6811184 Ernst Cassirer Linguagem e Mito

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Coleo Debates Dirigida por J. Guinsburg

Equipe de realizao: Traduo: J. Guinsburg e Mriam Schnaider-man; Reviso: Mary Amazonas Leite de Barros; Produo: Ricardo W. Neves e Sylvia Chamis.

ernst cassirer LINGUAGEM E MITO

Ttulo do original: Sprache und Mythos Ein Beitrag zum Problem der Geetternamen

Copyright by YALE UNIVERSITY PRESS

3 edio

Direitos em lngua portuguesa reservados EDITORA PERSPECTIVA S.A. Avenida Brigadeiro Lus Antnio, 3025 01401 - So Paulo - SP - Brasil Telefones: 885-8388/885-6878 1992

Ao meu querido sogro OTTO BONDY em seu octagsimo aniversrio 3 de outubro de 1924

SUMARIO

I. II. III. IV. V. VI.

Cassirer ........................................................................... A Linguagem e o Mito: sua Posio na Cultura Humana .............................................................. A Evoluo das Idias Religiosas ..................................... Linguagem e Conceituao ............................................. A Palavra Mgica ............................................................. Fases Sucessivas do Pensamento Religioso ...................... O poder da Metfora ......................................................

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CASSIRER

O movimento neokantiano, que se manifesta a partir dos fins do sculo passado, alcanou sua expanso mxima entre as duas guerras mundiais. Reuniu tendncias vrias, divergentes nos interesses e interpretaes, apoiadas logo na filosofia terica de Kant, logo na sua filosofia prtica ou ento na Crtica do Juzo. Pensadores e cientistas to dspares como o fsico e fisilogo Herman Helmholtz (que acentuava a necessidade de as cincias naturais fundamentarem seus conceitos bsicos num raciocnio epistemolgico rigoroso) e filsofos e historiadores como Kuno Fischer, Eduard Zeller, Otto Liebmann, sobretudo, porm, Friedrich Albert Lange, com sua Histria do Materialismo

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(1866), contriburam para a retomada e renovao do pensamento kantiano. Entre os numerosos grupos menores, uns de orientao crtico-positivista ou crtico--realista, outros de interesses antropolgicos, destacam--se, como as escolas neokantianas mais importantes, a de Marburg, chefiada por Hermann Cohen (1842-1912) e Paul Natorp (1854-1924), e a de Baden, cujos representantes principais so Wilhelm Windelband (1848-1915) e Heinrich Rickert (1862-1936).

s duas escolas comum o mtodo transcendental de Kant, isto , a investigao das condies apriors-ticas do conhecimento, da moral e dos fenmenos estticos; sobretudo, porm, a concepo de que, tanto como a moral e a arte, tambm a cincia um modo de produo criativo da conscincia. O conhecimento, portanto, no "apreenso" ou "cpia" de uma realidade transcendente conscincia ou independente dela (como supe o realismo filosfico e, em certa medida, o prprio Kant), mas instaurao, constituio e criao dos objetos cientficos. Eliminando a "coisa em si" de Kant ou atribuindolhe apenas o sentido de conceito-limite, os neokantianos das alas de Marburg e Baden, idealistas radicais, riscam do pensamento filosfico-cientfico a "realidade independente", tida como conceito absurdo, j que nunca posumos dados de conscincia que no sejam precisamente dados de conscincia, sendo suprfluo duplicar as realidades e acrescentar realidade imanente a conscincia outra, transcendente. Cohen chega a rejeitar as prprias sensaes como "matria" da experincia, negando deste modo uma das pressuposies da Crtica da Razo Pura de Kant. "Comeamos com o pensar. O pensar no deve ter origem fora dele mesmo. ..", isto , no deve pressupor a receptividade e os dados sensveis, admitidos por Kant (na Esttica Transcendental). H, entretanto, diferenas profundas entre a Escola de Marburg e a de Baden. Enquanto na primeira prevalece, de uma forma geral, o interesse pelas cincias exatas da natureza e pela matemtica, a segunda se orienta mais para as cincias culturais e histricas e para a elaborao da teoria dos valores (axiologia). As teses de Windelband e Rickert, que distinguiram cincias nomotticas (que operam com leis), ou pro-

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cedem de forma generalizadora, e cincias idiogrficas, de procedimento individualizador, tornaram-se famosas. Ernst Cassirer (1874-1945) considerado, pelo menos na primeira fase do seu filosofar, como um dos representantes mais marcantes da Escola de Marburg. Nascido em Breslau (Vroclav), estudou em Berlim e Marburg direito, filologia, literatura, filosofia e matemtica. Foi professor em Berlim, em Hamburgo (1919-1932) e Oxford. Transferindo-se em 1941 para os Estados Unidos, lecionou na Universidade de Yale e na Columbia University. A bibliografia de Cassirer extensa. Uma verdadeira histria das cincias modernas a obra em trs volumes O Problema do Conhecimento na Filosofia e Cincia dos Tempos Modernos (1906 e seguintes). Em Conceito de Substncia e Conceito de Funo (1910) apresenta uma investigao epistemolgica sobre a matemtica, fsica e qumica modernas, merc da qual procura provar que as modernas cincias exatas tendem a considerar as chamadas substncias como pontos de partida hipotticos de dependncias funcionais, substituindo a lgica de subsuno aristotlica por uma lgica de relaes. Ao contrrio da maioria dos pensadores da Escola de Marburg, Cassirer se distingue pelo profundo interesse nas pesquisas histrico-cultu-rais, fato ressaltado por obras como Idia e Configurao (2$ edio, 1924) e Liberdade e Forma (4^ edio, 1924), nas quais examina o conceito da personalidade na civilizao moderna e estuda pensadores e poetas como Leibniz, Kant, Goethe, Schiller etc. Divulgao universal obtiveram obras como Indivduo e Cosmo na Filosofia do Renascimento (1927) e A Filosofia da Ilustrao (1932). A obra principal de Cassirer um dos monumentos da filosofia do sculo XX a Filosofia das Formas Simblicas (3 volumes, 1923-1929) de que o prprio autor condensou e desenvolveu algumas idias fundamentais na famosa obra An essay on man (1944; "Ensaio sobre o Homem"). Como j foi salientado, Cassirer, sobretudo na sua primeira fase, considerado, por muitos, como "o mais puro e perfeito representante do neokantismo de Marburg" (Erdmann/Clemens, em Esboo da Histria

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da Filosofia) ou como "o terceiro mais importante expoente da Escola (de Marburg). . . que nas suas obras histricas e sistemticas talvez tenha proporcionado doutrina neokantiana a expresso mais aguda, precisa e atualmente mais eficaz" (Max Scheler, "A filosofia alem contempornea", em Vida Alem da Atualidade, 1922).

Cassirer certamente foi, no nosso sculo, um dos maiores representantes do pensamento kantiano e da sua renovao marburguense. O rigor do seu pensamento no admitiu a violentao irracionalista, caracterstica das interpretaes de Heidegger (alis, tambm no campo da poesia). "Kant e permanece, no sentido mais sublime e belo desta palavra, um pensador da Ilustrao (Aufklaerung): ele aspira luz e claridade, mesmo quando reflete sobre o mago mais profundo e encoberto do Ser." Heidegger, declara num ensaio, referindo-se sua obra Kant e o Problema da Metafsica, no fala como um comentador do pensamento kantiano, mas como "usurpador que, por assim dizer, penetra com o poder das armas no sistema kantiano a fim de domin-lo e p-lo a servio da sua (heidegge-riana) problemtica". Seria, no entanto, errado restringir o pensamento de Cassirer, em suas fases interiores, s doutrinas mar-burguenses. Ultrapassa-as de longe, no s pelos interesses histrico-culturais que por vezes o aproximam da Escola de Baden, mas pela ampliao do seu processo cognoscitivo. Cassirer adota livremente mtodos fenomenolgicos, sem deixar de servir-se dos resultados das cincias especializadas de que possua um conhecimento de admirvel amplitude e sem, ainda assim, nunca renegar as suas razes kantianas.

Com efeito, a Filosofia das Formas simblicas , segundo comentrio do prprio autor, uma fenome-nologia do conhecimento, no pretendendo ser, de modo algum, uma metafsica do conhecimento. O termo conhecimento nela se define no amplo sentido de "apreenso" humana de "mundo", apreenso nunca passiva, sempre mediada pela espontaneidade enforma-dora da mente humana. Na ampla acepo usada por Cassirer, o termo conhecimento no se aplica apenas ao entendimento cientfico e explicao terica, mas

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se refere a toda atividade espiritual em que "edificamos um 'mundo' na sua configurao caracterstica, na sua ordem e no seu 'serassim'..." Deste modo so analisadas, ao lado da funo do pensamento cientfico, as funes da enformao lingstica, mticoreligiosa e artstica, cada qual diversa e cada qual instaurando mundos diversos. Em cada uma dessas formas e funes se realiza determinada objetualizao, "determinada enformao no propriamente do mundo (como se houvesse mundo no enfermado), mas enformao em mundo, em significativa conexo objetiva. . ." Assim, a filosofia das formas simblicas "no pretende estabelecer, de antemo, determinada teoria dogmtica da essncia dos objetos e de suas propriedades bsicas, mas visa a apreender e descrever, ao contrrio, merc de trabalho paciente e crtico, os modos de objetivao que caracterizam a arte, a religio, a cincia", sobretudo, porm, a linguagem e o mito.

Pelo exposto evidencia-se a importncia do pensamento de Cassirer, mormente no campo da lgica da lngua. Isto para no falar das brilhantes anlises dedicadas lgica do pensamento mtico, contra cujo emprego manipulado no mundo contemporneo, mxime no terreno poltico, dirigiu as crticas contundentes da sua obra The myth of the State (1946; "O mito do Estado"). No seu todo, a obra principal de Cassirer se afigura como uma ampla fundamentao da teoria dos smbolos ou, como se diria hoje, da semitica. Isso foi reconhecido por Susanne K. Langer na Filosofia em Nova Chave (Editora Perspectiva, 1971), ao chamar Ernst Cassirer "o pioneiro da filosofia do simbolismo" e ao inseri-lo entre pensadores como Russell e Wittgenstein que "lanaram o ataque contra o tremendo problema do smbolo e significado e estabeleceram o princpio fundamental do pensamento filosfico de nossos dias". Concomitantemente, Cassirer esboou, com esta obra, as bases de uma antropologia filosfica e filosofia da cultura, cuja unidade reside na atividade simbolizante do homem; unidade, todavia, que dialtica, coexistncia funcional de contrrios, em virtude da "multiplicidade e da polimorfia das partes constituintes", tais como mito, lngua, arte, religio, histria e cincia.

