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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA RAFAEL RODRIGUES GARCIA GENEALOGIA DA CRÍTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBÓLICAS DE ERNST CASSIRER SÃO PAULO 2010

Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP ......das Formas Simbólicas de Ernst Cassirer. 2010, 189 f. Dissertação (Mestrado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências

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UNIVERSIDADE DE SAtildeO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA LETRAS E CIEcircNCIAS HUMANAS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

PROGRAMA DE POacuteS-GRADUACcedilAtildeO EM FILOSOFIA

RAFAEL RODRIGUES GARCIA

GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST

CASSIRER

SAtildeO PAULO

2010

1

RAFAEL RODRIGUES GARCIA

GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST

CASSIRER

SAtildeO PAULO

2010

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Caetano Ernesto Plastino

2

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Caetano Ernesto

Plastino pela confianccedila depositada desde os tempos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica eacutepoca

em que apresentou-me agrave filosofia de Ernst Cassirer Sua prontidatildeo para esclarecer

duacutevidas a pertinecircncia de seus comentaacuterios e sugestotildees aleacutem de toda a

receptividade que eacute marca de sua personalidade satildeo dignas de nota Sem seu

apoio e orientaccedilatildeo este trabalho certamente natildeo se efetivaria

Aos professores Dr Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Dr Ricardo Ribeiro Terra

pela participaccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo e pelas sugestotildees e comentaacuterios

oportunos para o teacutermino do trabalho

Aos professores Dr John Krois e Dr Christian Moumlckel pela acolhida em

Berlim e por apresentarem-me agrave biblioteca da Universidade Humboldt cujo acervo

foi determinante para as minhas pesquisas

Agraves funcionaacuterias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade

pela paciecircncia apoio e prontidatildeo

Aos amigos e colegas de faculdade Andreacute Doneux e Ricardo Zanchetta pelas

leituras correccedilotildees e sugestotildees pelas conversas e pelo incentivo

A Ariadne Machado querida amiga e professora de alematildeo pelo incentivo e

pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer

Ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria

Aos meus pais e familiares pelo incentivo paciecircncia e confianccedila por toda a

vida

3

Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos

Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas

Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti

Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia

Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser

Siacutembolos Estou cansado de pensar

Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando

Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos

Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa

It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end

Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei

Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know

Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos

Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos

(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)

4

RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia

das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2010

O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees

envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da

obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as

questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua

estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos

os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por

Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de

todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um

processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo

apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de

seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o

filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo

Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas

criacutetica da cultura

5

ABSTRACT

GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master

Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2010

This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns

out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt

with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s

work its structure and its main methodological postulates to eventually understand

the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of

human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual

activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do

so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his

philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher

wants to differentiate his own work from

Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of

culture

6

LISTA DE ABREVIATURAS

Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das

iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e

outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim

espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas

demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de

Cohen e Kant

Obras de Cassirer

EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie

EM Essay on Man

EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit

ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

KMM Kant und die moderne Mathematik

LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought

LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft

MS The Myth of the State

PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache

PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken

PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis

PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen

SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff

SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften

SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen

SMC Symbol Myth and Culture

Obras de Cohen e Kant

KRV Kritik der reinen Vernunft

KTE Kants Theorie der Erfahrung

LRE Logik der reinen Erkenntnis

7

SUMAacuteRIO

PARA LER CASSIRER11

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14

Escola de Marburgo 17

Panorama filosoacutefico 17

Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento

Ambiente poliacutetico 20

Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do

Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do

neokantismo

Doutrina de Marburgo 24

O meacutetodo transcendental 25

Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o

materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento

puro

A noccedilatildeo de forma 28

A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo

Conhecimento e construccedilatildeo 29

Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano

Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica

Substacircncia e Funccedilatildeo 31

A tarefa da nova loacutegica 31

Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional

A doutrina do conceito geneacuterico 34

A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de

notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo

Os conceitos matemaacuteticos 39

A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da

seacuterie

Conceito de funccedilatildeo 42

Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A

universalidade concreta

Sobre a loacutegica simboacutelica 45

8

Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e

a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental

Rupturas 50

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50

Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez

matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito

Sobre a teoria da relatividade 55

Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio

Cisatildeo 58

Origem comum 58

Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo

Loacutegica ou cultura 61

As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63

O lugar da razatildeo 63

Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de

conhecimento

O homem no leito de Procrusto 66

O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud

Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo

Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo

grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70

O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria

Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental

Conceito de forma simboacutelica 74

Conceito de siacutembolo 74

Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do

siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80

Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt

Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo

simboacutelica

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87

9

Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e

forma simboacutelica

Uma teoria da significaccedilatildeo 89

Linguagem e Loacutegica 89

Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo

Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o

λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito

Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser

Linguagem e verificaccedilatildeo 97

A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da

revoluccedilatildeo copernicana

Pregnacircncia Simboacutelica 101

Convencionalismo e significaccedilatildeo 103

Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa

Sensacionismo 106

A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo

dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva

Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na

consciecircncia O exemplo da linha

Fenomenologia e intencionalidade 115

Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo

Cultura e praxis

O animal symbolicum 122

O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen

Keller

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126

Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e

fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva 129

O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e

alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A

anterioridade da vida coletiva

Funccedilatildeo representativa 142

Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave

arte

10

Funccedilatildeo significativa 149

Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu

Bohr matemaacutetica e ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia 155

Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da

cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de

Hegel agrave aacutervore de Darwin

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159

A Realidade Simboacutelica 159

Soliloacutequio 159

O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade

Autonomia e incomensurabilidade

A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165

A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento

intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171

O projeto de uma filosofia da cultura 171

A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft

Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A

biblioteca de Warburg

Cultura e Civilizaccedilatildeo 180

Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e

progresso Razatildeo e homogeneidade

Diversidade Cultural 182

Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro

da discussatildeo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187

11

PARA LER CASSIRER

Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito

Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas

Nelson Goodman

Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma

nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho

Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a

filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo

especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com

exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da

utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os

textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo

se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma

filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros

Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou

historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os

proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer

como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria

demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a

imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para

Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para

ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De

outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne

conhecedor da histoacuteria da filosofia

12

Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo

vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas

deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente

dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido

para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota

aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer

De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas

dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de

discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que

ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa

dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e

em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo

historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes

eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e

autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas

entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem

de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo

historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de

conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras

coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em

direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta

de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute

elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel

ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias

diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem

13

opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias

histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral

O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra

muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas

ideacuteias

Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da

filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho

se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de

Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em

que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa

forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de

Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo

estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez

de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta

de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a

inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou

outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os

estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro

filoacutesofo

Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a

filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de

outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo

quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash

desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais

14

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso

ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais

remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro

Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]

Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no

campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar

o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito

[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do

conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente

para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo

fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa

epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente

circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra

na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem

entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da

constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia

Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar

alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com

outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda

que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo

restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente

15

aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio

agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do

mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo

peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc

conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito

Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual

chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte

os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita

demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que

essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave

esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer

tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa

metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos

As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se

pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo

que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia

das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees

do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua

produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff

und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos

que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica

Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo

intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca

bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na

citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute

16

num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia

e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por

fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a

mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como

isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o

leitor no magnum opus de Cassirer

Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra

de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima

citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de

fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do

programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do

esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser

tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo

epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo

transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere

significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1

Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do

filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que

1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic

Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do

autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees

poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky

que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de

Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer

pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos

comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada

um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos

17

reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das

formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma

distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a

necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de

publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do

programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas

na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a

perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do

projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da

filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees

e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo

condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao

texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia

esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de

uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar

especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de

sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate

sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais

Escola de Marburgo

Panorama filosoacutefico

A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e

multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em

18

resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os

adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do

tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o

ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986

p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter

especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo

de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente

agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de

expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento

ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava

as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das

ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do

2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de

Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute

assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-

criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)

tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo

transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)

e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)

3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves

quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa

eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash

assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente

diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando

um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf

p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia

em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke

(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o

filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio

concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas

4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL

(2001) e POMA (1997)

19

espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash

Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista

quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de

reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves

tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de

Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da

situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de

Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute

especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela

[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado

para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo

trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico

primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel

central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que

o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras

palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves

Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os

valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash

curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou

propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente

na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso

5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse

caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo

20

Ambiente poliacutetico

No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo

coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo

Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com

vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo

positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da

Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo

de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio

filosoacutefico da DDR

ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima

associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia

alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse

periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da

Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE

1986 p 3)

Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa

da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se

for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo

criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou

Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo

Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir

a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes

distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo

que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-

21

filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute

corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas

vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas

natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves

Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao

positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias

naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que

significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar

do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original

adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a

Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a

interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras

palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o

meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a

6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as

quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas

ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque

satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo

de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o

progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um

afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que

segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo

surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger

aluno de Rickert

7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de

histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o

Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft

(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os

fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a

transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No

terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e

conceitos nas ciecircncias culturais

22

adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no

campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma

questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de

uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as

consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se

inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do

espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada

pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da

tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado

(SKIDELSKY 2008 p 23)

O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer

seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse

sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado

inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral

fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik

des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao

caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a

atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo

Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta

balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e

aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia

racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O

8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as

ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em

instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute

margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de

Heidegger

23

desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as

tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o

posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da

vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e

reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas

Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo

tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem

Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de

Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das

Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu

final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler

ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O

primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono

do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno

a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica

(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em

torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute

marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do

neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante

particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela

Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp

e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises

intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento

9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3

24

exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por

fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior

da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de

Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no

campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em

sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10

Doutrina de Marburgo

O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por

razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar

trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia

que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do

meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees

equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo

resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e

do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de

Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa

doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das

limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram

agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees

10

Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do

neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao

leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem

exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia

o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo

ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo

25

O meacutetodo transcendental

De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute

talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12

que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia

de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia

transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas

pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito

de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele

atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas

condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen

esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da

ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim

ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo

descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo

nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da

11

Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas

consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da

Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do

neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz

daquela serva desta)

12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos

distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo

estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica

seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que

Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas

focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua

obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual

e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por

Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a

Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)

26

ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal

proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14

A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a

questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado

por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de

Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente

uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave

ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de

conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que

Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash

nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi

concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das

ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de

Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-

lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de

entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)

Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de

Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na

13

ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58

14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke

(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-

Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem

rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina

de Marburgo

15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)

Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt

16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte

de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que

significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo

27

separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma

forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que

de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas

da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos

natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade

loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente

conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela

consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica

do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um

reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18

Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo

produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da

histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves

ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram

publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema

do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo

das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois

positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de

Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da

obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da

experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma

legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento

Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)

17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto

Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do

aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de

Husserl a respeito da recusa do psicologismo

18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de

Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola

entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante

28

pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos

gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental

A noccedilatildeo de forma

Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo

loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica

de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia

Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade

da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas

meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu

conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva

da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori

Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da

mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em

oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental

tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma

transcendentalrdquo

ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo

inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no

fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da

consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de

gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o

interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que

constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)

29

De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo

do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o

desenvolvimento histoacuterico Assim

ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e

Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias

empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental

kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)

Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)

para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori

regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende

mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de

conhecimento

Conhecimento e construccedilatildeo

Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia

exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo

19

A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do

entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica

newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem

condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da

coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia

Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto

os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da

independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori

constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo

30

(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma

construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute

conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a

experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute

passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma

forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees

da natureza

Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo

de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg

Segundo Koumlhnke esse princiacutepio

ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg

afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um

idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees

mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de

ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema

natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente

mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo

(KOumlHNKE 1986 p 178)20

Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem

diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a

passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute

fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento

20

Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma

ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente

ocasiatildeo

31

A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua

aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo

tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute

da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas

somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por

exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A

mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de

maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido

substancialmente modificadas

Substacircncia e Funccedilatildeo

A tarefa da nova loacutegica

Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases

fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua

primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de

1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados

da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia

desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do

desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo

foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o

terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem

de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de

32

Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o

domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que

vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde

Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada

para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua

inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo

satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos

avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua

ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22

O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes

desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees

levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava

haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas

investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus

postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles

O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute

radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o

trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da

Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia

ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das

ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que

21

Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem

22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto

onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e

o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der

gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)

33

se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias

ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave

elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje

progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos

pode afigurarrdquo (KrV B VIII)

Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo

ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um

campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas

levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O

julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho

da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)

O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este

dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um

importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente

neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia

criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica

tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido

em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto

satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o

corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico

alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele

Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de

seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que

34

novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em

primeiro planordquo (Idem ibidem)

A doutrina do conceito geneacuterico

A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas

alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta

as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa

de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica

atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os

elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras

palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia

de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o

ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)

donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da

formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de

processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas

ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas

em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa

riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas

() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas

de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)

Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do

conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash

35

e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira

expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de

elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise

uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de

suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza

precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio

sentido do ser

ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo

pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser

dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu

fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)

Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio

do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a

de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que

os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as

coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa

antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo

(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas

caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente

uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas

reais23

23

A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e

Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito

14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira

parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona

36

Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo

de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute

totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento

mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a

conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes

renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes

abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)

ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma

pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto

negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute

meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)

a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um

conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos

traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou

dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os

objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir

semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria

melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso

se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou

obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma

determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e

uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da

mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo

que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da

linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos

geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a

formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)

Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a

concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever

Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave

Marburgo como jaacute dito

37

Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose

agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo

alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem

sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p

7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha

loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo

para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui

notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia

o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos

pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em

decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade

independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento

verdadeiro

Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na

medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias

cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro

satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a

extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que

quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite

tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito

falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e

indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado

que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de

objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente

38

Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular

precisamente em suas particularidades de nenhum universal

ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do

particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele

deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las

muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)

Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da

abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular

da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito

psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos

gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo

se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo

no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou

lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a

identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das

particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash

incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees

sensiacuteveis

ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias

fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos

da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas

como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade

com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da

primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo

39

de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de

conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo

sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e

desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)

Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos

conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles

seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da

ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual

todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24

Os conceitos matemaacuteticos

Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no

acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode

ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados

deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos

nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do

pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos

24

Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica

igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade

metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute

tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram

comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo

processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)

Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito

entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela

ontoloacutegica ou psicoloacutegica

40

empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade

sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de

refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica

neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos

nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de

questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da

aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo

(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do

conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando

problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave

experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da

qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma

brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer

substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill

Cassirer diz

ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii

iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade

atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos

excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo

Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das

definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a

representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo

sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem

espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente

linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)

41

A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da

matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta

Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a

funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente

naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de

Aristoacuteteles

ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill

mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido

quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o

meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema

ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais

natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da

abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)

A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade

espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras

metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se

evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da

abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados

temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese

se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas

conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve

primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em

ldquoseacuteries de similaresrdquo

42

ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a

consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash

jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto

manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual

a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem

ibidem)

A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo

de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a

falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas

de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados

Conceito de funccedilatildeo

ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido

conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem

relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo

fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo

mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma

especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)

E por esta via

ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou

desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia

causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o

conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica

que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra

como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)

43

Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como

um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende

por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu

fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente

funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute

um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um

lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute

mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que

justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das

notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa

a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central

Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se

faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a

serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo

Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie

de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto

seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma

ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de

sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute

ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a

regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja

representadardquo (Idem ibidem)

44

Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F

representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a

serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25

Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de

ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva

caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos

conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um

matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz

de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da

foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos

geneacutericos

A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em

oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue

ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si

mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade

concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve

em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com

uma regrardquo (Idem p 20)

25

Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo

para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus

conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo

(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental

26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der

philosophischen und mathematischen Erkenntnis

27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer

sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo

pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito

embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras

45

O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e

ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas

particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os

casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos

conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute

inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais

enriquece em conteuacutedo

ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem

quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que

concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses

problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros

portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)

Sobre a loacutegica simboacutelica

Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser

lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os

avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental

ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na

descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De

acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o

neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com

os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave

46

reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p

52)

Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de

construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse

profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica

Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente

natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no

momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do

que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade

tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos

irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca

defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero

ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente

ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio

de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia

portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para

criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)

Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo

alienadardquo29 positivista

28

Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o

outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do

Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente

sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como

uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293

29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo

da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da

47

Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito

embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por

indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado

desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de

Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a

analiacutetica

ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo

onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a

siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do

conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro

corolaacuteriordquo31

Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para

o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em

outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica

Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o

que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo

somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a

proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de

combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e

ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo

razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria

tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I

30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar

e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos

proacuteximos diasrdquo

31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54

48

de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos

imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a

qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o

problema central de sua obra de maturidade a cultura32

A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as

quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica

transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a

doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo

o contraacuterio

ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade

obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com

isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na

determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis

formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato

sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)

Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente

pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo

sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado

que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo

ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um

32

De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em

Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o

texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da

mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no

mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo

pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura

49

iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar

o ldquoideal no realrdquo)

Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da

loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido

trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido

o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo

ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental

[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a

construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute

entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das

aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]

somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da

matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34

Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua

exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente

tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo

que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos

conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100

paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente

na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel

33

Cf esp cap 4

34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer

parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser

alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim

ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o

posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo

50

inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas

ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a

Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em

seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e

o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo

O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e

Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim

de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

Rupturas

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem

Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e

Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de

Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns

indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do

35

Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute

incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da

quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que

ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares

e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-

4)

36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho

como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por

si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de

uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra

51

neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que

respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de

Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen

especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento

em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua

fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema

transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen

em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do

homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen

endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia

e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui

Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de

relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a

relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria

ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como

errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no

conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo

de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma

categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo

inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da

realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)

37

Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel

Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf

1974 p 188-210

52

A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito

de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar

a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso

especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem

necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias

natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a

filosofia criacutetica38

ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal

qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que

ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um

fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia

natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a

questatildeo desse modordquo39

Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre

a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na

histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da

filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe

Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o

autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras

38

Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia

criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel

porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)

39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala

diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que

somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por

este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um

ser objetivo como algo significativo em seu todordquo

53

variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico

ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia

Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que

se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de

siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade

ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical

definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que

estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees

pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar

enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado

unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse

significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em

atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais

como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟

natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo

feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a

partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como

paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do

que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte

essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e

bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento

recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo

de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees

[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)

40

De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas

Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o

que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada

membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que

inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo

54

Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave

questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a

presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que

eacute proposto pelo sujeito41

Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas

razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que

comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente

matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais

fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se

referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo

[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de

realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo

ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que

conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese

intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo

subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)

Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de

inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor

ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de

objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma

estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo

41

Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de

Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte

55

particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente

familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas

intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a

acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-

intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)

Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros

passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do

espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente

questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja

evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade

num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para

as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar

de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento

particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para

a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917

Sobre a teoria da relatividade

Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa

dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de

Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e

todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o

agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a

fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee

um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick

por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo

56

com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia

criacutetica

ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico

geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que

jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria

funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)

Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de

investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides

e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de

tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma

concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na

Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade

de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo

Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und

Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e

primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico

Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da

Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de

maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o

que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De

42

A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s

Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15

57

acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no

total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande

obra

Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas

tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo

por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que

ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo

vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e

Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da

obra exemplifica

ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do

conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender

todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de

uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo

separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual

nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo

os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas

particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do

entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)

Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos

significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e

conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para

ilustrar Cassirer diz

43

Cf Ibid p 9-37

58

ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente

no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do

significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e

fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila

intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes

campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)

Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma

o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais

abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da

Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cisatildeo

Origem comum

Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de

Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da

filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por

Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o

entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento

anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute

exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash

44

De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger

que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o

assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)

59

Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo

formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico

publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit

nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi

aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de

Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo

influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e

proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a

Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46

que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de

maturidade47

Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e

Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras

proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu

desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas

45

Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente

no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)

46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida

a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento

como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento

de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a

obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7

47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica

partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como

beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo

haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas

carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em

recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas

de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008

esp cap 6

60

tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em

trechos significativos de seus trabalhos48

ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual

atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua

individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo

pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento

de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias

como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave

transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel

para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)

E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o

empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima

ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional

portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e

frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material

para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo

de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo

transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer

48

Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do

espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e

Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud

FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave

filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da

Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o

conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap

corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e

esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica

simboacutelica e a Escola de Marburgo

61

Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes

postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem

ibidem)

A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick

por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir

pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os

resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que

ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento

substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que

ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas

com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino

autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim

garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a

exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do

conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo

Loacutegica ou cultura

Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da

teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a

postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se

se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees

Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente

alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos

postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute

62

preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap

centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem

quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem

tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados

Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso

pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se

restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a

partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo

epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim

como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda

numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do

conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila

noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com

atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca

deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a

despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de

Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de

mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de

nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo

(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)

63

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA

A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar

nasce de sua carecircncia auto-reflexiva

O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo

sem trilhar os caminhos da irracionalidade

Adorno

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico

O lugar da razatildeo

De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias

do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua

concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento

metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi

necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma

metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro

Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa

ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a

doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de

descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que

64

Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo

agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a

concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e

investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como

construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-

se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior

ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento

defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica

representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o

cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um

expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo

geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por

correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa

a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de

resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta

disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto

de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por

Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do

meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo

clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)

Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo

ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista

A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais

65

importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse

o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que

desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade

cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de

compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa

encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem

como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo

portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de

nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as

determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional

resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA

racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o

Ensaio Sobre o Homem

ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas

Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por

outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A

linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute

faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro

toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem

conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica

49

Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo

geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito

menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte

a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser

vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o

Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas

Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo

ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito

66

ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma

religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera

abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa

genuiacutena e concretardquo (EM p 49)

Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com

efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das

Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido

de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular

receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)

O homem no leito de Procrusto

O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do

Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa

das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do

autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a

Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um

iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da

matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade

Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)

radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para

que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si

O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o

conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos

demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees

67

mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das

ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de

resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por

cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de

vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes

de qualquer articulaccedilatildeo

ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx

entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os

fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []

Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e

economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar

ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem

em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo

(EM p 41-2)

A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a

respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco

zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute

indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica

50

Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana

promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a

resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de

Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter

descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)

Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas

finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve

dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no

capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de

sua eacutepoca

68

que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do

autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da

fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como

teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou

com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a

racionalidade moderna eacute soacute um exemplo

Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a

semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito

Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao

ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-

estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um

renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia

rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava

a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila

pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a

cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por

um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar

conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52

51

O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf

esp cap V

52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo

do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses

domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo

de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o

conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o

segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito

sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe

interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de

1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente

69

Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande

proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave

expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos

do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros

projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao

problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das

formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada

com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel

Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia

da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela

atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo

Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um

dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo

transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir

de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das

produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel

dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer

relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger

53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista

do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola

neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava

a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist

und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer

entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar

para discutir o estado entatildeo presente da filosofia

54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do

texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living

Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais

[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer

70

manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o

homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas

Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja

delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia

direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas

ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual

defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do

pensamento miacutetico

ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo

esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a

esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro

lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em

conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)

A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este

carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o

outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo

ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo

do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo

pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia

da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar

nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De

71

fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta

contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta

segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas

apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no

idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em

que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna

consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao

domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)

E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis

mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa

palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados

tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores

determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no

sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do

projeto de Cassirer eacute a de

ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana

do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na

sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)

Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua

aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se

pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo

limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua

autonomia e independecircncia

72

Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da

aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as

ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser

compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo

(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do

conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que

empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de

seu programa metodoloacutegico como se segue

ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das

formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da

natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo

funcional e natildeo substancial ()

Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma

possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas

disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e

indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas

reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao

descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia

sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia

infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala

humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia

geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em

consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de

meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo

pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico

Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares

Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos

capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No

73

nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem

precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso

poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais

metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()

Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da

cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva

Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()

A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura

humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas

individuais ()

O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo

uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve

ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as

formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)

Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo

daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que

caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada

mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a

isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da

fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos

uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja

uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute

Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas

como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo

centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a

concepccedilatildeo de siacutembolo

74

Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para

expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita

ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a

sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura

expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma

simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida

essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da

funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e

especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave

dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em

questatildeo

Conceito de forma simboacutelica

Conceito de siacutembolo

Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de

Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na

obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da

humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e

que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo

humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por

conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de

todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a

posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor

75

proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de

animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem

No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees

estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer

delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que

exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho

para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia

a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos

engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por

estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver

com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face

dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo

preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio

aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica

Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer

indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria

ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer

dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr

55

Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o

nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito

natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da

evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas

Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja

claramente definido

56 Cf De Interpretatione II 16a 12

57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua

Grega p 636

76

em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o

conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo

De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da

liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas

implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de

certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para

aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio

da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de

conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima

No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia

e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem

a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe

mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um

objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas

esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica

de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo

Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo

de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do

mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser

tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de

ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado

tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel

Como diz Verene

58

Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128

77

ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num

papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao

mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio

universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade

cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois

um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59

De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um

particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do

siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910

Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na

Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do

idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem

eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia

das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um

simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo

necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento

59

No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa

entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas

simboacutelicas falaremos em seguida

60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio

sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em

1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes

61 Cf p 14-16 29 e ss

62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no

dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma

situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por

Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos

justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em

segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do

real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo

78

necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das

impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo

espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e

de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I

p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em

dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute

ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens

agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz

ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento

da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos

quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que

possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos

tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas

tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima

referidardquo63

Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se

possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que

seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]

ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros

sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal

faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do

significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais

63

Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15

79

mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de

ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)

Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres

do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo

Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de

transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a

transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees

sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De

fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente

ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a

histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a

influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria

recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se

extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa

capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros

tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o

filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as

criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)

ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso

expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica

liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente

diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade

mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)

64

Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss

80

Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo

alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute

aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo

tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do

mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o

resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que

impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito

conforme veremos

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica

O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos

escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees

distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente

chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou

simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que

exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao

tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da

objetividade66

De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um

alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica

teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo

65

Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p

16 e 2008 p 98

66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58

81

do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de

saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do

conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que

a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute

visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas

formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo

engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de

significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza

Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur

Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada

no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que

laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em

relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto

na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e

responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel

que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das

configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra

ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero

de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como

um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do

distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de

preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas

82

parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve

ser tomado67

Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos

a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do

siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes

exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em

Warburg onde Cassirer disse

ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie

des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um

signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)

Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao

idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de

Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas

simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no

extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)

Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como

67

Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico

que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do

bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de

ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute

estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de

diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes

dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este

seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo

correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual

maior e mais complexo

68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo

metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)

83

uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre

uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um

determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente

na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um

liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que

pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto

possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como

independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da

experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta

desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo

ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de

algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de

apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas

representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)

A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos

fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o

procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como

atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer

vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo

linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt

69

Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e

parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)

discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse

entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf

p 2

84

viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um

papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana

ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da

linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua

estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples

desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela

espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo

(PSF I p 169-70)

Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da

Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie

des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas

reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um

determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse

sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo

humboldtiana

O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que

a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas

simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia

nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua

proacutepria atividade70

Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que

a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias

semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao

70

A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em

que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel

85

entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute

construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o

(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute

ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des

Geistes

A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de

ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria

na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a

unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute

margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a

diversidade das formas linguumliacutesticas

ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um

nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel

designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura

mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si

por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)

Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica

Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento

semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica

ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados

elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em

bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido

para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros

primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos

86

fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees

podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e

graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)

Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para

a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a

natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo

a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a

realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do

progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie

de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem

ser concebidas em conjunto

ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e

necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado

e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio

conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo

conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim

sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no

simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)

Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o

mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana

ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras

peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as

mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele

87

por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas

formasrdquo (Idem ibidem)

Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus

signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por

objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui

uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que

ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a

linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento

do qual falava o autor no prefaacutecio da obra

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas

Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser

considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um

nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se

define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no

momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras

formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito

essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica

Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma

forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e

encadeaacute-lo em seu campo significativo

ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a

qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o

88

caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma

filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas

aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e

de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite

definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)

Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro

criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a

suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos

sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas

determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim

dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a

justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual

em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves

suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e

Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante

Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela

mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute

71

Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se

refere explicitamente agrave obra de Cassirer

72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte

e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a

histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas

depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o

nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica

da contemporaneidade

89

o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se

separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73

Uma teoria da significaccedilatildeo

Linguagem e Loacutegica

Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa

aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do

conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam

mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras

epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui

fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da

significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para

a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso

meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo

Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do

conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos

sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer

73

Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz

distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23

74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral

os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de

Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua

obra

90

ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de

conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa

apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua

estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de

significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e

o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da

significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)

Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge

profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente

entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro

preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente

voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75

Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se

evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse

parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da

questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de

Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por

75

Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-

cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo

eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa

funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas

metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas

ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem

ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser

agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos

ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo

satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se

encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre

verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p

29)

91

meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da

significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma

linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e

tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de

uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do

projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave

formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo

(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a

loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76

Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave

humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica

toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de

verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em

relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que

a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a

de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas

matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana

como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em

76

Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus

Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo

77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics

(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como

bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em

que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa

filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de

qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)

78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que

tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento

[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito

92

relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia

analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que

ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia

natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico

mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo

psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia

da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e

social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da

linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)

O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como

o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a

dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva

como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da

ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e

privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o

primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece

estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta

em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo

de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se

sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da

Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da

linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na

93

filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que

percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou

em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria

significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem

sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios

idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute

suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais

amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo

de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da

assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um

retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este

primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor

ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza

imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do

espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um

siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)

Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela

inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa

79

As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato

este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero

historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo

representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados

temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso

constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p

23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo

80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas

94

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio

em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da

coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de

algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa

ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma

realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em

Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-

se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra

universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir

todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas

fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de

totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde

cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute

capaz de expressar o ser

ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do

cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees

opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do

devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve

comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)

Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem

e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de

Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma

significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si

mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]

95

ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas

como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que

a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda

pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o

modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)

Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo

linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes

para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash

embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de

participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo

Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela

soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo

ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se

portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada

nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras

aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a

designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma

bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)

Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas

jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer

ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as

distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem

96

verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o

contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As

categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam

simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da

oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de

modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da

substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e

qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos

adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν

o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis

quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na

liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua

no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de

atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era

indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda

que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os

domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos

seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a

81

Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the

Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo

loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para

aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela

linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais

arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a

diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral

para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p

312)

82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela

causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute

97

comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash

vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada

quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da

natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de

surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves

ciecircncias do espiacuterito

Linguagem e verificaccedilatildeo

Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do

conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir

de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter

enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do

conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo

expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida

Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de

idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito

ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83

Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma

caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo

sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato

ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute

de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo

representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo

considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica

tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)

83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim

ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)

98

Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as

particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo

humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa

tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon

mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas

das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash

seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do

significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de

cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da

linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem

enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela

ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em

parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico

da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem

natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave

anaacutelise semacircntica

ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo

loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais

ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da

bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela

natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do

mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e

reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar

noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime

99

justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no

mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84

Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida

enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de

verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo

tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a

partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como

parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos

ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem

uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade

falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma

correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise

empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente

e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra

de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM

p 210-11)

Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser

considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar

que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das

formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para

todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de

mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus

84

Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma

filosofia da cultura

100

objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel

mas sempre como uma construccedilatildeo

ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave

pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela

compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de

mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)

A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada

aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso

significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos

postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa

ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por

meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo

igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico

fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant

com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas

Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de

vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora

resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da

significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo

de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da

85

Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a

mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo

para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e

histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e

significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada

101

filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da

formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da

ciecircncia

Pregnacircncia Simboacutelica

Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave

teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo

das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do

meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de

todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma

filosofia da cultura

A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute

dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o

filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a

partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria

das formas simboacutelicas

ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como

uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo

bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa

Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato

como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre

categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um

contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do

campo cientiacutefico (p 48 49)

102

aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados

julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua

organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo

ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de

significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86

De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute

anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido

abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende

naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo

princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e

o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de

significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal

sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim

dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno

entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de

significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a

totalidade da experiecircncia

ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio

assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a

86

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica

a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54

87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a

ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos

ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na

configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis

88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a

funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida

103

pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos

intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma

determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a

unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)

Convencionalismo e significaccedilatildeo

Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)

dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos

siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo

residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer

concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a

linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras

de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a

afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a

um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda

a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria

linguagem

89

Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de

outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses

ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o

filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a

obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro

possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte

histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar

ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a

priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de

Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente

analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)

104

ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos

simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato

social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel

somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e

forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)

Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno

da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e

simbolismo artificial

ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a

consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao

simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que

necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada

momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora

destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz

uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da

consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado

possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente

se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo

fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele

ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso

particularrdquo (PSF I p 62)

A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a

artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as

definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo

natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo

105

sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora

tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o

convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do

fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel

O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da

significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa

funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro

lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo

recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a

algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor

ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia

que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no

entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p

63)

90

Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente

individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele

tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente

inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute

uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de

Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de

cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a

ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes

de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de

Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito

agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a

dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O

problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem

importacircncia para o autor

106

Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia

crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o

fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase

de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos

ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo

criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do

significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos

natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si

mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados

complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)

Sensacionismo

A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia

simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os

empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida

na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das

impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos

elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois

problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os

sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de

sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar

que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que

sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das

91

Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e

LOFTS 2000 p 1 2

107

sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da

proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash

e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em

reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos

referenciais convencionais evidencia a falha do argumento

ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere

limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas

quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua

energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente

bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A

reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o

mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo

(PSF I p 37)

Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado

fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o

compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais

sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)

ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida

por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos

sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela

para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da

sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute

simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele

fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido

transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para

108

comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de

significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)

O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente

influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos

conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da

causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza

negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente

diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com

Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo

concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como

dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o

postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo

mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a

totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia

ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na

medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com

determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta

uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia

constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)

Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a

representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso

92

Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma

tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave

ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo

aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97

109

de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos

como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em

comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer

agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode

ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois

ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo

pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente

como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo

Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo

constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)

Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo

se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo

como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a

consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao

problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida

independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo

de todo o sistema topoloacutegico

Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da

unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a

apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en

passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um

ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos

que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda

percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma

110

referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a

brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem

em mimrdquo diz o autor

ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo

requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades

particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado

com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa

experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)

Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e

entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo

e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees

conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se

pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a

unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser

entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo

ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como

uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em

relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa

a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos

as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus

elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no

111

sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e

direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93

Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada

particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a

peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em

particular) de modo a ser definido objetivamente

Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada

em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos

diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir

entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao

ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da

consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem

p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de

organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no

momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta

disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da

histoacuteria94

93

A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento

reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais

tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute

precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente

dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um

bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero

diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo

94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante

nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee

em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e

produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente

112

ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos

os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em

um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que

determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na

denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas

estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a

expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)

Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a

modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o

cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada

em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na

primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira

com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais

articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito

semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo

Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo

causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de

modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e

daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a

modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o

espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de

bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus

momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de

configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no

pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de

organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se

distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a

organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)

113

significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande

multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a

capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na

verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do

espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta

ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM

p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente

diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na

histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em

textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas

inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir

ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um

exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que

cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo

quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz

ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia

nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e

cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma

determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo

de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas

95

No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave

questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um

esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave

adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave

medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde

os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a

articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94

114

precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas

apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma

estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado

puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a

construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico

distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente

espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma

ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos

meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na

forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade

animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente

ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular

e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma

determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades

recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a

entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela

torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal

geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como

um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se

por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas

tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta

negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente

irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal

mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a

ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior

noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica

temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia

esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma

para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia

matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela

115

uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa

lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis

formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades

e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal

de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez

estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha

como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal

abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de

fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar

os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas

como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder

factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo

esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da

significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso

Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura

ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida

somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de

uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e

respirardquo (PSF III p 200-01)96

Fenomenologia e intencionalidade

Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no

corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo

natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a

ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de

96

O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica

116

intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da

questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl

ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como

as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a

relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟

no outrordquo (PSF III p 197)

Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl

ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo

(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA

consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver

de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave

racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)

De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos

sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de

clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo

e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III

p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo

se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito

do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo

Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica

ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si

mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente

abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da

117

representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo

presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico

sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p

199)

No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O

Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste

na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre

mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato

ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio

da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando

nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟

Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se

estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de

bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl

entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional

entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser

separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute

gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em

dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e

mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa

separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos

outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o

profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)

Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual

ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas

118

aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da

concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma

revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as

fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente

traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade

ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave

criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de

apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes

tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses

mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa

proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo

sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p

33) Sendo assim

ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede

trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio

material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟

quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo

fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)

A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como

uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto

de vista da consciecircncia

ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟

mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e

119

sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma

criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se

constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva

que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo

(Idem p 70)

Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute

um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para

si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse

entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e

agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende

designarrdquo (PSF III p 202)

Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel

empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos

pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que

se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem

escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar

introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao

contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se

reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo

mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a

ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo

97

O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente

ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e

pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso

admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da

natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que

eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)

120

(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do

dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da

linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto

apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute

a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel

(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma

expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo

pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base

fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a

pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela

mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao

mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo

apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)

A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da

consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do

desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a

partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que

98

Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve

inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute

bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []

Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato

fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser

entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito

da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit

De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de

modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a

concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo

concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein

121

ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja

algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um

princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a

tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)

Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e

interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as

descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo

satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo

por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior

sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar

especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro

motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico

essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo

metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma

seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios

ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja

nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua

sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente

indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura

a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua

interaccedilatildeo

122

O animal symbolicum

Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar

passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo

em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas

humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome

Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave

psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar

como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo

os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer

evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em

reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual

possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim

ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os

animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a

99

A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo

contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a

cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido

que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico

dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente

abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em

Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem

duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles

elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus

instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e

estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui

igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro

natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo

retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas

ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo

123

relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute

incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos

condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter

essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute

se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e

mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um

estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a

universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute

a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso

especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma

quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo

capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo

Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido

objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese

de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem

meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo

de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao

ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)

Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos

pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu

ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo

agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum

124

Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem

com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma

garota nascida cega surda e muda100

ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante

aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo

tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber

Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando

quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo

Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais

tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela

debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a

caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo

da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e

ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-

u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou

para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome

Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito

excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas

horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde

seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto

perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um

nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que

natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por

ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e

100

Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo

detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento

ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para

fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia

simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os

objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente

125

pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e

a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos

que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101

Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute

distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da

psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve

como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos

sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o

conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se

fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de

conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual

efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente

o que se pode afirmar eacute que

ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do

material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem

pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos

A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo

geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila

cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do

animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)

Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do

poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila

do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo

101

Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61

126

horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio

desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que

natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-

inscreve em cada indiviacuteduo

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito

A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria

das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do

animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo

deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em

sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a

proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da

atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a

necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que

constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em

seus processos

Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente

dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De

102

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo

engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der

Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de

consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte

103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final

Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir

127

fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da

Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio

ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis

ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em

sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada

por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento

filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a

totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade

possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu

princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo

de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu

desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104

Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de

desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs

funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel

Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa

[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima

104

Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the

Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-

46

105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada

estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes

em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida

106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a

liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o

termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma

portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico

128

foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades

caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula

por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e

independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui

diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua

estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e

desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada

sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que

o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo

expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107

Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem

fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas

simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa

separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma

uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel

no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em

relaccedilatildeo agraves demais

remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido

por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as

premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que

exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem

interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash

nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer

supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido

tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto

ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes

constituir simbolicamente o objeto para si

107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase

sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e

espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos

129

A funccedilatildeo expressiva

Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel

a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas

fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de

acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que

Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia

O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo

da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos

bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma

abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)

A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva

de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este

primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui

designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da

fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que

de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da

consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia

natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo

deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo

108

Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a

explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez

mais adequado desenvolvimento

130

copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109

Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro

tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura

atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada

pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo

ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter

puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O

entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo

(PSF III p 63) 110

Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave

investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo

ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo

puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas

nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem

antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve

ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo

significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com

109

Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma

construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees

que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo

da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da

significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]

aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no

capiacutetulo seguinte

110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos

reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das

ciecircncias do espiacuterito

131

vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel

somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de

coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de

significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e

causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre

as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p

100)

Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute

radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e

pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e

depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente

oposta como a consciecircncia diferencia ambos111

ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo

fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o

mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num

sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo

(KROIS 1987 p 57 58)

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de

acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica

(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em

111

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute

o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere

explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que

fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A

pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo

corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)

132

relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo

empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica

Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar

conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da

consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre

consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do

mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas

tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva

deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do

mito

A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a

fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende

a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um

epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da

mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela

coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade

que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute

subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo

objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo

(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia

da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a

um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da

Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se

apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de

organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser

133

um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p

191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a

de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do

estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim

como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui

que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma

distinccedilatildeo ainda foi feita112

Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso

privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer

ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da

expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento

conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo

teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado

Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de

centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua

particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de

mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)

Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo

estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele

deve se integrar ao

ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute

mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o

112

Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana

Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss

134

mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia

do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu

comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da

intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)

Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o

primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio

primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica

serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas

ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um

meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro

sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da

consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social

assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua

verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo

nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)

Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade

ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da

consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva

Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico

apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo

psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria

razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus

135

domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se

apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113

ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da

generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente

entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se

em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for

visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)

Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento

Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma

proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo

(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas

mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito

como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se

pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo

histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute

necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito

entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash

natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da

cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar

por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)

113

Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees

sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A

questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito

Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao

problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos

136

A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa

ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada

metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo

meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na

modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta

da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica

em sua forma

ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da

representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a

consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo

admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico

pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente

inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila

que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115

Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos

metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a

ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades

que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se

voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo

114

ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de

formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do

tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo

um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)

115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo

natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em

The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas

claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII

137

espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em

todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de

um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees

do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da

fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico

para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu

Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia

antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente

entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode

senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como

ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por

isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute

pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem

como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas

caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se

apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente

ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada

fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou

inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo

sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas

determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles

mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos

que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)

Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao

contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia

138

consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em

oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do

mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da

consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei

natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre

subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia

da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente

aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees

lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de

paixotildees e pulsotildees subjetivas

ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e

autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a

realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se

manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de

configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117

Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo

mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como

116

A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os

fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em

seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da

religiatildeo

117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma

tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui

tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido

como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que

medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo

natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um

inconsciente individual

139

parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu

desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente

dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a

primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica

ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo

da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e

determinaccedilotildees posteriores

ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute

absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do

corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com

efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa

sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu

sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e

indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118

As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade

dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se

convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)

118

Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos

distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto

de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf

PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento

miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como

quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem

justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo

ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece

como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo

de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da

alma como sede da personalidade e sede da vida

140

da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo

(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa

exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo

tempo para em seguida se reunir120

Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros

indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees

ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como

membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de

um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele

possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas

manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos

invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-

se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p

298)

Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a

accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como

independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao

exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser

entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo

proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o

119

Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da

Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a

aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)

120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e

o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo

de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no

capiacutetulo seguinte

141

conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto

tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a

consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao

sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura

social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a

personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma

seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas

A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer

vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o

homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia

natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer

ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em

letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de

repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)

E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de

interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por

mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as

outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de

121

Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma

dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a

consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem

de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos

outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas

miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si

Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo

totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27

142

todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada

uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o

conhecimento-de-si do homem

Funccedilatildeo representativa

Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros

passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a

construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em

que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os

fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia

ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos

encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo

aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a

regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a

multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente

numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a

origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da

representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi

mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)

Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas

miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo

122

De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem

natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na

obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das

formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem

143

tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a

construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam

da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as

demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para

o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem

linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao

mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de

Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a

ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem

do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia

De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista

fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da

consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos

fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos

como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen

Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da

concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo

nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees

e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com

a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por

conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e

linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e

da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer

estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos

menores e artigos publicados por Cassirer

144

ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este

ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se

diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma

forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos

denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)

No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito

particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]

Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de

denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo

reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a

metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma

condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo

[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo

ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de

um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho

mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma

miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma

determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do

profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista

miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma

autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma

transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em

que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123

123

Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto

Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss

145

Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se

desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo

que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca

inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de

um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem

lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui

fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que

medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras

determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram

capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a

distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda

que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e

lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125

No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa

[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras

determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em

que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e

124

No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o

inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre

Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da

oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na

plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo

linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva

ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio

125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e

simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos

poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes

romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua

idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp

cap 2

146

desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as

divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees

humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas

representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas

desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas

Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto

a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre

quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute

que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas

em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o

mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias

criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para

poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico

de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de

destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo

soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de

Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a

linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que

o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer

valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da

qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e

religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa

fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel

determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)

A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves

147

imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade

das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana

ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece

como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido

necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais

captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)

As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as

configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam

a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer

toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-

iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo

desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no

Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas

por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma

que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o

indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a

divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de

sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser

caracterizado como o supremo e puro bem moral

ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de

tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo

reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de

objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e

niacutetidordquo (PSF II p 408)

148

A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre

deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de

tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash

seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na

dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a

caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada

pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da

consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao

mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela

somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer

A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as

enquanto tais

ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura

bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a

todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse

comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo

(PSF II p 432)

A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo

demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se

confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia

Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e

enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria

149

realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do

poder criador do espiacuterito

Funccedilatildeo significativa

Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo

representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente

nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto

grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo

significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro

tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as

consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de

conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a

luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no

programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja

o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em

relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura

humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma

simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o

Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a

consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do

gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)

Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a

inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a

ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo

150

de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste

com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao

mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma

espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que

todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126

tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo

trata por diversas vezes

O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de

signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do

qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz

fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se

que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua

relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia

ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada

tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a

linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que

126

Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas

tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da

consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura

127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e

rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se

desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo

realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento

toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute

pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem

estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar

alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)

151

ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde

quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas

E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda

comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de

uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)

Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of

Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da

filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de

natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais

(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a

respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento

racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles

a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo

com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos

obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu

procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam

desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash

e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo

uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo

(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees

sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas

Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo

ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito

uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar

os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela

152

falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as

leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e

mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)

Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a

linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que

Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de

conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute

escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem

Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos

ao domiacutenio da mathesis universalis

No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas

agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que

Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar

e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao

mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser

suficiente

ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma

certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas

palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128

128

No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em

fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a

entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)

153

Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados

para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o

momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129

ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do

conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo

Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente

novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente

diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)

O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute

que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem

eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros

esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos

da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O

caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais

pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no

conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de

superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica

129

Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma

da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de

maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da

astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem

seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o

territoacuterio do ser (Cf EM p 343)

130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees

ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na

Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os

trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo

154

pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e

elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a

linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao

qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia

De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de

Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A

depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos

presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana

dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do

espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam

aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer

ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e

o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na

Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste

ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme

que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo

sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do

movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito

culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de

sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos

anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros

momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre

155

todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do

conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)

Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada

liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash

natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se

subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute

somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a

consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do

que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o

estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no

momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema

Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do

ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de

encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que

incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por

paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa

orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o

levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da

cultura como jaacute tratado

Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de

progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande

caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash

o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo

progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser

descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz

156

o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal

como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita

como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter

especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que

conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo

ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo

do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse

processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder

de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave

sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa

unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes

contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo

podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e

obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo

denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e

complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um

novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os

contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na

contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)

O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da

dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela

diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de

uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o

momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas

se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A

passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez

157

disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash

incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como

conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo

entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo

Cassirer

ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento

de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de

determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As

etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves

outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A

evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees

espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e

completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p

392)

Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma

delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo

constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta

disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura

acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma

a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica

131

ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser

indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo

pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na

lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser

curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no

seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado

humanardquo (LDST p 327)

158

ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica

podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas

estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da

nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos

aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica

deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos

atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)

Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva

libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta

Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser

substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos

enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)

159

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL

O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas

mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas

Epiacuteteto

A Realidade Simboacutelica

Soliloacutequio

Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de

que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe

natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o

filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de

elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o

afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento

mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo

afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um

envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir

da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e

132

Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos

ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo

deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e

reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim

recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo

qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos

parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para

cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma

forma simboacutelica como veremos adiante

160

progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de

coisas mas num mundo de significados

ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo

simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente

natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em

proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as

proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo

mesmordquo (EM p 48)

Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma

mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as

questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash

natildeo se colocam

Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel

processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio

dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e

eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes

primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de

sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro

momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este

veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave

esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo

deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem

(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar

161

agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da

vida

ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo

em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos

de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo

consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-

las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se

consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da

existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta

existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para

transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)

O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito

marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em

relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer

afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em

espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo

133

Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura

de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada

de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias

disso para a sociedade em geral 134

Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente

fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees

tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute

consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do

assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia

contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto

mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A

mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento

162

simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo

fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos

siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor

ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como

siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem

[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um

real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio

mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este

autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma

bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas

especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio

delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-

se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)

Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se

ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do

conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional

Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava

pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto

das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo

como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem

mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer

humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo

ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da

imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte

primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma

tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)

163

tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da

concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima

consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo

loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos

Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou

mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja

marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave

ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem

fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja

perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de

significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a

linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave

psicologia behaviorista)

ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa

linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias

que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras

linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da

linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e

pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu

conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)

A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes

especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de

conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de

Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou

do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)

164

Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa

forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto

a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um

denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de

passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel

traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria

mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas

aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em

particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser

dito em uacuteltima instacircncia o mesmo

ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o

da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas

ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na

proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e

conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)

Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade

entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do

conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que

barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores

prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um

lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas

respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao

mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave

mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas

165

encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo

que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse

ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade

independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua

interaccedilatildeo

ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute

cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das

manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta

unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a

diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo

produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)

A tarefa simboacutelica da ciecircncia

As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo

de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A

novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda

que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar

hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia

que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada

135

Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel

assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas

como absolutamente incomensuraacuteveis

136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no

tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das

Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um

todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim

chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88

166

isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja

um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe

postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que

toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo

Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute

vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo

ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas

vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia

suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos

Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que

Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137

bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da

consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e

representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a

criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus

procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer

uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses

obscuros

Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma

alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na

antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um

137

Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno

da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo

em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca

das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias

sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa

preocupaccedilatildeo

167

domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves

demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees

concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para

tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras

obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la

intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas

simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas

baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer

mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam

cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138

ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura

apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto

uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera

particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do

ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as

orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de

culturardquo (PSF I p 24)

Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar

forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em

que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender

qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir

do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave

138

Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica

(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a

caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a

imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila

168

atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave

linguagem ou ao mito

De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo

central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o

desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de

compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila

espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves

demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia

uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode

pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado

o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de

envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica

O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na

filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em

relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer

que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do

espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos

concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a

praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de

Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao

positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu

momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da

repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso

139

Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de

1916

169

cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela

ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade

Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da

ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo

com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo

entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho

que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da

eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado

Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de

Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram

profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo

central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008

p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas

140

O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf

GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em

torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente

apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte

inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na

Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo

tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos

sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo

havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo

em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um

domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto

mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as

publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A

retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica

publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos

EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do

autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do

que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma

dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra

170

preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares

verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou

falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como

a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou

as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo

radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados

metafiacutesicos nele contidos

Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os

demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como

tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de

conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua

obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo

entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento

da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda

que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de

outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os

141

Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta

da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo

necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo

que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo

introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo

declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de

ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com

Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)

a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no

iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de

Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da

relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos

171

campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso

de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft

O projeto de uma filosofia da cultura

Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu

aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi

idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das

reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum

entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a

instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves

demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo

que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e

positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das

Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de

maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da

Escola de Marburgo142

Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito

ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo

(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo

142

Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando

da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este

encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e

sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94

172

epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e

essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo

abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de

Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos

em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do

filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por

outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos

haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel

para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a

discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o

outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo

deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o

naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo

do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova

objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais

que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e

aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise

do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de

articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do

espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente

plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do

termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo

elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura

por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos

173

Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo

humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de

determinadas praacuteticas culturais em particular143

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser

associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por

Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela

que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer

faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras

consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144

Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre

ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as

ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e

agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos

particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos

eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com

143

Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o

tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como

sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura

144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da

Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden

a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo

metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente

analisada como mostraremos

145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua

tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos

conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo

agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta

suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)

como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto

174

aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado

da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a

proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o

estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a

proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as

ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu

trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo

(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser

trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para

natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo

(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda

parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da

Escola de Baden

ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a

alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia

matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica

Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser

investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um

sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge

a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade

objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele

estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a

146

Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a

considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico

[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa

realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e

singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96

175

priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi

provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem

suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente

onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)

Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo

baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo

de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido

em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem

fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo

anterior

ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza

agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais

Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos

nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode

nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)

A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla

de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em

direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]

orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente

Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele

147

Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um

pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum

equiacutevoco de interpretaccedilatildeo

176

ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das

transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro

caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a

alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um

absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)

A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da

percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico

corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual

somente surge a significaccedilatildeo

ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas

do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas

como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas

devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟

baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo

(Idem p 95)

Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo

loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para

Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta

da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os

produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)

Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar

no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em

suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo

significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como

177

exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao

observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela

coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem

de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos

atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma

significaccedilatildeo radicalmente diversa

ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao

inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a

conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o

uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de

uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo

satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)

A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis

significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade

podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da

percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto

mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de

significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]

cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e

(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural

natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute

apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de

Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que

isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem

178

reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de

significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de

condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da

discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo

Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer

cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de

Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando

Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek

Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a

obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias

de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com

o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava

inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos

escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de

agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A

nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado

ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados

quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo

com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da

histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela

sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e

classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um

problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de

148

Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e

Gay (1968)

179

meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo

caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este

livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias

oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua

fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)

O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o

ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash

dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio

Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese

ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura

alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)

O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay

(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de

democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que

se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte

consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que

perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela

atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a

cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash

por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras

naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)

180

Cultura e Civilizaccedilatildeo

Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo

da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal

rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as

duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute

uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que

Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo

(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que

proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo

Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita

na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso

representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao

determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do

espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em

Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que

modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista

Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por

conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades

mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em

que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito

ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito

entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a

ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a

arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por

181

construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em

relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a

religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito

chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como

o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave

constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em

que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade

Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem

apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era

sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante

virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p

50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de

Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute

depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa

transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de

civilizaccedilatildeo

Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave

histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como

paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no

149

O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto

dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade

jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute

notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a

filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo

sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da

filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural

182

idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de

razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a

um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo

traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo

moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade

impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash

cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder

portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja

correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por

exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do

tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura

Diversidade Cultural

Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do

espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido

teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito

absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e

(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem

aponta Krois (2002 p 28)

150

Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau

Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca

151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de

animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo

da humanidade cosmopolita

183

ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e

vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo

da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha

linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em

cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma

novas formasrdquo152

A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico

convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo

positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura

como um processo essencialmente relativo153

Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura

natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo

momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que

por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu

ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do

crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154

percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do

seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de

diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer

Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo

152

Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf

1987 p 176-181 ou 2002 p 28

153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que

marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta

(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a

intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza

154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies

em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960

184

da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de

passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia

saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute

norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no

singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo

estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute

necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da

filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute

evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos

estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos

variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa

Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em

vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou

mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre

povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir

corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo

das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem

no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de

fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti

mesmo

185

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Nota de esclarecimento

As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as

secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute

ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao

longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como

fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e

assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso

nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi

efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira

publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo

Primaacuterias

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  • GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • LISTA DE ABREVIATURAS
  • SUMAacuteRIO
  • PARA LER CASSIRER
  • ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
    • Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
    • Escola de Marburgo
    • Doutrina de Marburgo
    • Substacircncia e Funccedilatildeo
    • Rupturas
    • Cisatildeo
      • AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
        • Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
        • Conceito de forma simboacutelica
        • Uma teoria da significaccedilatildeo
        • Pregnacircncia Simboacutelica
        • As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
          • O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
            • A Realidade Simboacutelica
            • Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
              • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

1

RAFAEL RODRIGUES GARCIA

GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURA UM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST

CASSIRER

SAtildeO PAULO

2010

Dissertaccedilatildeo apresentada ao Programa de Poacutes-Graduaccedilatildeo em Filosofia do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas da Universidade de Satildeo Paulo como requisito para obtenccedilatildeo do tiacutetulo de Mestre em Filosofia sob a orientaccedilatildeo do Prof Dr Caetano Ernesto Plastino

2

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Caetano Ernesto

Plastino pela confianccedila depositada desde os tempos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica eacutepoca

em que apresentou-me agrave filosofia de Ernst Cassirer Sua prontidatildeo para esclarecer

duacutevidas a pertinecircncia de seus comentaacuterios e sugestotildees aleacutem de toda a

receptividade que eacute marca de sua personalidade satildeo dignas de nota Sem seu

apoio e orientaccedilatildeo este trabalho certamente natildeo se efetivaria

Aos professores Dr Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Dr Ricardo Ribeiro Terra

pela participaccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo e pelas sugestotildees e comentaacuterios

oportunos para o teacutermino do trabalho

Aos professores Dr John Krois e Dr Christian Moumlckel pela acolhida em

Berlim e por apresentarem-me agrave biblioteca da Universidade Humboldt cujo acervo

foi determinante para as minhas pesquisas

Agraves funcionaacuterias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade

pela paciecircncia apoio e prontidatildeo

Aos amigos e colegas de faculdade Andreacute Doneux e Ricardo Zanchetta pelas

leituras correccedilotildees e sugestotildees pelas conversas e pelo incentivo

A Ariadne Machado querida amiga e professora de alematildeo pelo incentivo e

pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer

Ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria

Aos meus pais e familiares pelo incentivo paciecircncia e confianccedila por toda a

vida

3

Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos

Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas

Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti

Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia

Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser

Siacutembolos Estou cansado de pensar

Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando

Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos

Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa

It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end

Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei

Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know

Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos

Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos

(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)

4

RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia

das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2010

O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees

envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da

obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as

questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua

estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos

os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por

Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de

todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um

processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo

apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de

seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o

filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo

Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas

criacutetica da cultura

5

ABSTRACT

GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master

Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2010

This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns

out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt

with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s

work its structure and its main methodological postulates to eventually understand

the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of

human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual

activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do

so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his

philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher

wants to differentiate his own work from

Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of

culture

6

LISTA DE ABREVIATURAS

Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das

iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e

outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim

espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas

demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de

Cohen e Kant

Obras de Cassirer

EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie

EM Essay on Man

EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit

ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

KMM Kant und die moderne Mathematik

LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought

LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft

MS The Myth of the State

PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache

PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken

PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis

PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen

SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff

SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften

SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen

SMC Symbol Myth and Culture

Obras de Cohen e Kant

KRV Kritik der reinen Vernunft

KTE Kants Theorie der Erfahrung

LRE Logik der reinen Erkenntnis

7

SUMAacuteRIO

PARA LER CASSIRER11

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14

Escola de Marburgo 17

Panorama filosoacutefico 17

Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento

Ambiente poliacutetico 20

Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do

Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do

neokantismo

Doutrina de Marburgo 24

O meacutetodo transcendental 25

Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o

materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento

puro

A noccedilatildeo de forma 28

A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo

Conhecimento e construccedilatildeo 29

Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano

Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica

Substacircncia e Funccedilatildeo 31

A tarefa da nova loacutegica 31

Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional

A doutrina do conceito geneacuterico 34

A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de

notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo

Os conceitos matemaacuteticos 39

A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da

seacuterie

Conceito de funccedilatildeo 42

Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A

universalidade concreta

Sobre a loacutegica simboacutelica 45

8

Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e

a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental

Rupturas 50

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50

Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez

matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito

Sobre a teoria da relatividade 55

Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio

Cisatildeo 58

Origem comum 58

Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo

Loacutegica ou cultura 61

As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63

O lugar da razatildeo 63

Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de

conhecimento

O homem no leito de Procrusto 66

O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud

Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo

Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo

grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70

O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria

Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental

Conceito de forma simboacutelica 74

Conceito de siacutembolo 74

Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do

siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80

Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt

Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo

simboacutelica

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87

9

Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e

forma simboacutelica

Uma teoria da significaccedilatildeo 89

Linguagem e Loacutegica 89

Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo

Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o

λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito

Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser

Linguagem e verificaccedilatildeo 97

A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da

revoluccedilatildeo copernicana

Pregnacircncia Simboacutelica 101

Convencionalismo e significaccedilatildeo 103

Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa

Sensacionismo 106

A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo

dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva

Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na

consciecircncia O exemplo da linha

Fenomenologia e intencionalidade 115

Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo

Cultura e praxis

O animal symbolicum 122

O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen

Keller

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126

Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e

fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva 129

O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e

alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A

anterioridade da vida coletiva

Funccedilatildeo representativa 142

Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave

arte

10

Funccedilatildeo significativa 149

Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu

Bohr matemaacutetica e ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia 155

Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da

cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de

Hegel agrave aacutervore de Darwin

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159

A Realidade Simboacutelica 159

Soliloacutequio 159

O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade

Autonomia e incomensurabilidade

A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165

A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento

intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171

O projeto de uma filosofia da cultura 171

A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft

Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A

biblioteca de Warburg

Cultura e Civilizaccedilatildeo 180

Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e

progresso Razatildeo e homogeneidade

Diversidade Cultural 182

Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro

da discussatildeo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187

11

PARA LER CASSIRER

Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito

Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas

Nelson Goodman

Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma

nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho

Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a

filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo

especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com

exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da

utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os

textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo

se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma

filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros

Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou

historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os

proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer

como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria

demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a

imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para

Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para

ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De

outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne

conhecedor da histoacuteria da filosofia

12

Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo

vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas

deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente

dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido

para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota

aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer

De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas

dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de

discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que

ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa

dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e

em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo

historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes

eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e

autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas

entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem

de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo

historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de

conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras

coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em

direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta

de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute

elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel

ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias

diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem

13

opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias

histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral

O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra

muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas

ideacuteias

Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da

filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho

se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de

Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em

que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa

forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de

Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo

estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez

de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta

de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a

inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou

outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os

estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro

filoacutesofo

Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a

filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de

outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo

quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash

desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais

14

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso

ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais

remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro

Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]

Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no

campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar

o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito

[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do

conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente

para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo

fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa

epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente

circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra

na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem

entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da

constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia

Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar

alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com

outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda

que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo

restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente

15

aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio

agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do

mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo

peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc

conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito

Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual

chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte

os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita

demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que

essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave

esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer

tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa

metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos

As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se

pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo

que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia

das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees

do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua

produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff

und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos

que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica

Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo

intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca

bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na

citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute

16

num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia

e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por

fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a

mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como

isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o

leitor no magnum opus de Cassirer

Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra

de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima

citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de

fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do

programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do

esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser

tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo

epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo

transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere

significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1

Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do

filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que

1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic

Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do

autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees

poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky

que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de

Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer

pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos

comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada

um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos

17

reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das

formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma

distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a

necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de

publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do

programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas

na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a

perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do

projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da

filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees

e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo

condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao

texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia

esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de

uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar

especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de

sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate

sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais

Escola de Marburgo

Panorama filosoacutefico

A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e

multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em

18

resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os

adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do

tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o

ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986

p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter

especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo

de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente

agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de

expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento

ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava

as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das

ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do

2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de

Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute

assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-

criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)

tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo

transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)

e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)

3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves

quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa

eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash

assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente

diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando

um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf

p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia

em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke

(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o

filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio

concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas

4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL

(2001) e POMA (1997)

19

espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash

Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista

quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de

reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves

tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de

Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da

situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de

Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute

especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela

[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado

para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo

trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico

primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel

central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que

o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras

palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves

Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os

valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash

curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou

propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente

na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso

5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse

caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo

20

Ambiente poliacutetico

No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo

coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo

Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com

vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo

positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da

Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo

de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio

filosoacutefico da DDR

ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima

associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia

alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse

periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da

Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE

1986 p 3)

Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa

da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se

for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo

criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou

Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo

Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir

a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes

distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo

que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-

21

filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute

corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas

vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas

natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves

Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao

positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias

naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que

significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar

do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original

adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a

Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a

interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras

palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o

meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a

6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as

quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas

ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque

satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo

de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o

progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um

afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que

segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo

surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger

aluno de Rickert

7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de

histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o

Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft

(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os

fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a

transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No

terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e

conceitos nas ciecircncias culturais

22

adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no

campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma

questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de

uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as

consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se

inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do

espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada

pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da

tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado

(SKIDELSKY 2008 p 23)

O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer

seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse

sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado

inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral

fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik

des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao

caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a

atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo

Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta

balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e

aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia

racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O

8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as

ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em

instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute

margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de

Heidegger

23

desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as

tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o

posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da

vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e

reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas

Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo

tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem

Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de

Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das

Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu

final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler

ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O

primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono

do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno

a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica

(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em

torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute

marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do

neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante

particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela

Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp

e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises

intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento

9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3

24

exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por

fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior

da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de

Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no

campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em

sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10

Doutrina de Marburgo

O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por

razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar

trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia

que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do

meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees

equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo

resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e

do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de

Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa

doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das

limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram

agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees

10

Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do

neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao

leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem

exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia

o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo

ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo

25

O meacutetodo transcendental

De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute

talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12

que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia

de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia

transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas

pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito

de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele

atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas

condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen

esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da

ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim

ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo

descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo

nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da

11

Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas

consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da

Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do

neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz

daquela serva desta)

12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos

distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo

estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica

seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que

Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas

focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua

obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual

e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por

Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a

Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)

26

ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal

proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14

A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a

questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado

por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de

Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente

uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave

ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de

conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que

Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash

nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi

concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das

ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de

Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-

lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de

entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)

Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de

Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na

13

ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58

14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke

(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-

Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem

rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina

de Marburgo

15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)

Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt

16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte

de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que

significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo

27

separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma

forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que

de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas

da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos

natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade

loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente

conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela

consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica

do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um

reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18

Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo

produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da

histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves

ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram

publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema

do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo

das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois

positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de

Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da

obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da

experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma

legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento

Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)

17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto

Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do

aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de

Husserl a respeito da recusa do psicologismo

18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de

Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola

entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante

28

pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos

gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental

A noccedilatildeo de forma

Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo

loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica

de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia

Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade

da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas

meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu

conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva

da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori

Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da

mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em

oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental

tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma

transcendentalrdquo

ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo

inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no

fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da

consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de

gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o

interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que

constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)

29

De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo

do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o

desenvolvimento histoacuterico Assim

ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e

Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias

empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental

kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)

Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)

para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori

regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende

mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de

conhecimento

Conhecimento e construccedilatildeo

Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia

exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo

19

A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do

entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica

newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem

condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da

coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia

Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto

os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da

independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori

constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo

30

(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma

construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute

conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a

experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute

passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma

forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees

da natureza

Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo

de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg

Segundo Koumlhnke esse princiacutepio

ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg

afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um

idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees

mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de

ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema

natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente

mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo

(KOumlHNKE 1986 p 178)20

Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem

diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a

passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute

fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento

20

Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma

ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente

ocasiatildeo

31

A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua

aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo

tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute

da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas

somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por

exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A

mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de

maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido

substancialmente modificadas

Substacircncia e Funccedilatildeo

A tarefa da nova loacutegica

Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases

fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua

primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de

1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados

da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia

desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do

desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo

foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o

terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem

de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de

32

Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o

domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que

vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde

Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada

para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua

inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo

satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos

avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua

ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22

O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes

desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees

levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava

haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas

investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus

postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles

O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute

radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o

trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da

Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia

ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das

ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que

21

Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem

22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto

onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e

o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der

gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)

33

se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias

ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave

elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje

progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos

pode afigurarrdquo (KrV B VIII)

Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo

ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um

campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas

levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O

julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho

da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)

O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este

dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um

importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente

neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia

criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica

tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido

em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto

satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o

corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico

alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele

Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de

seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que

34

novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em

primeiro planordquo (Idem ibidem)

A doutrina do conceito geneacuterico

A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas

alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta

as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa

de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica

atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os

elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras

palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia

de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o

ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)

donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da

formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de

processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas

ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas

em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa

riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas

() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas

de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)

Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do

conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash

35

e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira

expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de

elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise

uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de

suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza

precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio

sentido do ser

ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo

pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser

dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu

fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)

Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio

do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a

de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que

os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as

coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa

antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo

(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas

caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente

uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas

reais23

23

A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e

Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito

14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira

parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona

36

Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo

de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute

totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento

mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a

conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes

renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes

abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)

ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma

pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto

negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute

meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)

a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um

conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos

traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou

dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os

objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir

semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria

melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso

se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou

obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma

determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e

uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da

mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo

que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da

linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos

geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a

formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)

Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a

concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever

Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave

Marburgo como jaacute dito

37

Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose

agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo

alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem

sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p

7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha

loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo

para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui

notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia

o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos

pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em

decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade

independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento

verdadeiro

Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na

medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias

cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro

satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a

extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que

quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite

tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito

falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e

indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado

que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de

objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente

38

Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular

precisamente em suas particularidades de nenhum universal

ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do

particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele

deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las

muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)

Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da

abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular

da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito

psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos

gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo

se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo

no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou

lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a

identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das

particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash

incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees

sensiacuteveis

ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias

fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos

da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas

como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade

com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da

primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo

39

de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de

conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo

sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e

desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)

Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos

conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles

seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da

ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual

todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24

Os conceitos matemaacuteticos

Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no

acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode

ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados

deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos

nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do

pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos

24

Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica

igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade

metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute

tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram

comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo

processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)

Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito

entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela

ontoloacutegica ou psicoloacutegica

40

empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade

sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de

refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica

neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos

nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de

questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da

aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo

(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do

conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando

problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave

experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da

qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma

brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer

substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill

Cassirer diz

ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii

iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade

atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos

excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo

Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das

definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a

representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo

sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem

espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente

linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)

