7

Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

  • Upload
    lamthu

  • View
    239

  • Download
    0

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág
Page 2: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

Todo instrumento é um instrumento (mágico) de poder

Resenha da obRa de Thiago honóRio

documenTs (2012)

Edilamar Galvão*

* É graduada em Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, pela Uni-versidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho UNESP (1993). Defendeu o mestrado “Poesia (em) Tradução” (1999), sobre a influência da tradução na criação na poesia de Nelson Ascher, pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo PUC-SP, com a orientação da Arthur Nestrovski, e o doutorado na mesma instituição com a tese “A insufi-ciência da linguagem: fundamentos para uma estética da arte tecnológico-digital” (2006), sob orientação de Sérgio Bairon. Na área da educação, concluiu o mes-trado-profissionalizante em Tecnologia Educacional pela Fundação Armando Álvares Penteado FAAP (2004). É coorde-nadora do curso de pós-graduação em Jornalismo Cultural na FAAP.

Arte tem a ver com uma produção de falta

Thiago Honório

Documents, obra de

2012, do artista

Thiago Honório,

traz 45 instru-

mentos de corte

dispostos – justapostos – em uma

prancha de 6,3 metros de compri-

mento por 0,82 de largura apoiada

sobre cavaletes. A montagem dá ao

Page 3: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

545544

Rese

nha

da o

bra

Doc

umen

ts d

e Th

iago

Hon

ório

Edilamar G

alvão

conjunto a impressão de uma catalogação de objetos em

exposição para olhar científico.

À diferença do que seria uma mostragem assim, aqui

os objetos estão literalmente expostos. Não há redoma

de vidro para os proteger – ou a nós.

As facas estão ao alcance das mãos.

O contato visual com a obra é arrebatador. É estético

– há uma beleza formal própria de cada um desses instru-

mentos de corte e também na sua cuidadosa disposição.

É bonito de ver. É ameaçador.

São serrotes, adagas, facas, foices, cutelos etc., com-

prados em Paris no primeiro semestre de 2012 durante o

período de residência na Cité Internationale des Arts, parte

do Programa de Residência Artística da FAAP. A obra foi

apresentada pela primeira vez na 44a Anual de Artes da

FAAP em novembro do mesmo ano, onde ficou exposta

até fevereiro do ano seguinte. Após, Documents foi adqui-

rida pela colecionadora Roberta Matarazzo e doada ao

MAC USP em fevereiro de 2014. No museu, a instalação

participa da exposição O Agora, o Antes: uma síntese do

acervo do MAC USP, até dezembro.

“Há tempos queria fazer um trabalho que questionasse

– em toda a sua dimensão processual e performática – as

camadas da ideia de ‘trabalho’ e a expressão ‘trabalho de

arte”, Thiago Honório afirmou em entrevista à Revista Isto É1.

O procedimento de apropriação e de montagem é ca-

racterístico do trabalho de Thiago Honório, mas vou me

deter especificamente em Documents – porque me parece

que ela também contém a síntese do universo que inte-

ressa ao artista. Há nele sempre uma espécie de procura

por uma arqueologia dos materiais, dos procedimentos e

dos significados da arte.

O nome Documents é também bastante sugestivo. Em

sua fala na programação “MAC encontra os artistas”, em

maio do ano passado, Thiago pergunta: no que consiste

o trabalho de produção do artista, senão na produção

de uma falta? E cita Jasper Johns: “um objeto que revela

perda, destruição, desaparecimento de objetos não fala

de si mesmo, fala de outros”.2

Que outros objetos poderiam nos fazer buscar, esses,

os que estão expostos por Thiago Honório? Somos ten-

tados a “completar” a sequência. É uma sequência de ob-

jetos de corte. O que estaria mais atrás ou mais adiante?

Sua disposição não é cronológica, haveria outros “cortes”

1 Revista Isto É, edição 2273, 07.Jun.13. Disponível em http://www.istoe.com.br/reportagens/304995_DA+ILHA+DE+EDICAO+A+MESA+DE+DISSECACAO+UM+-CORTE+TRANSVERSAL+NA+OBRA+DE+THIAGO+HONORIO

2 O vídeo com a conferência pode ser visto aqui, no site do MAC http://www.mac.usp.br/mac/conteudo/cursoseventos/mac_encontra/2013_1/thiagohonorio_vd.asp

Page 4: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

547546

Rese

nha

da o

bra

Doc

umen

ts d

e Th

iago

Hon

ório

Edilamar G

alvão

temporais, espaciais, formais além deste? Outros cortes

de catalogação?

“O autor é autor da sua obra”, diz Borges, “e o leitor da

sua leitura”, continua.