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O presente ensaio sobre Linguagem e Mito enquadra-se perfeitamente na problemtica exposta. ele de sumo interesse, primeiro como brilhante anlise das conexes entre lngua e mito, anlise atualssima, decerto no pelo material etnolgico, mas pelo processo da indagao; e, em segundo lugar, pela exposio concisa e lcida dos pontos basilares da filosofia das formas simblicas, assim p. ex. quando o autor esclarece que, "em lugar de medir o contedo, o sentido, a verdade das formas espirituais por algo alheio, que deva refletir-se nelas mediatamente, cumpre descobrir, nestas prprias formas, ... o critrio de sua verdade e significao intrnseca. .. Deste ponto de vista, o mito, a arte, a linguagem e a cincia se tornam smbolos: no no sentido de que designam, na forma de imagem, . .. um real existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu prprio mundo significativo..." (p. 22). Sendo cada forma simblica um modo especfico de ver, uma direo ou enfocao mental sui generis, Cassirer procura determinar neste ensaio os modos peculiares de configurao e enformao que se manifestam na linguagem e no mito. A hiptese de que a anlise se nutre a de identidade parcial da estrutura da conscincia lingstica e da conscincia mtica e da sua radical diversidade em relao conscincia cientfica. O ensaio , portanto, em essncia, uma indagao sobre a funo e a lgica especficas dos conceitos (primrios) da lngua e do mito, apresentados como profundamente distintos dos conceitos cognoscitivos elaborados pelas cincias.

ANATOL ROSENFELD

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? LINGUAGEM ? ? ? ?? ? : SUA POSIO NA CULTURA HUMANA

? comeo do Fedro platnico descreve como Scrates, ao encontrar-se com Fedro, por ele levado longe das portas da cidade, at as margens do rio Ilisso. Plato reproduziu nos menores detalhes a paisagem onde se passa esta cena; e, sobre esta representao, flutuam um brilho e um perfume, como raramente encontramos em descrio da natureza, na Antigidade. Scrates e Fedro sentam-se sombra de um pltano, junto a um manancial refrescante; o ar estivai se agita benigno e doce e inunda-o o zunir das cigarras. Embevecido pela paisagem, pergunta Fedro se acaso no seria este o lugar onde segundo o mito , Breas

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raptou a bela Ortia; pois aqui a gua pura e cris-* talina, como que feita para que as donzelas nela se banhem e brinquem. Indagado a seguir se julgava verdadeiro esse conto, esse "mitologema", Scrates replicou que, mesmo se no lhe desse crdito, nem por isso teria dvidas sobre seu significado. "Pois disse ento procederia como os sbios e diria valendo-me de uma inteligente interpretao de (s ?f ???e???) * que, enquanto Ortia brincava com sua companheira Farmcia, fora jogada por Breas, o vento norte, das rochas da redondeza; e, devido a este carter de sua morte, disseram, mais tarde, que ela fora raptada pelo deus Breas. Porm eu, Fedro! prossegue Scrates , acho isto demasiado frvolo, e acredito que tais interpretaes constituem uma ocupao bastante aborrecida e artificiosa, pelo que no invejo quem a elas se dedique. Pois em casos semelhantes deveria tambm explicar figuras como os Centauros e a Quimera, e logo haveria de ver-se inundada por toda uma caterva de Grgonas, Pgasos e muitos outros seres estranhos e prodigiosos; e quem, desconfiando de todos estes seres maravilhosos, deles se aproxime com a inteno de reduzi-los a algo verossmil, dever consagrar muito tempo a este tipo de sabedoria inadequada. "Eu, porm, no tenho tempo para dedicar-me a tais cios, e isto porque, caro amigo, no cheguei a conhecer a mim mesmo, tal como exige o preceito dl-fico. Parece-me absurdo que, enquanto continue igno-rando-me, possa ocupar-me de coisas estranhas. Por isso, deixo tais coisas onde esto, e no penso nelas, seno em mim mesmo, quando medito se sou uma criatura de constituio mais complicada e monstruosa que a de Tfon, ou se, quem sabe, sou um ser de natureza muito mais suave e simples, dotado de alguma essncia nobre e ainda divina" {Fedro, 229 D e ss.).

Este tipo de interpretao mitolgica, que os sofistas e retores de outrora consideravam a mais alta sabedoria e a flor do verdadeiro esprito urbano, a Plato parecia bem o oposto de tal esprito; porm, ainda que a tenha denunciado como tal, denominando-a mera "sabedoria camponesa'"(???????? s ?f ? tal sentena a),

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"Soficmeno", ato de ser sofista. (N. dos.T.)

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no impediu que os eruditos de sculos vindouros voltassem a regalarse com ela. Os esticos e neoplatni-cos do perodo do Helenismo porfiaram nesta arte, como j o haviam feito os sofistas e os retores da poca de Plato. ? de novo, como antigamente, tornou-se a utilizar a investigao lingstica e a etimologia como veculos de interpretao. No reino dos fantasmas e dos demnios, assim como no da mitologia superior, parecia voltar a confirmar-se a palavra fustica: aqui se acreditou que a essncia de cada configurao mtica pudesse ser lida diretamente a partir de seu nome. A idia de que o nome e a essncia se correspondem em uma relao intimamente necessria, que o nome no s designa, mas tambm esse mesmo ser, e que contm em si a fora do ser, so algumas das suposies fundamentais dessa concepo (Anschauung) * mtica, suposies que a prpria pesquisa filosfica e cientfica tambm parecia aceitar. Tudo aquilo que no prprio mito intuio imediata e convico vivida, ela converte num postulado do pensar reflexivo para a cincia da mitologia; ela eleva, em sua prpria esfera, ao nvel de exigncia metodolgica a ntima relao entre o nome e a coisa, e sua latente identidade.

Este mtodo foi-se aprofundando e aperfeioando atravs da histria da investigao mitolgica, da histria da filologia e da cincia da linguagem. Do rude instrumento que era nas mos da sofistica e das etimologias ingnuas da Antigidade e Idade Mdia, veio a alcanar a agudeza, vigor e amplitude filolgica, caractersticas de abrangedora viso espiritual que hoje admiramos nos mestres da filologia clssica atual. Basta confrontar a anlise dos "nomes divinos", tal como a realiza com ironia exagerada, mas ajustando-se ao ideal da verdadeira "explicao" de seu tempo, o Crtilo platnico, com a obra fundamental de Usener, Os Nomes Divinos, para perceber, de modo bem claro e palpvel, a distncia existente entre as duas atitudes espirituais e entre seus mtodos. Sem dvida, ainda o sculo XIX aceita teorias sobre a relao entre a lin-

* Em vista das numerosas acepes que a palavra tem em alemo, de seu emprego constante no texto e do sentido que o termo "intuio" assumiu em portugus, Anschauung ser traduzido tambm por "concepo", "percepo", "intuio" e "viso". (N. dos T.)

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guagem e o mito que lembram manifestamente os velhos mtodos da sofistica grega.

Entre os filsofos, foi especialmente Spencer quem tentou provar a tese de que a venerao mtico-religiosa dos fenmenos naturais, como o Sol e a Lua, tinha sua origem somente numa falsa interpretao dos nomes conferidos a este tipo de fenmeno. Entre os fillogos, foi Max Mller quem empregou a anlise filolgica no s como um meio para revelar a natureza de certos seres mticos, sobretudo no mbito da religio vdica, mas tambm como ponto de partida para sua teoria geral da conexo entre a linguagem e o mito. O mito no , para ele, nem a transformao da histria em lenda fabulosa, nem uma fbula aceita como histrica; e, tampouco, surge diretamente da contemplao das grandes configuraes e poderes da natureza. Tudo a que chamamos de mito, , segundo seu parecer, algo condicionado e mediado pela atividade da linguagem: , na verdade, o resultado de uma deficincia lingstica originria, de uma debilidade inerente linguagem. Toda designao lingstica essencialmente ambgua e, nesta ambigidade, nesta "paronmia" das palavras, est a fonte primeva de todos os mitos.

Os exemplos que Max Mller utiliza para defender sua teoria so caractersticos deste tipo de interpretao. Lembra de algum modo a lenda de Deucalio e Pirra, que, depois de salvos por Zeus do grande dilvio que exterminou o gnero humano, converteram--se nos progenitores de uma nova raa, ao atirarem por sobre os ombros pedras que se transformavam em seres humanos. Tal origem dos homens, a partir da pedra, algo simplesmente incompreensvel, e parece. resistir a toda interpretao; mas ela no seria imediatamente concebvel se recordssemos que, em grego, os homens e as pedras se designam pelos mesmos nomes, ou pelo menos, de som semelhante; que as palavras ?a?? e ?aa? se evocam por sua consonncia? Para responder a esta pergunta, temos de recorrer etimologia, ou seja, devemos investigar a histria da palavra. Dafne pode ser reportada palavra Ahan, que em snscrito significa "aurora". A partir do momento que sabemos disto, tudo se esclarece. A histria de Febo e Dafne

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no seno uma descrio do que se pode observar todos os dias: primeiro, a apario da aurora (Dafne) no cu do Oriente, logo depois a do deus Sol (Apoio = Febo), que corre atrs de sua amada; depois o paulatino empalidecer da luminosa aurora ao contato dos ardentes raios solares e, ao fim, a morte e desapario no regao de sua me, a Terra. O decisivo no desenvolvimento do mito no foi, portanto, o prprio fenmeno, mas sim, o fato de que a palavra grega loureiro (d?f ??) se assemelhava palavra snscrita para designar aurora (Ahan). ? isto implica, devido a uma espcie de necessidade ineludvel, na identificao dos seres que tais palavras designam. "A mitologia assim reza a concluso a que Max Mller chega inevitvel, uma necessidade inerente linguagem, se reconhecemos nesta a forma externa do pensamento: a mitologia , em suma, a obscura sombra que a linguagem projeta sobre o pensamento, e que no desaparecer enquanto a linguagem e o pensamento no se superpuserem completamente: o que nunca ser o caso. Indubitavelmente, a mitologia irrompe com maior fora nos tempos mais antigos da histria do pensamento humano, mas nunca desaparece por inteiro. Sem dvida, temos hoje nossa mitologia, tal como nos tempos de Homero, com a diferena apenas de que atualmente no reparamos nela, porque vivemos sua prpria sombra e porque, ns todos, retrocedemos ante a luz meridiana da verdade. Mitologia, no mais elevado sentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento, e isto em iodas as esferas possveis da atividade espiritual" 1. Poderia parecer suprfluo remontar a tais concepes, de h muito abandonadas pelas atuais investigaes etimolgicas e de mitologia comparada, se no se tratasse de um enfoque tpico, que sempre se repete em todos estes domnios, tanto na mitologia como nos estudos da linguagem e tanto na teoria da arte como na do conhecimento. Para Max Mller, o mundo mtico essencialmente um mundo de iluso e de uma iluso que s explicvel se se descobre o original e 1. Max Mller, ber die Philosophie der Mythologie, reimprwso como apndice edio alem da Introduo Cincia da Religio Comparada, 2 ed., Estrasburgo, 1876. 19

necessrio auto-engano do esprito, do qual decorre o erro. Este autoengano est enraizado na linguagem, que prega sempre peas ao esprito, enredando-o por vezes naquela ambigidade cambiante de significaes que sua herana. ? esta concepo de que o mito no se baseia numa fora positiva de configurao e criao, mas antes em um defeito do esprito j que nele devemos achar uma influncia "patolgica" da linguagem encontra ainda representantes e portavozes na moderna literatura etnolgica2.