41

A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da

matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta

Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a

funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente

naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de

Aristoacuteteles

ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill

mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido

quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o

meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema

ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais

natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da

abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)

A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade

espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras

metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se

evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da

abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados

temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese

se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas

conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve

primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em

ldquoseacuteries de similaresrdquo

42

ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a

consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash

jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto

manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual

a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem

ibidem)

A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo

de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a

falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas

de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados

Conceito de funccedilatildeo

ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido

conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem

relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo

fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo

mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma

especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)

E por esta via

ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou

desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia

causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o

conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica

que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra

como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)

43

Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como

um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende

por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu

fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente

funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute

um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um

lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute

mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que

justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das

notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa

a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central

Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se

faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a

serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo

Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie

de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto

seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma

ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de

sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute

ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a

regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja

representadardquo (Idem ibidem)

44

Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F

representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a

serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25

Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de

ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva

caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos

conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um

matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz

de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da

foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos

geneacutericos

A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em

oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue

ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si

mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade

concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve

em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com

uma regrardquo (Idem p 20)

25

Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo

para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus

conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo

(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental

26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der

philosophischen und mathematischen Erkenntnis

27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer

sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo

pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito

embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras

45

O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e

ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas

particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os

casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos

conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute

inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais

enriquece em conteuacutedo

ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem

quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que

concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses

problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros

portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)

Sobre a loacutegica simboacutelica

Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser

lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os

avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental

ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na

descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De

acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o

neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com

os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave

46

reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p

52)

Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de

construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse

profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica

Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente

natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no

momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do

que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade

tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos

irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca

defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero

ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente

ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio

de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia

portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para

criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)

Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo

alienadardquo29 positivista

28

Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o

outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do

Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente

sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como

uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293

29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo

da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da

47

Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito

embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por

indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado

desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de

Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a

analiacutetica

ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo

onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a

siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do

conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro

corolaacuteriordquo31

Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para

o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em

outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica

Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o

que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo

somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a

proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de

combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e

ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo

razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria

tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I

30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar

e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos

proacuteximos diasrdquo

31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54

48

de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos

imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a

qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o

problema central de sua obra de maturidade a cultura32

A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as

quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica

transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a

doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo

o contraacuterio

ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade

obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com

isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na

determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis

formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato

sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)

Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente

pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo

sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado

que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo

ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um

32

De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em

Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o

texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da

mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no

mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo

pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura

49

iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar

o ldquoideal no realrdquo)

Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da

loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido

trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido

o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo

ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental

[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a

construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute

entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das

aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]

somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da

matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34

Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua

exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente

tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo

que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos

conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100

paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente

na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel

33

Cf esp cap 4

34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer

parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser

alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim

ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o

posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo

50

inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas

ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a

Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em

seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e

o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo

O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e

Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim

de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

Rupturas

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem

Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e

Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de

Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns

indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do

35

Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute

incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da

quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que

ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares

e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-

4)

36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho

como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por

si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de

uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra

51

neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que

respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de

Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen

especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento

em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua

fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema

transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen

em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do

homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen

endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia

e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui

Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de

relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a

relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria

ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como

errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no

conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo

de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma

categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo

inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da

realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)

37

Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel

Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf

1974 p 188-210

52

A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito

de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar

a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso

especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem

necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias

natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a

filosofia criacutetica38

ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal

qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que

ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um

fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia

natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a

questatildeo desse modordquo39

Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre

a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na

histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da

filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe

Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o

autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras

38

Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia

criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel

porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)

39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala

diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que

somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por

este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um

ser objetivo como algo significativo em seu todordquo

53

variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico

ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia

Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que

se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de

siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade

ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical

definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que

estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees

pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar

enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado

unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse

significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em

atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais

como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟

natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo

feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a

partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como

paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do

que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte

essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e

bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento

recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo

de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees

[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)

40

De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas

Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o

que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada

membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que

inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo

54

Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave

questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a

presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que

eacute proposto pelo sujeito41

Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas

razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que

comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente

matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais

fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se

referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo

[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de

realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo

ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que

conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese

intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo

subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)

Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de

inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor

ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de

objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma

estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo

41

Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de

Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte

55

particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente

familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas

intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a

acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-

intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)

Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros

passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do

espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente

questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja

evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade

num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para

as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar

de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento

particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para

a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917

Sobre a teoria da relatividade

Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa

dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de

Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e

todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o

agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a

fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee

um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick

por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo

56

com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia

criacutetica

ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico

geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que

jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria

funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)

Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de

investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides

e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de

tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma

concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na

Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade

de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo

Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und

Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e

primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico

Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da

Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de

maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o

que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De

42

A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s

Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15

57

acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no

total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande

obra

Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas

tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo

por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que

ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo

vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e

Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da

obra exemplifica

ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do

conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender

todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de

uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo

separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual

nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo

os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas

particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do

entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)

Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos

significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e

conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para

ilustrar Cassirer diz

43

Cf Ibid p 9-37

58

ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente

no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do

significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e

fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila

intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes

campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)

Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma

o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais

abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da

Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cisatildeo

Origem comum

Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de

Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da

filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por

Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o

entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento

anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute

exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash

44

De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger

que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o

assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)

59

Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo

formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico

publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit

nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi

aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de

Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo

influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e

proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a

Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46

que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de

maturidade47

Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e

Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras

proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu

desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas

45

Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente

no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)

46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida

a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento

como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento

de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a

obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7

47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica

partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como

beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo

haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas

carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em

recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas

de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008

esp cap 6

60

tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em

trechos significativos de seus trabalhos48

ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual

atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua

individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo

pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento

de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias

como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave

transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel

para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)

E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o

empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima

ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional

portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e

frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material

para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo

de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo

transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer

48

Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do

espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e

Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud

FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave

filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da

Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o

conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap

corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e

esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica

simboacutelica e a Escola de Marburgo

61

Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes

postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem

ibidem)

A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick

por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir

pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os

resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que

ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento

substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que

ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas

com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino

autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim

garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a

exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do

conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo

Loacutegica ou cultura

Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da

teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a

postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se

se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees

Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente

alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos

postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute

62

preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap

centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem

quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem

tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados

Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso

pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se

restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a

partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo

epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim

como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda

numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do

conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila

noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com

atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca

deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a

despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de

Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de

mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de

nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo

(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)

63

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA

A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar

nasce de sua carecircncia auto-reflexiva

O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo

sem trilhar os caminhos da irracionalidade

Adorno

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico

O lugar da razatildeo

De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias

do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua

concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento

metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi

necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma

metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro

Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa

ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a

doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de

descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que

64

Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo

agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a

concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e

investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como

construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-

se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior

ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento

defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica

representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o

cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um

expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo

geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por

correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa

a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de

resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta

disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto

de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por

Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do

meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo

clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)

Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo

ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista

A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais

65

importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse

o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que

desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade

cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de

compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa

encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem

como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo

portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de

nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as

determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional

resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA

racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o

Ensaio Sobre o Homem

ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas

Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por

outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A

linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute

faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro

toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem

conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica

49

Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo

geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito

menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte

a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser

vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o

Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas

Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo

ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito

66

ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma

religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera

abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa

genuiacutena e concretardquo (EM p 49)

Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com

efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das

Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido

de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular

receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)

O homem no leito de Procrusto

O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do

Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa

das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do

autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a

Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um

iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da

matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade

Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)

radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para

que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si

O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o

conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos

demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees

67

mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das

ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de

resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por

cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de

vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes

de qualquer articulaccedilatildeo

ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx

entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os

fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []

Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e

economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar

ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem

em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo

(EM p 41-2)

A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a

respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco

zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute

indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica

50

Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana

promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a

resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de

Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter

descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)

Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas

finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve

dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no

capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de

sua eacutepoca

68

que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do

autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da

fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como

teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou

com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a

racionalidade moderna eacute soacute um exemplo

Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a

semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito

Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao

ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-

estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um

renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia

rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava

a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila

pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a

cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por

um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar

conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52

51

O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf

esp cap V

52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo

do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses

domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo

de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o

conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o

segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito

sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe

interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de

1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente

69

Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande

proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave

expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos

do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros

projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao

problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das

formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada

com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel

Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia

da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela

atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo

Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um

dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo

transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir

de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das

produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel

dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer

relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger

53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista

do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola

neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava

a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist

und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer

entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar

para discutir o estado entatildeo presente da filosofia

54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do

texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living

Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais

[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer

70

manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o

homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas

Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja

delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia

direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas

ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual

defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do

pensamento miacutetico

ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo

esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a

esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro

lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em

conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)

A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este

carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o

outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo

ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo

do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo

pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia

da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar

nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De

71

fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta

contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta

segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas

apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no

idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em

que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna

consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao

domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)

E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis

mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa

palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados

tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores

determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no

sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do

projeto de Cassirer eacute a de

ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana

do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na

sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)

Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua

aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se

pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo

limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua

autonomia e independecircncia

72

Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da

aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as

ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser

compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo

(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do

conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que

empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de

seu programa metodoloacutegico como se segue

ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das

formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da

natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo

funcional e natildeo substancial ()

Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma

possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas

disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e

indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas

reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao

descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia

sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia

infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala

humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia

geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em

consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de

meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo

pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico

Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares

Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos

capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No

73

nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem

precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso

poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais

metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()

Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da

cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva

Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()

A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura

humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas

individuais ()

O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo

uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve

ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as

formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)

Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo

daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que

caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada

mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a

isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da

fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos

uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja

uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute

Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas

como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo

centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a

concepccedilatildeo de siacutembolo

74

Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para

expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita

ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a

sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura

expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma

simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida

essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da

funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e

especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave

dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em

questatildeo

Conceito de forma simboacutelica

Conceito de siacutembolo

Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de

Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na

obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da

humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e

que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo

humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por

conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de

todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a

posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor

75

proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de

animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem

No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees

estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer

delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que

exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho

para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia

a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos

engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por

estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver

com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face

dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo

preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio

aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica

Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer

indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria

ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer

dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr

55

Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o

nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito

natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da

evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas

Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja

claramente definido

56 Cf De Interpretatione II 16a 12

57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua

Grega p 636

76

em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o

conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo

De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da

liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas

implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de

certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para

aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio

da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de

conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima

No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia

e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem

a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe

mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um

objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas

esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica

de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo

Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo

de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do

mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser

tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de

ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado

tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel

Como diz Verene

58

Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128

77

ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num

papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao

mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio

universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade

cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois

um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59

De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um

particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do

siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910

Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na

Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do

idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem

eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia

das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um

simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo

necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento

59

No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa

entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas

simboacutelicas falaremos em seguida

60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio

sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em

1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes

61 Cf p 14-16 29 e ss

62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no

dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma

situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por

Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos

justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em

segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do

real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo

78

necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das

impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo

espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e

de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I

p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em

dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute

ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens

agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz

ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento

da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos

quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que

possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos

tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas

tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima

referidardquo63

Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se

possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que

seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]

ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros

sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal

faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do

significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais

63

Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15

79

mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de

ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)

Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres

do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo

Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de

transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a

transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees

sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De

fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente

ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a

histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a

influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria

recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se

extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa

capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros

tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o

filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as

criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)

ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso

expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica

liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente

diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade

mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)

64

Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss

80

Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo

alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute

aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo

tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do

mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o

resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que

impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito

conforme veremos

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica

O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos

escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees

distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente

chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou

simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que

exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao

tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da

objetividade66

De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um

alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica

teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo

65

Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p

16 e 2008 p 98

66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58

81

do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de

saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do

conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que

a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute

visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas

formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo

engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de

significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza

Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur

Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada

no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que

laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em

relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto

na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e

responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel

que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das

configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra

ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero

de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como

um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do

distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de

preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas

82

parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve

ser tomado67

Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos

a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do

siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes

exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em

Warburg onde Cassirer disse

ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie

des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um

signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)

Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao

idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de

Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas

simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no

extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)

Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como

67

Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico

que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do

bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de

ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute

estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de

diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes

dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este

seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo

correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual

maior e mais complexo

68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo

metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)

83

uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre

uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um

determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente

na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um

liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que

pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto

possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como

independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da

experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta

desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo

ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de

algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de

apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas

representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)

A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos

fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o

procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como

atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer

vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo

linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt

69

Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e

parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)

discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse

entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf

p 2

84

viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um

papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana

ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da

linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua

estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples

desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela

espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo

(PSF I p 169-70)

Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da

Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie

des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas

reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um

determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse

sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo

humboldtiana

O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que

a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas

simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia

nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua

proacutepria atividade70

Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que

a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias

semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao

70

A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em

que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel

85

entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute

construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o

(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute

ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des

Geistes

A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de

ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria

na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a

unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute

margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a

diversidade das formas linguumliacutesticas

ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um

nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel

designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura

mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si

por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)

Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica

Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento

semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica

ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados

elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em

bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido

para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros

primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos

86

fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees

podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e

graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)

Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para

a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a

natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo

a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a

realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do

progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie

de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem

ser concebidas em conjunto

ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e

necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado

e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio

conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo

conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim

sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no

simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)

Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o

mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana

ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras

peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as

mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele

87

por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas

formasrdquo (Idem ibidem)

Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus

signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por

objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui

uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que

ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a

linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento

do qual falava o autor no prefaacutecio da obra

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas

Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser

considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um

nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se

define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no

momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras

formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito

essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica

Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma

forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e

encadeaacute-lo em seu campo significativo

ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a

qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o

88

caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma

filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas

aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e

de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite

definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)

Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro

criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a

suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos

sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas

determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim

dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a

justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual

em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves

suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e

Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante

Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela

mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute

71

Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se

refere explicitamente agrave obra de Cassirer

72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte

e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a

histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas

depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o

nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica

da contemporaneidade

89

o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se

separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73

Uma teoria da significaccedilatildeo

Linguagem e Loacutegica

Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa

aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do

conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam

mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras

epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui

fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da

significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para

a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso

meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo

Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do

conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos

sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer

73

Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz

distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23

74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral

os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de

Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua

obra

90

ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de

conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa

apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua

estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de

significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e

o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da

significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)

Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge

profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente

entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro

preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente

voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75

Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se

evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse

parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da

questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de

Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por

75

Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-

cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo

eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa

funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas

metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas

ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem

ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser

agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos

ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo

satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se

encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre

verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p

29)

91

meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da

significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma

linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e

tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de

uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do

projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave

formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo

(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a

loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76

Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave

humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica

toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de

verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em

relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que

a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a

de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas

matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana

como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em

76

Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus

Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo

77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics

(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como

bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em

que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa

filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de

qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)

78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que

tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento

[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito

92

relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia

analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que

ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia

natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico

mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo

psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia

da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e

social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da

linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)

O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como

o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a

dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva

como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da

ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e

privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o

primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece

estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta

em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo

de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se

sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da

Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da

linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na

93

filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que

percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou

em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria

significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem

sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios

idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute

suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais

amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo

de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da

assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um

retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este

primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor

ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza

imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do

espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um

siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)

Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela

inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa

79

As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato

este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero

historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo

representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados

temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso

constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p

23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo

80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas

94

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio

em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da

coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de

algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa

ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma

realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em

Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-

se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra

universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir

todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas

fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de

totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde

cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute

capaz de expressar o ser

ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do

cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees

opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do

devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve

comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)

Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem

e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de

Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma

significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si

mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]

95

ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas

como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que

a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda

pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o

modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)

Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo

linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes

para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash

embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de

participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo

Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela

soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo

ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se

portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada

nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras

aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a

designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma

bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)

Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas

jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer

ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as

distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem

96

verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o

contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As

categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam

simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da

oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de

modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da

substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e

qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos

adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν

o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis

quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na

liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua

no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de

atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era

indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda

que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os

domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos

seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a

81

Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the

Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo

loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para

aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela

linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais

arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a

diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral

para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p

312)

82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela

causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute

97

comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash

vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada

quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da

natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de

surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves

ciecircncias do espiacuterito

Linguagem e verificaccedilatildeo

Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do

conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir

de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter

enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do

conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo

expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida

Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de

idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito

ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83

Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma

caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo

sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato

ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute

de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo

representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo

considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica

tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)

83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim

ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)

98

Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as

particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo

humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa

tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon

mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas

das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash

seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do

significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de

cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da

linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem

enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela

ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em

parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico

da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem

natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave

anaacutelise semacircntica

ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo

loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais

ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da

bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela

natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do

mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e

reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar

noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime

99

justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no

mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84

Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida

enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de

verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo

tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a

partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como

parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos

ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem

uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade

falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma

correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise

empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente

e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra

de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM

p 210-11)

Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser

considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar

que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das

formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para

todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de

mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus

84

Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma

filosofia da cultura

100

objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel

mas sempre como uma construccedilatildeo

ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave

pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela

compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de

mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)

A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada

aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso

significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos

postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa

ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por

meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo

igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico

fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant

com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas

Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de

vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora

resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da

significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo

de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da

85

Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a

mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo

para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e

histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e

significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada

101

filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da

formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da

ciecircncia

Pregnacircncia Simboacutelica

Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave

teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo

das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do

meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de

todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma

filosofia da cultura

A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute

dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o

filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a

partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria

das formas simboacutelicas

ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como

uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo

bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa

Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato

como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre

categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um

contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do

campo cientiacutefico (p 48 49)

102

aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados

julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua

organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo

ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de

significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86

De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute

anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido

abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende

naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo

princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e

o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de

significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal

sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim

dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno

entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de

significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a

totalidade da experiecircncia

ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio

assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a

86

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica

a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54

87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a

ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos

ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na

configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis

88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a

funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida

103

pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos

intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma

determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a

unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)

Convencionalismo e significaccedilatildeo

Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)

dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos

siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo

residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer

concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a

linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras

de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a

afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a

um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda

a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria

linguagem

89

Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de

outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses

ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o

filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a

obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro

possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte

histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar

ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a

priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de

Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente

analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)

104

ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos

simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato

social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel

somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e

forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)

Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno

da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e

simbolismo artificial

ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a

consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao

simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que

necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada

momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora

destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz

uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da

consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado

possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente

se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo

fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele

ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso

particularrdquo (PSF I p 62)

A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a

artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as

definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo

natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo

105

sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora

tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o

convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do

fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel

O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da

significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa

funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro

lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo

recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a

algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor

ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia

que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no

entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p

63)

90

Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente

individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele

tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente

inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute

uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de

Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de

cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a

ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes

de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de

Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito

agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a

dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O

problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem

importacircncia para o autor

106

Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia

crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o

fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase

de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos

ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo

criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do

significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos

natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si

mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados

complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)

Sensacionismo

A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia

simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os

empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida

na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das

impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos

elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois

problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os

sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de

sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar

que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que

sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das

91

Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e

LOFTS 2000 p 1 2

107

sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da

proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash

e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em

reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos

referenciais convencionais evidencia a falha do argumento

ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere

limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas

quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua

energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente

bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A

reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o

mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo

(PSF I p 37)

Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado

fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o

compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais

sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)

ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida

por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos

sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela

para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da

sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute

simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele

fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido

transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para

108

comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de

significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)

O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente

influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos

conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da

causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza

negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente

diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com

Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo

concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como

dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o

postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo

mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a

totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia

ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na

medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com

determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta

uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia

constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)

Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a

representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso

92

Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma

tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave

ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo

aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97

109

de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos

como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em

comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer

agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode

ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois

ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo

pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente

como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo

Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo

constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)

Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo

se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo

como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a

consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao

problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida

independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo

de todo o sistema topoloacutegico

Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da

unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a

apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en

passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um

ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos

que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda

percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma

110

referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a

brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem

em mimrdquo diz o autor

ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo

requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades

particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado

com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa

experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)

Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e

entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo

e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees

conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se

pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a

unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser

entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo

ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como

uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em

relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa

a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos

as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus

elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no

111

sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e

direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93

Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada

particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a

peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em

particular) de modo a ser definido objetivamente

Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada

em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos

diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir

entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao

ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da

consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem

p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de

organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no

momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta

disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da

histoacuteria94

93

A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento

reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais

tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute

precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente

dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um

bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero

diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo

94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante

nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee

em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e

produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente

112

ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos

os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em

um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que

determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na

denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas

estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a

expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)

Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a

modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o

cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada

em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na

primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira

com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais

articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito

semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo

Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo

causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de

modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e

daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a

modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o

espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de

bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus

momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de

configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no

pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de

organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se

distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a

organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)

113

significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande

multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a

capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na

verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do

espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta

ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM

p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente

diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na

histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em

textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas

inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir

ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um

exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que

cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo

quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz

ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia

nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e

cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma

determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo

de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas

95

No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave

questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um

esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave

adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave

medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde

os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a

articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94

114

precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas

apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma

estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado

puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a

construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico

distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente

espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma

ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos

meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na

forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade

animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente

ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular

e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma

determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades

recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a

entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela

torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal

geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como

um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se

por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas

tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta

negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente

irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal

mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a

ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior

noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica

temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia

esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma

para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia

matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela

115

uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa

lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis

formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades

e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal

de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez

estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha

como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal

abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de

fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar

os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas

como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder

factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo

esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da

significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso

Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura

ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida

somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de

uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e

respirardquo (PSF III p 200-01)96

Fenomenologia e intencionalidade

Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no

corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo

natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a

ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de

96

O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica

116

intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da

questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl

ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como

as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a

relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟

no outrordquo (PSF III p 197)

Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl

ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo

(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA

consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver

de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave

racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)

De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos

sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de

clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo

e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III

p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo

se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito

do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo

Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica

ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si

mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente

abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da

117

representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo

presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico

sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p

199)

No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O

Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste

na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre

mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato

ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio

da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando

nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟

Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se

estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de

bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl

entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional

entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser

separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute

gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em

dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e

mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa

separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos

outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o

profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)

Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual

ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas

118

aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da

concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma

revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as

fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente

traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade

ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave

criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de

apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes

tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses

mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa

proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo

sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p

33) Sendo assim

ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede

trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio

material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟

quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo

fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)

A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como

uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto

de vista da consciecircncia

ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟

mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e

119

sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma

criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se

constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva

que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo

(Idem p 70)

Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute

um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para

si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse

entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e

agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende

designarrdquo (PSF III p 202)

Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel

empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos

pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que

se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem

escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar

introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao

contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se

reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo

mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a

ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo

97

O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente

ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e

pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso

admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da

natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que

eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)

120

(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do

dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da

linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto

apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute

a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel

(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma

expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo

pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base

fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a

pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela

mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao

mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo

apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)

A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da

consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do

desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a

partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que

98

Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve

inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute

bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []

Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato

fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser

entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito

da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit

De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de

modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a

concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo

concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein

121

ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja

algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um

princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a

tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)

Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e

interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as

descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo

satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo

por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior

sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar

especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro

motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico

essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo

metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma

seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios

ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja

nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua

sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente

indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura

a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua

interaccedilatildeo

122

O animal symbolicum

Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar

passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo

em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas

humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome

Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave

psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar

como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo

os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer

evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em

reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual

possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim

ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os

animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a

99

A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo

contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a

cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido

que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico

dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente

abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em

Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem

duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles

elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus

instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e

estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui

igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro

natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo

retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas

ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo

123

relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute

incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos

condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter

essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute

se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e

mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um

estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a

universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute

a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso

especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma

quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo

capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo

Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido

objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese

de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem

meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo

de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao

ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)

Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos

pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu

ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo

agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum

124

Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem

com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma

garota nascida cega surda e muda100

ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante

aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo

tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber

Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando

quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo

Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais

tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela

debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a

caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo

da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e

ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-

u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou

para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome

Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito

excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas

horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde

seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto

perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um

nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que

natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por

ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e

100

Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo

detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento

ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para

fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia

simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os

objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente

125

pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e

a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos

que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101

Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute

distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da

psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve

como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos

sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o

conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se

fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de

conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual

efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente

o que se pode afirmar eacute que

ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do

material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem

pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos

A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo

geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila

cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do

animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)

Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do

poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila

do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo

101

Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61

126

horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio

desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que

natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-

inscreve em cada indiviacuteduo

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito

A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria

das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do

animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo

deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em

sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a

proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da

atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a

necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que

constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em

seus processos

Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente

dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De

102

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo

engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der

Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de

consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte

103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final

Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir

127

fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da

Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio

ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis

ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em

sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada

por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento

filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a

totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade

possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu

princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo

de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu

desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104

Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de

desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs

funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel

Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa

[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima

104

Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the

Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-

46

105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada

estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes

em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida

106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a

liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o

termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma

portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico

128

foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades

caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula

por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e

independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui

diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua

estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e

desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada

sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que

o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo

expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107

Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem

fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas

simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa

separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma

uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel

no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em

relaccedilatildeo agraves demais

remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido

por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as

premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que

exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem

interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash

nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer

supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido

tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto

ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes

constituir simbolicamente o objeto para si

107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase

sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e

espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos

129

A funccedilatildeo expressiva

Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel

a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas

fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de

acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que

Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia

O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo

da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos

bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma

abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)

A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva

de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este

primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui

designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da

fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que

de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da

consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia

natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo

deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo

108

Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a

explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez

mais adequado desenvolvimento

130

copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109

Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro

tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura

atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada

pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo

ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter

puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O

entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo

(PSF III p 63) 110

Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave

investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo

ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo

puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas

nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem

antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve

ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo

significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com

109

Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma

construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees

que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo

da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da

significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]

aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no

capiacutetulo seguinte

110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos

reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das

ciecircncias do espiacuterito

131

vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel

somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de

coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de

significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e

causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre

as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p

100)

Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute

radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e

pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e

depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente

oposta como a consciecircncia diferencia ambos111

ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo

fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o

mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num

sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo

(KROIS 1987 p 57 58)

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de

acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica

(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em

111

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute

o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere

explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que

fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A

pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo

corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)

132

relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo

empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica

Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar

conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da

consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre

consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do

mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas

tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva

deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do

mito

A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a

fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende

a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um

epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da

mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela

coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade

que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute

subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo

objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo

(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia

da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a

um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da

Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se

apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de

organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser

133

um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p

191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a

de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do

estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim

como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui

que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma

distinccedilatildeo ainda foi feita112

Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso

privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer

ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da

expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento

conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo

teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado

Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de

centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua

particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de

mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)

Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo

estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele

deve se integrar ao

ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute

mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o

112

Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana

Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss

134

mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia

do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu

comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da

intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)

Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o

primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio

primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica

serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas

ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um

meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro

sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da

consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social

assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua

verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo

nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)

Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade

ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da

consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva

Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico

apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo

psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria

razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus

135

domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se

apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113

ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da

generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente

entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se

em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for

visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)

Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento

Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma

proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo

(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas

mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito

como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se

pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo

histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute

necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito

entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash

natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da

cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar

por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)

113

Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees

sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A

questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito

Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao

problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos

136

A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa

ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada

metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo

meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na

modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta

da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica

em sua forma

ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da

representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a

consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo

admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico

pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente

inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila

que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115

Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos

metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a

ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades

que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se

voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo

114

ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de

formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do

tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo

um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)

115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo

natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em

The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas

claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII

137

espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em

todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de

um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees

do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da

fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico

para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu

Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia

antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente

entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode

senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como

ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por

isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute

pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem

como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas

caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se

apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente

ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada

fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou

inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo

sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas

determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles

mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos

que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)

Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao

contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia

138

consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em

oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do

mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da

consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei

natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre

subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia

da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente

aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees

lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de

paixotildees e pulsotildees subjetivas

ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e

autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a

realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se

manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de

configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117

Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo

mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como

116

A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os

fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em

seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da

religiatildeo

117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma

tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui

tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido

como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que

medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo

natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um

inconsciente individual

139

parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu

desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente

dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a

primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica

ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo

da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e

determinaccedilotildees posteriores

ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute

absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do

corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com

efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa

sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu

sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e

indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118

As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade

dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se

convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)

118

Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos

distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto

de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf

PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento

miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como

quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem

justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo

ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece

como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo

de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da

alma como sede da personalidade e sede da vida

140

da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo

(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa

exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo

tempo para em seguida se reunir120

Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros

indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees

ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como

membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de

um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele

possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas

manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos

invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-

se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p

298)

Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a

accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como

independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao

exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser

entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo

proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o

119

Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da

Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a

aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)

120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e

o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo

de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no

capiacutetulo seguinte

141

conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto

tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a

consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao

sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura

social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a

personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma

seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas

A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer

vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o

homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia

natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer

ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em

letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de

repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)

E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de

interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por

mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as

outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de

121

Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma

dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a

consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem

de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos

outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas

miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si

Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo

totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27

142

todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada

uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o

conhecimento-de-si do homem

Funccedilatildeo representativa

Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros

passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a

construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em

que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os

fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia

ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos

encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo

aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a

regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a

multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente

numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a

origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da

representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi

mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)

Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas

miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo

122

De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem

natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na

obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das

formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem

143

tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a

construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam

da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as

demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para

o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem

linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao

mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de

Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a

ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem

do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia

De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista

fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da

consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos

fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos

como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen

Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da

concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo

nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees

e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com

a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por

conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e

linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e

da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer

estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos

menores e artigos publicados por Cassirer

144

ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este

ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se

diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma

forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos

denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)

No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito

particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]

Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de

denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo

reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a

metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma

condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo

[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo

ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de

um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho

mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma

miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma

determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do

profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista

miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma

autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma

transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em

que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123

123

Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto

Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss

145

Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se

desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo

que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca

inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de

um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem

lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui

fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que

medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras

determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram

capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a

distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda

que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e

lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125

No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa

[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras

determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em

que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e

124

No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o

inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre

Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da

oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na

plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo

linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva

ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio

125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e

simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos

poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes

romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua

idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp

cap 2

146

desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as

divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees

humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas

representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas

desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas

Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto

a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre

quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute

que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas

em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o

mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias

criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para

poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico

de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de

destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo

soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de

Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a

linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que

o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer

valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da

qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e

religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa

fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel

determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)

A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves

147

imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade

das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana

ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece

como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido

necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais

captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)

As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as

configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam

a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer

toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-

iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo

desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no

Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas

por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma

que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o

indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a

divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de

sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser

caracterizado como o supremo e puro bem moral

ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de

tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo

reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de

objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e

niacutetidordquo (PSF II p 408)

148

A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre

deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de

tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash

seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na

dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a

caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada

pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da

consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao

mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela

somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer

A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as

enquanto tais

ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura

bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a

todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse

comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo

(PSF II p 432)

A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo

demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se

confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia

Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e

enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria

149

realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do

poder criador do espiacuterito

Funccedilatildeo significativa

Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo

representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente

nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto

grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo

significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro

tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as

consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de

conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a

luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no

programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja

o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em

relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura

humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma

simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o

Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a

consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do

gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)

Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a

inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a

ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo

150

de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste

com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao

mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma

espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que

todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126

tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo

trata por diversas vezes

O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de

signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do

qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz

fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se

que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua

relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia

ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada

tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a

linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que

126

Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas

tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da

consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura

127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e

rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se

desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo

realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento

toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute

pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem

estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar

alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)

151

ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde

quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas

E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda

comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de

uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)

Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of

Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da

filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de

natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais

(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a

respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento

racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles

a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo

com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos

obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu

procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam

desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash

e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo

uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo

(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees

sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas

Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo

ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito

uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar

os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela

152

falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as

leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e

mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)

Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a

linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que

Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de

conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute

escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem

Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos

ao domiacutenio da mathesis universalis

No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas

agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que

Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar

e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao

mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser

suficiente

ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma

certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas

palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128

128

No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em

fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a

entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)

153

Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados

para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o

momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129

ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do

conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo

Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente

novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente

diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)

O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute

que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem

eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros

esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos

da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O

caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais

pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no

conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de

superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica

129

Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma

da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de

maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da

astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem

seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o

territoacuterio do ser (Cf EM p 343)

130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees

ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na

Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os

trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo

154

pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e

elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a

linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao

qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia

De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de

Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A

depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos

presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana

dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do

espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam

aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer

ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e

o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na

Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste

ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme

que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo

sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do

movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito

culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de

sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos

anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros

momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre

155

todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do

conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)

Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada

liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash

natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se

subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute

somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a

consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do

que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o

estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no

momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema

Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do

ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de

encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que

incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por

paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa

orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o

levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da

cultura como jaacute tratado

Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de

progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande

caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash

o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo

progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser

descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz

156

o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal

como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita

como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter

especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que

conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo

ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo

do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse

processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder

de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave

sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa

unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes

contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo

podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e

obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo

denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e

complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um

novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os

contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na

contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)

O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da

dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela

diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de

uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o

momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas

se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A

passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez

157

disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash

incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como

conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo

entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo

Cassirer

ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento

de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de

determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As

etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves

outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A

evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees

espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e

completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p

392)

Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma

delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo

constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta

disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura

acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma

a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica

131

ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser

indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo

pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na

lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser

curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no

seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado

humanardquo (LDST p 327)

158

ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica

podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas

estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da

nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos

aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica

deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos

atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)

Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva

libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta

Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser

substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos

enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)

159

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL

O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas

mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas

Epiacuteteto

A Realidade Simboacutelica

Soliloacutequio

Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de

que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe

natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o

filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de

elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o

afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento

mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo

afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um

envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir

da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e

132

Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos

ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo

deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e

reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim

recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo

qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos

parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para

cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma

forma simboacutelica como veremos adiante

160

progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de

coisas mas num mundo de significados

ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo

simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente

natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em

proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as

proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo

mesmordquo (EM p 48)

Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma

mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as

questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash

natildeo se colocam

Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel

processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio

dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e

eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes

primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de

sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro

momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este

veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave

esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo

deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem

(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar

161

agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da

vida

ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo

em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos

de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo

consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-

las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se

consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da

existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta

existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para

transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)

O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito

marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em

relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer

afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em

espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo

133

Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura

de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada

de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias

disso para a sociedade em geral 134

Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente

fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees

tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute

consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do

assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia

contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto

mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A

mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento

162

simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo

fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos

siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor

ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como

siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem

[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um

real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio

mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este

autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma

bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas

especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio

delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-

se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)

Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se

ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do

conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional

Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava

pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto

das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo

como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem

mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer

humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo

ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da

imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte

primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma

tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)

163

tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da

concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima

consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo

loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos

Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou

mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja

marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave

ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem

fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja

perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de

significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a

linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave

psicologia behaviorista)

ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa

linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias

que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras

linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da

linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e

pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu

conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)

A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes

especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de

conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de

Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou

do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)

164

Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa

forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto

a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um

denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de

passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel

traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria

mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas

aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em

particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser

dito em uacuteltima instacircncia o mesmo

ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o

da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas

ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na

proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e

conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)

Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade

entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do

conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que

barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores

prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um

lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas

respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao

mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave

mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas

165

encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo

que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse

ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade

independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua

interaccedilatildeo

ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute

cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das

manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta

unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a

diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo

produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)

A tarefa simboacutelica da ciecircncia

As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo

de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A

novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda

que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar

hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia

que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada

135

Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel

assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas

como absolutamente incomensuraacuteveis

136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no

tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das

Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um

todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim

chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88

166

isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja

um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe

postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que

toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo

Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute

vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo

ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas

vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia

suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos

Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que

Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137

bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da

consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e

representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a

criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus

procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer

uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses

obscuros

Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma

alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na

antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um

137

Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno

da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo

em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca

das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias

sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa

preocupaccedilatildeo

167

domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves

demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees

concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para

tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras

obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la

intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas

simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas

baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer

mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam

cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138

ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura

apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto

uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera

particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do

ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as

orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de

culturardquo (PSF I p 24)

Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar

forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em

que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender

qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir

do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave

138

Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica

(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a

caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a

imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila

168

atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave

linguagem ou ao mito

De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo

central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o

desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de

compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila

espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves

demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia

uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode

pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado

o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de

envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica

O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na

filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em

relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer

que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do

espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos

concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a

praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de

Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao

positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu

momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da

repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso

139

Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de

1916

169

cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela

ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade

Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da

ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo

com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo

entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho

que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da

eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado

Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de

Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram

profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo

central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008

p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas

140

O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf

GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em

torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente

apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte

inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na

Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo

tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos

sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo

havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo

em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um

domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto

mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as

publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A

retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica

publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos

EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do

autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do

que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma

dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra

170

preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares

verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou

falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como

a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou

as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo

radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados

metafiacutesicos nele contidos

Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os

demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como

tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de

conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua

obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo

entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento

da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda

que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de

outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os

141

Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta

da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo

necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo

que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo

introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo

declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de

ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com

Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)

a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no

iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de

Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da

relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos

171

campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso

de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft

O projeto de uma filosofia da cultura

Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu

aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi

idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das

reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum

entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a

instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves

demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo

que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e

positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das

Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de

maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da

Escola de Marburgo142

Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito

ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo

(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo

142

Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando

da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este

encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e

sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94

172

epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e

essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo

abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de

Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos

em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do

filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por

outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos

haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel

para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a

discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o

outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo

deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o

naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo

do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova

objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais

que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e

aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise

do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de

articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do

espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente

plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do

termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo

elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura

por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos

173

Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo

humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de

determinadas praacuteticas culturais em particular143

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser

associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por

Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela

que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer

faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras

consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144

Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre

ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as

ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e

agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos

particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos

eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com

143

Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o

tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como

sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura

144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da

Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden

a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo

metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente

analisada como mostraremos

145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua

tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos

conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo

agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta

suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)

como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto

174

aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado

da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a

proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o

estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a

proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as

ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu

trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo

(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser

trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para

natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo

(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda

parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da

Escola de Baden

ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a

alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia

matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica

Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser

investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um

sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge

a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade

objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele

estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a

146

Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a

considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico

[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa

realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e

singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96

175

priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi

provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem

suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente

onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)

Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo

baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo

de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido

em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem

fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo

anterior

ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza

agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais

Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos

nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode

nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)

A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla

de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em

direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]

orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente

Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele

147

Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um

pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum

equiacutevoco de interpretaccedilatildeo

176

ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das

transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro

caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a

alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um

absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)

A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da

percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico

corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual

somente surge a significaccedilatildeo

ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas

do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas

como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas

devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟

baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo

(Idem p 95)

Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo

loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para

Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta

da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os

produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)

Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar

no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em

suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo

significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como

177

exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao

observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela

coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem

de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos

atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma

significaccedilatildeo radicalmente diversa

ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao

inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a

conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o

uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de

uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo

satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)

A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis

significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade

podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da

percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto

mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de

significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]

cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e

(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural

natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute

apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de

Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que

isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem

178

reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de

significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de

condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da

discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo

Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer

cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de

Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando

Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek

Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a

obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias

de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com

o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava

inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos

escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de

agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A

nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado

ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados

quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo

com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da

histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela

sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e

classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um

problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de

148

Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e

Gay (1968)

179

meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo

caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este

livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias

oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua

fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)

O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o

ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash

dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio

Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese

ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura

alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)

O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay

(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de

democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que

se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte

consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que

perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela

atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a

cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash

por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras

naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)

180

Cultura e Civilizaccedilatildeo

Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo

da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal

rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as

duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute

uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que

Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo

(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que

proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo

Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita

na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso

representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao

determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do

espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em

Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que

modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista

Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por

conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades

mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em

que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito

ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito

entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a

ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a

arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por

181

construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em

relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a

religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito

chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como

o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave

constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em

que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade

Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem

apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era

sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante

virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p

50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de

Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute

depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa

transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de

civilizaccedilatildeo

Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave

histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como

paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no

149

O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto

dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade

jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute

notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a

filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo

sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da

filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural

182

idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de

razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a

um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo

traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo

moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade

impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash

cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder

portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja

correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por

exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do

tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura

Diversidade Cultural

Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do

espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido

teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito

absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e

(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem

aponta Krois (2002 p 28)

150

Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau

Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca

151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de

animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo

da humanidade cosmopolita

183

ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e

vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo

da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha

linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em

cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma

novas formasrdquo152

A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico

convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo

positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura

como um processo essencialmente relativo153

Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura

natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo

momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que

por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu

ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do

crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154

percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do

seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de

diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer

Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo

152

Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf

1987 p 176-181 ou 2002 p 28

153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que

marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta

(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a

intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza

154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies

em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960

184

da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de

passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia

saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute

norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no

singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo

estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute

necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da

filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute

evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos

estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos

variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa

Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em

vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou

mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre

povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir

corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo

das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem

no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de

fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti

mesmo

185

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Nota de esclarecimento

As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as

secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute

ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao

longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como

fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e

assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso

nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi

efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira

publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo

Primaacuterias

CASSIRER E El Concepto de la Forma Simboacutelica en la Construccioacuten de las

ciencias del Espiacuteritu In Esencia e Efecto del Concepto de Siacutembolo [1923] Fondo de

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___________ The Development of Cassirer‟s Philosophy Introduccedilatildeo a BAYER T

Cassirer‟s Metaphysics of Symbolic Forms A Philosophical Commentary New

Haven Yale University Press 2001 p 1-37

  • GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • LISTA DE ABREVIATURAS
  • SUMAacuteRIO
  • PARA LER CASSIRER
  • ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
    • Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
    • Escola de Marburgo
    • Doutrina de Marburgo
    • Substacircncia e Funccedilatildeo
    • Rupturas
    • Cisatildeo
      • AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
        • Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
        • Conceito de forma simboacutelica
        • Uma teoria da significaccedilatildeo
        • Pregnacircncia Simboacutelica
        • As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
          • O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
            • A Realidade Simboacutelica
            • Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
              • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

2

AGRADECIMENTOS

Agradeccedilo imensamente ao meu orientador Prof Dr Caetano Ernesto

Plastino pela confianccedila depositada desde os tempos de iniciaccedilatildeo cientiacutefica eacutepoca

em que apresentou-me agrave filosofia de Ernst Cassirer Sua prontidatildeo para esclarecer

duacutevidas a pertinecircncia de seus comentaacuterios e sugestotildees aleacutem de toda a

receptividade que eacute marca de sua personalidade satildeo dignas de nota Sem seu

apoio e orientaccedilatildeo este trabalho certamente natildeo se efetivaria

Aos professores Dr Mauriacutecio de Carvalho Ramos e Dr Ricardo Ribeiro Terra

pela participaccedilatildeo no exame de qualificaccedilatildeo e pelas sugestotildees e comentaacuterios

oportunos para o teacutermino do trabalho

Aos professores Dr John Krois e Dr Christian Moumlckel pela acolhida em

Berlim e por apresentarem-me agrave biblioteca da Universidade Humboldt cujo acervo

foi determinante para as minhas pesquisas

Agraves funcionaacuterias da secretaria do Departamento de Filosofia da Universidade

pela paciecircncia apoio e prontidatildeo

Aos amigos e colegas de faculdade Andreacute Doneux e Ricardo Zanchetta pelas

leituras correccedilotildees e sugestotildees pelas conversas e pelo incentivo

A Ariadne Machado querida amiga e professora de alematildeo pelo incentivo e

pelas aulas que me abriram as portas para as obras originais de Cassirer

Ao CNPq pelo apoio financeiro sem o qual nada disso aconteceria

Aos meus pais e familiares pelo incentivo paciecircncia e confianccedila por toda a

vida

3

Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos

Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas

Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti

Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia

Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser

Siacutembolos Estou cansado de pensar

Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando

Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos

Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa

It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end

Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei

Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know

Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos

Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos

(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)

4

RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia

das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2010

O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees

envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da

obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as

questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua

estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos

os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por

Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de

todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um

processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo

apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de

seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o

filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo

Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas

criacutetica da cultura

5

ABSTRACT

GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master

Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2010

This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns

out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt

with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s

work its structure and its main methodological postulates to eventually understand

the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of

human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual

activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do

so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his

philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher

wants to differentiate his own work from

Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of

culture

6

LISTA DE ABREVIATURAS

Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das

iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e

outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim

espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas

demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de

Cohen e Kant

Obras de Cassirer

EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie

EM Essay on Man

EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit

ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

KMM Kant und die moderne Mathematik

LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought

LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft

MS The Myth of the State

PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache

PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken

PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis

PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen

SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff

SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften

SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen

SMC Symbol Myth and Culture

Obras de Cohen e Kant

KRV Kritik der reinen Vernunft

KTE Kants Theorie der Erfahrung

LRE Logik der reinen Erkenntnis

7

SUMAacuteRIO

PARA LER CASSIRER11

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14

Escola de Marburgo 17

Panorama filosoacutefico 17

Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento

Ambiente poliacutetico 20

Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do

Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do

neokantismo

Doutrina de Marburgo 24

O meacutetodo transcendental 25

Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o

materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento

puro

A noccedilatildeo de forma 28

A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo

Conhecimento e construccedilatildeo 29

Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano

Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica

Substacircncia e Funccedilatildeo 31

A tarefa da nova loacutegica 31

Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional

A doutrina do conceito geneacuterico 34

A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de

notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo

Os conceitos matemaacuteticos 39

A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da

seacuterie

Conceito de funccedilatildeo 42

Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A

universalidade concreta

Sobre a loacutegica simboacutelica 45

8

Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e

a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental

Rupturas 50

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50

Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez

matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito

Sobre a teoria da relatividade 55

Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio

Cisatildeo 58

Origem comum 58

Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo

Loacutegica ou cultura 61

As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63

O lugar da razatildeo 63

Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de

conhecimento

O homem no leito de Procrusto 66

O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud

Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo

Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo

grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70

O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria

Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental

Conceito de forma simboacutelica 74

Conceito de siacutembolo 74

Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do

siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80

Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt

Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo

simboacutelica

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87

9

Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e

forma simboacutelica

Uma teoria da significaccedilatildeo 89

Linguagem e Loacutegica 89

Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo

Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o

λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito

Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser

Linguagem e verificaccedilatildeo 97

A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da

revoluccedilatildeo copernicana

Pregnacircncia Simboacutelica 101

Convencionalismo e significaccedilatildeo 103

Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa

Sensacionismo 106

A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo

dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva

Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na

consciecircncia O exemplo da linha

Fenomenologia e intencionalidade 115

Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo

Cultura e praxis

O animal symbolicum 122

O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen

Keller

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126

Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e

fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva 129

O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e

alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A

anterioridade da vida coletiva

Funccedilatildeo representativa 142

Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave

arte

10

Funccedilatildeo significativa 149

Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu

Bohr matemaacutetica e ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia 155

Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da

cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de

Hegel agrave aacutervore de Darwin

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159

A Realidade Simboacutelica 159

Soliloacutequio 159

O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade

Autonomia e incomensurabilidade

A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165

A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento

intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171

O projeto de uma filosofia da cultura 171

A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft

Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A

biblioteca de Warburg

Cultura e Civilizaccedilatildeo 180

Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e

progresso Razatildeo e homogeneidade

Diversidade Cultural 182

Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro

da discussatildeo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187

11

PARA LER CASSIRER

Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito

Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas

Nelson Goodman

Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma

nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho

Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a

filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo

especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com

exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da

utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os

textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo

se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma

filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros

Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou

historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os

proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer

como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria

demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a

imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para

Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para

ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De

outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne

conhecedor da histoacuteria da filosofia

12

Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo

vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas

deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente

dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido

para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota

aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer

De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas

dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de

discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que

ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa

dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e

em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo

historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes

eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e

autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas

entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem

de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo

historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de

conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras

coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em

direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta

de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute

elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel

ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias

diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem

13

opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias

histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral

O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra

muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas

ideacuteias

Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da

filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho

se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de

Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em

que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa

forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de

Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo

estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez

de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta

de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a

inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou

outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os

estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro

filoacutesofo

Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a

filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de

outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo

quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash

desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais

14

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso

ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais

remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro

Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]

Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no

campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar

o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito

[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do

conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente

para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo

fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa

epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente

circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra

na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem

entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da

constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia

Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar

alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com

outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda

que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo

restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente

15

aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio

agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do

mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo

peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc

conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito

Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual

chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte

os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita

demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que

essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave

esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer

tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa

metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos

As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se

pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo

que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia

das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees

do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua

produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff

und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos

que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica

Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo

intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca

bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na

citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute

16

num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia

e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por

fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a

mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como

isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o

leitor no magnum opus de Cassirer

Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra

de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima

citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de

fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do

programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do

esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser

tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo

epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo

transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere

significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1

Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do

filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que

1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic

Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do

autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees

poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky

que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de

Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer

pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos

comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada

um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos

17

reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das

formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma

distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a

necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de

publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do

programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas

na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a

perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do

projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da

filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees

e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo

condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao

texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia

esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de

uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar

especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de

sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate

sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais

Escola de Marburgo

Panorama filosoacutefico

A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e

multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em

18

resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os

adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do

tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o

ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986

p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter

especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo

de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente

agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de

expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento

ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava

as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das

ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do

2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de

Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute

assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-

criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)

tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo

transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)

e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)

3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves

quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa

eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash

assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente

diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando

um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf

p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia

em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke

(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o

filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio

concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas

4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL

(2001) e POMA (1997)

19

espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash

Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista

quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de

reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves

tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de

Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da

situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de

Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute

especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela

[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado

para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo

trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico

primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel

central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que

o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras

palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves

Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os

valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash

curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou

propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente

na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso

5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse

caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo

20

Ambiente poliacutetico

No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo

coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo

Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com

vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo

positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da

Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo

de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio

filosoacutefico da DDR

ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima

associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia

alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse

periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da

Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE

1986 p 3)

Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa

da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se

for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo

criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou

Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo

Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir

a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes

distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo

que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-

21

filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute

corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas

vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas

natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves

Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao

positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias

naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que

significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar

do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original

adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a

Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a

interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras

palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o

meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a

6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as

quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas

ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque

satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo

de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o

progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um

afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que

segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo

surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger

aluno de Rickert

7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de

histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o

Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft

(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os

fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a

transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No

terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e

conceitos nas ciecircncias culturais

22

adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no

campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma

questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de

uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as

consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se

inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do

espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada

pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da

tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado

(SKIDELSKY 2008 p 23)

O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer

seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse

sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado

inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral

fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik

des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao

caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a

atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo

Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta

balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e

aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia

racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O

8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as

ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em

instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute

margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de

Heidegger

23

desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as

tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o

posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da

vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e

reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas

Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo

tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem

Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de

Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das

Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu

final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler

ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O

primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono

do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno

a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica

(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em

torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute

marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do

neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante

particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela

Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp

e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises

intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento

9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3

24

exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por

fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior

da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de

Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no

campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em

sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10

Doutrina de Marburgo

O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por

razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar

trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia

que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do

meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees

equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo

resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e

do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de

Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa

doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das

limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram

agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees

10

Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do

neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao

leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem

exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia

o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo

ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo

25

O meacutetodo transcendental

De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute

talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12

que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia

de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia

transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas

pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito

de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele

atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas

condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen

esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da

ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim

ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo

descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo

nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da

11

Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas

consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da

Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do

neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz

daquela serva desta)

12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos

distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo

estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica

seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que

Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas

focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua

obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual

e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por

Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a

Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)

26

ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal

proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14

A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a

questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado

por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de

Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente

uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave

ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de

conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que

Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash

nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi

concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das

ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de

Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-

lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de

entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)

Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de

Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na

13

ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58

14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke

(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-

Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem

rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina

de Marburgo

15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)

Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt

16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte

de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que

significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo

27

separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma

forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que

de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas

da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos

natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade

loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente

conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela

consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica

do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um

reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18

Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo

produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da

histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves

ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram

publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema

do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo

das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois

positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de

Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da

obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da

experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma

legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento

Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)

17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto

Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do

aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de

Husserl a respeito da recusa do psicologismo

18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de

Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola

entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante

28

pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos

gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental

A noccedilatildeo de forma

Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo

loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica

de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia

Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade

da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas

meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu

conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva

da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori

Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da

mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em

oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental

tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma

transcendentalrdquo

ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo

inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no

fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da

consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de

gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o

interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que

constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)

29

De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo

do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o

desenvolvimento histoacuterico Assim

ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e

Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias

empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental

kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)

Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)

para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori

regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende

mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de

conhecimento

Conhecimento e construccedilatildeo

Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia

exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo

19

A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do

entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica

newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem

condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da

coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia

Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto

os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da

independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori

constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo

30

(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma

construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute

conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a

experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute

passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma

forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees

da natureza

Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo

de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg

Segundo Koumlhnke esse princiacutepio

ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg

afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um

idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees

mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de

ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema

natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente

mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo

(KOumlHNKE 1986 p 178)20

Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem

diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a

passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute

fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento

20

Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma

ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente

ocasiatildeo

31

A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua

aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo

tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute

da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas

somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por

exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A

mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de

maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido

substancialmente modificadas

Substacircncia e Funccedilatildeo

A tarefa da nova loacutegica

Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases

fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua

primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de

1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados

da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia

desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do

desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo

foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o

terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem

de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de

32

Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o

domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que

vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde

Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada

para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua

inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo

satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos

avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua

ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22

O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes

desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees

levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava

haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas

investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus

postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles

O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute

radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o

trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da

Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia

ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das

ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que

21

Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem

22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto

onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e

o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der

gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)

33

se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias

ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave

elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje

progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos

pode afigurarrdquo (KrV B VIII)

Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo

ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um

campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas

levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O

julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho

da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)

O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este

dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um

importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente

neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia

criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica

tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido

em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto

satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o

corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico

alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele

Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de

seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que

34

novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em

primeiro planordquo (Idem ibidem)

A doutrina do conceito geneacuterico

A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas

alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta

as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa

de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica

atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os

elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras

palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia

de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o

ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)

donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da

formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de

processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas

ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas

em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa

riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas

() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas

de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)

Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do

conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash

35

e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira

expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de

elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise

uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de

suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza

precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio

sentido do ser

ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo

pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser

dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu

fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)

Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio

do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a

de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que

os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as

coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa

antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo

(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas

caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente

uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas

reais23

23

A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e

Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito

14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira

parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona

36

Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo

de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute

totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento

mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a

conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes

renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes

abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)

ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma

pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto

negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute

meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)

a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um

conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos

traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou

dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os

objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir

semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria

melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso

se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou

obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma

determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e

uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da

mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo

que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da

linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos

geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a

formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)

Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a

concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever

Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave

Marburgo como jaacute dito

37

Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose

agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo

alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem

sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p

7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha

loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo

para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui

notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia

o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos

pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em

decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade

independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento

verdadeiro

Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na

medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias

cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro

satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a

extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que

quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite

tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito

falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e

indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado

que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de

objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente

38

Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular

precisamente em suas particularidades de nenhum universal

ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do

particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele

deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las

muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)

Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da

abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular

da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito

psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos

gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo

se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo

no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou

lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a

identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das

particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash

incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees

sensiacuteveis

ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias

fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos

da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas

como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade

com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da

primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo

39

de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de

conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo

sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e

desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)

Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos

conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles

seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da

ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual

todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24

Os conceitos matemaacuteticos

Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no

acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode

ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados

deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos

nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do

pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos

24

Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica

igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade

metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute

tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram

comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo

processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)

Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito

entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela

ontoloacutegica ou psicoloacutegica

40

empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade

sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de

refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica

neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos

nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de

questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da

aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo

(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do

conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando

problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave

experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da

qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma

brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer

substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill

Cassirer diz

ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii

iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade

atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos

excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo

Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das

definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a

representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo

sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem

espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente

linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)

41

A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da

matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta

Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a

funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente

naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de

Aristoacuteteles

ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill

mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido

quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o

meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema

ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais

natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da

abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)

A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade

espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras

metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se

evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da

abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados

temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese

se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas

conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve

primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em

ldquoseacuteries de similaresrdquo

42

ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a

consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash

jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto

manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual

a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem

ibidem)

A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo

de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a

falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas

de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados

Conceito de funccedilatildeo

ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido

conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem

relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo

fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo

mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma

especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)

E por esta via

ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou

desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia

causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o

conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica

que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra

como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)

43

Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como

um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende

por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu

fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente

funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute

um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um

lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute

mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que

justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das

notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa

a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central

Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se

faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a

serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo

Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie

de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto

seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma

ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de

sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute

ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a

regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja

representadardquo (Idem ibidem)

44

Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F

representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a

serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25

Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de

ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva

caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos

conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um

matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz

de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da

foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos

geneacutericos

A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em

oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue

ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si

mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade

concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve

em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com

uma regrardquo (Idem p 20)

25

Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo

para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus

conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo

(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental

26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der

philosophischen und mathematischen Erkenntnis

27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer

sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo

pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito

embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras

45

O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e

ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas

particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os

casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos

conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute

inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais

enriquece em conteuacutedo

ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem

quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que

concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses

problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros

portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)

Sobre a loacutegica simboacutelica

Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser

lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os

avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental

ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na

descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De

acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o

neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com

os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave

46

reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p

52)

Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de

construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse

profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica

Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente

natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no

momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do

que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade

tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos

irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca

defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero

ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente

ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio

de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia

portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para

criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)

Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo

alienadardquo29 positivista

28

Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o

outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do

Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente

sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como

uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293

29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo

da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da

47

Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito

embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por

indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado

desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de

Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a

analiacutetica

ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo

onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a

siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do

conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro

corolaacuteriordquo31

Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para

o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em

outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica

Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o

que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo

somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a

proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de

combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e

ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo

razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria

tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I

30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar

e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos

proacuteximos diasrdquo

31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54

48

de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos

imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a

qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o

problema central de sua obra de maturidade a cultura32

A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as

quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica

transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a

doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo

o contraacuterio

ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade

obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com

isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na

determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis

formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato

sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)

Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente

pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo

sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado

que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo

ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um

32

De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em

Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o

texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da

mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no

mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo

pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura

49

iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar

o ldquoideal no realrdquo)

Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da

loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido

trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido

o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo

ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental

[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a

construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute

entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das

aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]

somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da

matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34

Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua

exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente

tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo

que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos

conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100

paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente

na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel

33

Cf esp cap 4

34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer

parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser

alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim

ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o

posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo

50

inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas

ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a

Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em

seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e

o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo

O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e

Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim

de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

Rupturas

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem

Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e

Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de

Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns

indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do

35

Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute

incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da

quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que

ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares

e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-

4)

36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho

como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por

si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de

uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra

51

neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que

respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de

Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen

especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento

em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua

fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema

transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen

em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do

homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen

endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia

e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui

Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de

relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a

relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria

ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como

errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no

conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo

de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma

categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo

inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da

realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)

37

Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel

Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf

1974 p 188-210

52

A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito

de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar

a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso

especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem

necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias

natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a

filosofia criacutetica38

ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal

qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que

ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um

fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia

natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a

questatildeo desse modordquo39

Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre

a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na

histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da

filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe

Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o

autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras

38

Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia

criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel

porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)

39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala

diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que

somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por

este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um

ser objetivo como algo significativo em seu todordquo

53

variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico

ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia

Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que

se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de

siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade

ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical

definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que

estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees

pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar

enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado

unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse

significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em

atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais

como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟

natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo

feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a

partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como

paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do

que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte

essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e

bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento

recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo

de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees

[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)

40

De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas

Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o

que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada

membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que

inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo

54

Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave

questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a

presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que

eacute proposto pelo sujeito41

Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas

razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que

comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente

matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais

fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se

referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo

[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de

realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo

ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que

conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese

intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo

subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)

Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de

inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor

ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de

objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma

estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo

41

Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de

Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte

55

particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente

familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas

intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a

acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-

intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)

Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros

passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do

espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente

questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja

evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade

num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para

as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar

de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento

particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para

a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917

Sobre a teoria da relatividade

Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa

dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de

Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e

todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o

agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a

fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee

um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick

por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo

56

com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia

criacutetica

ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico

geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que

jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria

funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)

Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de

investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides

e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de

tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma

concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na

Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade

de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo

Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und

Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e

primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico

Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da

Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de

maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o

que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De

42

A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s

Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15

57

acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no

total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande

obra

Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas

tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo

por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que

ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo

vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e

Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da

obra exemplifica

ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do

conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender

todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de

uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo

separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual

nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo

os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas

particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do

entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)

Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos

significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e

conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para

ilustrar Cassirer diz

43

Cf Ibid p 9-37

58

ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente

no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do

significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e

fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila

intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes

campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)

Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma

o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais

abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da

Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cisatildeo

Origem comum

Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de

Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da

filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por

Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o

entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento

anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute

exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash

44

De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger

que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o

assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)

59

Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo

formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico

publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit

nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi

aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de

Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo

influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e

proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a

Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46

que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de

maturidade47

Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e

Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras

proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu

desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas

45

Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente

no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)

46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida

a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento

como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento

de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a

obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7

47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica

partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como

beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo

haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas

carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em

recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas

de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008

esp cap 6

60

tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em

trechos significativos de seus trabalhos48

ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual

atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua

individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo

pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento

de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias

como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave

transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel

para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)

E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o

empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima

ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional

portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e

frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material

para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo

de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo

transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer

48

Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do

espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e

Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud

FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave

filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da

Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o

conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap

corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e

esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica

simboacutelica e a Escola de Marburgo

61

Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes

postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem

ibidem)

A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick

por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir

pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os

resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que

ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento

substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que

ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas

com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino

autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim

garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a

exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do

conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo

Loacutegica ou cultura

Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da

teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a

postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se

se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees

Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente

alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos

postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute

62

preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap

centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem

quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem

tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados

Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso

pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se

restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a

partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo

epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim

como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda

numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do

conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila

noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com

atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca

deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a

despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de

Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de

mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de

nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo

(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)

63

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA

A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar

nasce de sua carecircncia auto-reflexiva

O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo

sem trilhar os caminhos da irracionalidade

Adorno

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico

O lugar da razatildeo

De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias

do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua

concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento

metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi

necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma

metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro

Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa

ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a

doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de

descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que

64

Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo

agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a

concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e

investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como

construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-

se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior

ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento

defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica

representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o

cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um

expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo

geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por

correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa

a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de

resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta

disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto

de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por

Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do

meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo

clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)

Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo

ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista

A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais

65

importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse

o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que

desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade

cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de

compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa

encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem

como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo

portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de

nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as

determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional

resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA

racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o

Ensaio Sobre o Homem

ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas

Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por

outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A

linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute

faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro

toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem

conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica

49

Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo

geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito

menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte

a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser

vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o

Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas

Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo

ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito

66

ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma

religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera

abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa

genuiacutena e concretardquo (EM p 49)

Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com

efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das

Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido

de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular

receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)

O homem no leito de Procrusto

O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do

Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa

das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do

autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a

Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um

iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da

matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade

Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)

radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para

que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si

O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o

conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos

demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees

67

mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das

ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de

resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por

cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de

vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes

de qualquer articulaccedilatildeo

ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx

entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os

fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []

Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e

economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar

ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem

em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo

(EM p 41-2)

A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a

respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco

zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute

indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica

50

Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana

promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a

resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de

Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter

descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)

Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas

finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve

dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no

capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de

sua eacutepoca

68

que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do

autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da

fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como

teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou

com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a

racionalidade moderna eacute soacute um exemplo

Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a

semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito

Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao

ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-

estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um

renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia

rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava

a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila

pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a

cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por

um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar

conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52

51

O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf

esp cap V

52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo

do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses

domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo

de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o

conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o

segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito

sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe

interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de

1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente

69

Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande

proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave

expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos

do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros

projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao

problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das

formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada

com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel

Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia

da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela

atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo

Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um

dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo

transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir

de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das

produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel

dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer

relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger

53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista

do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola

neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava

a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist

und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer

entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar

para discutir o estado entatildeo presente da filosofia

54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do

texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living

Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais

[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer

70

manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o

homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas

Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja

delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia

direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas

ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual

defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do

pensamento miacutetico

ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo

esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a

esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro

lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em

conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)

A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este

carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o

outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo

ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo

do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo

pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia

da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar

nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De

71

fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta

contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta

segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas

apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no

idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em

que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna

consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao

domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)

E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis

mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa

palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados

tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores

determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no

sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do

projeto de Cassirer eacute a de

ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana

do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na

sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)

Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua

aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se

pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo

limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua

autonomia e independecircncia

72

Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da

aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as

ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser

compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo

(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do

conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que

empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de

seu programa metodoloacutegico como se segue

ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das

formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da

natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo

funcional e natildeo substancial ()

Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma

possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas

disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e

indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas

reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao

descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia

sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia

infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala

humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia

geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em

consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de

meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo

pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico

Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares

Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos

capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No

73

nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem

precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso

poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais

metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()

Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da

cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva

Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()

A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura

humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas

individuais ()

O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo

uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve

ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as

formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)

Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo

daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que

caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada

mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a

isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da

fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos

uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja

uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute

Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas

como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo

centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a

concepccedilatildeo de siacutembolo

74

Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para

expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita

ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a

sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura

expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma

simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida

essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da

funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e

especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave

dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em

questatildeo

Conceito de forma simboacutelica

Conceito de siacutembolo

Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de

Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na

obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da

humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e

que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo

humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por

conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de

todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a

posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor

75

proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de

animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem

No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees

estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer

delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que

exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho

para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia

a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos

engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por

estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver

com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face

dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo

preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio

aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica

Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer

indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria

ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer

dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr

55

Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o

nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito

natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da

evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas

Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja

claramente definido

56 Cf De Interpretatione II 16a 12

57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua

Grega p 636

76

em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o

conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo

De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da

liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas

implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de

certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para

aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio

da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de

conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima

No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia

e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem

a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe

mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um

objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas

esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica

de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo

Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo

de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do

mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser

tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de

ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado

tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel

Como diz Verene

58

Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128

77

ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num

papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao

mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio

universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade

cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois

um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59

De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um

particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do

siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910

Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na

Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do

idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem

eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia

das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um

simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo

necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento

59

No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa

entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas

simboacutelicas falaremos em seguida

60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio

sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em

1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes

61 Cf p 14-16 29 e ss

62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no

dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma

situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por

Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos

justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em

segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do

real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo

78

necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das

impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo

espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e

de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I

p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em

dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute

ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens

agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz

ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento

da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos

quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que

possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos

tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas

tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima

referidardquo63

Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se

possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que

seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]

ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros

sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal

faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do

significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais

63

Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15

79

mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de

ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)

Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres

do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo

Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de

transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a

transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees

sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De

fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente

ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a

histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a

influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria

recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se

extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa

capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros

tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o

filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as

criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)

ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso

expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica

liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente

diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade

mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)

64

Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss

80

Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo

alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute

aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo

tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do

mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o

resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que

impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito

conforme veremos

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica

O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos

escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees

distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente

chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou

simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que

exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao

tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da

objetividade66

De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um

alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica

teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo

65

Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p

16 e 2008 p 98

66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58

81

do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de

saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do

conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que

a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute

visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas

formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo

engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de

significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza

Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur

Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada

no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que

laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em

relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto

na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e

responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel

que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das

configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra

ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero

de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como

um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do

distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de

preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas

82

parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve

ser tomado67

Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos

a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do

siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes

exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em

Warburg onde Cassirer disse

ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie

des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um

signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)

Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao

idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de

Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas

simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no

extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)

Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como

67

Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico

que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do

bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de

ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute

estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de

diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes

dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este

seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo

correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual

maior e mais complexo

68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo

metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)

83

uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre

uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um

determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente

na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um

liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que

pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto

possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como

independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da

experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta

desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo

ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de

algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de

apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas

representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)

A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos

fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o

procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como

atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer

vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo

linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt

69

Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e

parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)

discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse

entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf

p 2

84

viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um

papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana

ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da

linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua

estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples

desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela

espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo

(PSF I p 169-70)

Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da

Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie

des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas

reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um

determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse

sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo

humboldtiana

O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que

a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas

simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia

nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua

proacutepria atividade70

Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que

a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias

semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao

70

A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em

que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel

85

entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute

construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o

(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute

ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des

Geistes

A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de

ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria

na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a

unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute

margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a

diversidade das formas linguumliacutesticas

ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um

nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel

designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura

mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si

por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)

Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica

Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento

semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica

ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados

elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em

bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido

para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros

primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos

86

fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees

podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e

graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)

Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para

a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a

natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo

a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a

realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do

progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie

de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem

ser concebidas em conjunto

ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e

necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado

e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio

conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo

conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim

sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no

simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)

Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o

mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana

ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras

peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as

mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele

87

por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas

formasrdquo (Idem ibidem)

Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus

signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por

objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui

uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que

ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a

linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento

do qual falava o autor no prefaacutecio da obra

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas

Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser

considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um

nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se

define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no

momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras

formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito

essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica

Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma

forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e

encadeaacute-lo em seu campo significativo

ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a

qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o

88

caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma

filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas

aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e

de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite

definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)

Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro

criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a

suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos

sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas

determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim

dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a

justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual

em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves

suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e

Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante

Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela

mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute

71

Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se

refere explicitamente agrave obra de Cassirer

72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte

e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a

histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas

depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o

nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica

da contemporaneidade

89

o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se

separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73

Uma teoria da significaccedilatildeo

Linguagem e Loacutegica

Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa

aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do

conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam

mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras

epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui

fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da

significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para

a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso

meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo

Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do

conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos

sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer

73

Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz

distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23

74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral

os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de

Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua

obra

90

ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de

conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa

apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua

estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de

significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e

o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da

significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)

Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge

profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente

entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro

preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente

voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75

Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se

evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse

parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da

questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de

Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por

75

Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-

cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo

eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa

funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas

metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas

ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem

ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser

agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos

ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo

satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se

encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre

verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p

29)

91

meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da

significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma

linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e

tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de

uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do

projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave

formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo

(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a

loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76

Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave

humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica

toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de

verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em

relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que

a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a

de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas

matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana

como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em

76

Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus

Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo

77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics

(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como

bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em

que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa

filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de

qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)

78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que

tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento

[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito

92

relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia

analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que

ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia

natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico

mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo

psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia

da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e

social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da

linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)

O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como

o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a

dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva

como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da

ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e

privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o

primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece

estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta

em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo

de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se

sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da

Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da

linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na

93

filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que

percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou

em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria

significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem

sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios

idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute

suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais

amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo

de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da

assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um

retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este

primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor

ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza

imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do

espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um

siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)

Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela

inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa

79

As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato

este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero

historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo

representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados

temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso

constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p

23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo

80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas

94

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio

em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da

coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de

algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa

ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma

realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em

Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-

se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra

universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir

todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas

fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de

totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde

cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute

capaz de expressar o ser

ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do

cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees

opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do

devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve

comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)

Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem

e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de

Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma

significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si

mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]

95

ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas

como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que

a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda

pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o

modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)

Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo

linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes

para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash

embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de

participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo

Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela

soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo

ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se

portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada

nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras

aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a

designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma

bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)

Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas

jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer

ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as

distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem

96

verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o

contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As

categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam

simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da

oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de

modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da

substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e

qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos

adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν

o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis

quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na

liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua

no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de

atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era

indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda

que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os

domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos

seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a

81

Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the

Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo

loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para

aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela

linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais

arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a

diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral

para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p

312)

82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela

causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute

97

comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash

vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada

quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da

natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de

surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves

ciecircncias do espiacuterito

Linguagem e verificaccedilatildeo

Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do

conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir

de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter

enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do

conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo

expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida

Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de

idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito

ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83

Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma

caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo

sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato

ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute

de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo

representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo

considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica

tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)

83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim

ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)

98

Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as

particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo

humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa

tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon

mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas

das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash

seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do

significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de

cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da

linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem

enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela

ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em

parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico

da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem

natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave

anaacutelise semacircntica

ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo

loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais

ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da

bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela

natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do

mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e

reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar

noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime

99

justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no

mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84

Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida

enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de

verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo

tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a

partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como

parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos

ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem

uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade

falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma

correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise

empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente

e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra

de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM

p 210-11)

Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser

considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar

que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das

formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para

todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de

mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus

84

Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma

filosofia da cultura

100

objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel

mas sempre como uma construccedilatildeo

ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave

pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela

compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de

mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)

A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada

aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso

significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos

postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa

ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por

meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo

igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico

fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant

com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas

Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de

vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora

resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da

significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo

de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da

85

Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a

mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo

para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e

histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e

significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada

101

filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da

formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da

ciecircncia

Pregnacircncia Simboacutelica

Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave

teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo

das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do

meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de

todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma

filosofia da cultura

A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute

dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o

filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a

partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria

das formas simboacutelicas

ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como

uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo

bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa

Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato

como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre

categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um

contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do

campo cientiacutefico (p 48 49)

102

aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados

julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua

organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo

ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de

significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86

De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute

anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido

abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende

naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo

princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e

o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de

significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal

sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim

dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno

entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de

significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a

totalidade da experiecircncia

ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio

assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a

86

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica

a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54

87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a

ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos

ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na

configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis

88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a

funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida

103

pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos

intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma

determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a

unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)

Convencionalismo e significaccedilatildeo

Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)

dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos

siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo

residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer

concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a

linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras

de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a

afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a

um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda

a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria

linguagem

89

Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de

outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses

ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o

filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a

obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro

possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte

histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar

ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a

priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de

Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente

analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)

104

ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos

simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato

social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel

somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e

forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)

Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno

da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e

simbolismo artificial

ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a

consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao

simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que

necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada

momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora

destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz

uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da

consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado

possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente

se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo

fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele

ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso

particularrdquo (PSF I p 62)

A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a

artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as

definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo

natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo

105

sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora

tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o

convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do

fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel

O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da

significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa

funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro

lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo

recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a

algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor

ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia

que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no

entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p

63)

90

Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente

individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele

tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente

inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute

uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de

Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de

cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a

ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes

de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de

Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito

agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a

dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O

problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem

importacircncia para o autor

106

Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia

crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o

fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase

de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos

ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo

criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do

significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos

natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si

mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados

complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)

Sensacionismo

A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia

simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os

empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida

na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das

impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos

elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois

problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os

sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de

sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar

que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que

sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das

91

Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e

LOFTS 2000 p 1 2

107

sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da

proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash

e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em

reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos

referenciais convencionais evidencia a falha do argumento

ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere

limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas

quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua

energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente

bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A

reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o

mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo

(PSF I p 37)

Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado

fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o

compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais

sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)

ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida

por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos

sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela

para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da

sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute

simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele

fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido

transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para

108

comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de

significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)

O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente

influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos

conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da

causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza

negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente

diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com

Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo

concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como

dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o

postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo

mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a

totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia

ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na

medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com

determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta

uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia

constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)

Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a

representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso

92

Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma

tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave

ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo

aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97

109

de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos

como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em

comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer

agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode

ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois

ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo

pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente

como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo

Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo

constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)

Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo

se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo

como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a

consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao

problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida

independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo

de todo o sistema topoloacutegico

Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da

unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a

apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en

passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um

ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos

que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda

percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma

110

referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a

brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem

em mimrdquo diz o autor

ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo

requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades

particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado

com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa

experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)

Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e

entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo

e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees

conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se

pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a

unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser

entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo

ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como

uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em

relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa

a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos

as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus

elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no

111

sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e

direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93

Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada

particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a

peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em

particular) de modo a ser definido objetivamente

Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada

em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos

diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir

entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao

ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da

consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem

p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de

organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no

momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta

disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da

histoacuteria94

93

A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento

reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais

tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute

precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente

dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um

bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero

diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo

94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante

nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee

em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e

produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente

112

ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos

os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em

um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que

determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na

denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas

estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a

expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)

Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a

modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o

cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada

em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na

primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira

com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais

articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito

semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo

Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo

causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de

modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e

daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a

modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o

espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de

bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus

momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de

configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no

pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de

organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se

distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a

organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)

113

significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande

multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a

capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na

verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do

espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta

ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM

p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente

diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na

histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em

textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas

inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir

ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um

exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que

cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo

quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz

ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia

nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e

cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma

determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo

de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas

95

No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave

questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um

esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave

adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave

medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde

os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a

articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94

114

precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas

apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma

estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado

puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a

construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico

distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente

espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma

ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos

meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na

forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade

animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente

ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular

e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma

determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades

recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a

entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela

torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal

geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como

um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se

por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas

tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta

negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente

irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal

mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a

ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior

noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica

temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia

esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma

para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia

matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela

115

uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa

lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis

formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades

e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal

de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez

estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha

como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal

abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de

fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar

os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas

como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder

factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo

esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da

significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso

Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura

ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida

somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de

uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e

respirardquo (PSF III p 200-01)96

Fenomenologia e intencionalidade

Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no

corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo

natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a

ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de

96

O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica

116

intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da

questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl

ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como

as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a

relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟

no outrordquo (PSF III p 197)

Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl

ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo

(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA

consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver

de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave

racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)

De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos

sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de

clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo

e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III

p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo

se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito

do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo

Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica

ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si

mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente

abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da

117

representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo

presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico

sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p

199)

No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O

Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste

na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre

mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato

ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio

da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando

nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟

Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se

estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de

bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl

entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional

entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser

separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute

gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em

dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e

mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa

separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos

outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o

profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)

Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual

ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas

118

aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da

concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma

revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as

fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente

traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade

ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave

criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de

apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes

tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses

mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa

proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo

sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p

33) Sendo assim

ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede

trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio

material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟

quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo

fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)

A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como

uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto

de vista da consciecircncia

ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟

mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e

119

sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma

criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se

constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva

que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo

(Idem p 70)

Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute

um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para

si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse

entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e

agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende

designarrdquo (PSF III p 202)

Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel

empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos

pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que

se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem

escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar

introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao

contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se

reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo

mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a

ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo

97

O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente

ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e

pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso

admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da

natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que

eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)

120

(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do

dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da

linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto

apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute

a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel

(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma

expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo

pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base

fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a

pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela

mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao

mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo

apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)

A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da

consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do

desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a

partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que

98

Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve

inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute

bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []

Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato

fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser

entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito

da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit

De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de

modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a

concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo

concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein

121

ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja

algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um

princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a

tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)

Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e

interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as

descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo

satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo

por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior

sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar

especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro

motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico

essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo

metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma

seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios

ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja

nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua

sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente

indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura

a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua

interaccedilatildeo

122

O animal symbolicum

Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar

passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo

em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas

humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome

Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave

psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar

como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo

os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer

evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em

reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual

possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim

ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os

animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a

99

A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo

contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a

cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido

que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico

dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente

abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em

Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem

duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles

elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus

instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e

estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui

igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro

natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo

retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas

ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo

123

relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute

incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos

condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter

essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute

se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e

mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um

estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a

universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute

a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso

especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma

quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo

capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo

Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido

objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese

de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem

meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo

de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao

ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)

Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos

pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu

ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo

agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum

124

Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem

com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma

garota nascida cega surda e muda100

ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante

aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo

tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber

Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando

quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo

Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais

tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela

debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a

caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo

da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e

ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-

u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou

para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome

Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito

excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas

horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde

seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto

perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um

nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que

natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por

ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e

100

Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo

detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento

ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para

fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia

simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os

objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente

125

pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e

a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos

que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101

Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute

distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da

psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve

como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos

sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o

conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se

fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de

conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual

efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente

o que se pode afirmar eacute que

ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do

material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem

pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos

A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo

geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila

cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do

animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)

Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do

poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila

do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo

101

Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61

126

horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio

desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que

natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-

inscreve em cada indiviacuteduo

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito

A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria

das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do

animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo

deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em

sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a

proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da

atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a

necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que

constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em

seus processos

Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente

dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De

102

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo

engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der

Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de

consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte

103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final

Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir

127

fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da

Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio

ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis

ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em

sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada

por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento

filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a

totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade

possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu

princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo

de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu

desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104

Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de

desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs

funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel

Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa

[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima

104

Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the

Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-

46

105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada

estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes

em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida

106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a

liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o

termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma

portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico

128

foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades

caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula

por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e

independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui

diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua

estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e

desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada

sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que

o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo

expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107

Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem

fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas

simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa

separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma

uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel

no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em

relaccedilatildeo agraves demais

remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido

por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as

premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que

exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem

interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash

nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer

supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido

tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto

ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes

constituir simbolicamente o objeto para si

107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase

sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e

espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos

129

A funccedilatildeo expressiva

Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel

a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas

fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de

acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que

Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia

O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo

da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos

bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma

abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)

A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva

de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este

primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui

designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da

fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que

de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da

consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia

natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo

deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo

108

Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a

explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez

mais adequado desenvolvimento

130

copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109

Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro

tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura

atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada

pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo

ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter

puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O

entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo

(PSF III p 63) 110

Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave

investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo

ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo

puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas

nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem

antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve

ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo

significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com

109

Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma

construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees

que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo

da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da

significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]

aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no

capiacutetulo seguinte

110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos

reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das

ciecircncias do espiacuterito

131

vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel

somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de

coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de

significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e

causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre

as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p

100)

Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute

radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e

pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e

depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente

oposta como a consciecircncia diferencia ambos111

ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo

fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o

mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num

sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo

(KROIS 1987 p 57 58)

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de

acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica

(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em

111

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute

o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere

explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que

fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A

pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo

corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)

132

relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo

empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica

Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar

conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da

consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre

consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do

mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas

tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva

deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do

mito

A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a

fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende

a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um

epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da

mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela

coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade

que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute

subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo

objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo

(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia

da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a

um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da

Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se

apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de

organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser

133

um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p

191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a

de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do

estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim

como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui

que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma

distinccedilatildeo ainda foi feita112

Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso

privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer

ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da

expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento

conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo

teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado

Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de

centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua

particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de

mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)

Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo

estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele

deve se integrar ao

ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute

mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o

112

Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana

Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss

134

mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia

do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu

comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da

intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)

Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o

primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio

primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica

serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas

ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um

meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro

sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da

consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social

assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua

verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo

nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)

Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade

ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da

consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva

Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico

apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo

psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria

razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus

135

domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se

apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113

ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da

generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente

entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se

em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for

visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)

Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento

Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma

proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo

(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas

mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito

como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se

pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo

histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute

necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito

entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash

natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da

cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar

por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)

113

Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees

sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A

questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito

Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao

problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos

136

A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa

ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada

metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo

meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na

modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta

da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica

em sua forma

ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da

representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a

consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo

admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico

pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente

inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila

que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115

Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos

metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a

ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades

que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se

voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo

114

ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de

formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do

tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo

um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)

115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo

natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em

The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas

claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII

137

espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em

todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de

um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees

do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da

fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico

para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu

Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia

antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente

entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode

senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como

ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por

isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute

pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem

como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas

caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se

apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente

ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada

fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou

inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo

sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas

determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles

mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos

que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)

Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao

contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia

138

consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em

oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do

mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da

consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei

natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre

subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia

da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente

aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees

lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de

paixotildees e pulsotildees subjetivas

ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e

autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a

realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se

manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de

configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117

Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo

mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como

116

A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os

fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em

seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da

religiatildeo

117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma

tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui

tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido

como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que

medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo

natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um

inconsciente individual

139

parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu

desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente

dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a

primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica

ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo

da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e

determinaccedilotildees posteriores

ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute

absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do

corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com

efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa

sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu

sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e

indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118

As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade

dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se

convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)

118

Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos

distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto

de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf

PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento

miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como

quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem

justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo

ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece

como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo

de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da

alma como sede da personalidade e sede da vida

140

da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo

(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa

exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo

tempo para em seguida se reunir120

Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros

indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees

ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como

membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de

um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele

possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas

manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos

invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-

se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p

298)

Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a

accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como

independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao

exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser

entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo

proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o

119

Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da

Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a

aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)

120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e

o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo

de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no

capiacutetulo seguinte

141

conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto

tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a

consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao

sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura

social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a

personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma

seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas

A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer

vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o

homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia

natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer

ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em

letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de

repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)

E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de

interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por

mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as

outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de

121

Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma

dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a

consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem

de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos

outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas

miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si

Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo

totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27

142

todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada

uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o

conhecimento-de-si do homem

Funccedilatildeo representativa

Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros

passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a

construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em

que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os

fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia

ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos

encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo

aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a

regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a

multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente

numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a

origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da

representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi

mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)

Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas

miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo

122

De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem

natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na

obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das

formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem

143

tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a

construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam

da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as

demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para

o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem

linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao

mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de

Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a

ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem

do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia

De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista

fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da

consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos

fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos

como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen

Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da

concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo

nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees

e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com

a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por

conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e

linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e

da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer

estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos

menores e artigos publicados por Cassirer

144

ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este

ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se

diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma

forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos

denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)

No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito

particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]

Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de

denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo

reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a

metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma

condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo

[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo

ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de

um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho

mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma

miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma

determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do

profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista

miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma

autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma

transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em

que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123

123

Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto

Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss

145

Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se

desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo

que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca

inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de

um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem

lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui

fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que

medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras

determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram

capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a

distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda

que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e

lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125

No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa

[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras

determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em

que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e

124

No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o

inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre

Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da

oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na

plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo

linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva

ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio

125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e

simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos

poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes

romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua

idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp

cap 2

146

desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as

divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees

humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas

representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas

desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas

Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto

a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre

quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute

que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas

em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o

mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias

criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para

poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico

de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de

destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo

soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de

Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a

linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que

o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer

valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da

qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e

religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa

fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel

determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)

A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves

147

imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade

das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana

ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece

como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido

necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais

captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)

As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as

configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam

a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer

toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-

iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo

desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no

Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas

por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma

que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o

indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a

divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de

sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser

caracterizado como o supremo e puro bem moral

ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de

tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo

reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de

objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e

niacutetidordquo (PSF II p 408)

148

A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre

deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de

tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash

seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na

dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a

caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada

pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da

consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao

mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela

somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer

A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as

enquanto tais

ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura

bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a

todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse

comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo

(PSF II p 432)

A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo

demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se

confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia

Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e

enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria

149

realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do

poder criador do espiacuterito

Funccedilatildeo significativa

Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo

representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente

nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto

grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo

significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro

tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as

consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de

conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a

luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no

programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja

o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em

relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura

humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma

simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o

Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a

consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do

gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)

Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a

inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a

ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo

150

de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste

com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao

mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma

espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que

todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126

tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo

trata por diversas vezes

O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de

signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do

qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz

fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se

que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua

relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia

ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada

tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a

linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que

126

Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas

tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da

consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura

127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e

rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se

desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo

realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento

toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute

pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem

estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar

alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)

151

ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde

quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas

E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda

comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de

uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)

Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of

Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da

filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de

natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais

(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a

respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento

racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles

a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo

com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos

obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu

procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam

desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash

e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo

uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo

(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees

sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas

Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo

ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito

uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar

os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela

152

falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as

leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e

mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)

Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a

linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que

Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de

conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute

escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem

Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos

ao domiacutenio da mathesis universalis

No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas

agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que

Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar

e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao

mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser

suficiente

ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma

certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas

palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128

128

No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em

fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a

entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)

153

Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados

para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o

momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129

ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do

conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo

Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente

novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente

diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)

O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute

que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem

eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros

esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos

da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O

caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais

pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no

conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de

superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica

129

Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma

da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de

maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da

astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem

seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o

territoacuterio do ser (Cf EM p 343)

130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees

ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na

Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os

trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo

154

pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e

elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a

linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao

qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia

De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de

Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A

depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos

presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana

dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do

espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam

aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer

ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e

o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na

Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste

ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme

que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo

sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do

movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito

culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de

sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos

anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros

momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre

155

todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do

conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)

Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada

liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash

natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se

subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute

somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a

consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do

que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o

estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no

momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema

Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do

ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de

encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que

incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por

paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa

orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o

levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da

cultura como jaacute tratado

Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de

progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande

caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash

o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo

progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser

descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz

156

o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal

como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita

como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter

especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que

conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo

ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo

do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse

processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder

de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave

sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa

unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes

contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo

podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e

obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo

denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e

complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um

novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os

contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na

contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)

O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da

dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela

diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de

uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o

momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas

se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A

passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez

157

disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash

incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como

conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo

entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo

Cassirer

ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento

de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de

determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As

etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves

outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A

evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees

espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e

completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p

392)

Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma

delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo

constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta

disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura

acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma

a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica

131

ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser

indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo

pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na

lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser

curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no

seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado

humanardquo (LDST p 327)

158

ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica

podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas

estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da

nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos

aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica

deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos

atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)

Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva

libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta

Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser

substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos

enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)

159

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL

O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas

mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas

Epiacuteteto

A Realidade Simboacutelica

Soliloacutequio

Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de

que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe

natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o

filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de

elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o

afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento

mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo

afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um

envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir

da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e

132

Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos

ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo

deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e

reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim

recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo

qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos

parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para

cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma

forma simboacutelica como veremos adiante

160

progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de

coisas mas num mundo de significados

ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo

simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente

natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em

proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as

proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo

mesmordquo (EM p 48)

Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma

mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as

questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash

natildeo se colocam

Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel

processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio

dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e

eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes

primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de

sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro

momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este

veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave

esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo

deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem

(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar

161

agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da

vida

ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo

em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos

de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo

consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-

las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se

consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da

existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta

existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para

transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)

O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito

marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em

relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer

afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em

espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo

133

Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura

de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada

de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias

disso para a sociedade em geral 134

Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente

fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees

tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute

consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do

assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia

contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto

mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A

mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento

162

simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo

fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos

siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor

ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como

siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem

[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um

real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio

mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este

autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma

bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas

especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio

delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-

se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)

Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se

ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do

conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional

Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava

pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto

das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo

como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem

mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer

humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo

ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da

imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte

primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma

tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)

163

tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da

concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima

consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo

loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos

Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou

mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja

marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave

ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem

fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja

perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de

significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a

linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave

psicologia behaviorista)

ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa

linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias

que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras

linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da

linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e

pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu

conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)

A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes

especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de

conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de

Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou

do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)

164

Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa

forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto

a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um

denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de

passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel

traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria

mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas

aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em

particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser

dito em uacuteltima instacircncia o mesmo

ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o

da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas

ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na

proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e

conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)

Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade

entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do

conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que

barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores

prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um

lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas

respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao

mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave

mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas

165

encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo

que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse

ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade

independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua

interaccedilatildeo

ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute

cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das

manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta

unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a

diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo

produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)

A tarefa simboacutelica da ciecircncia

As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo

de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A

novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda

que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar

hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia

que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada

135

Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel

assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas

como absolutamente incomensuraacuteveis

136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no

tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das

Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um

todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim

chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88

166

isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja

um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe

postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que

toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo

Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute

vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo

ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas

vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia

suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos

Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que

Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137

bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da

consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e

representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a

criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus

procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer

uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses

obscuros

Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma

alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na

antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um

137

Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno

da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo

em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca

das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias

sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa

preocupaccedilatildeo

167

domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves

demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees

concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para

tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras

obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la

intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas

simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas

baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer

mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam

cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138

ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura

apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto

uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera

particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do

ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as

orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de

culturardquo (PSF I p 24)

Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar

forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em

que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender

qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir

do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave

138

Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica

(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a

caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a

imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila

168

atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave

linguagem ou ao mito

De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo

central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o

desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de

compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila

espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves

demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia

uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode

pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado

o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de

envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica

O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na

filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em

relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer

que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do

espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos

concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a

praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de

Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao

positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu

momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da

repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso

139

Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de

1916

169

cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela

ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade

Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da

ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo

com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo

entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho

que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da

eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado

Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de

Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram

profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo

central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008

p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas

140

O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf

GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em

torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente

apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte

inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na

Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo

tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos

sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo

havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo

em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um

domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto

mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as

publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A

retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica

publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos

EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do

autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do

que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma

dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra

170

preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares

verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou

falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como

a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou

as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo

radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados

metafiacutesicos nele contidos

Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os

demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como

tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de

conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua

obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo

entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento

da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda

que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de

outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os

141

Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta

da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo

necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo

que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo

introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo

declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de

ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com

Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)

a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no

iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de

Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da

relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos

171

campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso

de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft

O projeto de uma filosofia da cultura

Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu

aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi

idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das

reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum

entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a

instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves

demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo

que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e

positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das

Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de

maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da

Escola de Marburgo142

Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito

ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo

(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo

142

Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando

da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este

encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e

sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94

172

epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e

essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo

abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de

Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos

em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do

filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por

outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos

haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel

para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a

discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o

outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo

deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o

naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo

do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova

objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais

que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e

aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise

do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de

articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do

espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente

plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do

termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo

elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura

por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos

173

Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo

humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de

determinadas praacuteticas culturais em particular143

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser

associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por

Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela

que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer

faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras

consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144

Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre

ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as

ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e

agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos

particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos

eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com

143

Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o

tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como

sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura

144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da

Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden

a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo

metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente

analisada como mostraremos

145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua

tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos

conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo

agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta

suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)

como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto

174

aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado

da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a

proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o

estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a

proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as

ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu

trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo

(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser

trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para

natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo

(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda

parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da

Escola de Baden

ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a

alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia

matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica

Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser

investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um

sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge

a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade

objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele

estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a

146

Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a

considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico

[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa

realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e

singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96

175

priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi

provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem

suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente

onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)

Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo

baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo

de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido

em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem

fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo

anterior

ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza

agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais

Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos

nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode

nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)

A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla

de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em

direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]

orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente

Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele

147

Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um

pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum

equiacutevoco de interpretaccedilatildeo

176

ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das

transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro

caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a

alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um

absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)

A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da

percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico

corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual

somente surge a significaccedilatildeo

ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas

do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas

como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas

devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟

baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo

(Idem p 95)

Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo

loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para

Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta

da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os

produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)

Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar

no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em

suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo

significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como

177

exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao

observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela

coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem

de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos

atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma

significaccedilatildeo radicalmente diversa

ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao

inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a

conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o

uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de

uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo

satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)

A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis

significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade

podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da

percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto

mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de

significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]

cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e

(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural

natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute

apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de

Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que

isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem

178

reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de

significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de

condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da

discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo

Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer

cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de

Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando

Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek

Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a

obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias

de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com

o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava

inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos

escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de

agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A

nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado

ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados

quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo

com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da

histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela

sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e

classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um

problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de

148

Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e

Gay (1968)

179

meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo

caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este

livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias

oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua

fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)

O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o

ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash

dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio

Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese

ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura

alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)

O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay

(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de

democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que

se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte

consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que

perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela

atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a

cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash

por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras

naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)

180

Cultura e Civilizaccedilatildeo

Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo

da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal

rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as

duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute

uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que

Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo

(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que

proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo

Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita

na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso

representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao

determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do

espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em

Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que

modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista

Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por

conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades

mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em

que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito

ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito

entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a

ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a

arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por

181

construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em

relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a

religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito

chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como

o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave

constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em

que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade

Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem

apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era

sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante

virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p

50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de

Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute

depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa

transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de

civilizaccedilatildeo

Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave

histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como

paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no

149

O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto

dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade

jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute

notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a

filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo

sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da

filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural

182

idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de

razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a

um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo

traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo

moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade

impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash

cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder

portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja

correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por

exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do

tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura

Diversidade Cultural

Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do

espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido

teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito

absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e

(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem

aponta Krois (2002 p 28)

150

Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau

Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca

151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de

animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo

da humanidade cosmopolita

183

ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e

vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo

da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha

linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em

cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma

novas formasrdquo152

A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico

convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo

positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura

como um processo essencialmente relativo153

Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura

natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo

momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que

por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu

ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do

crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154

percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do

seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de

diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer

Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo

152

Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf

1987 p 176-181 ou 2002 p 28

153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que

marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta

(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a

intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza

154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies

em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960

184

da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de

passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia

saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute

norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no

singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo

estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute

necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da

filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute

evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos

estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos

variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa

Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em

vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou

mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre

povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir

corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo

das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem

no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de

fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti

mesmo

185

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Nota de esclarecimento

As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as

secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute

ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao

longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como

fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e

assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso

nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi

efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira

publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo

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___________ The Development of Cassirer‟s Philosophy Introduccedilatildeo a BAYER T

Cassirer‟s Metaphysics of Symbolic Forms A Philosophical Commentary New

Haven Yale University Press 2001 p 1-37

  • GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • LISTA DE ABREVIATURAS
  • SUMAacuteRIO
  • PARA LER CASSIRER
  • ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
    • Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
    • Escola de Marburgo
    • Doutrina de Marburgo
    • Substacircncia e Funccedilatildeo
    • Rupturas
    • Cisatildeo
      • AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
        • Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
        • Conceito de forma simboacutelica
        • Uma teoria da significaccedilatildeo
        • Pregnacircncia Simboacutelica
        • As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
          • O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
            • A Realidade Simboacutelica
            • Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
              • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

3

Siacutembolos Tudo siacutembolos Se calhar tudo eacute siacutembolos

Seraacutes tu um siacutembolo tambeacutem Olho desterrado de ti as tuas matildeos brancas

Postas com boas maneiras inglecircsas socircbre a toalha da mesa Pessoas independentes de ti

Olho-as tambeacutem seratildeo siacutembolos Entatildeo todo o mundo eacute siacutembolo e magia

Se calhar eacute E porque natildeo haacute de ser

Siacutembolos Estou cansado de pensar

Ergo finalmente os olhos para os teus olhos que me olham Sorris sabendo bem em que eu estava pensando

Meu Deus E natildeo sabes Eu pensava nos siacutembolos

Respondo fielmente agrave tua conversa por cima da mesa

It was very strange wasnt it Awfully strange And how did it end

Well it didnt end It never does you know Sim you know Eu sei

Sim eu sei Eacute o mal dos siacutembolos you know

Yes I know Conversa perfeitamente natural Mas os siacutembolos

Natildeo tiro os olhos de tuas matildeos Quem satildeo elas Meu Deus Os siacutembolos Os siacutembolos

(Aacutelvaro de Campos Psiquetipia)

4

RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia

das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2010

O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees

envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da

obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as

questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua

estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos

os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por

Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de

todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um

processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo

apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de

seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o

filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo

Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas

criacutetica da cultura

5

ABSTRACT

GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master

Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2010

This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns

out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt

with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s

work its structure and its main methodological postulates to eventually understand

the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of

human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual

activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do

so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his

philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher

wants to differentiate his own work from

Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of

culture

6

LISTA DE ABREVIATURAS

Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das

iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e

outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim

espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas

demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de

Cohen e Kant

Obras de Cassirer

EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie

EM Essay on Man

EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit

ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

KMM Kant und die moderne Mathematik

LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought

LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft

MS The Myth of the State

PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache

PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken

PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis

PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen

SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff

SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften

SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen

SMC Symbol Myth and Culture

Obras de Cohen e Kant

KRV Kritik der reinen Vernunft

KTE Kants Theorie der Erfahrung

LRE Logik der reinen Erkenntnis

7

SUMAacuteRIO

PARA LER CASSIRER11

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14

Escola de Marburgo 17

Panorama filosoacutefico 17

Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento

Ambiente poliacutetico 20

Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do

Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do

neokantismo

Doutrina de Marburgo 24

O meacutetodo transcendental 25

Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o

materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento

puro

A noccedilatildeo de forma 28

A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo

Conhecimento e construccedilatildeo 29

Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano

Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica

Substacircncia e Funccedilatildeo 31

A tarefa da nova loacutegica 31

Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional

A doutrina do conceito geneacuterico 34

A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de

notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo

Os conceitos matemaacuteticos 39

A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da

seacuterie

Conceito de funccedilatildeo 42

Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A

universalidade concreta

Sobre a loacutegica simboacutelica 45

8

Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e

a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental

Rupturas 50

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50

Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez

matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito

Sobre a teoria da relatividade 55

Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio

Cisatildeo 58

Origem comum 58

Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo

Loacutegica ou cultura 61

As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63

O lugar da razatildeo 63

Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de

conhecimento

O homem no leito de Procrusto 66

O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud

Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo

Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo

grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70

O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria

Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental

Conceito de forma simboacutelica 74

Conceito de siacutembolo 74

Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do

siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80

Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt

Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo

simboacutelica

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87

9

Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e

forma simboacutelica

Uma teoria da significaccedilatildeo 89

Linguagem e Loacutegica 89

Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo

Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o

λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito

Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser

Linguagem e verificaccedilatildeo 97

A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da

revoluccedilatildeo copernicana

Pregnacircncia Simboacutelica 101

Convencionalismo e significaccedilatildeo 103

Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa

Sensacionismo 106

A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo

dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva

Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na

consciecircncia O exemplo da linha

Fenomenologia e intencionalidade 115

Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo

Cultura e praxis

O animal symbolicum 122

O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen

Keller

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126

Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e

fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva 129

O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e

alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A

anterioridade da vida coletiva

Funccedilatildeo representativa 142

Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave

arte

10

Funccedilatildeo significativa 149

Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu

Bohr matemaacutetica e ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia 155

Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da

cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de

Hegel agrave aacutervore de Darwin

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159

A Realidade Simboacutelica 159

Soliloacutequio 159

O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade

Autonomia e incomensurabilidade

A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165

A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento

intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171

O projeto de uma filosofia da cultura 171

A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft

Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A

biblioteca de Warburg

Cultura e Civilizaccedilatildeo 180

Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e

progresso Razatildeo e homogeneidade

Diversidade Cultural 182

Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro

da discussatildeo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187

11

PARA LER CASSIRER

Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito

Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas

Nelson Goodman

Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma

nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho

Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a

filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo

especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com

exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da

utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os

textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo

se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma

filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros

Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou

historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os

proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer

como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria

demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a

imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para

Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para

ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De

outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne

conhecedor da histoacuteria da filosofia

12

Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo

vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas

deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente

dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido

para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota

aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer

De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas

dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de

discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que

ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa

dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e

em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo

historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes

eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e

autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas

entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem

de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo

historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de

conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras

coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em

direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta

de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute

elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel

ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias

diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem

13

opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias

histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral

O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra

muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas

ideacuteias

Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da

filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho

se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de

Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em

que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa

forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de

Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo

estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez

de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta

de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a

inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou

outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os

estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro

filoacutesofo

Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a

filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de

outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo

quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash

desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais

14

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso

ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais

remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro

Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]

Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no

campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar

o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito

[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do

conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente

para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo

fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa

epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente

circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra

na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem

entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da

constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia

Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar

alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com

outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda

que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo

restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente

15

aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio

agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do

mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo

peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc

conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito

Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual

chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte

os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita

demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que

essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave

esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer

tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa

metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos

As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se

pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo

que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia

das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees

do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua

produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff

und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos

que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica

Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo

intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca

bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na

citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute

16

num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia

e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por

fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a

mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como

isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o

leitor no magnum opus de Cassirer

Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra

de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima

citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de

fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do

programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do

esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser

tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo

epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo

transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere

significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1

Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do

filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que

1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic

Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do

autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees

poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky

que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de

Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer

pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos

comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada

um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos

17

reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das

formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma

distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a

necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de

publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do

programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas

na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a

perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do

projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da

filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees

e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo

condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao

texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia

esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de

uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar

especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de

sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate

sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais

Escola de Marburgo

Panorama filosoacutefico

A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e

multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em

18

resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os

adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do

tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o

ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986

p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter

especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo

de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente

agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de

expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento

ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava

as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das

ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do

2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de

Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute

assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-

criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)

tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo

transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)

e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)

3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves

quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa

eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash

assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente

diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando

um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf

p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia

em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke

(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o

filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio

concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas

4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL

(2001) e POMA (1997)

19

espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash

Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista

quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de

reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves

tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de

Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da

situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de

Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute

especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela

[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado

para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo

trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico

primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel

central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que

o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras

palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves

Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os

valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash

curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou

propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente

na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso

5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse

caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo

20

Ambiente poliacutetico

No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo

coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo

Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com

vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo

positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da

Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo

de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio

filosoacutefico da DDR

ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima

associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia

alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse

periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da

Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE

1986 p 3)

Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa

da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se

for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo

criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou

Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo

Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir

a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes

distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo

que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-

21

filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute

corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas

vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas

natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves

Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao

positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias

naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que

significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar

do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original

adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a

Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a

interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras

palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o

meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a

6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as

quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas

ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque

satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo

de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o

progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um

afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que

segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo

surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger

aluno de Rickert

7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de

histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o

Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft

(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os

fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a

transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No

terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e

conceitos nas ciecircncias culturais

22

adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no

campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma

questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de

uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as

consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se

inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do

espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada

pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da

tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado

(SKIDELSKY 2008 p 23)

O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer

seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse

sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado

inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral

fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik

des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao

caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a

atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo

Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta

balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e

aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia

racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O

8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as

ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em

instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute

margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de

Heidegger

23

desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as

tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o

posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da

vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e

reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas

Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo

tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem

Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de

Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das

Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu

final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler

ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O

primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono

do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno

a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica

(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em

torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute

marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do

neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante

particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela

Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp

e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises

intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento

9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3

24

exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por

fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior

da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de

Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no

campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em

sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10

Doutrina de Marburgo

O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por

razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar

trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia

que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do

meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees

equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo

resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e

do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de

Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa

doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das

limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram

agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees

10

Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do

neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao

leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem

exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia

o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo

ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo

25

O meacutetodo transcendental

De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute

talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12

que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia

de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia

transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas

pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito

de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele

atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas

condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen

esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da

ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim

ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo

descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo

nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da

11

Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas

consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da

Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do

neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz

daquela serva desta)

12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos

distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo

estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica

seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que

Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas

focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua

obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual

e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por

Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a

Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)

26

ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal

proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14

A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a

questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado

por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de

Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente

uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave

ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de

conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que

Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash

nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi

concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das

ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de

Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-

lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de

entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)

Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de

Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na

13

ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58

14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke

(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-

Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem

rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina

de Marburgo

15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)

Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt

16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte

de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que

significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo

27

separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma

forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que

de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas

da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos

natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade

loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente

conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela

consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica

do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um

reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18

Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo

produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da

histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves

ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram

publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema

do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo

das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois

positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de

Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da

obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da

experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma

legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento

Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)

17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto

Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do

aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de

Husserl a respeito da recusa do psicologismo

18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de

Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola

entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante

28

pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos

gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental

A noccedilatildeo de forma

Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo

loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica

de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia

Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade

da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas

meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu

conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva

da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori

Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da

mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em

oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental

tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma

transcendentalrdquo

ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo

inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no

fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da

consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de

gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o

interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que

constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)

29

De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo

do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o

desenvolvimento histoacuterico Assim

ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e

Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias

empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental

kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)

Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)

para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori

regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende

mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de

conhecimento

Conhecimento e construccedilatildeo

Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia

exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo

19

A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do

entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica

newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem

condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da

coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia

Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto

os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da

independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori

constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo

30

(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma

construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute

conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a

experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute

passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma

forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees

da natureza

Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo

de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg

Segundo Koumlhnke esse princiacutepio

ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg

afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um

idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees

mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de

ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema

natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente

mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo

(KOumlHNKE 1986 p 178)20

Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem

diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a

passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute

fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento

20

Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma

ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente

ocasiatildeo

31

A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua

aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo

tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute

da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas

somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por

exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A

mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de

maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido

substancialmente modificadas

Substacircncia e Funccedilatildeo

A tarefa da nova loacutegica

Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases

fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua

primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de

1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados

da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia

desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do

desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo

foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o

terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem

de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de

32

Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o

domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que

vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde

Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada

para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua

inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo

satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos

avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua

ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22

O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes

desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees

levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava

haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas

investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus

postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles

O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute

radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o

trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da

Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia

ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das

ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que

21

Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem

22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto

onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e

o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der

gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)

33

se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias

ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave

elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje

progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos

pode afigurarrdquo (KrV B VIII)

Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo

ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um

campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas

levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O

julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho

da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)

O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este

dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um

importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente

neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia

criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica

tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido

em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto

satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o

corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico

alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele

Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de

seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que

34

novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em

primeiro planordquo (Idem ibidem)

A doutrina do conceito geneacuterico

A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas

alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta

as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa

de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica

atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os

elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras

palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia

de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o

ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)

donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da

formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de

processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas

ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas

em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa

riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas

() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas

de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)

Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do

conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash

35

e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira

expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de

elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise

uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de

suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza

precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio

sentido do ser

ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo

pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser

dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu

fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)

Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio

do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a

de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que

os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as

coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa

antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo

(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas

caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente

uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas

reais23

23

A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e

Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito

14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira

parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona

36

Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo

de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute

totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento

mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a

conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes

renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes

abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)

ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma

pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto

negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute

meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)

a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um

conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos

traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou

dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os

objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir

semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria

melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso

se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou

obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma

determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e

uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da

mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo

que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da

linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos

geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a

formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)

Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a

concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever

Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave

Marburgo como jaacute dito

37

Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose

agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo

alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem

sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p

7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha

loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo

para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui

notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia

o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos

pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em

decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade

independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento

verdadeiro

Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na

medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias

cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro

satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a

extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que

quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite

tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito

falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e

indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado

que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de

objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente

38

Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular

precisamente em suas particularidades de nenhum universal

ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do

particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele

deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las

muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)

Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da

abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular

da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito

psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos

gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo

se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo

no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou

lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a

identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das

particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash

incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees

sensiacuteveis

ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias

fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos

da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas

como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade

com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da

primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo

39

de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de

conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo

sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e

desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)

Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos

conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles

seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da

ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual

todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24

Os conceitos matemaacuteticos

Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no

acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode

ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados

deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos

nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do

pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos

24

Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica

igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade

metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute

tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram

comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo

processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)

Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito

entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela

ontoloacutegica ou psicoloacutegica

40

empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade

sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de

refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica

neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos

nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de

questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da

aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo

(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do

conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando

problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave

experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da

qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma

brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer

substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill

Cassirer diz

ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii

iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade

atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos

excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo

Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das

definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a

representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo

sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem

espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente

linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)

41

A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da

matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta

Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a

funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente

naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de

Aristoacuteteles

ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill

mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido

quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o

meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema

ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais

natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da

abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)

A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade

espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras

metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se

evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da

abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados

temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese

se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas

conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve

primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em

ldquoseacuteries de similaresrdquo

42

ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a

consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash

jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto

manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual

a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem

ibidem)

A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo

de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a

falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas

de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados

Conceito de funccedilatildeo

ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido

conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem

relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo

fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo

mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma

especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)

E por esta via

ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou

desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia

causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o

conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica

que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra

como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)

43

Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como

um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende

por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu

fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente

funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute

um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um

lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute

mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que

justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das

notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa

a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central

Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se

faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a

serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo

Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie

de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto

seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma

ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de

sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute

ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a

regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja

representadardquo (Idem ibidem)

44

Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F

representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a

serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25

Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de

ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva

caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos

conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um

matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz

de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da

foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos

geneacutericos

A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em

oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue

ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si

mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade

concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve

em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com

uma regrardquo (Idem p 20)

25

Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo

para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus

conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo

(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental

26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der

philosophischen und mathematischen Erkenntnis

27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer

sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo

pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito

embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras

45

O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e

ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas

particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os

casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos

conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute

inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais

enriquece em conteuacutedo

ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem

quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que

concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses

problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros

portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)

Sobre a loacutegica simboacutelica

Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser

lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os

avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental

ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na

descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De

acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o

neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com

os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave

46

reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p

52)

Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de

construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse

profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica

Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente

natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no

momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do

que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade

tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos

irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca

defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero

ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente

ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio

de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia

portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para

criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)

Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo

alienadardquo29 positivista

28

Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o

outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do

Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente

sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como

uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293

29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo

da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da

47

Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito

embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por

indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado

desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de

Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a

analiacutetica

ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo

onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a

siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do

conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro

corolaacuteriordquo31

Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para

o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em

outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica

Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o

que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo

somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a

proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de

combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e

ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo

razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria

tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I

30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar

e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos

proacuteximos diasrdquo

31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54

48

de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos

imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a

qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o

problema central de sua obra de maturidade a cultura32

A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as

quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica

transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a

doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo

o contraacuterio

ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade

obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com

isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na

determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis

formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato

sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)

Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente

pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo

sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado

que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo

ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um

32

De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em

Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o

texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da

mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no

mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo

pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura

49

iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar

o ldquoideal no realrdquo)

Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da

loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido

trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido

o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo

ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental

[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a

construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute

entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das

aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]

somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da

matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34

Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua

exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente

tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo

que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos

conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100

paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente

na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel

33

Cf esp cap 4

34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer

parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser

alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim

ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o

posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo

50

inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas

ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a

Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em

seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e

o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo

O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e

Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim

de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

Rupturas

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem

Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e

Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de

Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns

indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do

35

Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute

incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da

quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que

ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares

e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-

4)

36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho

como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por

si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de

uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra

51

neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que

respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de

Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen

especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento

em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua

fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema

transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen

em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do

homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen

endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia

e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui

Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de

relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a

relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria

ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como

errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no

conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo

de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma

categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo

inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da

realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)

37

Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel

Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf

1974 p 188-210

52

A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito

de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar

a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso

especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem

necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias

natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a

filosofia criacutetica38

ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal

qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que

ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um

fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia

natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a

questatildeo desse modordquo39

Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre

a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na

histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da

filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe

Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o

autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras

38

Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia

criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel

porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)

39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala

diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que

somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por

este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um

ser objetivo como algo significativo em seu todordquo

53

variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico

ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia

Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que

se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de

siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade

ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical

definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que

estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees

pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar

enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado

unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse

significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em

atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais

como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟

natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo

feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a

partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como

paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do

que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte

essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e

bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento

recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo

de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees

[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)

40

De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas

Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o

que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada

membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que

inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo

54

Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave

questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a

presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que

eacute proposto pelo sujeito41

Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas

razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que

comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente

matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais

fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se

referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo

[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de

realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo

ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que

conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese

intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo

subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)

Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de

inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor

ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de

objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma

estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo

41

Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de

Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte

55

particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente

familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas

intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a

acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-

intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)

Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros

passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do

espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente

questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja

evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade

num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para

as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar

de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento

particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para

a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917

Sobre a teoria da relatividade

Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa

dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de

Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e

todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o

agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a

fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee

um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick

por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo

56

com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia

criacutetica

ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico

geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que

jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria

funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)

Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de

investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides

e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de

tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma

concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na

Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade

de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo

Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und

Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e

primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico

Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da

Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de

maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o

que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De

42

A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s

Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15

57

acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no

total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande

obra

Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas

tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo

por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que

ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo

vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e

Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da

obra exemplifica

ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do

conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender

todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de

uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo

separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual

nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo

os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas

particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do

entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)

Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos

significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e

conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para

ilustrar Cassirer diz

43

Cf Ibid p 9-37

58

ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente

no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do

significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e

fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila

intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes

campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)

Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma

o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais

abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da

Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cisatildeo

Origem comum

Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de

Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da

filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por

Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o

entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento

anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute

exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash

44

De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger

que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o

assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)

59

Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo

formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico

publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit

nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi

aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de

Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo

influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e

proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a

Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46

que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de

maturidade47

Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e

Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras

proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu

desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas

45

Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente

no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)

46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida

a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento

como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento

de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a

obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7

47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica

partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como

beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo

haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas

carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em

recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas

de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008

esp cap 6

60

tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em

trechos significativos de seus trabalhos48

ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual

atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua

individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo

pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento

de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias

como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave

transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel

para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)

E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o

empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima

ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional

portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e

frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material

para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo

de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo

transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer

48

Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do

espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e

Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud

FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave

filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da

Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o

conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap

corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e

esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica

simboacutelica e a Escola de Marburgo

61

Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes

postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem

ibidem)

A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick

por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir

pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os

resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que

ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento

substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que

ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas

com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino

autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim

garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a

exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do

conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo

Loacutegica ou cultura

Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da

teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a

postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se

se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees

Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente

alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos

postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute

62

preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap

centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem

quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem

tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados

Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso

pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se

restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a

partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo

epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim

como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda

numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do

conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila

noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com

atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca

deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a

despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de

Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de

mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de

nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo

(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)

63

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA

A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar

nasce de sua carecircncia auto-reflexiva

O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo

sem trilhar os caminhos da irracionalidade

Adorno

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico

O lugar da razatildeo

De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias

do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua

concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento

metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi

necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma

metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro

Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa

ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a

doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de

descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que

64

Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo

agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a

concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e

investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como

construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-

se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior

ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento

defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica

representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o

cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um

expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo

geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por

correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa

a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de

resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta

disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto

de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por

Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do

meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo

clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)

Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo

ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista

A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais

65

importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse

o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que

desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade

cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de

compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa

encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem

como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo

portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de

nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as

determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional

resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA

racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o

Ensaio Sobre o Homem

ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas

Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por

outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A

linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute

faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro

toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem

conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica

49

Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo

geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito

menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte

a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser

vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o

Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas

Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo

ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito

66

ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma

religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera

abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa

genuiacutena e concretardquo (EM p 49)

Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com

efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das

Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido

de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular

receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)

O homem no leito de Procrusto

O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do

Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa

das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do

autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a

Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um

iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da

matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade

Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)

radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para

que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si

O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o

conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos

demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees

67

mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das

ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de

resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por

cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de

vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes

de qualquer articulaccedilatildeo

ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx

entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os

fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []

Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e

economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar

ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem

em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo

(EM p 41-2)

A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a

respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco

zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute

indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica

50

Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana

promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a

resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de

Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter

descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)

Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas

finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve

dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no

capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de

sua eacutepoca

68

que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do

autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da

fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como

teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou

com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a

racionalidade moderna eacute soacute um exemplo

Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a

semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito

Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao

ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-

estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um

renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia

rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava

a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila

pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a

cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por

um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar

conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52

51

O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf

esp cap V

52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo

do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses

domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo

de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o

conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o

segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito

sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe

interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de

1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente

69

Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande

proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave

expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos

do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros

projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao

problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das

formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada

com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel

Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia

da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela

atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo

Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um

dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo

transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir

de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das

produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel

dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer

relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger

53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista

do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola

neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava

a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist

und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer

entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar

para discutir o estado entatildeo presente da filosofia

54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do

texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living

Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais

[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer

70

manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o

homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas

Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja

delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia

direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas

ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual

defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do

pensamento miacutetico

ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo

esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a

esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro

lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em

conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)

A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este

carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o

outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo

ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo

do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo

pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia

da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar

nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De

71

fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta

contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta

segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas

apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no

idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em

que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna

consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao

domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)

E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis

mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa

palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados

tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores

determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no

sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do

projeto de Cassirer eacute a de

ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana

do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na

sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)

Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua

aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se

pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo

limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua

autonomia e independecircncia

72

Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da

aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as

ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser

compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo

(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do

conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que

empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de

seu programa metodoloacutegico como se segue

ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das

formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da

natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo

funcional e natildeo substancial ()

Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma

possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas

disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e

indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas

reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao

descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia

sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia

infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala

humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia

geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em

consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de

meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo

pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico

Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares

Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos

capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No

73

nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem

precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso

poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais

metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()

Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da

cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva

Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()

A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura

humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas

individuais ()

O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo

uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve

ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as

formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)

Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo

daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que

caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada

mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a

isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da

fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos

uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja

uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute

Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas

como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo

centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a

concepccedilatildeo de siacutembolo

74

Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para

expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita

ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a

sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura

expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma

simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida

essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da

funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e

especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave

dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em

questatildeo

Conceito de forma simboacutelica

Conceito de siacutembolo

Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de

Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na

obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da

humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e

que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo

humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por

conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de

todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a

posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor

75

proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de

animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem

No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees

estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer

delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que

exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho

para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia

a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos

engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por

estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver

com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face

dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo

preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio

aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica

Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer

indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria

ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer

dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr

55

Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o

nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito

natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da

evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas

Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja

claramente definido

56 Cf De Interpretatione II 16a 12

57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua

Grega p 636

76

em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o

conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo

De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da

liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas

implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de

certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para

aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio

da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de

conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima

No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia

e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem

a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe

mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um

objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas

esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica

de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo

Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo

de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do

mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser

tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de

ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado

tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel

Como diz Verene

58

Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128

77

ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num

papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao

mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio

universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade

cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois

um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59

De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um

particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do

siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910

Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na

Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do

idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem

eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia

das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um

simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo

necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento

59

No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa

entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas

simboacutelicas falaremos em seguida

60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio

sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em

1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes

61 Cf p 14-16 29 e ss

62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no

dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma

situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por

Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos

justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em

segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do

real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo

78

necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das

impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo

espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e

de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I

p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em

dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute

ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens

agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz

ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento

da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos

quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que

possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos

tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas

tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima

referidardquo63

Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se

possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que

seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]

ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros

sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal

faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do

significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais

63

Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15

79

mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de

ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)

Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres

do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo

Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de

transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a

transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees

sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De

fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente

ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a

histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a

influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria

recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se

extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa

capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros

tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o

filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as

criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)

ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso

expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica

liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente

diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade

mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)

64

Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss

80

Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo

alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute

aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo

tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do

mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o

resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que

impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito

conforme veremos

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica

O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos

escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees

distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente

chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou

simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que

exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao

tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da

objetividade66

De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um

alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica

teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo

65

Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p

16 e 2008 p 98

66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58

81

do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de

saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do

conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que

a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute

visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas

formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo

engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de

significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza

Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur

Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada

no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que

laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em

relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto

na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e

responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel

que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das

configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra

ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero

de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como

um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do

distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de

preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas

82

parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve

ser tomado67

Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos

a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do

siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes

exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em

Warburg onde Cassirer disse

ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie

des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um

signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)

Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao

idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de

Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas

simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no

extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)

Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como

67

Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico

que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do

bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de

ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute

estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de

diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes

dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este

seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo

correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual

maior e mais complexo

68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo

metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)

83

uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre

uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um

determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente

na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um

liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que

pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto

possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como

independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da

experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta

desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo

ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de

algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de

apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas

representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)

A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos

fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o

procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como

atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer

vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo

linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt

69

Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e

parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)

discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse

entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf

p 2

84

viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um

papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana

ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da

linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua

estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples

desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela

espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo

(PSF I p 169-70)

Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da

Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie

des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas

reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um

determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse

sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo

humboldtiana

O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que

a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas

simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia

nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua

proacutepria atividade70

Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que

a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias

semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao

70

A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em

que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel

85

entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute

construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o

(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute

ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des

Geistes

A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de

ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria

na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a

unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute

margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a

diversidade das formas linguumliacutesticas

ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um

nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel

designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura

mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si

por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)

Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica

Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento

semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica

ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados

elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em

bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido

para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros

primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos

86

fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees

podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e

graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)

Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para

a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a

natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo

a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a

realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do

progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie

de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem

ser concebidas em conjunto

ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e

necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado

e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio

conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo

conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim

sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no

simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)

Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o

mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana

ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras

peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as

mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele

87

por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas

formasrdquo (Idem ibidem)

Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus

signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por

objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui

uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que

ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a

linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento

do qual falava o autor no prefaacutecio da obra

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas

Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser

considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um

nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se

define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no

momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras

formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito

essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica

Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma

forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e

encadeaacute-lo em seu campo significativo

ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a

qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o

88

caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma

filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas

aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e

de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite

definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)

Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro

criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a

suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos

sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas

determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim

dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a

justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual

em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves

suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e

Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante

Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela

mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute

71

Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se

refere explicitamente agrave obra de Cassirer

72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte

e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a

histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas

depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o

nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica

da contemporaneidade

89

o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se

separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73

Uma teoria da significaccedilatildeo

Linguagem e Loacutegica

Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa

aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do

conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam

mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras

epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui

fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da

significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para

a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso

meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo

Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do

conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos

sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer

73

Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz

distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23

74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral

os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de

Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua

obra

90

ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de

conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa

apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua

estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de

significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e

o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da

significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)

Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge

profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente

entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro

preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente

voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75

Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se

evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse

parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da

questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de

Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por

75

Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-

cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo

eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa

funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas

metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas

ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem

ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser

agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos

ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo

satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se

encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre

verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p

29)

91

meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da

significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma

linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e

tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de

uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do

projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave

formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo

(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a

loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76

Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave

humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica

toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de

verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em

relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que

a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a

de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas

matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana

como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em

76

Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus

Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo

77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics

(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como

bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em

que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa

filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de

qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)

78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que

tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento

[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito

92

relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia

analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que

ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia

natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico

mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo

psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia

da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e

social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da

linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)

O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como

o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a

dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva

como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da

ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e

privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o

primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece

estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta

em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo

de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se

sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da

Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da

linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na

93

filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que

percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou

em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria

significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem

sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios

idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute

suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais

amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo

de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da

assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um

retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este

primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor

ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza

imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do

espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um

siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)

Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela

inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa

79

As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato

este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero

historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo

representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados

temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso

constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p

23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo

80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas

94

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio

em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da

coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de

algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa

ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma

realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em

Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-

se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra

universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir

todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas

fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de

totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde

cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute

capaz de expressar o ser

ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do

cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees

opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do

devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve

comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)

Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem

e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de

Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma

significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si

mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]

95

ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas

como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que

a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda

pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o

modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)

Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo

linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes

para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash

embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de

participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo

Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela

soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo

ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se

portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada

nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras

aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a

designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma

bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)

Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas

jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer

ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as

distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem

96

verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o

contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As

categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam

simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da

oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de

modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da

substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e

qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos

adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν

o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis

quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na

liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua

no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de

atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era

indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda

que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os

domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos

seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a

81

Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the

Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo

loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para

aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela

linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais

arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a

diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral

para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p

312)

82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela

causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute

97

comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash

vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada

quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da

natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de

surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves

ciecircncias do espiacuterito

Linguagem e verificaccedilatildeo

Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do

conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir

de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter

enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do

conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo

expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida

Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de

idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito

ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83

Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma

caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo

sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato

ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute

de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo

representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo

considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica

tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)

83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim

ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)

98

Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as

particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo

humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa

tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon

mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas

das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash

seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do

significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de

cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da

linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem

enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela

ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em

parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico

da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem

natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave

anaacutelise semacircntica

ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo

loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais

ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da

bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela

natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do

mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e

reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar

noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime

99

justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no

mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84

Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida

enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de

verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo

tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a

partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como

parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos

ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem

uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade

falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma

correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise

empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente

e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra

de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM

p 210-11)

Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser

considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar

que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das

formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para

todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de

mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus

84

Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma

filosofia da cultura

100

objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel

mas sempre como uma construccedilatildeo

ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave

pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela

compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de

mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)

A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada

aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso

significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos

postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa

ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por

meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo

igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico

fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant

com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas

Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de

vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora

resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da

significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo

de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da

85

Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a

mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo

para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e

histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e

significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada

101

filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da

formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da

ciecircncia

Pregnacircncia Simboacutelica

Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave

teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo

das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do

meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de

todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma

filosofia da cultura

A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute

dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o

filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a

partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria

das formas simboacutelicas

ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como

uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo

bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa

Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato

como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre

categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um

contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do

campo cientiacutefico (p 48 49)

102

aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados

julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua

organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo

ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de

significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86

De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute

anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido

abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende

naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo

princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e

o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de

significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal

sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim

dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno

entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de

significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a

totalidade da experiecircncia

ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio

assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a

86

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica

a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54

87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a

ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos

ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na

configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis

88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a

funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida

103

pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos

intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma

determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a

unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)

Convencionalismo e significaccedilatildeo

Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)

dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos

siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo

residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer

concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a

linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras

de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a

afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a

um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda

a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria

linguagem

89

Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de

outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses

ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o

filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a

obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro

possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte

histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar

ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a

priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de

Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente

analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)

104

ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos

simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato

social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel

somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e

forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)

Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno

da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e

simbolismo artificial

ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a

consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao

simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que

necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada

momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora

destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz

uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da

consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado

possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente

se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo

fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele

ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso

particularrdquo (PSF I p 62)

A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a

artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as

definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo

natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo

105

sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora

tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o

convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do

fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel

O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da

significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa

funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro

lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo

recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a

algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor

ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia

que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no

entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p

63)

90

Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente

individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele

tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente

inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute

uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de

Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de

cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a

ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes

de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de

Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito

agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a

dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O

problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem

importacircncia para o autor

106

Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia

crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o

fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase

de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos

ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo

criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do

significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos

natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si

mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados

complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)

Sensacionismo

A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia

simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os

empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida

na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das

impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos

elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois

problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os

sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de

sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar

que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que

sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das

91

Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e

LOFTS 2000 p 1 2

107

sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da

proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash

e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em

reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos

referenciais convencionais evidencia a falha do argumento

ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere

limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas

quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua

energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente

bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A

reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o

mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo

(PSF I p 37)

Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado

fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o

compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais

sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)

ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida

por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos

sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela

para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da

sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute

simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele

fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido

transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para

108

comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de

significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)

O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente

influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos

conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da

causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza

negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente

diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com

Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo

concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como

dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o

postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo

mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a

totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia

ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na

medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com

determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta

uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia

constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)

Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a

representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso

92

Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma

tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave

ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo

aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97

109

de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos

como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em

comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer

agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode

ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois

ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo

pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente

como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo

Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo

constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)

Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo

se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo

como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a

consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao

problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida

independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo

de todo o sistema topoloacutegico

Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da

unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a

apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en

passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um

ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos

que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda

percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma

110

referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a

brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem

em mimrdquo diz o autor

ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo

requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades

particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado

com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa

experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)

Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e

entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo

e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees

conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se

pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a

unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser

entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo

ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como

uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em

relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa

a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos

as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus

elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no

111

sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e

direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93

Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada

particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a

peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em

particular) de modo a ser definido objetivamente

Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada

em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos

diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir

entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao

ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da

consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem

p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de

organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no

momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta

disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da

histoacuteria94

93

A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento

reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais

tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute

precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente

dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um

bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero

diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo

94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante

nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee

em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e

produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente

112

ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos

os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em

um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que

determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na

denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas

estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a

expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)

Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a

modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o

cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada

em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na

primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira

com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais

articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito

semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo

Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo

causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de

modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e

daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a

modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o

espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de

bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus

momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de

configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no

pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de

organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se

distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a

organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)

113

significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande

multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a

capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na

verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do

espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta

ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM

p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente

diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na

histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em

textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas

inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir

ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um

exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que

cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo

quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz

ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia

nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e

cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma

determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo

de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas

95

No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave

questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um

esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave

adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave

medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde

os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a

articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94

114

precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas

apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma

estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado

puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a

construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico

distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente

espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma

ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos

meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na

forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade

animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente

ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular

e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma

determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades

recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a

entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela

torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal

geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como

um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se

por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas

tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta

negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente

irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal

mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a

ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior

noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica

temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia

esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma

para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia

matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela

115

uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa

lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis

formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades

e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal

de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez

estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha

como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal

abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de

fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar

os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas

como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder

factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo

esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da

significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso

Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura

ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida

somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de

uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e

respirardquo (PSF III p 200-01)96

Fenomenologia e intencionalidade

Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no

corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo

natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a

ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de

96

O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica

116

intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da

questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl

ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como

as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a

relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟

no outrordquo (PSF III p 197)

Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl

ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo

(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA

consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver

de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave

racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)

De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos

sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de

clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo

e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III

p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo

se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito

do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo

Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica

ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si

mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente

abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da

117

representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo

presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico

sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p

199)

No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O

Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste

na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre

mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato

ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio

da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando

nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟

Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se

estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de

bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl

entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional

entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser

separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute

gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em

dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e

mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa

separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos

outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o

profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)

Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual

ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas

118

aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da

concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma

revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as

fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente

traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade

ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave

criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de

apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes

tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses

mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa

proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo

sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p

33) Sendo assim

ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede

trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio

material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟

quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo

fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)

A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como

uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto

de vista da consciecircncia

ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟

mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e

119

sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma

criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se

constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva

que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo

(Idem p 70)

Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute

um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para

si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse

entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e

agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende

designarrdquo (PSF III p 202)

Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel

empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos

pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que

se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem

escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar

introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao

contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se

reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo

mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a

ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo

97

O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente

ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e

pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso

admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da

natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que

eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)

120

(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do

dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da

linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto

apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute

a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel

(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma

expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo

pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base

fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a

pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela

mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao

mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo

apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)

A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da

consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do

desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a

partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que

98

Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve

inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute

bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []

Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato

fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser

entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito

da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit

De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de

modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a

concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo

concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein

121

ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja

algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um

princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a

tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)

Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e

interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as

descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo

satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo

por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior

sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar

especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro

motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico

essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo

metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma

seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios

ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja

nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua

sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente

indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura

a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua

interaccedilatildeo

122

O animal symbolicum

Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar

passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo

em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas

humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome

Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave

psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar

como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo

os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer

evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em

reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual

possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim

ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os

animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a

99

A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo

contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a

cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido

que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico

dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente

abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em

Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem

duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles

elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus

instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e

estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui

igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro

natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo

retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas

ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo

123

relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute

incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos

condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter

essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute

se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e

mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um

estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a

universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute

a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso

especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma

quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo

capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo

Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido

objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese

de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem

meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo

de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao

ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)

Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos

pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu

ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo

agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum

124

Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem

com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma

garota nascida cega surda e muda100

ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante

aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo

tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber

Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando

quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo

Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais

tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela

debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a

caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo

da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e

ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-

u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou

para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome

Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito

excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas

horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde

seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto

perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um

nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que

natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por

ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e

100

Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo

detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento

ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para

fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia

simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os

objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente

125

pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e

a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos

que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101

Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute

distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da

psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve

como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos

sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o

conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se

fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de

conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual

efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente

o que se pode afirmar eacute que

ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do

material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem

pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos

A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo

geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila

cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do

animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)

Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do

poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila

do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo

101

Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61

126

horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio

desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que

natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-

inscreve em cada indiviacuteduo

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito

A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria

das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do

animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo

deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em

sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a

proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da

atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a

necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que

constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em

seus processos

Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente

dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De

102

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo

engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der

Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de

consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte

103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final

Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir

127

fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da

Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio

ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis

ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em

sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada

por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento

filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a

totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade

possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu

princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo

de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu

desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104

Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de

desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs

funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel

Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa

[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima

104

Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the

Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-

46

105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada

estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes

em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida

106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a

liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o

termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma

portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico

128

foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades

caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula

por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e

independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui

diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua

estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e

desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada

sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que

o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo

expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107

Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem

fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas

simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa

separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma

uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel

no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em

relaccedilatildeo agraves demais

remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido

por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as

premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que

exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem

interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash

nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer

supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido

tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto

ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes

constituir simbolicamente o objeto para si

107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase

sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e

espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos

129

A funccedilatildeo expressiva

Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel

a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas

fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de

acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que

Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia

O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo

da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos

bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma

abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)

A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva

de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este

primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui

designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da

fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que

de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da

consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia

natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo

deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo

108

Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a

explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez

mais adequado desenvolvimento

130

copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109

Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro

tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura

atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada

pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo

ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter

puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O

entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo

(PSF III p 63) 110

Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave

investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo

ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo

puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas

nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem

antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve

ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo

significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com

109

Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma

construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees

que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo

da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da

significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]

aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no

capiacutetulo seguinte

110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos

reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das

ciecircncias do espiacuterito

131

vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel

somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de

coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de

significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e

causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre

as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p

100)

Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute

radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e

pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e

depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente

oposta como a consciecircncia diferencia ambos111

ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo

fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o

mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num

sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo

(KROIS 1987 p 57 58)

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de

acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica

(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em

111

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute

o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere

explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que

fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A

pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo

corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)

132

relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo

empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica

Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar

conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da

consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre

consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do

mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas

tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva

deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do

mito

A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a

fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende

a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um

epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da

mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela

coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade

que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute

subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo

objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo

(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia

da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a

um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da

Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se

apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de

organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser

133

um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p

191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a

de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do

estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim

como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui

que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma

distinccedilatildeo ainda foi feita112

Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso

privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer

ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da

expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento

conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo

teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado

Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de

centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua

particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de

mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)

Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo

estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele

deve se integrar ao

ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute

mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o

112

Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana

Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss

134

mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia

do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu

comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da

intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)

Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o

primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio

primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica

serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas

ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um

meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro

sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da

consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social

assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua

verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo

nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)

Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade

ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da

consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva

Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico

apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo

psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria

razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus

135

domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se

apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113

ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da

generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente

entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se

em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for

visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)

Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento

Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma

proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo

(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas

mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito

como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se

pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo

histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute

necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito

entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash

natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da

cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar

por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)

113

Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees

sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A

questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito

Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao

problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos

136

A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa

ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada

metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo

meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na

modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta

da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica

em sua forma

ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da

representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a

consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo

admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico

pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente

inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila

que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115

Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos

metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a

ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades

que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se

voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo

114

ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de

formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do

tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo

um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)

115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo

natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em

The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas

claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII

137

espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em

todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de

um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees

do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da

fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico

para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu

Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia

antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente

entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode

senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como

ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por

isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute

pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem

como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas

caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se

apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente

ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada

fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou

inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo

sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas

determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles

mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos

que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)

Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao

contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia

138

consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em

oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do

mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da

consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei

natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre

subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia

da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente

aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees

lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de

paixotildees e pulsotildees subjetivas

ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e

autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a

realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se

manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de

configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117

Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo

mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como

116

A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os

fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em

seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da

religiatildeo

117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma

tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui

tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido

como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que

medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo

natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um

inconsciente individual

139

parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu

desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente

dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a

primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica

ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo

da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e

determinaccedilotildees posteriores

ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute

absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do

corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com

efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa

sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu

sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e

indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118

As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade

dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se

convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)

