que transcendem as barreiras de disci-plina e especializao para obter uma compreenso de sociedades e civili-zaes inteiras e de reas amplas do passado. No somente a moderna lite-

    ratura histrica inclui numerosos exemplos desse tipo de obra, como tam-

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    bm sempre haver historiadores com a ambio intelectual para trabalharproblemas de significado e largueza excepcionais.

    Durante seu artigo, Ankersmit toca na questo da utilidade da histo-riografia somente para dispens-la como no pertinente e como um errode categoria. Como a historiografia parte da cultura explica ele aquesto de sua utilidade no pode ser levantada de forma significativa maisdo que poderia ser levantada a utilidade da cultura em si. Mesmo conce-dendo-lhe razo neste ponto, podemos nos perguntar qual a funo epropsito a que serve a histria na cultura e na sociedade. Mesmo que

    possamos dizer que a sociedade ocidental esteja rapidamente perdendo sualigao com o passado, tambm claro que ela valoriza a histria e a con-cebe como importante, se pensarmos nos recursos considerveis alocados pesquisa histrica e ao seu ensino. Por que e para que deveria faz-lo?

    Uma resposta indireta a esta pergunta foi certa vez dada pelo compa-triota de Ankersmit, Huizinga, um estudioso humanista de sensibilidade epensamento caractersticos, que definiu a histria como a forma intelec-tual pela qual uma civilizao presta contas a si mesma sobre seu passado.Esta definio tambm implica uma definio da funo da histria.Huizinga prossegue dizendo que nossa civilizao a primeira a ter comopassado o passado do mundo, nossa histria a primeira a ser histriamundial. A esta observao ele ainda adiciona que

    Uma histria adequada nossa civilizao somente pode ser uma histriacientfica. O instrumento da civilizao moderna ocidental para a compreen-so intelectual do mundo a cincia crtica. No podemos sacrificar a de-

    manda pela certeza cientfica sem ferirmos a conscincia de nossa civiliza-o. Representaes mticas e fictcias do passado podem ter valor literriocomo formas de jogo, mas para ns elas no so histria.10

    Nesta colocao Huizinga no falava da cincia como um positivista.Compreendia o termo histria cientfica da mesma forma que Collingwood,isto , como os rigorosos padres cognitivos, mtodos crticos exigentes esentido global do passado que se tornaram caractersticos da historiografia

    ocidental durante seu desenvolvimento nos sculos XIX e XX. claro que a historiografia tem inmeras funes, inclusive vrias deordem prtica, mas Huizinga estava pensando do ponto de vista da socie-

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    dade como um todo. Mesmo se no concordarmos inteiramente com isso,sua viso da historiografia provavelmente no difere muito da forma pelaqual muitos historiadores ocidentais vem seu trabalho. Ankersmitdesconsidera esse ponto de vista como modernista, mas sua alternativa ps-moderna parece tristemente empobrecida em comparao. Se vier a pre-valecer e existe pouca chance disso a histria no ter mais uma ver-dadeira funo. No poder mais desempenhar sua obrigao intelectualmais importante na educao e na cultura, que consiste em dar a cada ge-rao viva uma viso mais ampla e melhor sobre o passado de sua prpria

    sociedade e civilizao, assim como sobre o passado humano em um sen-tido maior. O ps-moderno representa a negao desta obrigao, respon-sabilidade cultural maior da historiografia, que permanece indispensvelneste mundo que se move cada vez mais rpido para o futuro.

    (Traduzido do original em ingls por Aline Lorena Tolosa)

    Notas* Originalmente publicado emHistory and Theory, v. 29, pp. 263-274, out. 1990.1 F. R. Ankersmit, Historiography and Postmodernism,History and Theory28 (1989),137-53.2 John S. Nelson, Allan Megill, and Donald N. McCloskey, The Rethoric of the HumanSciences (Madison, Wisc., 1987).3 F. R. Ankersmit, The Dilemma of Contemporary Anglo-American Philosophy ofHistory, Knowing & Telling History: The Anglo-Saxon Debate, History and Theory, Beiheft

    25 (1986).4 Ver alguns dos artigos emMetahistory: Six Critiques, History and Theory, Beiheft 19 (1980),particularmente o texto de Maurice Mandelbaum The Presuppositions of Metahistory,como tambm os comentrios de Frederick A. Olafson em seuHermeneutics:Analytical and Dialectical, em Knowing and Telling History, 40-1. Ver tambm as observaes crti-cas e ressalvas sobre a viso de Hayden White na obra de Paul Ricoeur The Reality of the

    Historical Past(Milwaukee, Winsconsin, 1984) 33-4 e William H. Dray, Narrative andHistorical Realism, em On History and Philosophy of History (Leiden, 1989), captulo 7.Tambm percebi em conversas com historiadores e discusses com alunos de doutorado

    em seminrios sobre a filosofia da Histria que a reao ao texto de WhiteMetahistoryand Tropics of Discourse geralmente pouco favorvel.

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