Na realidade, porm, se tentamos retroceder at suas razes filosficas, esta atitude se reduz simples afirmao daquele realismo ingnuo, para o qual a realidade das coisas algo direta e inequivocamente dado, e seria, literalmente, algo tangvel, "ap??? ta? ? ?e????" *, como diz Plato. Se o real concebido desta forma, compreensvel que tudo aquilo que no possua tal espcie de realidade sliJi se. dissolva necessariamente em mera iluso e fraude. Por mais fino que seja o fio desta aparncia e por mais multicores e agradveis que sejam suas imagens, tal aparncia continuar a no possuir um contedo autnomo, nem qualquer significao intrnseca. Com efeito, ela reflete algo real, mas uma realidade cuja medida jamais pode dar e que nunca capaz de reproduzir adequadamente. Segundo tal ponto de vista, toda plasmao artstica ser tambm mera reproduo, que permanecer sempre e necessariamente retaguarda do original. E, em ltima instncia, atingida por este veredicto no s a simples cpia de todo modelo dado sensorialmente, mas tambm tudo o que se conhece como idealizao, maneira ou estilo, pois a prpria idealizao, medida pela simples "verdade" daquilo que se quer representar, no passa de distoro subjetiva e desfigurao. Analogamente, parece que qualquer processo de enformao espiritual implica a mesma distoro violenta, o mesmo abandono da essncia da realidade objetiva e das realidades imediatas da vivncia. Isto porque nenhum processo desta ordem chega a captar a prpria realidade, tendo

2. Assim, por exemplo, B. Brinton, Religlons o) Primitive PeopUs, Nova Iorque e Londres, 1907, pp. 115 e ss. * "Ao alcance da mo". (N. dos T.)

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que, para represent-la, poder ret-la de algum modo, recorrer ao signo, ao smbolo. ? todo signo esconde em si o estigma da mediao, o que o obriga a encobrir aquilo que pretende manifestar. Assim, os sons da linguagem se esforam para "expressar" acontecer subjetivo e objetivo, o mundo "interno" e "externo"; mas o que retm no so a vida e a plenitude individual da prpria existncia, mas apenas uma abreviatura morta. Toda essa "denotao" que pretende dar s palavras faladas, no vai, na verdade, alm da simples "aluso", aluso que deve parecer mesquinha e vazia diante da concreta multiplicidade e totalidade da percepo real.

? isto vlido tanto para o mundo externo como para o mundo do eu: "Quando fala a alma, ah, ento j no fala a alma". (Schiller)

Daqui, s um passo at as concluses da moderna crtica ctica da linguagem, ou seja, at a completa dissoluo do presumido verdadeiro contedo da linguagem e o reconhecimento de que este contedo lingstico no seno uma espcie de fantasmagoria do esprito. Ainda mais, por este critrio, no s o mito, a arte e a linguagem, mas at o prprio conhecimento terico chegam a ser mera fantasmagoria, pois nem este pode refletir a autntica natureza das coisas tais como so, devendo delimitar sua essncia em "conceitos". Mas, o que so os conceitos seno formaes e criaes do pensar, que, em vez da verdadeira forma do objeto, encerra antes a prpria forma do pensamento? Conseqentemente, tambm os esquematismos criados pelo pensamento terico a fim de, por seu intermdio, peneirar, dividir e examinar o ser, a realidade do fenmeno, no passam, no final, de meros esquemas, etreas tessituras do esprito, em que se expressa, no tanto a natureza das coisas, como a do prprio esprito. Assim, tanto o saber, como o mito, a linguagem e a arte, foram reduzidos a uma espcie de fico, que se recomenda por sua utilidade prtica, mas qual no podemos aplicar a rigorosa medida da verdade, se quisermos evitar que se dilua no nada.

Contra esta autodestruio do esprito no resta seno um remdio: aceitar com toda seriedade o que

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Kant chamou de "revoluo coperniciana". Em lugar de medir o contedo, o sentido e a verdade das formas intelectuais por algo alheio, que deva refletir-se nelas mediatamente, cumpre descobrir, nestas prprias formas, a medida e o critrio de sua verdade e significao intrnseca. Em lugar de tom-las como meras reprodues, devemos reconhecer, em cada uma, uma regra espontnea de gerao, um modo e tendncia originais de expresso, que algo mais que a mera estampa de algo de antemo dado em rgidas configuraes de ser. Deste ponto de vista, o mito, a arte, a linguagem e a cincia aparecem como smbolos: no no sentido de que designam na forma de imagem, na alegoria indicadora e explicadora, um real existente, mas sim, no sentido de que cada uma delas gera e par-teja seu prprio mundo significativo. Neste domnio, apresenta-se este autodesdobramento do esprito, em virtude do qual s existe uma "realidade"; um Ser organizado e definido. Conseqentemente, as formas simblicas especiais no so imitaes, e sim, rgos dessa realidade, posto que, s por meio delas, o real pode converter-se em objeto de captao intelectual e, destarte, tornar-se visvel para ns.

No cabe ventilar aqui a questo relativa ao que o existente (Seiende) em si, fora destas formas da visibilidade e do tornar visvel, e como pde ser criado. Pois, para o esprito, s visvel o que se lhe oferece em configurao definida, e cada configurao determinada de ser tem sua origem em um determinado modo e espcie do ver, em uma atribuio de forma e significado ideacionais. Uma vez reconhecidas; a linguagem, o mito, a arte e a cincia como tais formas de ideao, a questo filosfica bsica no mais o modo como todas estas formas se relacionam com um ser absoluto que constitui, por assim dizer, o cerne in-transparente que se encontra por trs delas, mas sim o modo pelo qual, agora, elas se inteiram e condicionam mutuamente. Ainda que todas cooperem orgnicamen-te na construo da realidade espiritual, cada um destes rgos possui, sem dvida, sua funo e trabalho prprios e individuais. Surge, assim, a tarefa de des-

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crever tais esforos, no s em sua simples justaposio, mas de compreend-los em sua imbricao, de entend-los em sua relativa dependncia, bem como em sua relativa independncia. A partir deste ponto de vista, a conexo entre a linguagem e o mito surge imediatamente sob nova luz. No se trata, agora, de simplesmente derivar um destes fenmenos do outro e assim "explicar" um por meio do outro, pois esta espcie de explicao eqivaleria a nivel-los, despojando-os de seu teor peculiar. Se o mito, segundo a teoria de Max Mller, no seno a obscura sombra que a linguagem projeta sobre o pensamento, no se compreende ento como essa sombra torna sempre a revestir-se com o esplendor de sua prpria luz, como pode desenvolver uma vitalidade e atividade inteiramente positivas, diante do que retrocede o que costumamos chamar de realidade imediata das coisas, diante do que at mesmo empalidece a plenitude da existncia sensvel, empiricamente dada. Como disse Wilhelm von Humboldt, referindo-se linguagem: "O homem vive com seus objetos fundamental e at exclusivamente, tal como a linguagem lhos apresenta, pois nele o sentir e o atuar dependem de suas representaes. Pelo mesmo ato, mediante o qual o homem extrai de si a trama da linguagem, tambm vai se entretecendo nela e cada linguagem traa um crculo mgico ao redor do povo a que pertence, crculo do qual no existe escapatria possvel, a no ser que se pule para outro"3. Isto vale para as representaes mticas da humanidade, talvez numa proporo ainda maior do que para a linguagem. Tais representaes no so extradas de um mundo j acabado do ser; no so meros produtos da fantasia, que se desprendem da firme realidade emprico-positiva das coisas, para elevar-se sobre elas, como tnue neblina, mas sim, representam para a conscincia primitiva, a totalidade do Ser. A apreenso e interpretao mticas no se associam posteriormente a determinados elementos da existncia emprica; ao contrrio, a prpria "experincia" primria 3. W. von Humboldt, Einleitung zum Kawi-Werk, S. W. (edio acadmica), VII, 0.

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est impregnada, de ponta a ponta, deste configurar de mitos e como que saturada de sua atmosfera. O homem s vive com as, coisas na medida em que vive nestas configuraes, ele abre a realidade para si mesmo e por sua vez se abre para ela, quando introduz a si prprio e o mundo neste mdium til, no qual os dois mundos no s se tocam, mas tambm se inter-penetram.

Por conseguinte, s pode permanecer insuficiente e unilateral toda teoria que cr ter descoberto as razes do mito, ao indicar determinado crculo, de onde le teria sado originalmente e a partir do qual teria continuado a expandir-se. H. como sabemos, uma profuso de tais explicaes, uma multivariedade de teorias sobre o verdadeiro cerne e origem da formao mtica que, em si, mal chegam a ser menos variegadas que o prprio mundo emprico dos objetos. ? todas pretendem encontr-lo, ora em determinados estados e experincias psquicas, sobretudo nas experincias onricas, ora na contemplao do ser natural e, neste ltimo mbito, a observao dos objetos da natureza, o sol, a lua, as estrelas, volta a separar-se da dos grandes processos da natureza, tais como se nos apresentam nas tempestades, relmpagos e troves. H, pois, a tentativa sempre renovada de interpretar a mitologia da alma ou a da natureza, do sol, da lua ou das tor-mentas, como a mitologia simplesmente.

No entanto, mesmo aceitando que uma destas tentativas haja logrado xito, isto no resolveria o verdadeiro problema que a filosofia tem para apresentar mitologia, mas o levaria apenas a retroceder um s passo. Pois a enformao mtica como tal no pode ser compreendida nem discernida, a no ser que nos mostrem o objeto sobre o qual se realiza imediata e originariamente. e continua sendo o mesmo milagre do esprito e o mesmo enigma, quer abranja este ou aquele contedo do Ser, quer se refira interpretao ou plasmao de processos psquicos ou de objetos fsicos ou, no quadro destes, a este ou aquele objeto em especial. Ainda que fosse possvel reduzir toda a mitologia mitologia astral ento precisamente isto que o mito apreende nas estrelas, isto que ele enxerga

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imediatamente nelas, bem diverso daquilo que tais astros apresentam percepo e observao empricas, ou que representam ao pensar terico e "explicao" cientfica dos fenmenos naturais. Descartes afirmou que a cincia terica permanece sempre a mesma, em sua natureza e essncia, seja qual for o objeto a que se refira, assim como a luz solar permanece sempre a mesma, por mais numerosos e diversos que sejam os objetos por ela iluminados. Algo idntico podemos dizer de qualquer forma simblica da linguagem, assim como da arte ou do mito, j que cada uma delas uma espcie parte do ver e abriga, em seu ltimo, um foco de luz prprio e peculiar.