118

Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos

distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto

de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf

PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento

miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como

quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem

justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo

ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece

como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo

de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da

alma como sede da personalidade e sede da vida

140

da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo

(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa

exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo

tempo para em seguida se reunir120

Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros

indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees

ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como

membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de

um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele

possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas

manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos

invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-

se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p

298)

Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a

accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como

independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao

exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser

entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo

proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o

119

Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da

Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a

aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)

120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e

o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo

de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no

capiacutetulo seguinte

141

conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto

tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a

consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao

sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura

social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a

personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma

seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas

A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer

vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o

homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia

natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer

ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em

letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de

repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)

E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de

interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por

mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as

outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de

121

Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma

dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a

consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem

de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos

outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas

miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si

Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo

totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27

142

todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada

uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o

conhecimento-de-si do homem

Funccedilatildeo representativa

Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros

passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a

construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em

que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os

fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia

ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos

encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo

aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a

regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a

multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente

numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a

origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da

representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi

mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)

Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas

miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo

122

De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem

natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na

obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das

formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem

143

tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a

construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam

da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as

demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para

o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem

linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao

mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de

Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a

ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem

do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia

De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista

fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da

consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos

fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos

como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen

Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da

concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo

nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees

e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com

a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por

conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e

linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e

da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer

estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos

menores e artigos publicados por Cassirer

144

ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este

ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se

diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma

forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos

denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)

No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito

particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]

Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de

denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo

reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a

metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma

condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo

[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo

ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de

um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho

mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma

miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma

determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do

profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista

miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma

autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma

transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em

que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123

123

Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto

Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss

145

Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se

desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo

que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca

inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de

um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem

lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui

fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que

medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras

determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram

capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a

distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda

que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e

lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125

No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa

[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras

determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em

que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e

124

No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o

inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre

Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da

oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na

plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo

linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva

ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio

125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e

simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos

poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes

romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua

idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp

cap 2

146

desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as

divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees

humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas

representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas

desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas

Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto

a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre

quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute

que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas

em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o

mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias

criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para

poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico

de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de

destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo

soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de

Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a

linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que

o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer

valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da

qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e

religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa

fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel

determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)

A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves

147

imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade

das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana

ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece

como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido

necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais

captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)

As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as

configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam

a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer

toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-

iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo

desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no

Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas

por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma

que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o

indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a

divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de

sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser

caracterizado como o supremo e puro bem moral

ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de

tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo

reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de

objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e

niacutetidordquo (PSF II p 408)

148

A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre

deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de

tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash

seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na

dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a

caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada

pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da

consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao

mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela

somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer

A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as

enquanto tais

ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura

bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a

todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse

comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo

(PSF II p 432)

A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo

demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se

confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia

Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e

enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria

149

realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do

poder criador do espiacuterito

Funccedilatildeo significativa

Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo

representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente

nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto

grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo

significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro

tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as

consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de

conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a

luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no

programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja

o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em

relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura

humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma

simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o

Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a

consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do

gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)

Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a

inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a

ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo

150

de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste

com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao

mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma

espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que

todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126

tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo

trata por diversas vezes

O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de

signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do

qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz

fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se

que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua

relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia

ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada

tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a

linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que

126

Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas

tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da

consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura

127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e

rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se

desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo

realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento

toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute

pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem

estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar

alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)

151

ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde

quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas

E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda

comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de

uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)

Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of

Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da

filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de

natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais

(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a

respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento

racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles

a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo

com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos

obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu

procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam

desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash

e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo

uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo

(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees

sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas

Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo

ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito

uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar

os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela

152

falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as

leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e

mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)

Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a

linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que

Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de

conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute

escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem

Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos

ao domiacutenio da mathesis universalis

No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas

agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que

Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar

e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao

mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser

suficiente

ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma

certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas

palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128

128

No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em

fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a

entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)

153

Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados

para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o

momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129

ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do

conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo

Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente

novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente

diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)

O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute

que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem

eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros

esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos

da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O

caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais

pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no

conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de

superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica

129

Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma

da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de

maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da

astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem

seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o

territoacuterio do ser (Cf EM p 343)

130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees

ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na

Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os

trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo

154

pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e

elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a

linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao

qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia

De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de

Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A

depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos

presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana

dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do

espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam

aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer

ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e

o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na

Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste

ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme

que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo

sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do

movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito

culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de

sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos

anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros

momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre

155

todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do

conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)

Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada

liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash

natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se

subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute

somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a

consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do

que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o

estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no

momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema

Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do

ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de

encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que

incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por

paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa

orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o

levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da

cultura como jaacute tratado

Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de

progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande

caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash

o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo

progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser

descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz

156

o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal

como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita

como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter

especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que

conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo

ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo

do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse

processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder

de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave

sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa

unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes

contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo

podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e

obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo

denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e

complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um

novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os

contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na

contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)

O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da

dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela

diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de

uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o

momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas

se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A

passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez

157

disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash

incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como

conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo

entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo

Cassirer

ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento

de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de

determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As

etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves

outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A

evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees

espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e

completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p

392)

Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma

delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo

constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta

disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura

acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma

a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica

131

ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser

indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo

pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na

lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser

curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no

seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado

humanardquo (LDST p 327)

158

ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica

podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas

estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da

nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos

aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica

deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos

atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)

Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva

libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta

Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser

substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos

enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)

159

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL

O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas

mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas

Epiacuteteto

A Realidade Simboacutelica

Soliloacutequio

Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de

que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe

natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o

filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de

elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o

afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento

mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo

afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um

envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir

da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e

132

Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos

ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo

deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e

reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim

recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo

qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos

parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para

cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma

forma simboacutelica como veremos adiante

160

progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de

coisas mas num mundo de significados

ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo

simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente

natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em

proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as

proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo

mesmordquo (EM p 48)

Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma

mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as

questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash

natildeo se colocam

Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel

processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio

dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e

eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes

primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de

sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro

momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este

veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave

esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo

deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem

(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar

161

agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da

vida

ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo

em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos

de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo

consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-

las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se

consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da

existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta

existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para

transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)

O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito

marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em

relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer

afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em

espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo

133

Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura

de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada

de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias

disso para a sociedade em geral 134

Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente

fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees

tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute

consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do

assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia

contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto

mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A

mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento

162

simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo

fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos

siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor

ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como

siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem

[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um

real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio

mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este

autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma

bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas

especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio

delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-

se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)

Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se

ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do

conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional

Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava

pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto

das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo

como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem

mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer

humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo

ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da

imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte

primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma

tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)

163

tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da

concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima

consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo

loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos

Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou

mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja

marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave

ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem

fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja

perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de

significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a

linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave

psicologia behaviorista)

ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa

linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias

que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras

linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da

linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e

pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu

conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)

A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes

especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de

conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de

Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou

do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)

164

Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa

forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto

a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um

denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de

passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel

traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria

mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas

aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em

particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser

dito em uacuteltima instacircncia o mesmo

ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o

da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas

ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na

proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e

conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)

Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade

entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do

conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que

barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores

prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um

lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas

respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao

mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave

mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas

165

encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo

que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse

ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade

independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua

interaccedilatildeo

ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute

cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das

manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta

unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a

diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo

produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)

A tarefa simboacutelica da ciecircncia

As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo

de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A

novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda

que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar

hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia

que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada

135

Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel

assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas

como absolutamente incomensuraacuteveis

136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no

tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das

Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um

todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim

chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88

166

isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja

um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe

postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que

toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo

Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute

vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo

ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas

vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia

suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos

Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que

Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137

bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da

consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e

representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a

criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus

procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer

uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses

obscuros

Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma

alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na

antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um

137

Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno

da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo

em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca

das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias

sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa

preocupaccedilatildeo

167

domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves

demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees

concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para

tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras

obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la

intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas

simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas

baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer

mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam

cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138

ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura

apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto

uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera

particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do

ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as

orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de

culturardquo (PSF I p 24)

Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar

forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em

que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender

qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir

do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave

138

Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica

(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a

caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a

imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila

168

atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave

linguagem ou ao mito

De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo

central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o

desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de

compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila

espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves

demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia

uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode

pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado

o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de

envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica

O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na

filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em

relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer

que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do

espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos

concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a

praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de

Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao

positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu

momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da

repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso

139

Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de

1916

169

cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela

ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade

Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da

ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo

com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo

entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho

que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da

eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado

Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de

Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram

profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo

central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008

p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas

140

O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf

GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em

torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente

apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte

inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na

Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo

tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos

sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo

havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo

em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um

domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto

mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as

publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A

retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica

publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos

EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do

autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do

que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma

dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra

170

preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares

verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou

falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como

a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou

as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo

radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados

metafiacutesicos nele contidos

Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os

demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como

tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de

conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua

obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo

entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento

da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda

que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de

outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os

141

Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta

da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo

necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo

que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo

introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo

declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de

ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com

Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)

a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no

iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de

Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da

relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos

171

campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso

de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft

O projeto de uma filosofia da cultura

Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu

aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi

idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das

reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum

entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a

instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves

demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo

que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e

positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das

Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de

maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da

Escola de Marburgo142

Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito

ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo

(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo

142

Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando

da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este

encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e

sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94

172

epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e

essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo

abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de

Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos

em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do

filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por

outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos

haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel

para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a

discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o

outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo

deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o

naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo

do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova

objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais

que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e

aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise

do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de

articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do

espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente

plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do

termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo

elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura

por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos

173

Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo

humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de

determinadas praacuteticas culturais em particular143

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser

associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por

Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela

que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer

faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras

consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144

Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre

ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as

ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e

agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos

particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos

eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com

143

Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o

tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como

sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura

144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da

Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden

a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo

metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente

analisada como mostraremos

145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua

tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos

conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo

agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta

suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)

como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto

174

aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado

da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a

proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o

estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a

proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as

ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu

trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo

(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser

trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para

natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo

(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda

parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da

Escola de Baden

ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a

alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia

matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica

Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser

investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um

sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge

a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade

objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele

estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a

146

Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a

considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico

[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa

realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e

singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96

175

priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi

provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem

suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente

onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)

Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo

baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo

de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido

em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem

fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo

anterior

ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza

agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais

Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos

nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode

nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)

A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla

de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em

direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]

orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente

Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele

147

Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um

pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum

equiacutevoco de interpretaccedilatildeo

176

ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das

transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro

caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a

alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um

absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)

A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da

percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico

corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual

somente surge a significaccedilatildeo

ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas

do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas

como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas

devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟

baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo

(Idem p 95)

Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo

loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para

Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta

da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os

produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)

Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar

no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em

suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo

significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como

177

exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao

observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela

coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem

de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos

atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma

significaccedilatildeo radicalmente diversa

ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao

inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a

conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o

uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de

uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo

satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)

A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis

significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade

podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da

percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto

mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de

significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]

cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e

(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural

natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute

apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de

Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que

isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem

178

reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de

significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de

condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da

discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo

Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer

cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de

Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando

Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek

Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a

obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias

de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com

o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava

inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos

escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de

agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A

nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado

ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados

quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo

com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da

histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela

sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e

classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um

problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de

148

Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e

Gay (1968)

179

meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo

caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este

livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias

oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua

fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)

O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o

ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash

dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio

Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese

ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura

alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)

O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay

(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de

democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que

se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte

consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que

perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela

atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a

cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash

por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras

naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)

180

Cultura e Civilizaccedilatildeo

Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo

da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal

rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as

duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute

uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que

Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo

(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que

proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo

Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita

na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso

representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao

determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do

espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em

Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que

modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista

Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por

conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades

mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em

que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito

ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito

entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a

ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a

arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por

181

construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em

relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a

religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito

chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como

o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave

constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em

que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade

Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem

apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era

sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante

virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p

50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de

Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute

depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa

transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de

civilizaccedilatildeo

Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave

histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como

paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no

149

O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto

dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade

jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute

notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a

filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo

sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da

filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural

182

idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de

razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a

um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo

traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo

moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade

impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash

cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder

portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja

correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por

exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do

tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura

Diversidade Cultural

Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do

espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido

teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito

absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e

(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem

aponta Krois (2002 p 28)

150

Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau

Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca

151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de

animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo

da humanidade cosmopolita

183

ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e

vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo

da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha

linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em

cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma

novas formasrdquo152

A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico

convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo

positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura

como um processo essencialmente relativo153

Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura

natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo

momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que

por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu

ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do

crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154

percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do

seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de

diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer

Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo

152

Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf

1987 p 176-181 ou 2002 p 28

153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que

marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta

(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a

intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza

154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies

em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960

184

da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de

passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia

saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute

norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no

singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo

estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute

necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da

filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute

evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos

estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos

variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa

Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em

vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou

mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre

povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir

corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo

das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem

no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de

fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti

mesmo

185

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Nota de esclarecimento

As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as

secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute

ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao

longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como

fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e

assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso

nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi

efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira

publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo

Primaacuterias

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  • GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • LISTA DE ABREVIATURAS
  • SUMAacuteRIO
  • PARA LER CASSIRER
  • ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
    • Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
    • Escola de Marburgo
    • Doutrina de Marburgo
    • Substacircncia e Funccedilatildeo
    • Rupturas
    • Cisatildeo
      • AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
        • Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
        • Conceito de forma simboacutelica
        • Uma teoria da significaccedilatildeo
        • Pregnacircncia Simboacutelica
        • As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
          • O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
            • A Realidade Simboacutelica
            • Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
              • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

4

RESUMO GARCIA RAFAEL R Genealogia da Criacutetica da Cultura um estudo sobre a Filosofia

das Formas Simboacutelicas de Ernst Cassirer 2010 189 f Dissertaccedilatildeo (Mestrado)

Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo Paulo

Satildeo Paulo 2010

O presente trabalho tem por objetivo apresentar as principais questotildees

envolvidas no projeto da Filosofia das Formas Simboacutelicas de E Cassirer nome da

obra considerada sua maior contribuiccedilatildeo para a histoacuteria da filosofia Abordamos as

questotildees epistemoloacutegicas e contextuais que motivam a elaboraccedilatildeo da obra sua

estrutura e seus principais postulados metodoloacutegicos para finalmente entendermos

os resultados de sua proposta qual seja transformar a criacutetica da razatildeo iniciada por

Kant numa criacutetica da cultura humana entendendo por esta uacuteltima o conjunto de

todas as manifestaccedilotildees do espiacuterito em sua atividade caracterizada como um

processo de autolibertaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida Para tanto satildeo

apontados os principais interlocutores de Cassirer ao longo do desenvolvimento de

seu programa filosoacutefico bem como as tendecircncias filosoacuteficas em relaccedilatildeo agraves quais o

filoacutesofo quer marcar posiccedilatildeo

Palavras-chave Cassirer neokantismo Escola de Marburgo formas simboacutelicas

criacutetica da cultura

5

ABSTRACT

GARCIA RAFAEL R The Genealogy of the Critic f the Culture a study on the

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer 2010 189 f Thesis (Master

Degree) Faculdade de Filosofia Letras e Ciecircncias Humanas Universidade de Satildeo

Paulo Satildeo Paulo 2010

This text aims to show some of the main issues involved in the Project of The

Philosophy of the Symbolic Forms of Ernst Cassirer name of the work which turns

out to be considered as his major contribution to the history of Philosophy We dealt

with epistemological and contextual issues that motivate the elaboration of Cassirer‟s

work its structure and its main methodological postulates to eventually understand

the results of his proposal that is to transform Kant‟s critic of reason in a critic of

human culture understanding by the latter the set of all manifestations of spiritual

activity characterized as a process of self-liberation from the immediacy of life To do

so we point Cassirer‟s main interlocutors throughout the development of his

philosophical project as well as the philosophical tendencies which the philosopher

wants to differentiate his own work from

Key-words Cassirer neokantianism Marburg School symbolic forms critic of

culture

6

LISTA DE ABREVIATURAS

Todas as obras de Cassirer aparecem quando abreviadas a partir das

iniciais que possuem na liacutengua em que foram escritas ndash a maior parte em alematildeo e

outras em inglecircs ndash mesmo que a paginaccedilatildeo corresponda a alguma traduccedilatildeo Assim

espera-se padronizar as citaccedilotildees de acordo com o que pode ser observado nas

demais publicaccedilotildees de trabalhos sobre Cassirer O mesmo foi feito para obras de

Cohen e Kant

Obras de Cassirer

EGLD Erkenntnistheorie nebst den Grenzfragen der Logik und Denkpsychologie

EM Essay on Man

EP Das Erkenntnisproblem in der Philosophie und Wissenschaft der neueren Zeit

ERT Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

KMM Kant und die moderne Mathematik

LDST The Influence of Language upon the Development of Scientific Thought

LKW Zur Logik der Kulturwissenschaft

MS The Myth of the State

PSF I Philosophie der symbolischen Formen - Sprache

PSF II Philosophie der symbolischen Formen ndash Das mythische Denken

PSF III Philosophie der symbolischen Formen ndash Phaumlnomenologie der Erkenntnis

PSF IV Philosophie der symbolischen Formen - Zur Metaphysik der symbolischen Formen

SF Substanzbegriff und Funktionsbegriff

SFAG Der Begriff der symbolischen Form im Aufbau der Geisteswissenschaften

SM Sprache und Mythos - Ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen

SMC Symbol Myth and Culture

Obras de Cohen e Kant

KRV Kritik der reinen Vernunft

KTE Kants Theorie der Erfahrung

LRE Logik der reinen Erkenntnis

7

SUMAacuteRIO

PARA LER CASSIRER11

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS14

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso 14

Escola de Marburgo 17

Panorama filosoacutefico 17

Retorno a Kant Colapso do hegelianismo Surgimento da Teoria do Conhecimento

Ambiente poliacutetico 20

Nacionalismo Combate ao positivismo Ideologia neokantiana Ciecircncias naturais e Ciecircncias do

Espiacuterito Revolta contra a razatildeo Posicionamento poliacutetico da Escola de Marburgo Periacuteodos do

neokantismo

Doutrina de Marburgo 24

O meacutetodo transcendental 25

Compromisso com as ciecircncias naturais Teoria da experiecircncia Recusa da Metafiacutesica Entre o

materialismo e o idealismo Trendelenburg O meacutetodo transcendental A loacutegica do conhecimento

puro

A noccedilatildeo de forma 28

A hipoacutestase da forma A ciecircncia na histoacuteria A priori regulativo e a priori constitutivo

Conhecimento e construccedilatildeo 29

Conhecimento como coacutepia O debate Trendelenburg-Fischer Eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano

Limitaccedilotildees do meacutetodo Advento da loacutegica simboacutelica

Substacircncia e Funccedilatildeo 31

A tarefa da nova loacutegica 31

Visatildeo histoacuterica da ciecircncia Os recentes desenvolvimentos da loacutegica Kant e a loacutegica tradicional

A doutrina do conceito geneacuterico 34

A loacutegica e o ideal de conhecimento A substacircncia aristoteacutelica Objetividade da loacutegica Seleccedilatildeo de

notas caracteriacutesticas O problema da abstraccedilatildeo Psicologia da abstraccedilatildeo

Os conceitos matemaacuteticos 39

A matemaacutetica e o conhecimento como construccedilatildeo A atividade espiritual A determinaccedilatildeo da

seacuterie

Conceito de funccedilatildeo 42

Funccedilatildeo e metafiacutesica A categoria da relaccedilatildeo Resoluccedilatildeo ao problema da abstraccedilatildeo A

universalidade concreta

Sobre a loacutegica simboacutelica 45

8

Loacutegica simboacutelica e neokantismo Frege e o a priori Analiticidade Razatildeo e alienaccedilatildeo A ciecircncia e

a loacutegica Loacutegica formal e loacutegica transcendental

Rupturas 50

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem 50

Limites do meacutetodo transcendental O infinitesimal Acesso ao campo da psicologia Da rigidez

matemaacutetica agrave flexibilidade do siacutembolo Representaccedilatildeo As ciecircncias do espiacuterito

Sobre a teoria da relatividade 55

Querela com Schlick O projeto das formas simboacutelicas Mudanccedilas de vocabulaacuterio

Cisatildeo 58

Origem comum 58

Cassirer e o Ciacuterculo de Viena Cassirer e Carnap Aufbau e o neokantismo

Loacutegica ou cultura 61

As criacuteticas de Carnap agrave loacutegica de Marburgo O campo da razatildeo Razatildeo e cultura

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA 63

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico 63

O lugar da razatildeo 63

Ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico A razatildeo metoniacutemica As demais formas de

conhecimento

O homem no leito de Procrusto 66

O conhecimento de si Espiacuterito geomeacutetrico e espiacuterito sutil Logocentrismo Nietzsche Freud

Marx e Darwin Especializaccedilatildeo das ciecircncias e unidade do conhecimento A crise da razatildeo

Husserl Heidegger e Cassirer O ideal grego de conhecimento Renascimento da concepccedilatildeo

grega de conhecimento Formas simboacutelicas e filosofia da vida Filosofia e criacutetica da cultura

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas 70

O fenocircmeno psicoloacutegico da forma linguumliacutestica A compreensatildeo do fenocircmeno do mito Tautegoria

Autonomia das formas simboacutelicas Adequaccedilatildeo do meacutetodo transcendental

Conceito de forma simboacutelica 74

Conceito de siacutembolo 74

Animal rationale e animal symbolicum Siacutembolo e siacutentese Siacutembolo e funccedilatildeo Dialeacutetica do

siacutembolo Hertz simulacros Sinais e siacutembolos Idealismo alematildeo versatilidade

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica 80

Forma em Kant e forma simboacutelica Elemento intermediaacuterio Funccedilatildeo mediadora Humboldt

Energie des Geistes Estrutura triaacutedica Leibniz caracteriacutestica universal Gramaacutetica da funccedilatildeo

simboacutelica

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas 87

9

Universalidade Construccedilatildeo de mundo Organizaccedilatildeo sistemaacutetica dos fenocircmenos Filosofia e

forma simboacutelica

Uma teoria da significaccedilatildeo 89

Linguagem e Loacutegica 89

Mudanccedilas no campo de investigaccedilatildeo Teoria do conhecimento e teoria da significaccedilatildeo

Linguagem λόγος e valores de verdade Linguagem e λόγος na histoacuteria da filosofia Heraacuteclito e o

λόγος como condutor do universo Platatildeo a efemeridade da linguagem e a busca pelo conceito

Aristoacuteteles a linguagem e as categorias do ser

Linguagem e verificaccedilatildeo 97

A linguagem como mediaccedilatildeo Ergon e energeia Linguagem loacutegica e semacircntica Ampliaccedilatildeo da

revoluccedilatildeo copernicana

Pregnacircncia Simboacutelica 101

Convencionalismo e significaccedilatildeo 103

Simbolismo natural e simbolismo artificial Anterioridade da funccedilatildeo significativa

Sensacionismo 106

A receptividade dos sentidos Significados que transcendem os objetos apresentados A conexatildeo

dos conteuacutedos na consciecircncia O momento temporal e o fluxo do tempo Conexatildeo objetiva

Substituiccedilatildeo da associaccedilatildeo pela integraccedilatildeo Qualidade e modalidade das relaccedilotildees na

consciecircncia O exemplo da linha

Fenomenologia e intencionalidade 115

Dualismo de Husserl Revisatildeo dos postulados idealistas Conhecimento de si e introspecccedilatildeo

Cultura e praxis

O animal symbolicum 122

O atributo distintivo da humanidade Reaccedilotildees animais e respostas humanas O Caso Helen

Keller

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas 126

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito 126

Formas simboacutelicas e cultura Dialeacutetica das formas simboacutelicas Fenomenologia do Espiacuterito e

fenomenologia do conhecimento As funccedilotildees da consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva 129

O primeiro degrau na escada da consciecircncia Percepccedilatildeo e expressatildeo A relaccedilatildeo entre corpo e

alma Mito e expressatildeo O sentimento da unidade da vida Fenomenologia do Eu A

anterioridade da vida coletiva

Funccedilatildeo representativa 142

Representaccedilatildeo e linguagem Mito e linguagem Metaacutefora radical Do mito agrave religiatildeo Do mito agrave

arte

10

Funccedilatildeo significativa 149

Idealidade e liberdade do espiacuterito A forma da ciecircncia Linguagem e ciecircncia Soacutecrates Galileu

Bohr matemaacutetica e ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia 155

Dialeacutetica do espiacuterito e Ciecircncia da Loacutegica Eliminaccedilatildeo da teleologia (logocentrismo) na dialeacutetica da

cultura Progresso e liberdade A perpeacutetua tensatildeo entre as formas simboacutelicas Da escada de

Hegel agrave aacutervore de Darwin

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL 159

A Realidade Simboacutelica 159

Soliloacutequio 159

O valor da realidade Atividade simboacutelica e alienaccedilatildeo Registros de significaccedilatildeo e traduzibilidade

Autonomia e incomensurabilidade

A tarefa simboacutelica da ciecircncia 165

A liberdade da ciecircncia A ciecircncia no conjunto da cultura Pureza epistemoloacutegica e isolamento

intelectual Progresso cientiacutefico e progresso da humanidade A fortuna da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft 171

O projeto de uma filosofia da cultura 171

A dimensatildeo moral da Filosofia das Formas Simboacutelicas A proposta do termo Kulturwissenschaft

Kulturwissenschaft e a Kulturphilosophie Percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo A

biblioteca de Warburg

Cultura e Civilizaccedilatildeo 180

Atividade simboacutelica e autolibertaccedilatildeo Liberdade e autonomia Cosmopolitismo Civilizaccedilatildeo e

progresso Razatildeo e homogeneidade

Diversidade Cultural 182

Autolibertaccedilatildeo e teleologia Os estudos culturais e a questatildeo da diferenccedila O homem no centro

da discussatildeo

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS187

11

PARA LER CASSIRER

Obviamente o assunto eacute o que eacute dito o estilo eacute o modo como eacute dito

Um pouco menos obviamente esta foacutermula estaacute cheia de falhas

Nelson Goodman

Apoacutes findar o texto que aqui apresento senti a necessidade de adicionar uma

nota explicativa introdutoacuteria sobre a filosofia de Cassirer e a proposta deste trabalho

Por uma dessas vicissitudes para as quais natildeo vale a pena buscar razotildees a

filosofia de Cassirer eacute um campo ainda inexplorado em sua proposta e contribuiccedilatildeo

especiacuteficas para o corpo da histoacuteria da filosofia sobretudo na cena brasileira Com

exceccedilatildeo de trabalhos isolados publicados em alguns departamentos ou da

utilizaccedilatildeo eventual de suas obras como bibliografia de apoio em cursos diversos os

textos de Cassirer satildeo pouco lidos e raramente discutidos A situaccedilatildeo eacute tal que natildeo

se pode nem ao menos dizer que o status de Cassirer como proponente de uma

filosofia proacutepria estaacute assegurado entre os pesquisadores e professores brasileiros

Com efeito natildeo satildeo poucos aqueles que o vecircem como um mero comentador ou

historiador da filosofia A situaccedilatildeo se complica mais ainda quando vemos que os

proacuteprios historiadores da filosofia contestam a validade dos escritos de Cassirer

como historiador Segundo eles a concepccedilatildeo histoacuterica do filoacutesofo estaria

demasiadamente comprometida com postulados tais que natildeo permitiriam a

imparcialidade necessaacuteria a um historiador As mesmas ressalvas valem para

Cassirer como comentador ele natildeo seria sistemaacutetico e exegeacutetico o suficiente para

ser tomado como um bom comentador deste ou daquele pensador em particular De

outro lado eacute constante a referecircncia a Cassirer como um grande erudito e insigne

conhecedor da histoacuteria da filosofia

12

Agrave parte a protocolar adulaccedilatildeo que se deve cumprir a um pensador de obra tatildeo

vasta quanto a de Cassirer fato eacute que todas essas consideraccedilotildees acima descritas

deixam entrever que a contribuiccedilatildeo de Cassirer ainda natildeo foi devidamente

dimensionada e tampouco parece que tenha havido tempo suficiente despendido

para a anaacutelise de sua forma particular de fazer filosofia Daiacute que o tiacutetulo desta nota

aponte para a questatildeo da leitura dos textos de Cassirer

De fato ler um texto de Cassirer eacute uma tarefa que impotildee ao leitor algumas

dificuldades dignas de nota Num primeiro contato o leitor verifica a dificuldade de

discernir a voz de Cassirer das vozes de cada um dos inuacutemeros pensadores de que

ele se vale para expor suas ideacuteias Cassirer fala por meio dos filoacutesofos Essa

dificuldade tem explicaccedilotildees na erudiccedilatildeo do autor tanto quanto em sua estiliacutestica e

em sua metodologia Desde suas primeiras publicaccedilotildees Cassirer adota um estilo

historicista que desenvolve os temas dos quais trata considerando diferentes

eacutepocas e correntes de pensamento valendo-se de extensas citaccedilotildees de obras e

autores diversos articulando-os de forma a privilegiar as proximidades e diferenccedilas

entre autores de uma mesma eacutepoca em torno de uma temaacutetica ou temaacuteticas aleacutem

de mostrar o desenvolvimento dessas temaacuteticas ao longo do tempo Esse estilo

historicista deve ser remetido a um postulado metodoloacutegico qual seja o ideal de

conhecimento geneacutetico que caracteriza a Escola de Marburgo que entre outras

coisas entendia que o conhecimento sempre progride sem rupturas radicais em

direccedilatildeo a um termo final que nunca eacute efetivamente alcanccedilado Aleacutem disso por conta

de questotildees que se referem tambeacutem ao contexto em que a obra de Cassirer eacute

elaborada eacute patente a necessidade de manter a discussatildeo o mais aderente possiacutevel

ao desenvolvimento concreto da ciecircncia o que eacute feito por meio de referecircncias

diretas agraves mais diversas teorias em voga Eacute por conta disso que Cassirer natildeo tem

13

opccedilatildeo senatildeo fundamentar seu pensamento no maior nuacutemero possiacutevel de referecircncias

histoacutericas diacrocircnicas ou sincrocircnicas tanto da filosofia quanto das ciecircncias em geral

O filoacutesofo tem ainda um estilo direto e claro embora a organizaccedilatildeo de sua obra

muitas vezes natildeo seja evidente nem privilegie a apreensatildeo sistemaacutetica de suas

ideacuteias

Considerando o estado de coisas acima descrito no que tange agrave recepccedilatildeo da

filosofia de Cassirer no Brasil e ao seu modo de fazer filosofia o presente trabalho

se coloca primeiramente a tarefa de apresentar a temaacutetica central da obra de

Cassirer sistematicamente considerando a tradiccedilatildeo da qual parte o contexto em

que se situa e as limitaccedilotildees que encontra em seu percurso Acredito que dessa

forma este trabalho possa modestamente contribuir para os estudos vindouros de

Cassirer no Brasil auxiliando estudos mais aprofundados e pontuais ou mesmo

estimulando o surgimento de discussotildees sobre sua obra De fato dada a escassez

de material sobre Cassirer no Brasil boa parte da tarefa de pesquisa ficou por conta

de encontrar textos e autores que estudam o filoacutesofo mundo afora E dada a

inexistecircncia de discussotildees sobre sua obra no Brasil um trabalho que focasse um ou

outro ponto muito especiacutefico certamente natildeo contribuiria nem para estimular os

estudos no filoacutesofo nem lograria sucesso em contrapocirc-la agrave perspectiva de outro

filoacutesofo

Certamente que o leitor encontraraacute aqui um ponto de vista particular sobre a

filosofia de Cassirer que privilegia alguns aspectos de sua obra em detrimento de

outros Todavia o objetivo natildeo eacute tanto defender uma determinada interpretaccedilatildeo

quanto apresentar sistematicamente o desenvolvimento de sua temaacutetica principal ndash

desenvolvida na Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash em seus aspectos centrais

14

ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS

Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso

ldquoO presente texto constitui o primeiro volume de uma obra cujos esboccedilos iniciais

remontam agraves investigaccedilotildees que se encontram resumidas no meu livro

Substanzbegriff und Funktionsbegriff [Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo]

Estas pesquisas diziam respeito principalmente agrave estrutura do pensamento no

campo da matemaacutetica e das ciecircncias naturais [Naturwissenschaften] Ao tentar aplicar

o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias do espiacuterito

[Geisteswissenschaften] fui constatando gradualmente que a teoria geral do

conhecimento na sua concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente

para um embasamento metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo

fosse alcanccedilado foi necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa

epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Tal eacute o texto que abre o prefaacutecio ao primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas A informaccedilatildeo que o fragmento traz agrave primeira vista meramente

circunstancial sem grande relevacircncia para a investigaccedilatildeo empreendida pela obra

na verdade revela um ponto radical de cisatildeo na trajetoacuteria filosoacutefica de Cassirer Bem

entendido o trecho deixa evidente que a Filosofia das Formas Simboacutelicas nasce da

constataccedilatildeo de um limite de uma espeacutecie de beco-sem-saiacuteda da epistemologia

Trata-se de uma confissatildeo de fracasso confissatildeo esta que obriga o filoacutesofo a recuar

alguns passos em seu trajeto para que possa entatildeo por outros caminhos ou com

outras ferramentas dar uma nova saiacuteda ao beco com o qual se deparara E a saiacuteda

que anuncia Cassirer eacute a ldquoampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo natildeo

restringir a anaacutelise para os assuntos concernentes agraves ciecircncias do espiacuterito somente

15

aos ldquopressupostos gerais do conhecimento cientiacutefico do mundordquo Faz-se necessaacuterio

agora dar voz agraves diversas ldquoformas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana do

mundordquo pois somente a partir da compreensatildeo de cada uma delas em seu modo

peculiar de manifestaccedilatildeo eacute possiacutevel traccedilar uma visatildeo metodoloacutegica clara que decirc

conta de embasar as diversas ciecircncias do espiacuterito

Vemos aqui que a hipoacutetese do filoacutesofo para explicar o impasse ao qual

chegou eacute a de que a concepccedilatildeo tradicional de conhecimento ndash e por conseguinte

os meacutetodos que a concepccedilatildeo acarreta ndash tem sido entendida de maneira estreita

demais pela tradiccedilatildeo filosoacutefica Na verdade tratar-se-ia de uma metoniacutemia pois que

essa concepccedilatildeo de conhecimento entendido como a funccedilatildeo cognitiva proacutepria agrave

esfera da praacutetica cientiacutefica que eacute apenas uma das diversas formas do conhecer

tomou a si como medida e instacircncia uacutenica do verdadeiro conhecimento E seria essa

metoniacutemia a responsaacutevel pelo beco que ora falaacutevamos

As consequumlecircncias da ampliaccedilatildeo do programa epistemoloacutegico como jaacute se

pode suspeitar satildeo colossais Todavia natildeo eacute ainda neste momento da exposiccedilatildeo

que a questatildeo seraacute desenvolvida uma vez que para melhor entender a Filosofia

das Formas Simboacutelicas e sua proposta de compreensatildeo das diversas manifestaccedilotildees

do espiacuterito humano eacute necessaacuterio aclarar as influecircncias e as circunstacircncias de sua

produccedilatildeo razatildeo pela qual a exposiccedilatildeo recua primeiramente agrave obra Substanzbegriff

und Funktionsbegriff esta que segundo Cassirer apresenta os primeiros passos

que conduziram agrave noccedilatildeo de forma simboacutelica

Destarte neste capiacutetulo inicial seraacute contextualizada primeiramente a produccedilatildeo

intelectual da Escola de Marburgo frente ao debate epistemoloacutegico de sua eacutepoca

bem como a peculiaridade de sua proposta neokantiana ndash ambas presentes na

citaccedilatildeo de abertura na oposiccedilatildeo entre Natur- e Geisteswissenschaft Em seguida jaacute

16

num segundo momento da histoacuteria da proacutepria Escola tratar-se-aacute da obra Substacircncia

e Funccedilatildeo tida como a primeira grande contribuiccedilatildeo original de Cassirer ao corpo da

tradiccedilatildeo filosoacutefica e como marca de sua ruptura com a doutrina de Marburgo E por

fim dadas as consideraccedilotildees necessaacuterias desta obra trataremos da limitaccedilatildeo que a

mesma encontra frente agraves questotildees propostas pelas ciecircncias do espiacuterito e de como

isso afetou a Escola de Marburgo em geral para entatildeo poder situar propriamente o

leitor no magnum opus de Cassirer

Eacute importante destacar que como chave de leitura aqui assumida para a obra

de Cassirer a declaraccedilatildeo de abertura da Filosofia das Formas Simboacutelicas acima

citada adquire papel central Por meio daquilo que aqui chamamos de confissatildeo de

fracasso admitimos dois momentos radicalmente distintos na orientaccedilatildeo do

programa filosoacutefico do autor e mais que o segundo momento se daacute por conta do

esgotamento do primeiro que natildeo eacute de todo descartado mas que passa entatildeo a ser

tomado como um caso particular que necessita ser articulado num campo

epistemoloacutegico mais abrangente embora ainda orientado pelo meacutetodo

transcendental Nesse contexto a proposta com a qual aqui se trabalha difere

significativamente daquela dos poucos comentadores de Cassirer existentes hoje 1

Nenhum deles parece dar atenccedilatildeo agrave mudanccedila de orientaccedilatildeo da investigaccedilatildeo do

filoacutesofo quando se propotildeem a expor a sistemaacutetica de sua obra Ainda que

1 Dentre eles destacamos John Krois notoacuterio especialista na filosofia de Cassirer autor de Symbolic

Forms and History e responsaacutevel pela publicaccedilatildeo (ora em andamento) das obras manuscritas do

autor Christian Moumlckel professor na Universidade Humboldt e responsaacutevel pelas publicaccedilotildees

poacutestumas ao lado de Krois Steve Lofts que escreveu A Repetition of Modernity e Edward Skidelsky

que no ano de 2008 publicou The Last Philosopher of Culture Vale destacar que salvo o texto de

Moumlckel Das Urphaumlnomen des Lebens cuja proposta eacute analisar em que medida a obra de Cassirer

pode ser aproximada da filosofia da vida natildeo haacute grandes discrepacircncias entre as interpretaccedilotildees dos

comentadores citados mas que haacute nuanccedilas ora relevantes entre eles Pontos especiacuteficos sobre cada

um dos textos aqui citados seratildeo discutidos ao longo deste e dos demais capiacutetulos

17

reconheccedilam a distinccedilatildeo niacutetida dos momentos anterior e posterior ao programa das

formas simboacutelicas parecem natildeo dar a devida importacircncia aos efeitos dessa mesma

distinccedilatildeo por exemplo no vocabulaacuterio empregado pelo filoacutesofo Aqui sentimos a

necessidade de embasar a argumentaccedilatildeo que tecemos considerando a eacutepoca de

publicaccedilatildeo das obras a que nos referimos (antes ou depois da concepccedilatildeo do

programa das formas simboacutelicas) sem usar de obras que natildeo tenham sido escritas

na perspectiva do programa das formas simboacutelicas para tal nem de antecipar a

perspectiva da filosofia das formas simboacutelicas em obras concebidas antes do

projeto Com isso acreditamos seraacute possiacutevel melhor apresentar a especificidade da

filosofia das formas simboacutelicas como um projeto que possui suas proacuteprias questotildees

e premissas e edifica um procedimento investigativo singular que eacute a um soacute tempo

condiccedilatildeo e consequumlecircncia do sucesso desse projeto A proposta de introduzir ao

texto das formas simboacutelicas por meio de uma preacutevia abordagem de sua genealogia

esta que daraacute conta de aspectos internos e contextuais que levam agrave proposiccedilatildeo de

uma filosofia das formas simboacutelicas possibilitaraacute cremos deslindar seu lugar

especiacutefico na histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX bem como forneceraacute perspectivas de

sua aplicaccedilatildeo a problemas filosoacuteficos contemporacircneos e contribuiraacute para o debate

sobre a proacutepria obra de Cassirer em seus limites e tendecircncias principais

Escola de Marburgo

Panorama filosoacutefico

A Escola de Marburgo se insere num movimento filosoacutefico maior e

multifacetado de retorno a Kant e agraves tendecircncias idealistas do seacuteculo XVIII em

18

resposta ao ambiente filosoacutefico e cultural em que se encontrava a Alemanha 2 Os

adeptos desse movimento arrogavam para si a ldquoreintroduccedilatildeo no seio da filosofia do

tipo de inquiriccedilatildeo epistemoloacutegica iniciado por Kantrdquo como uacutenico meio de superar o

ambiente de ldquoanarquia materialismo e decliacutenio filosoacutefico universalrdquo (KOumlHNKE 1986

p 37) Jaacute os pesquisadores e comentaristas do assunto divergem acerca do caraacuteter

especiacutefico desse movimento Por um lado afirma-se que ele surge com a pretensatildeo

de reviver a atmosfera profiacutecua do idealismo e do humanismo do seacuteculo XVIII frente

agraves tendecircncias miacutesticas que se propalavam novamente na cultura alematilde depois de

expulsas justamente pelo ambiente da Aufklaumlrung3 Outros4 atribuem seu surgimento

ao ldquocolapso do sistema hegelianordquo (apud POMA 1997 p 1) que junto de si levava

as expectativas depositadas no idealismo favorecendo assim o florescimento das

ciecircncias empiacutericas (fisiologia biologia psicologia antropologia etc) e sobretudo do

2 O uso do termo movimento em vez de escola (no singular) ou tendecircncia segue a proposta de

Koumlhnke (1986 p 206) justamente para chamar a atenccedilatildeo agrave heterogeneidade que o caracteriza Eacute

assim que Koumlhnke seguindo T K Oumlsterreich sistematiza o neokantismo em sete ldquotendecircncias neo-

criacuteticasrdquo (1) tendecircncia fisioloacutegica (Helmholz Lange) (2) tendecircncia metafiacutesica (Liebmann Volkelt) (3)

tendecircncia realista (Riehl) (4) tendecircncia loacutegica (Cohen Natorp e Cassirer) (5) criticismo

transcendental dos valores (Windelband Rickert) (6) remodelagem relativista do criticismo (Simmel)

e (7) remodelagem psicoloacutegica (Fries Nelson)

3 Cf GAWRONSKY 1949 p 5 Gawronsky natildeo detalha quais satildeo essas tendecircncias miacutesticas agraves

quais se refere Assim sendo torna-se difiacutecil precisar o que ele tem em mente uma vez que nessa

eacutepoca ndash digamos entre as deacutecadas de 1830 e 1870 para tomar a dataccedilatildeo analisada por Koumlhnke ndash

assistimos agrave propagaccedilatildeo nos limites da filosofia em liacutengua alematilde de tendecircncias radicalmente

diversas entre si (Schelling Schopenhauer Feuerbach Marx Nietzsche) e nenhuma delas ocupando

um posto notadamente ldquomiacutesticordquo Skidelsky fala de algo que pode remeter ao que diz Gawronsky (Cf

p 2) mas a tendecircncia miacutestica agrave que se recorre eacute devida agrave alienaccedilatildeo causada pelo avanccedilo da ciecircncia

em termos de industrializaccedilatildeo Nesse caso a recorrecircncia ao misticismo se daacute via psicologia Koumlhnke

(1986 esp Introduccedilatildeo e cap I) faz referecircncia agrave renuacutencia da weltanschaulich Philosophieren [o

filosofar de visotildees de mundo] e ao romantismo na filosofia mas seria do mesmo modo temeraacuterio

concluir disso uma preocupaccedilatildeo com tendecircncias miacutesticas

4 Especialmente KOumlHNKE (1986) mas tambeacutem HOLTZHEY (2005) SKIDELSKY (2008) CROWELL

(2001) e POMA (1997)

19

espiacuterito positivista Para estes a releitura de pensadores ilustres do seacuteculo XVIII ndash

Kant em especial ndash figurava como uma alternativa tanto ao materialismo naturalista

quanto ao idealismo metafiacutesico situaccedilatildeo que natildeo configura tanto uma tentativa de

reavivar o racionalismo per se quanto retomar o projeto criacutetico justamente frente agraves

tendecircncias extremas de empiristas e idealistas5 Cassirer tambeacutem no IV volume de

Das Erkenntnisproblem [O Problema do Conhecimento] faz um diagnoacutestico da

situaccedilatildeo vivida pela filosofia e sua relaccedilatildeo com a epistemologia desde a morte de

Hegel (1832) ateacute 1932 eacutepoca em que o livro eacute escrito A introduccedilatildeo desse texto daacute

especial atenccedilatildeo ao surgimento da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma e como ldquobase formal para toda a filosofiardquo De acordo com Cassirer ldquodela

[da teoria do conhecimento] deveraacute vir a decisatildeo final sobre o meacutetodo adequado

para a filosofia e para a ciecircncia em geralrdquo (EP IV p 5) Nestes termos o filoacutesofo

trata do vaacutecuo deixado pela falecircncia da proposta hegeliana ndash no campo cientiacutefico

primeiramente e depois disso no campo da filosofia e da cultura ndash de dar papel

central agrave histoacuteria na ldquorealizaccedilatildeo e verdadeira expressatildeo de todo o conhecimento que

o espiacuterito possui de sua proacutepria natureza e recursosrdquo (Idem p 3) Em outras

palavras o que fracassa com o hegelianismo eacute a tentativa de dar primazia agraves

Geisteswissenschaften em relaccedilatildeo agraves Naturwissenschaften ao ponto mesmo de os

valores pendularem ao extremo oposto Destarte ascende o positivismo ndash

curiosamente segundo Cassirer da Franccedila onde o hegelianismo nunca vingou

propriamente ndash como tentativa de responder via investigaccedilotildees calcadas firmemente

na empiria agraves questotildees agraves quais o idealismo natildeo logrou sucesso

5 Muito embora como aponta Holtzhey (2005 p 6) em sua primeira fase este movimento fosse

caracterizado pelos muacuteltiplos viacutenculos que guardava com o positivismo

20

Ambiente poliacutetico

No plano poliacutetico esse movimento genericamente chamado de neokantismo

coincide com ndash ou faz parte da ndash emergecircncia da Alemanha como Estado-Naccedilatildeo

Nesse sentido responde a uma necessidade nacionalista de auto-afirmaccedilatildeo com

vistas a combater as tendecircncias esquerdistas internacionalistas defendidas pelo

positivismo que agravequela altura invadiam tambeacutem a vida cultural e ciacutevica da

Alemanha O lugar exato do neokantismo nesse projeto nacionalista eacute tambeacutem alvo

de desacordo em relaccedilatildeo a cada parte envolvida na questatildeo Segundo o dicionaacuterio

filosoacutefico da DDR

ldquoo neokantismo emergiu e se desenvolveu nos anos 1860‟ e 1870‟ na mais iacutentima

associaccedilatildeo com a alianccedila estabelecida entre os reacionaacuterios feudais e a burguesia

alematilde contra o fortalecido e resoluto proletariado alematildeo e internacional Nesse

periacuteodo de elevados conflitos de classe ndash e quase exatamente no mesmo ano da

Comuna de Paris ndash a filosofia burguesa alematilde recorreu a Kantrdquo (apud KOumlHNKE

1986 p 3)

Esse espiacuterito nacionalista certamente natildeo eacute determinante para a tarefa investigativa

da filosofia mas nem por isso deve ser totalmente desconsiderado ainda mais se

for levado em conta que aqui estaacute o germe ideoloacutegico do nazismo Segundo visatildeo

criacutetica partilhada por comentadores do iniacutecio do seacuteculo XX como Loumlwith Korsch ou

Bloch ou por comentadores mais recentes como Skidelsky Koumlhnke ou mesmo

Holtzhey haacute um peso ideoloacutegico fundamental no neokantismo ao ponto de permitir

a afirmaccedilatildeo de que ldquoas escolas que dominaram as universidades alematildes

distorceram Kant natildeo ainda em um protofacista mas num nacional-liberal de modo

que o filoacutesofo do esclarecimento germacircnico parecia um antecessor bismarquiano-

21

filisteurdquo (BLOCH apud KOumlHNKE 1986 p 3) Essa afirmaccedilatildeo de certa forma eacute

corroborada pela extrapolaccedilatildeo da criacutetica dirigida ao positivismo por parte de algumas

vertentes do neokantismo ndash como o da Escola de Baden ndash no momento em que elas

natildeo mais se limitam a contestar a aplicaccedilatildeo daquele em relaccedilatildeo agraves

Geisteswissenschaften (e lembremos que inicialmente a discordacircncia em relaccedilatildeo ao

positivismo nesse campo natildeo se estendia em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias

naturais) mas passam a contestaacute-la no que tange agraves ciecircncias naturais o que

significa contestar a proacutepria razatildeo cientiacutefica que em sua tentativa de nos aproximar

do mundo cada vez mais nos afasta dele6 Um exemplo da discordacircncia original

adstrita ao domiacutenio das Geisteswissenschaften pode ser notada pelo combate a

Buckle e Hippolyte Taine a respeito da aplicaccedilatildeo da metodologia positivista para a

interpretaccedilatildeo da literatura e da histoacuteria 7 (SKIDELSKY 2008 p 22) Em outras

palavras o que o neokantismo inicialmente contestava salvo exceccedilotildees natildeo era o

meacutetodo positivista em relaccedilatildeo agrave sua aplicaccedilatildeo agraves ciecircncias naturais mas somente a

6 De acordo com Rickert as ciecircncias naturais satildeo meramente abstraccedilotildees geneacutericas da realidade as

quais natildeo satildeo capazes de nos conduzir agrave verdade das coisas Os conceitos das ciecircncias satildeo apenas

ldquoroupas compradas prontas [ready-made] que servem em Paulo tatildeo bem quanto em Pedro porque

satildeo cortadas na medida de nenhum dos doisrdquo (1902) O posicionamento de Rickert tambeacutem eacute alvo

de criacuteticas por parte de Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo na medida em que este entende o

progresso da ciecircncia como um movimento infinito de aproximaccedilatildeo com a realidade e Rickert como um

afastamento sempre maior Cf SKIDELSKY 2008 p 63 Interessante tambeacutem eacute ressaltar que

segundo Friedman (2000 esp cap 3) desse irracionalismo que desponta no seio do neokantismo

surge uma das principais rupturas da filosofia do iniacutecio do seacuteculo XX o existencialismo de Heidegger

aluno de Rickert

7 Haacute trecircs lugares principais onde Cassirer menciona Taine no capiacutetulo XIV dedicado agrave concepccedilatildeo de

histoacuteria no uacuteltimo volume d‟O Problema do Conhecimento no primeiro capiacutetulo do Ensaio sobre o

Homem (p 38-40) e na segunda parte do terceiro ensaio que compotildee a Logik der Kulturwissenschaft

(p 146-58) Nos dois primeiros a perspectiva positivista eacute tomada como uma tentativa de reduzir os

fenocircmenos ldquoespirituaisrdquo a processos surgidos da evoluccedilatildeo histoacuterica ldquoTaine declara que estudaraacute a

transformaccedilatildeo da Revoluccedilatildeo Francesa como estudaria bdquoa metamorfose de um inseto‟rdquo (EM p 39) No

terceiro Cassirer se vale de Taine para mostrar a diferenccedila entre Conceitos nas ciecircncias naturais e

conceitos nas ciecircncias culturais

22

adoccedilatildeo daquele aos eventos das ciecircncias do espiacuterito (Daiacute a proximidade inicial no

campo das ciecircncias naturais entre neokantismo e positivismo) Mas foi apenas uma

questatildeo de tempo ateacute que esse limite fosse extrapolado e alguns passassem de

uma criacutetica do positivismo a uma revolta contra a proacutepria razatildeo (com todas as

consequumlecircncias que isso acarreta para a filosofia e a proacutepria cultura na qual esta se

inseria)8 Assim podemos ler a disputa entre a primazia das ciecircncias naturais ou do

espiacuterito como padratildeo geral epistemoloacutegico como pano de fundo de outra motivada

pelos interesses da classe ldquoreacionaacuteriardquo contra os ldquoefeitos nivelantes da ciecircncia e da

tecnologiardquo na Alemanha responsaacuteveis pelo seu crescimento acelerado

(SKIDELSKY 2008 p 23)

O posicionamento de Cohen (muito proacuteximo daquele que mais tarde Cassirer

seguiria) a esse respeito natildeo se pauta tanto por um espiacuterito nacionalista e nesse

sentido elitista quanto numa espeacutecie de socialismo que natildeo seria um resultado

inexoraacutevel do progresso econocircmico como queria Marx mas sim um ideal moral

fruto de escolhas voluntaacuterias Este posicionamento decorre da sistemaacutetica da Ethik

des reinen Willens do poder constitucional reservado ao campo da eacutetica (face ao

caraacuteter regulativo reservado agraves ciecircncias naturais) que natildeo poderia conceber a

atividade poliacutetica como forccedilosamente atada a quaisquer espeacutecies de determinismo

Importante eacute notar que o posicionamento poliacutetico de Marburgo em particular tenta

balancear os extremos da eacutepoca em que vive ciecircncia e religiatildeo induacutestria e

aristocracia liberdade e tradiccedilatildeo ldquoEacute uma tentativa de humanizar a ciecircncia

racionalizar a religiatildeo e liberalizar o socialismordquo (SKIDELSKY 2008 p 42) O

8 Para muitos nomes importantes da eacutepoca como Dilthey a questatildeo se encerrava na relaccedilatildeo com as

ciecircncias naturais Contudo a ecircnfase exagerada na imparidade das humanidades se converteu em

instrumento ideoloacutegico e tornou-se revolta contra a proacutepria racionalidade Eacute essa extrapolaccedilatildeo que daacute

margem ao surgimento anos depois da Lebensphilosophie de Bergson Simmel e sobretudo de

Heidegger

23

desenrolar dos fatos mostrou como tal posicionamento natildeo frutificou ndash nem entre as

tendecircncias neokantianas nem como perspectiva poliacutetica em geral Entretanto o

posicionamento moderado e por assim dizer conciliador foi marca indiscutiacutevel da

vida e da filosofia de Cassirer defensor dos ideais da repuacuteblica de Weimar e

reconhecido mediador de tendecircncias filosoacuteficas

Em termos histoacutericos natildeo eacute possiacutevel datar precisamente o neokantismo

tampouco eleger seu fundador Nestes pontos tambeacutem os comentadores divergem

Por conta disso tomar-se-aacute aqui como iniacutecio do neokantismo a eacutepoca da morte de

Hegel (deacutecada de 1830) para seguir tanto a proposta de Cassirer em Das

Erkenntnisproblem IV quanto para seguir a proposta de Koumlhnke (1986) e como seu

final o momento da partida de Cassirer da Alemanha quando da ascensatildeo de Hitler

ao poder em 1933 Tal dataccedilatildeo pode ser dividida em quatro periacuteodos distintos O

primeiro (1832-1848) compreende a preacute-histoacuteria do neokantismo desde o abandono

do idealismo alematildeo e a emersatildeo da teoria do conhecimento como disciplina

autocircnoma ateacute o surgimento das primeiras publicaccedilotildees com o imperativo de retorno

a Kant (Zeller e Liebmann) O segundo (1848-1871) dividido entre a fase fisioloacutegica

(Helmholtz Lange) as ldquogeraccedilotildees ceacuteticasrdquo9 e a disputa Trendelenburg-Fischer em

torno da questatildeo da experiecircncia em Kant O terceiro momento (1871-1914) eacute

marcado pela apariccedilatildeo e consolidaccedilatildeo das duas tendecircncias principais do

neokantismo ndash as escolas de Baden e Marburgo ndash bem como relevante

particularmente para o presente trabalho dos principais trabalhos elaborados pela

Escola de Marburgo no campo da loacutegica (o Sistema de Cohen e as obras de Natorp

e Cassirer) O quarto momento (1914-1933) eacute fortemente marcado por crises

intelectuais e morais ndash teoria da relatividade mecacircnica quacircntica aumento

9 Cf KOumlHNKE 1986 cap 3

24

exponencial do antissemitismo na Alemanha ocaso da Repuacuteblica de Weimar e por

fim ascensatildeo de Hitler ao poder ndash que aleacutem de provocarem uma fissatildeo no interior

da proacutepria Escola de Marburgo (a ontologia de Natorp face agrave antropologia de

Cassirer) ainda fazem surgir tendecircncias que visam superar o neokantismo tanto no

campo filosoacutefico (especialmente o existencialismo e o empirismo loacutegico) quanto em

sua viabilidade poliacutetica (pelas razotildees acima citadas) 10

Doutrina de Marburgo

O retorno a Kant que Cohen propotildee eacute bastante peculiar e motivado por

razotildees muito precisas Para os objetivos do presente trabalho eacute necessaacuterio destacar

trecircs pontos desse retorno que satildeo as marcas essenciais da teoria da experiecircncia

que Cohen propotildee (1) a preocupaccedilatildeo com a ciecircncia que conduz agrave formulaccedilatildeo do

meacutetodo transcendental (2) a noccedilatildeo de forma depurada das interpretaccedilotildees

equivocadas dos poacutes-kantianos e (3) a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo

resultado da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano entre as faculdades da sensibilidade e

do entendimento Nestes trecircs toacutepicos pretendemos sintetizar o nuacutecleo da doutrina de

Marburgo para que se possa entender de que forma Cassirer se apropria dessa

doutrina e em que medida sua obra pode ser considerada uma superaccedilatildeo das

limitaccedilotildees iniciais do meacutetodo traccedilado por Cohen bem como os fatores que levaram

agrave necessidade de extrapolar tais limitaccedilotildees

10

Natildeo eacute objetivo deste trabalho expor pormenorizadamente o desenvolvimento histoacuterico do

neokantismo Para mais detalhes sobre o neokantismo Cf esp KOumlHNKE 1986 Como eacute notaacutevel ao

leitor familiarizado com a histoacuteria do neokantismo as divisotildees aqui marcadas natildeo correspondem

exatamente a nenhuma das estabelecidas pelos historiadores da filosofia aqui mencionados Todavia

o recorte proposto se justifica pela articulaccedilatildeo dos temas centrais dos quais trata o neokantismo

ainda que de algum modo o recorte seja feito privilegiando a perspectiva de Marburgo

25

O meacutetodo transcendental

De todas as correntes de pensamento neokantianas a Escola de Marburgo eacute

talvez a mais comprometida com as ciecircncias naturais11 Desde o iniacutecio da Escola12

que se daacute com a publicaccedilatildeo de Kants Theorie der Erfahrung [Teoria da Experiecircncia

de Kant] em 1871 fica evidente o objetivo de Cohen de mostrar como a filosofia

transcendental eacute de fato plenamente apta a responder a questotildees demandadas

pela ciecircncia sem recorrer a postulados de ordem metafiacutesica De fato esse eacute o intuito

de Cohen ao formular o meacutetodo transcendental (o qual diga-se de passagem ele

atribuiacutea ao proacuteprio Kant) como aquele que parte dos fatos e entatildeo busca suas

condiccedilotildees a priori de possibilidade Mas eacute preciso lembrar que ainda que Cohen

esteja preocupado em dar respostas plausiacuteveis agraves questotildees advindas do campo da

ciecircncia nem por isso ele abre matildeo de tomar a si mesmo como um idealista Assim

ao mesmo tempo em que sua filosofia natildeo pode ser meramente uma especulaccedilatildeo

descolada da realidade natildeo pode tanto quanto bastar-se com o ldquorealismo ingecircnuordquo

nas palavras de Cassirer que limitava a filosofia ao ldquomaterialismo triunfante da

11

Este ponto da influecircncia da praacutetica cientiacutefica na obra da Escola que tem seu maior exemplo nas

consideraccedilotildees que Cassirer faz acerca da teoria da relatividade de Einstein mostra a proximidade da

Escola em relaccedilatildeo ao positivismo (posicionamento este severamente criticado por outros setores do

neokantismo uma vez que atrelando o sucesso da filosofia ao desenvolvimento cientiacutefico faz

daquela serva desta)

12 De acordo com Philonenko (1974) a histoacuteria da Escola pode ser dividida em trecircs momentos

distintos (1) a ldquovolta a Kantrdquo (1871-78) momento no qual Cohen se esforccedila por mostrar a relaccedilatildeo

estreita entre a filosofia transcendental e as ciecircncias (2) (1878-1914) periacuteodo no qual Cohen edifica

seu System der Philosophie aacutepice do desenvolvimento metodoloacutegico de Marburgo Eacute nessa fase que

Natorp e Cassirer passam a integrar a Escola Neste periacuteodo Cassirer desenvolve suas pesquisas

focado principalmente nas ciecircncias naturais como jaacute dito acima presentes principalmente em sua

obra de 1910 Substanzbegriff und Funktionsbegriff (3) (1914-1933) periacuteodo de crise moral intelectual

e cientiacutefica Nesse momento Natorp e Cassirer extrapolam os limites metodoloacutegicos traccedilados por

Cohen cada qual num sentido diverso Eacute o iniacutecio do esfacelamento da Escola Eacute desta fase a

Filosofia das Formas Simboacutelicas (1923-1929)

26

ciecircnciardquo 13 (POMA 1997 p 56) Dito de outro modo trata-se do mesmo ideal

proposto por Trendelenburg qual seja o de ldquoestabelecer o ideal no realrdquo14

A atenccedilatildeo ao meacutetodo eacute a principal marca da Escola de Marburgo (De fato a

questatildeo metodoloacutegica eacute tatildeo marcante que chega ao ponto de Natorp ser chamado

por Hans-Georg Gadamer seu orientando para a tese de doutorado de

Methodenfanatiker15) Para Cohen a investigaccedilatildeo transcendental eacute essencialmente

uma questatildeo metodoloacutegica ela se volta natildeo aos conteuacutedos do conhecimento mas agrave

ldquonossa maneira de conhecer os objetos na medida em que esse modo de

conhecimento [Erkentnissart] eacute possiacutevel a priorirdquo (KTE p 180 nota) Eacute por isso que

Cohen enxerga na filosofia de Kant a proposta de uma nova teoria da experiecircncia ndash

nome de sua primeira grande obra Importante eacute ressaltar que essa obra foi

concebida com a pretensatildeo de esclarecer equiacutevocos no entendimento acerca das

ideacuteias de Kant de tal sorte que Cohen toma para si a tarefa de advogar em nome de

Kant ldquoEu senti a necessidade urgente de apresentar o Kant histoacuterico e de defendecirc-

lo de seus oponentes em sua fisionomia genuiacutena tanto quanto eu era capaz de

entendecirc-lardquo (Idem p iii-iv)

Em que se pesem as criacuteticas que se seguiram ao posicionamento de

Cohen16 sua leitura ldquoepistemologistardquo o leva a repensar o dualismo contido na

13

ldquoMaterialismo natildeo eacute nada aleacutem de realismo dogmaacuteticordquo KTE p 46 Apud POMA 1997 p 58

14 A referecircncia a Trendelenburg se deve ao fato de que segundo Poma (1997 cap I) e Koumlhnke

(1986 cap V) a obra de Cohen deve ser tomada na perspectiva direta do debate Trendelenburg-

Fischer no qual Cohen se posiciona notadamente de modo mais proacuteximo a Trendelenburg mas sem

rechaccedilar Fischer completamente Adiante falaremos mais das implicaccedilotildees do debate para a doutrina

de Marburgo

15 Apud Kim Alan Paul Natorp The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2008 Edition)

Edward N Zalta (ed) URL = lthttpplatostanfordeduarchivesfall2008entriesnatorpgt

16 A interpretaccedilatildeo de Kant proposta por Cohen eacute alvo de criacuteticas contundentes por exemplo por parte

de Koumlhnke (1986 esp cap 5 p 178-97) Para ele Cohen vecirc na KRV seu exato oposto o que

significa natildeo tanto resgatar o sentido original da Criacutetica quanto oferecer uma criacutetica ao empirismo

27

separaccedilatildeo entre as faculdades da sensibilidade e do entendimento (da mesma

forma que o faz a Escola de Baden sob a direccedilatildeo de Windelband e Rickert) jaacute que

de sua necessidade de responder agrave ameaccedila ceacutetica das interpretaccedilotildees psicologistas

da Criacutetica (de Lange e Fischer) deveacutem a necessidade de provar como os conceitos

natildeo derivam da experiecircncia ndash portanto da sensibilidade ndash mas apenas da faculdade

loacutegica do entendimento Eacute por conta disso que a doutrina de Marburgo eacute comumente

conhecida como idealismo loacutegico o que se torna aparente ateacute mesmo pela

consideraccedilatildeo do tiacutetulo da obra de Cohen Logik der reinen Erkenntnis (1902) [Loacutegica

do Conhecimento Puro] ou mesmo pela proposta do projeto da reine Logik17 um

reino ideal de estruturas loacutegicas atemporais e formais18

Eacute a partir do projeto do idealismo loacutegico delineado por Cohen que seratildeo

produzidas as principais obras daquilo que aqui chamamos de segunda fase da

histoacuteria da Escola de Marburgo aacutepice da aplicaccedilatildeo do meacutetodo transcendental agraves

ciecircncias naturais loacutegica e matemaacutetica Eacute a partir desses pressupostos que foram

publicadas as primeiras obras de Cassirer ndash os dois primeiros volumes d‟O Problema

do Conhecimento e Substacircncia e Funccedilatildeo Antes poreacutem de passar agrave consideraccedilatildeo

das obras dessa primeira fase de produccedilatildeo intelectual de Cassirer haacute mais dois

positivismo e materialismo da eacutepoca Lebrun tambeacutem parte de uma criacutetica ao posicionamento de

Cohen em Kant et la Fin de la Meacutetaphysique como podemos notar pela leitura do primeiro capiacutetulo da

obra Diz Lebrun ldquoDesde entatildeo [da publicaccedilatildeo do texto de Cohen] a teoria da possibilidade da

experiecircncia constituiria o centro da Criacutetica Ora natildeo eacute desequilibraacute-la ver nela essencialmente uma

legitimaccedilatildeo das ciecircncias da natureza pela anaacutelise dos elementos transcendentais do conhecimento

Tal eacute a duacutevida da qual noacutes partiremosrdquo (1970 p 19)

17 Eacute certo que a ideacuteia de uma loacutegica pura natildeo nasce com os neokantianos Tanto estes quanto

Husserl admitem ser Bolzano Lotze Herbart e Meinong suas fontes Mais tarde agrave eacutepoca do

aparecimento das Investigaccedilotildees Loacutegicas o posicionamento neokantiano se mostraraacute proacuteximo ao de

Husserl a respeito da recusa do psicologismo

18 Friedman alerta (2000 p 28) para o fato de que o termo formal para o caso da Escola de

Marburgo deveraacute ser tomado como ldquotranscendentalrdquo dada a distinccedilatildeo fundamental para a escola

entre a loacutegica meramente formal e a loacutegica transcendental Falaremos a respeito adiante

28

pontos a esclarecer sobre a doutrina de Marburgo ambos decorrentes dos traccedilos

gerais que apresentamos do meacutetodo transcendental

A noccedilatildeo de forma

Uma das tarefas que Cohen precisava cumprir para estabelecer o idealismo

loacutegico era depurar o a priori tanto quanto possiacutevel de qualquer implicaccedilatildeo metafiacutesica

de modo a tornar a filosofia completamente aderente ao desenvolvimento da ciecircncia

Eacute por conta disso que Cohen toma o a priori como condiccedilatildeo formal de possibilidade

da experiecircncia Natildeo se trata de um oacutergatildeo como queriam os fisiologistas mas

meramente de uma forma o ato da intuiccedilatildeo considerado independentemente de seu

conteuacutedo ldquoO espaccedilo eacute uma intuiccedilatildeo a priorirdquo significa eacute uma condiccedilatildeo constitutiva

da experiecircncia Natildeo aparece a priori por ser inata mas aparece inata por ser a priori

Assim a experiecircncia passa a ser natildeo uma coisa em si mesma independente da

mente mas a siacutentese dos fenocircmenos Trata-se de uma fundaccedilatildeo formal ndash em

oposiccedilatildeo a uma ontoloacutegica ndash da experiecircncia na qual o sujeito transcendental

tambeacutem perde seu caraacuteter ontoloacutegico para se tornar meramente uma ldquoforma

transcendentalrdquo

ldquoDeixemos entatildeo de nos preocuparmos se essas condiccedilotildees [espaccedilo e tempo] satildeo

inatas porque embora saibamos que certas peculiaridades da consciecircncia satildeo no

fim das contas denotadas pelo espaccedilo e pelo tempo Essas peculiaridades da

consciecircncia [Bewusstsein] como consciecircncia [Bewusstheit] natildeo satildeo capazes de

gerar ciecircncia E nosso interesse estaacute direcionado a essa uacuteltima questatildeo somente o

interesse no inato estaacute portanto suplantado pelo interesse nas condiccedilotildees que

constituem a unidade da experiecircnciardquo (KTE p 216)

29

De fato nessa reconsideraccedilatildeo da experiecircncia como forma toda a orientaccedilatildeo

do programa kantiano muda de referencial passando da eternidade para o

desenvolvimento histoacuterico Assim

ldquoAnschauung se torna um sinocircnimo de matemaacutetica Erfahrung de ciecircncia empiacuterica e

Bewusstsein dos princiacutepios a priori que embasam a matemaacutetica e as ciecircncias

empiacutericas A funccedilatildeo de constituiccedilatildeo do objeto eacute transferida do sujeito transcendental

kantiano para as praacuteticas evolutivas da fiacutesicardquo (SKIDELSKY 2008 p 30)

Aleacutem disso a proacutepria coisa-em-si perde seu estatuto ontoloacutegico (a priori constitutivo)

para tornar-se um ideal irrealizaacutevel de conhecimento da realidade (a priori

regulativo)19 para o qual o desenvolvimento progressivo do conhecimento tende

mas jamais alcanccedila efetivamente ndash a assim chamada concepccedilatildeo geneacutetica de

conhecimento

Conhecimento e construccedilatildeo

Haacute ainda uma caracteriacutestica importante que surge da teoria da experiecircncia

exposta por Cohen o conhecimento natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash uma coacutepia do mundo

19

A diferenccedila entre a priori constitutivo e regulativo remete agraves faculdades da sensibilidade e do

entendimento de um lado e da razatildeo e do juiacutezo de outro Os princiacutepios constitutivos (como a fiacutesica

newtoniana ou a geometria euclidiana) devem se realizar na experiecircncia sensiacutevel por serem

condiccedilotildees necessaacuterias da intersubjetividade ao passo que os regulativos (como os princiacutepios da

coerecircncia e da maacutexima simplicidade) satildeo ideais ou metas que jamais se realizaratildeo na experiecircncia

Os primeiros surgem da aplicaccedilatildeo das faculdades intelectuais agrave faculdade da sensibilidade enquanto

os uacuteltimos das proacuteprias faculdades independentemente de tal aplicaccedilatildeo Assim da rejeiccedilatildeo da

independecircncia da faculdade da sensibilidade em relaccedilatildeo agrave do entendimento segue-se que o a priori

constitutivo foi substituiacutedo por um ideal puramente regulativo

30

(este eacute o realismo ingecircnuo do qual fala Cassirer) mas sim tem de ser uma

construccedilatildeo Levando-se a revoluccedilatildeo copernicana de Kant em consideraccedilatildeo ndash soacute

conhecemos das coisas aquilo que noacutes mesmos colocamos nelas ndash tem-se que a

experiecircncia natildeo pode ser entendida como um datum frente ao qual o sujeito eacute

passivo O conhecimento eacute efetivamente produzido como experiecircncia da mesma

forma que o geocircmetra constroacutei o triacircngulo com o qual o fiacutesico mede as dimensotildees

da natureza

Esse princiacutepio baacutesico da doutrina de Marburgo remetido a uma interpretaccedilatildeo

de Kant tal qual aqui exposto deve ser remetido ao debate Fischer-Trendelenburg

Segundo Koumlhnke esse princiacutepio

ldquorepousa numa interpretaccedilatildeo de Kant que desejava fechar o gap que Trendelenburg

afirmava existir na prova kantiana sem ao mesmo tempo cair no outro extremo de um

idealismo subjetivo Fischer permitiu agraves formas da razatildeo produzir suas representaccedilotildees

mentais Trendelenburg contribuiu para repelir a negaccedilatildeo ceacutetica da objetividade ndash foi de

ambos que Cohen desenvolveu sua teoria da produccedilatildeo do objeto Eacute por isso que o teorema

natildeo deve ser legitimado pela Criacutetica da Razatildeo Pura somente como se sustenta usualmente

mas antes deve ser entendido como um resultado do debate Fischer-Trendelenburgrdquo

(KOumlHNKE 1986 p 178)20

Vale ainda lembrar que o ideal de conhecimento como construccedilatildeo deveacutem

diretamente da eliminaccedilatildeo do dualismo kantiano Nesse sentido negar a

passividade da sensibilidade conduz inevitavelmente a admitir que o conhecimento eacute

fruto de construccedilatildeo loacutegica a partir das estruturas formais a priori do entendimento