Documents me levou subitamente a um texto fundamen-

tal da Estética e da Sociologia da Arte: A Necessidade da Arte,

de Ernst Fischer. Especialmente ao seu segundo capítulo

“As Origens da Arte”. Aqui faço meu corte, a partir do corte

proposto por Thiago.

Fischer faz uma leitura ao mesmo tempo marxista e,

digamos, darwinista, da necessidade da Arte. Sua questão

é: Porque “precisamos” da arte? Pois, se a criamos, o fize-

mos em resposta a uma necessidade. Assim, a pergunta

contém uma premissa axiomática: a necessidade move a

criação. E essa é uma premissa marxista/darwinista.

Como, então, descobrir a necessidade da arte? Procuran-

do descobrir a que necessidade ela respondia no momento

mesmo de ser inventada. Mas isso leva a indagar mais

além o lugar da arte na sucessão de invenções. Fischer

refaz assim uma possível cadeia dos instrumentos. Tudo

nasce como instrumento.

Consideremos, segundo o raciocínio de Fischer, que

o primeiro instrumento tenha sido uma simples vara.

Uma vara qualquer encontrada ao acaso. Que o “animal

pré-humano”, como ele chama, a tenha utilizado, “instin-

tivamente” – paradoxalmente o instinto da razão –, para

alcançar um fruto. Esta vara ele guardaria e, no próprio ato

de guardá-la, ele já a teria transformado num instrumen-

to – um “instrumento ocasional”, nas palavras de Fischer.

Como veremos, esse primeiro instrumento contém to-

dos os outros – também a “magia” de inventá-los.

A proposição do autor lembra a antológica cena de 2001

– Uma Odisseia no Espaço em que um grupo de primatas es-

tranha o aparecimento de um monólito na cavidade onde

protegiam o seu descanso. Após, durante o dia, o grupo,

talvez o mesmo, “caminha” sobre ossadas secas de animais.

Um deles manipula os ossos. Na conhecidíssima cena, a

música tema introduz e assinala a importância do evento.

O primata é investido de ira e força: bate vigorosamente o

osso contra o chão. Num corte rápido, quase subliminar,

um animal tomba morto; num movimento mais longo o

primata joga o osso para cima, filmado agora em close

contra o céu, e, em outro corte magnífico, a cena passa

para o espaço e encontra uma nave alongada. Como o

osso. Como o monólito. Como a nave espacial.

Em sua fala no MAM, Thiago Honório também se refere

ao “corte” como procedimento fundamental da montagem

no cinema tal como a formulou Eisenstein: a justaposição

que produz novos significados.

Documents parece “documentar” mesmo essa procura

pelas “camadas de trabalho” envolvidas no processo artís-

Page 5: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

549548

Rese

nha

da o

bra

Doc

umen

ts d

e Th

iago

Hon

ório

Edilamar G

alvão

tico. E é incrível que sua escolha tenha recaído sobre os

objetos de corte e sua pluralidade semântica.

Aqui consigo reunir minhas referências: Todo instru-

mento é um instrumento de poder. No seu sentido polis-

sêmico. Os objetos cortantes de Documents explicitam esse

poder. Explicitam a polissemia desse poder.

A vara, o osso, ou a pedra lascada, quem quer que te-

nha começado a odisseia dos instrumentos, já guardava

em si o poder e o “desejo de poder infinito” que ela iria

despertar no homem.

Pois, para Fischer, o instrumento, se não precede a

razão, a faz despertar. Despertar movido, primeiro, pela

“mera” necessidade de sobrevivência. Esses primeiros ins-

trumentos encontrados casualmente serão usados, serão

manipulados. Seu uso despertará no homem um conheci-

mento novo sobre a natureza e as próprias possibilidades

do instrumento recém-achado/inventado.

Em seu manuseio, o homem descobrirá poder tanto

imitar quanto aperfeiçoar os objetos encontrados na na-

tureza. De aprender a aperfeiçoá-los pelo uso, passará a

projetá-los, criará um mundo de instrumentos. A própria

linguagem será decorrência disso. Uma vez criados os

instrumentos, o homem produzirá o trabalho e o trabalho

exigirá dele o desenvolvimento da comunicação. Assim,

como todos os instrumentos, também a linguagem sur-

ge “ocasional”: são os próprios sons da natureza que o

homem imita para depois também aperfeiçoá-los como

código.

Devemos dar a Fischer o mesmo que pediu Darwin ao

explicar sua teoria da evolução: é preciso imaginar essa

sucessão acontecendo em uma enorme escala de tempo,

ainda que a de Fischer seja bem menor do que a exigida

por Darwin.

Nesse “big-bang” da cultura gerado pelo primeiro instru-

mento, tudo estava virtualmente contido: o instrumento

ocasional, a produção do instrumento por imitação, o

trabalho e a linguagem, nascida também como instru-

mento. Na frase-síntese de Fischer: “o homem inventa os

instrumentos, mas os instrumentos também inventam o

homem.”