A funo do ver, esse despontar da luz espiritual, nunca pode, na verdade, derivar realisticamente das prprias coisas, nem pode ser compreendida a partir do que foi visto. Pois no se trata daquilo que aqui entrevisto, mas da prpria direo original da vista. Se entendermos o problema sob este ngulo, no parece que estejamos nos aproximando de fato da soluo, mas apenas nos afastando, mais do que nunca, de qualquer possibilidade de resolv-lo. Pois agora, a linguagem, a arte e a mitologia se nos afiguram como autnticos protofenmenos do esprito, que podem, na verdade, ser apresentados como tais, mas no "explicados", isto , reportados a algo que no eles. A viso realista do mundo conta sempre, como firme substrato de semelhante explicao, com a realidade dada, a qual ela pressupe estar em alguma construo definida, em uma estrutura determinada. Aceita esta realidade como um todo integrado de causas e efeitos, de coisas e propriedades, de estados e processos, de configuraes estticas e em movimento, e s pode perguntar-se qual destes componentes foi captado primeiro por uma determinada forma espiritual, pelo mito, pela linguagem ou pela arte. Se se tratar, por exemplo da linguagem, caber averiguar se a designao das coisas precedeu a das condies e das aes, ou vice-versa; em outras palavras, se o pensar lingstico apreendeu primeiro as coisas ou os processos e, por conseguinte, se formou primeiro "razes" nominais ou verbais. Mas tal for-

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mulao do problema deixa de ter sentido, to logo compreendemos que as diferenciaes aqui pressupostas, isto , a articulao do mundo da realidade em coisas e em processos, em aspectos permanentes e transitrios, em objetos e em processamentos, no constitui a base para a formao da linguagem como um fato dado, mas a prpria linguagem que conduz a tais articulaes e as desenvolve na sua prpria esfera. Da resulta, pois, que a linguagem no pode comear por uma fase de puros "conceitos nominais", nem de puros "conceitos verbais", porquanto ela prpria que produz a distino entre ambos e provoca a grande "crise" espiritual, em que o permanente se contrape ao transitrio e o ser, ao devir. Assim, os conceitos lingsticos primitivos, desde que se admita a sua possibilidade, devem ser compreendidos como anteriores e no posteriores a esta separao, como se contives-sem configuraes de certo modo suspensas entre a esfera nominal e verbal, entre a expresso da coisa e do processo ou da atividade, num peculiar estado de indiferena. Uma indiferena anloga tambm parece caracterizar as formaes mais primitivas, pelo menos at o ponto em que nos possvel remontar pelo curso evolutivo do pensamento mtico e religioso. Temos como natural e evidente que o mundo se divida, para a nossa percepo e contemplao, em configuraes individuais incisivamente delineadas, cada qual dotada de limites espaciais perfeitamente determinados e, por seu intermdio, de sua individualidade especfica. Apesar de as vermos como um todo, este todo se compe de unidades claramente distintas, que no se misturam entre si, mas possuem cada uma sua peculiaridade, que se aparta nitidamente da peculiaridade das demais. Para a viso mtica, porm, nem sequer estes elementos singulares so dados separadamente desde o incio, mas ela deve conquist-los ao todo, sucessiva e paulatinamente. Por isso, a apreenso mtica foi chamada de apreenso "complexa", para melhor distingui-la de nosso1 modo de ver analticoabstrato. Preusjs, que cunhou

4. Pormenores a esse respeito encontram-se em minha Philosophie der Symbolischen Formen, vol. 1: "Die Sprache", pp. 228 e ss,

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a citada expresso, assinala, por exemplo, em sua minuciosa pesquisa e exposio da mitologia dos ndios coras, que a percepo do cu noturno e diurno como um todo deve ter precedido a do sol, da lua e de algumas constelaes. A primeira concepo mtica afirma o autor no foi aqui a de uma deidade lunar ou solar, mas sim, a de uma comunidade de astros, da qual procediam, por assim dizer, os primeiros impulsos mticos. " verdade que o deus solar ocupa o lugar privilegiado na hierarquia dos deuses, mas ele ... representado pelos diversos deuses astrais. Estes o precedem no tempo e so seus criadores, pois, quando algum se atira ao fogo ou nele lanado, sua fora de atuao por eles influenciada, e sua vida conservada artificialmente, sendo alimentado com os coraes das vtimas sacrificadas, ou seja, com as estrelas. O cu noturno estrelado a condio prvia para a existncia do sol. Nisto consiste o significado de toda a concepo religiosa dos coras e dos primitivos mexicanos, devendo ser considerado como fator principal no desenvolvimento ulterior de sua religio5. ? esta mesma funo que se atribui aqui ao cu noturno parece corresponder, na crena das raas indo--germnicas, ao luminoso cu diurno. A lingstica comparada nos revela uma fase primitiva do sentir e do pensar religioso dos indo-germanos, em que se teria adorado o cu diurno em si como deidade mxima; assim sendo, ao Dyaush-pitar vdico correspondem, segundo conhecida similaridade lingstica, o ? e?? pat?? * grego, o Jpiter latino, o Z/o ou Tiu germnico6. Porm, mesmo deixando de lado este fato, as religies indo-germnicas confirmam, em vrios de seus vestgios, a hiptese de que a adorao da luz, como um todo indiviso, precedeu a dos astros isolados, que s figuram como portadores da luz, como suas manifestaes particulares. No Avesta, por exemplo, Mitra no um deus solar, conforme ser considerado em *. C. Preuss, Die Nayarit-Expedition I: Die Religion der Cora Indianer, Leipzig, 1912, S. L. Cf. tambm Preuss, Die geistige Kultur der Naturvlker, pp. 9 e ss. Zeus pater. (N. dos T. 6. Quanto ao justo fundamento desta "igualdade" Iingsticomtca, que recentemente foi na realidade muitas vezes impugnado, ver, por exemplo, Leop, v. Schroeder, Arische Religion, Leipzig, 1914, ?, ??. 300 e ss. 27

pocas posteriores, mas sim o gnio da luz celestial. Desponta sobre os picos das montanhas antes que o sol, para subir em sua carruagem que, puxada por quatro corcis brancos, atravessa os espaos celestes no decorrer de todo o dia; e quando cai a noite, ele, o sempre vigilante, continua alumiando a face da terra com resplendor difuso. Este ser no fica explicitamente dito nem o sol, nem a lua, nem tampouco as estrelas, mas atravs deles, que so seus mil ouvidos e dez mil olhos, tudo percebe e vela sobre o mundo'. Aqui se nos apresenta um exemplo bastante concreto de como a interpretao mtica s capta origina-riamente o grande antagonismo qualitativo bsico entre luz e sombra, e de como os manipula como uma nica essncia, como um todo complexo, do qual s paulatinamente iro emergindo configuraes particulares. Do mesmo modo que a conscincia lingstica, a conscincia mtica s diferencia configuraes isoladas individuais medida que vai colocando progressivamente essas diferenas, medida que as vai "segregando" da unidade indiferenciada de uma percepo originria. Este discernimento da funo determinante e dis-criminativa que o mito, assim como a linguagem, desempenha na construo espiritual de nosso mundo objetual, parece, na verdade, esgotar tudo o que uma "filosofia das formas simblicas" nos pode ensinar. A filosofia, como tal, no podec ir mais longe, nem tampouco pode atrever-se a nos apresentar in concreto o grande processo de separao, nem delimitar entre si cada uma de suas fases. Mas, se a filosofia precisa contentarse com uma determinao terica geral do esboo deste desenvolvimento, a filologia e a mitologia comparadas podem, talvez, completar este mero esboo e traar, com linhas firmes e precisas, o que a especulao filosfica s capaz de insinuar. Um primeiro passo promissor nesta direo foi realizado por Hermann Usener, na sua obra Os Nomes Divinos. Deu a seu trabalho o seguinte subttulo: "Ensaio para uma teoria da concepo religiosa", si-tuando-o assim definitivamente na esfera conjunta dos 7. Yasht, X, 145: Yasna I, ii (35); cf. Cumont, Textes et Monuments figures relatifs aux Mystres de Mithra, Bruxelas, 1899, I, p. 225.

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problemas filosficos e da sistemtica filosfica. Uma histria das figuraes dos deuses, de sua sucessiva apario e de seu desenvolvimento peculiar entre os diversos povos julga ele no pode servir de meta alcanvel, coisa que s uma histria das representaes o pode fazer. Estas representaes, por mais policrmicas, variadas e heterogneas que possam parecer primeira vista, possuem suas prprias leis internas; no surgem de um capricho desenfreado da faculdade de imaginao, mas avanam pelos caminhos bem definidos do sentimento e do pensamento configurador. A mitologia prope-se a revelar esta lei intrnseca; ela o estudo (????? do mito ou a morfologia da representao religiosa8. Para esta enorme tarefa, Usener no parece, na verdade, esperar qualquer ajuda da filosofia que recebe, nesta conexo, uma recusa incisiva e inequvoca. "Nossos filsofos observa o autor em sua divina superioridade sobre o histrico, tratam da formao do conceito e da concentrao do singular na espcie e no gnero como um processo evidente e necessrio do esprito humano. Esquecem que, para alm do domnio da prevalente teoria da lgica e do conhecimento, houve longos perodos de desenvolvimento, em que o esprito humano foi abrindo, pouco a pouco, caminho para o conceber e o pensar, encontrando-se, ento, sob leis essencialmente distintas da representao e da linguagem. Nossa epistemologia carecer do necessrio alicerce real at que a cincia lingstica e a mitologia tenham aclarado os processos da representao espontnea e inconsciente. O salto entre a percepo especfica e os conceitos genricos muito maior do que nos permitem supor nossas noes escolares e esta nossa linguagem que pensa por ns. to grande que no chego a imaginar quando e como pode o homem realiz-lo, se a prpria linguagem, sem que o homem se desse conta, no tivesse preparado e conduzido todo este processo. A linguagem que, dentre a massa de expresses individuais equivalentes, aos poucos produz uma expresso, que logo estende seu domnio sobre um nmero sempre crescente de casos, at

8. Usener, GStternamen. Versuch einer Lehre von der religisen Be-griffsbildung, Bonn, 1896, p. 330; cf. esp. pp. V e ss.

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que, por fim, se presta a abranger todos eles e pode tomar-se conceito genrico" (p. 321).

Esta objeo contra a filosofia mal poderia admitir outra razo mais convincente, pois quase todos os grandes sistemas filosficos com a nica exceo, talvez, do sistema platnico esqueceram praticamente de criar aquela "infra-estrutura" da epistemologia terica, cuja necessidade absoluta Usener assinala. Portanto, aqui o fillogo, o pesquisador da linguagem e da religio, que props filosofia um novo problema, a partir do problema de suas prprias indagaes. ? Usener no s indicou um novo caminho, mas tambm soube trilh-lo resolutamente, ao utilizar os instrumentos proporcionados pela histria da linguagem, pela anlise exata das palavras e, sobretudo, pela dos nomes dos deuses. Cabe perguntar se a filosofia, que no dispe de tais instrumentos, pode abordar o referido problema, que lhe foi apresentado pelas cincias do esprito, e quais so os recursos intelectuais que aplica neste caso. Existe outra via, que no a da prpria histria da linguagem e da religio, para nos adentrarmos na origem dos conceitos primrios, tanto lingsticos quanto religiosos? Ou, neste ponto, coincide a introviso na gnese histrica e psicolgica de tais conceitos com a introviso na essncia espiritual, nos seus significados e funes fundamentais?