20

Koumlhnke tambeacutem vecirc problemas no uso que Cohen faz dessa noccedilatildeo de construccedilatildeo que Kant afirma

ele admitia ldquoexclusivamente no caso das matemaacuteticasrdquo mas essa questatildeo natildeo cabe para a presente

ocasiatildeo

31

A ideacuteia de construccedilatildeo eacute cara a Cassirer Num primeiro momento sua

aplicaccedilatildeo eacute restrita ao domiacutenio das ciecircncias naturais dadas as limitaccedilotildees do meacutetodo

tal qual formulado por Cohen De fato como veremos na proacutexima seccedilatildeo do texto eacute

da limitaccedilatildeo do meacutetodo que surgem as primeiras rupturas na Escola e essas

somadas aos desenvolvimentos da ciecircncia (como o advento da loacutegica simboacutelica por

exemplo) conduzem a alteraccedilotildees significativas dos pressupostos do meacutetodo A

mesma ideacuteia de construccedilatildeo eacute usada por Cassirer tambeacutem em suas obras de

maturidade mas laacute as molduras do meacutetodo aqui exposto jaacute haviam sido

substancialmente modificadas

Substacircncia e Funccedilatildeo

A tarefa da nova loacutegica

Cassirer jaacute no segundo periacuteodo da Escola de Marburgo parte das bases

fundadas por Cohen para dedicar-se ao problema do conhecimento ndash nome de sua

primeira grande obra Com efeito essa obra monumental (quatro tomos e cerca de

1300 paacuteginas) pode ser entendida como um exemplo de aplicaccedilatildeo dos postulados

da doutrina de Marburgo A visatildeo da obra acerca do desenvolvimento da ciecircncia

desde o renascimento expressa implicitamente o ideal metodoloacutegico do

desenvolvimento sempre contiacutenuo da ciecircncia Eacute certo que os tomos da obra natildeo

foram todos escritos agrave mesma eacutepoca (os dois primeiros satildeo de 1906 e 1907 o

terceiro eacute de 1920 e o quarto postumamente publicado foi escrito em 1932) aleacutem

de serem comumente relegados ao status de obra escolar dentro do corpus de

32

Cassirer21 contudo nela desde os primeiros volumes ficam evidentes a erudiccedilatildeo o

domiacutenio e a capacidade de articulaccedilatildeo da histoacuteria da filosofia por Cassirer o que

vem a se confirmar pelas demais obras que escreveria mais tarde

Mas eacute na obra Conceito de Substacircncia e Conceito de Funccedilatildeo (aqui abreviada

para Substacircncia e Funccedilatildeo para seguir a proposta de traduccedilatildeo para a liacutengua

inglesa) principal obra de sua fase de juventude que os postulados de Marburgo

satildeo levados ao extremo numa tentativa de consolidar o idealismo loacutegico junto aos

avanccedilos recentes no campo da proacutepria loacutegica matemaacutetica concretizando assim sua

ldquopromessardquo de criar uma loacutegica do conhecimento objetivo22

O ponto de partida de Substacircncia e Funccedilatildeo satildeo os ldquorecentes

desenvolvimentos na loacutegicardquo estimulados pelas ndash ou resultantes das ndash questotildees

levantadas pelos avanccedilos na teoria matemaacutetica Assim a loacutegica que se encontrava

haacute seacuteculos isolada em sua profunda modorra foi novamente integrada agraves novas

investigaccedilotildees da filosofia Desta forma a loacutegica foi levada a reavaliar seus

postulados praticamente inalterados desde Aristoacuteteles

O impacto disto para a filosofia e para a ciecircncia como se pode imaginar eacute

radical Para tomar um exemplo deste impacto particularmente relevante para o

trabalho presente basta lembrar que Kant abre o prefaacutecio agrave 2ordf ediccedilatildeo da Criacutetica da

Razatildeo Pura justamente com um elogio da loacutegica como exemplo de ciecircncia

ldquoPode reconhecer-se que a loacutegica desde remotos tempos seguiu a via segura [das

ciecircncias] pelo fato de desde Aristoacuteteles natildeo ter dado um passo atraacutes a natildeo ser que

21

Cf Krois J A Note about Philosophy and History The Place of Cassirers Erkenntnisproblem

22 O termo aparece no texto de 1907 Kant und die moderne Mathematik [KMM] ldquoEntatildeo no ponto

onde a loacutegica simboacutelica [Logistik] termina comeccedila uma nova tarefa O que a filosofia criacutetica procura e

o que ela a partir de agora precisa eacute de uma loacutegica do conhecimento objetivo [Logik der

gegenstandlichen Erkenntnis]rdquo (p 44)

33

se leve agrave conta de aperfeiccediloamento a aboliccedilatildeo da algumas subtilezas desnecessaacuterias

ou a determinaccedilatildeo mais niacutetida do seu conteuacutedo coisa que mais diz respeito agrave

elegacircncia que agrave certeza da ciecircncia Tambeacutem eacute digno de nota que natildeo tenha ateacute hoje

progredido parecendo por conseguinte acabada e perfeita tanto quanto se nos

pode afigurarrdquo (KrV B VIII)

Tal ponto de vista eacute corroborado por Cassirer logo na abertura de Substacircncia e Funccedilatildeo

ldquoNa loacutegica o pensamento filosoacutefico parece ter feito uma firme fundaccedilatildeo nela um

campo parecia ter sido delimitado o qual estava assegurado contra todas as duacutevidas

levantadas por vaacuterios pontos de vista e vaacuterias hipoacuteteses epistemoloacutegicas O

julgamento de Kant parecia verificado e confirmado que aqui o reto e seguro caminho

da ciecircncia tinha finalmente sido alcanccediladordquo (SF p 3)

O fato de Cassirer iniciar seu texto chamando a atenccedilatildeo de seu leitor para este

dado de que a loacutegica aristoteacutelica era o grande paradigma de ciecircncia para Kant eacute um

importante iacutendice do caraacuteter que a obra teraacute dado que ela eacute inegavelmente

neokantiana Eacute como se Cassirer dissesse que eacute necessaacuterio fundamentar a filosofia

criacutetica em bases inteiramente novas e estas natildeo podem ser jamais as da loacutegica

tradicional dada a ldquoinfeliz aproximaccedilatildeordquo desta com a linguagem como seraacute discutido

em seguida As consequumlecircncias que acarretam a reformulaccedilatildeo da loacutegica entretanto

satildeo sentidas natildeo apenas desde o ponto de vista (neo)kantiano com efeito todo o

corpus da filosofia eacute aqui colocado em questatildeo dado que a derrubada deste uacutenico

alicerce de fato soacutelido faz ruir tambeacutem tudo aquilo que se encontra em cima dele

Destarte eacute o proacuteprio modelo de racionalidade que estaacute em questatildeo ldquoO trabalho de

seacuteculos na formulaccedilatildeo de doutrinas fundamentais parece dissolver-se ao passo que

34

novos grupos de problemas resultantes da teoria matemaacutetica geral colocam-se em

primeiro planordquo (Idem ibidem)

A doutrina do conceito geneacuterico

A criacutetica dos postulados da loacutegica estaacute atrelada para Cassirer agraves ldquoprofundas

alteraccedilotildees no ideal do conhecimentordquo (Idem ibidem) ndash ou seja levando-se em conta

as jaacute abordadas contendas entre idealismo e empirismo mas sobretudo pela recusa

de aplicaccedilatildeo de postulados de caraacuteter metafiacutesico impliacutecitos na loacutegica aristoteacutelica

atraveacutes da doutrina tradicional do conceito tomado como a ο σζια a partir da qual os

elementos acidentais se agrupam e se organizam hierarquicamente ndash em outras

palavras a relaccedilatildeo coisa-atributo Assim sendo nas palavras de Lofts a estrateacutegia

de Cassirer eacute a de ldquodescentralizar a loacutegica centrada na substacircncia natildeo tomando o

ser como o terminus a quo do juiacutezo mas como o terminus ad quemrdquo (2000 p 37)

donde se segue que o foco deve recair inicialmente sobre o paradigma claacutessico da

formaccedilatildeo de conceitos a noccedilatildeo de conceito geneacuterico [Gattungsbegriff] resultado de

processo de abstraccedilatildeo por notas caracteriacutesticas

ldquoNada eacute pressuposto [na doutrina do conceito geneacuterico] salvo a existecircncia de coisas

em sua inexauriacutevel multiplicidade e o poder do intelecto de selecionar a partir dessa

riqueza de existecircncias particulares aquelas feiccedilotildees que satildeo comuns a vaacuterias delas

() As funccedilotildees essenciais do pensamento nesse contexto satildeo meramente aquelas

de comparar e diferenciar uma diversidade dada na sensibilidaderdquo (Idem p 45)

Mas eacute justamente nesses pressupostos que se encontra o cerne do problema do

conceito geneacuterico Em primeiro lugar haacute a pressuposiccedilatildeo da existecircncia das coisas ndash

35

e eacute por essa razatildeo que Cassirer afirma que a loacutegica aristoteacutelica eacute a ldquoverdadeira

expressatildeo e o espelho da metafiacutesica aristoteacutelicardquo onde o conceito tem o papel de

elo entre ambos os domiacutenios O sistema loacutegico de Aristoacuteteles tem em uacuteltima anaacutelise

uma concepccedilatildeo metafiacutesica de substacircncia [ο σζια] que serve de referencial e de

suporte para suas afirmaccedilotildees Assim sendo a concepccedilatildeo aristoteacutelica de natureza

precondiciona as formas fundamentais de pensamento as categorias e o proacuteprio

sentido do ser

ldquoSomente em substacircncias dadas existentes as vaacuterias determinaccedilotildees do ser satildeo

pensadas Somente num substratum fixo do tipo coisa que primeiramente precisa ser

dado podem as variedades loacutegica e gramatical do ser em geral encontrar seu

fundamento e sua real aplicaccedilatildeordquo (Idem p 8)

Em segundo lugar para que a ligaccedilatildeo entre natureza e pensamento por meio

do conceito se efetive haacute de se afirmar que a funccedilatildeo do intelecto eacute simplesmente a

de comparar as qualidades que estatildeo nas coisas elas mesmas na medida em que

os conceitos devem corresponder agraves divisotildees do real ldquoO processo de comparar as

coisas e agrupaacute-las de acordo com as propriedades similares tal qual expressa

antes de tudo na linguagem () termina na descoberta da essecircncia real das coisasrdquo

(Idem p 7) Eacute isso somente que pode assegurar que a seleccedilatildeo das notas

caracteriacutesticas natildeo seja um mero esquema subjetivo mas seja simultaneamente

uma expressatildeo formal e objetiva das relaccedilotildees teleoloacutegica e causal das coisas

reais23

23

A mesma questatildeo relativa agrave loacutegica tradicional tambeacutem eacute abordada no capiacutetulo Linguagem e

Conceituaccedilatildeo do texto Sprache und Mythos ndash ein Beitrag zum Problem der Goumltternamen [SM] escrito

14 anos mais tarde e portanto posterior agrave publicaccedilatildeo da Fenomenologia da Linguagem primeira

parte da Filosofia das Formas Simboacutelicas Laacute sem referecircncia direta a Aristoacuteteles Cassirer questiona

36

Dessa forma ndash em terceiro lugar ndash o problema se transfere para o processo

de reuniatildeo das notas caracteriacutesticas Eacute temeraacuterio afirmar que tal processo eacute

totalmente livre de arbitrariedades escolhemos aquilo que nos eacute para o momento

mais relevante em detrimento daquilo que julgamos sem importacircncia Eacute como se a

conceituaccedilatildeo operasse por negaccedilotildees ldquoO ato essencial aqui pressuposto eacute que noacutes

renunciamos certas determinaccedilotildees que ateacute entatildeo haviacuteamos mantido que noacutes

abstraiacutemos delas e as excluiacutemos de consideraccedilatildeo como irrelevantesrdquo (Idem p 18)

ldquoSe toda a construccedilatildeo de conceitos consiste em selecionar a partir de uma

pluralidade de objetos diante de noacutes somente as propriedades similares enquanto

negligenciamos o resto fica claro que por meio desse tipo de reduccedilatildeo o que eacute

meramente uma parte toma o lugar do todo sensiacutevel originalrdquo (Idem p 6)

a validade da loacutegica tradicional a partir de uma abordagem fenomenoloacutegica ldquoA formaccedilatildeo de um

conceito geneacuterico pressupotildee a limitaccedilatildeo destas caracteriacutesticas somente quando existem certos

traccedilos fixos mediante os quais as coisas podem ser reconhecidas como semelhantes ou

dessemelhantes coincidentes ou natildeo-coincidentes torna-se possiacutevel reunir em uma classe os

objetos similares entre si Como poreacutem ndash natildeo podemos deixar de nos perguntar ndash podem existir

semelhantes notas caracteriacutesticas antes da linguagem antes do ato de denominaccedilatildeo Natildeo seria

melhor afirmar que elas satildeo apreendidas por meio da linguagem no proacuteprio ato de nomeaacute-las Caso

se aceite esta uacuteltima suposiccedilatildeo segundo que regras e criteacuterios se desenvolve tal ato O que induz ou

obriga a linguagem a reunir justamente estas representaccedilotildees numa unidade e designaacute-las com uma

determinada palavra O que a leva a selecionar certas configuraccedilotildees nas seacuteries sempre fluentes e

uniformes de impressotildees que ferem nossos sentidos ou brotam dos processos espontacircneos da

mente fazendo com que se detenha diante delas e lhes confira uma bdquosignificaccedilatildeo‟ particular Logo

que se aborda o problema neste sentido a loacutegica tradicional abandona o pesquisador ou o filoacutesofo da

linguagem pois a explicaccedilatildeo que daacute sobre o surgimento das representaccedilotildees gerais e dos conceitos

geneacutericos pressupotildee aquilo que aqui se procura e de cuja possibilidade indagamos ou seja a

formaccedilatildeo das noccedilotildees linguumliacutesticasrdquo (SM p 42-3)

Outro ponto que natildeo seraacute desenvolvido agora mas ao qual se deve chamar atenccedilatildeo eacute a

concepccedilatildeo de conhecimento enquanto coacutepia que estaacute impliacutecita aqui Como se pode entrever

Cassirer prepara o terreno para apresentar a noccedilatildeo de conhecimento como construccedilatildeo cara agrave

Marburgo como jaacute dito

37

Para exemplificar o problema Cassirer toma um exemplo famoso de Lotze ldquose

agruparmos cerejas e carne sob os atributos vermelho suculento e comestiacutevel natildeo

alcanccedilaremos um conceito loacutegico vaacutelido mas uma combinaccedilatildeo de palavras sem

sentido completamente inuacutetil para a compreensatildeo dos casos particularesrdquo (Idem p

7) E se o problema for considerado mais profundamente admitir-se-aacute que a escolha

loacutegica natildeo eacute evidente mas apenas uma das tantas possiacuteveis ndash o que abre espaccedilo

para a atividade propriamente falando do espiacuterito na formaccedilatildeo dos conceitos Aqui

notamos portanto que o modelo de conhecimento como construccedilatildeo eacute o que norteia

o posicionamento de Cassirer Na necessidade de depurar a loacutegica dos

pressupostos metafiacutesicos eacute necessaacuterio abrir matildeo da referecircncia agrave ο σζια e em

decorrecircncia disso perde-se o referencial objetivo (leia-se de uma realidade

independente da mente) que garantiria a ela o acesso privilegiado ao conhecimento

verdadeiro

Aleacutem do mais em quarto lugar esse tipo de formaccedilatildeo de conceitos falha na

medida em que ao levar o processo de abstraccedilatildeo agraves suas uacuteltimas consequumlecircncias

cria conceitos que em um extremo satildeo objetos concretos em particular e em outro

satildeo simplesmente algo ndash um mero ser quanto mais conteuacutedos particulares menor a

extensatildeo do conceito ndash no limite chegamos ao niacutevel do singular ao passo que

quanto menos atento a tais particularidades mais se torna inclusivo e no limite

tende agrave total indeterminaccedilatildeo Eacute justamente pela indeterminaccedilatildeo que o conceito

falha jaacute que a ciecircncia espera do conceito que ele ponha fim agrave ambiguumlidade e

indeterminaccedilatildeo das percepccedilotildees sensiacuteveis Ademais o caminho da abstraccedilatildeo dado

que simplesmente desconsidera a importacircncia de determinadas caracteriacutesticas de

objetos particulares natildeo pode ser refeito em direccedilatildeo ao objeto concreto novamente

38

Noutras palavras com o procedimento da abstraccedilatildeo natildeo se deduz o particular

precisamente em suas particularidades de nenhum universal

ldquoA abstraccedilatildeo eacute muito faacutecil para o bdquofiloacutesofo‟ mas por outro lado a determinaccedilatildeo do

particular a partir do universal muito mais difiacutecil pois no processo de abstraccedilatildeo ele

deixa para traacutes todas as particularidades de tal sorte que natildeo pode recuperaacute-las

muito menos considerar as transformaccedilotildees das quais elas satildeo capazesrdquo (Idem p 19)

Noutra perspectiva Cassirer alerta aos problemas contidos na ldquopsicologia da

abstraccedilatildeordquo segundo a qual a determinaccedilatildeo se daacute natildeo apenas no momento particular

da percepccedilatildeo ldquomas deixam atraacutes de si certos traccedilos de sua existecircncia no sujeito

psicofiacutesicordquo (Idem p 11) Assim a recorrecircncia inconsciente dos mesmos estiacutemulos

gradualmente cristalizaria o conceito na mente Essa perspectiva (e aqui o filoacutesofo

se refere textualmente a Berkeley e Mill) de acordo com Cassirer tem sua fundaccedilatildeo

no ato de identificaccedilatildeo que tenta relacionar conteuacutedos dados em momentos ou

lugares distintos como em alguma medida idecircnticos Mas bem se sabe que a

identificaccedilatildeo de dois objetos distintos nada mais eacute do que uma negaccedilatildeo das

particularidades caracteriacutestica do ldquodom do esquecimentordquo de nossa mente ndash

incapacidade de reter todas as determinaccedilotildees particulares de todas as impressotildees

sensiacuteveis

ldquoSe as imagens da memoacuteria que permanecem conosco de experiecircncias preacutevias

fossem completamente determinadas se elas revocassem os conteuacutedos esquecidos

da consciecircncia em sua natureza total concreta e viva elas jamais seriam tomadas

como similares agrave nova impressatildeo e entatildeo nunca seriam combinadas em uma unidade

com o uacuteltimo Somente a inexatidatildeo da reproduccedilatildeo que nunca reteacutem o todo da

primeira impressatildeo mas meramente seu vago esboccedilo torna possiacutevel essa unificaccedilatildeo

39

de elementos que satildeo eles mesmos dissimilares Destarte toda a formaccedilatildeo de

conceitos comeccedilaria com a substituiccedilatildeo de uma imagem generalizada para a intuiccedilatildeo

sensiacutevel individual e no lugar da percepccedilatildeo atual a substituiccedilatildeo de sua imperfeita e

desfalecida lembranccedilardquo (Idem p 18)

Assim percebe-se como o processo de abstraccedilatildeo como princiacutepio formador dos

conceitos tomado seja em sentido de notas caracteriacutesticas tal qual em Aristoacuteteles

seja pela via da psicologia da abstraccedilatildeo acaba por conduzir natildeo agrave eliminaccedilatildeo da

ambiguumlidade como desejado mas sim a ldquoum esquema superficial a partir do qual

todos os traccedilos peculiares dos casos particulares se foramrdquo 24

Os conceitos matemaacuteticos

Outro problema apontado por Cassirer para a loacutegica aristoteacutelica ainda no

acircmbito da atividade cientiacutefica eacute o de que esse modelo natildeo explica a formaccedilatildeo dos

conceitos matemaacuteticos ldquoo conceito de ponto ou de linha ou de superfiacutecie natildeo pode

ser tomado como uma parte imediata de corpos fisicamente presentes e separados

deles por simples bdquoabstraccedilatildeo‟rdquo (Idem p 12) Em simeacutetrica oposiccedilatildeo agrave teoria dos

nuacutemeros de Mill Cassirer entende os conceitos matemaacuteticos como construccedilotildees do

pensamento (Denkgebilden) que diversamente do que ocorre nos conceitos

24

Eacute necessaacuterio tambeacutem ressaltar que essa criacutetica natildeo se limita somente ao realismo mas se aplica

igualmente ao nominalismo Para Cassirer o que distingue ambos eacute apenas a questatildeo da realidade

metafiacutesica dos conceitos ldquoDe fato na deduccedilatildeo psicoloacutegica do conceito o esquema tradicional natildeo eacute

tanto mudado quanto transportado para outro campo Enquanto no primeiro coisas exteriores eram

comparadas e a partir delas elementos comuns eram selecionados aqui [no nominalismo] o mesmo

processo eacute meramente transferido para representaccedilotildees enquanto correlatos de coisasrdquo (SF p 9)

Segundo o autor natildeo haacute nenhuma diferenccedila fundamental no que concerne agrave estrutura do conceito

entre os dois pontos de vista Ambos vecircem o conceito como reprodutor de uma realidade ndash seja ela

ontoloacutegica ou psicoloacutegica

40

empiacutericos natildeo podem ser entendidos como coacutepias de caracteriacutesticas da realidade

sensiacutevel tal como postula Mill Na economia do texto de Cassirer a necessidade de

refutar o empirismo de Mill eacute mais um iacutendice da vinculaccedilatildeo da obra agrave programaacutetica

neokantiana Assim basta dizer que Cassirer esgota a teoria sensacionista dos

nuacutemeros de Mill ndash que reduz os conceitos matemaacuteticos a ldquomeras expressotildees de

questotildees da realidade fiacutesica concretardquo (Idem ibidem) fazendo da geometria e da

aritmeacutetica natildeo mais do que ldquodeclaraccedilotildees referentes a grupos de representaccedilotildeesrdquo

(Idem p 13) ndash vinculando-a indiretamente por um lado ao que extrai da teoria do

conceito em Aristoacuteteles (as implicaccedilotildees metafiacutesicas) e por outro apontando

problemas internos da teoria quando seu autor tenta justificar o valor peculiar dado agrave

experiecircncia de numeraccedilatildeo e mensuraccedilatildeo no todo de nossa experiecircncia ndash a partir da

qual (junto da criacutetica que faz da psicologia da abstraccedilatildeo) inclusive enxerga uma

brecha para introduzir via matemaacutetica a concepccedilatildeo de conceito que pretende fazer

substituir agrave aristoteacutelica Numa citaccedilatildeo livre de Um Sistema de Loacutegica de Mill

Cassirer diz

ldquonatildeo haacute pontos sem magnitude nem linhas perfeitamente retas ou ciacuterculos com radii

iguais Mais ainda do ponto de vista de nossa experiecircncia natildeo somente a realidade

atual mas a proacutepria possibilidade de tais conteuacutedos deve ser negada ela eacute ao menos

excluiacuteda pelas propriedades fiacutesicas de nosso planeta senatildeo pelas de nosso universo

Mas a existecircncia psiacutequica eacute negada natildeo menos do que a fiacutesica para os objetos das

definiccedilotildees geomeacutetricas Pois em nossa mente noacutes nunca encontramos a

representaccedilatildeo de um ponto matemaacutetico mas sempre somente a menor extensatildeo

sensiacutevel possiacutevel da mesma forma noacutes nunca bdquoconcebemos‟ uma linha sem

espessura pois toda imagem psiacutequica que podemos formar nos mostra somente

linhas com alguma espessurardquo (Idem p 13-4)

41

A argumentaccedilatildeo de Mill aqui eacute claramente contraacuteria agravequela de que os conceitos da

matemaacutetica de alguma forma remetem a situaccedilotildees de observaccedilatildeo concreta

Percebe-se aqui uma alteraccedilatildeo na concepccedilatildeo de abstraccedilatildeo que ateacute entatildeo tinha a

funccedilatildeo apenas de seccionar o ser de acordo com suas caracteriacutesticas supostamente

naturais ndash como no caso das ciecircncias descritivas paradigma e interesse central de

Aristoacuteteles

ldquonas definiccedilotildees da matemaacutetica pura contudo como a proacutepria explanaccedilatildeo de Mill

mostra o mundo das coisas sensiacuteveis e representaccedilotildees eacute natildeo tanto reproduzido

quanto transformado e suplantado por uma ordem de outro tipo Se traccedilarmos o

meacutetodo dessa transformaccedilatildeo certas formas de relaccedilatildeo ou melhor um sistema

ordenado de funccedilotildees intelectuais estritamente diferenciadas satildeo reveladas as quais

natildeo poderiam ser caracterizadas menos ainda justificadas pelo simples esquema da

abstraccedilatildeordquo (Idem p 14)

A transformaccedilatildeo agrave qual o filoacutesofo se refere aqui natildeo eacute nada aleacutem da atividade

espiritual que seraacute desenvolvida em termos do conceito liberto das amarras

metafiacutesicas ndash a abstraccedilatildeo aristoteacutelica e a matemaacutetica empiacuterica E esta atividade se

evidencia no ato de identificaccedilatildeo como abordado no caso da psicologia da

abstraccedilatildeo momento no qual o espiacuterito sintetiza dados sensiacuteveis separados

temporalmente Assim ldquode acordo com a maneira e a direccedilatildeo com que essa siacutentese

se faz o mesmo material sensiacutevel pode ser apreendido sob diferentes formas

conceituaisrdquo (Idem p 15) Daiacute se segue que a psicologia da abstraccedilatildeo deve

primeiramente admitir que as percepccedilotildees possam ser ordenadas logicamente em

ldquoseacuteries de similaresrdquo

42

ldquoSem um processo de arranjo em seacuteries sem passar por diferentes instacircncias a

consciecircncia de sua conexatildeo geneacuterica ndash e consequumlentemente de objeto abstrato ndash

jamais poderia ser dada A transiccedilatildeo de membro para membro entretanto

manifestamente pressupotildee um princiacutepio de acordo com o qual ela se daacute e pelo qual

a forma da dependecircncia entre cada membro e seu sucessor eacute determinadardquo (Idem

ibidem)

A noccedilatildeo de seacuterie aqui eacute cara a Cassirer Com efeito eacute a partir dela junto da noccedilatildeo

de funccedilatildeo que o novo modelo de conceito seraacute elaborado Assim o filoacutesofo passa a

falar em relaccedilotildees fundamentais gerativas [erzeugenden Grundrelation] e em formas

de seacuteries a partir das quais os objetos seratildeo determinados

Conceito de funccedilatildeo

ldquoDizemos que um conteuacutedo sensiacutevel qualquer estaacute ordenado e apreendido

conceitualmente quando seus membros natildeo se colocam uns ao lado dos outros sem

relaccedilatildeo mas procedem de um iniacutecio definido de acordo com uma relaccedilatildeo

fundamental gerativa numa sequumlecircncia necessaacuteria Eacute a identidade dessa relaccedilatildeo

mantida atraveacutes das mudanccedilas nos conteuacutedos particulares que constitui a forma

especiacutefica do conceitordquo (Idem ibidem)

E por esta via

ldquonoacutes podemos conceber membros de seacuteries ordenadas de acordo com igualdade ou

desigualdade nuacutemero e magnitude relaccedilotildees espaciais e temporais ou dependecircncia

causal A relaccedilatildeo de necessidade entatildeo produzida eacute em cada caso decisiva o

conceito eacute meramente a expressatildeo e a casca disso e natildeo a apresentaccedilatildeo geneacuterica

que pode surgir incidentemente sob determinadas circunstacircncias mas que natildeo entra

como um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo (Idem p 16)

43

Atenccedilatildeo merece ser dada agrave passagem que diz ldquo[o conceito] natildeo entra como

um elemento efetivo na definiccedilatildeo do conceitordquo Eacute isso de fato que o filoacutesofo entende

por um conceito livre da necessidade de postular uma substacircncia como seu

fundamento quando ao inveacutes o conceito natildeo tem validade ocircntica mas meramente

funcional expressa pela categoria da relaccedilatildeo A questatildeo da categoria da relaccedilatildeo eacute

um ponto que necessita de esclarecimentos Na loacutegica aristoteacutelica ela ocupava um

lugar junto agraves demais categorias secundaacuterias natildeo-essenciais Dada a jaacute

mencionada descentralizaccedilatildeo do conceito orientado pela substacircncia ndash o que

justificava a hierarquia das categorias possibilitando inclusive a orientaccedilatildeo das

notas caracteriacutesticas e todo o processo de abstraccedilatildeo ndash a categoria da relaccedilatildeo passa

a ter um lugar equivalente agraves demais quando natildeo passa a ser a categoria central

Na verdade a confusatildeo causada pela teoria da abstraccedilatildeo eacute de tal ordem que natildeo se

faz notar a diferenccedila entre uma forma categoacuterica responsaacutevel pelas definiccedilotildees a

serem dadas ao conteuacutedo da percepccedilatildeo e partes do proacuteprio conteuacutedo em questatildeo

Tudo se passa como se ldquoo pensamento estivesse limitado a selecionar de uma seacuterie

de percepccedilotildees aα aβ aγ o elemento comum ardquo (Idem p 17) quando o correto

seria afirmar que a conexatildeo entre os membros se daacute por uma

ldquolei geral de disposiccedilatildeo [Gesetz der Zuordnung] a partir da qual uma profunda lei de

sucessatildeo eacute estabelecida Aquilo que conecta os elementos da seacuterie a b c natildeo eacute

ele mesmo um novo elemento que estava factualmente misturado a eles mas eacute a

regra de progressatildeo que se manteacutem a mesma natildeo importa em que membro ela seja

representadardquo (Idem ibidem)

44

Dessa maneira o conceito passa a ter a expressatildeo F(ab) F(bc) onde F

representa a lei geral de disposiccedilatildeo a seacuterie e as letras a b c os elementos a

serem determinados atraveacutes da regra de progressatildeo25

Para findar o problema da abstraccedilatildeo lanccedilaraacute matildeo da noccedilatildeo de

ldquouniversalidade concretardquo das foacutermulas matemaacuteticas Trata-se de uma lei inclusiva

caracteriacutestica das foacutermulas matemaacuteticas o que as distingue radicalmente dos

conceitos ontoloacutegicos Citando Lambert 26 o filoacutesofo afirma que ldquoquando um

matemaacutetico faz sua foacutermula mais geral isso significa natildeo somente que ele eacute capaz

de reter todos os casos mais especiais mas tambeacutem que eacute capaz de deduzi-los da

foacutermula universalrdquo (Idem p 19) diferentemente do que vemos com os conceitos

geneacutericos

A noccedilatildeo de universalidade concreta eacute tomada de Hegel27 que a define em

oposiccedilatildeo agrave universalidade abstrata como se segue

ldquoUniversalidade abstrata pertence ao genus na medida em que considerada em si

mesma e por si mesma negligencia todas as diferenccedilas especiacuteficas universalidade

concreta ao contraacuterio pertence agrave totalidade sistemaacutetica (Gesamtbegriff) que absorve

em si mesma as peculiaridades de todas as espeacutecies e as desenvolve de acordo com

uma regrardquo (Idem p 20)

25

Diferentemente do que uso que dela faraacute a loacutegica formal Cassirer natildeo usaraacute a regra de progressatildeo

para caacutelculo de sentenccedilas Sua preocupaccedilatildeo natildeo estaacute nos predicados per se abstraiacutedos de seus

conteuacutedos mas ldquonas condiccedilotildees de possibilidade de que algo seja um conteuacutedo para o pensamentordquo

(KROIS 1987 p 47) Em outras palavras a loacutegica para Cassirer continua sendo a transcendental

26 Em referecircncia agrave obra Anlage zur Architektonik oder Theorie des Einfachen und des Ersten in der

philosophischen und mathematischen Erkenntnis

27 A relevacircncia de Hegel ao lado de outros nomes da histoacuteria da filosofia eacute fundamental em Cassirer

sobretudo em sua fase de maturidade como mostraremos na segunda parte do trabalho Contudo

pouco se disse ateacute agora sobre a influecircncia de Hegel nessa fase epistemoloacutegica de Cassirer muito

embora as referecircncias textuais deste ao autor da Fenomenologia do Espiacuterito natildeo sejam raras

45

O ganho aqui eacute o de natildeo excluir determinaccedilotildees de casos especiais mas mantecirc-los e

ldquomostrar a necessidade da ocorrecircncia e conexatildeo justamente dessas

particularidadesrdquo (Idem p 19) A partir daqui se torna possiacutevel deduzir todos os

casos particulares de uma foacutermula universal mas aleacutem disso ao passo que nos

conceitos geneacutericos a relaccedilatildeo entre precisatildeo e quantidade de conteuacutedo eacute

inversamente proporcional aqui quanto mais o conceito se ldquogeneralizardquo mais

enriquece em conteuacutedo

ldquoAqui o conceito mais universal se mostra tambeacutem o mais rico em conteuacutedo quem

quer que o possua pode deduzir a partir dele todas as relaccedilotildees matemaacuteticas que

concernem aos problemas especiais enquanto de outro lado ele toma esses

problemas natildeo como isolados mas como em conexatildeo contiacutenua uns com os outros

portanto em sua mais profunda conexatildeo sistemaacuteticardquo (Idem p 20)

Sobre a loacutegica simboacutelica

Como jaacute dito a exposiccedilatildeo de Cassirer dos avanccedilos da nova loacutegica deve ser

lida como um esforccedilo da programaacutetica neokantiana de Marburgo de modo que os

avanccedilos da loacutegica satildeo entendidos como positivos para o idealismo transcendental

ainda que a visatildeo geral dos principais envolvidos nas pesquisas que redundaram na

descoberta da nova loacutegica sobretudo Russell pensassem justamente o oposto De

acordo com Skidelsky os defensores da loacutegica simboacutelica concordam com o

neokantismo de Marburgo a respeito da incapacidade dos empiristas em lidar com

os desenvolvimentos recentes da loacutegica matemaacutetica ldquoambos eram resistentes agrave

46

reduccedilatildeo do conhecimento agrave experiecircncia Mas a semelhanccedila acaba aquirdquo (2008 p

52)

Com efeito do que foi exposto ateacute aqui sobre a reforma na concepccedilatildeo de

construccedilatildeo de conceitos natildeo haveria discordacircncia ndash ao menos nenhuma que fosse

profunda ndash entre os filoacutesofos de Marburgo e os partidaacuterios da loacutegica simboacutelica

Inclusive com o objetivo de estabelecer a existecircncia do a priori Frege inicialmente

natildeo refuta a possibilidade dos juiacutezos sinteacuteticos 28 mas a partir de Russell no

momento em que a loacutegica mostra suas afinidades mais em relaccedilatildeo ao empirismo do

que ao racionalismo a aprioridade passou a ser definida em termos de analiticidade

tomando entatildeo a siacutentese apenas como a posteriori o que a torna nesses termos

irreconciliaacutevel com a perspectiva de Marburgo Segundo Skidelsky ndash em franca

defesa do neokantismo ndash ao fazer isso Russell faz da atividade racional um mero

ldquoandaimerdquo loacutegico reduzindo suas funccedilotildees drasticamente

ldquoNatildeo mais uma forccedila formativa criativa a razatildeo foi reduzida a pura teacutecnica um meio

de extrair conclusotildees de premissas arbitraacuterias Dificilmente seria uma coincidecircncia

portanto que a loacutegica simboacutelica fosse finalmente se unir ao empirismo de Mach para

criar o empirismo loacutegicordquo (2008 p 53)

Noutras palavras nada aleacutem de uma nova ediccedilatildeo mais profunda da ldquorazatildeo

alienadardquo29 positivista

28

Embora ambos tivessem pretensotildees radicalmente distintas ndash um visa formalizar a linguagem o

outro reconstruir a loacutegica transcendental ndash Cassirer cita Frege elogiosamente na Fenomenologia do

Conhecimento numa passagem em que este diz ldquoEu mantenho que o conceito precede logicamente

sua extensatildeo e tomo como uma falaacutecia qualquer tentativa de basear a extensatildeo do conceito como

uma classe natildeo sobre o conceito mas sobre coisas particularesrdquo Cf PSF III p 293

29 O termo eacute tiacutetulo do capiacutetulo inicial do livro de Skidelsky (2008) no qual o autor trata da eliminaccedilatildeo

da metafiacutesica objetivo central de Mach (entre outros) como causadora da instrumentalizaccedilatildeo da

47

Obviamente isto representa uma ameaccedila para a doutrina de Marburgo muito

embora Cohen soacute tenha tomado contato com a obra de Russell em 1906 por

indicaccedilatildeo de Cassirer30 A reaccedilatildeo de Marburgo natildeo tardou Natorp por um lado

desdenhou da loacutegica simboacutelica como natildeo mais do que uma reediccedilatildeo da loacutegica de

Aristoacuteteles incapaz de ver que a funccedilatildeo sinteacutetica do pensamento precede a

analiacutetica

ldquonoacutes nos agarramos agrave convicccedilatildeo para a qual Kant deu a mais claacutessica expressatildeo

onde o entendimento natildeo uniu previamente ele natildeo pode separar Entatildeo eacute a

siacutentese que eacute necessariamente primaacuteria para o entendimento loacutegico do

conhecimento e a anaacutelise do significado eacute requerida somente como seu puro

corolaacuteriordquo31

Jaacute Cassirer por seu turno tentou fazer uso das ferramentas da loacutegica simboacutelica para

o seu proacuteprio projeto tal como se vecirc em Substacircncia e Funccedilatildeo mas tambeacutem em

outros textos como Kant und die moderne Mathematik [Kant e a Matemaacutetica

Moderna] de 1907 Nesse ponto ainda de acordo com Skidelsky percebe-se que o

que move Cassirer em direccedilatildeo agrave defesa dos postulados de Marburgo natildeo satildeo

somente questotildees que se adstringem ao acircmbito epistemoloacutegico Com efeito ldquoela [a

proposta de Cassirer] representa uma heroacuteica se no final vencida tentativa de

combater a tendecircncia da moderna filosofia cientiacutefica em direccedilatildeo agrave especializaccedilatildeo e

ao tecnicismordquo (SKIDELSKY 2008 p 55) Destarte o que estaacute em jogo eacute uma visatildeo

razatildeo ndash em sentido quase puramente frankfurtiano citado textualmente ndash o que representaria

tambeacutem certo descolamento da racionalidade em relaccedilatildeo aos demais assuntos da cultura Cf cap I

30 Consta na carta de 12 de Junho de 1906 de Cohen para Cassirer ldquoRussel (sic) natildeo me eacute familiar

e eu duvido que tenhamos o livro aqui entatildeo eu ficaria grato se pudesses mandar-me um nos

proacuteximos diasrdquo

31 Apud SKIDELSKY 2008 p 54

48

de mundo e uma visatildeo de ciecircncia que natildeo se limitam simplesmente aos protocolos

imediatos de sua praacutetica Aqui nota-se a preocupaccedilatildeo que subjaz em Cassirer a

qual seraacute determinante tempos depois para a constituiccedilatildeo daquele que seraacute o

problema central de sua obra de maturidade a cultura32

A estrateacutegia de Cassirer pois eacute a de revelar as verdadeiras bases sobre as

quais assenta a loacutegica formal mostrando que ela eacute apenas uma abstraccedilatildeo da loacutegica

transcendental sem significado filosoacutefico independente dado que de acordo com a

doutrina de Marburgo a loacutegica formal estaacute baseada na loacutegica transcendental e natildeo

o contraacuterio

ldquoA forma serial F(a b c ) que conecta os membros de uma multiplicidade

obviamente natildeo pode ser pensada ao modo de um individual a ou b ou c sem com

isso perder sua caracteriacutestica peculiar Seu bdquoser‟ consiste exclusivamente na

determinaccedilatildeo loacutegica pela qual ele eacute claramente diferenciado de outras possiacuteveis

formas seriais Φ Ψ e essa determinaccedilatildeo somente pode ser expressa por um ato

sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo sensiacutevelrdquo (SF p 26)

Destaque aqui deve ser dado ao final da passagem ldquoessa determinaccedilatildeo somente

pode ser expressa por um ato sinteacutetico de definiccedilatildeo e natildeo por uma simples intuiccedilatildeo

sensiacutevelrdquo Ela resume a radical discordacircncia de Cassirer em relaccedilatildeo a Russell dado

que essa siacutentese original eacute tambeacutem o que garantiria agrave matemaacutetica que sua aplicaccedilatildeo

ao mundo natildeo fosse mero ldquofeliz acidenterdquo [gluumlcklicher Zufall] (KMM p 44) mas um

32

De fato a noccedilatildeo de siacutembolo mas ainda tomada no sentido de simbolismo natural jaacute aparece em

Substacircncia e Funccedilatildeo no contexto de uma criacutetica ao sensacionismo de Mach ldquoo dado sensiacutevelrdquo diz o

texto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) O mesmo pode ser dito da passagem jaacute citada da

mesma obra em que falando da contradiccedilatildeo em que Mill recai Cassirer fala numa ldquotransformaccedilatildeordquo no

mundo das representaccedilotildees sensiacuteveis que possibilitariam os conceitos matemaacuteticos Contudo

pensamos seria descabido dizer que aqui se encontra o germe que seja da noccedilatildeo de cultura

49

iacutendice da unidade da razatildeo (Novamente vemos o ideal de Trendelenburg de fundar

o ldquoideal no realrdquo)

Eacute justamente como um esforccedilo na tentativa de compreender a aplicaccedilatildeo da

loacutegica agraves ciecircncias ndash o que eacute evidente em Substacircncia e Funccedilatildeo em seu detido

trabalho de aplicaccedilatildeo dos conceitos agraves ciecircncias naturais33 ndash que deve ser entendido

o projeto anunciado da construccedilatildeo de uma loacutegica do conhecimento objetivo

ldquoSomente quando tivermos compreendido que a mesma siacutentese fundamental

[Grundsynthesen] na qual a loacutegica e a matemaacutetica se baseiam tambeacutem governa a

construccedilatildeo cientiacutefica do conhecimento da experiecircncia [Erfahrungserkenntnis] soacute

entatildeo seraacute possiacutevel falarmos de uma ordenaccedilatildeo legal resoluta por traacutes das

aparecircncias e por tanto de seu significado objetivo [gegenstandlichen Bedeutung]

somente entatildeo se alcanccedila uma verdadeira justificaccedilatildeo dos princiacutepios [da loacutegica e da

matemaacutetica]rdquo (KMM p 45)34

Cassirer acredita realizar o objetivo da loacutegica do conhecimento objetivo em sua

exposiccedilatildeo da revoluccedilatildeo do conceito na medida em que ele eacute essencialmente

tomado como a proposiccedilatildeo de uma loacutegica transcendental Natildeo eacute por outra razatildeo

que nos capiacutetulos seguintes da mesma obra o autor passaraacute agrave exposiccedilatildeo dos

conceitos das ciecircncias naturais (cap 4) capiacutetulo este que possui mais de 100

paacuteginas e dividido em oito grandes partes tem sua atenccedilatildeo focada especialmente

na fiacutesica (partes 2-7) mas tambeacutem na quiacutemica (parte 8) que assume um papel

33

Cf esp cap 4

34 Eacute certo que as tarefas para ambos satildeo radicalmente distintas e que por conta disso Cassirer

parece impor agrave loacutegica simboacutelica uma tarefa que ela mesma natildeo se coloca Isso certamente deve ser

alvo de discussatildeo e de anaacutelise detida mas natildeo consta dos objetivos do presente trabalho Assim

ainda que injusto com o caraacuteter real do projeto de Russell aqui seraacute desenvolvido somente o

posicionamento de Cassirer em relaccedilatildeo agrave questatildeo

50

inesperadamente importante para a tarefa da construccedilatildeo loacutegica dos conceitos nas

ciecircncias naturais 35 A uacuteltima parte do capiacutetulo ficaraacute por conta de uma criacutetica a

Rickert (que ao lado de Mach e Russell eacute um dos alvos maiores do trabalho) Em

seguida a segunda parte do livro sob o tiacutetulo O Sistema de Conceitos de Relaccedilatildeo e

o Problema da Realidade eacute composta por quatro capiacutetulos O Problema da Induccedilatildeo

O Conceito de Realidade Subjetividade e Objetividade dos Conceitos de Relaccedilatildeo e

Sobre a Psicologia das Relaccedilotildees36 Eacute deste uacuteltimo que falaremos na sequumlecircncia a fim

de apontar um dos alicerces a partir dos quais se ergueraacute o projeto da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

Rupturas

Para aleacutem da matemaacutetica passos rumo ao homem

Ainda que natildeo existam duacutevidas sobre o caraacuteter neokantiano de Substacircncia e

Funccedilatildeo o mesmo natildeo se pode dizer de seu escopo em relaccedilatildeo ao meacutetodo de

Marburgo ndash leia-se de Hermann Cohen De fato nela jaacute se encontram alguns

indiacutecios daquilo que viria se concretizar na derradeira fase da Escola (e do

35

Lecirc-se agrave abertura do trecho ldquoA exposiccedilatildeo da construccedilatildeo conceitual da ciecircncia natural exata eacute

incompleta do lado da loacutegica enquanto natildeo levar em consideraccedilatildeo os conceitos fundamentais da

quiacutemica O interesse epistemoloacutegico desses conceitos estaacute sobretudo na posiccedilatildeo intermediaacuteria que

ocupam A quiacutemica parece comeccedilar com descriccedilotildees puramente empiacutericas de substacircncias particulares

e sua composiccedilatildeo mas quanto mais avanccedila mais ela tende aos conceitos construtivosrdquo (SF p 203-

4)

36 Obviamente que uma anaacutelise detida dos pormenores de cada capiacutetulo eacute impraticaacutevel num trabalho

como este tanto por conta da proposta do trabalho quanto pela quantidade de informaccedilotildees que por

si soacute demandariam um trabalho dedicado exclusivamente a isso De fato natildeo haacute notiacutecias ainda de

uma investigaccedilatildeo detida somente nesta obra

51

neokantismo) marcada como jaacute dito por crises morais e intelectuais No que

respeita ao desenvolvimento interno do proacuteprio idealismo transcendental de

Marburgo a crise se daraacute por conta da superaccedilatildeo do meacutetodo formulado por Cohen

especialmente da relaccedilatildeo que ele guarda com o caacutelculo infinitesimal no momento

em que passaria a natildeo ser mais suficiente restringir-se ao ldquofato das ciecircnciasrdquo e sua

fundamentaccedilatildeo aprioriacutestica Assim dada a generalizaccedilatildeo do problema

transcendental Natorp rompeu os limites metodoloacutegicos iniciais fixados por Cohen

em direccedilatildeo a uma filosofia do Logos Cassirer em direccedilatildeo a uma filosofia do

homem37 O indiacutecio da cisatildeo por parte de Cassirer estaacute numa carta de Cohen

endereccedilada a Cassirer na qual este diz apoacutes ter lido os manuscritos de Substacircncia

e Funccedilatildeo ldquonossa unidade foi posta em perigordquo (Apud SCHILPP 1949 p 20) Aqui

Cohen estaacute preocupado sobretudo com o fato de Cassirer tomar o conceito de

relaccedilatildeo como centro de gravidade de sua filosofia ao passo que para Cohen a

relaccedilatildeo eacute apenas uma categoria

ldquoMesmo apoacutes ler pela primeira vez seu livro eu ainda natildeo posso descartar como

errado o que eu disse a vocecirc em Marburgo vocecirc coloca o centro de gravidade no

conceito de relaccedilatildeo e acredita ter realizado com a ajuda desse conceito a idealizaccedilatildeo

de toda a materialidade Mas deixou escapar que o conceito de relaccedilatildeo eacute uma

categoria e eacute uma categoria na medida em que eacute uma funccedilatildeo e uma funccedilatildeo

inevitavelmente demanda o elemento infinitesimal no qual somente a raiz da

realidade ideal pode ser encontradardquo (Idem p 38)

37

Papel fundamental para essa cisatildeo de acordo com Philonenko foi a influecircncia da obra de Hegel

Para ele Natorp toma como modelo a Ciecircncia da Loacutegica Cassirer A Fenomenologia do Espiacuterito Cf

1974 p 188-210

52

A noccedilatildeo de infinitesimal pouco aparece em Substacircncia e Funccedilatildeo Mas o real intuito

de Cassirer aqui eacute suplantar a noccedilatildeo matemaacutetica de funccedilatildeo colocando em seu lugar

a noccedilatildeo de relaccedilatildeo da loacutegica de modo que a primeira figurasse como um caso

especial da uacuteltima abrindo possibilidade para objetivaccedilotildees que natildeo passassem

necessariamente pelo crivo da matemaacutetica E o fruto da aplicaccedilatildeo de categorias

natildeo-matemaacuteticas eacute o de abrir o ateacute entatildeo inacessiacutevel campo da psicologia para a

filosofia criacutetica38

ldquoPermaneccedilo com a versatildeo metodoloacutegica baacutesica de Kant acerca do transcendental tal

qual Cohen a formulou Ele viu como caraacuteter essencial do meacutetodo transcendental que

ele comeccedilava com um fato mas ele estreitou sua definiccedilatildeo geral comeccedilar com um

fato para investigar as possibilidades desse fato ao colocar repetidamente a ciecircncia

natural matemaacutetica como aquela da qual vale a pena perguntar Kant natildeo limitou a

questatildeo desse modordquo39

Como era de se esperar do expediente habitual de Cassirer o capiacutetulo sobre

a psicologia das relaccedilotildees cobre numa articulaccedilatildeo inovadora os principais pontos na

histoacuteria da filosofia acerca do tema com vistas a incorporar agrave programaacutetica da

filosofia criacutetica os fatos da sensaccedilatildeo os quais natildeo cabe aqui reproduzir em detalhe

Basta dizer que a articulaccedilatildeo do problema da unidade da consciecircncia ndash que para o

autor tem seu iniacutecio com a noccedilatildeo platocircnica de alma [υστή] e passa por inuacutemeras

38

Segundo Skidelsky ldquoO proacuteprio Cohen declarou a psicologia para aleacutem do mandato da filosofia

criacutetica Ele argumentou ndash consistentemente dadas as suas premissas ndash que a percepccedilatildeo sensiacutevel

porque natildeo pode ser medida se manteacutem totalmente privada e subjetivardquo (2009 p65)

39 ldquoDavoser Disputationrdquo in HEIDEGGER Kant 266-7 Apud KROIS 1987 p 43 A sequumlecircncia da fala

diz ldquoMas eu investigo a possibilidade do fato da linguagem Como ela surge como eacute pensaacutevel que

somos aptos a nos comunicarmos [verstaumlndigen] de um ser a outro ser [von Dasein zu Dasein] por

este meio Como eacute possiacutevel que vejamos uma obra de arte como algo objetivo e definido como um

ser objetivo como algo significativo em seu todordquo

53

variaccedilotildees de significado e valor de acordo com o objetivo de cada sistema filosoacutefico

ndash eacute tomado em privileacutegio da apresentaccedilatildeo do caraacuteter intencional da experiecircncia

Importante aqui eacute notar que jaacute natildeo haacute mais a presenccedila da aspereza matemaacutetica que

se encontra no iniacutecio da obra Em vez disso o autor parece perspectivar a noccedilatildeo de

siacutembolo40 capital em sua obra de maturidade

ldquoA compreensatildeo da mais simples proposiccedilatildeo em sua estrutura loacutegica e gramatical

definidas requer se ela eacute para ser apreendida como uma proposiccedilatildeo elementos que

estatildeo absolutamente distantes da apresentaccedilatildeo intuitiva As representaccedilotildees

pictoacutericas dos objetos concretos dos quais as asserccedilotildees tratam podem variar

enormemente ou desaparecer completamente sem a apreensatildeo do significado

unitaacuterio da proposiccedilatildeo ser ameaccedilada As conexotildees conceituais nas quais esse

significado estaacute enraizado devem portanto ser representadas para a consciecircncia em

atos categoriais peculiares que devem ser tomados como independentes e natildeo mais

como fatores redutiacuteveis de toda e qualquer apreensatildeo intelectual [] O bdquopensamento‟

natildeo eacute concebido e observado aqui em sua atividade independente mas esforccedilos satildeo

feitos para estabelecer seu caraacuteter peculiar na recepccedilatildeo de um conteuacutedo finalizado a

partir do exterior De acordo com isso o novo fator adquirido aparece mais como

paradoxal remanescente incompletamente compreendido deixado para anaacutelise do

que como uma funccedilatildeo positiva e caracteriacutestica O criticismo do conhecimento reverte

essa relaccedilatildeo para ele o bdquoremanescente‟ problemaacutetico eacute o que eacute realmente primeiro e

bdquointeligiacutevel‟ e eacute o ponto de partida Ele natildeo estuda o pensamento onde o pensamento

recebe meramente de maneira receptiva e reproduz o sentido [Sinn] de uma conexatildeo

de juiacutezo jaacute finalizada mas onde ele cria e constroacutei um sistema de proposiccedilotildees

[sinnvollen Inbegriff von Saumltzen]rdquo (SF p 345-6)

40

De fato haacute algumas passagens em que a noccedilatildeo de siacutembolo jaacute eacute bem proacutexima daquela das Formas

Simboacutelicas Agrave paacutegina 300 lecirc-se ldquo[] a bdquorepresentaccedilatildeo‟ particular alcanccedila para aleacutem de si e tudo o

que eacute dado significa alguma coisa que natildeo eacute encontrada diretamente em si mesma [] Cada

membro particular da experiecircncia possui um caraacuteter simboacutelico na medida em que a lei do todo que

inclui a totalidade de membros eacute afixada e destina-se a elerdquo

54

Aqui consolidada a ideacuteia de conhecimento como construccedilatildeo passa-se entatildeo agrave

questatildeo do significado E o siacutembolo nada mais eacute do que um significado que supera a

presenccedila imediata do objeto alcanccedilando para aleacutem de si de acordo com aquilo que

eacute proposto pelo sujeito41

Tambeacutem o ldquoafrouxamentordquo em relaccedilatildeo agrave rigidez da matemaacutetica tem suas

razotildees Para Krois Cassirer natildeo leva a diante a concepccedilatildeo de transcendental que

comeccedilou a elaborar nesta obra ldquopois logo pareceu a ele demasiadamente

matemaacutetica para servir de modelo das condiccedilotildees de experiecircncia no sentido mais

fundamentalrdquo (1987 p 50) Assim ainda em Substacircncia e Funccedilatildeo ele passa a se

referir agrave teoria loacutegica dos conceitos como um problema de representaccedilatildeo

[Repraumlsentation] largamente discutido no capiacutetulo VI dedicado ao conceito de

realidade Laacute ele propotildee uma transformaccedilatildeo do conceito de representaccedilatildeo

ldquo[] se entendermos a bdquorepresentaccedilatildeo‟ como a expressatildeo de uma regra ideal que

conecta o particular presente dado com o todo e combina ambos numa siacutentese

intelectual entatildeo temos na representaccedilatildeo natildeo meramente uma determinaccedilatildeo

subsequumlente mas uma condiccedilatildeo constitutiva de toda a experiecircnciardquo (SF p 284)

Jaacute Skidelsky vecirc no abandono da matemaacutetica um prenuacutencio da necessidade de

inserccedilatildeo de domiacutenios notadamente natildeo-intelectuais na programaacutetica do autor

ldquoO siacutembolo momentaneamente deslocou a categoria como o instrumento baacutesico de

objetivaccedilatildeo Isso faz uma importante diferenccedila Enquanto que a categoria tem uma

estrutura intelectual fixa derivada da tabela loacutegica de juiacutezos o siacutembolo

41

Detalhes da concepccedilatildeo de siacutembolo bem como da evoluccedilatildeo desse conceito no pensamento de

Cassirer seratildeo dados no capiacutetulo seguinte

55

particularmente na tradiccedilatildeo romacircntica alematilde da qual Cassirer era intimamente

familiar eacute aberto em sua interpretaccedilatildeo Natildeo estaacute portanto atado agraves formas

intelectuais da matemaacutetica e das ciecircncias matemaacuteticas ele eacute potencialmente apto a

acomodar diversamente de uma categoria tais formas de objetivaccedilatildeo natildeo-

intelectuais tais como a arte e o mitordquo (SKIDELSKY 2008 p 66)

Contudo talvez seja mais prudente admitir apenas que estes satildeo os primeiros

passos de Cassirer para aleacutem das ciecircncias da natureza em direccedilatildeo agraves ciecircncias do

espiacuterito A afirmaccedilatildeo de Skidelsky parece temeraacuteria aleacutem de metodologicamente

questionaacutevel pois se considerada em detalhe ela praticamente nega que haja

evoluccedilatildeo no pensamento do filoacutesofo antecipando suas conclusotildees de maturidade

num texto escrito mais de uma deacutecada antes Aleacutem do que supor a preparaccedilatildeo para

as formas do mito e da arte para subsumi-la ao todo da obra de Cassirer seria tirar

de Substacircncia e Funccedilatildeo seu caraacuteter com obra autocircnoma fruto de um momento

particular das reflexotildees do autor Ademais como mostraremos a seguir a ideacuteia para

a Filosofia das Formas Simboacutelicas soacute surgiu em 1917

Sobre a teoria da relatividade

Haacute ainda outro grande acontecimento pelo qual a doutrina de Marburgo passa

dentro do campo epistemoloacutegico o surgimento da Teoria da Relatividade Geral de

Einstein em 1916 A teoria aparece em meio agrave crise moral pela qual a Escola (e

todo o mundo ocidental) passava e de uma forma distinta contribui para o

agravamento da crise interna da Escola uma vez que ela solapa definitivamente a

fiacutesica de Newton ndash suas noccedilotildees de tempo e espaccedilo ndash e consequumlentemente expotildee

um ponto fraco dos partidaacuterios da filosofia criacutetica Eacute esse o ponto fraco que Schlick

por exemplo tenta explorar num artigo publicado com este fim Contudo de acordo

56

com Cassirer eacute possiacutevel integrar a teoria da relatividade aos postulados da filosofia

criacutetica

ldquosem dificuldade pois essa teoria eacute descrita de um ponto de vista epistemoloacutegico

geral precisamente pelo fato de que nela mais consciente e claramente do que

jamais antes o avanccedilo desde a teoria do conhecimento enquanto coacutepia para a teoria

funcional eacute realizadordquo (ERT p 392)

Assim natildeo seria problema integrar a filosofia criacutetica tomada como meacutetodo de

investigaccedilatildeo bastaria corrigir a afirmaccedilatildeo de Kant acerca da geometria de Euclides

e da fiacutesica de Newton de modo a incluir as outras geometrias e a concepccedilatildeo de

tempo e espaccedilo da Teoria da Relatividade E Cassirer faz isso postulando uma

concepccedilatildeo mais ampla em clara e indiscutiacutevel antecipaccedilatildeo da Filosofia das Formas

Simboacutelicas

Cassirer desde 1906 ocupava seu primeiro cargo acadecircmico na

Universidade de Berlim ndash cargo este que ocupou ateacute mudar-se para a Universidade

de Hamburgo em 1919 Durante os anos em Berlim aleacutem de Substacircncia e Funccedilatildeo

Cassirer publicou a terceira parte de Das Erkenntnisproblem (1913) e Freiheit und

Form [Liberdade e Forma] (1916) obra elaborada no decorrer da Primeira Guerra e

primeira a expor as preocupaccedilotildees do autor para aleacutem do campo epistemoloacutegico

Contudo eacute outro dado dessa eacutepoca que importa ao que se diz a concepccedilatildeo da

Filosofia das Formas Simboacutelicas surgiu para Cassirer em 1917 supostamente de

maneira suacutebita quando da entrada de Cassirer em um carro na rua42 E de fato o

que aqui nos importa ao chegar a Hamburgo jaacute havia comeccedilado a escrevecirc-la De

42

A informaccedilatildeo foi retirada do ensaio introdutoacuterio de D Verene ao livro de T Bayer Cassirer‟s

Metaphysics of Symbolic Forms 2001 p 15

57

acordo com Verene aqui passamos da primeira para a segunda fase (de quatro no

total)43 do percurso intelectual do autor marcada evidentemente pela sua grande

obra

Admitindo-se que a concepccedilatildeo geral da Filosofia das Formas Simboacutelicas

tenha se dado em 1917 podemos concluir que Zur Einsteinschen Relativitaumltstheorie

[Sobre a Teoria da Relatividade de Einstein] escrito em 1921 jaacute eacute marcada entatildeo

por pretensotildees largamente diversas daquelas de Substacircncia e Funccedilatildeo ainda que

ambas sejam vistas como proacuteximas nesse sentido A diferenccedila se faz notar jaacute pelo

vocabulaacuterio adotado pelo autor de modo que o termo siacutembolo raro em Substacircncia e

Funccedilatildeo eacute aqui largamente utilizado como a passagem abaixo do uacuteltimo capiacutetulo da

obra exemplifica

ldquoEacute a tarefa da filosofia sistemaacutetica que se estende muito aleacutem da teoria do

conhecimento libertar a ideacuteia do mundo dessa unilateralidade Ela deve entender

todo o sistema de formas simboacutelicas cuja aplicaccedilatildeo produz para noacutes o conceito de

uma realidade ordenada e em virtude da qual sujeito e objeto ego e mundo satildeo

separados e opostos entre si de forma definida e ela deve referir cada individual

nessa totalidade ao seu lugar fixo Se assumiacutessemos esse problema resolvido entatildeo

os direitos estariam assegurados e os limites fixos de cada uma das formas

particulares do conceito e do conhecimento assim como de formas gerais do

entendimento teoacuterico eacutetico esteacutetico e religioso do mundordquo (ERT p 447)

Ateacute mesmo o mito eacute citado (Idem p 450) como exemplo da diversidade dos

significados de um dado conceito de acordo com a ldquobdquomodalidade‟ de consciecircncia e

conhecimento com o qual ele estaacute conectado e a partir do qual eacute consideradordquo Para

ilustrar Cassirer diz

43

Cf Ibid p 9-37

58

ldquoA relaccedilatildeo conceitual que geralmente chamamos bdquocausa‟ e bdquoefeito‟ natildeo estaacute ausente

no pensamento miacutetico mas aqui seu significado eacute especificamente distinto do

significado que recebe no pensamento cientiacutefico e em particular no matemaacutetico e

fiacutesico De forma similar todos os conceitos fundamentais passam por uma mudanccedila

intelectual caracteriacutestica de significado quando os traccedilamos atraveacutes dos diferentes

campos de consideraccedilatildeo intelectualrdquo (Idem p 450)

Destarte em consonacircncia com o que afirma Krois (1987 p 43) Cassirer transforma

o idealismo transcendental desde uma criacutetica do conhecimento a outra mais

abrangente criacutetica do significado e esta eacute uma chave indispensaacutevel para a leitura da

Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cisatildeo

Origem comum

Daquilo que se disse ateacute agora sobre o desenvolvimento interno de

Substacircncia e Funccedilatildeo haacute ainda um dado particularmente relevante para a histoacuteria da

filosofia do seacuteculo XX Este fato fica por conta da cisatildeo exposta magistralmente por

Friedman em seu A Parting of Ways entre a filosofia neokantiana de Cassirer e o

entatildeo nascente empirismo loacutegico de Viena44 Falar em cisatildeo supotildee um momento

anterior no qual as partes se encontrariam juntas e quiccedilaacute indiferenciadas Natildeo eacute

exatamente o caso A biografia intelectual dos membros do Ciacuterculo de Viena ndash

44

De fato a cisatildeo de que trata Friedman compreende ainda a vertente existencialista de Heidegger

que tendo em vista o propoacutesito do trabalho natildeo seraacute abordada aqui Para informaccedilotildees sobre o

assunto Cf FRIEDMAN (2000) ou HAMBURG C (1964)

59

Schlick e Carnap especialmente45 ndash eacute distinta daquela de Cassirer Embora tendo

formaccedilatildeo em Fiacutesica Schlick tem seu primeiro trabalho no campo epistemoloacutegico

publicado somente em 1910 ndash sua tese de habilitaccedilatildeo Das Wesen der Wahrheit

nach der modernen Logik [A Natureza da Verdade na Loacutegica Moderna] Carnap foi

aluno de Bauch pupilo de Rickert (este sabidamente opositor da doutrina de

Marburgo) ndash muito embora de acordo com Friedman tenha sofrido desde entatildeo

influecircncias do cientificismo de Marburgo Ainda assim haacute paralelismos e

proximidades tais entre Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo e por exemplo a

Allgemeine Erkenntnislehre [Doutrina Geral do Conhecimento] de Schlick (1918)46

que se torna surpreendente o distanciamento entre ambos nas obras de

maturidade47

Mas ainda mais surpreendente do que o distanciamento entre Cassirer e

Schlick eacute o que acontece em relaccedilatildeo a Carnap Este manteve relaccedilotildees deveras

proacuteximas com a doutrina de Marburgo durante parte consideraacutevel de seu

desenvolvimento intelectual (em especial com a obra Substacircncia e Funccedilatildeo mas

45

Poderiacuteamos tambeacutem aludir agrave proximidade entre Cassirer e Reichenbach tratada suficientemente

no capiacutetulo VI do texto de Skidelsky (2008 p 133-44)

46 De fato Cassirer (EGLD) elogia a proposta da ldquocoordenaccedilatildeordquo [Zuordnung] de Schlick (desenvolvida

a partir da Zeichentheorie de Helmholtz) apontando-a como uma rejeiccedilatildeo da teoria do conhecimento

como coacutepia e do conceito de substacircncia pelo de lei universal apesar de reprovar o posicionamento

de recusa de Schlick em relaccedilatildeo agrave filosofia criacutetica e seu assumido dualismo Para detalhes sobre a

obra em sua relaccedilatildeo com a filosofia de Cassirer Cf FRIEDMAN 2000 cap 7

47 Cassirer e o Ciacuterculo de Viena eram tambeacutem algo proacuteximos em termos de perspectiva poliacutetica

partilhavam ideais cosmopolitas progressistas e de maneira geral viam o progresso cientiacutefico como

beneacutefico para a humanidade Aleacutem disso por mais que pesasse o desacordo no campo filosoacutefico natildeo

haacute registros de que isso tenha extrapolado para o campo pessoal Durante a fase inicial de suas

carreiras Cassirer foi um grande colaborador dos membros do Ciacuterculo tendo ajudado em

recomendaccedilotildees de publicaccedilatildeo e ateacute mesmo em papel de conselheiro e mediador entre as demandas

de colegas jovens professores e suas respectivas instituiccedilotildees Mais dados Cf SKIDELSKY 2008

esp cap 6

60

tambeacutem com trabalhos de Natorp) como comprovam as citaccedilotildees dele proacuteprio em

trechos significativos de seus trabalhos48

ldquoCassirer mostrou que uma ciecircncia que tenha como objetivo determinar o individual

atraveacutes de interconexotildees ordenadas [Gesetzseszusammenhaumlnge] sem perder sua

individualidade deve aplicar natildeo conceitos de classe mas sim conceitos de relaccedilatildeo

pois os uacuteltimos podem levar agrave transformaccedilatildeo de seacuteries e assim ao estabelecimento

de sistemas de ordenaccedilatildeo Disso tambeacutem resulta que as relaccedilotildees satildeo necessaacuterias

como primeira postulaccedilatildeo desde que se possa de fato facilmente proceder agrave

transiccedilatildeo de relaccedilotildees para classes enquanto o procedimento inverso soacute eacute possiacutevel

para uma extensatildeo muito limitadardquo (CARNAP 1928 sect 75)

E de fato mesmo em Aufbau Carnap tenta conciliar o neokantismo com o

empirismo como mostra o trecho que segue em seu texto a citaccedilatildeo acima

ldquoO meacuterito de ter descoberto as bases necessaacuterias para o sistema constitucional

portanto pertencem a duas tendecircncias filosoacuteficas inteiramente diferentes e

frequumlentemente mutuamente hostis O Positivismo acentuou que o exclusivo material

para a cogniccedilatildeo assenta no dado experiencial natildeo-digerido [Unverarbeitet] aqui hatildeo

de ser procurados os elementos baacutesicos do sistema constitucional O idealismo

transcendental entretanto especialmente a tendecircncia neokantiana (Rickert Cassirer

48

Aleacutem das citaccedilotildees em obras em sua Autobiografia Intelectual lecirc-se ldquoeu tomava o conhecimento do

espaccedilo intuitivo agravequela eacutepoca sob a influecircncia de Kant e neokantianos especialmente Natorp e

Cassirer como baseada em bdquointuiccedilatildeo pura‟ e independente da experiecircncia contingenterdquo (p 12) Apud

FRIEDMAN 2000 p 65 A respeito do que Carnap entende aqui por ldquointuiccedilatildeo purardquo em relaccedilatildeo agrave

filosofia de Husserl Cf idem p 66-7 Em seus primeiros trabalhos a proximidade com a doutrina da

Escola de Marburgo eacute tal que Carnap inclusive postula contra o positivismo de Mach o

conhecimento cientiacutefico como baseado em princiacutepios a priori Aleacutem disso de certa forma Carnap

corrobora a normativa de Marburgo a respeito da aplicaccedilatildeo da matemaacutetica agrave realidade empiacuterica ndash e

esse como jaacute tratado aqui foi o fator determinante de distinccedilatildeo entre os partidaacuterios da loacutegica

simboacutelica e a Escola de Marburgo

61

Bauch) tem enfatizado corretamente que estes elementos natildeo satildeo suficientes

postulaccedilotildees de ordenaccedilotildees [Ordnungssetzungen] devem ser acrescidasrdquo(Idem

ibidem)

A divergecircncia principal entre Carnap e Cassirer fica assim como no caso de Schlick

por conta da concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento que Carnap pretende substituir

pela teoria constitucional Entretanto essa substituiccedilatildeo acaba por eliminar de vez os

resquiacutecios dos juiacutezos sinteacuteticos a priori presentes em sua obra na medida em que

ele nega que os objetos de conhecimento sejam gerados no pensamento

substituindo o princiacutepio regulativo de uma tarefa infinita pela hierarquia de tipos que

ldquoconstituirdquo os objetos do conhecimento a partir de classificaccedilotildees finitas definidas

com as quais eacute possiacutevel sem postular juiacutezos sinteacuteticos a priori passar do reino

autopsicoloacutegico daiacute para o reino fiacutesico e entatildeo ao reino heteropsicoloacutegico e assim

garantir a objetividade e comunicabilidade do conhecimento sem todavia a

exigecircncia de postulados metafiacutesicos Aqui haveria sido completada a logicizaccedilatildeo do

conhecimento objetivo inicial da Escola de Marburgo

Loacutegica ou cultura

Tal como se pode notar a partir dos dados expostos no trecho a respeito da

teoria da relatividade Cassirer desde 1917 havia mudado consideravelmente a

postura que defendia na obra de 1910 Natildeo vem ao caso neste momento discutir se

se trata de uma ruptura ou de uma consequumlecircncia das proacuteprias investigaccedilotildees

Importante eacute registrar que o programa epistemoloacutegico inicial foi sensivelmente

alterado de modo que as criacuteticas de Carnap sendo todas feitas a partir dos

postulados de Substacircncia e Funccedilatildeo devem ser reavaliadas Em relaccedilatildeo a isso eacute

62

preciso dizer que ao menos num primeiro momento as criacuteticas de Carnap

centradas na concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento e no sinteacutetico a priori procedem

quando aplicadas agrave Filosofia das Formas Simboacutelicas dado que o projeto manteacutem

tais postulados gerais (como a concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento) inalterados

Entretanto elas satildeo vaacutelidas no maacuteximo em relaccedilatildeo agrave ciecircncia Mais do que isso

pelos proacuteprios postulados que defende Carnap ela soacute faria sentido se se

restringisse ao campo da razatildeo Em relaccedilatildeo aos demais campos considerados a

partir daqui as criacuteticas seriam inofensivas A inevitaacutevel ampliaccedilatildeo de seu campo

epistemoloacutegico obriga a filosofia de Cassirer a dar conta do todo sistemaacutetico assim

como o faria para seus criacuteticos Certo eacute que ao passo em que Carnap se aprofunda

numa filosofia da loacutegica e pretende a partir dela resolver o problema do

conhecimento Cassirer entende como insuficiente esse procedimento e se lanccedila

noutro domiacutenio o da cultura Natildeo haacute nisso grande surpresa dado que se visto com

atenccedilatildeo o papel da ciecircncia para Cassirer sempre foi importantiacutessimo mas nunca

deixou de ser um entre tantos fatores culturais igualmente importantes Ademais a

despeito de todas as hostilidades em relaccedilatildeo agraves duas tendecircncias a visatildeo de

Cassirer do Ciacuterculo de Viena era surpreendente positiva ldquoEm termos de visatildeo de

mundo naquilo que eu vejo como o ethos da filosofia acredito estar mais perto de

nenhuma outra bdquoescola‟ filosoacutefica do que dos pensadores do Ciacuterculo de Vienardquo

(Apud SKIDELSKY 2008 p 128)

63

AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA

A absolutizaccedilatildeo da tendecircncia da razatildeo em quantificar

nasce de sua carecircncia auto-reflexiva

O que se impotildee eacute insistir sobre o qualitativo

sem trilhar os caminhos da irracionalidade

Adorno

Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico

O lugar da razatildeo

De volta ao ponto de partida Diz Cassirer na abertura da Filosofia das

Formas Simboacutelicas

ldquoAo tentar aplicar o resultado de minhas anaacutelises aos problemas inerentes agraves ciecircncias

do espiacuterito fui constatando gradualmente que a teoria geral do conhecimento na sua

concepccedilatildeo tradicional e com as suas limitaccedilotildees eacute insuficiente para um embasamento

metodoloacutegico das ciecircncias do espiacuterito Para que o objetivo fosse alcanccedilado foi

necessaacuteria uma ampliaccedilatildeo substancial do programa epistemoloacutegicordquo (PSF I p 1)

Haacute dois pontos centrais a serem destacados do trecho O primeiro acerca da

concepccedilatildeo tradicional de conhecimento O segundo acerca da premecircncia de uma

metodologia radicalmente diversa daquelas usadas em relaccedilatildeo ao primeiro

Para tratar do primeiro ponto comeccedilaremos por explicitar aquilo que essa

ampliaccedilatildeo epistemoloacutegica natildeo eacute Primeiramente ela natildeo eacute uma ruptura total com a

doutrina de Marburgo ndash entenda-se aquela formulada por Cohen Natildeo se trata de

descartar as pesquisas precedentes agrave obra (como fez Wittgenstein) Eacute certo que