Essa experiência original, segundo Fischer, inspira no

homem uma “sensação de poder” e, ao mesmo tempo,

um desejo de “poder infinito”. Aqui estaria a semente da

Page 6: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

551550

Rese

nha

da o

bra

Doc

umen

ts d

e Th

iago

Hon

ório

Edilamar G

alvão

separação do homem em relação à natureza, essa que

ainda não se vê sentir nos primeiros grupos humanos.

Aqui também está talvez o ponto mais difícil, mais abs-

trato, de Fischer: a sensação de poder equivale à magia,

ao sentimento mágico, ao desejo de produzir “instrumen-

tos” imitando a natureza numa escala superior, para, por

assim dizer, ultrapassar a sobrevivência imediata. O mito

é esse instrumento. Marcell Mauss e seu “Ensaio sobre a

Dádiva” devem ser lembrados para ajudar a compreender

o mecanismo de produção e funcionamento do mito no

modo como o vê Fischer. Ainda “A Eficácia Simbólica”, de

Levi Strauss.

O surgimento do Mito é, pois, resposta a uma neces-

sidade da sobrevivência do grupo, é uma forma, mágica,

de trabalho.

Mas esse “trabalho” tem sua especificidade: Além de

atuar na “garantia” do sucesso da caça ou das trocas sim-

bólicas, ele é produtor de unidade social e de sentido.

Pois a luta pela sobrevivência mais imediata, aquela que

é feita com os instrumentos mais “concretos”, produzirá

a fragmentação da comunidade primitiva na muito mais

tardia sociedade de classes.

Por isso a Arte só poderia ter no Mito seu antecessor

mais imediato. E o artista, no feiticeiro. A resposta de Fis-

cher sobre qual necessidade a arte respondia:

A tarefa do artista era ex-

por ao seu público a sig-

nificação profunda dos

acontecimentos, fazendo-o

compreender claramente a

necessidade e as relações

essenciais entre o homem

e a natureza e entre o ho-

mem e a sociedade, des-

vendando-lhe o enigma

dessas relações; (...) cabia-

lhe conduzir a vida indivi-

dual de volta à existência

coletiva, unir o pessoal ao

universal; cabia-lhe restau-

rar a unidade humana perdida.

3 (grifo do autor)

3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág. 52.

Page 7: Todo intrumentodiversitas.fflch.usp.br/sites/diversitas.fflch.usp.br... · 2017-10-31 · 3 Ernst Fischer, A Necessidade da Arte . Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 1977, pág

553552

Rese

nha

da o

bra

Doc

umen

ts d

e Th

iago

Hon

ório

Edilamar G

alvão

Páginas depois finaliza: “numa sociedade em decadên-

cia, a arte, para ser verdadeira, precisa refletir também a

decadência”. Fischer vai mais longe. Acredita ainda que,

para exercer sua função social, a arte deveria, inclusive,

ajudar a mudar o mundo. Não é o caso de entrar nesse

argumento agora – interessa aqui a associação feita por

Fischer entre instrumento, magia e arte. E à função que a

todos liga. A natureza do homem passa a ser inventar sua

“supra-natureza”.

No clássico “A obra de arte na era da reprodutibilidade

técnica”, Walter Benjamin também refletiu sobre a técnica

como uma “segunda natureza”. No caso de Benjamin, essa

segunda natureza se dá apenas com a “técnica emancipa-

da” da reprodutibilidade técnica. De todo modo, mesmo

ela é uma decorrência da natureza técnica já contida no

primeiro instrumento. E também para Walter Benjamin a

arte é chamada a cumprir seu papel. No caso, é o cinema

quem nos reconecta com essa segunda natureza criada.

Diante dessa segunda natureza, que o homem inventou

mas há muito não controla, somos obrigados a aprender,

como outrora diante da primeira. Mais uma vez, a arte

põe-se a serviço desse aprendizado. Isso se aplica em

primeira instância ao cinema. O filme serve para exercitar

o homem nas novas percepções e reações exigidas por

um aparelho técnico cujo papel cresce cada vez mais em

sua vida cotidiana. Fazer do gigantesco aparelho técnico

do nosso tempo o objeto das inervações humanas – é

essa a tarefa histórica cuja realização dá ao cinema o seu

verdadeiro sentido4.

Documents, de Thiago Honório, é uma epifania. Traz à

cena, por esses instrumentos de corte e sua aparência

arqueológica, o testemunho de todos os outros instrumen-

tos ausentes, desaparecidos, perdidos. Nos leva de volta a

uma cena inaugural carregada de todas as ambivalências

arquetípicas: a imitação, a invenção, o poder, a magia e um

universo de sentidos a se construir.

4 Walter Benjamin, Obras Escolhidas – Magia e Técnica. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1984, pág. 176.