Com respeito a esta questo, pretendo obter uma resposta nas pginas subseqentes. Tomarei o problema de Usener da forma como ele o colocou, mas tentarei abord-lo por outro ngulo e acomet-lo com outros meios, que no sejam os da lingstica e da filologia. O prprio Usener indicou a justeza e at a necessidade de semelhante abordagem, no momento em que formulou seu problema bsico, no como um simples tema da histria lingstica e da histria intelectual, mas tambm como um tema da lgica e da epistemologia. Subjacente a isto encontra-se aqui o pressuposto de que as duas disciplinas tambm possam manejar o problema da formao mtica e lingstica,

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e que tenham de trat-lo com seus prprios recursos. S atravs desta ampliao, desta aparente transposio do crculo usual das tarefas da lgica, poder esta cincia consignar nitidamente a sua prpria determinao, e a esfera do conhecimento terico puro poder ento delimitar-se claramente em face de outros campos do ser espiritual e da enformao espiritual.

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II

A EVOLUO DAS IDIAS RELIGIOSAS

Antes de encetarmos a tarefa, devemos considerar os fatos isolados que as investigaes histrico-lingsticas e religiosas de Usener trouxeram luz, visando conseguir assim um firme apoio para nossas interpretaes e construes tericas. Na formao e plasma-o dos conceitos dos deuses, que ele persegue pela via das nomenclaturas divinas, Usener distingue trs fases principais de desenvolvimento. A mais antiga camada discernvel do pensar mtico caracteriza-se pela criao dos "deuses momentneos". Estes no personificam qualquer fora da Natureza, no representam nenhum aspecto especial da vida humana e, menos ain-

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da, fixa-se neles qualquer trao ou teor iterativo, que se transforme em uma imagem mtico-religiosa estvel; pelo contrrio, trata-se de algo puramente momentneo, de uma excitao instantnea, de um contedo mental que emerge fugaz e torna a desaparecer com rapidez anloga que, ao se objetivar e descarregar externamente, cria a configurao do "deus momentneo".

Assim, cada impresso que o homem recebe, cada desejo que nele se agita, cada esperana que o atrai e cada perigo que o ameaa, pode vir a afet-lo religiosamente. Quando sensao momentnea do objeto colocado nossa frente, situao em que nos encontramos, ao dinmica que nos surpreende, outorgado o valor e o acento de deidade, ento esse "deus momentneo" experienciado e criado. Ele se ergue diante de ns com sua imediata singularidade e particularidade, no como parte de uma fora suscetvel de se manifestar aqui e acol, em diferentes lugares do espao, em diferente^ pontos do tempo e em diferentes sujeitos, de maneira multiforme e no entanto homognea, mas sim, como algo que s existe presentemente aqui e agora, num momento indivisvel do vivenciar de um nico sujeito, a quem inunda com esta sua presena e induz em encantamento. Usener mostrou, com exemplos da literatura grega, o quanto ainda era vivo entre os helenos do perodo clssico este sentimento religioso bsico e primitivo, e como volveu a ser eficaz algumas vezes. "Por causa desta vivacidade e excitabilidade do sentimento religioso, qualquer conceito, qualquer objeto que por um instante dominasse todos os pensamentos, podia ser exaltado, independentemente da hierarquia divina: Inteligncia, Razo, Riqueza, Casualidade, o Instante Decisivo, Vinho, a Alegria do Festim, o Corpo de um Ser Amado... Tudo o que nos vem repentinamente como envio do cu, tudo o que nos alegra, entristece ou esmaga, parece um ser divino para o sentimento intensificado. At onde pode remontar nosso conhecimento dos gregos, contam eles para expressar tais experin cias com o conceito genrico da?? ? * (pp. 290 e ss.).

Daimon. (N. dos T.)

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Acima destes demnios momentneos que vm e vo, aparecendo e desaparecendo como as prprias emoes subjetivas que os originam, ergue-se agora uma nova srie de divindades, cujas fontes no residem no sentimento momentneo, mas no atuar ordenado e duradouro do homem. medida que avana o desenvolvimento espiritual e cultural, tanto mais a atitude passiva do homem diante do mundo externo transforma-se em ativa. O homem deixa de ser simples joguete de impresses externas e intervm com querer prprio no acontecer, a fim de regulament-lo segundo suas necessidades e desejos. Esta regulao contm sua prpria medida e sua prpria periodicidade: consiste no fato de, em intervalos definidos, em ciclos uniformes, se repetirem dia a dia, ano a ano, a mesma srie de atividades humanas, s quais se liga o mesmo e invarivel efeito. Mais uma vez, porm, o eu s pode trazer conscincia este seu atuar de agente, como antes o seu sofrer de paciente, projetando-o para fora e colocando-o diante de si em firme configurao visvel. Cada direo particular desta atuao humana gera seu correspondente deus particular. Tambm estas divindades, que Usener chama de "deuses especiais" (Sondergtter), ainda no possuem, por assim dizer, uma funo ou significao geral; ainda no penetram o ser em toda sua amplitude e profundidade, permanecendo limitados a um seu setor, a um crculo muito determinado. Mas, em suas esferas respectivas, tais deuses ganharam determinao e durao, tendo com isto tambm alcanado certa universalidade. Por exemplo, o deus padroeiro da escarificao, o deus Occator, no s preside a lavra em determinado ano e o cultivo deste ou daquele campo, mas outrossim o deus das semeaduras em geral, a quem toda a comunidade invoca anualmente como protetor e guardio, quando se reinicia a faina campestre. Representa, assim, uma tarefa agrcola especial, talvez mesmo humilde, mas a representa em toda sua validade (p. 280).

Usener demonstra, atravs dos chamados deuses de indigitamento dos romanos, quo rica e diversificada-mente se expandira este tipo de "deus especial" na religio de Roma. O amanho da terra em repouso, assim

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como a segunda arao, a semeadura, a extirpao do joio, a ceifa dos cereais, assim como sua colheita e armazenamento nos celeiros, tudo isto tem aqui o seu "deus especial". ? nenhuma dessas tarefas pode lograr xito se o homem no invoca o deus apropriado, segundo as regras prescritas e por seu nome exato. Usener descobriu na tradio religiosa lituana a mesma articulao tpica do panteo popular, de acordo com os diferentes domnios de atividade. Da, assim como de outras descobertas similares na histria da religio grega, concluiu que as figuraes e nomes de tais deuses especiais aparecem em toda a parte, de modo essencialmente anlogo, em certos estgios' do desenvolvimento religioso. Representam um ponto de passagem necessrio que a conscincia religiosa deve atravessar para chegar a seu objetivo ltimo e supremo: a conformao dos deuses pessoais.

Mas, de acordo com Usener, a trajetria percorrida para atingir tal objetivo pode ser iluminada unicamente pela histria da linguagem, "pois a condio necessria para o surgimento dos deuses pessoais um processo histrico-lingstico" (p. 316). Onde quer que se conceba pela primeira vez um deus especial, onde quer que ele se erga como uma configurao determinada, esta configurao investida de um nome especial, derivado do crculo de atividade particular que deu origem ao deus. Enquanto este nome for compreendido, enquanto for percebido em sua significao originria, suas limitaes ho de estar em correspondncia com as do deus; atravs de seu nome, um deus pode ser mantido duradouramente no estreito domnio para o qual foi, na sua origem, criado. Algo bastante diverso ocorre quando, ou por alterao fontica, ou por desuso da raiz da palavra correspondente, a denominao do deus perde sua inteligibilidade, sua conexo com o tesouro vivo da linguagem. Ento o nome no mais desperta na conscincia daqueles que o expressam ou ouvem, a idia de uma atividade singular qual a do sujeito por ele denominado permanea circunscrito de modo exclusivo. Tal nome tornou-se nome prprio, o que implica, como o prenome de uma pessoa, a pensar uma determinada personalidade. Constitui-se,

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destarte, um novo Ser, que continua a evolver de conformidade com suas prprias leis. O conceito de deus especial, qu expressa mais um certo fazer do que um certo ser, s ento ganha corporeidade e, em certa medida, sua prpria carne e sangue. Este deus, agora, capaz de agir e sofrer como uma criatura humana; atua de diferentes maneiras e, em vez de consumir-se em uma atividade singular, enfrenta-a como sujeito autnomo. Os mltiplos nomes divinos, que antes serviam para designar outros tantos deuses singulares, nitidamente separados entre si, concentram-se agora na expresso do ser pessoal nico, que desta forma surge; convertem-se nos diferentes apelativos deste Ser, e expressam os diferentes aspectos de sua natureza, seu poder e eficincia (pp. 301 e ss., 325 e 330).

O que mais atrai nestes resultados de Usener que procuramos recapitular sucintamente no , em primeiro lugar, puramente o contedo do fruto aqui obtido, mas o mtodo mediante o qual ele o conseguiu. Usener acredita haver atingido o seu resultado por via da pura anlise lingstica; e no se cansa de sublinhar que a investigao das formas lingsticas nas quais se sedimentam as diversas representaes religiosas, so o fio de Ariadne por cuja virtude exclusivamente podemos alimentar a esperana de encontrar orientao segura no labirinto do pensamento mtico. No h dvida que a dissecao filolgica e etimolgica no seu objetivo nico; serve-lhe apenas de instrumento posto a servio de um problema que mais profundo e extenso. Pois o que importa conhecer e compreender no a transformao histrica dos nomes e configuraes divinas, mas sim, a "origem" desses nomes e figuraes. A reflexo procura retroceder at o ponto em que ambos o deus e o seu nome brotaram primeiramente na conscincia. No entanto, este "brotar" no pensado como algo puramente temporal, no tomado como um irrepetvel processo histrico que se desenrolou em um determinado momento empiricamen-te indicvel, mas tenta-se compreend-lo a partir da estrutura fundamental da conscincia lingstica e mtica, a partir de uma lei geral da formao de conceitos na religio e na linguagem. Aqui, no nos achamos no

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terreno da histria, mas no da fenomenologia do esprito. "Somente atravs do mais compreensivo mergulho nos vestgios espirituais do passado, de tempos desvanecidos j acentua Usener no prefcio de sua obra isto , atravs da investigao filolgica, conseguimos exercitar-nos na arte de sentir com outrem (Nachempfinden); podem, ento, gradualmente, vibrar e cantar em ns certas cordas afins e descobrimos em nossa prpria conscincia os fios que unem o antigo e o moderno. Uma observao e comparao mais fecunda leva-nos ainda mais longe e permite que nos elevemos do caso particular lei geral. Estaria mal arranjada a cincia humana se algum, dedicado pes-( quisa do particular, usasse algemas que o proibissem de aspirar ao geral. Ao contrrio, quanto mais profunda a sondagem, maior ser a recompensa do conhecimento mais geral."

Assim, as investigaes de Usener se movem, j de princpio, no mbito de algumas lnguas isoladas e culturas histricas. Embora extraia quase todo o seu material comprobatrio da histria das religies grega e romana, no deixa todavia subsistir dvida alguma de que estas demonstraes s servem como paradigma para alcanar conexes de carter mais geral. Isto se evidencia com especial clareza quando acrescentamos aos testemunhos recolhidos por Usener os da pesquisa etnolgica dos ltimos decnios. Usener mesmo s utilizou de modo relativamente parcimonioso o material comparativo das culturas e religies primitivas, ainda que reconhea e sublinhe taxativamente que apenas obteve a compreenso de importantes caractersticas bsicas da histria da religio greco-romana, ao valerse de estudos pormenorizados sobre o mundo dos deuses lituanos.