64

Cassirer faz modificaccedilotildees substanciais e justamente essas modificaccedilotildees daratildeo solo

agrave proposiccedilatildeo deste projeto Mas ainda assim os postulados centrais da doutrina ndash a

concepccedilatildeo geneacutetica de conhecimento a necessidade de partir de um fato e

investigar suas condiccedilotildees de possibilidade a concepccedilatildeo de conhecimento como

construccedilatildeo ndash satildeo mantidos Destarte mais precisamente do que uma ruptura trata-

se de um aprofundamento e ao mesmo tempo uma correccedilatildeo da metodologia anterior

ndash postura esta que eacute mais condizente com a ideacuteia de progresso do conhecimento

defendida por Cassirer E se eacute assim esta postura notadamente dialeacutetica

representa a ruptura com um dado procedimento metodoloacutegico tanto quanto o

cumprimento estrito deste procedimento ou ainda melhor a ruptura se daacute como um

expediente do proacuteprio meacutetodo as teorias cientiacuteficas de acordo com a concepccedilatildeo

geneacutetica de conhecimento progridem natildeo por rupturas e revoluccedilotildees mas por

correccedilotildees de modo que a teoria anterior natildeo eacute invalidada por completo mas passa

a ser tomada como um caso especial de uma doutrina mais abrangente capaz de

resolver problemas a respeito dos quais a anterior natildeo logrou sucesso Por conta

disso a Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo eacute uma ruptura strito sensu mas fruto

de uma reflexatildeo sobre as limitaccedilotildees do meacutetodo transcendental tal qual entendido por

Cohen (De fato no capiacutetulo anterior se mostrou que jaacute em 1910 as limitaccedilotildees do

meacutetodo se faziam notar mas ainda natildeo havia por parte de Cassirer a concepccedilatildeo

clara de que atitudes tomar para a correccedilatildeo dos problemas encontrados)

Em segundo lugar a proposta de ampliaccedilatildeo natildeo eacute uma guinada em direccedilatildeo

ao irracionalismo Tampouco se trata de recorrer a algum psicologismo subjetivista

A proposta da obra pode ser lida como um diaacutelogo ndash que natildeo eacute o uacutenico nem o mais

65

importante da obra ndash com a loacutegica simboacutelica de Russell e Frege49 e talvez seja esse

o objetivo de deixar claro ao leitor o fato de que as investigaccedilotildees que

desembocaram aqui tecircm sua origem na obra de 1910 Assim a racionalidade

cientiacutefica natildeo estaacute sendo deposta e exilada em benefiacutecio de outras formas de

compreensatildeo do mundo O confronto com as demais formas ao contraacuterio visa

encontrar limites dentro dos quais seja pertinente falar em atividade racional bem

como garantir agraves demais formas seu espaccedilo de direito O que estaacute em jogo

portanto eacute a posiccedilatildeo que a razatildeo cientiacutefica deve ocupar em relaccedilatildeo ao todo de

nossas atividades se ateacute o momento ela foi o centro a partir do qual todas as

determinaccedilotildees se datildeo ndash e a definiccedilatildeo claacutessica do homem como um animal racional

resume a discussatildeo ndash agora sua posiccedilatildeo soberana passa a ser questionada ldquoA

racionalidade eacute de fato um traccedilo inerente a todas as atividades humanasrdquo diz o

Ensaio Sobre o Homem

ldquoA proacutepria mitologia natildeo eacute uma massa grosseira de supersticcedilotildees ou ilusotildees crassas

Natildeo eacute meramente caoacutetica pois possui uma forma sistemaacutetica ou conceitual Mas por

outro lado seria impossiacutevel caracterizar a estrutura do mito como racional A

linguagem foi com frequumlecircncia identificada agrave razatildeo ou agrave proacutepria fonte da razatildeo Mas eacute

faacutecil perceber que essa definiccedilatildeo natildeo consegue cobrir todo o campo Eacute uma pars pro

toto oferece-nos uma parte pelo todo Isso porque lado a lado com a linguagem

conceitual existe uma linguagem emocional lado a lado com a linguagem cientiacutefica

49

Carnap ao tempo da publicaccedilatildeo do primeiro volume da PSF (o que tambeacutem significa a concepccedilatildeo

geral do programa de seus trecircs volumes) ainda natildeo havia despontado no cenaacuterio filosoacutefico e muito

menos chegado agravequelas conclusotildees que satildeo radicalmente antagocircnicas agraves do neokantismo Destarte

a Filosofia das Formas Simboacutelicas ao menos no que respeita agrave sua formulaccedilatildeo inicial natildeo pode ser

vista como uma tentativa de resposta ao empirismo loacutegico Contudo em textos posteriores como o

Zur Logik der Kulturwissenschaften de 1941 ou mesmo no volume conclusivo das Formas

Simboacutelicas publicado em 1929 haacute referecircncias expliacutecitas ao empirismo loacutegico e agrave sua visatildeo

ldquoreducionistardquo em relaccedilatildeo agraves ciecircncias do espiacuterito

66

ou loacutegica existe uma linguagem da imaginaccedilatildeo poeacutetica () E ateacute mesmo uma

religiatildeo bdquonos limites da razatildeo pura‟ tal como concebida por Kant natildeo passa de mera

abstraccedilatildeo Transmite apenas a forma ideal a sombra do que eacute uma vida religiosa

genuiacutena e concretardquo (EM p 49)

Essa atitude metoniacutemica por assim dizer eacute a que Cassirer busca superar Com

efeito na primeira parte da introduccedilatildeo e exposiccedilatildeo do problema da Filosofia das

Formas Simboacutelicas o autor elenca alguns esforccedilos da histoacuteria da filosofia no sentido

de construir um ldquosistema filosoacutefico do espiacuterito no qual cada forma particular

receberia seu sentido pelo lugar que nele ocupasserdquo (PSF I p 26)

O homem no leito de Procrusto

O mesmo trajeto de exposiccedilatildeo histoacuterica encontra-se no primeiro capiacutetulo do

Ensaio sobre o Homem dedicado agrave crise do conhecimento de si do homem Numa

das inuacutemeras referecircncias que o autor usa para explicar o desenvolvimento do

autoconhecimento ao longo da histoacuteria da ldquofilosofia antropoloacutegicardquo ele recorre a

Pascal no qual vecirc a distinccedilatildeo entre o espiacuterito geomeacutetrico e o espiacuterito sutil como um

iacutendice inegaacutevel de que a razatildeo ndash principalmente quando delineada nos moldes da

matemaacutetica ndash natildeo daacute conta de compreender o espiacuterito humano em sua totalidade

Haacute outra dimensatildeo (que no caso de Pascal o remete agraves questotildees religiosas)

radicalmente diferente no homem que precisa ser devidamente considerada para

que se alcance o ecircxito primordial da filosofia desde Soacutecrates o conhecimento de si

O ldquologocentrismordquo entretanto prevaleceu Natildeo apenas prevaleceu como o

conceito de razatildeo foi cada vez mais se afunilando descolando-se mais e mais dos

demais domiacutenios que continuavam a fazer parte da vida humana e das inquietaccedilotildees

67

mais caracteriacutesticas de seu espiacuterito O passo seguinte foi a especializaccedilatildeo das

ciecircncias cada qual dava por si explicaccedilotildees com pretensotildees universalistas de

resolver e desvendar a questatildeo do homem muito embora as respostas dadas por

cada uma dessas ciecircncias soacute fizessem reduzir os fenocircmenos a um uacutenico ponto de

vista e quando vistas em conjunto confrontadas entre si se mostravam incapazes

de qualquer articulaccedilatildeo

ldquoNietzsche proclama a vontade de potecircncia Freud assinala o instinto sexual Marx

entroniza o instinto econocircmico Cada teoria torna-se um leito de Procrusto no qual os

fatos empiacutericos satildeo esticados para amoldar-se a um padratildeo preconcebido []

Teoacutelogos cientistas poliacuteticos socioacutelogos bioacutelogos psicoacutelogos etnoacutelogos e

economistas cada qual abordou o problema a partir de seu ponto de vista Combinar

ou unificar todos esses aspectos e perspectivas particulares era impossiacutevel E nem

em cada um dos campos especiais havia um princiacutepio cientiacutefico de aceitaccedilatildeo geralrdquo

(EM p 41-2)

A isso podemos acrescentar a teoria de Darwin citada em outras passagens50 a

respeito da reduccedilatildeo do homem a seus aspectos bioloacutegicos Chega-se aqui ao marco

zero da fragmentaccedilatildeo que caracterizaraacute o final da modernidade ndash e Cassirer eacute

indiscutivelmente um defensor da modernidade De fato toda a exposiccedilatildeo histoacuterica

50

Em Zur Logik der Kulturwissenschaften por exemplo pode ser lido que ldquoa teoria darwiniana

promete conter natildeo somente a resposta ao problema da evoluccedilatildeo do homem mas tambeacutem a

resposta para todas as questotildees concernentes agrave origem da cultura humana Quando a teoria de

Darwin apareceu pela primeira vez pareceu finalmente depois de seacuteculos de esforccedilos em vatildeo ter

descoberto o viacutenculo que abrange a bdquociecircncia da natureza‟ e a ciecircncia da culturardquo (LKW p 22)

Cassirer tambeacutem atribui a Darwin a libertaccedilatildeo do ldquopensamento moderno dessa ilusatildeo das causas

finaisrdquo (EM p 37) Esse dado eacute imprescindiacutevel para a concepccedilatildeo de cultura que Cassirer desenvolve

dado que ela natildeo eacute ndash e natildeo pode ser ndash orientada teleologicamente Nesse sentido como veremos no

capiacutetulo seguinte a concepccedilatildeo de cultura do filoacutesofo destoa daquela partilhada pelos intelectuais de

sua eacutepoca

68

que o filoacutesofo faz no capiacutetulo inicial do Ensaio Sobre o Homem sobre o problema do

autoconhecimento tem por fim diagnosticar o seacuteculo XX como o seacuteculo da

fragmentaccedilatildeo do proacuteprio homem que natildeo tem mais uma ldquoorientaccedilatildeo geralrdquo como

teve no mito na metafiacutesica na religiatildeo e na ciecircncia moderna A crise que se iniciou

com as ciecircncias tornou-se entatildeo uma crise da proacutepria racionalidade da qual a

racionalidade moderna eacute soacute um exemplo

Lofts (1992 et 2000 esp cap I) entre outros chama a atenccedilatildeo para a

semelhanccedila entre o diagnoacutestico de Husserl Heidegger e Cassirer a esse respeito

Segundo ele diz os trecircs viam como saiacuteda para a crise da racionalidade o retorno ao

ideal grego de conhecimento ndash Husserl propunha uma re-inscriccedilatildeo ou um re-

estabelecimento [Nachstiftung] Heidegger uma repeticcedilatildeo Cassirer um

renascimento 51 O primeiro assinalava a importacircncia da filosofia como ciecircncia

rigorosa para a identidade e sobrevivecircncia da cultura europeacuteia o segundo afirmava

a necessidade de que a filosofia acabasse para que o pensamento da diferenccedila

pudesse comeccedilar o uacuteltimo tal qual o primeiro via a filosofia como central para a

cultura e propunha uma ldquoreafirmaccedilatildeordquo do projeto da modernidade agora guiado por

um modelo mais amplo e abrangente de razatildeo ao ponto mesmo de tal conceito dar

conta justamente do que era visto como o oposto do conceito tradicional52

51

O termo renascimento aparece num dos textos que compotildeem a Logik der Kulturwissenschaften Cf

esp cap V

52 Para Lofts isso se daacute porque natildeo faria sentido para Cassirer falar em algo ldquoirracionalrdquo A ampliaccedilatildeo

do conceito levaria entatildeo agrave possibilidade de reconhecimento de uma ldquoloacutegicardquo interna a esses

domiacutenios como espera fazer a Filosofia das Formas Simboacutelicas Lofts tambeacutem interpreta a posiccedilatildeo

de Cassirer como a de conciliaccedilatildeo entre Husserl e Heidegger no sentido de que ela nem manteve o

conceito de razatildeo estreito ndash a ciecircncia rigorosa do primeiro ndash nem a rejeitou por completo ndash como fez o

segundo Contudo pensamos esse posicionamento de ldquomediaccedilatildeordquo natildeo deve ser entendido strito

sensu como se Cassirer tivesse avaliado ambas e decidido ficar com aquilo que mais lhe

interessasse em cada uma pois seria um erro histoacuterico crasso dado que o projeto de Cassirer eacute de

1917 (embora publicado somente a partir de 1923) e Sein und Zeit eacute de 1927 Seria mais pertinente

69

Haacute de se dizer tambeacutem que o projeto das formas simboacutelicas guarda grande

proximidade com a Lebensphilosophie 53 sobretudo no que concerne agrave

expressividade e agrave pregnacircncia simboacutelica como seraacute tratado De fato alguns textos

do autor que natildeo foram publicados ndash alguns satildeo manuscritos incompletos outros

projetos anunciados mas nunca concretizados 54 ndash tecircm direcionamento claro ao

problema da vida e constituem um certo tipo de desdobramento do projeto das

formas simboacutelicas Mas vale ressaltar que essa proximidade deve ser considerada

com cautela haacute uma seacuterie de contestaccedilotildees que Cassirer faz em especial a Simmel

Bergson e Heidegger A filosofia de Cassirer natildeo ambiciona se entregar agrave imanecircncia

da Vida mas mostrar como ela se transforma em Espiacuterito o que se faz pela

atividade da consciecircncia via diferentes formas simboacutelicas em sua accedilatildeo no mundo

Essa eacute precisamente a justificativa da filosofia da cultura integrar cada um

dos pontos essenciais em uma ldquounidade conceitualrdquo mais ampla ldquoA criacutetica da razatildeo

transforma-se assim em criacutetica da culturardquo (PSF I p 22) diz o autor Eacute soacute a partir

de um entendimento da dinacircmica cultural entendida como a totalidade das

produccedilotildees do espiacuterito em suas tendecircncias baacutesicas de objetivaccedilatildeo que eacute possiacutevel

dizer apenas que o posicionamento de Cassirer eacute intermediaacuterio entre ambos mas sem qualquer

relaccedilatildeo de referecircncia ou subordinaccedilatildeo ao trabalho de Heidegger

53 Moumlckel em seu Das Urphaumlnomen des Lebens a partir de uma leitura por assim dizer textualista

do texto de Cassirer tenta dar conta destas proximidades desconsiderando a filiaccedilatildeo agrave Escola

neokantiana de Marburgo e as demais questotildees contextuais Vale tambeacutem dizer que Cassirer tomava

a Lebensphilosophie como a filosofia ldquocontemporacircneardquo como pode atestar o tiacutetulo de seu texto Geist

und Leben in der Philosophie der Gegenwart publicado postumamente Bem entendido Cassirer

entendia o momento da filosofia da vida e sabia que eacute em relaccedilatildeo a ela que deveria se posicionar

para discutir o estado entatildeo presente da filosofia

54 Alguns destes foram compilados por Verene e Krois como um quarto volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas sub-intitulado Metafiacutesica das Formas Simboacutelicas Esse volume eacute composto do

texto Geist und Leben (publicado tambeacutem na ediccedilatildeo dedicada a Cassirer da Library of Living

Philosophers) e de manuscritos sobre os Basis Phenomena ou fenocircmenos fundamentais

[Urphaumlnomen] que satildeo o projeto ndash esboccedilado ndash metafiacutesico de Cassirer

70

manter a unidade ameaccedilada do proacuteprio homem e soacute nessa totalidade poderaacute o

homem alcanccedilar finalmente o conhecimento de si

O meacutetodo na Filosofia das Formas Simboacutelicas

Passa-se entatildeo a um problema de ordem metodoloacutegica Ainda que este seja

delimitado em seus contornos gerais pelo idealismo transcendental ndash a referecircncia

direta a Kant no momento da proposiccedilatildeo de uma criacutetica da cultura natildeo deixa duacutevidas

ndash Cassirer deveraacute se lanccedilar aqui a domiacutenios inacessiacuteveis ao meacutetodo tal qual

defendido por Cohen o fenocircmeno psicoloacutegico da forma da linguagem e do

pensamento miacutetico

ldquoBenedeto Croce subordinou o problema da expressatildeo linguumliacutestica ao da expressatildeo

esteacutetica assim como o sistema filosoacutefico de Hermann Cohen trata a loacutegica a eacutetica a

esteacutetica e por fim a filosofia da religiatildeo como partes independentes mas por outro

lado discute os problemas fundamentais da linguagem ocasionalmente apenas e em

conexatildeo com as questotildees da esteacuteticardquo (PSF I p 4)

A respeito do pensamento miacutetico o problema eacute ainda mais complexo pois este

carece ateacute mesmo de um sentido positivo e autocircnomo uma vez que ele sempre foi o

outro o oposto sobre o qual edificamos positivamente o conceito de razatildeo

ldquo[] seraacute o mundo do mito um tal Faktum de alguma maneira comparaacutevel ao mundo

do conhecimento teoacuterico ao mundo da arte e da consciecircncia moral Ou natildeo

pertenceria esse mundo desde o iniacutecio ao domiacutenio da aparecircncia ndash aquela aparecircncia

da qual a filosofia como doutrina da essecircncia deve distanciar-se e natildeo mergulhar

nela mas ao contraacuterio separar-se dela de modo cada vez mais claro e niacutetido De

71

fato toda a histoacuteria da filosofia cientiacutefica pode ser considerada uma uacutenica luta

contiacutenua por essa separaccedilatildeo e libertaccedilatildeo Quanto mais as formas dessa luta

segundo o grau alcanccedilado da consciecircncia-de-si teoacuterica tanto mais claras e niacutetidas

apareceratildeo sua orientaccedilatildeo fundamental e sua tendecircncia geral E eacute sobretudo no

idealismo filosoacutefico que essa oposiccedilatildeo adquire toda a sua nitidez No momento em

que esse idealismo atinge seu proacuteprio conceito em que a ideacuteia de ser se lhe torna

consciente como seu problema fundamental e primordial o mundo do mito passa ao

domiacutenio do natildeo-serrdquo (PSF II p 2)

E eacute faacutecil conceder que o exemplo aplicado ao mito sirva igualmente mutatis

mutandis para os domiacutenios da linguagem da arte da histoacuteria e da religiatildeo ndash numa

palavra para as ciecircncias do espiacuterito De fato todos estes domiacutenios satildeo analisados

tradicionalmente a partir da razatildeo cientiacutefica que a partir de seus proacuteprios valores

determina os demais o que os priva de serem tratados propriamente como seres no

sentido mais forte do termo Destarte a mudanccedila metodoloacutegica mais radical do

projeto de Cassirer eacute a de

ldquodiferenciar nitidamente as diversas formas fundamentais da bdquocompreensatildeo‟ humana

do mundo e em seguida apreender cada uma delas com a maacutexima acuidade na

sua tendecircncia especiacutefica e na sua forma espiritual caracteriacutesticardquo (PSF I p 1)

Nota-se que longe de tentar invalidar a razatildeo a questatildeo se centra apenas em sua

aplicaccedilatildeo a outros domiacutenios da atividade humana Este eacute o uacutenico sentido em que se

pode entender que a Filosofia das Formas Simboacutelicas reduz o papel da razatildeo

limitando-a ao seu campo especiacutefico de atuaccedilatildeo garantindo agraves demais formas sua

autonomia e independecircncia

72

Cassirer deixa claro que para tratar do pensamento miacutetico se vale da

aproximaccedilatildeo tautegoacuterica proposta por Schelling ndash interpretaccedilatildeo essa que entende as

ldquofiguras miacuteticas como produtos autocircnomos do espiacuterito que devem ser

compreendidos a partir de si mesmos de um princiacutepio especiacutefico que lhes daacute formardquo

(PSF II p 18) Mas aleacutem da tautegoria Cassirer procura dar lugar a outras aacutereas do

conhecimento aplicando delas aquilo que mais se ajusta agrave investigaccedilatildeo que

empreende No Ensaio sobre o Homem o filoacutesofo faz uma espeacutecie de sinopse de

seu programa metodoloacutegico como se segue

ldquoO meacutetodo dessa obra natildeo eacute de modo algum uma inovaccedilatildeo radical A filosofia das

formas simboacutelicas parte do pressuposto de que se houver qualquer definiccedilatildeo da

natureza ou bdquoessecircncia‟ do homem tal definiccedilatildeo soacute poderaacute ser entendida como sendo

funcional e natildeo substancial ()

Eacute oacutebvio que no desempenho desta tarefa natildeo devemos menosprezar nenhuma

possiacutevel fonte de informaccedilatildeo Devemos examinar todas as evidecircncias empiacutericas

disponiacuteveis e utilizar todos os meacutetodos de introspecccedilatildeo observaccedilatildeo bioloacutegica e

indagaccedilatildeo histoacuterica Esses meacutetodos anteriores natildeo devem ser eliminados mas

reportados a um novo centro intelectual e portanto vistos de um novo acircngulo Ao

descrever a estrutura da linguagem do mito da religiatildeo da arte e da ciecircncia

sentimos a necessidade constante de uma terminologia psicoloacutegica () A psicologia

infantil fornece-nos pistas valiosas para o estudo do desenvolvimento geral da fala

humana Ainda mais valiosa parece ser a ajuda que obtemos do estudo da sociologia

geral Natildeo podemos entender a forma do pensamento miacutetico primitivo sem levar em

consideraccedilatildeo as formas da sociedade primitiva E ainda mais urgente eacute o uso de

meacutetodos histoacutericos A questatildeo de o que bdquosatildeo‟ a linguagem o mito e a religiatildeo natildeo

pode ser respondida sem um estudo profundo de seu desenvolvimento histoacuterico

Todas as obras humanas surgem em condiccedilotildees histoacutericas e socioloacutegicas particulares

Mas nunca poderiacuteamos entender essas condiccedilotildees especiais se natildeo focircssemos

capazes de apreender os princiacutepios estruturais gerais subjacentes a tais obras No

73

nosso estudo da linguagem da arte e do mito o problema do sentido tem

precedecircncia sobre o problema do desenvolvimento histoacuterico E tambeacutem neste caso

poderiacuteamos verificar uma lenta e contiacutenua mudanccedila nos conceitos e ideais

metodoloacutegicos da ciecircncia empiacuterica ()

Natildeo podemos ter esperanccedilas de medir a profundidade de um determinado ramo da

cultura humana a menos que tal medida seja precedida por uma anaacutelise descritiva

Esta visatildeo estrutural da cultura deve preceder a visatildeo meramente histoacuterica ()

A filosofia natildeo pode contentar-se em analisar as formas individuais da cultura

humana Ela procura uma visatildeo universal sinteacutetica que inclua todas as formas

individuais ()

O que procuramos aqui natildeo eacute uma unidade de efeitos mas uma unidade de accedilatildeo

uma unidade natildeo de produtos mas do processo criativo () Em longo prazo deve

ser encontrado um traccedilo destacado um caraacuteter universal sobre o qual todas [as

formas simboacutelicas] concordam e se harmonizamrdquo (EM p 114-20)

Percebe-se que o proacuteprio meacutetodo de investigaccedilatildeo jaacute se constitui como um exemplo

daquilo que eacute investigado se o objetivo maior eacute entender a articulaccedilatildeo que

caracteriza o todo de nossas atividades a partir de cada domiacutenio do saber nada

mais coerente do que usar tantas fontes de dados quanto possiacutevel for Some-se a

isso o caraacuteter dialeacutetico que o autor afirma agraves formas simboacutelicas e o uso da

fenomenologia hegeliana (anunciado no terceiro tomo da mesma obra) e teremos

uma visatildeo razoavelmente clara do meacutetodo de Cassirer E ainda que este natildeo seja

uma inovaccedilatildeo radical a articulaccedilatildeo de cada elemento que o compotildee certamente o eacute

Aleacutem de elas estarem orientadas de acordo com o meacutetodo transcendental (tomadas

como funccedilatildeo e natildeo como substacircncia) elas satildeo ldquoreportadasrdquo diz o texto ldquoa um novo

centro intelectualrdquo E esse novo centro intelectual eacute o ponto chave de toda a obra a

concepccedilatildeo de siacutembolo

74

Destarte para seguir o protocolo do meacutetodo transcendental bem como para

expor a noccedilatildeo de forma simboacutelica o mais proacuteximo possiacutevel daquilo que se acredita

ser o caminho intelectual percorrido por Cassirer ndash jaacute que pretendemos apresentar a

sistemaacutetica da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash organizamos a estrutura

expositiva de modo a primeiramente expor os conceitos de siacutembolo e de forma

simboacutelica para entatildeo considerar sua condiccedilatildeo de possibilidade Uma vez cumprida

essa etapa passar-se-aacute agrave exposiccedilatildeo das consequumlecircncias principais da postulaccedilatildeo da

funccedilatildeo simboacutelica como o atributo distintivo da humanidade em geral e

especificamente para a questatildeo do conhecimento Esse caminho nos levaraacute agrave

dialeacutetica das formas simboacutelicas que eacute a proacutepria noccedilatildeo de cultura que aqui estaacute em

questatildeo

Conceito de forma simboacutelica

Conceito de siacutembolo

Natildeo haacute duacutevidas de que o conceito central na filosofia de maturidade de

Cassirer seja o siacutembolo ou as formas simboacutelicas A importacircncia do conceito eacute tal na

obra que o autor vecirc nessa ldquocapacidade humana de simbolizarrdquo a proacutepria essecircncia da

humanidade diferentemente da tradicional definiccedilatildeo proposta por Aristoacuteteles ndash e

que de fato vinga na filosofia desde entatildeo ndash que vecirc a racionalidade como o atributo

humano por excelecircncia Fruto do reducionismo em grande parte ocasionado por

conta da proacutepria filosofia a noccedilatildeo de animal racional natildeo eacute capaz de dar conta de

todas as atividades do espiacuterito humano de tal sorte que inclusive as relegam a

posiccedilotildees hieraacuterquicas inferiores a partir de si como jaacute tratado Daiacute que o autor

75

proponha que o homem seja entatildeo tomado como animal symbolicum em vez de

animal rationale como pode ser lido no Ensaio sobre o Homem

No entanto ainda que seja sua noccedilatildeo capital as referecircncias a essas noccedilotildees

estatildeo dispersas em sua vasta obra sem contudo que se encontre em qualquer

delas uma definiccedilatildeo completa e detalhada ndash acabada por assim dizer ndash daquilo que

exatamente se entende por forma simboacutelica55 e isso inicialmente eacute um empecilho

para o leitor que corre o risco de erroneamente tomar o siacutembolo ndash e em decorrecircncia

a forma simboacutelica ndash meramente como quaisquer objetos tomados em contextos

engendrados por praacuteticas sociais contingentes ou os signos convencionados por

estas mesmas praacuteticas E mais tratar do siacutembolo para o filoacutesofo tampouco tem a ver

com falar simplesmente sobre a sua diferenccedila em relaccedilatildeo a signos ou sinais em face

dos problemas loacutegicos e semacircnticos com os quais outras correntes filosoacuteficas estatildeo

preocupadas Assim antes de prosseguir na anaacutelise das obras faz-se necessaacuterio

aclarar a noccedilatildeo de siacutembolo e de forma simboacutelica

Um ζύμβoλoν tal qual comumente usado na liacutengua grega eacute qualquer

indicador convencional ndash uma palavra por exemplo56 ndash e por essa razatildeo estaria

ligado agrave elaboraccedilatildeo de conjeturas Etimologicamente ζσμβάλλφ [ζσμβάλλειν] quer

dizer ajuntar trazer para buscar57 Literalmente ζσμ-βάλλφ lanccedilar junto ou correr

55

Curiosamente no primeiro volume da obra haacute uma longa introduccedilatildeo cujo primeiro trecho leva o

nome de O conceito da forma simboacutelica e o sistema das formas simboacutelicas no qual o proacuteprio conceito

natildeo eacute explicitamente expresso Claro o leitor percebe que eacute dele que a partir de uma anaacutelise da

evoluccedilatildeo do problema do conhecimento Cassirer propotildee a sistematizaccedilatildeo das atividades humanas

Ainda assim natildeo deixa de ser notaacutevel que nem mesmo num trecho dedicado a isso o conceito seja

claramente definido

56 Cf De Interpretatione II 16a 12

57 Segundo glossaacuterio elaborado por Murachco publicado ao final do segundo volume de Liacutengua

Grega p 636

76

em paralelo58 Eacute plausiacutevel e muito provaacutevel que ao nomear aquele que seria o

conceito capital de sua obra Cassirer tivesse ciecircncia do sentido original do termo

De fato natildeo haacute duacutevidas de que o filoacutesofo possuiacutea conhecimentos suficientes da

liacutengua grega ndash e natildeo apenas dela ndash para pensar o conceito a partir de suas

implicaccedilotildees etimoloacutegicas Disso podemos entatildeo inferir que a escolha do termo de

certo considera a implicaccedilatildeo de uma junccedilatildeo ndash expressa pelo prefixo ζσμ ndash para

aludir agrave atividade sinteacutetica do espiacuterito ndash ζσν-ηίθημι coordenar pocircr junto ndash por meio

da qual se evidencia o comprometimento com a filosofia criacutetica e com a noccedilatildeo de

conhecimento geneacutetico jaacute discutida acima

No capiacutetulo anterior jaacute se falou que o termo siacutembolo ocorre jaacute em Substacircncia

e Funccedilatildeo mas ainda sem o sentido que adquire nas obras seguintes ndash leia-se sem

a ideacuteia de constituir um sistema simboacutelico ndash aleacutem de natildeo ser tratado em detalhe

mas apenas em virtude da necessidade de indicar que a representaccedilatildeo de um

objeto ldquoalcanccedila para aleacutem de sirdquo (SF p 300) Nesse sentido o filoacutesofo apenas

esboccedila certo distanciamento em relaccedilatildeo agrave rigidez estrutural da funccedilatildeo matemaacutetica

de modo a preparar terreno para a investigaccedilatildeo da sensaccedilatildeo e da percepccedilatildeo

Assim a principal caracteriacutestica da noccedilatildeo de siacutembolo que eacute herdada da concepccedilatildeo

de conceito desenvolvida em Substacircncia e Funccedilatildeo eacute seu caraacuteter funcional do

mesmo modo que o conceito na obra anterior agora o siacutembolo natildeo pode ser

tomado como parte do objeto analisado mas sim como uma regra geral de

ordenaccedilatildeo donde se exclui de antematildeo que o siacutembolo tal qual aqui apresentado

tenha qualquer relaccedilatildeo de dependecircncia com uma substacircncia que o torne possiacutevel

Como diz Verene

58

Cf PEIRCE C Semioacutetica e Filosofia p 128

77

ldquoo siacutembolo eacute ao mesmo tempo algo fiacutesico um sopro de vento ou uma marca num

papel e algo espiritual um significado O siacutembolo tambeacutem eacute algo especiacutefico e ao

mesmo tempo transmite um significado universal O siacutembolo eacute aleacutem disso o meio

universal da atividade cultural e ainda o siacutembolo eacute especiacutefico a cada atividade

cultural particular dentro da qual ele tem seu proacuteprio significado O siacutembolo eacute pois

um anaacutelogo ao conceito matemaacutetico de funccedilatildeordquo (VERENE 2008 p 98) 59

De fato o siacutembolo possui uma estrutura dialeacutetica que o faz ao mesmo tempo ser um

particular e remeter a um universal que o transcende Mas tal caracteriacutestica do

siacutembolo natildeo estaacute claramente desenvolvida no texto de 1910

Haacute duas fontes centrais para a noccedilatildeo de siacutembolo tal qual desenvolvida na

Filosofia das Formas Simboacutelicas Heinrich Hertz por um lado e a literatura do

idealismo alematildeo (em especial Herder Schiller Schelling Hegel e Humboldt aleacutem

eacute claro de Goethe) por outro60 A referecircncia a Hertz ocorre jaacute no iniacutecio da Filosofia

das Formas Simboacutelicas61 Laacute o ponto central eacute a definiccedilatildeo do siacutembolo como um

simulacro62 a partir do qual o cientista opera Esses simulacros ou imagens satildeo

necessaacuterios porque para conseguir representar adequadamente o encadeamento

59

No trecho em questatildeo Verene concluiacutea a proposiccedilatildeo do siacutembolo em Cassirer como uma alternativa

entre a ζκύλλα de Kant e a τάρσβδις de Hegel Sobre a influecircncia de Hegel na filosofia das formas

simboacutelicas falaremos em seguida

60 Verene cita outra fonte oriunda da esteacutetica Trata-se de Theodor Vischer que publicou um ensaio

sobre Hegel de nome Das Symbol em 1887 De fato num texto de uma conferecircncia em Warburg em

1921 Cassirer cita Vischer e o referido artigo (p 163) mas natildeo se prolonga em maiores detalhes

61 Cf p 14-16 29 e ss

62 Dentre as acepccedilotildees usuais do termo simulacro remetido ao verbo simular encontramos no

dicionaacuterio ldquoReproduzir ou imitar da forma mais aproximada possiacutevel do real certos aspectos de (uma

situaccedilatildeo ou processo)rdquo Eacute importante ter ciecircncia de que natildeo eacute nesse sentido que o termo eacute usado por

Cassirer primeiramente porque reproduccedilatildeo e imitaccedilatildeo satildeo termos particularmente precisos

justamente aos quais Cassirer pretende contrapor a ideacuteia de siacutembolo como uma construccedilatildeo em

segundo lugar mas ligado ao primeiro porque como veremos o siacutembolo natildeo deve aproximar-se do

real tal como se ele tivesse existecircncia independentemente do siacutembolo que se cria para referi-lo

78

necessaacuterio dos fenocircmenos eacute preciso que o cientista abandone o mundo das

impressotildees sensiacuteveis Destarte o cientista constroacutei conceitos ndash como os de tempo

espaccedilo massa energia ndash ldquono intuito de dominar o mundo da experiecircncia sensiacutevel e

de abarcaacute-lo como um mundo organizado de acordo com determinadas leisrdquo (PSF I

p 30) mas e isso eacute o ponto mais importante natildeo haacute nada que corresponda em

dados sensiacuteveis em experiecircncia direta por assim dizer a esses simulacros natildeo haacute

ambientes sem atrito nem pontos sem magnitude nem retas infinitas ldquoAs imagens

agraves quais nos referimos satildeo nossas representaccedilotildees das coisasrdquo diz Hertz

ldquoelas tecircm uma concordacircncia essencial com as coisas que consiste no cumprimento

da exigecircncia mencionada [possuir as mesmas consequumlecircncias loacutegicas dos objetos aos

quais se referem] mas para que realizem a sua tarefa natildeo eacute necessaacuterio que

possuam nenhuma outra conformidade com as coisas Na realidade natildeo sabemos

tampouco dispomos de meios para tanto se as nossas representaccedilotildees das coisas

tecircm algo em comum com as mesmas aleacutem daquela relaccedilatildeo fundamental acima

referidardquo63

Eacute de vital importacircncia o abandono do mundo imediato das impressotildees para que se

possa falar em siacutembolo Ele natildeo pode estar subjugado a um objeto qualquer que

seja Essa eacute a distinccedilatildeo deveras relevante entre sinal [Zeichen] e siacutembolo [Symbol]

ldquoOs siacutembolos ndash no sentido proacuteprio do termo ndash natildeo podem ser reduzidos a meros

sinais Sinais e siacutembolos pertencem a dois universos diferentes de discurso um sinal

faz parte do mundo fiacutesico do ser um siacutembolo eacute parte do mundo humano do

significado Os sinais satildeo bdquooperadores‟ e os siacutembolos satildeo bdquodesignadores‟ Os sinais

63

Die Prinzipien der Mechanik 1894 p 1 e ss Apud PSF I p 15

79

mesmo quando entendidos e usados como tais tecircm mesmo assim uma espeacutecie de

ser fiacutesico ou substancial os siacutembolos tecircm apenas valor funcionalrdquo (EM p 58)

Aqui com os simulacros desprovidos de submissatildeo a substacircncias criaccedilotildees livres

do espiacuterito fica consolidado o primeiro passo para o siacutembolo

Jaacute no que respeita ao idealismo alematildeo sabe-se que Cassirer antes de

transferir-se para o curso de filosofia foi aluno de literatura64 e mesmo apoacutes a

transferecircncia continuou leitor assiacuteduo do romantismo e classicismo alematildees

sobretudo de Goethe aleacutem de grande apreciador de muacutesica e arte em geral De

fato alguns dos maiores nomes do idealismo alematildeo aparecem consideravelmente

ao longo das obras de Cassirer Humboldt para a linguagem Herder para a

histoacuteria Schelling para o mito entre outros Destarte seria imprudente negar a

influecircncia desse mesmo idealismo para o qual o siacutembolo era uma categoria

recorrente na construccedilatildeo do conceito que empreende Cassirer Daqui deve-se

extrair para o siacutembolo sobretudo a caracteriacutestica de versatilidade De fato essa

capacidade de adaptaccedilatildeo eacute fundamental para que se possa dar conta de registros

tatildeo diversos como o satildeo a arte a religiatildeo o mito e a ciecircncia Eacute por isso que o

filoacutesofo afirma que o siacutembolo eacute um ldquoelemento mediador abrangente no qual todas as

criaccedilotildees espirituais se encontram por mais diferentes que sejamrdquo (PSF I p 32)

ldquoUm siacutembolo eacute natildeo soacute universal mas tambeacutem extremamente variaacutevel Posso

expressar o mesmo sentido em vaacuterias liacutenguas e mesmo nos limites de uma uacutenica

liacutengua certo pensamento ou ideacuteia podem ser expressos em termos totalmente

diversos () Um siacutembolo humano genuiacuteno natildeo eacute caracterizado por sua uniformidade

mas por sua versatilidade Natildeo eacute riacutegido e inflexiacutevel e sim moacutevelrdquo (EM p 65)

64

Cf GAWRONSKY D p 4-5 ou SKIDELSKY E p 71 e ss

80

Assim somadas a etimologia do termo e as influecircncias de Hertz e do idealismo

alematildeo ou seja as noccedilotildees de simulacro e de versatilidade temos que siacutembolo eacute

aquilo que guarda significaccedilotildees para aleacutem de si e que ao ser criado ao mesmo

tempo eacute capaz de expandir indefinidamente seu campo de abrangecircncia mas natildeo do

mesmo modo riacutegido e inflexiacutevel como o faz um conceito da loacutegica O siacutembolo eacute o

resultado da mudanccedila da concepccedilatildeo usual de conceito que tira dele a rigidez que

impotildee a loacutegica e potildee em seu lugar a versatilidade proacutepria agrave accedilatildeo do espiacuterito

conforme veremos

Esboccedilos de definiccedilatildeo da forma simboacutelica

O termo forma simboacutelica65 aparece nas obras de Cassirer apenas nos textos

escritos depois de 1917 e a partir de entatildeo assume pelo menos trecircs acepccedilotildees

distintas poreacutem relacionadas (1) para dar conta daquilo que eacute frequumlentemente

chamado de ldquoconceito de siacutembolordquo [symbol concept] ldquofunccedilatildeo simboacutelicardquo ou

simplesmente ldquosimboacutelicardquo (2) Denotar a variedade de formas culturais que

exemplificam os domiacutenios de aplicaccedilatildeo do conceito de siacutembolo e (3) aplicado ao

tempo espaccedilo nuacutemero etc listados como os domiacutenios constitutivos da

objetividade66

De acordo com Urban (1949 p 404-05) a noccedilatildeo de forma simboacutelica eacute um

alargamento da noccedilatildeo kantiana de forma Em outras palavras a forma simboacutelica

teria o objetivo de substituir as formas puras da intuiccedilatildeo ndash na esteira da superaccedilatildeo

65

Verene chama a atenccedilatildeo para o fato de que o termo foi cunhado pelo proacuteprio Cassirer Cf 2001 p

16 e 2008 p 98

66 Sintetizaccedilatildeo elaborada por Hamburg p 58

81

do dualismo kantiano que caracteriza o neokantismo ndash por outra concepccedilatildeo que de

saiacuteda jaacute se mostrava comprometida com a atividade do sujeito na elaboraccedilatildeo do

conhecimento Levando em consideraccedilatildeo a etimologia do termo siacutembolo temos que

a forma simboacutelica eacute a siacutentese espiritual (que pode variar modalmente como seraacute

visto) imprescindiacutevel para a geraccedilatildeo do conhecimento Por outro lado as diversas

formas simboacutelicas devem constituir um sistema na medida em que elas satildeo

engendradas a partir da atividade simboacutelica ndash em sua constante produccedilatildeo de

significaccedilatildeo ndash e na dialeacutetica que a caracteriza

Eacute jaacute nessa acepccedilatildeo que Cassirer faz menccedilatildeo agrave forma simboacutelica em Zur

Einsteinschen Relativitaumltstheorie de 1921 tal como comprova a citaccedilatildeo destacada

no capiacutetulo anterior agrave seccedilatildeo sobre a teoria da relatividade (paacutegina 58) Nota-se que

laacute a concepccedilatildeo de forma simboacutelica jaacute ganha seus contornos definitivos tanto em

relaccedilatildeo a posicionar-se diferentemente em relaccedilatildeo agrave teoria do conhecimento quanto

na proposta de um sistema por assim dizer intermediaacuterio entre sujeito e objeto e

responsaacutevel pelo ordenamento da realidade muito embora seja igualmente notaacutevel

que o proacuteprio conceito de forma simboacutelica natildeo seja explicitado A independecircncia das

configuraccedilotildees simboacutelicas tambeacutem eacute um importante traccedilo que se verifica nesta obra

ainda que suas consequumlecircncias natildeo sejam desenvolvidas Haacute ainda um sem-nuacutemero

de passagens que de maneira semelhante a esta definem a forma simboacutelica como

um ldquoelemento intermediaacuteriordquo uma ldquofunccedilatildeo mediadorardquo sempre reforccedilando a ideacuteia do

distanciamento em relaccedilatildeo agrave concepccedilatildeo tradicional de conhecimento e de

preservaccedilatildeo do caraacuteter especiacutefico de cada configuraccedilatildeo mas nenhuma delas

82

parece explicar conclusivamente em que sentido esse ldquoelemento intermediaacuteriordquo deve

ser tomado67

Assim para dar conta dos aspectos mais centrais dessa noccedilatildeo recorreremos

a dois exemplos usados pelo autor ndash exemplos estes agrave semelhanccedila da definiccedilatildeo do

siacutembolo tomados de tradiccedilotildees diversas da histoacuteria da filosofia O primeiro destes

exemplos vem do pronunciamento numa conferecircncia apresentada em 1921 em

Warburg onde Cassirer disse

ldquoSob uma bdquoforma simboacutelica‟ deve ser entendida toda a energia do espiacuterito [Energie

des Geistes] atraveacutes da qual um conteuacutedo mental de significado eacute conectado a um

signo concreto sensoacuterio e adere internamente a elerdquo (SFAG p 163)

Aqui o autor estaacute como nota Krois (1987 p 50 e ss) fazendo clara referecircncia ao

idealismo alematildeo rementendo-se por um lado agrave concepccedilatildeo de Energie de

Humboldt e por outro ao Geist de Hegel68 Mas o que significa dizer que as formas

simboacutelicas satildeo as Energie des Geistes Numa seccedilatildeo dedicada a Humboldt no

extenso primeiro capiacutetulo da Filosofia das Formas Simboacutelicas (PSF I p 140-51)

Cassirer lembra que para Humboldt a linguagem jamais pode ser tomada como

67

Com efeito no segundo capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem haacute uma descriccedilatildeo do sistema simboacutelico

que pode dar a entender que se trata de um oacutergatildeo Laacute o filoacutesofo expotildee com certo detalhe a teoria do

bioacutelogo vitalista (e adepto da fenomenologia) Johannes von Uexkuumlll a respeito do que ele chama de

ciacuterculo funcional Trata-se da cooperaccedilatildeo entre os sistemas receptor (atraveacutes do qual o organismo eacute

estimulado exteriormente) e efeituador (atraveacutes do qual reage a esses estiacutemulos) presentes de

diferentes formas em todos os organismos e que devem existir para que estes sobrevivam A estes

dois sistemas para o caso especiacutefico dos humanos Cassirer propotildee um terceiro o simboacutelico Este

seria uma espeacutecie intermediaacuteria de sistema que ldquocondicionariardquo as respostas humanas que natildeo

correspondem entatildeo apenas agrave imediaticidade da preservaccedilatildeo de si mas sim a um sistema contextual

maior e mais complexo

68 O projeto filosoacutefico de Humboldt com efeito eacute tomado por Cassirer como o ldquofio-condutorrdquo

metodoloacutegico para o estudo da linguagem (Cf PSF II p 9)

83

uma obra [Ergon] ou seja acabada concluiacuteda mas deve ser considerada sempre

uma atividade [Energeia]69 um processo pois apesar de natildeo ser uma criaccedilatildeo de um

determinado indiviacuteduo nem tampouco de uma sociedade qualquer ldquoeacute precisamente

na liberdade com que dela se serve que ele [o indiviacuteduo] adquire consciecircncia de um

liame espiritual interiorrdquo (PSF I p 141) Para Humboldt a linguagem natildeo eacute algo que

pertence ao objeto mas sim algo que antes torna a divisatildeo entre sujeito e objeto

possiacutevel de modo que a objetividade da linguagem nunca poderaacute ser tomada como

independente da atividade do sujeito ela natildeo eacute uma reproduccedilatildeo dos objetos da

experiecircncia como se estes fossem jaacute conhecidos Antes ela possibilita a descoberta

desses objetos na medida em que o sujeito descobre a si mesmo

ldquoTal como o conhecimento tampouco a linguagem proveacutem de um objeto como de

algo dado a ser simplesmente reproduzido ao contraacuterio ela encerra uma maneira de

apreender espiritual que constitui um fator decisivo em todas as nossas

representaccedilotildees do objetivordquo (PSF I p 144)

A partir da sistematizaccedilatildeo das concepccedilotildees humboldtianas em trecircs pontos

fundamentais ndash a constituiccedilatildeo do sujeito e do objeto a partir da linguagem o

procedimento geneacutetico em direccedilatildeo agrave estrutura da linguagem entendida como

atividade expressiva do espiacuterito e a prioridade da forma sobre a mateacuteria ndash Cassirer

vecirc a oportunidade de aplicaccedilatildeo dos princiacutepios do meacutetodo transcendental ao campo

linguumliacutestico Mas aleacutem disso dada a citaccedilatildeo da qual se partiu aqui o que Humboldt

69

Segundo Krois essa distinccedilatildeo hoje eacute mais conhecida pelas expressotildees de Saussure langue e

parole ou na terminologia de Chomsky competence e performance (Cf 1987 p 51) Recki (2003)

discute a mesma relaccedilatildeo entre ergon e energeia para dizer que ainda que a linguagem fosse

entendida como ergon isso deveria significar do mesmo modo um produto da atividade espiritual Cf

p 2

84

viu como ponto central de sua concepccedilatildeo de linguagem para Cassirer assume um

papel que pode ser aplicado aos mais diversos domiacutenios da atividade humana

ldquoeste princiacutepio [a Energie des Geistes] natildeo define a bdquoorigem‟ psicoloacutegica da

linguagem e sim a sua forma permanente que age em todas as fases de sua

estruturaccedilatildeo espiritual Esta estruturaccedilatildeo natildeo se assemelha ao simples

desenvolvimento de uma semente natural caracterizando-se ao inveacutes pela

espontaneidade espiritual que se manifesta de maneira nova a cada nova etapardquo

(PSF I p 169-70)

Eacute por conta disso que no primeiro trecho da introduccedilatildeo ao primeiro volume da

Filosofia das Formas Simboacutelicas Cassirer faz uso da mesma expressatildeo ndash Energie

des Geistes ndash remetendo-a a uma ldquoforccedila primeva formadora e natildeo apenas

reprodutora () graccedilas agrave qual a presenccedila pura e simples do fenocircmeno adquire um

determinado bdquosignificado‟ um conteuacutedo ideal peculiarrdquo (PSF I p 19) Eacute nesse

sentido principalmente que uma forma simboacutelica pode ser comparada agrave expressatildeo

humboldtiana

O uso do termo Geist pretende chamar a atenccedilatildeo para o caraacuteter dialeacutetico que

a fenomenologia de Cassirer daacute ao siacutembolo e agrave interaccedilatildeo entre as formas

simboacutelicas Elas natildeo se encontram justapostas e simultaneamente na consciecircncia

nem tampouco em harmonia Elas se aparecem para a consciecircncia a partir de sua

proacutepria atividade70

Outro ponto importante que se faz perceber ainda na mesma definiccedilatildeo eacute que

a forma simboacutelica tem uma estrutura triaacutedica e natildeo diaacutedica como em outras teorias

semioacuteticas Essa diferenccedila eacute importante como marca Krois para fazer jus ao

70

A dialeacutetica das formas simboacutelicas seraacute devidamente exposta mais adiante momento tambeacutem em

que se trataraacute mais detidamente sobre a relaccedilatildeo de Cassirer com Hegel

85

entendimento da significaccedilatildeo como um processo pelo qual o conhecimento eacute

construiacutedo pela atividade formadora do espiacuterito ndash sua Energie Vemos entatildeo que o

(1) ldquoconteuacutedo mental de significadordquo do qual fala o trecho que ora eacute analisado eacute

ligado a um (2) ldquosigno concretordquo por meio (3) da atividade formadora ndash Energie des

Geistes

A segunda fonte para a definiccedilatildeo de forma simboacutelica vem da noccedilatildeo de

ldquocaracteriacutestica universalrdquo de Leibniz De acordo com Cassirer essa noccedilatildeo consistiria

na aplicaccedilatildeo para o campo linguumliacutestico do ideal cartesiano da mathesis universalis a

unidade ideal do saber apesar da diversidade de objetos aos quais se aplica daacute

margem agrave demanda por uma unidade fundamental da linguagem oculta sob a

diversidade das formas linguumliacutesticas

ldquoSe o sistema da aritmeacutetica na sua totalidade pode ser construiacutedo a partir de um

nuacutemero relativamente pequeno de signos numeacutericos deveria tambeacutem ser possiacutevel

designar-se exaustivamente a totalidade dos conteuacutedos intelectuais e sua estrutura

mediante um nuacutemero reduzido de signos linguumliacutesticos se estes forem ligados entre si

por regras universalmente vaacutelidasrdquo (PSF I p 97)

Assim de posse de sua receacutem-criada teoria combinatoacuteria e da anaacutelise algeacutebrica

Leibniz sugere a criaccedilatildeo de um ldquoalfabeto do pensamentordquo por um procedimento

semelhante ao de fatoraccedilatildeo numeacuterica

ldquoA anaacutelise algeacutebrica nos ensina que cada nuacutemero se constroacutei a partir de determinados

elementos originais que eles podem ser decompostos de maneira inequiacutevoca em

bdquofatores primeiros‟ e apresentados como produtos dos mesmos o mesmo eacute vaacutelido

para todo o conteuacutedo do conhecimento em geral Agrave decomposiccedilatildeo em nuacutemeros

primeiros corresponde a decomposiccedilatildeo em ideacuteias primitivas ndash e um dos pensamentos

86

fundamentais da filosofia de Leibniz reside em afirmar que ambas as decomposiccedilotildees

podem e devem realizar-se essencialmente de acordo com o mesmo princiacutepio e

graccedilas a um uacutenico meacutetodo abrangenterdquo (PSF I p 99)

Daqui Cassirer tira dois itens indispensaacuteveis em seu projeto Primeiro o criteacuterio para

a seleccedilatildeo do que poderaacute ser considerada de fato uma forma simboacutelica de modo a

natildeo admitir infinitas formas como seraacute discutido em momento oportuno E segundo

a relaccedilatildeo entre o pensamento e o conjunto de signos Com efeito Leibniz via a

realizaccedilatildeo do projeto da caracteriacutestica como simultacircneo ao ou interdependente do

progresso cientiacutefico Entre a loacutegica das coisas e a loacutegica dos signos haacute uma espeacutecie

de indissociabilidade e determinaccedilatildeo reciacuteproca de tal ordem que ambas soacute podem

ser concebidas em conjunto

ldquoPois o signo natildeo eacute um invoacutelucro fortuito do pensamento e sim seu oacutergatildeo essencial e

necessaacuterio Ele natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado

e rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio

conteuacutedo se desenvolve e adquire a plenitude de seu sentido O ato da determinaccedilatildeo

conceitual realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico Assim

sendo todo pensamento rigoroso e exato somente vem encontrar sustentaccedilatildeo no

simbolismo e na semioacutetica sobre os quais se apoacuteiardquo (Idem p 31)

Mas ndash e aqui estaacute o cerne da interpretaccedilatildeo de Cassirer ndash natildeo haacute razatildeo para que o

mesmo natildeo seja vaacutelido para as demais formas de objetivaccedilatildeo humana

ldquoPara todas elas eacute vaacutelido que somente poderatildeo evidenciar as suas maneiras

peculiares de compreensatildeo e configuraccedilatildeo na medida em que criarem para as

mesmas um determinado substrato sensorial Este substrato eacute tatildeo essencial que ele

87

por vezes parece encerrar todo o conteuacutedo significativo o proacuteprio bdquosentido‟ destas

formasrdquo (Idem ibidem)

Dessa forma aquilo que Leibniz concebeu em relaccedilatildeo agrave ciecircncia e seus

signos Cassirer transforma numa ldquogramaacutetica da funccedilatildeo simboacutelicardquo a qual tem por

objetivo tornar legiacuteveis os conteuacutedos oriundos do mito da arte etc Percebe-se aqui

uma sutil conotaccedilatildeo de ldquoracionalidaderdquo no uso do termo gramaacutetica no ponto em que

ela representa o conjunto de normas da linguagem ndash do λόγος da razatildeo Assim a

linguagem simboacutelica universal se firma como o princiacutepio mais largo de conhecimento

do qual falava o autor no prefaacutecio da obra

Delimitaccedilatildeo das formas simboacutelicas

Uma dificuldade para o que se discutiu ateacute agora eacute delimitar o que pode ser

considerado uma forma simboacutelica uma vez que num primeiro momento natildeo haacute um

nuacutemero limitado de maneiras em que se pode significar algo De fato o que se

define como signo sensoacuterio eacute tudo aquilo que eacute passiacutevel de ser experienciado no

momento mesmo em que o eacute Seria entatildeo plausiacutevel dizer que existem inuacutemeras

formas simboacutelicas ndash tantas quanto satildeo as formas de significar algo E com efeito

essa eacute uma das criacuteticas mais recorrentes agrave concepccedilatildeo de forma simboacutelica

Por conta dessa dificuldade haacute de se considerar um criteacuterio essencial uma

forma simboacutelica deve ser capaz de ser aplicada a qualquer objeto da experiecircncia e

encadeaacute-lo em seu campo significativo

ldquoEacute uma caracteriacutestica comum de todas as formas simboacutelicas que elas satildeo aplicaacuteveis a

qualquer objeto que seja Natildeo haacute nada que seja inacessiacutevel ou impermeaacutevel a elas o

88

caraacuteter particular de um objeto natildeo afeta sua atividade O que pensariacuteamos de uma

filosofia da linguagem da arte ou uma ciecircncia que comeccedilasse por enumerar todas

aquelas coisas que satildeo sujeitos possiacuteveis de discurso e de representaccedilatildeo artiacutestica e

de inquiriccedilatildeo cientiacutefica Aqui natildeo podemos esperar jamais encontrar um limite

definido Natildeo podemos nem ao menos procuraacute-lordquo (MS p 34)

Uma forma simboacutelica eacute um modo de construccedilatildeo de mundo71 Assim o primeiro

criteacuterio para a definiccedilatildeo de uma forma simboacutelica eacute sua aplicabilidade universal a

suficiecircncia para em seus proacuteprios pressupostos organizar os fenocircmenos

sistematicamente (relacionar o particular ao universal e vice-versa) As formas

determinadas que Cassirer elenca72 destarte funcionam como matrizes por assim

dizer de significaccedilatildeo Essas matrizes natildeo satildeo escolhidas a esmo De fato a

justificaccedilatildeo delas no corpo da obra se faz pelo papel preponderante de cada qual

em cada fase especifica do desenvolvimento da consciecircncia ligadas intimamente agraves

suas trecircs funccedilotildees baacutesicas (Ausdrucksfunktion Darstellungsfunktion e

Bedeutungsfunktion) que seratildeo explicadas mais adiante

Outro ponto importante a ressaltar eacute que segundo Cassirer a filosofia ela

mesma natildeo se constitui numa forma simboacutelica em particular Seu caraacuteter distintivo eacute

71

Alusatildeo proposital ao livro de Goodman Ways of World Making (1978) cujo primeiro capiacutetulo se

refere explicitamente agrave obra de Cassirer

72 No primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas essas formas satildeo o mito a religiatildeo a arte

e a ciecircncia Mas jaacute no segundo volume satildeo tambeacutem citadas a economia o direito a teacutecnica e a

histoacuteria embora natildeo sejam discutidas No Ensaio sobre Homem escrito cerca de duas deacutecadas

depois a histoacuteria ganha para si um capiacutetulo independente Haacute ainda um ensaio de 1930 que leva o

nome de Form und Technik no qual a teacutecnica eacute apresentada como a mais influente forma simboacutelica

da contemporaneidade

89

o de poder apreender as diferentes formas como uma totalidade mas mantendo-se

separada para poder assim conservar sua principal caracteriacutestica a criacutetica73

Uma teoria da significaccedilatildeo

Linguagem e Loacutegica

Por tudo o que se discutiu acerca do siacutembolo e da forma simboacutelica uma coisa

aleacutem fica clara a filosofia das formas simboacutelicas natildeo eacute tanto uma nova teoria do

conhecimento quanto uma teoria da significaccedilatildeo Com efeito alguns afirmam

mesmo que o que mais caracteriza a guinada de Cassirer desde suas obras

epistemoloacutegicas eacute justamente a mudanccedila de campo de investigaccedilatildeo 74 Aqui

fazemos uma ressalva a filosofia das formas simboacutelicas eacute uma teoria da

significaccedilatildeo na medida em que essa teoria se faz necessaacuteria como preacircmbulo para

a discussatildeo do conhecimento (em sentido tradicional) embora natildeo se limite a isso

meramente ndash tal como Kant considera a loacutegica o vestiacutebulo das ciecircncias Seguindo

Krois pode-se dizer que ldquoCassirer viu que as questotildees colocadas pela teoria do

conhecimento como criteacuterios de certeza ou verdade requerem uma investigaccedilatildeo

filosoacutefica do fenocircmeno fundamental do significadordquo (1987 p 44) ldquoMais e mais temos

sido forccedilados a reconhecerrdquo diz Cassirer

73

Segundo Verene (2001) essa eacute uma caracteriacutestica da dialeacutetica das formas simboacutelicas que a faz

distinta da dialeacutetica hegeliana Cf p 23

74 Habermas fala em semiotic turn (1997 p 18) Paetzold (2002 p 44) em symbolic turn Em geral

os comentadores de Cassirer traccedilam paralelos entre as formas simboacutelicas e o programa semioacutetico de

Pierce (Cf p ex KROIS 2004) embora ressaltem o fato de que Cassirer natildeo teve contato com sua

obra

90

ldquoque essa aacuterea do significado [Sinn] teoacuterico que designamos pelos nomes de

conhecimento e verdade natildeo importa o quanto significante e fundamental representa

apenas um estrato da significaccedilatildeo [Sinnschicht] Para entendecirc-los para entender sua

estrutura devemos comparar e contrastar esse estrato com outras dimensotildees de

significaccedilatildeo Devemos em outras palavras conceber o problema do conhecimento e

o problema da verdade como casos particulares do problema mais geral da

significaccedilatildeo [als Sonderfaumllle des allgemeinen Bedeutungsproblems]rdquo (EGLD p 34)

Isso explica a razatildeo pela qual a discussatildeo da linguagem em Cassirer diverge

profundamente daquelas de Frege ou do Ciacuterculo de Viena que notadamente

entendem o λόγος em sua acepccedilatildeo mais estreita por um lado e por outro

preocupam-se apenas com uma das dimensotildees de significaccedilatildeo notadamente

voltada agrave questatildeo dos valores de verdade75

Num certo sentido a discordacircncia entre as duas tendecircncias parece se

evidenciar no papel da linguagem como mediadora para o conhecimento (e esse

parece ser um dos motivos que levaram Cassirer a estruturar sua obra a partir da

questatildeo da linguagem muito embora seja equivocado dizer que a discussatildeo de

Cassirer sobre a significaccedilatildeo se restrinja agrave anaacutelise de linguagens) Eacute como se por

75

Para fazer justiccedila ao Ciacuterculo de Viena vale dizer que Carnap admite a existecircncia de funccedilotildees natildeo-

cognitivas da linguagem que ele chama genericamente de ldquofunccedilatildeo expressivardquo (a acepccedilatildeo do termo

eacute radicalmente distinta daquela que Cassirer faraacute da funccedilatildeo expressiva da consciecircncia) Nessa

funccedilatildeo Carnap insere desde interjeiccedilotildees ateacute poemas liacutericos passando tambeacutem pelas sentenccedilas

metafiacutesicas Todos esses usos da linguagem tecircm em comum o fato de serem expressivos apenas

ao passo que carecem de sentido ou seja natildeo satildeo representaccedilotildees de estados de coisas natildeo podem

ser articulados em termos de verdade ou falsidade ldquoO sentido de nossa tese antimetafiacutesica pode ser

agora mais claramente explicado Essa tese afirma que proposiccedilotildees metafiacutesicas ndash como versos liacutericos

ndash soacute possuem uma funccedilatildeo expressiva mas nenhuma representativa Proposiccedilotildees metafiacutesicas natildeo

satildeo verdadeiras ou falsas porque elas natildeo afirmam nada nem contecircm conhecimento ou erro elas se

encontram completamente fora do campo do conhecimento da teoria fora da discussatildeo sobre

verdade ou falsidade Mas elas satildeo como o riso o liacuterico e a muacutesica expressivasrdquo (CARNAP 1935 p

29)

91

meio da formalizaccedilatildeo da linguagem fosse possiacutevel anular a dimensatildeo subjetiva da

significaccedilatildeo e por meio dos instrumentos oferecidos pela loacutegica simboacutelica criar uma

linguagem que ultrapasse a mediaccedilatildeo que caracteriza a linguagem convencional e

tenha destarte valor puramente objetivo ndash partindo do pressuposto da existecircncia de

uma razatildeo universal e uniacutevoca Assim podemos dizer que do ponto de vista do

projeto das formas simboacutelicas o que o Ciacuterculo de Viena pretende no que concerne agrave

formalizaccedilatildeo loacutegica da linguagem eacute possibilitar a anulaccedilatildeo superaccedilatildeo da mediaccedilatildeo

(subjetiva) que eacute marca do fenocircmeno linguumliacutestico no exato sentido em que toma a

loacutegica como instacircncia capaz de ldquodizerrdquo a verdade de modo estritamente objetivo76

Tudo o que aqui se falou sobre a significaccedilatildeo enquanto uma ldquocapacidaderdquo proacutepria agrave

humanidade receberia uma interpretaccedilatildeo totalmente diversa na filosofia analiacutetica

toda a significaccedilatildeo de que fala deve ser articulada em termos de possibilidade de

verificaccedilatildeo ndash valor de verdade77 Disso podem-se esperar certas implicaccedilotildees em

relaccedilatildeo agraves Geisteswissenschaften Segundo Apel a filosofia analiacutetica considera que

a ldquouacutenica meta legiacutetima em relaccedilatildeo ao conhecimento do homem e sua cultura seja a

de dar explicaccedilotildees em termos de leis da natureza e se possiacutevel formalizadas

matematicamenterdquo (1994 p 2)78 Do ponto de vista de toda a tradiccedilatildeo neokantiana

como jaacute tratado aqui este foi justamente o ponto chave de questionamento em

76

Eacute claro que o que aqui dizemos muda de perspectiva radicalmente com o surgimento do Tractatus

Implicaccedilotildees disso seratildeo assunto do proacuteximo capiacutetulo

77 Aqui se segue o raciociacutenio proposto por Karl-Otto Apel em Towards a Transcendental Semiotics

(1994) Laacute o autor diz ldquoA filosofia analiacutetica eacute reconhecida como aquela que reconhece como

bdquocientiacuteficos‟ somente os meacutetodos da ciecircncia natural no sentido mais largo do termo na medida em

que elas explicam objetivamente os phenomena em questatildeo por referecircncia a leis causais Essa

filosofia vecirc como sua meta principal a justificaccedilatildeo desse conhecimento objetivo e sua separaccedilatildeo de

qualquer tipo de Weltanschauung ou seja teologia metafiacutesica ou alguma ciecircncia normativardquo (p 1)

78 Ao usar o termo explicaccedilotildees Apel estaacute fazendo referecircncia agrave distinccedilatildeo proposta por Dilthey que

tomava explicaccedilatildeo [Erklaumlrung] como uma categoria para as ciecircncias naturais e entendimento

[Verstaumlndnis] como uma categoria para as ciecircncias do espiacuterito

92

relaccedilatildeo ao positivismo Agora a histoacuteria parece se repetir em relaccedilatildeo agrave filosofia

analiacutetica De fato parece natildeo restar duacutevidas disso quando lemos em Carnap que

ldquoAssim como natildeo haacute filosofia da natureza mas somente uma filosofia da ciecircncia

natural do mesmo modo natildeo haacute uma filosofia especial da vida ou do mundo orgacircnico

mas somente a filosofia da biologia natildeo haacute filosofia da mente ou filosofia do mundo

psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia e finalmente natildeo haacute uma filosofia

da histoacuteria ou filosofia da sociedade mas somente uma filosofia da ciecircncia histoacuterica e

social sempre lembrando que a filosofia de uma ciecircncia eacute a anaacutelise sintaacutetica da

linguagem dessa ciecircnciardquo (1935 p 88)

O renascimento da concepccedilatildeo grega de conhecimento que Cassirer vecirc como

o meio de contornar a crise da razatildeo aparece aqui novamente Ainda que a

dimensatildeo moral dessa crise seja aparente nos textos de Cassirer ela natildeo se efetiva

como uma mera ideologia mas como uma perspectiva de unidade feita em nome da

ciecircncia O mesmo vale para a anaacutelise da linguagem como caso especial ndash e

privilegiado ndash da crise da razatildeo como crise da proacutepria epistemologia De fato o

primeiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas lido por este acircngulo parece

estar em iacutentima conexatildeo com essas questotildees Essa tese sabemos natildeo se sustenta

em termos histoacutericos se relacionada diretamente agrave produccedilatildeo intelectual do Ciacuterculo

de Viena Contudo se entendida independentemente da filosofia analiacutetica pode-se

sustentar facilmente que as limitaccedilotildees das quais Cassirer trata no prefaacutecio da

Filosofia das Formas Simboacutelicas se referem a este problema no sentido da

linguagem Dessa forma a extensa anaacutelise histoacuterica dos problemas da linguagem na

93

filosofia79 ndash da qual em parte jaacute se tratou aqui ndash visa mostrar quais os caminhos que

percorreu a razatildeo em seu progresso e de que forma essa progressatildeo se determinou

em estreita ligaccedilatildeo com o significado da linguagem bem como da proacutepria

significaccedilatildeo obtida atraveacutes da mesma para poder concluir que a linguagem

sobrepuja essa identificaccedilatildeo com a linguagem racional ndash de fato natildeo satildeo domiacutenios

idecircnticos ndash e jamais uma formalizaccedilatildeo da linguagem em termos loacutegicos seraacute

suficiente para dar conta de todos os aspectos da linguagem em seu sentido mais

amplo como uma forma simboacutelica80 O iniacutecio da exposiccedilatildeo de Cassirer eacute um esforccedilo

de reconstruccedilatildeo da identificaccedilatildeo histoacuterica entre razatildeo e linguagem que decorre da

assimilaccedilatildeo de ambos ao conceito grego de λόγος Assim Cassirer propotildee um

retorno ao momento em que ser e linguagem ainda eram indiferenciados ldquoPara este

primeiro niacutevel de reflexatildeordquo diz o autor

ldquoo ser e a significaccedilatildeo das palavras tal como a natureza das coisas ou a natureza

imediata de suas impressotildees sensiacuteveis natildeo remontam a uma livre atividade do

espiacuterito A palavra natildeo eacute uma designaccedilatildeo e denominaccedilatildeo natildeo eacute tampouco um

siacutembolo espiritual do ser e sim uma parte real do mesmordquo (PSF I p 80)

Trata-se aqui da concepccedilatildeo miacutetica de mundo caracterizada basicamente pela

inserccedilatildeo de todas as coisas numa mesma causalidade ldquomaacutegicardquo e por certa

79

As explicaccedilotildees de Cassirer via de regra satildeo apresentadas de uma perspectiva histoacuterica De fato

este eacute um dos motivos que levam ndash erroneamente ndash muitos leitores a considerar Cassirer um mero

historiador da filosofia Mas eacute preciso que se diga que a caracteriacutestica de sua exposiccedilatildeo natildeo

representa de forma alguma uma mera reproduccedilatildeo das principais ideacuteias filosoacuteficas sobre dados

temas Muito mais do que isso trata-se de apontar os desdobramentos gerados por um progresso

constante do espiacuterito filosoacutefico ndash a ldquofenomenologia do espiacuterito filosoacuteficordquo de que fala Verene (2001 p

23 e ss) ndash o qual eacute apresentado como uma reconstruccedilatildeo e natildeo como reproduccedilatildeo

80 As razotildees disso ficaratildeo mais claras quando da exposiccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas

94

ldquoindiferenciaccedilatildeordquo ou inexistecircncia de fronteiras ateacute mesmo entre o indiviacuteduo e o meio

em que vive Para esta primeva concepccedilatildeo de mundo o ser da palavra e o ser da

coisa respondem agrave mesma causalidade de modo que a manipulaccedilatildeo do nome de

algo num dado ritual eacute vista como capaz de produzir efeitos na proacutepria coisa Essa

ideacuteia segundo a qual o mundo das coisas e o dos nomes constituem uma mesma

realidade e participam de uma mesma causalidade parece estar presente ainda em

Heraacuteclito para quem o λόγος sobre o qual a unidade do ser se fundamenta torna-

se o ldquocondutor do universordquo ndash pela primeira vez surge o princiacutepio de uma regra

universal independente dos joguetes demoniacuteacos e divinos do mito capaz de unir

todas as realidades e todos os acontecimentos particulares e indicar suas medidas

fixas e imutaacuteveis (Idem p 83) A linguagem em Heraacuteclito eacute uma espeacutecie de

totalidade na qual as determinaccedilotildees se datildeo somente dentro dessa totalidade onde

cada significaccedilatildeo se liga ao seu contraacuterio e somente essa relaccedilatildeo de contraacuterios eacute

capaz de expressar o ser

ldquoA siacutentese espiritual a uniatildeo que se realiza na palavra assemelha-se agrave harmonia do

cosmos e assim se expressa na medida em que constitui uma bdquoharmonia de tensotildees

opostas‟ () Assim como Heraacuteclito coloca o objeto isolado na corrente contiacutenua do

devenir onde eacute destruiacutedo e preservado simultaneamente da mesma maneira deve

comportar-se a palavra isolada em relaccedilatildeo ao todo do bdquodiscurso‟rdquo (Idem p 84-5)

Em Platatildeo somente eacute que a pergunta sobre o ser deixa de ser dirigida a sua origem

e natureza para ser dirigida ao conceito e seu significado expressos pelo ηί ἔζηι de

Soacutecrates Aqui pela primeira vez a linguagem eacute tomada como a exposiccedilatildeo de uma

significaccedilatildeo que se efetiva atraveacutes do uso de signos sensiacuteveis os quais satildeo por si

mesmos insuficientes para o pleno conhecimento [ἐπιζηήμη]

95

ldquoA linguagem eacute reconhecida como primeiro ponto de partida do conhecimento mas

como nada mais aleacutem disso Sua existecircncia eacute ainda mais efecircmera e imutaacutevel do que

a da representaccedilatildeo sensiacutevel a forma foneacutetica da palavra ou da oraccedilatildeo construiacuteda

pelo ὀνόμαηα e pelo ῥήμαηα capta ainda menos o conteuacutedo proacuteprio da ideacuteia do que o

modelo ou a coacutepia sensiacuteveisrdquo (Idem p 91)

Agora por serem parte do mundo do devir tanto o nome [ὄνομα] quanto a definiccedilatildeo

linguumliacutestica [λόγος] quanto a imagem [εἴδφλον] dos objetos natildeo seratildeo suficientes

para o conhecimento efetivo deste objeto ndash que se daacute pelo conceito [λόγος] ndash

embora constituam seus estaacutegios primaacuterios ndash dado a noccedilatildeo platocircnica de

participaccedilatildeo que conteacutem ao mesmo tempo a identificaccedilatildeo e a natildeo-identificaccedilatildeo

Assim ainda que a ideacuteia natildeo se limite ao objeto representado nem derive dele ela

soacute pode ser apreendida por meio dessa representaccedilatildeo

ldquoNo mesmo sentido para Platatildeo o conteuacutedo fiacutesico sensiacutevel da palavra torna-se

portador de uma significaccedilatildeo ideal que poreacutem como tal natildeo podendo ser encerrada

nos limites da linguagem se manteacutem fora desses limites Linguagem e palavras

aspiram agrave expressatildeo do ser puro mas jamais a alcanccedilam por que nelas a

designaccedilatildeo deste Ser puro sempre se mescla agrave designaccedilatildeo de um outro de uma

bdquoqualidade‟ fortuita do objetordquo (Idem p 93)

Estas duas acepccedilotildees de λόγος tendem a desaparecer nas sistematizaccedilotildees loacutegicas

jaacute com Aristoacuteteles ldquoemborardquo lembre Cassirer

ldquosem duacutevida seja um exagero afirmar que Aristoacuteteles extraiu da linguagem as

distinccedilotildees fundamentais em que se baseiam as suas teorias loacutegicas Mas eacute bem