Tambm em mbitos completamente isolados entre si, como o so os das religies americanas e africanas, encontramos paralelismos surpreendentes, que nos permitem confirmar e iluminar as teses fundamentais de Usener, relativas histria e filosofia das religies. Na informao detalhada e cuidadosa sobre & religio dos eveus, publicada por Spieth, existe uma descrio do panteo eveu, que uma ilustrao exemplar da

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fase do desenvolvimento religioso para cuja designao Usener criou o conceito e a expresso "deuses momentneos". No parece, e mal chega a ser provvel, que Spieth recorra no caso a Usener, no tendo sido o telogo e missionrio influenciado de forma alguma pelas teorias do fillogo cssico; do mesmo modo, no conjunto no visa a qualquer tipo de reflexo terica e geral, mas somente simples representao dos fatos observados. Por isso mesmo, tanto maior a nossa surpresa em face do relato que Spieth faz, no s da natureza dos deuses eveus, dos trwo, mas tambm sobre sua origem. "Quando os habitantes da cidade de Dzake, em Peki, se instalaram em seu atual domnio, certo campons, que trabalhava em seu campo, saiu em busca de gua. Enterrou seu faco de mato na terra mida, numa cavidade em forma de gamela. Logo brotou sua frente uma seiva semelhante ao sangue, de que bebeu, e ela o refrescou. Contou o fato a seus prximos e os persuadiu a acompanh-lo e render culto a tal lquido vermelho. Pouco a pouco a gua foi clareando e a famlia toda dela bebeu. A partir desse momento, aquela gua foi tr para seu descobridor e familiares."

" chegada dos primeiros moradores de Anvlo, deram com um homem parado diante de um grande e grosso baob. vista desta rvore, assustara-se. Fora por isto consultar um sacerdote, para que lhe explicasse o fenmeno. Tivera com resposta que "o baob era um tr, desejoso de viver com ele e de ser adorado." O medo fora o sinal atravs do qual aquele homem soubera que um tr se lhe havia revelado. Se algum se refugia de perseguidores, animais ou humanos, junto a uma termiteira, afirmar: "A termiteira me salvou a vida". Algo parecido se d quando um homem se abriga num regato para escapar de um animal ferido e furioso, ou quando uma famlia ou toda uma tribo se protege numa montanha contra o inimigo. Em cada um dos casos, a salvao atribuda a um poder ima-nente ao objeto ou lugar, em que ou devido ao qual se recebe a salvao"9.

9. Spieth, Die Religion der Eweer in Sd-Togo, Leipzig, 1911, pp. 7 e ss. Cf. esp. o trabalho de Spieth sobre as tribos dos eveus, Berlim, 1906, pp. 462, 480, 490. Os exemplos aqui apresentados visam principal-

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O valor de semelhantes observaes para a histria geral das religies consiste antes de tudo no aparecimento de um conceito dinmico da divindade, que substitui os conceitos estticos com que antes se costumava operar, isto , o deus ou demnio j no meramente descrito de acordo com sua natureza e significado, mas tambm rastreada a lei de sua formao. O intuito espreitar sua gnese na conscincia mtico-religiosa, com o fito de assinalar a hora exata de seu nascimento. Se a cincia emprica se defronta com questes desta espcie nos domnios da pesquisa etnolgica e histrico-religiosa, ningum poder negar filosofia o direito de trabalhar em seu meio e procurar ilumin-los, a partir do ponto de vista de seus prprios problemas fundamentais.

mente a enfraquecer a objeo de Wundt, segundo o qual os "deuses momentneos" de Usener seriam postulados lgicos, e no pontos de partida realmente empricos (Votkspsychologie, IV, 561).

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III

LINGUAGEM ? CONCEITUAO

Para compreender a natureza peculiar da conceitua-o mticoreligiosa, no somente por seus resultados, mas tambm em seu princpio e, alm do mais, para ver como a formao dos conceitos lingsticos se relaciona com a dos conceitos religiosos e em que caractersticas essenciais ambas coincidem, necessrio remontar a um passado muito remoto. No devemos temer aqui um rodeio pelos campos da lgica e da epistemologia, pois s a partir destas bases possvel alimentar a esperana de determinar mais precisamente a funo desta classe de ideaes e distingui-las claramente dos conceitos do conhecimento empregados jpelo pensamento terico.

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O prprio Usener sabia que seu problema no tinha apenas um aspecto histrico e filosfico-religioso, mas tambm outro, puramente epistemolgico, pois o que pretende esclarecer com suas pesquisas no seno o antigo problema bsico da lgica e da crtica do conhecimento, a questo relativa aos processos espirituais mediante os quais se opera a elevao do singular ao geral, a passagem das percepes e representaes particulares a um conceito genrico. O fato de que, para alcanar tal aclaramento, veja no somente a possibilidade de uma eventual incurso nos domnios da histria da linguagem e da religio, mas chegue a consider-la necessria, faz supor que no se tenha dado por satisfeito, nem tenha ficado tranqilo, com as explicaes comuns dos estudiosos da lgica, sobre a relao do geral com o particular e singular. De fato, muito fcil caracterizar o que choca, neste tipo de explicao, a todo lingista que procura aprofundar-se na base espiritual da linguagem. O conceito constituise, costumava ensinar a lgica, quando certo nmero de objetos acordantes em determinadas caractersticas e, por conseguinte, em uma parte de seu contedo, reunido no pensar; este abstrai as caractersticas heterogneas, retm unicamente as homogneas e reflete sobre elas, de onde surge, na conscincia, a idia geral dessa classe de objetos. Logo, o conceito ( notio, conceptus) a idia que representa a totalidade das caractersticas essenciais, ou seja, a essncia dos objetos em questo 10.

Nesta explicao, aparentemente to simples e convincente, tudo depende do que se venha a entender por "notas caractersticas" (Merkmale), e de como tais notas foram originariamente determinadas. A formao de um conceito geral pressupe a limitao destas caractersticas; somente quando existem certos traos fixos, mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou dessemelhantes, coincidentes ou no-coincidentes, torna-se possvel reunir em uma classe os objetos similares entre si. Como porm no podemos deixar de nos perguntar po-

10. Cf., por exemplo, berweg, System der Logik, Bonn, 1874, ??. SI e ss.

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dem existir semelhantes notas caractersticas, antes da linguagem, antes do ato da denominao? No seria melhor afirmar que elas so apreendidas por meio da linguagem, no prprio ato de nomelas? Caso se aceite esta ltima suposio, segundo que regras e critrios se desenvolve tal ato? O que induz ou obriga a linguagem a reunir justamente estas representaes numa unidade e design-las com uma determinada palavra? O que a leva a selecionar certas configuraes nas sries sempre fluentes e uniformes de impresses que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontneos da mente, fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma "significao" particular? Logo que se aborda o problema neste sentido, a lgica tradicional abandona o pesquisador ou o filsofo da linguagem, pois a explicao que d sobre o surgimento das representaes gerais e dos conceitos genricos pressupe aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos, ou seja, a formao das noes lingsticas ". O problema se faz ainda mais difcil e urgente, se consideramos que a forma dessa sntese ideacional, que conduz aos conceitos verbais primrios e a determinadas denotaes lingsticas, no prescrita de modo simples e unvoco pelo prprio objeto, mas, ao contrrio, abre um amplo campo de ao para a livre atividade da linguagem e para sua peculiaridade especificamente espiritual. Esta liberdade tambm deve possuir sua regra, este poder original e criativo h de ter tambm sua lei. Mas, pode-se elucidar esta lei? ? como se relacionam com a referida regra os princpios que governam outras esferas da significao ideacional, em especial, as regras da formulao mtica, religiosa, bem como os de nossos conceitos de conhecimento das cincias naturais? Se partimos destes ltimos, possvel demonstrar que todo o trabalho intelectual que o esprito executa ao enfermar impresses particulares em representaes e conceitos gerais, visa essencialmente a rom11. Para maiores detalhes, ver minha obra Philosophie der symbolischen Formen, tomo I, pp. 244 e ss.

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per o isolamento do dado "aqui e agora", para relacion-lo com outra coisa e reuni-lo aos demais numa ordem inclusiva, na unidade de um "sistema". A forma lgica do conceber, sob o ngulo do conhecimento terico no seno o preparo para a forma lgica do ajuizar mas no esqueamos que todo ajui-zamento tende a subjugar e dispersar a aparncia da singularizao que vai aderida a cada contedo particular da conscincia. O fato aparentemente singular conhecido, compreendido e conceituado, somente quando "subsumido" a um universal, quando aceito como o "caso" de uma lei, como membro de uma multiplicidade ou de uma srie. Neste sentido, todo juzo verdadeiro sinttico, pois seu principal propsito e ambio justamente esta sntese da parte em um todo, este urdimento dos particulares em um sistema. Tal sntese no pode realizar-se imediatamente ou de golpe, mas precisa ser elaborada aos poucos, pela atividade progressiva que relaciona as intuies isoladas ou as percepes sensveis particulares, reunindo depois o todo resultante em um complexo relativamente maior, at conseguir, enfim, que a unificao final de todos estes complexos separados produza a imagem coerente da totalidade dos fenmenos. A propenso para esta totalidade o princpio vivificante em nossa conceituao terica e emprica. Da resulta que esta ltima seja necessariamente "discursiva"; isto , que parta de um caso singular mas, ao invs de se demorar na sua contemplao ou de nele mergulhar, simplesmente o considere como ponto de partida, percorrendo ento a gama toda do Ser, nas direes especiais j determinadas e fixadas pelo conceito emprico. No processamento deste percurso, o particular recebe seu "sentido" intelectual fixo e sua determinao. Apresenta-se sob diferentes aspectos, sempre de acordo com os contextos cada vez mais amplos em que includo: o lugar que o objeto mencionado ocupa na totalidade do Ser ou melhor, aquilo que lhe atribudo pelo avano progressivo do pensamento decide de seu teor, de sua significao terica. No so necessrios maiores esclarecimentos para elucidar como este ideal do conhecimento controla a

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edificao da cincia e sobretudo a da fsica matemtica. Todos os conceitos da fsica terica no tm como objetivo seno transformar em um sistema, em um conjunto coerente de leis, a "rapsdia de percepes" com que nos apresentado o mundo sensvel. Cada manifestao particular s se converte em fenmeno, em objeto da "Natureza", quando se submete a esta exigncia, pois "Natureza", no sentido terico da palavra, segundo a definio kantiana, a existncia da cjoisa, na medida em que determinada pelas leis gerais.

Pode parecer, na verdade, que este conceito kantiano concebido de maneira demasiado estreita, que ele falha to logo nosso olhar passa da "natureza" fsica para a biologia e as cincias descritivas da natureza, dos conceitos terico-construtivos das cincias exatas para a natureza "viva". Pelo menos aqui, cada coisa possui seu significado prprio, e no aparece meramente como o caso de uma lei a que se submeta, mas se apresenta como algo individualmente limitado, sendo justamente esta limitao que lhe confere uma existncia significativa. Mas um exame mais cuidadoso nos mostra, tambm aqui, que esta particula-rizao no implica, na verdade, contradio com a generalidade, mas que exige, antes, tal generalidade como seu complemento, como seu suplemento e correlato necessrio.