96

verdade que jaacute a designaccedilatildeo de bdquocategorias‟ indica quatildeo estreito eacute em Aristoacuteteles o

contato entre a anaacutelise das formas loacutegicas e a anaacutelise das formas linguumliacutesticas As

categorias representam as relaccedilotildees mais universais do ser que como tais significam

simultaneamente os gecircneros supremos da fala [] Assim de fato a estruturaccedilatildeo da

oraccedilatildeo e a sua divisatildeo em unidades e classes de palavras parecem ter servido de

modelo a Aristoacuteteles na elaboraccedilatildeo do seu sistema de categorias Na categoria da

substacircncia ainda aparece a significaccedilatildeo gramatical do bdquosubstantivo‟ na quantidade e

qualidade no bdquoquando‟ e no bdquoonde‟ percebe-se a significaccedilatildeo do adjetivo e dos

adveacuterbios de tempo e lugar ndash e particularmente as quatro uacuteltimas categorias o ποιεῖν

o πάζτειν o ἔτειν e o κεῖζθαι somente se tornam completamente compreensiacuteveis

quando as relacionamos com determinadas distinccedilotildees fundamentais que existem na

liacutengua grega entre o verbo e a accedilatildeo verbalrdquo (Idem p 93-4)81

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento da linguagem ainda continua

no mesmo capiacutetulo ateacute encerrar-se no surgimento da linguumliacutestica e do foco de

atenccedilatildeo aos problemas foneacuteticos Para nossos propoacutesitos entretanto importante era

indicar no conceito grego de logos a assimilaccedilatildeo entre linguagem e loacutegica ndash ainda

que tal assimilaccedilatildeo natildeo seja perfeita ndash pois parece-nos eacute dessa confusatildeo entre os

domiacutenios de uma e outra que se daacute a reduccedilatildeo da investigaccedilatildeo da linguagem aos

seus problemas loacutegicos82 Em uacuteltima anaacutelise a linguagem como veiacuteculo para a

81

Haacute uma declaraccedilatildeo semelhante a essa num artigo intitulado The Influence of Language upon the

Development of Scientific Thought de 1942 ldquoEle [Aristoacuteteles] se esforccedila por dar uma classificaccedilatildeo

loacutegica completa dos fatos da natureza E para esta tarefa principal Aristoacuteteles refere-se e apela para

aquelas classificaccedilotildees que antes do iniacutecio de uma ciecircncia empiacuterica da natureza foram feitas pela

linguagem A liacutengua natildeo eacute possiacutevel sem o uso de nomes gerais e estes nomes natildeo satildeo apenas sinais

arbitraacuterios convencionais Eles devem ser a expressatildeo de diferenccedilas objetivas Eles correspondem a

diferentes classes e diferentes propriedades das coisas Aristoacuteteles aceita este ponto de vista geral

para ele as palavras da linguagem tecircm natildeo apenas um significado verbal mas sim ontoloacutegicordquo (p

312)

82 Novamente cabe chamar a atenccedilatildeo ao papel central da obra de Wittgenstein e do impacto que ela

causa no Ciacuterculo de Viena Sabemos que a concepccedilatildeo de significaccedilatildeo assumida por Carnap eacute

97

comunicaccedilatildeo de significaccedilotildees de tantos domiacutenios diferentes da atividade espiritual ndash

vaacuterios deles claramente pertencentes agraves ciecircncias do espiacuterito ndash passa a ser analisada

quase que exclusivamente por procedimentos proacuteprios agraves ciecircncias (matemaacuteticas) da

natureza Assim eis que nos encontramos em situaccedilatildeo anaacuteloga agravequela do ponto de

surgimento do neokantismo como contestaccedilatildeo do positivismo em sua aplicaccedilatildeo agraves

ciecircncias do espiacuterito

Linguagem e verificaccedilatildeo

Se em Substacircncia e Funccedilatildeo a criacutetica agrave loacutegica estava ligada agrave formaccedilatildeo do

conceito na perspectiva da Filosofia das Formas Simboacutelicas a criacutetica eacute feita a partir

de um vieacutes puramente linguumliacutestico do fenocircmeno linguumliacutestico e de seu essencial caraacuteter

enquanto mediaccedilatildeo A anaacutelise da forma linguumliacutestica eacute feita em detrimento do

conteuacutedo dos conceitos e de seu processo de formaccedilatildeo enquanto construccedilatildeo

expressiva espiritual que eacute justamente o campo em que ela deveria ser discutida

Aqui haacute outro traccedilo marcante da perspectiva humboldtiana Para ele agrave diferenccedila de

idiomas corresponde a diferenccedila de modos que a imagem do objeto afetou o espiacuterito

ndash motivo pelo qual natildeo existem propriamente sinocircnimos entre liacutenguas diferentes83

Natildeo bastaria portanto dar a todas as liacutenguas uma descriccedilatildeo abstrata de sua forma

caudataacuteria daquela de Wittgenstein que restringe a significaccedilatildeo ao acircmbito linguumliacutestico e em certo

sentido somente agravequilo que Carnap chamaraacute de ldquofunccedilatildeo representativardquo da linguagem ndash de fato

ainda que este admitisse a existecircncia de outros registros linguumliacutesticos (natildeo-cognitivos) ainda assim haacute

de se admitir que o foco das investigaccedilotildees do Empirismo Loacutegico se concentrava na funccedilatildeo

representativa nos valores de verdade das proposiccedilotildees De todo modo para Cassirer natildeo

considerar ou mesmo tomar separadas as dimensotildees emotivas miacutetico-religiosas e artiacutesticas implica

tomar um cadaacutever mutilado em lugar de um corpo vivo (Cf PSF I p 22 ou SM p 20-1)

83 Cassirer aponta o exemplo da lua que em grego significa ldquoaquela que mederdquo [μήν] e em latim

ldquoaquela que brilhardquo [luna luc-na] (PSF I p 357 ou EM p 221)

98

Seria necessaacuterio que com tanto afinco quanto fossem investigadas as

particularidades das liacutenguas individuais pois que na dimensatildeo pragmaacutetica na accedilatildeo

humana coletiva eacute que os significados satildeo estabelecidos Somente a partir dessa

tarefa que de saiacuteda jaacute se mostra irrealizaacutevel pois que a linguagem natildeo eacute um ergon

mas estaacute sempre sujeita a produccedilatildeo de novas significaccedilotildees radicalmente diversas

das atuais ndash daiacute a efemeridade da linguagem da qual Platatildeo apontava o problema ndash

seria possiacutevel a univocidade estrita e definitiva em relaccedilatildeo agrave objetividade do

significado Natildeo obstante a impossibilidade de analisar a subjetividade especiacutefica de

cada idioma ainda assim a filosofia deve dar conta da ldquosubjetividade geneacuterica da

linguagemrdquo ie da caracteriacutestica geral de formaccedilatildeo dos conceitos na linguagem

enquanto atividade da consciecircncia com vistas agrave objetivaccedilatildeo ldquograccedilas agrave qual ela

ocupa posiccedilatildeo saliente no universo das formas do espiacuterito e atraveacutes da qual em

parte se une e em parte se resguarda da universalidade do conhecimento cientiacutefico

da arte e do mitordquo (PSF I p 358) Portanto nota-se que a investigaccedilatildeo da linguagem

natildeo deve aqui ser sinocircnima de investigaccedilatildeo loacutegica nem meramente reduzida agrave

anaacutelise semacircntica

ldquoA formaccedilatildeo de conceitos na linguagem distingue-se antes de mais nada do modo

loacutegico em sentido mais estrito da formaccedilatildeo conceitual pelo fato de para ela jamais

ser essencial a verificaccedilatildeo e comparaccedilatildeo dos conteuacutedos mas que a forma pura da

bdquoreflexatildeo‟ aparece aqui entremeada de motivos determinados e dinacircmicos ndash e que ela

natildeo recebe seus impulsos essenciais soacute do mundo do ser mas sempre tambeacutem do

mundo do agir Os conceitos linguumliacutesticos situam-se todos na divisa entre accedilatildeo e

reflexatildeo entre o fazer e o contemplar Natildeo existe aqui um mero classificar e ordenar

noccedilotildees de acordo com determinados sinais objetivos mas sempre se exprime

99

justamente atraveacutes dessa captaccedilatildeo objetiva ao mesmo tempo um interesse ativo no

mundo e na sua constituiccedilatildeordquo (Idem ibidem) 84

Em outras palavras a linguagem eacute uma Energie des Geistes e deveraacute ser entendida

enquanto tal Natildeo bastaria reduzir a linguagem e seus conceitos a valores de

verdade pois que isso negligenciaria justamente seu caraacuteter essencial Ao mesmo

tempo ignorar seu caraacuteter como construccedilatildeo espiritual torna temeraacuterio tentar inferir a

partir da linguagem qualquer conhecimento imediato sobre a realidade como

parecem fazer os filoacutesofos analiacuteticos

ldquoA fala humana deve cumprir natildeo apenas uma tarefa loacutegica universal mas tambeacutem

uma tarefa social que depende das condiccedilotildees sociais especiacuteficas da comunidade

falante Logo natildeo podemos esperar uma verdadeira identidade uma

correspondecircncia um-a-um entre as formas gramaticais e as loacutegicas Uma anaacutelise

empiacuterica e descritiva das formas gramaticais propotildee a si mesma uma tarefa diferente

e leva a outros resultados que a anaacutelise estrutural que eacute feita por exemplo na obra

de Carnap sobre a sintaxe da loacutegica da linguagem Logical Syntax of Languagerdquo (EM

p 210-11)

Com efeito o que aqui foi dito acerca da linguagem pode e deve ser

considerado para todas as demais esferas da accedilatildeo humana Seria errocircneo pensar

que a teoria de Cassirer se limita simplesmente ao campo linguumliacutestico A filosofia das

formas simboacutelicas eacute uma teoria da significaccedilatildeo em seu sentido mais amplo e para

todos os domiacutenios aos quais se volta o princiacutepio do siacutembolo como elemento de

mediaccedilatildeo eacute igualmente vaacutelido Aliaacutes Cassirer parece ter isso claro em seus

84

Como seraacute tratado em momento oportuno a dimensatildeo da praacutetica eacute a uacutenica possiacutevel para uma

filosofia da cultura

100

objetivos tanto eacute que natildeo se trata o problema da realidade como algo verificaacutevel

mas sempre como uma construccedilatildeo

ldquoEacute verdade que com essa concepccedilatildeo criacutetica a ciecircncia renuncia agrave esperanccedila e agrave

pretensatildeo de apreender e reproduzir de maneira bdquoimediata‟ a realidade Ela

compreende que todas as objetivaccedilotildees de que eacute capaz natildeo passam com efeito de

mediaccedilotildees e jamais seratildeo mais do que issordquo (PSF I p 16)

A anteposiccedilatildeo de um sistema de significaccedilatildeo pode parecer agrave primeira vista nada

aleacutem da revoluccedilatildeo copernicana empreendida por Kant E com efeito isso

significaria que a filosofia das formas simboacutelicas natildeo passa de uma aplicaccedilatildeo dos

postulados kantianos a outros domiacutenios ndash o proacuteprio Cassirer parece corroborar essa

ideacuteia na medida em que expotildee o percurso que o trouxe agraves formas simboacutelicas por

meio de analogias com o projeto kantiano (e com a doutrina de Marburgo

igualmente) ldquoA filosofia das formas simboacutelicas adota esse pensamento criacutetico

fundamental esse princiacutepio em que se baseia a bdquorevoluccedilatildeo copernicana‟ de Kant

com vistas a ampliaacute-lordquo (PSF II p 61) Mas eacute difiacutecil dizer que a Filosofia das Formas

Simboacutelicas eacute uma obra neokantiana principalmente quando analisada do ponto de

vista de seus resultados conforme seratildeo expostos no capiacutetulo seguinte Por ora

resta ressaltar que a filosofia das formas simboacutelicas sendo uma teoria da

significaccedilatildeo em seu mais amplo sentido natildeo seria possiacutevel dentro do esquematismo

de Kant85 e se em sua concepccedilatildeo geral ela obedece aos postulados gerais da

85

Paetzold (2002) aponta quatro pontos principais que fazem da obra de Cassirer algo que supera a

mera relaccedilatildeo com a filosofia de Kant (1) a pluralizaccedilatildeo da siacutentese transcendental da apercepccedilatildeo

para abranger a linguagem a ciecircncia a lei a poliacutetica tecnologia mito religiatildeo moralidade arte e

histoacuteria (2) substituiccedilatildeo da dicotomia entre intuiccedilotildees e conceitos respectivamente por sensibilidade e

significaccedilatildeo (Os conceitos continuam valendo para a forma da ciecircncia mas ela natildeo eacute mais tomada

101

filosofia criacutetica ao mesmo tempo ela necessita esclarecer os equiacutevocos da

formulaccedilatildeo kantiana e buscar sua fundamentaccedilatildeo natildeo apenas no solo da razatildeo e da

ciecircncia

Pregnacircncia Simboacutelica

Assim exposta a definiccedilatildeo de forma simboacutelica como proposta de antepor agrave

teoria do conhecimento uma teoria da significaccedilatildeo passaremos entatildeo agrave investigaccedilatildeo

das condiccedilotildees de possibilidade dessa teoria de acordo com os protocolos do

meacutetodo transcendental Agora deveraacute ser investigada a unidade sistemaacutetica de

todas as Energie des Geistes condiccedilatildeo sine qua non para a elaboraccedilatildeo de uma

filosofia da cultura

A mais bem acabada explicaccedilatildeo de Cassirer para esta unidade sistemaacutetica eacute

dada num capiacutetulo do terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Fenomenologia do Conhecimento Laacute agrave luz da nascente psicologia da Gestalt o

filoacutesofo elabora sua concepccedilatildeo de pregnacircncia simboacutelica [symbolischen Praumlgnanz] a

partir da qual ficam mais claros os pressupostos do meacutetodo transcendental na teoria

das formas simboacutelicas

ldquoPor pregnacircncia simboacutelica entendemos o modo [die Art] no qual uma percepccedilatildeo como

uma experiecircncia bdquosensoacuteria‟ [bdquosinnliches‟ Erlebnis] conteacutem ao mesmo tempo um certo

bdquosignificado‟ [Sinn] natildeo intuitivo o qual ela imediatamente e concretamente representa

Aqui natildeo estamos lidando com data perceptivos nus sobre os quais algum tipo de ato

como a instacircncia fundacional da cultura) (3) des-substancializaccedilatildeo do esquema para distinguir entre

categorias e intuiccedilotildees eles tecircm apenas um sentido funcional As categorias e intuiccedilotildees ganham um

contorno modal de acordo com cada forma e (4) ampliaccedilatildeo da revoluccedilatildeo copernicana para aleacutem do

campo cientiacutefico (p 48 49)

102

aperceptivo eacute posteriormente enxertado atraveacutes do qual eles satildeo interpretados

julgados transformados Antes eacute a proacutepria percepccedilatildeo que em virtude de sua

organizaccedilatildeo imanente assume um tipo de articulaccedilatildeo espiritual ndash que sendo

ordenada em si mesma ao mesmo tempo pertence a uma determinada ordem de

significaccedilatildeordquo (PSF III p 202)86

De acordo com a psicologia da Gestalt para a qual a compreensatildeo do todo eacute

anterior agrave das partes pregnacircncia (fertilidade cunhar forjar dar um contorno niacutetido

abastecer boa forma) eacute o princiacutepio de acordo com o qual o ato perceptivo tende

naturalmente agraves formas mais simples e harmocircnicas87 Cassirer se vale do mesmo

princiacutepio para fundamentar a ideacuteia de que natildeo haacute separaccedilatildeo entre o ato perceptivo e

o representativo 88 toda percepccedilatildeo implica simultaneamente em atribuiccedilatildeo de

significado Em outras palavras a significaccedilatildeo estaacute imanente agrave percepccedilatildeo de tal

sorte que a sensaccedilatildeo e a significaccedilatildeo natildeo satildeo dois momentos distintos e por assim

dizer separaacuteveis natildeo haacute sensaccedilatildeo sem simultacircnea significaccedilatildeo Todo fenocircmeno

entatildeo eacute relacionado imediatamente a um entre vaacuterios complexos (simboacutelicos) de

significaccedilatildeo que se relacionam sistematicamente e em seu todo constituem a

totalidade da experiecircncia

ldquoDesignamos como pregnacircncia a relaccedilatildeo em consequumlecircncia da qual o sensoacuterio

assume um significado e o representa imediatamente para a consciecircncia a

86

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que a definiccedilatildeo de pregnacircncia evidencia a estrutura triaacutedica

a experiecircncia sensiacutevel o significado e o modo que o primeiro conteacutem o uacuteltimo Cf 1987 p 54

87 Vale tambeacutem destacar que a psicologia da Gestalt tomava como um de seus postulados centrais a

ideacuteia de que o todo natildeo eacute apreendido por suas partes pois que a uniatildeo de determinados elementos

ldquogerardquo algo aleacutem deles mesmos Aqui Cassirer tambeacutem enxerga a aprioridade do espiacuterito na

configuraccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis

88 Natildeo confundir o que aqui chamamos de ato representativo que usamos em sentido largo com a

funccedilatildeo representativa da consciecircncia da qual falaremos em seguida

103

pregnacircncia natildeo pode ser reduzida a meros processos reprodutivos nem a processos

intelectualmente mediados ndash deve em uacuteltima instacircncia ser reconhecido como uma

determinaccedilatildeo independente e autocircnoma sem a qual nem objeto nem sujeito nem a

unidade da coisa nem a unidade do eu seriam dadas a noacutesrdquo (PSF III p 235)

Convencionalismo e significaccedilatildeo

Haacute trecircs funccedilotildees baacutesicas da pregnacircncia simboacutelica na estruturaccedilatildeo da obra (1)

dar uma alternativa ao impasse entre a linguagem natural e a artificialidade dos

siacutembolos (2) refutar o sensacionismo da percepccedilatildeo e (3) eliminar o subjetivismo

residual da proposta fenomenoloacutegica de Husserl No primeiro caso Cassirer

concorda com o caraacuteter convencional dos signos [Zeichen] que constituem a

linguagem natural ndash natildeo se discute portanto se os signos linguumliacutesticos as palavras

de alguma forma ldquodizemrdquo as coisas como que por mimesis 89 Entretanto a

afirmaccedilatildeo da convencionalidade dos signos se aplicada agrave proacutepria linguagem leva a

um impasse como admitir uma convenccedilatildeo ndash um acordo ou contrato ndash que anteceda

a proacutepria linguagem uma vez que ela soacute pode ser celebrada por meio da proacutepria

linguagem

89

Na verdade com outras finalidades e em outro lugar Cassirer discute a questatildeo da mimesis e de

outras formas primitivas de linguagem O segundo capiacutetulo da PSF I eacute dedicado a analisar esses

ldquoestaacutegiosrdquo da linguagem em sua correlaccedilatildeo com os signos que a representam Esquematicamente o

filoacutesofo fala de trecircs estaacutegios mimeacutetico analoacutegico e simboacutelico Eacute possiacutevel traccedilar paralelos aqui com a

obra de Foucault Les Mots et Les Choses sobretudo pela caracteriacutestica genealoacutegica que o livro

possui Entretanto a proposta de Cassirer natildeo se limita agrave anaacutelise de um determinado recorte

histoacuterico aleacutem do que no caso especiacutefico da PSF o autor natildeo estaacute interessado em apresentar

ldquomodelos de razatildeordquo a partir da relaccedilatildeo entre palavras e coisas ndash natildeo haacute algo como o conceito de a

priori histoacuterico importantiacutessimo para o texto de Foucault na obra de Cassirer Do ponto de vista de

Cassirer o que mais importa eacute ldquoestudar o proacuteprio processo linguumliacutestico em vez de simplesmente

analisar o seu desfecho seu produto e seus resultados finaisrdquo (EM p 215)

104

ldquoA linguagem eacute uma convenccedilatildeo bdquoalgo sobre o que se concorda‟ que os indiviacuteduos

simplesmente encontram as vidas poliacutetica e social satildeo traccediladas de volta ao contrato

social A natureza circular deste argumento eacute oacutebvia Pois concordacircncia eacute possiacutevel

somente no interior de um discurso e similarmente um contrato tem significado e

forccedila somente dentro de um estado e medium de leisrdquo (LKW p 108)

Eacute um erro inferir a partir da criaccedilatildeo de significados a criaccedilatildeo do proacuteprio fenocircmeno

da significaccedilatildeo Por conta disso haacute de se distinguir entre simbolismo ldquonaturalrdquo e

simbolismo artificial

ldquoSe quisermos compreender o simbolismo artificial os signos bdquoarbitraacuterios‟ que a

consciecircncia cria na linguagem na arte no mito seraacute necessaacuterio remontar ao

simbolismo bdquonatural‟ agravequela representaccedilatildeo da consciecircncia como um todo que

necessariamente jaacute estaacute contida ou pelo menos existe virtualmente em cada

momento e em cada fragmento da consciecircncia A forccedila e a capacidade realizadora

destes signos mediatos seria sempre um enigma se eles natildeo tivessem sua raiz

uacuteltima em um processo espiritual original alicerccedilado na proacutepria essecircncia da

consciecircncia Que uma singularidade sensiacutevel como por exemplo o som articulado

possa tornar-se portadora de uma significaccedilatildeo puramente espiritual tal fato somente

se torna compreensiacutevel em uacuteltima instacircncia na medida em que a proacutepria funccedilatildeo

fundamental do significar jaacute existe e atua antes do signo particular de sorte que ele

ao ser estabelecido jaacute foi criado restando apenas fixaacute-lo e aplicaacute-lo a um caso

particularrdquo (PSF I p 62)

A questatildeo central gira em torno da concepccedilatildeo de simbolismo ldquonaturalrdquo Com efeito a

artificialidade dos siacutembolos natildeo eacute novidade e de fato parece coerente com as

definiccedilotildees de siacutembolo aqui apresentadas Ao inveacutes disso falar em simbolismo

natural parece num primeiro momento pocircr a perder tudo o que se disse ateacute entatildeo

105

sobre a Energie des Geistes e a liberdade que ela supotildee De fato ateacute a distinccedilatildeo ora

tratada sobre signos e siacutembolos parece comprometida Entretanto sendo o

convencionalismo absoluto (com o perdatildeo do oxiacutemoro) incapaz de dar conta do

fenocircmeno da significaccedilatildeo tambeacutem ele natildeo constitui uma alternativa plausiacutevel

O caminho encontrado por Cassirer eacute o da afirmaccedilatildeo de que a funccedilatildeo da

significaccedilatildeo eacute anterior agrave sua aplicaccedilatildeo a um determinado caso particular Essa

funccedilatildeo resguardaria a liberdade que pressupotildee o ato de significaccedilatildeo mas por outro

lado ndash e eacute justamente aqui que fica evidente a preocupaccedilatildeo de Cassirer em natildeo

recair num idealismo absoluto90 ndash o ato significativo sempre se daacute em relaccedilatildeo a

algum conteuacutedo sensiacutevel que ldquotranscende o sensorialrdquo Assim diz o autor

ldquosurge um modo de configuraccedilatildeo autocircnomo uma atividade especiacutefica da consciecircncia

que se distingue de todo dado da sensaccedilatildeo ou da percepccedilatildeo imediatas e que no

entanto se utiliza deste mesmo dado como veiacuteculo e meio de expressatildeordquo (Idem p

63)

90

Sobre a preocupaccedilatildeo em natildeo ser tomado como um idealista absoluto Cf SMC ldquoO ego a mente

individual natildeo pode criar a realidade O homem eacute cercado por uma realidade que ele natildeo fez que ele

tem de aceitar como um fato definitivo Mas eacute dado a ele interpretar a realidade fazecirc-la coerente

inteligiacutevel [] O homem eacute ativo e criativo Mas o que ele cria natildeo eacute uma nova coisa substancial eacute

uma representaccedilatildeo uma descriccedilatildeo objetiva do mundo empiacutericordquo (p 195) Essa declaraccedilatildeo de

Cassirer parece ser suficiente para dizer que sua proposta natildeo tem pretensatildeo de fazer afirmaccedilotildees de

cunho ontoloacutegico ndash admite a existecircncia da realidade mas no limite natildeo se pode ter acesso direto a

ela Tudo aquilo que conhecemos eacute fruto de elaboraccedilatildeo espiritual (simboacutelica) e natildeo somos capazes

de conhecer senatildeo esses siacutembolos que construiacutemos Se se trata de construccedilatildeo o modelo de

Cassirer pode ser entendido como um construtivismo fraco pois ainda que natildeo discorra (por respeito

agraves premissas das quais parte) sobre a realidade natildeo afirma que noacutes a criamos mas apenas a

dotamos de significaccedilatildeo O pluralismo aqui defendido entendemos eacute apenas metodoloacutegico O

problema de uma realidade independente da mente como veremos no capiacutetulo seguinte natildeo tem

importacircncia para o autor

106

Com isso espera-se fica claro que o filoacutesofo natildeo estaacute propondo que a consciecircncia

crie a realidade o mundo das coisas como alguns inferem mas tatildeo somente que o

fenocircmeno da significaccedilatildeo em si mesmo natildeo eacute convencional Para tomar uma frase

de Merleau-Ponty que foi fortemente influenciado por Cassirer estamos

ldquocondenados a significarrdquo91 Por outro lado signos culturais satildeo aqueles que satildeo

criados pelo proacuteprio ato de significaccedilatildeo e que se identificam com a funccedilatildeo do

significar Como exemplo podem ser citados os caracteres do alfabeto esses signos

natildeo ldquosatildeordquo antes do ato de significaccedilatildeo nesse caso a consciecircncia ldquocria para si

mesma determinados concretos e sensiacuteveis a fim de expressar determinados

complexos de significaccedilatildeordquo (Idem)

Sensacionismo

A discussatildeo acima conduz agrave segunda tarefa proposta para a pregnacircncia

simboacutelica se o ato de significaccedilatildeo natildeo eacute uma criaccedilatildeo convencional diriam os

empiristas ela deve vir do proacuteprio objeto percebido ldquotoda objetividade estaacute contida

na impressatildeo bdquosimples‟ toda conexatildeo consiste na mera reuniatildeo na bdquoassociaccedilatildeo‟ das

impressotildeesrdquo (PSF I p 57) Dessa forma um significado seria composto dos

elementos sensiacuteveis baacutesicos que compotildeem o objeto percebido Mas haacute aqui dois

problemas distintos O primeiro eacute que desse modo ter-se-ia de assumir que os

sentidos em sua receptividade caracteriacutestica tivessem a capacidade de

sistematizaccedilatildeo das impressotildees sensiacuteveis O problema aqui consiste em negligenciar

que para uma percepccedilatildeo se tornar um objeto de conhecimento eacute necessaacuterio que

sejam articuladas na mente (funccedilatildeo sinteacutetica) dado que a multiplicidade das

91

Para mais sobre a influecircncia de Cassirer sobre Merleau-Ponty Cf KROIS 1987 p 58 e 90 e

LOFTS 2000 p 1 2

107

sensaccedilotildees carece justamente de ordenaccedilatildeo O outro problema fica por conta da

proacutepria reduccedilatildeo da significaccedilatildeo agravequilo que eacute passiacutevel de ser encontrado no objeto ndash

e isso em uacuteltima anaacutelise anula a existecircncia de significaccedilatildeo pois redunda em

reproduccedilatildeo de caracteriacutesticas do objeto Mas a proacutepria produccedilatildeo de signos

referenciais convencionais evidencia a falha do argumento

ldquoAo que tudo indica o signo nada acrescenta ao conteuacutedo ao qual se refere

limitando-se simplesmente a preservaacute-lo e repeti-lo em sua pura substacircncia () Mas

quanto mais claramente as diversas direccedilotildees fundamentais se delineiam em sua

energia especiacutefica tanto mais evidente torna-se o fato de que toda aparente

bdquoreproduccedilatildeo‟ pressupotildee sempre um trabalho original e autocircnomo da consciecircncia A

reprodutibilidade do conteuacutedo em si estaacute vinculada agrave produccedilatildeo de um signo para o

mesmo um processo no qual a consciecircncia age de maneira livre e independenterdquo

(PSF I p 37)

Assim tomando um exemplo dado por Cassirer a significaccedilatildeo de um determinado

fonema natildeo estaacute encerrada na materialidade das vibraccedilotildees sonoras que o

compotildeem Esse mesmo som tomado como fonema ldquose torna a expressatildeo das mais

sutis diferenccedilas do pensamento e do sentimentordquo (PSF I p 43)

ldquoCada fenocircmeno particular eacute agora natildeo mais do que uma letra que natildeo eacute apreendida

por si mesma ou vista de acordo com seus componentes sensiacuteveis ou aspectos

sensoacuterios como um todo antes nossa visatildeo passa atraveacutes da letra e por traacutes dela

para determinar a significaccedilatildeo da palavra agrave qual a letra pertence e o significado da

sentenccedila na qual essa palavra estaacute inserida Agora o conteuacutedo natildeo estaacute

simplesmente na consciecircncia preenchendo-o com sua mera existecircncia ndash antes ele

fala agrave consciecircncia e diz algo O todo de sua existecircncia tem em certo sentido

transformado a si proacuteprio em pura forma doravante ele serve somente para

108

comunicar um significado definido e compocirc-lo com outros em estruturas de

significaccedilatildeo complexos de significadordquo (PSF III p 191)

O terceiro ponto de refutaccedilatildeo do empirismo mais complexo eacute notadamente

influenciado pela psicologia da Gestalt e diz respeito agrave necessaacuteria conexatildeo dos

conteuacutedos na consciecircncia A questatildeo eacute introduzida por Cassirer com o problema da

causalidade tal qual tratado por Kant no ensaio sobre o conceito de grandeza

negativa ldquocomo se deve entender o fato de que por algo ser algo mais totalmente

diferente pode e deve serrdquo92 Soacute haacute soluccedilatildeo para esta questatildeo de acordo com

Cassirer se ldquodesde o comeccedilo bdquoconteuacutedo‟ e bdquoforma‟ bdquoelemento‟ e bdquorelaccedilatildeo‟ satildeo

concebidos natildeo como determinaccedilotildees independentes umas das outras e sim como

dados simultacircneos e reciprocamente determinadosrdquo (PSF I p 48) ndash tal qual o

postulado da Gestalt segundo o qual a percepccedilatildeo natildeo se daacute das partes para o todo

mas sim do todo para as partes que satildeo apreendidas em sua relaccedilatildeo com a

totalidade O trecho seguinte natildeo deixa duacutevidas da influecircncia

ldquoToda qualidade bdquosimples‟ da consciecircncia somente tem um conteuacutedo definido na

medida em que ela eacute apreendida simultaneamente em uniatildeo completa com

determinadas qualidades e em separaccedilatildeo total com relaccedilatildeo a outras A funccedilatildeo desta

uniatildeo e desta separaccedilatildeo natildeo pode ser desvinculada do conteuacutedo da consciecircncia

constituindo uma de suas condiccedilotildees essenciaisrdquo (Idem ibidem)

Resta admitir que cada ser individual da consciecircncia na verdade inclui em si a

representaccedilatildeo da totalidade da consciecircncia o que Cassirer tenta provar fazendo uso

92

Outro motivo de recorrer a Kant para falar da pregnacircncia eacute que Cassirer vecirc a noccedilatildeo como uma

tentativa de esclarecer a ambiguumlidade que a noccedilatildeo de siacutentese traz dado que ela deixa margem agrave

ideacuteia de que haacute duas instacircncias separadas e independentes antes da experiecircncia A mesma questatildeo

aqui seraacute tratada em relaccedilatildeo agrave intencionalidade de Husserl Cf PSF III p 193-97

109

de dois exemplos a percepccedilatildeo do tempo e do espaccedilo Tudo aquilo que designamos

como um ldquoagorardquo parece estar desvinculado de um antes e um depois que em

comparaccedilatildeo com ele eacute apenas abstraccedilatildeo ldquopassado e futuro natildeo parecem pertencer

agrave realidade concreta da consciecircnciardquo (Idem p 51) Entretanto este ldquoagorardquo soacute pode

ser definido temporalmente quando relacionado a um antes e um depois

ldquoO instante temporal na medida em que pretendemos defini-lo como temporal natildeo

pode ser apreendido como uma existecircncia substancial estaacutetica mas tatildeo-somente

como uma transiccedilatildeo fluida do passado para o futuro do jaacute-natildeo para o ainda-natildeo

Quando o agora eacute interpretado de maneira diferente isto eacute absoluta ele jaacute natildeo

constitui o elemento e sim a negaccedilatildeo do tempordquo (Idem Ibidem)

Dessa forma se o momento temporal natildeo faz sentido fora do fluxo do tempo entatildeo

se segue que no momento singular do tempo se encontre pensado o seu processo

como um todo de modo que ldquoambos momento e processo constituam para a

consciecircncia uma unidade perfeitardquo (Idem ibidem) O mesmo raciociacutenio eacute aplicado ao

problema do espaccedilo para o qual a designaccedilatildeo de um ldquoaquirdquo natildeo pode ser concebida

independentemente da designaccedilatildeo de um ldquolaacuterdquo e portanto implica a pressuposiccedilatildeo

de todo o sistema topoloacutegico

Cassirer fala ainda de uma ldquoterceira forma de unidade que se eleva acima da

unidade espacial e temporalrdquo (Idem p 55) a qual chama de conexatildeo objetiva ndash a

apreensatildeo que demanda tanto elementos espaciais quanto temporais ndash e en

passent contra-argumenta a tese de Hume acerca da concepccedilatildeo do Eu como um

ldquofeixe de percepccedilotildeesrdquo Estas duas uacuteltimas na verdade constituem os poacutelos opostos

que o desenvolvimento da consciecircncia constroacutei ndash o objetivo e o subjetivo Toda

percepccedilatildeo se diferencia de uma representaccedilatildeo pelo fato de nela haver uma

110

referecircncia direta ao Eu que natildeo eacute portanto posterior agraves percepccedilotildees ldquoO fato de a

brancura a doccedilura etc natildeo serem apreendidas apenas como estados que existem

em mimrdquo diz o autor

ldquomas como bdquopropriedades‟ como qualidades objetivas jaacute implica totalmente a funccedilatildeo

requerida e o ponto de vista da bdquocoisa‟ Portanto no estabelecimento de qualidades

particulares prevalece desde o iniacutecio um esquema baacutesico geral que eacute completado

com conteuacutedos concretos sempre renovados na medida em que progrida a nossa

experiecircncia acerca da bdquocoisa‟ e das suas bdquopropriedades‟rdquo (Idem p 56)

Destarte a unidade que a consciecircncia forma entre o agora e o fluxo do tempo e

entre o ldquoaquirdquo e o sistema topoloacutegico a forma com que consegue integrar sucessatildeo

e justaposiccedilatildeo numa mesma apreensatildeo e o modo em que tais percepccedilotildees

conseguem desde o iniacutecio marcar a distinccedilatildeo entre Eu e objeto somente assim se

pode garantir por um lado a unidade subjetiva da consciecircncia e por outro a

unidade objetiva do objeto A ldquoassociaccedilatildeordquo de que fala o empirismo deve ser

entendida na verdade como ldquointegraccedilatildeordquo

ldquoO elemento da consciecircncia natildeo se comporta em relaccedilatildeo ao todo da mesma como

uma parte extensiva em relaccedilatildeo agrave soma das partes e sim como uma diferencial em

relaccedilatildeo agrave sua integral Assim como a equaccedilatildeo diferencial de um movimento expressa

a trajetoacuteria e a lei deste movimento da mesma maneira eacute necessaacuterio que pensemos

as leis estruturais gerais da consciecircncia como jaacute dadas em cada um dos seus

elementos em cada um dos setores transversais da mesma natildeo dadas poreacutem no

111

sentido de conteuacutedos proacuteprios e independentes mas no sentido de tendecircncias e

direccedilotildees jaacute estabelecidas no individual sensiacutevelrdquo (Idem p 60) 93

Essas direccedilotildees ou tendecircncias do sensiacutevel satildeo as proacuteprias formas simboacutelicas Cada

particular deveraacute ser articulado em termos espaccedilo-temporais (de acordo com a

peculiaridade que cada uma dessas noccedilotildees tem em cada forma simboacutelica em

particular) de modo a ser definido objetivamente

Cassirer natildeo abre matildeo de que toda a realidade concebiacutevel deve ser articulada

em termos de espaccedilo e tempo Todavia no que tange agrave sistematizaccedilatildeo dos

diferentes registros de siacutembolos numa unidade por assim dizer haacute de se distinguir

entre qualidade e modalidade das relaccedilotildees na consciecircncia A primeira se refere ao

ldquotipo especiacutefico de conexatildeo atraveacutes do qual ela cria seacuteries dentro da totalidade da

consciecircncia sujeita a uma lei especial de organizaccedilatildeo dos seus elementosrdquo (Idem

p 46) Seus exemplos principais satildeo a justaposiccedilatildeo ou a sucessatildeo como formas de

organizaccedilatildeo do espaccedilo e do tempo A segunda eacute uma ldquotransformaccedilatildeo interior no

momento em que se encontrar um contexto formal diferenterdquo (Ibidem) Eacute por conta

disso que o ldquotempordquo eacute ao mesmo tempo objeto da ciecircncia da esteacutetica do mito e da

histoacuteria94

93

A mesma comparaccedilatildeo com a diferencial eacute feita em PSF III p 203 ldquoEacute somente no movimento

reciacuteproco entre bdquorepresentaccedilatildeo‟ e bdquorepresentado‟ que o conhecimento do ego e dos objetos ideais

tanto quanto reais pode surgir Aqui podemos sentir o pulso real da consciecircncia cujo segredo eacute

precisamente que cada batida atinge mil conexotildees Nenhuma percepccedilatildeo consciente eacute meramente

dada um mero datum que necessita apenas ser espelhado antes toda percepccedilatildeo abrange um

bdquocaraacuteter de direccedilatildeo‟ definido pelo qual ela aponta para aleacutem de seu aqui e agora Como um mero

diferencial perceptivo ela natildeo obstante conteacutem nela mesma a integral da experiecircnciardquo

94 Na mesma seccedilatildeo Cassirer desenvolve o mesmo argumento para tratar do tempo Interessante

nesse caso eacute comparar as concepccedilotildees de tempo que Cassirer articula e aquelas que Carnap propotildee

em Der Raum publicado um ano antes ldquoA unidade do espaccedilo que construiacutemos na contemplaccedilatildeo e

produccedilatildeo esteacuteticas na pintura na escultura na arquitetura pertence a um niacutevel totalmente diferente

112

ldquoO tempo explicado no iniacutecio da Mecacircnica de Newton como a base imutaacutevel de todos

os acontecimentos e como medida uniforme de todas as modificaccedilotildees parece em

um primeiro momento natildeo ter mais que o nome em comum com o tempo que

determina a obra musical e as suas medidas riacutetmicas Ainda assim esta unidade na

denominaccedilatildeo encerra uma unidade na significaccedilatildeo na medida em que em ambas

estaacute estabelecida aquela qualidade universal e abstrata que designamos como a

expressatildeo bdquosucessatildeo‟rdquo (PSF I p 46)

Assim tatildeo importante quanto indicar a qualidade da relaccedilatildeo eacute deixar clara a

modalidade na qual a mesma se encontra Com efeito pode-se dizer que aqui estaacute o

cerne da diferenccedila entre a concepccedilatildeo de operaccedilatildeo da consciecircncia tal qual tratada

em Substacircncia e Funccedilatildeo e na Filosofia das Formas Simboacutelicas Eacute como se na

primeira obra a consciecircncia natildeo tivesse ldquomodalidadesrdquo Disso decorre a maneira

com que a razatildeo cientiacutefica ndash entatildeo uacutenico ldquomodordquo ndash se portava diante das demais

articulaccedilotildees modais Cassirer esboccedila o esquema dessa relaccedilatildeo de maneira muito

semelhante agravequela feita em Substacircncia e Funccedilatildeo para explicar o conceito de funccedilatildeo

Na verdade trata-se de articular as relaccedilotildees qualitativas como tempo espaccedilo

causalidade como R1 R2 R3 e acrescentar a estas relaccedilotildees um ldquobdquoiacutendice de

modalidade‟ especial μ1 μ2 μ3 que indicaraacute em qual contexto funcional e

daquele que se manifesta em determinados teoremas e axiomas geomeacutetricos Aqui reina a

modalidade do conceito loacutegico-geomeacutetrico laacute a modalidade da fantasia espacial artiacutestica aqui o

espaccedilo eacute concebido como a essecircncia mesma de relaccedilotildees interdependentes como um sistema de

bdquocausas‟ e bdquoefeitos‟ laacute ele eacute apreendido como um todo na interpenetraccedilatildeo dinacircmica de seus

momentos individuais como uma unidade da intuiccedilatildeo e da emoccedilatildeo E com isso a seacuterie de

configuraccedilotildees possiacuteveis na consciecircncia do espaccedilo natildeo estaacute esgotada ainda porque tambeacutem no

pensamento miacutetico encontramos uma concepccedilatildeo muito especial do espaccedilo uma maneira de

organizar e de bdquoorientar‟ o mundo de acordo com determinados pontos de vista espaciais que se

distingue nitidamente e de forma caracteriacutestica do modo como o pensamento empiacuterico realiza a

organizaccedilatildeo espacial do cosmosrdquo (PSF I p 47)

113

significativo se deveraacute inseri-lardquo (Idem p 48) Disso resulta uma grande

multiplicidade e complexidade de conexotildees ao mesmo tempo em que manteacutem a

capacidade de referi-los a uma unidade de significaccedilatildeo e agrave unidade da cultura Na

verdade Cassirer dedica boa parte de sua obra agrave investigaccedilatildeo da articulaccedilatildeo do

espaccedilo do tempo do nuacutemero e em relaccedilatildeo a estes do Eu ndash inclusive diz ser esta

ldquouma das tarefas mais importantes e atraentes de uma filosofia antropoloacutegicardquo (EM

p 73) 95 Isso eacute feito por meio de exemplos numerosos e extremamente

diversificados possiacuteveis graccedilas ao acervo da biblioteca de Warburg marcante na

histoacuteria do filoacutesofo Os exemplos satildeo uma prova cabal da erudiccedilatildeo do autor em

textos para aleacutem do repertoacuterio filosoacutefico tradicional e podem ser comprovados pelas

inuacutemeras citaccedilotildees ao longo das obras Seria obviamente inuacutetil aqui tentar reproduzir

ainda que resumidamente os exemplos dos quais ele se vale Todavia haacute um

exemplo em especial que aparece em mais de um lugar ao longo das obras e que

cabe tanto para evidenciar a questatildeo da qualidade e modalidade da percepccedilatildeo

quanto para exemplificar a pregnacircncia simboacutelica Cassirer diz

ldquoDeixe-nos por exemplo considerar um exemplo da esfera oacutetica Tal experiecircncia

nunca eacute composta apenas de meros data sensoacuterios de qualidades oacuteticas de brilho e

cor Sua pura visibilidade nunca eacute concebiacutevel fora e independentemente de uma

determinada forma de visatildeo como uma experiecircncia sensiacutevel ela eacute sempre o veiacuteculo

de uma significaccedilatildeo e se coloca como se estivesse ao serviccedilo de tal significaccedilatildeo Mas

95

No Ensaio sobre o Homem e no capiacutetulo ao qual se refere essa citaccedilatildeo o filoacutesofo daacute destaque agrave

questatildeo do espaccedilo e do tempo sob o ponto de vista das diferenccedilas bioloacutegicas apresentando um

esquema com trecircs niacuteveis de complexidade O primeiro deles eacute o orgacircnico que diz respeito agrave

adaptaccedilatildeo de todos os organismos em relaccedilatildeo ao seu meio sobretudo os animais inferiores Agrave

medida que se considera os animais superiores jaacute eacute possiacutevel falar em articulaccedilotildees perceptuais onde

os elementos satildeo articulados de maneira mais complexa Mas ao homem especificamente cabe a

articulaccedilatildeo simboacutelica do tempo e do espaccedilo ndash em suas mais diversas possibilidades Cf p 73-94

114

precisamente aiacute ela eacute apta a levar a cabo funccedilotildees muito diferentes e por meio delas

apresentar mundos muito diferentes de significado Podemos considerar uma

estrutura oacutetica uma simples linha por exemplo de acordo com seu significado

puramente expressivo Na medida em que noacutes nos imergimos em seu desenho e a

construiacutemos para noacutes mesmos nos tornamos conscientes de um caraacuteter fisionocircmico

distinto nele Uma disposiccedilatildeo peculiar eacute expressa na determinaccedilatildeo puramente

espacial o sobe e desce das linhas no espaccedilo abrange uma mobilidade interior uma

ascensatildeo e queda dinacircmica um ser e vida psiacutequica E aqui noacutes natildeo lemos

meramente nossos proacuteprios estados interiores subjetivamente e arbitrariamente na

forma espacial antes a forma nos daacute a si mesma a noacutes como uma totalidade

animada uma manifestaccedilatildeo independente de vida Ela pode deslizar silenciosamente

ou romper-se repentinamente ela pode ser arredondada e auto-suficiente ou irregular

e brusca pode ser riacutegida ou flexiacutevel tudo isso estaacute na linha ela mesma como uma

determinaccedilatildeo de sua proacutepria realidade sua natureza objetiva Mas estas qualidades

recuam e desaparecem tatildeo logo apanhemos a linha em outro sentido ndash tatildeo logo noacutes a

entendamos como uma estrutura matemaacutetica uma figura geomeacutetrica Agora ela

torna-se um mero esquema um meio de representaccedilatildeo de uma lei universal

geomeacutetrica Tudo o que natildeo serve para representar esta lei o que soacute aparece como

um fator individual na linha agora se torna absolutamente insignificante afastou-se

por assim dizer do nosso campo de visatildeo Natildeo soacute as qualidades de brilho e cor mas

tambeacutem a magnitude absoluta que aparecem no desenho estatildeo incluiacutedas nesta

negaccedilatildeo para a linha como uma mera estrutura geomeacutetrica eles satildeo absolutamente

irrelevantes Seu significado geomeacutetrico natildeo depende dessas magnitudes como tal

mas apenas de suas relaccedilotildees e proporccedilotildees Onde noacutes previamente encontramos a

ascensatildeo e a queda de uma linha ondulada e nela o ritmo de uma disposiccedilatildeo interior

noacutes agora percebemos uma representaccedilatildeo graacutefica de uma funccedilatildeo trigonomeacutetrica

temos diante de noacutes uma curva cujo significado total para noacutes eacute em uacuteltima instacircncia

esgotado na sua foacutermula analiacutetica A forma espacial eacute nada aleacutem de um paradigma

para a foacutermula ela continua a ser o simples invoacutelucro superficial de uma ideacuteia

matemaacutetica essencialmente natildeo-intuitiva E essa ideacuteia natildeo se sustenta por si soacute nela

115

uma lei mais abrangente a lei de todo o espaccedilo estaacute representada Com base nessa

lei cada uacutenica estrutura geomeacutetrica estaacute relacionada com a totalidade das possiacuteveis

formas geomeacutetricas Pertence a um sistema definitivo com um conjunto de verdades

e teoremas dos motivos e consequumlecircncias - e este sistema designa a forma universal

de sentido atraveacutes do qual foi constituiacuteda e tornada compreensiacutevel E mais uma vez

estamos em uma esfera completamente diferente da visatildeo quando tomamos a linha

como um siacutembolo miacutetico ou um ornamento esteacutetico O siacutembolo miacutetico como tal

abrange a oposiccedilatildeo fundamental miacutetica entre o sagrado e o profano Eacute criada a fim de

fazer uma separaccedilatildeo entre as duas proviacutencias e para avisar e assustar para barrar

os leigos de se aproximar ou tocar o sagrado No entanto aqui ela natildeo age apenas

como um sinal um sinal que o sagrado eacute reconhecido mas possui tambeacutem um poder

factualmente inerente magicamente atraente e repelente De tal poder o mundo

esteacutetico nada sabe Visto como um ornamento o desenho parece remoto tanto da

significaccedilatildeo no sentido loacutegico-conceitual quanto do maacutegico-miacutetico siacutembolo de aviso

Seu significado encontra-se em si mesmo e se revela apenas agrave visatildeo artiacutestica pura

ao olhar esteacutetico Aqui novamente a experiecircncia da forma espacial eacute preenchida

somente por meio de sua relaccedilatildeo com um horizonte total que nos revela ndash atraveacutes de

uma certa atmosfera na qual natildeo apenas bdquoeacute‟ mas na qual por assim dizer ela vive e

respirardquo (PSF III p 200-01)96

Fenomenologia e intencionalidade

Atenccedilatildeo ainda deve ser dada agrave terceira funccedilatildeo da pregnacircncia simboacutelica no

corpo da filosofia de Cassirer uma vez que nos falta deixar claro que sua concepccedilatildeo

natildeo recai num subjetivismo que no limite leva ao dualismo e destroacutei desde dentro a

ideacuteia da pregnacircncia Esse dualismo residual para Cassirer encontra-se na noccedilatildeo de

96

O mesmo trecho aparece no texto de 1927 apresentado num congresso de esteacutetica

116

intencionalidade de Husserl De fato Cassirer endossa a anaacutelise que Husserl faz da

questatildeo da consciecircncia em termos de intencionalidade Para ele Husserl

ldquose libertou completamente da bdquomitologia das atividades‟ que olha para os atos como

as atividades de um sujeito fiacutesico real e da mesma forma ele explicitamente afirma a

relaccedilatildeo do ato com seu objeto de tal forma que natildeo pode mais ser dito bdquoser‟ ou bdquoexistir‟

no outrordquo (PSF III p 197)

Contudo a semelhanccedila entre ambos acaba no momento em que Husserl

ldquodivide o fluxo da realidade fenomenoloacutegica entre bdquostratum material‟ e bdquonoeacutetico‟rdquo

(Idem ibidem) A passagem precisa de Husserl citada no texto de Cassirer eacute ldquoA

consciecircncia eacute um mundo agrave parte daquele que o sensacionismo sozinho deseja ver

de mateacuteria efetivamente sem significado irracional ndash que entretanto eacute acessiacutevel agrave

racionalizaccedilatildeordquo (Husserl 1913 apud Cassirer PSF III p 198)

De acordo com Cassirer a diferenciaccedilatildeo que Husserl faz entre elementos

sensiacuteveis [ὕλη] e significativos [μορθή] pode ser considerada como o ponto de

clivagem entre mateacuteria e espiacuterito entre fiacutesico e psiacutequico ldquoa qual em vez de ver corpo

e alma como correlativos os vecirc como diferentes em relaccedilatildeo agrave substacircnciardquo (PSF III

p 198) antes mesmo da atividade da consciecircncia Essa divisatildeo para Cassirer natildeo

se comprova fenomenologicamente pois natildeo eacute possiacutevel manter-se no campo estrito

do significado e falar de algo que em si natildeo tem significado e deveraacute recebecirc-lo

Falando de maneira estritamente fenomenoloacutegica

ldquonenhum conteuacutedo ou consciecircncia eacute em si mesmo meramente presente ou em si

mesmo meramente representativo antes toda experiecircncia atual indissoluvelmente

abrange os dois fatores Todo conteuacutedo presente funciona no sentido da

117

representaccedilatildeo assim como toda representaccedilatildeo demanda uma ligaccedilatildeo com algo

presente na consciecircncia Eacute essa relaccedilatildeo muacutetua e natildeo a forma o fator noeacutetico

sozinho que constitui a fundaccedilatildeo de toda animaccedilatildeo e espiritualizaccedilatildeordquo (PSF III p

199)

No texto Das Symbolproblem und seine Stellung im System der Philosophie [O

Problema do Siacutembolo e seu Lugar no Sistema da Filosofia] (1927) Cassirer insiste

na superaccedilatildeo da dualidade que existe em Husserl atribuindo agrave diferenccedila entre

mateacuteria e significado quando muito apenas um valor expositivo abstrato

ldquoTentamos expressar essa relaccedilatildeo sistemaacutetica [entre mateacuteria e significado] por meio

da consideraccedilatildeo da experiecircncia sensoacuteria fundamental com a qual estamos lidando

nesse caso como recebida em determinada e formada por vaacuterias bdquoformas simboacutelicas‟

Contudo essa maneira de falar natildeo deve e natildeo pode ser entendida como se

estiveacutessemos aqui lidando com um caso de separaccedilatildeo ou sucessatildeo temporal de

bdquoforma‟ e bdquomateacuteria‟ Se devemos distinguir isso ao modo da terminologia de Husserl

entre material sensoacuterio e atos animados entre a ὕλη sensiacutevel e a μορθή intencional

entatildeo essa separaccedilatildeo abstrata natildeo pode jamais significar que estes devem ser

separados no fenocircmeno ou que em si mesma a mateacuteria informe seja algo dado que eacute

gradualmente usado em vaacuterios modos de interpretaccedilatildeo e subsequumlentemente em

dados contornos por eles Quem quer que converta o bdquodualismo‟ kantiano de forma e

mateacuteria que eacute uma diferenccedila de significado e sua bdquovalidade‟ transcendental numa

separaccedilatildeo de coisas de fato existentes ao lado e separadamente a partir uns dos

outros teraacute assim jaacute deixado escapar o ponto de vista decisivo necessaacuterio para o

profundo entendimento dessa diferenccedilardquo (p 416)

Novamente Cassirer insiste na inseparabilidade entre mateacuteria e significado tal qual

ora tratado na seccedilatildeo acerca da distinccedilatildeo entre simbolismo natural e artificial Mas

118

aqui fica claro que a preocupaccedilatildeo do filoacutesofo estaacute em evitar o equiacutevoco da

concepccedilatildeo dualista em relaccedilatildeo ao seu sistema Quando Cassirer fala de uma

revisatildeo dos postulados idealistas (PSF I p 32) ndash de acordo com os quais as

fronteiras entre o mundo sensiacutevel e o mundo inteligiacutevel devem ser claramente

traccediladas cabendo ao primeiro a absoluta passividade e ao segundo a pura atividade

ndash ele faz menccedilatildeo ao fato de que o desenvolvimento da consciecircncia estaacute atrelado agrave

criaccedilatildeo de sistemas de signos os quais servem por assim dizer como ldquopontos de

apoio e de repousordquo (Idem p 69) para o constante fluir da consciecircncia e que estes

tais signos satildeo refinados a partir do trabalho da consciecircncia em relaccedilatildeo a esses

mesmos signos Dessa forma essas fronteiras fixas satildeo rompidas uma vez que ldquoa

proacutepria funccedilatildeo pura do espiritual precisa buscar a sua realizaccedilatildeo concreta no mundo

sensiacutevel e que ela em uacuteltima anaacutelise somente poderaacute encontraacute-la aquirdquo (Idem p

33) Sendo assim

ldquojaacute natildeo se trata de perguntar se o bdquosensiacutevel‟ precede o bdquoespiritual‟ ou se a ele sucede

trata-se sim da revelaccedilatildeo e manifestaccedilatildeo de funccedilotildees espirituais baacutesicas no proacuteprio

material sensiacutevel Deste ponto de vista afiguram-se unilaterais tanto o bdquoempirismo‟

quanto o bdquoidealismo‟ abstratos na medida em que em ambos esta relaccedilatildeo

fundamental natildeo eacute desenvolvida com total clarezardquo (Idem p 69)

A separaccedilatildeo estrita entre mateacuteria e ideacuteia ndash ὕλη e μορθή ndash mostra-se agora como

uma aparecircncia que se oblitera na medida em que se considera a questatildeo do ponto

de vista da consciecircncia

ldquoPorque tambeacutem aqui por certo continuariacuteamos presos a um mundo de bdquoimagens‟

mas natildeo se trata de imagens que produzam um mundo de bdquocoisas‟ existente em si e

119

sim de mundos de imagens cujo princiacutepio e origem devem ser procurados em uma

criaccedilatildeo autocircnoma do proacuteprio espiacuterito Somente atraveacutes deles e neles eacute que se

constitui aquilo que denominamos de bdquorealidade‟ porque a suprema verdade objetiva

que se revela ao espiacuterito eacute em uacuteltima anaacutelise a forma de sua proacutepria atividaderdquo

(Idem p 70)

Natildeo haacute algo portanto sem significaccedilatildeo no sentido estrito do termo porque natildeo haacute

um outro absoluto para a consciecircncia assim como a consciecircncia soacute vem a ser para

si em relaccedilatildeo aos objetos que ela significa (atribui significado) ldquoEacute esse

entrelaccedilamento ideal esse parentesco do fenocircmeno perceptivo simples dado aqui e

agora a uma significaccedilatildeo total caracteriacutestica que o termo bdquopregnacircncia‟ pretende

designarrdquo (PSF III p 202)

Outra decorrecircncia disso eacute a ruptura com a ideacuteia de que eacute possiacutevel

empreender uma anaacutelise da consciecircncia de volta aos seus elementos absolutos

pois que esse entrelaccedilamento eacute seu fator primaacuterio por excelecircncia eacute a oposiccedilatildeo que

se encerra na proacutepria natureza da consciecircncia Por conta disso Cassirer tambeacutem

escapa ao subjetivismo puro uma vez que a consciecircncia natildeo deve buscar

introspectivamente97 apenas a si mesma em detrimento do mundo objetivo ao

contraacuterio eacute no resultado de sua atividade em sua obra (Werk) que ela deveraacute se

reconhecer De fato Cassirer manteacutem o ideal socraacutetico do ldquoconhece-te a ti mesmordquo

mas esse postulado eacute agora transformado em ldquoconheccedila tua obra (Werk) e conheccedila a

ti mesmo na tua obra conheccedila o que fazes e entatildeo poderaacutes fazer o que conhecesrdquo

97

O proacuteprio Cassirer explica a insuficiecircncia da introspecccedilatildeo embora natildeo a invalide completamente

ldquoSem a introspecccedilatildeo sem uma consciecircncia imediata dos sentimentos emoccedilotildees percepccedilotildees e

pensamentos natildeo poderiacuteamos sequer definir o campo da psicologia humana No entanto eacute preciso

admitir que seguindo apenas este caminho nunca poderemos chegar a uma visatildeo abrangente da

natureza humana A introspecccedilatildeo revela-nos apenas aquele pequeno segmento da vida humana que

eacute acessiacutevel agrave nossa experiecircncia individualrdquo (EM p 10)

120

(PSF IV p 186) A pregnacircncia eacute portanto ao mesmo tempo uma supressatildeo do

dualismo e do subjetivismo uma resposta ao argumento circular da origem da

linguagem e uma refutaccedilatildeo da ideacuteia que limita a accedilatildeo espiritual ao objeto

apresentado Mas eacute preciso frisar ela proacutepria natildeo eacute uma Energie des Geistes ela eacute

a condiccedilatildeo de possibilidade de toda a significaccedilatildeo Ela mesma natildeo eacute explicaacutevel

(teoricamente) mas deve ser experienciada Ela consiste naquilo que tomando uma

expressatildeo de Goethe Cassirer chamaraacute de Urphaumlnomen98 trata-se de algo que natildeo

pode ser reduzido ou explicado por qualquer epistemologia pois que eacute a base

fenomecircnica com a qual a consciecircncia se depara e a partir da qual se distinguiraacute a

pregnacircncia simboacutelica ocupa lugar nem na mente nem nas coisas mas eacute ela

mesma a condiccedilatildeo necessaacuteria para a separaccedilatildeo do ego em relaccedilatildeo ao bdquooutro‟ e ao

mundo ndash separaccedilatildeo que por sua vez eacute ldquoa condiccedilatildeo necessaacuteria para que o ego natildeo

apenas exista mas conheccedila a si mesmordquo (PSF III p 39)

A questatildeo da praacutexis como o lugar por excelecircncia para a apreensatildeo da

consciecircncia em seu proacuteprio trabalho eacute sem duacutevida o ponto essencial do

desdobramento da noccedilatildeo de pregnacircncia tal qual aqui apresentada Com efeito eacute a

partir dessa necessidade que se ergue a construccedilatildeo de uma filosofia da cultura que

98

Num seminaacuterio dado em Yale Cassirer diz ldquoa realidade fundamental o Urphaumlnomen [] deve

inclusive ser designado pelo termo vida Esse fenocircmeno eacute acessiacutevel a qualquer um mas ele eacute

bdquoincompreensiacutevel‟ no sentido de que ele natildeo admite definiccedilatildeo nem explicaccedilatildeo teoacuterica abstrata []

Vida realidade Ser existecircncia satildeo nada aleacutem de diferentes termos referindo a um mesmo fato

fundamental Esses termos natildeo descrevem uma coisa riacutegida fixa substancial Eles devem ser

entendidos como processosrdquo (SMC p 193-4) Outro ponto que merece destaque eacute que o manuscrito

da Phaumlnomenologie der Erkenntnis estava finalizado em 1927 ano da publicaccedilatildeo de Sein und Zeit

De acordo com Krois (1987 p 58-9) Cassirer fez uma seacuterie de anotaccedilotildees em seu manuscrito de

modo a expressar sua concordacircncia com a anaacutelise de Heidegger a respeito do Dasein que evitava a

concepccedilatildeo da origem do significado como uma atividade da mente Natildeo obstante Cassirer natildeo

concorda em limitar a significaccedilatildeo expressiva (a Sorge de Heidegger) apenas ao acircmbito do Dasein

121

ldquoprocura compreender e provar como todo conteuacutedo cultural na medida em que seja

algo mais do que simples conteuacutedo isolado e conquanto esteja baseado em um

princiacutepio formal universal pressupotildee um ato primordial do espiacuterito Somente aqui a

tese fundamental do idealismo encontra sua confirmaccedilatildeo plenardquo (PSF I p 22)

Natildeo eacute outra razatildeo que faz Cassirer se dedicar com tamanho zelo agrave anaacutelise e

interpretaccedilatildeo de fatos oriundos de tantas e diversas culturas Com efeito as

descriccedilotildees de rituais de comportamentos de concepccedilotildees de mundo em geral natildeo

satildeo simples acessoacuterios estiliacutesticos eles devem ser tomados como a comprovaccedilatildeo

por excelecircncia das hipoacuteteses defendidas pelo filoacutesofo Toda a discussatildeo anterior

sobre a necessidade metodoloacutegica de a filosofia partir dos fatos ndash evitar

especulaccedilotildees esteacutereis ndash eacute aqui considerada em seu mais alto grau Natildeo eacute outro

motivo igualmente que leva Cassirer a ter um estilo de escrita filosoacutefico

essencialmente historicista Um leitor que natildeo leve em conta o imperativo

metodoloacutegico que guia suas investigaccedilotildees ndash e que transparece em seu estilo ndash toma

seus textos erroneamente como natildeo mais do que um amontoado de comentaacuterios

ecleacuteticos de histoacuteria da filosofia sem se aperceber de que se eacute na histoacuteria ou seja

nos fatos culturais concretos da humanidade que a filosofia deve buscar sua

sustentaccedilatildeo essa mesma histoacuteria natildeo busca apenas um lugar empiricamente

indicaacutevel no tempo passado antes trata-se de investigar a fenomenologia da cultura

a partir da fenomenologia de cada uma de suas formas simboacutelicas baacutesicas e de sua

interaccedilatildeo

122

O animal symbolicum

Eacute por conta de tudo o que ateacute aqui foi tratado que a capacidade de simbolizar

passa a ser o proacuteprio atributo distintivo da humanidade Haacute inclusive certa dedicaccedilatildeo

em traccedilar essa linha evolutiva que conduz ldquodas reaccedilotildees animais agraves respostas

humanasrdquo num capiacutetulo do Ensaio sobre o Homem que leva este mesmo nome

Interessante eacute notar que nesse capiacutetulo o autor tambeacutem remete seus dados agrave

psicologia da Gestalt aleacutem do behaviorismo O objetivo baacutesico do capiacutetulo eacute mostrar

como a capacidade de significaccedilatildeo objetiva natildeo ocorre em outros animais que natildeo

os humanos ndash ao menos natildeo ocorre de maneira tatildeo complexa e por assim dizer

evoluiacuteda pois em sua argumentaccedilatildeo o esforccedilo do autor estaacute evidentemente em

reconhecer a capacidade de simbolizaccedilatildeo como uma faculdade intelectual

possivelmente desenvolvida pelo processo de evoluccedilatildeo das espeacutecies 99 Assim

ainda que os experimentos de Pavlov por exemplo tenham mostrado que os

animais tenham a capacidade de associar estiacutemulos diversos por repeticcedilatildeo a

99

A questatildeo pensamos assume claramente a tarefa de evitar falhas metodoloacutegicas ou mesmo

contradiccedilotildees em relaccedilatildeo ao problema que se tem de fundo e que aqui seraacute tratado posteriormente a

cultura fruto de elaboraccedilatildeo simboacutelica natildeo pode ter surgido como que do nada Se natildeo for admitido

que os macacos por exemplo de alguma forma estatildeo num estaacutegio por assim dizer preacute-simboacutelico

dados os resultados das pesquisas que verificaram sua capacidade de associaccedilatildeo relativamente

abstrata entatildeo a proacutepria cultura humana teria de ser tomada como um passe de maacutegica Assim em

Sprache und Mythos (p 57) podemos ler ldquoOs iniacutecios desse processo denotativo jaacute surgem sem

duacutevida nos animais na medida em que no seu mundo de representaccedilotildees se alccedilam aqueles

elementos aos quais se dirigem a tendecircncia baacutesica dos seus impulsos o rumo especiacutefico dos seus

instintos [] Mas tal presenccedila soacute preenche o momento preciso em que o instinto eacute provocado e

estimulado diretamente logo que a excitaccedilatildeo diminui e o desejo eacute apaziguado satisfeito rui

igualmente o mundo da representaccedilatildeo [] o passado soacute se conserva de maneira obscura e o futuro

natildeo eacute erigido em imagem em previsatildeo Apenas a expressatildeo simboacutelica cria a possibilidade da visatildeo

retrospectiva e prospectiva pois determinadas distinccedilotildees natildeo soacute se realizam por seu intermeacutedio mas

ainda se fixam como tais dentro da consciecircnciardquo

123

relaccedilatildeo entre tais estiacutemulos e a capacidade humana de significaccedilatildeo eacute

incomensuraacutevel ldquoTodos os fenocircmenos comumente descritos como reflexos

condicionados natildeo estatildeo apenas muito afastados mas satildeo ateacute opostos ao caraacuteter

essencial do pensamento simboacutelico humanordquo (EM p 58) Desses experimentos soacute

se pode concluir que a associaccedilatildeo entre estiacutemulo e reaccedilatildeo seja capaz de desvios e

mediaccedilotildees Mas eacute essencial enfatizar que ainda assim trata-se de reagir a um

estiacutemulo qualquer que seja ao qual o animal eacute condicionado Natildeo haacute portanto a

universalidade que deve estar presente agrave simbolizaccedilatildeo por um lado e tampouco haacute

a liberdade espiritual de atribuiccedilatildeo de significado por outro Aleacutem disso no caso

especiacutefico dos estudos com chimpanzeacutes realizados por Koumlhler foi verificada uma

quantidade significativa de expressotildees por meio de gesticulaccedilotildees das quais eles satildeo

capazes ndash ldquoraiva terror desespero pesar suacuteplica desejo brincadeira e prazerrdquo

Entretanto ldquonatildeo encontramos nenhum sinal que tenha uma referecircncia ou sentido

objetivordquo (EM p 55) A esse respeito alguns pesquisadores sustentam a hipoacutetese

de que se trata de um estaacutegio anterior agrave linguagem proposicional ndash uma linguagem

meramente emotiva Outros sustentam que as pesquisas datildeo margem agrave afirmaccedilatildeo

de que haacute inteligecircncia nos animais ldquose entendermos por inteligecircncia o ajuste ao

ambiente imediato ou a modificaccedilatildeo adaptativa do ambienterdquo (Idem p 59)

Em todo caso quaisquer que sejam os exemplos e independentemente dos

pontos em que haja discordacircncias fica claro que apenas o homem desenvolveu

ldquouma imaginaccedilatildeo e uma inteligecircncia simboacutelicasrdquo (Idem p 60) Daiacute a afirmaccedilatildeo

agora em termos bioloacutegicos do homem enquanto animal symbolicum

124

Haacute ainda um caso marcante exposto por Cassirer no Ensaio sobre o Homem

com vistas a reforccedilar a noccedilatildeo de pregnacircncia Trata-se do caso Helen Keller ndash uma

garota nascida cega surda e muda100

ldquoTenho de escrever-lhe uma linha esta manhatilde porque uma coisa muito importante

aconteceu Helen deu o segundo grande passo em sua educaccedilatildeo Aprendeu que tudo

tem um nome e que o alfabeto manual eacute a chave para tudo o que ela quer saber

Hoje de manhatilde quando estava se lavando ela quis saber o nome da bdquoaacutegua‟ Quando

quer saber o nome de alguma coisa ela aponta para a coisa e bate na minha matildeo

Soletrei bdquoa-g-u-a‟ e natildeo pensei mais nisso ateacute depois do cafeacute da manhatilde [Mais

tarde] saiacutemos para ir ateacute a casa das bombas e fiz Helen segurar a caneca dela

debaixo da bica enquanto eu bombeava Quando a aacutegua fria jorrou enchendo a

caneca eu soletrei bdquoa-g-u-a‟ em sua matildeo livre A palavra assim tatildeo perto da sensaccedilatildeo

da aacutegua fria correndo-lhe pela matildeo pareceu assombraacute-la Deixou cair a caneca e

ficou como que transfixada Uma nova luz espalhou-se pelo seu rosto Soletrou bdquoa-g-

u-a‟ vaacuterias vezes Entatildeo deixou-se cair no chatildeo e perguntou o nome dele e apontou

para a bomba e para a treliccedila e voltando-se de repente perguntou o meu nome

Soletrei bdquoprofessora‟ Durante todo o caminho de volta para casa ela esteve muito

excitada e aprendeu o nome de todos os objetos que tocou de modo que em poucas

horas havia acrescentado trinta novas palavras a seu vocabulaacuterio Na manhatilde

seguinte ela levantou-se como uma fada radiante Saltitou de objeto em objeto

perguntando o nome de tudo e beijando-me de pura alegria Agora tudo deve ter um

nome Aonde quer que vamos ela pergunta avidamente pelos nomes de tudo que

natildeo aprendeu em casa Estaacute ansiosa para que seus amigos soletrem e aacutevida por

ensinar as letras para todas as pessoas que fica conhecendo Abandona os sinais e

100

Aleacutem do Caso Helen Keller Cassirer tambeacutem discorre sobre o caso Laura Bridgman com certo

detalhe e no Ensaio cita en passent o caso da afasia que na Fenomenologia do Conhecimento

ocupa um capiacutetulo relativamente extenso Os trecircs toacutepicos satildeo os mais usados pelo autor para

fundamentar de acordo com os entatildeo recentes avanccedilos da psicologia sua noccedilatildeo de pregnacircncia

simboacutelica Contudo natildeo eacute aqui necessaacuterio reproduzir o que se discute em cada um deles para os

objetivos do presente trabalho O exemplo do caso Helen Keller seraacute suficiente

125

pantomimas que usava antes assim que tem as palavras para usar no lugar deles e

a aquisiccedilatildeo de uma nova palavra proporciona-lhe o mais intenso prazer E notamos

que seu rosto fica mais expressivo a cada diardquo 101

Embora seja um exemplo extremo o objetivo da exposiccedilatildeo deste caso natildeo estaacute

distante daquele que leva Cassirer a explorar as investigaccedilotildees do behaviorismo e da

psicologia da Gestalt como tratados acima Na verdade pode-se dizer que ele serve

como uma espeacutecie de arremate agrave hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica Aqui vemos

sintetizados os principais argumentos contra a ideacuteia de que a significaccedilatildeo (e o

conhecimento) deriva ou depende da apreensatildeo pelos oacutergatildeos dos sentidos Se

fosse o caso Keller certamente natildeo teria a capacidade de chegar ao niacutevel de

conhecimento do mundo ndash de construccedilatildeo de significaccedilotildees melhor dizendo ndash ao qual

efetivamente chegou ldquoestaria por assim dizer exilada da realidaderdquo Diversamente

o que se pode afirmar eacute que

ldquoa cultura humana natildeo deriva seu caraacuteter especiacutefico e seus valores morais do

material que a consiste e sim de sua forma sua estrutura arquitetocircnica () o homem

pode construir seu mundo simboacutelico com base nos materiais mais pobres e escassos

A coisa de importacircncia vital natildeo satildeo os tijolos e pedras individuais mas a sua funccedilatildeo

geral como forma arquitetocircnica [] Com esse princiacutepio ateacute o mundo de uma crianccedila

cega surda e muda pode tornar-se incomparavelmente mais rico que o mundo do

animal mais altamente desenvolvidordquo (EM p 64)

Cassirer fala de uma ldquorevoluccedilatildeo intelectualrdquo no caso Helen Keller Trata-se do

poder libertador do siacutembolo que emancipa o homem da necessidade da presenccedila

do sensiacutevel e lhe abre o ldquocaminho para a civilizaccedilatildeordquo ndash descortina um novo

101

Helen Keller The History of my Life p 315 e ss Apud CASSIRER [1945] p 61

126

horizonte de inesgotaacuteveis possibilidades Com efeito Cassirer toma o proacuteprio

desenvolvimento da cultura como uma progressiva autolibertaccedilatildeo do espiacuterito ndash o que

natildeo significa um caminho linear de progresso mas uma tarefa infinita que se re-

inscreve em cada indiviacuteduo

As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas

Formas simboacutelicas e fenomenologia do espiacuterito

A hipoacutetese da pregnacircncia simboacutelica eacute o fundamento o marco-zero da teoria

das formas simboacutelicas Ela daacute as condiccedilotildees de possibilidade para a explicaccedilatildeo do

animal symbolicum bem como deixa claro que a investigaccedilatildeo da consciecircncia natildeo

deveraacute ser feita introspectivamente mas sim que o homem haacute de se reconhecer em

sua obra [Werk] daiacute que a filosofia das formas simboacutelicas seja em sua essecircncia a

proposiccedilatildeo de uma Kulturwissenschaft102 Mas a cultura eacute a proacutepria totalidade da

atividade espiritual103 o que supotildee estaacutegios de desenvolvimento Assim surge a

necessidade de explicitar o processo de aparecimento das formas simboacutelicas que

constituem a cultura e como essas formas interagem e se integram ou se opotildeem em

seus processos

Inicialmente cabe dizer que a cultura eacute um processo essencialmente

dialeacutetico tal como a estrutura interna do proacuteprio siacutembolo e da forma simboacutelica De