Obteremos uma idia mais precisa do fato se, por exemplo, tivermos em vista o mtodo do exame goethiano da Natureza: mtodo que se distingue no s porque nele se constata, com a maior clareza e vi-vacidade possvel, um determinado tipo de pensamento natural, mas tambm porque, ao mesmo tempo, consegue reconhecer e exprimir, nessa atividade, a norma interna da natureza. Goethe volta sempre a insistir na necessidade da plena concreo, na plena determinao da contemplao da Natureza, onde cada coisa singular deve ser compreendida e contemplada no contorno preciso de sua figura singular; mas, no com menos agudeza, afirma que o particular est eternamente submetido ao geral por intermdio do qual

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justamente ele constitudo e toma-se inteligvel em sua singularidade. A forma e o carter da natureza viva residem, precisamente, no fato de nada haver em seu mbito que no esteja relacionado com o todo. Goethe assim se pronunciou sobre a lei fundamental que rege sua investigao: "As pesquisas do mundo fsico me levaram convico de que todo exame dos objetos impe o dever superior de procurar precisamente cada uma das condies em que um fenmeno se apresenta e a pensar o fenmeno na maior comple-tude possvel, pois, em ltima instncia, tais condies so compelidas a se justaporem, ou melhor, a se engrenarem, e a constiturem, ao olhar do pesquisador, uma espcie de organizao, a manifestarem toda a sua vida conjunta". Aqui, o geral no aparece, como na fsica matemtica, sob a figura de uma frmula abstrata, mas se destaca como uma "vida conjunta" concreta. No se trata da mera subordinao do caso particular lei, mas de uma "organizao que, relacionando a parte ao todo, percebe simultaneamente a forma do todo na parte. O carter discursivo do pensamento conserva sua vitalidade e efetividade em meio a esta percepo, pois o objeto, em sua determinao e singularizao individual, no se imobiliza simplesmente diante da percepo, mas comea a mover-se diante dela. No representa uma pura e simples configurao, mas se desdobra em sries e variedades de configuraes: apresenta-se sob a lei da "metamorfose". ? esta metamorfose no se interrompe enquanto no for percorrido todo o mbito da observao da natureza. Tal mbito s existe e consiste para o olhar do investigador no fato de ser percorrido pouco pouco na constante justaposio dos casos, que progride de prximo em prximo 12. Neste sentido, Goethe elogia a "mxima" da metamorfose, pois ela o conduziu com xito atravs de todo o domnio do compreensvel e, por fim, at o li12. V. particularmente "Der Versuch als Vermittler von Objekt und Subjekt" (1793), Naturw. Sehr., XI, 21 ss. "Einwirkung der neuen Philosophie", Naturw. Schd., XI, 48. Pormenores a este respeito encontram-se em meu ensaio "Goethe und die mathematische Physik", Idee und Gestalt, 2* ed., Berlim, 1924, pp. 33 e ss. 46

mite do incognoscvel, diante do qual deve conformar--se o esprito humano. Neste tipo de contemplao, cada existente tomado em sua singularidade, mas, tambm, concebido como um "analogon de tudo o que existe", de modo que o estar-a (Dasein) se nos afigura ao mesmo tempo como separado e vinculado. A,forma de intuir no se ope do "deduzir", ambas se interpenetram e fundem. Da Goethe afirmar sobre si mesmo: "... No descansarei enquanto no achar um ponto significativo, do qual muitas coisas possam ser deduzidas ou melhor, que ele prprio as faa brotar de si e as traga ao meu encontro" u.

? assim como os conceitos formais morfolgicos ? biolgicos, os conceitos histricos tambm se acham em ltima instncia sob a mesma lei de nosso pensamento. Procurou-se distinguir tambm o modo "in-dividualizador" da conceituao histrica em face do modo "generalizador" da conceituao da cincia da natureza. Enquanto, na ltima, qualquer caso concreto visto simplesmente como representante da lei geral e o "aqui" e "agora" s tm significado porque e na medida em que nela revelam uma regra de validade universal, na histria, ao contrrio, este "aqui" e "agora" so buscados deliberadamente, com vistas a uma compreenso melhor de seu carter prprio. Sua mirada no est dirigida a qualquer espcie de conceito, realizvel numa pluralidade de exemplares congneres e equivalentes, nem ao acontecer repetvel, reiterativo, porm propriedade e peculiaridade dos fatos concretos, ao fatual irrepetvel e nico. Mas tambm evidente que esta caracterstica nica e peculiar, que constitui a matria da histria e da cincia histrica, no inclui simultaneamente sua forma especfica. Pois, mesmo aqui, o fato particular s adquire significado em virtude das conexes que vai estabelecendo. Ainda que no possa ser interpretado como caso de uma lei geral, preciso, para que seja pensado em geral historicamente, para que se manifeste sub specie histrica, que se apresente como membro de um determinado acontecer ou de um determinado nexo teleolgico. Sua particularizao no tempo ,

13.

Naturw. Schriften, XI, 65.

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portanto, o estrito oposto ao seu isolamento temporal, pois, do ponto de vista histrico, s vem a significar algo, caso remeta a um passado e prenuncie o futuro.

Tal como o pensamento morfolgico de Goethe, toda reflexo histrica genuna, em lugar de se perder na percepo do meramente nico, deve buscar aqueles momentos "pejados" do acontecer, para onde con-fluem, como para pontos focais, sries inteiras de eventos. Em tais pontos, fases temporais, largamente separadas entre si, conectam-se em um todo unitrio para a concepo e a compreenso histrica. Ao serem certos momentos destacados da corrente uniforme do tempo, estabelecendo relaes e concatenando-se em sries, iluminam-se com isso justamente a origem e a meta de todo acontecer, seu de onde (Woher) e seu para onde (Wohin). Assim que tambm o conceito histrico se caracteriza pelo fato de atravs dele se forjarem de um s golpe milhares de combinaes; e no tanto na percepo do singular quanto na considerao destas combinaes que se constitui o que chamamos de "sentido" especificamente histrico dos fenmenos, ou seja, sua importncia histrica.

Mas no nos demoremos nestas reflexes gerais, pois nosso intuito aqui no se volta para a estrutura dos conceitos de conhecimento terico, mas consideramos esta estrutura to-somente com o fito de elucidar algo diferente para aclarar a forma e a peculiaridade dos conceitos lingsticos primrios. Enquanto isto no ocorre, permanece tambm incompleta a teoria puramente lgica da concepo, pois os conceitos do conhecimento terico constituem apenas uma camada superior da lgica, que por sua vez se alicera em uma camada inferior: a da lgica da linguagem. Antes que se pudesse iniciar o trabalho intelectual do conceber e compreender os fenmenos, foi preciso realizar, certamente, a tarefa de denominar e alcanar um certo grau de elaborao; pois este labor que transforma o mundo das impresses sensveis, como tambm o animal possui, em um mundo espiritual, um mundo de representaes e significaes. Todo conhecer terico parte de um mundo j enfermado pela lingua-

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gern, e tanto o historiador, quanto o cientista, e mesmo o filsofo, convivem com os objetos exclusivamente ao modo como a linguagem lhos apresenta. ? esta vinculao imediata, inconsciente, mais difcil de ser descoberta do que tudo quanto o esprito cria media-tamente, por atividade consciente do pensamento.

fcil ver que aqui a teoria lgica, que constitui o conceito atravs de uma "abstrao" generalizado-ra, deixa de ter serventia. Pois tal "abstrao" consiste apenas em escolher, entre uma profuso de notas caractersticas (Merkmale), algumas que sejam comuns a diferentes complexos sensoriais ou perceptivos; aqui, porm, no se trata da escolha de tais notas caractersticas de antemo dadas, mas da sua obteno e do seu estabelecimento. Importa, no caso, compreender e esclarecer a natureza e direo deste "denotar" que deve preceder intelectualmente a funo de "denominar". Mesmo os pensadores que mais ativamente se ocuparam do problema da "origem da linguagem", julgaram-se" obrigados a parar por a, visto que simplesmente recorriam a uma "faculdade" original da alma para este ato de "denotar".

"Quando o homem se viu colocado no estado de reflexo que lhe prprio diz Herder, em seu ensaio sobre a origem da linguagem e quando esta reflexo pode pela primeira vez atuar livremente, o homem inventou a linguagem." Suponha-se que certo animal, um cordeiro, por exemplo, passe diante dos olhos de um ser humano. Que imagem, que viso, se formar na conscincia humana? Por certo no ser a mesma que se apresenta ao lobo ou ao leo, que j mentalmente farejam e sentem; dominados pelo senso-rial, o instinto os arremessa sobre ele. Tampouco ser semelhante de qualquer outro animal indiferente ao cordeiro que, por isso, o deixa passar vagamente diante de si, porquanto seu instinto est dirigido para outra coisa. "No assim com o homem! Logo que sente a necessidade de conhecer a ovelha, nenhum instinto o estorva, nenhum sentido o impele para junto dela, nem o afasta. A ovelha se lhe apresenta tal como ela se manifesta a seus sentidos: branca, mansa, lanosa a alma do homem, no exerccio reflexivo, busca uma

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nota caracterstica; ento a ovelha bale! A alma encontrou essa nota. Seu sentido interior atua. Este balir, esta nota que mais a impressiona, que se desgarra de todas as demais propriedades do mirar e do tatear, precipita-se e, penetrando em seu ntimo, lhe fica ... "Ah, tu s o que bale!", sente a alma interiormente; ela o reconheceu humanamente por haver reconhecido e denominado claramente, isto , por uma nota caracterstica... Portanto, graas a uma nota caracterstica? ? ? que esta, seno uma palavra de notao? Assim, o balir, apreendido pelo ser humano como uma caracterstica da ovelha, se transformou, em virtude dessa atribuio de sentido (Besinnung), no nome do animal; e isto aconteceria mesmo que a lngua do homem jamais tentasse gaguej-lo" M. Nestas declaraes de Herder, sente-se, todavia, claramente, o eco das teorias por ele combatidas: as teorias lingsticas da Ilustrao, que derivavam a linguagem da reflexo consciente, considerando-a como algo "inventado". O homem procura notas caractersticas porque delas necessita, porque sua razo, sua faculdade especfica da "atribuio de sentido", as exige. Esta exigncia permanece algo inderivvel: uma "fora fundamental da alma". Com isso, na verdade, a explicao se movia em crculo, pois tambm deve ser considerado como seu comeo o fim e o objetivo da formao da linguagem, ou seja, a colocao e a determinao de notas caractersticas. A "forma lingstica interior" de Humboldt parece indicar outro rumo para a reflexo. Pois aqui no mais importa o "de onde" dos conceitos lingsticos, mas sim o seu puro "o que"; no a sua origem, mas a revelao de sua peculiaridade. O modo de denotar, que o sustentculo de toda formao verbal e lingstica, imprime, segundo Humboldt, seja um carter espiritual tpico, seja um modo especial de conceber e apreender. Por isso, a diversidade entre as vrias lnguas, no uma questo de sons e signos distintos, mas sim de diferentes perspectivas do mundo. Se, por exemplo, em grego, a Luz denominada "Medidora"

14. "Ober den Ursprung der Sprache", in Werke (ed. Supham), V, pp. 35 e n.

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(-??) e, em latim, "Luminosa" (luna) ou se no mesmo idioma, como no snscrito, o elefante ora se chama "O que bebe duas vezes", ora "O bidentado", ora "Aquele que munido de uma mo", tudo isto mostra que a linguagem nunca designa simplesmente os objetos como tais, mas sempre conceitos formados pela atividade espontnea do esprito, razo pela qual a natureza dos referidos conceitos depende do rumo tomado por esse exame intelectual.

Todavia, mesmo este conceito da forma interna da linguagem pressupe, na realidade, aquilo que ele pretenderia demonstrar e deduzir. Com efeito, por um lado, a linguagem surge, aqui, como o veculo da conquista de qualquer perspectiva espiritual do mundo, como o meio que o pensamento deve cruzar antes de se achar a si mesmo e de poder conferir a si mesmo uma determinada forma terica; mas, de outro lado, precisamente esta classe de forma, esta perspectiva especial do mundo, deve ser pressuposta para tornar inteligvel a particularidade de uma dada linguagem, seu modo peculiar de denotar e denominar. assim que a questo da origem da linguagem ameaa sempre converter-se, mesmo nos pensadores que mais profundamente a compreenderam e mais laboriosamente se houveram com ela, em um intricado quebra-cabea. Toda energia mental a ela aplicada parece, ao fim, conduzir--nos apenas por um crculo vicioso e deixar-nos no mesmo ponto de onde havamos partido.

No entanto, o prprio carter de tais problemas fundamentais leva o esprito, por menor que seja a sua esperana de finalmente resolv-los, a jamais se desembaraar deles por inteiro. Em ns cresce uma nova esperana de ao menos chegar a um princpio de soluo, quando, em vez de comparar as formas lingsticas primrias com as formas da conceituao lgica, juntamo-las s formas da ideao mtica. O que nos induz a reunir estes dois tipos de conceitos, o lingstico e o mtico, em um s "gnero" independente e a distinguilos dos conceitos lgicos , antes de tudo, a circunstncia, de que em ambos parece manifestar-se uma mesma classe de apreenso intelectual, que se contrape a nossos processos do pensar terico. Confor-

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me vimos, o pensamento terico visa acima de tudo a libertar os contedos dados ao nvel sensvel ou intuitivo do isolamento em que se nos apresentam imediatamente. Eleva-os acima de seus estreitos limites, associa-os a outros contedos, compara-os entre si, concatenando-os em uma ordem definida e um contexto abrangente. Procede "discursivamente", na medida em que toma o contedo imediato apenas como ponto de partida, desde o qual possa percorrer o todo da percepo em suas mltiplas direes, at, por fim, conseguir comp-lo em uma concepo sinttica, em um sistema fechado. Neste sistema j no existem pontos isolados; todos os seus membros se relacionam, referem-se uns aos outros, esclarecendo-se e explicandose mutuamente. O singular assim, no pensamento terico, como que recoberto mais e mais por fios espirituais invisveis, que o tramam com o todo. A significao terica, que agora recebe, reside no fato de trazer o cunho do todo.

O pensamento mtico, quando o examinamos nas formas bsicas mais primitivas que a ns dado remontar, est muito longe de apresentar semelhante carter, que at mesmo contradiz a sua prpria essncia. Pois, no caso, o pensamento no se coloca livremente diante do contedo da percepo a fim de relacion-lo e compar-lo com outros, atravs da reflexo consciente, mas, colocado diretamente perante esse contedo, por ele subjugado e aprisionado. Repousa sobre ele; s sente e conhece a sua imediata presena sensvel, to poderosa que diante dela tudo o mais desaparece. Para a pessoa que esteja sob o encanto desta intuio mtico-religiosa, como se nela o mundo inteiro afundasse. O respectivo contedo momentneo, ao qual se atrela o interesse religioso, preenche completamente a conscincia, de modo que nada mais subsiste junto ou fora dele. Com a mxima energia, o eu est voltado para este nico objeto, vive nele e perde-se em sua esfera. Aqui reina, por conseguinte, em vez do alargamento da percepo, o seu mais extremo estreitamento; em lugar de uma expanso que poderia conduzi-la sempre a novas esferas do ser, vemos o impulso para a concentrao; em lugar de sua distribuio extensiva, sua compreenso intensiva. Nesta reunio de todas as

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foras em um s ponto reside o pr-requisito de todo pensar mtico e de toda enformao mtica. Se, de um lado, o eu se entrega inteiramente a uma impresso momentnea, sendo por ela "possudo"; se, de outro, h maior tenso entre o sujeito e o seu objeto, o mundo exterior; se a realidade externa no simplesmente contemplada e percebida, mas se acomete o homem repentina e imediatamente, no afeto do medo ou da esperana, do terror ou dos desejos satisfeitos e libertos, ento, de alguma forma salta a fasca: a tenso diminui a partir do momento em que a excitao subjetiva se objetiva, ao se apresentar perante o homem como um deus ou um demnio. Achamo-nos assim face ao protofenmeno mtico--religioso, que Usener procurou fixar com o conceito e expresso "deus momentneo". "Na imediatez absoluta diz o fenmeno individual endeusado, sem que intervenha um s conceito genrico; essa nica coisa que vs diante de ti, essa mesma e nenhuma outra, o deus." (p. 280). Ainda hoje, a vida dos primitivos nos mostra certos traos em que este processo se destaca nitidamente, de maneira quase palpvel. Aqui podemos recordar os exemplos aduzidos por Spieth para ilustrar tal processo: a gua que o sedento encontra, o monte de termitas que oculta o fugitivo e salva-lhe a vida, qualquer objeto novo que suscite repentino pavor no homem: tudo isso , de forma direta, transformado em um deus. Spieth resume suas observaes nas seguintes palavras: "Para a mente dos eveus, o momento em que um objeto, ou sua propriedade surpreendente se une vida e ao esprito do homem em uma relao perceptvel, agradvel ou desagradvel, marca o nascimento de um tr em sua conscincia". como se, pelo isolamento da impresso, por sua separao da totalidade da experincia costumeira e cotidiana, instaurasse nele no apenas uma tremenda intensificao, mas tambm o mximo de condensao, e como se, em virtude desta condensao, resultasse a configurao objetiva do deus, como se ela brotasse, por assim dizer, dessa experincia. Nesta forma de plasmao intuitiva do mito, e no na formao de nossos conceitos discursivos, tericos,

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devemos buscar a chave que h de nos abrir a compreenso dos conceitos originrios da linguagem. Alm do mais, sua formao tampouco deve ser retrotrada a qualquer espcie de contemplao reflexiva, nem tranqila e esclarecedora comparao das impresses sensveis dadas de antemo, ou abstrao de determinadas "notas caractersticas", mas cumpre aqui tambm, abandonar estas intuies estticas e voltar ao processo dinmico que, do seu prprio interior, o som verbal desencadeia. Na verdade, porm, este retrocesso no leva igualmente a nada, mas apenas suscitou a outra e difcil pergunta de como possvel que algo permanente possa desprender-se de tal dinamismo, que do vago marulhar da impresso e emoo sensveis, uma "formao" verbal, objetiva, possa brotar. A moderna cincia lingstica, em seu esforo para iluminar a "origem" da linguagem, tambm recorreu muitas vezes ao aforismo de Hamann, de que a poesia "a lngua materna da humanidade"; tambm ela acentuou que a linguagem tem suas razes, no no lado prosaico, mas sim no lado potico da vida, que, por conseguinte, seu fundamento ltimo no deve ser procurado no abandono percepo objetiva das coisas, nem em sua classificao segundo determinadas notas caractersticas, mas sim no primitivo poder do sentimento subjetivo15. Mas, embora esta teoria da expresso lrico-mu-sical parea, primeira vista, poder evadir-se do crculo vicioso em que sempre torna a cair a teoria da expresso lgica, tampouco consegue superar o abismo entre a funo expressiva da linguagem e sua funo denotativa. Pois tambm nessa teoria persiste, por assim dizer, um hiato entre o aspecto lrico da expresso verbal e seu carter lgico; o que precisamente permanece inexpli-cado a substituio pela qual o som da sensao se transforma em som denotativo e significativo. Tambm neste caso, poderia orientar-nos, uma vez mais, a lembrana de como foram gerados os "deuses momentneos", as configuraes mticas primrias. Se tal deus momentneo, em sua origem, o parto de um instante, se deve sua existncia a uma situao inteiramente concreta e individual, que nunca se repete de 15. Otto Jespersen, Progress in language, esp. pp. 332 e ss. Londres, 1894,

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igual maneira, neste, ele adquire pois certa consistncia que o guinda muito alm desta causa acidental de seu surgimento. To logo ele se ergue acima da necessidade imediata, do medo ou da esperana do instante, transforma-se em um ser independente que, a partir de ento, vive segundo sua prpria lei, buscando conquistar configurao e durao. Apresenta-se ao homem, no como criao do momento, mas sim como potncia objetiva e superior, que o homem adora e prove, atravs das slidas formas do culto, de uma forma cada vez mais definida. Na figurao do deus momentneo, conserva-se no s a lembrana do que este inicialmente significava e era para o homem mesmo, na mera liberao e soluo de um temor, ou na realizao de um desejo e de uma esperana, como persiste e continua por muito tempo ainda, mesmo depois que tal lembrana empalidece e por fim desaparece inteiramente.

Ora, preciso atribuir ao som da linguagem funo idntica da imagem mtica, a mesma tendncia para persistir. Tambm a palavra, como o deus ou o demnio, no para o homem uma criatura por ele prprio criada, mas se lhe apresenta como algo existente e significativo por direito prprio, como uma realidade objetiva. To logo a fasca haja saltado, to logo a tenso e a emoo do momento tenham se descarregado na palavra ou na imagem mtica, enceta-se, em certa medida, uma peripcia do esprito; sua excitao, enquanto simples estado subjetivo, extinguiu-se, desabrochou na conformao do mito ou da linguagem.

Agora, pode comear uma objetivao progressiva. medida que o atuar prprio do homem se estende paulatinamente a uma esfera cada vez mais ampla, e que se ajusta e organiza dentro desta esfera, o mundo mtico e lingstico tambm atinge uma organizao progressiva, uma "articulao" cada vez mais definida. Em lugar dos "deuses momentneos", aparecem os deuses da atividade, conforme nos assinalou Usener no exemplo dos deuses de indigitamento romanos e das divindades lituanas correspondentes. Wissova resume o carter bsico da religio romana com as seguintes palavras: "Todas as suas deidades so concebidas, por

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assim dizer, de maneira puramente prtica, como eficazes para as coisas com que o romano lida em sua vida cotidiana: o ambiente local em que atua, as diferentes atividades que o reclamam, as ocasies que determinam e configuram a vida do homem, como indivduo, e a da comunidade, todos estes aspectos encontram-se sob a tutela de deuses claramente concebidos, dotados de competncias agudamente delineadas. Para os-romanos, at mesmo Jpiter e Telo eram deuses da comunidade, deuses do lar e do campo, do bosque e do prado, da semeadura e da colheita, do crescimento, da flor e do fruto16. Aqui podemos ver, imediatamente, de como, s por meio de sua prpria atividade e da progressiva diferenciao desta, o homem consegue alcanar devidamente