102

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft aparece tardiamente na obra de Cassirer ndash salvo

engano sua primeira ocorrecircncia estaacute no primeiro dos textos que compotildeem a Logik der

Kulturwissenschaft (1942) publicada postumamente O surgimento desse novo conceito eacute prenhe de

consequumlecircncias como pretendemos mostrar no capiacutetulo seguinte

103 O termo totalidade aqui empregado natildeo deve ser tomado como se a cultura fosse um termo final

Eacute necessaacuterio lembrar que ela eacute um processo dinacircmico um fluir

127

fato a estrutura baacutesica da filosofia das formas simboacutelicas eacute tomada da

Phaumlnomenologie des Geistes de Hegel como o proacuteprio autor deixa claro no prefaacutecio

ao terceiro volume da obra Phaumlnomenologie der Erkenntnis

ldquoEstou usando o termo bdquofenomenologia‟ natildeo em seu sentido moderno mas sim em

sua significaccedilatildeo fundamental tal qual estabelecida e sistematicamente fundamentada

por Hegel Para Hegel fenomenologia tornou-se a base de todo o conhecimento

filosoacutefico desde que ele insistiu que o conhecimento filosoacutefico deveria abranger a

totalidade das formas culturais e desde que em seu ponto de vista essa totalidade

possa se fazer ver somente nas transiccedilotildees de uma forma a outra () Em seu

princiacutepio fundamental a Filosofia das Formas Simboacutelicas concorda com a formulaccedilatildeo

de Hegel tanto quanto deve diferir em suas fundaccedilotildees (Begruumlndungen) e em seu

desenvolvimento (Duumlrchfuhung)rdquo (PSF III p xiv ndash xv) 104

Tal qual Hegel segundo o qual a consciecircncia eacute marcada por trecircs estaacutegios de

desenvolvimento (Consciecircncia Autoconsciecircncia e Espiacuterito) Cassirer identifica trecircs

funccedilotildees da consciecircncia correlativas105 de certa forma agravequelas da obra de Hegel

Expressiva [Ausdruksfunktion] Representativa [Darstellungsfunktion] e Significativa

[Bedeutungsfunktion]106 O que aqui se entende por funccedilotildees eacute o mesmo que acima

104

Haacute um artigo de Verene sobre a importacircncia da Fenomenologia do Espiacuterito para a construccedilatildeo e

interpretaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas Cf Kant Hegel and Cassirer The Origins of the

Philosophy of Symbolic Forms Journal of the History of Ideas Vol30 No1 (Jan-Mar 1969) pp 33-

46

105 A correlaccedilatildeo de que se trata aqui eacute meramente funcional ie considera apenas o papel de cada

estaacutegio no todo do desenvolvimento em relaccedilatildeo ao conteuacutedo e agrave correspondecircncia especiacutefica destes

em ambos os sistemas a correlaccedilatildeo natildeo seria correta desta forma como ficaraacute claro em seguida

106 Aqui a opccedilatildeo por traduzir Darstellung por representaccedilatildeo segue a proposta das traduccedilotildees para a

liacutengua inglesa dos textos de Cassirer Como eacute sabido no vocabulaacuterio tradicional da filosofia alematilde o

termo Darstellung eacute correlato do termo exhibitio latino e por esta via eacute traduzido para o idioma

portuguecircs por exposiccedilatildeo ndash segundo a sugestatildeo de Rubens Torres Filho o prefixo Da- germacircnico

128

foi definido como modalidades da consciecircncia para articulaccedilatildeo de suas qualidades

caracteriacutesticas ie os niacuteveis de registros simboacutelicos em que a consciecircncia articula

por exemplo as noccedilotildees de espaccedilo e tempo em significaccedilotildees distintas e

independentes tal como pretendeu esclarecer o exemplo da linha Mas aqui

diversamente do exemplo da linha tais modalidades seratildeo organizadas em sua

estrutura fenomenoloacutegica de acordo com a ordem de aparecimento e

desenvolvimento na consciecircncia Cada uma dessas funccedilotildees eacute largamente tratada

sobretudo no primeiro e terceiro volumes da Filosofia das Formas Simboacutelicas (jaacute que

o pensamento miacutetico eacute por definiccedilatildeo o que haacute de mais proacuteximo da funccedilatildeo

expressiva) que de fato estatildeo estruturadas a partir de cada uma das funccedilotildees107

Em seguida seratildeo apresentadas cada uma das funccedilotildees em sua ordem

fenomenoloacutegica bem como as caracteriacutesticas do encadeamento das formas

simboacutelicas em relaccedilatildeo a cada funccedilatildeo Contudo eacute preciso lembrar que essa

separaccedilatildeo eacute apenas uma abstraccedilatildeo natildeo eacute possiacutevel tratar isoladamente cada forma

uma vez que haacute uma interdependecircncia intriacutenseca a elas de tal sorte que seu papel

no conjunto da cultura soacute fica claro quando se eacute capaz de visualizar cada qual em

relaccedilatildeo agraves demais

remete ao ex- do latim (1975 p 173) Jaacute o termo Vorstellung eacute no vocabulaacuterio tradicional traduzido

por representaccedilatildeo ndash Stellen- implica colocar algo apresentar Vor- diante de si De acordo com as

premissas de Cassirer natildeo se pode entender Darstellung como exposiccedilatildeo na medida em que

exposiccedilatildeo sugere que o sujeito eacute capaz de apreender algo que em seguida seraacute exposto sem

interferir ativamente no ato da apreensatildeo ao passo que a representaccedilatildeo supotildee essa atividade ndash

nada aleacutem da dualidade kantiana das faculdades da sensibilidade e do entendimento Se Cassirer

supera ou evita essa dualidade natildeo se pode esperar que haja algo como a exposiccedilatildeo em sentido

tradicional Daiacute que toda Darstellung jaacute eacute de saiacuteda Vorstellung pois que para expor um dado objeto

ou mesmo para se colocar em oposiccedilatildeo a esse objeto na representaccedilatildeo o sujeito precisa antes

constituir simbolicamente o objeto para si

107 No Ensaio sobre o Homem a questatildeo das funccedilotildees estaacute diluiacuteda em capiacutetulos diversos e eacute quase

sempre tratada em oposiccedilatildeo ao que se passa com os demais animais eg a concepccedilatildeo de tempo e

espaccedilo (citada acima nota 95) que eacute exposta em relaccedilatildeo agrave complexidade dos organismos

129

A funccedilatildeo expressiva

Cassirer alerta embora seu princiacutepio geral seja semelhante agravequele de Hegel

a dialeacutetica na filosofia das formas simboacutelicas diverge da obra de Hegel em suas

fundaccedilotildees e em seu desenvolvimento Quanto agraves fundaccedilotildees haacute de se dizer que de

acordo com Cassirer eacute necessaacuterio buscar um momento ainda anterior agravequele que

Hegel toma como o primeiro estaacutegio da consciecircncia

O que se tem por haacutebito chamar de consciecircncia sensiacutevel a existecircncia de um bdquomundo

da percepccedilatildeo‟ que se divide em esferas da percepccedilatildeo nitidamente separadas nos

bdquoelementos‟ sensiacuteveis da cor do som etc isso mesmo jaacute eacute o produto de uma

abstraccedilatildeo uma elaboraccedilatildeo teoacuterica do bdquodado‟ (PSF II p 6 7)

A metaacutefora da escada usada por Hegel eacute mantida por Cassirer mas com a ressalva

de que esta necessita de mais um degrau anterior ao da consciecircncia sensiacutevel este

primeiro degrau que o filoacutesofo reivindica corresponde precisamente ao que eacute aqui

designado pela funccedilatildeo expressiva de modo que o primeiro estaacutegio da

fenomenologia hegeliana eacute realocado para o domiacutenio da funccedilatildeo representativa que

de fato abrange tambeacutem aquilo que Hegel toma como o segundo estaacutegio da

consciecircncia

A funccedilatildeo expressiva sendo a primeva no desenvolvimento108 da consciecircncia

natildeo deve ser tomada como um produto cultural ie como uma construccedilatildeo

deliberada do espiacuterito mas sim assumindo o ponto de vista da revoluccedilatildeo

108

Para Cassirer natildeo cabe falar exatamente em estaacutegios da consciecircncia como ficaraacute claro durante a

explicaccedilatildeo da dialeacutetica das formas simboacutelicas Por isso o termo usado aqui foi na falta de outro talvez

mais adequado desenvolvimento

130

copernicana de Kant o filoacutesofo toma o proacuteprio ato perceptivo como expressivo109

Dada a mudanccedila que ele propotildee em relaccedilatildeo ao idealismo tradicional (jaacute no primeiro

tomo da obra) para o qual haacute um domiacutenio da pura passividade e outro da pura

atividade segue-se que a noccedilatildeo mesma de passividade da sensaccedilatildeo eacute obliterada

pela expressividade que de acordo com o filoacutesofo eacute ainda anterior agrave sensaccedilatildeo

ldquoQuanto mais longe traccedilamos de volta a percepccedilatildeo () mais claramente o caraacuteter

puramente expressivo toma precedecircncia sobre a mateacuteria ou o caraacuteter de coisa O

entendimento da expressatildeo eacute essencialmente anterior ao conhecimento das coisasrdquo

(PSF III p 63) 110

Eacute por conta disso que a anaacutelise da pura expressatildeo da consciecircncia conduz agrave

investigaccedilatildeo da relaccedilatildeo fundamental entre alma e corpo

ldquoA relaccedilatildeo entre corpo e alma representa o protoacutetipo e modelo para uma relaccedilatildeo

puramente simboacutelica que natildeo pode ser convertida nem numa relaccedilatildeo entre coisas

nem numa relaccedilatildeo causal Aqui natildeo haacute originalmente nem interior e exterior nem

antes e depois nem agente nem efeito aqui temos uma combinaccedilatildeo que natildeo deve

ser composta de elementos separados mas que eacute num sentido primaacuterio um todo

significante que interpreta a si mesmo que se separa numa dualidade de fatores com

109

Aleacutem da exposiccedilatildeo ao longo do texto que deixa claro o fato de que a expressividade natildeo eacute uma

construccedilatildeo do espiacuterito essa ideacuteia eacute sutilmente exposta nos tiacutetulos dados a cada uma das trecircs seccedilotildees

que compotildeem o tomo sobre a fenomenologia do conhecimento (1) A funccedilatildeo expressiva e o mundo

da expressatildeo (2) O problema da representaccedilatildeo e a construccedilatildeo do mundo intuitivo (3) A funccedilatildeo da

significaccedilatildeo e a construccedilatildeo do conhecimento cientiacutefico Note-se que o termo construccedilatildeo [Bildung]

aqui destacado natildeo ocorre no primeiro caso Detalhes sobre a percepccedilatildeo expressiva seratildeo dados no

capiacutetulo seguinte

110 Note-se o uso dos termos entendimento para a expressatildeo e conhecimento para as coisas que nos

reconduz ao vocabulaacuterio de Dilthey acerca da diferenccedila de objetivos das ciecircncias naturais e das

ciecircncias do espiacuterito

131

vistas a interpretar-se neles Um acesso genuiacuteno ao problema corpo-alma eacute possiacutevel

somente se reconhecermos como um princiacutepio geral que todas as conexotildees de

coisas e conexotildees causais satildeo em uacuteltima instacircncia baseadas em tais relaccedilotildees de

significaccedilatildeo As uacuteltimas natildeo formam uma classe especial com as relaccedilotildees de coisa e

causais antes elas satildeo a pressuposiccedilatildeo constitutiva a conditio sine qua non sobre

as quais as relaccedilotildees de coisa e causais elas mesmas estatildeo baseadasrdquo (PSF III p

100)

Como se pode notar a relaccedilatildeo entre alma e corpo de que fala Cassirer eacute

radicalmente diversa daquela de Descartes onde haacute duas substacircncias antocircnimas e

pertencentes a causalidades distintas Em vez de meditar em direccedilatildeo ao cogito e

depois investigar a uniatildeo entre alma e corpo a preocupaccedilatildeo aqui eacute exatamente

oposta como a consciecircncia diferencia ambos111

ldquoA interpretaccedilatildeo que distingue os aspectos corporais e sensiacuteveis se origina na accedilatildeo

fiacutesica o fazer e sentir que acompanham a confrontaccedilatildeo fiacutesica de algueacutem com o

mundo A reflexatildeo entra como pensamento [thinking] sobre a accedilatildeo inteligente num

sentido corpoacutereo natildeo como pensamento [thinking] sobre o pensamento [thought]rdquo

(KROIS 1987 p 57 58)

A exposiccedilatildeo de Cassirer acerca da funccedilatildeo expressiva se daacute em trecircs frentes de

acordo com Krois (1) descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (2) investigaccedilatildeo empiacuterica

(especialmente relacionada agrave psicologia da Gestalt) e (3) interpretaccedilatildeo miacutetica Em

111

Krois chama a atenccedilatildeo para o fato de que essa relaccedilatildeo que Cassirer postula entre corpo e alma eacute

o ponto de partida de Merleau-Ponty em sua Fenomenologia da Percepccedilatildeo na qual se refere

explicitamente ao autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas Ainda segundo Krois a relaccedilatildeo de que

fala Cassirer natildeo deve ser entendida como um ldquonovo cogitordquo tal qual Merleau-Ponty propotildee A

pregnacircncia simboacutelica antes eacute a condiccedilatildeo de possibilidade do cogito Cf 1987 p 59 A relaccedilatildeo

corpo-alma eacute tambeacutem abordada em LKW (Cf p 106 e ss)

132

relaccedilatildeo agrave descriccedilatildeo fenomenoloacutegica (aqui no sentido de Husserl) e agrave investigaccedilatildeo

empiacuterica jaacute se falou suficientemente na seccedilatildeo dedicada agrave pregnacircncia simboacutelica

Basta apenas ressaltar que a fenomenologia ainda que seja indispensaacutevel para dar

conta da funccedilatildeo expressiva tende a tomar a significaccedilatildeo expressiva como atos da

consciecircncia e redundar em introspecccedilatildeo como se o ego tivesse desde sempre

consciecircncia de si e a partir disso pudesse inferir a existecircncia de outras mentes e do

mundo externo Ao proceder desse modo a fenomenologia cria pseudoproblemas

tais como o da existecircncia de outras mentes Por conta disso a funccedilatildeo expressiva

deve dar conta da genealogia do ego ndash o que eacute feito aqui a partir da psicologia e do

mito

A psicologia tambeacutem corre o risco de cometer o mesmo erro em que cai a

fenomenologia no momento em que ela inverte a ordem dos fenocircmenos e entende

a percepccedilatildeo como anterior agrave expressatildeo tomando o fenocircmeno expressivo como um

epifenocircmeno da sensaccedilatildeo o qual por sua vez eacute tomado como um produto da

mente ndash seja interpretaccedilatildeo intenccedilatildeo siacutentese empatia ou outro Dessa forma ela

coloca no fenocircmeno algo que natildeo estaacute originalmente laacute e ignora a imediaticidade

que marca a expressatildeo O fenocircmeno expressivo ldquonatildeo eacute um apecircndice subjetivo que eacute

subsequumlentemente e por assim dizer acidentalmente adicionado ao conteuacutedo

objetivo da sensaccedilatildeo ao contraacuterio ele eacute parte do fato essencial da percepccedilatildeordquo

(PSF III p 73) Nesse sentido Cassirer vecirc com bons olhos os avanccedilos da psicologia

da Gestalt em relaccedilatildeo agrave psicologia empiacuterica pois que mesmo hesitante lanccedila-se a

um campo diverso daquele da psicologia empiacuterica De fato o postulado-base da

Gestalt a saber o de que a apreensatildeo do todo eacute anterior agrave das partes jaacute se

apresenta como diametralmente oposto agrave ideacuteia de que a percepccedilatildeo teria a funccedilatildeo de

organizar uma massa de sensaccedilotildees informes para que entatildeo estas passassem a ser

133

um conhecimento propriamente dito Para a Gestalt como lembra Hoel (2002 p

191) a funccedilatildeo da percepccedilatildeo eacute a de dissociaccedilatildeo a tarefa da consciecircncia eacute antes a

de decompor o todo da experiecircncia Experienciar eacute conceitualizar por meio do

estabelecimento de fronteiras e divisotildees ndash fazendo distinccedilotildees significativas Assim

como a pregnacircncia simboacutelica o fenocircmeno da expressatildeo eacute um Urphaumlnomen eacute aqui

que se encontra o grau zero da experiecircncia ndash num momento em que nenhuma

distinccedilatildeo ainda foi feita112

Quanto ao mito pode-se dizer que eacute o grande paradigma e o acesso

privilegiado ao mundo da expressividade do qual fala Cassirer

ldquoAo lidar com os problemas e com a fenomenologia da pura experiecircncia da

expressatildeo natildeo podemos nos confiar ao comando e orientaccedilatildeo nem do conhecimento

conceitual nem da linguagem Ambos estatildeo primariamente a serviccedilo da objetivaccedilatildeo

teoacuterica eles constroem o mundo do logos como pensamento e do logos falado

Entatildeo em relaccedilatildeo agrave expressatildeo eles tomam uma direccedilatildeo centriacutefuga em vez de

centriacutepeta O mito entretanto nos coloca no centro vivo dessa esfera pois sua

particularidade consiste precisamente em mostrar-nos um modo de formaccedilatildeo de

mundo que eacute independente de todos os modos de mera objetivaccedilatildeordquo (PSF III p 67)

Eacute por conta dessa caracteriacutestica distintiva do mito ndash que natildeo reconhece uma divisatildeo

estanque entre real e irreal entre essecircncia e aparecircncia coisa e fenocircmeno ndash que ele

deve se integrar ao

ldquociacuterculo geral de problemas denominado por Hegel de bdquofenomenologia do espiacuterito‟ Jaacute

mediante a proacutepria formulaccedilatildeo do seu conceito por Hegel pode-se concluir que o

112

Eacute importante tambeacutem ressaltar que o fenocircmeno da expressatildeo natildeo eacute privileacutegio da espeacutecie humana

Cassirer cita inuacutemeros exemplos da psicologia animal como se pode notar em PSF III 74 e ss

134

mito estaacute numa relaccedilatildeo iacutentima e necessaacuteria com a tarefa universal da fenomenologia

do espiacuterito [] o ponto de partida autecircntico para todo o vir-a-ser da ciecircncia seu

comeccedilo no imediato encontra-se menos na esfera do sensiacutevel do que na esfera da

intuiccedilatildeo miacutetica (PSF II p 56)

Assim eacute o mito que preencheraacute o espaccedilo da pura expressividade que compreende o

primeiro degrau da escada fenomenoloacutegica de que fala Hegel Ele eacute o estaacutegio

primaacuterio de elaboraccedilatildeo da consciecircncia que a partir de sua indistinccedilatildeo caracteriacutestica

serviraacute de solo para fundar as demais formas simboacutelicas

ldquoMais do que isso precisamos reconhececirc-lo como um meio da proacutepria bdquocrise‟ um

meio do grande processo espiritual de distinccedilatildeo graccedilas ao qual do caos do primeiro

sentimento de vida indeterminado surgem determinadas formas primordiais da

consciecircncia social e individual Neste processo os elementos da existecircncia social

assim como os da existecircncia fiacutesica constituem apenas a mateacuteria que soacute recebe sua

verdadeira forma atraveacutes de certas categorias espirituais fundamentais que natildeo estatildeo

nela mesma nem satildeo derivadas delardquo (PSF II p 301)

Assim ainda que no mito seja encontrado o acesso privilegiado agrave expressividade

ele natildeo pode ser reduzido agrave mera passividade ndash ainda que do ponto de vista da

consciecircncia miacutetica em seus esboccedilos iniciais ela tome a si mesma como passiva

Tampouco a investigaccedilatildeo do mito trata de um problema histoacuterico ou geneacutetico

apenas e que possa dessa forma ser levado a cabo a partir de uma investigaccedilatildeo

psicoloacutegica Trata-se agora de uma necessidade para a compreensatildeo da proacutepria

razatildeo jaacute que ela natildeo pode superar o mito simplesmente expulsando-o de seus

135

domiacutenios e vecirc ao mesmo tempo que os alicerces sobre os quais pensava se

apoiar na verdade satildeo ainda desconhecidos113

ldquoO surgimento das figuras [Gebilde] singulares e especiacuteficas do espiacuterito a partir da

generalidade e indiferenccedila da consciecircncia miacutetica natildeo pode ser verdadeiramente

entendido se a proacutepria fonte primordial permanecer um enigma incompreendido ndash se

em vez de nele ser reconhecida uma forma proacutepria da formaccedilatildeo espiritual ele for

visto somente como um caos amorfordquo (PSF II p 5)

Vale ressaltar que ao mencionar a importacircncia do mito para o conhecimento

Cassirer faz referecircncia expliacutecita a Comte para quem a ldquociecircncia soacute atinge sua forma

proacutepria na medida em que expurga todos os componentes miacuteticos e metafiacutesicosrdquo

(PSF II p 8) Essa referecircncia alude ao debate entre as ciecircncias naturais e humanas

mas por outro acircngulo o sistema das ciecircncias do espiacuterito deve repousar sobre o mito

como um dos seus fundamentos Entre histoacuteria e mito exemplifica Cassirer ldquonatildeo se

pode fazer nenhuma clara separaccedilatildeo loacutegica [] ao contraacuterio toda compreensatildeo

histoacuterica estaacute impregnada de elementos genuinamente miacuteticos e estaacute

necessariamente ligada a elesrdquo (Idem p 9) As consideraccedilotildees sobre o mito

entretanto que satildeo feitas a partir de seu exterior ndash sobretudo a partir da ciecircncia ndash

natildeo conseguem resolver o problema o mito reivindica sua cidadania no corpo da

cultura e ldquosomente atraveacutes da anaacutelise de sua estrutura espiritual pode-se determinar

por um lado seu sentido proacuteprio e por outro seu limiterdquo (Idem ibidem)

113

Aleacutem da importacircncia para a questatildeo do conhecimento o mito eacute fundamental para as discussotildees

sobre eacutetica e poliacutetica que satildeo desenvolvidas de maneira mais acabada em The Myth of the State A

questatildeo da crise da razatildeo de que ora tratou-se aqui leva diretamente a esse aspecto eacutetico do mito

Contudo dado o foco do presente texto seratildeo detalhadas somente as implicaccedilotildees relativas ao

problema do conhecimento As demais seratildeo aludidas em momentos oportunos

136

A investigaccedilatildeo do mito em Cassirer eacute de maneira inquestionaacutevel sua tarefa

ao mesmo tempo mais ousada e mais original Ainda que apoiada

metodologicamente em Schelling primeiro a sugerir que o mito deve ser tratado natildeo

meramente como alegoria e (parcialmente) em Vico ldquodescobridorrdquo do mito na

modernidade114 Cassirer necessita encontrar ou formular um meacutetodo que decirc conta

da investigaccedilatildeo do mito natildeo tanto em seus conteuacutedos mas sim em sua sistemaacutetica

em sua forma

ldquoO fenocircmeno que propriamente aqui deve ser entendido natildeo eacute o conteuacutedo da

representaccedilatildeo miacutetica como tal mas a significaccedilatildeo que esse conteuacutedo possui para a

consciecircncia humana e o poder espiritual que exerce sobre ela [] Pois mesmo

admitindo que por esse caminho o teor puramente teoacuterico e intelectual do miacutetico

pudesse se fazer compreensiacutevel mesmo assim permaneceria inteiramente

inexplicada a por assim dizer dinacircmica da consciecircncia miacutetica a incomparaacutevel forccedila

que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo (PSF II p 20)115

Uma vez que o objetivo do trabalho natildeo eacute tanto investigar os percalccedilos

metodoloacutegicos da investigaccedilatildeo da consciecircncia miacutetica basta apenas dizer que a

ldquocriacutetica da consciecircncia miacuteticardquo seguindo a ideacuteia de que a consciecircncia tem qualidades

que se desenvolvem em determinadas modalidades como jaacute apresentado aqui se

voltaraacute agraves formas anaacutelogas baacutesicas em que a consciecircncia experiencia o mundo

114

ldquoVico deve ser chamado de o real descobridor do mito Ele imergiu em seu variegado mundo de

formas e aprendeu por seus estudos que esse mundo tem sua estrutura peculiar ordenaccedilatildeo do

tempo e linguagem Ele fez as primeiras tentativas para se decifrar essa linguagem desenvolvendo

um meacutetodo pelo qual interpretar as bdquofiguras sagradas‟ os hieroacuteglifos do mitordquo (EP IV p 296)

115 Quando Cassirer fala em ldquoincomparaacutevel forccedila que sempre prova na histoacuteria do espiacuterito humanordquo

natildeo se pode descartar que esteja se referindo ao seu momento histoacuterico vivido Como fica claro em

The Myth of the State Cassirer vecirc na campanha do nazismo entatildeo ascendente e latente teacutecnicas

claramente miacuteticas de convencimento popular Cf esp cap XVIII

137

espaccedilo e tempo e tambeacutem agraves concepccedilotildees miacuteticas de nuacutemeros e causalidade Em

todas elas eacute mostrado de que modo a consciecircncia em sua elaboraccedilatildeo primaacuteria de

um mundo exterior esboccedila suas primeiras articulaccedilotildees suas primeiras dissociaccedilotildees

do todo da percepccedilatildeo em ordenaccedilotildees ldquosistemaacuteticasrdquo Como exemplo geral da

fenomenologia da consciecircncia miacutetica e de como ela eacute de fato o paradigma baacutesico

para o fenocircmeno da expressatildeo tratar-se-aacute aqui da fenomenologia do Eu

Partindo do fato de que o sentimento primeiro e imediato da consciecircncia

antes mesmo de refletir sobre si mesma eacute o de vida e que este eacute inicialmente

entendido como uma unidade fluida de todas as coisas a consciecircncia natildeo pode

senatildeo tomar-se como parte dessa unidade A consciecircncia percebe a vida como

ldquoabsolutardquo e se sente integrada aos fenocircmenos expressivos que presencia (Eacute por

isso que seria um erro tratar o mito como uma tendecircncia animista dado que isso jaacute

pressupotildee uma divisatildeo anterior entre o que faz e o que natildeo faz parte da vida bem

como a capacidade deliberada de uma consciecircncia-de-si de atribuir determinadas

caracteriacutesticas a objetos determinados) Todos esses fenocircmenos por sua vez se

apresentam agrave consciecircncia em sua pura expressatildeo imediatamente

ldquoLaacute onde o bdquosignificado‟ do mundo eacute ainda tomado como o da expressatildeo pura cada

fenocircmeno revela um bdquocaraacuteter‟ determinado que natildeo eacute meramente deduzido ou

inferido a partir dele mas que pertence a ele imediatamente Ele eacute nele mesmo

sombrio ou alegre agitante ou calmante apaziguador ou terrificante Essas

determinaccedilotildees satildeo valores expressivos e fatores aderentes aos fenocircmenos eles

mesmos natildeo satildeo meramente derivados deles indiretamente por meio dos sujeitos

que tomamos como situados por detraacutes dos fenocircmenosrdquo (PSF III p 72)

Assim a consciecircncia-de-si natildeo deve ser tomada como presente desde o iniacutecio ao

contraacuterio ela estaacute no fim do desenvolvimento Somente aos poucos a consciecircncia

138

consegue estabelecer relaccedilotildees entre os fenocircmenos e determinaacute-los em

oposiccedilotildees116 a partir das quais em retorno poderaacute determinar a si mesma Do

mesmo modo que a percepccedilatildeo do mundo se desenvolve a partir da accedilatildeo da

consciecircncia sobre as coisas a determinaccedilatildeo do subjetivo e do objetivo se constroacutei

natildeo como um produto de reflexatildeo de consideraccedilatildeo teoacuterica a oposiccedilatildeo entre

subjetivo e objetivo se daacute igualmente pela accedilatildeo ldquoQuanto mais avanccedila a consciecircncia

da accedilatildeo tanto mais nitidamente eacute marcada essa cisatildeo tanto mais claramente

aparecem os limites entre bdquoeu‟ e bdquonatildeo-eu‟rdquo (PSF II p 268) A marca inicial das accedilotildees

lembra o filoacutesofo satildeo nada mais do que transferecircncias para o campo objetivo de

paixotildees e pulsotildees subjetivas

ldquoA primeira forccedila com a qual o homem enfrenta as coisas como algo proacuteprio e

autocircnomo eacute a forccedila do desejo Nele o homem natildeo aceita simplesmente o mundo a

realidade das coisas mas no desejo ele o constroacutei para si mesmo O que se

manifesta no desejo eacute a primeira e mais primitiva consciecircncia da capacidade de

configuraccedilatildeo do serrdquo (PSF II p 269) 117

Mas essa configuraccedilatildeo natildeo significa ainda que a consciecircncia se identifique consigo

mesma como um ser separado que atua sobre as coisas antes ela se vecirc como

116

A oposiccedilatildeo fundamental da elaboraccedilatildeo miacutetica estaacute na separaccedilatildeo entre sagrado e profano os

fenocircmenos satildeo caracterizados como portadores de caracteriacutesticas divinas ou demoniacuteacas Em

seguida ficaraacute claro como o conteuacutedo dos motivos miacuteticos satildeo basicamente os mesmos daqueles da

religiatildeo

117 Cassirer fala em pulsotildees e em desejo remetendo-se explicitamente a Freud de quem toma

tambeacutem a expressatildeo ldquoonipotecircncia do pensamentordquo Entretanto natildeo parece que ele esteja aqui

tratando o mito como uma questatildeo psicanaliacutetica Eacute pouco provaacutevel que o mito possa ser entendido

como uma dimensatildeo inconsciente ou subconsciente de fato seria interessante considerar em que

medida a teoria das formas simboacutelicas admite tal dimensatildeo ldquoinconscienterdquo Certo eacute que tal dimensatildeo

natildeo faria sentido ndash tendo em conta o vieacutes fenomenoloacutegico radical que propotildee ndash se tomado como um

inconsciente individual

139

parte do que configura na medida em que ela pretende submeter todo o ser ao seu

desejo ldquomas eacute justamente nessa tentativa que ele [o Eu] se mostra ainda totalmente

dominado totalmente bdquopossuiacutedo‟ por elasrdquo (Idem ibidem) Eacute por conta disso que a

primeira noccedilatildeo de alma no pensamento miacutetico natildeo eacute a de uma entidade metafiacutesica

ou de uma substacircncia com determinadas propriedades imutaacuteveis ou como ldquosederdquo

da personalidade Todas essas caracteriacutesticas satildeo produtos de reflexotildees e

determinaccedilotildees posteriores

ldquoA unidade de sua consciecircncia-de-si e do seu sentimento-de-si nesse niacutevel natildeo eacute

absolutamente constituiacutedo pela bdquoalma‟ como um bdquoprinciacutepio‟ autocircnomo separado do

corpo Enquanto o homem vive enquanto existe com corporalidade concreta e com

efeito sensiacutevel seu eu sua personalidade estaacute compreendido na totalidade dessa

sua experiecircncia Sua existecircncia material e suas funccedilotildees e atividades bdquopsiacutequicas‟ seu

sentimento sua sensibilidade e vontade formam um todo em si indiviso e

indiferenciadordquo (PSF II p 277) 118

As primeiras divisotildees do Eu na verdade satildeo determinadas a partir da diversidade

dos proacuteprios conteuacutedos com os quais a consciecircncia se confronta estes entatildeo se

convertem em oposiccedilotildees significativas que marcam seccedilotildees ou fases (no contiacutenuo)

118

Cassirer apresenta uma seacuterie de exemplos histoacutericos sobre as concepccedilotildees de alma em povos

distintos com o fim de mostrar como a concepccedilatildeo dela como unidade simples eacute posterior ao ponto

de diferentes culturas conceberem a existecircncia simultacircnea no indiviacuteduo de mais de uma alma (Cf

PSF II p 278-9) Eacute por isso que para ele a alma eacute ao mesmo tempo o iniacutecio e o fim do pensamento

miacutetico ldquoO conceito de alma pode com o mesmo direito ser caracterizado tanto como fim como

quanto iniacutecio do pensamento miacutetico O teor desse conceito e sua envergadura espiritual residem

justamente em que ele eacute igualmente iniacutecio e fim Numa constante evoluccedilatildeo numa conexatildeo

ininterrupta de configuraccedilotildees ele nos leva de um extremo a outro da consciecircncia miacutetica ele aparece

como o mais imediato e o mais mediatordquo (PSF II p 267-8) Assim o comeccedilo do mito marca a noccedilatildeo

de alma como fundida na fluidez da vida seu fim eacute a determinaccedilatildeo do sujeito consciente-de-si da

alma como sede da personalidade e sede da vida

140

da vida ldquoEacute um novo eu que comeccedila com cada nova fase de vida caracteriacutesticardquo

(Idem p 281)119 Assim a primeira oposiccedilatildeo da subjetividade natildeo eacute uma coisa

exterior mas um ldquoturdquo [Du] ou ldquoelerdquo [Er] dos quais o eu se diferencia ao mesmo

tempo para em seguida se reunir120

Outras determinaccedilotildees do Eu provecircm ainda de seu contato com outros

indiviacuteduos com os quais partilha das mesmas accedilotildees

ldquoO eu sente e sabe a si mesmo apenas na medida em que se compreende como

membro de uma comunidade na medida em que se vecirc unido a outros na unidade de

um clatilde de uma tribo de uma liga social Somente nesta unidade e atraveacutes dela ele

possui a si mesmo sua vida e existecircncia proacuteprias estatildeo ligadas em cada uma dessas

manifestaccedilotildees agrave vida do conjunto que os abrange como se por laccedilos maacutegicos

invisiacuteveis Somente aos poucos essa ligaccedilatildeo pode afrouxar-se e dissolver-se pode-

se chegar a uma autonomia do eu ante os ciacuterculos de vida que os cercamrdquo (PSF II p

298)

Aqui se nota que o problema de ldquooutras mentesrdquo eacute eliminado na medida em que a

accedilatildeo conjunta com outros indiviacuteduos eacute anterior agrave determinaccedilatildeo de si mesmo como

independente de tal sorte que essa determinaccedilatildeo se consolida natildeo em oposiccedilatildeo ao

exterior e agraves outras mentes mas a partir do exterior cuja significaccedilatildeo deve ser

entendida como produto da accedilatildeo de cada mente Se o conhecimento de si mesmo

proveacutem da accedilatildeo ndash e do reconhecimento de si na accedilatildeo ndash do mesmo modo o

119

Como exemplo desse ldquoponto criacutetico de passagemrdquo Cassirer cita o caso de uma tribo do interior da

Libeacuteria para a qual a passagem da fase infantil para a adulta significava natildeo uma evoluccedilatildeo mas a

aquisiccedilatildeo de um novo ser (PSF II p 281)

120 A distinccedilatildeo da relaccedilatildeo do Eu com o Du ou com o Es (anaacuteloga agravequela que aqui se faz entre o Du e

o Er para a determinaccedilatildeo da personalidade) marca a distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo de coisa e percepccedilatildeo

de expressatildeo (LKW cap II) e eacute fundamental para a discussatildeo da cultura Abordaremos a questatildeo no

capiacutetulo seguinte

141

conhecimento do outro se daacute O problema de outras mentes soacute se constitui enquanto

tal quando se admite uma interioridade consciente-de-si antes mesmo da accedilatildeo que a

consciecircncia exerce sobre o mundo O sentimento comunitaacuterio eacute anterior ao

sentimento-de-si como se verifica por dados histoacutericos De fato a proacutepria estrutura

social se constroacutei ainda dentro e a partir da esfera miacutetica121 A individualidade a

personalidade deriva do sentimento de comunidade que em seu bojo carrega uma

seacuterie de determinaccedilotildees miacutetico-religiosas

A anterioridade da coletividade em relaccedilatildeo agrave individualidade eacute o que Cassirer

vecirc como diferenccedila essencial entre Soacutecrates e Platatildeo enquanto aquele abordara o

homem individual este buscou estudaacute-lo em sua vida poliacutetica e social ldquoA filosofia

natildeo pode dar-nos uma teoria satisfatoacuteria do homemrdquo diz Cassirer

ldquosem antes desenvolver uma teoria do Estado A natureza do homem estaacute escrita em

letras maiuacutesculas na natureza do Estado Nesta o sentido oculto do texto surge de

repente e o que parecia obscuro e confuso torna-se claro e legiacutevelrdquo (EM p 108)

E a esta ideacuteia Cassirer acrescenta a necessidade de se estudar todas as formas de

interaccedilatildeo humana anteriores agrave proacutepria consolidaccedilatildeo de um Estado ldquoO Estado por

mais importante que seja natildeo eacute tudo Natildeo pode expressar e absorver as todas as

outras atividades do homemrdquo (Idem ibidem) Daiacute a necessidade de dar conta de

121

Cassirer recorre agrave argumentaccedilatildeo de Schelling para refutar a ideacuteia de que o sistema miacutetico de uma

dada sociedade deriva de sua organizaccedilatildeo social Ora o que caracteriza um povo eacute justamente a

consciecircncia comum que eacute dada justamente pela mitologia desse povo Cf PSF II p 299-300 Aleacutem

de recorrer a Schelling Cassirer tambeacutem faz uso dos argumentos de Durkheim e Weber e diversos

outros historiadores Haacute uma longa e detida anaacutelise das implicaccedilotildees socioloacutegicas dos sistemas

miacuteticos ndash tanto na configuraccedilatildeo das relaccedilotildees sociais quanto para a constituiccedilatildeo do sentimento de si

Natildeo cabe aqui tratar de cada um dos exemplos (que vatildeo desde a mitologia grega ateacute a organizaccedilatildeo

totecircmica) Para mais Cf PSF II p 310-27

142

todas as manifestaccedilotildees humanas histoacuteria arte linguagem religiatildeo mito etc Cada

uma entendida como tijolos necessaacuterios para a construccedilatildeo da cultura e para o

conhecimento-de-si do homem

Funccedilatildeo representativa

Agrave medida que a consciecircncia-de-si se desenha ela esboccedila os primeiros

passos em direccedilatildeo agrave funccedilatildeo representativa Essa funccedilatildeo natildeo se efetivaria sem a

construccedilatildeo de uma linguagem ou melhor dizendo ela se desenvolve na medida em

que a linguagem consegue romper a imanecircncia da expressividade e ldquonomearrdquo os

fenocircmenos que criam os primeiros pontos de estabilidade da consciecircncia

ldquoSe procurarmos a origem dessa ruptura dessa diferenciaccedilatildeo e articulaccedilatildeo nos

encontraremos levados aleacutem da esfera da expressatildeo para aquela da representaccedilatildeo

aleacutem da regiatildeo espiritual na qual o mito estaacute preeminentemente em casa para a

regiatildeo da linguagem Somente no meio da linguagem a diversidade infinita a

multiformidade afluente de experiecircncias expressivas comeccedila a ser fixada somente

numa linguagem elas ganham bdquonome e forma‟ O proacuteprio nome do deus torna-se a

origem da figura pessoal do deus e atraveacutes dessa mediaccedilatildeo atraveacutes da

representaccedilatildeo do deus pessoal a representaccedilatildeo do proacuteprio Eu do homem seu bdquosi

mesmo‟ eacute primeiramente encontrada e asseguradardquo (PSF III 77)

Inicialmente a linguagem se volta ao mundo miacutetico ndash na constituiccedilatildeo das narrativas

miacuteticas De fato o mito seria inconcebiacutevel sem a linguagem122 ndash mas ao mesmo

122

De acordo com artigo de Recki (2003) o conceito de mito natildeo pode ser um em que a linguagem

natildeo estaacute presente nem um em que ela jaacute foi superada A questatildeo da importacircncia da linguagem na

obra de Cassirer bem como a posiccedilatildeo particularmente importante que ela ocupa no conjunto das

formas simboacutelicas eacute aiacute desenvolvida pela autora que chama a atenccedilatildeo ao fato de que a linguagem

143

tempo ela eacute um dos principais instrumentos que possibilitaratildeo sua superaccedilatildeo e a

construccedilatildeo das demais formas simboacutelicas ndash natildeo no sentido de que estas dependam

da linguagem enquanto tais mas no sentido de que ela estaacute presente em todas as

demais formas simboacutelicas ldquoA linguagem encontra-se num foco do ser espiritual para

o qual convergem radiaccedilotildees das mais diversas procedecircncias e do qual partem

linhas diretrizes rumo a todas as esferas do espiacuteritordquo (PSF I p 172) Esse fato ao

mesmo tempo em que mostra como a filosofia da linguagem eacute central na obra de

Cassirer (e particularmente no sistema das formas simboacutelicas) explica porque a

ordem de publicaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas natildeo corresponde agrave ordem

do desenvolvimento fenomenoloacutegico da consciecircncia

De fato a linguagem natildeo eacute anterior ao mito do ponto de vista

fenomenoloacutegico Mas ela surge ainda neste momento do desenvolvimento da

consciecircncia e eacute ela que possibilita ao mito ldquofixarrdquo as primeiras determinaccedilotildees dos

fenocircmenos No texto Sprache und Mythos ambos mito e linguagem satildeo descritos

como ldquoramos diversos do mesmo impulso de enformaccedilatildeo simboacutelica [symbolischen

Formung] que brota de um mesmo ato fundamental e da elaboraccedilatildeo espiritual da

concentraccedilatildeo e elevaccedilatildeo da simples percepccedilatildeo sensorialrdquo (SM p 106 ndash grifo

nosso) Sua interaccedilatildeo eacute responsaacutevel pela primeira transposiccedilatildeo objetiva de ldquomoccedilotildees

e comoccedilotildees aniacutemicasrdquo trata-se do primeiro estaacutegio de simbolizaccedilatildeo de ruptura com

a imediaticidade do sentimento de vida e de objetivaccedilatildeo ainda que incipiente Por

conta do parentesco de origem que apresentam a investigaccedilatildeo entre mito e

linguagem eacute essencialmente genealoacutegica ldquocumpre percorrer os caminhos do mito e

da linguagem natildeo para frente mas sim para traacutesrdquo diz Cassirer

estaacute presente substancialmente no Ensaio sobre o Homem aleacutem de ser tema de inuacutemeros textos

menores e artigos publicados por Cassirer

144

ldquocumpre retroceder ateacute o ponto de onde irradiam ambas as linhas divergentes Este

ponto comum parece ser realmente demonstraacutevel jaacute que por mais que se

diferenciem entre si os conteuacutedos do mito e da linguagem atua neles uma mesma

forma de concepccedilatildeo mental Trata-se daquela forma que para abreviar podemos

denominar o pensar metafoacutericordquo (SM p 102)

No capiacutetulo conclusivo desse texto Cassirer trabalha uma concepccedilatildeo muito

particular de metaacutefora trata-se da metaacutefora radical [radikaler Metapher]

Diferentemente da metaacutefora comum entendida como o ato consciente de

denotaccedilatildeo de transposiccedilatildeo de uma palavra de um objeto a outro pelo

reconhecimento de alguma analogia entre ambos como faz o poeta por exemplo a

metaacutefora radical natildeo eacute um expediente artiacutestico mas sim uma necessidade ldquoeacute uma

condiccedilatildeo quer da verbalizaccedilatildeo [Sprachbildung] quer da conceituaccedilatildeo

[Begriffsbildung] miacuteticasrdquo

ldquoDe fato mesmo a mais primitiva exteriorizaccedilatildeo linguumliacutestica jaacute exigia a transposiccedilatildeo de

um certo conteuacutedo perceptivo ou sensitivo em sons isto eacute em um meio estranho

mesmo e talvez divergente com relaccedilatildeo a este conteuacutedo de modo que ateacute a forma

miacutetica mais simples soacute pode surgir em virtude de uma transformaccedilatildeo pela qual uma

determinada impressatildeo eacute levantada por sobre a esfera do comum do cotidiano e do

profano e impelida para o ciacuterculo do sagrado do significativo do ponto de vista

miacutetico-religioso Aqui se produz natildeo soacute uma transferecircncia mas tambeacutem uma

autecircntica metaacutebasiV eIcircV Aacutello gaelignoV na verdade o que acontece natildeo eacute apenas uma

transposiccedilatildeo para uma outra classe jaacute existente mas a proacutepria criaccedilatildeo da classe em

que ocorre a passagemrdquo (SM p 105-06)123

123

Aleacutem do mito e da linguagem a arte tambeacutem tem sua origem na metaacutefora como mostra o texto

Der Begriff der symbolischen Formen im Aufbau der Geisteswissenschaften p 164 e ss

145

Mas se linguagem e mito satildeo inextricaacuteveis em sua origem ainda assim se

desenvolvem em tendecircncias opostas a primeira tende agrave representaccedilatildeo ao passo

que o mito natildeo pode senatildeo persistir na pura expressividade124 A linguagem busca

inserir o particular no universal de modo que o conteuacutedo imediato seja nada aleacutem de

um ponto de partida ao passo que o mito concentra a percepccedilatildeo no imediato ldquoem

lugar de sua distribuiccedilatildeo extensiva sua compreensatildeo intensivardquo (Idem p 52) Aqui

fica claro em que sentido Cassirer fala no poder libertador do siacutembolo e em que

medida esse poder estaacute atrelado ao papel da linguagem mesmo as primeiras

determinaccedilotildees linguumliacutesticas ndash os primeiros signos do pensamento ndash jaacute se mostram

capazes de estabelecer um esboccedilo de distacircncia entre sujeito e objeto (de fato a

distacircncia eacute a marca por excelecircncia do objeto [Gegenstand]) e abre caminho ainda

que a passos trocircpegos para a consciecircncia superar a imanecircncia da expressatildeo e

lanccedilar-se em direccedilatildeo agrave representaccedilatildeo [Darstellung]125

No que tange agrave dialeacutetica das formas simboacutelicas a funccedilatildeo representativa

[Darstellungsfunktion] tal qual Cassirer a concebe abrange desde as primeiras

determinaccedilotildees ldquoobjetivasrdquo ndash a consciecircncia sensiacutevel de Hegel ndash ateacute o momento em

que a consciecircncia consegue se desprender de toda a referecircncia agrave sensibilidade e

124

No texto de Habermas (1997) sobre Cassirer ndash o primeiro da publicaccedilatildeo cuja traduccedilatildeo para o

inglecircs leva o nome de Liberating Power of Symbols (mesmo nome do artigo de Habermas sobre

Cassirer) claramente tomado do autor da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash o frankfurtiano trata da

oposiccedilatildeo entre mito e linguagem chamando a atenccedilatildeo para o fato de que o primeiro manteacutem-se na

plena ldquoobscuridade do ser da qual soacute o discurso proposicional pode livrar ao dar-lhe bdquoarticulaccedilatildeo

linguumlisticamente acessiacutevel‟rdquo (p 11) Consequumlentemente a partir da linguagem apenas a progressiva

ldquolibertaccedilatildeordquo que o siacutembolo promove teria seu iniacutecio

125 Cassirer destaca trecircs estaacutegios da linguagem (tanto falada quanto escrita) mimeacutetico analoacutegico e

simboacutelico No primeiro natildeo haacute tensatildeo entre o signo linguumliacutestico e o conteuacutedo ao qual se refere aos

poucos a linguagem cria um distanciamento entre som (ou grafia) e significaccedilatildeo por fim apoacutes

romper as amarras restantes em relaccedilatildeo agrave substancialidade da referecircncia a linguagem alcanccedila a sua

idealidade como funccedilatildeo simboacutelica Mais detalhes a respeito de cada um dos estaacutegios Cf PSF I esp

cap 2

146

desse modo firmar-se na pura significaccedilatildeo (Aqui de fato comeccedilam a aparecer as

divergecircncias de desenvolvimento de que fala Cassirer) Destarte todas as accedilotildees

humanas que se encontram nesse domiacutenio podem ser consideradas

representativas a arte e a religiatildeo parecem ser as duas formas mais significativas

desse estaacutegio tanto eacute que a parte conclusiva do segundo tomo das Formas

Simboacutelicas eacute dedicada agrave Dialeacutetica da Consciecircncia Miacutetica Nela Cassirer aborda tanto

a dialeacutetica interna da consciecircncia miacutetica ndash a transformaccedilatildeo interior que o mito sofre

quando coloca diante de si suas proacuteprias configuraccedilotildees seu mundo de imagens jaacute

que ao mesmo tempo em que soacute pode se manifestar atraveacutes dessas imagens elas

em seu desenvolvimento se mostram ldquoexterioresrdquo agrave imanecircncia expressiva que o

mito reivindica motivo pelo qual o mito se vecirc obrigado a negar suas proacuteprias

criaccedilotildees ndash no ponto em que o mito sofre uma cisatildeo interior que o faz implodir para

poder persistir em seus proacuteprios domiacutenios ldquoAgrave constante construccedilatildeo do mundo miacutetico

de imagens corresponde o constante esforccedilo de sair dele [] o processo de

destruiccedilatildeo se comprova como um processo de auto-afirmaccedilatildeo assim como o uacuteltimo

soacute pode se realizar graccedilas ao primeirordquo (PSF II p 395) De acordo com o texto de

Cassirer o mito sofre duas cisotildees radicais (aleacutem das transformaccedilotildees que a

linguagem produz como jaacute tratado) Ambas as cisotildees tecircm seu foco nas imagens que

o mito produz De um lado surge a forma da religiatildeo negando agrave imagem qualquer

valor especial e mais do que isso relegando-a ao posto de antocircnimo da verdade da

qual se faz representante Em relaccedilatildeo aos conteuacutedos da consciecircncia miacutetica e

religiosa se analisadas em direccedilatildeo agraves suas origens natildeo haacute separaccedilatildeo que se possa

fazer ldquoestatildeo de tal forma entrelaccediladas e encadeadas que nunca eacute possiacutevel

determinaacute-las separadamente e em contraposiccedilatildeo uma com a outrardquo (PSF II p 397)

A diferenccedila entre ambas fica por conta da forma de se portar em relaccedilatildeo agraves

147

imagens Diferentemente do mito a religiatildeo tenta superar a crise da exterioridade

das imagens ndash aqui jaacute assumidas como produto da accedilatildeo humana

ldquoao servir-se de imagens e signos sensiacuteveis ela ao mesmo tempo os reconhece

como tais como meios de expressatildeo que quando revelam um determinado sentido

necessariamente permanecem aqueacutem dele bdquoapontam‟ para esse sentido sem jamais

captaacute-lo ou esgotaacute-lo completamenterdquo (Idem p 398)

As religiotildees tentam se desligar de seu fundamento miacutetico rebaixando as

configuraccedilotildees e forccedilas miacuteticas a um patamar inferior e ao proceder assim relegam

a um status inferior toda a realidade sensiacutevel doravante meras aparecircncias Cassirer

toma exemplos oriundos do Velho Testamento de escrituras da religiatildeo perso-

iraniana da religiatildeo veacutedica e do cristianismo Em todos eles verifica-se o progressivo

desprendimento da religiatildeo em relaccedilatildeo agraves imagens ndash a proibiccedilatildeo da idolatria no

Velho Testamento ou a substituiccedilatildeo da ritualiacutestica veacutedica por praacuteticas meditativas

por exemplo ndash ao mesmo tempo em que ascende o mundo da interioridade da alma

que natildeo mais se encontra no mundo ldquonaturalrdquo Nesse novo mundo a relaccedilatildeo entre o

indiviacuteduo e a divindade natildeo mais se pauta pela ritualiacutestica que visa submeter a

divindade ao desejo do oficiante nem tampouco pela barganha por meio de

sacrifiacutecios Surge a figura do profeta ao mesmo tempo em que deus passa a ser

caracterizado como o supremo e puro bem moral

ldquoQuanto mais claramente o pensamento e o sentimento religiosos se desligam de

tudo o que eacute meramente material tanto mais pura e energicamente aparece a relaccedilatildeo

reciacuteproca entre o eu e Deus A libertaccedilatildeo com respeito agrave imagem e ao seu caraacuteter de

objeto natildeo tem outra meta que deixar surgir essa relaccedilatildeo reciacuteproca de modo claro e

niacutetidordquo (PSF II p 408)

148

A depuraccedilatildeo dessa relaccedilatildeo tem seu aacutepice na exigecircncia da unidade sinteacutetica entre

deus e homem uma unidade do diverso A identificaccedilatildeo do homem com deus eacute de

tal ordem que natildeo se efetiva de fato mas eacute lanccedilada como um imperativo moral ndash

seja na ideacuteia platocircnica de bem seja na encarnaccedilatildeo de cristo ou mesmo na

dissoluccedilatildeo de ambos os poacutelos como faz o budismo Esse imperativo moral eacute a

caracteriacutestica por excelecircncia da consciecircncia religiosa ndash a liberdade proporcionada

pelo siacutembolo faz da alma doravante livre e responsaacutevel por seus atos a sede da

consciecircncia moral ndash e eacute dele que deriva a tensatildeo permanente na qual ela vive ao

mesmo tempo em que eacute preciso negar e afastar-se da realidade sensiacutevel eacute nela

somente que tal negaccedilatildeo pode acontecer

A arte por seu turno resolve a tensatildeo das imagens miacuteticas reconhecendo-as

enquanto tais

ldquoNa medida em que desde o iniacutecio ela [a consciecircncia esteacutetica] se entrega agrave pura

bdquocontemplaccedilatildeo‟ na medida em que se desenvolve a forma de ver em oposiccedilatildeo a

todas as formas de agir a partir de entatildeo as imagens esboccediladas nesse

comportamento da consciecircncia ganham uma significatividade puramente imanenterdquo

(PSF II p 432)

A esteacutetica encontra sua legalidade na proacutepria imagem na medida em que esta natildeo

demanda nenhuma realidade para aleacutem de si mesma a aparecircncia aqui se

confessa como tal sua verdade estaacute justamente em revelar-se como aparecircncia

Enquanto o mito vecirc na imagem uma relaccedilatildeo inextricaacutevel com a realidade e

enquanto a religiatildeo precisa continuamente escapar agrave imagem bem como agrave proacutepria

149

realidade sensiacutevel na esteacutetica a imagem ganha seu status como expressatildeo pura do

poder criador do espiacuterito

Funccedilatildeo significativa

Eacute a linguagem tambeacutem que tornaraacute possiacutevel a passagem da funccedilatildeo

representativa para a funccedilatildeo da pura significaccedilatildeo [Bedeutungsfunktion] Somente

nesse estaacutegio eacute alcanccedilada a pura idealidade dos siacutembolos assim como o mais alto

grau de liberdade do espiacuterito A forma simboacutelica por excelecircncia da funccedilatildeo

significativa eacute a ciecircncia ndash tanto que ela ocupa uma parte consideraacutevel do terceiro

tomo da Filosofia das Formas Simboacutelicas De certa forma laacute o filoacutesofo retoma as

consideraccedilotildees feitas em Substacircncia e Funccedilatildeo ndash o modelo de construccedilatildeo de

conceitos a loacutegica simboacutelica a matemaacutetica e a fiacutesica ndash mas agora tratados sob a

luz da teoria das formas simboacutelicas Assim a ciecircncia deveraacute se encaixar no

programa fenomenoloacutegico como mais uma funccedilatildeo de objetivaccedilatildeo ainda que ela seja

o produto mais bem-acabado da consciecircncia no que tange agrave libertaccedilatildeo desta em

relaccedilatildeo ao mundo sensiacutevel Sobre o lugar distinto da ciecircncia no corpo da cultura

humana pode-se lembrar aqui dos generosos elogios de Cassirer a esta forma

simboacutelica no paraacutegrafo de abertura do capiacutetulo dedicado agrave ciecircncia no Ensaio sobre o

Homem ldquoa mais alta e mais caracteriacutestica faccedilanha da cultura humanardquo ldquoo aacutepice e a

consumaccedilatildeo de todas as atividades humanas o uacuteltimo capiacutetulo da histoacuteria do

gecircnero humano e o tema mais importante de uma filosofia do homemrdquo (EM p 337)

Importante eacute ressaltar que esses elogios que o filoacutesofo faz agrave ciecircncia na verdade jaacute a

inscrevem no sistema da cultura em seu lugar especiacutefico ser o ldquoaacutepicerdquo e a

ldquoconsumaccedilatildeordquo das atividades humanas faz da ciecircncia o resultado de um processo

150

de objetivaccedilatildeo iniciado nas primeiras configuraccedilotildees do mito e na interaccedilatildeo deste

com a linguagem Mas isso natildeo deve significar nem que a ciecircncia se submeta ao

mito ou agrave linguagem por um lado nem que ela os suprima por outro Haacute uma

espeacutecie de interdependecircncia entre as formas simboacutelicas ao mesmo tempo em que

todas elas gozam de autonomia Essa relaccedilatildeo dialeacutetica entre as formas simboacutelicas126

tem um exemplo privilegiado na relaccedilatildeo entre linguagem e ciecircncia da qual o filoacutesofo

trata por diversas vezes

O desenvolvimento da ciecircncia estaacute intimamente relacionado agrave produccedilatildeo de

signos ndash de uma linguagem ndash capaz de representar adequadamente o problema do

qual trata tal qual jaacute se discutiu aqui em relaccedilatildeo agraves propostas de Leibniz e Hertz

fontes absolutamente centrais para sua concepccedilatildeo de siacutembolo E de fato nota-se

que a evoluccedilatildeo da ciecircncia eacute acompanhada a par e passo da evoluccedilatildeo de sua

relaccedilatildeo com a linguagem ndash desde a libertaccedilatildeo das relaccedilotildees de mimesis e analogia

ateacute a constituiccedilatildeo dos conceitos puros de relaccedilatildeo o que se nota eacute uma reiterada

tentativa da ciecircncia de se libertar do caraacuteter ambiacuteguo e subjetivo que marca a

linguagem ordinaacuteria127 Natildeo eacute outro motivo que leva Cassirer a afirmar que

126

Para evitar ambiguumlidade aqui a questatildeo eacute a dialeacutetica que caracteriza a relaccedilatildeo entre as formas

tomadas enquanto conjunto e natildeo no desenvolvimento sucessivo de cada uma na fenomenologia da

consciecircncia A dialeacutetica entre as formas nada eacute aleacutem da dinacircmica da cultura

127 ldquoEle [o sistema de signos] natildeo serve apenas para comunicar um conteuacutedo de pensamento dado e

rematado mas constitui aleacutem disso um instrumento atraveacutes do qual este proacuteprio conteuacutedo se

desenvolve e adquire a plenitude do seu sentido O ato da determinaccedilatildeo conceitual de um conteuacutedo

realiza-se paralelamente agrave sua fixaccedilatildeo em um signo caracteriacutestico () Para o nosso pensamento

toda e qualquer bdquolei‟ da natureza assume a forma de uma bdquofoacutermula‟ universal ndash mas uma foacutermula soacute

pode ser apresentada por intermeacutedio de uma combinaccedilatildeo de signos universais e especiacuteficos Sem

estes signos universais tal como fornecidos pela aritmeacutetica e pela aacutelgebra seria impossiacutevel expressar

alguma relaccedilatildeo especial da fiacutesica ou alguma lei particular da naturezardquo (PSF I p 31)

151

ldquoagraves diversas fases pelas quais passa o conceito de lei da natureza corresponde

quase sem exceccedilatildeo o mesmo nuacutemero de concepccedilotildees diversas das leis linguumliacutesticas

E natildeo se trata aqui de uma transposiccedilatildeo superficial e sim de uma profunda

comunhatildeo trata-se dos reflexos de determinadas tendecircncias intelectuais baacutesicas de

uma eacutepoca no acircmbito de problemas completamente distintosrdquo (PSF I p 160)

Num artigo de 1942 intitulado The Influence of Language upon the Development of

Scientific Thought Cassirer faz uso de alguns exemplos pontuais da histoacuteria da

filosofia que parecem corroborar essa relaccedilatildeo entre linguagem e concepccedilatildeo de

natureza Tratando deles aqui de maneira esquemaacutetica haacute trecircs exemplos principais

(1) Platatildeo e Aristoacuteteles (2) Galileu e (3) Bohr Quanto ao primeiro jaacute se falou aqui a

respeito da relaccedilatildeo entre o logos no sentido linguumliacutestico e no sentido do pensamento

racional adequado agrave ciecircncia e na relaccedilatildeo entre a loacutegica e a ontologia de Aristoacuteteles

a partir da mediaccedilatildeo da liacutengua grega Basta aqui apenas acrescentar que de acordo

com Cassirer o principal problema de Soacutecrates (e de Platatildeo) estaria justamente nos

obstaacuteculos que a linguagem oferece para chegar agrave verdade ndash daiacute que seu

procedimento seja sempre partir de definiccedilotildees que agrave primeira vista pareccedilam

desimportantes e ironizar as consequumlecircncias dos usos inadequados da linguagem ndash

e do mesmo modo o estagirita estava ldquoperfeitamente consciente do fato de que todo

uso da linguagem filosoacutefica ao mesmo tempo exige uma criacutetica da linguagemrdquo

(LDST p 314) Eacute necessaacuterio pois questionar suas discriminaccedilotildees e classificaccedilotildees

sob pena de natildeo se dar direito de confiar nelas

Com Galileu a linguagem se encontra no mesmo paradoxo

ldquoA linguagem - declarou Galileu - pode ser um instrumento muito satisfatoacuterio e muito

uacutetil de pensamento se natildeo perseguimos outro objetivo aleacutem de examinar e classificar

os objetos de nossa experiecircncia comum o mundo dos dados dos sentidos Mas ela

152

falha logo que nos propusermos uma tarefa diferente e superior Para descobrir as

leis fundamentais da natureza os princiacutepios do movimento precisamos de outro e

mais fiaacutevel modo de expressatildeordquo (Idem p 316)

Assim ainda que a natureza possa ser desvendada pela mente humana a

linguagem comum se mostra inadequada para a praacutetica cientiacutefica de tal sorte que

Galileu propotildee a elaboraccedilatildeo de uma linguagem matemaacutetica numa tentativa clara de

conferir agrave ciecircncia uma linguagem livre de ambiguumlidades ldquoo livro da natureza estaacute

escrito em caracteres matemaacuteticos em pontos linhas superfiacutecies nuacutemerosrdquo (Idem

Ibidem) Natildeo eacute outra a razatildeo que faz Descartes tentar submeter todos os fenocircmenos

ao domiacutenio da mathesis universalis

No caso de Bohr a mesma insuficiecircncia da linguagem eacute constatada mas

agora natildeo apenas em relaccedilatildeo agrave necessidade de ldquomatematizarrdquo a natureza O que

Bohr constata segundo Cassirer eacute que a linguagem eacute criada com vistas a expressar

e descrever o mundo macroscoacutepico quando se cruza esse limiar em direccedilatildeo ao

mundo atocircmico a linguagem convencional ndash mesmo a da fiacutesica ndash parece natildeo ser

suficiente

ldquoNeste uacuteltimo caso temos de alterar nosso simbolismo e essa alteraccedilatildeo exige uma

certa mudanccedila na medida em que o caraacuteter intuitivo [Anschaulichkeit] de nossas

palavras e nossos conceitos fiacutesicos fundamentais estatildeo em causardquo (Idem p 320)128

128

No Ensaio encontra-se a seguinte citaccedilatildeo de Arnold Sommerfeld ldquoningueacutem com uma formaccedilatildeo em

fiacutesica podia duvidar de que o problema do aacutetomo seria resolvido quando os fiacutesicos aprendessem a

entender a linguagem dos espectrosrdquo (Cf p 350)

153

Eacute por conta disso que os conceitos da matemaacutetica parecem ser os mais adequados

para a expressatildeo cientiacutefica a linguagem dos nuacutemeros diz Cassirer ldquomarcou o

momento do nascimento da nossa moderna concepccedilatildeo de ciecircnciardquo (EM p 342) 129

ldquosomos forccedilados a reconhecer que o nuacutemero eacute uma das funccedilotildees fundamentais do

conhecimento humano uma etapa necessaacuteria no grande projeto de objetificaccedilatildeo

Esse projeto comeccedila na linguagem mas assume na ciecircncia um aspecto inteiramente

novo Isso porque o simbolismo do nuacutemero eacute de um tipo loacutegico completamente

diverso do simbolismo da falardquo (EM p 344)

O que confere agrave matemaacutetica a posiccedilatildeo singular que ocupa na atividade cientiacutefica eacute

que ela natildeo apenas eacute capaz de classificar como o faz a linguagem mas ela tambeacutem

eacute capaz de ordenar A classificaccedilatildeo que a linguagem promove desde seus primeiros

esforccedilos natildeo leva a cabo uma verdadeira sistematizaccedilatildeo ldquopois os proacuteprios siacutembolos

da linguagem natildeo tecircm qualquer ordem sistemaacutetica definidardquo (Idem ibidem) O

caraacuteter essencialmente relativo dos nuacutemeros ndash no sentido de que um nuacutemero jamais

pode ser concebido por si mesmo mas somente a partir da posiccedilatildeo que ocupa no

conjunto numeacuterico 130 ndash eacute indispensaacutevel para a realizaccedilatildeo do passo final de

superaccedilatildeo dos conceitos orientados pela noccedilatildeo de substacircncia Assim a loacutegica

129

Eacute preciso ressaltar contudo que a matemaacutetica ela mesma natildeo eacute recente e subordinada agrave forma

da ciecircncia Cassirer insiste no fato de que a matemaacutetica estaacute presente em civilizaccedilotildees primitivas de

maneiras diversas e via de regra eacute usada como instrumento para a forma miacutetica a exemplo da

astrologia Mesmo no acircmbito filosoacutefico a matemaacutetica se faz presente jaacute em Pitaacutegoras para quem

seguindo Cassirer os nuacutemeros pela primeira vez ganharam um caraacuteter universal aplicaacutevel a todo o

territoacuterio do ser (Cf EM p 343)

130 Cassirer estaacute ciente de que essa concepccedilatildeo de nuacutemero por assim dizer livre de implicaccedilotildees

ontoloacutegicas eacute algo bastante recente Como se pode notar pelas referecircncias contidas tanto na

Phaumlnomenologie der Erkenntnis quanto no Ensaio o filoacutesofo tem em mente principalmente os

trabalhos de Frege Russell e Dedekind tal qual em Substacircncia e Funccedilatildeo

154

pretendeu justificar seu lugar privilegiado dentro do sistema do conhecimento e

elevar-se agrave condiccedilatildeo de fim uacuteltimo para o qual todas as tendecircncias espirituais ndash a

linguagem inclusive ndash devem convergir Aqui encontrariacuteamos o fim da histoacuteria ao

qual o filoacutesofo aludiu como uma das marcas da ciecircncia

Dialeacutetica e teleologia

De fato a conclusatildeo acima apontada natildeo corresponde ao pensamento de

Cassirer mas sim ao de Hegel principalmente e Comte em alguma medida A

depuraccedilatildeo da ciecircncia de todos os elementos miacuteticos (teoloacutegicos) e metafiacutesicos

presentes nos estaacutegios iniciais da civilizaccedilatildeo de acordo com a concepccedilatildeo comteana

dos trecircs estados por um lado e o fim da dialeacutetica marca da fenomenologia do

espiacuterito em direccedilatildeo agrave ciecircncia da loacutegica por outro de acordo com Hegel estariam

aqui em acordo no que tange ao movimento histoacuterico Diz Cassirer

ldquo[] a Fenomenologia do Espiacuterito [] tem como objetivo apenas preparar o terreno e

o caminho para a Loacutegica A multiplicidade das formas espirituais tal como descrita na

Fenomenologia culmina por assim dizer em um extremo loacutegico ndash e eacute somente neste

ponto que ela encontra sua bdquoverdade‟ e essecircncia perfeitas Por mais rica e multiforme

que seja em seu conteuacutedo na estrutura ela se subordina a uma lei uacutenica e em certo

sentido uniforme ndash agrave lei do meacutetodo dialeacutetico que representa o ritmo invariaacutevel do

movimento autocircnomo do conceito Todos os movimentos de configuraccedilatildeo do espiacuterito

culminam no saber absoluto na medida em que ele encontra aqui o elemento puro de

sua existecircncia o conceito Nesta sua meta derradeira todos os estaacutegios percorridos

anteriormente ainda estatildeo contidos como momentos mas reduzidos a meros

momentos estes estaacutegios deixam de ser relevantes Assim sendo parece que dentre

155

todas as formas espirituais apenas a forma loacutegica a forma do conceito e do

conhecimento tecircm direito a uma autecircntica e verdadeira autonomiardquo (PSF I p 27 -8)

Contudo a Bedeutungsfunktion de Cassirer ainda que seja a mais elevada

liberdade da qual o espiacuterito humano eacute capaz ndash e a ciecircncia a sua ldquomaior faccedilanhardquo ndash

natildeo representa um estaacutegio final em relaccedilatildeo ao qual todos os demais se

subordinariam A correspondecircncia entre o Espiacuterito e a Bedeutungsfunktion se daacute

somente no sentido de que satildeo os estaacutegios mais avanccedilados que alcanccedila a

consciecircncia mas ambos satildeo radicalmente distintos quando considerados a partir do

que representam em relaccedilatildeo agrave dialeacutetica em ambos os sistemas Para Hegel o

estaacutegio do Espiacuterito eacute a realizaccedilatildeo do conhecimento filosoacutefico enquanto tal no

momento em que a consciecircncia entende suas manifestaccedilotildees enquanto um sistema

Essas manifestaccedilotildees entatildeo satildeo objetos de tratamento da Ciecircncia da Loacutegica Do

ponto de vista de Cassirer essa orientaccedilatildeo teleoloacutegica da dialeacutetica hegeliana vai de

encontro agrave proposta plural da filosofia das formas simboacutelicas na medida em que

incide diretamente sobre a autonomia das formas que passam a ser valoradas por

paracircmetros exteriores agravequeles de suas respectivas dinacircmicas internas Essa

orientaccedilatildeo logocecircntrica que Cassirer identifica estaacute na base dos motivos que o

levaram a propor a passagem de uma criacutetica do conhecimento a uma criacutetica da

cultura como jaacute tratado

Mas isso natildeo significa que Cassirer se posicione contrariamente agrave noccedilatildeo de

progresso No campo da ciecircncia em particular jaacute se demonstrou aqui que a grande

caracteriacutestica de sua concepccedilatildeo de ciecircncia eacute justamente a de progresso constante ndash

o que natildeo deixa de ser uma orientaccedilatildeo teleoloacutegica tanto quanto O mesmo

progresso tambeacutem eacute aludido no que respeita agrave cultura ldquoa cultura humana pode ser

descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo (EM p 371) diz

156

o filoacutesofo De fato a ldquoliberdaderdquo proporcionada pelo ldquopoder libertador do siacutembolordquo tal

como deixa entrever a proacutepria estrutura dos textos das formas simboacutelicas eacute descrita

como um processo progressivo Mas eacute preciso que se deixe claro o caraacuteter

especiacutefico desse progresso Uma pista pode ser encontrada no paraacutegrafo que

conclui o Ensaio sobre o Homem ldquoTomada como um todordquo diz o filoacutesofo

ldquoa cultura humana pode ser descrita como o processo da progressiva autolibertaccedilatildeo

do homem A linguagem a arte a religiatildeo e a ciecircncia satildeo vaacuterias fases desse

processo Em todas elas o homem descobre e experimenta um novo poder ndash o poder

de construir um mundo soacute dele um mundo bdquoideal‟ A filosofia natildeo pode renunciar agrave

sua busca por uma unidade fundamental nesse mundo ideal mas natildeo confunde essa

unidade com simplicidade Ela natildeo menospreza as tensotildees e atritos os fortes

contrastes e os profundos conflitos entre os vaacuterios poderes do homem Estes natildeo

podem ser reduzidos a um denominador comum Tendem para direccedilotildees diferentes e

obedecem a princiacutepios diferentes Mas essas multiplicidade e disparidade natildeo

denotam discoacuterdia e desarmonia Todas essas funccedilotildees completam-se e

complementam-se entre si Cada uma delas abre um novo horizonte e mostra-nos um

novo aspecto da humanidade O dissonante estaacute em harmonia consigo mesmo os

contraacuterios natildeo satildeo mutuamente exclusivos mas interdependentes bdquoharmonia na

contrariedade como no caso do arco e da lira‟rdquo (Idem p 371-72)

O teor heraclitiano da declaraccedilatildeo eacute um iacutendice caro da forma caracteriacutestica da

dialeacutetica das formas simboacutelicas De fato natildeo eacute apenas na forma teleoloacutegica que ela

diverge daquela de Hegel haacute uma diferenccedila radical em relaccedilatildeo agraves ldquopassagensrdquo de

uma forma agrave outra Enquanto para Hegel o momento atual da consciecircncia absorve o

momento anterior e o sintetiza de modo que do ponto de vista do espiacuterito as feridas

se cicatrizem sem deixar marcas em Cassirer natildeo ocorre tal Aufhebung A

passagem de uma funccedilatildeo agrave outra natildeo significa o esgotamento da primeira em vez

157

disso ocorre que cada forma se constituiraacute numa dinacircmica independente ndash

incomensuraacutevel diz o autor131 As formas manteratildeo entre si quando vistas como

conjunto a mesma relaccedilatildeo de ldquoharmonia na contrariedaderdquo que eacute marca da relaccedilatildeo

entre arco e lira O desenvolvimento das demais formas a partir do mito segundo

Cassirer

ldquose realizam nele natildeo como um processo natural como se num tranquumlilo crescimento

de um embriatildeo desde sempre existente e configurado que soacute precisa de

determinadas condiccedilotildees externas para desligar-se e manifestar-se claramente As

etapas singulares de seu desenvolvimento natildeo simplesmente se unem umas agraves

outras mas se defrontam umas com as outras muitas vezes em niacutetida oposiccedilatildeo A

evoluccedilatildeo consiste em que certos traccedilos fundamentais certas determinaccedilotildees

espirituais das etapas anteriores natildeo apenas continuem a desenvolver-se e

completar-se mas consiste em negaacute-las em simplesmente aniquilaacute-lasrdquo (PSF II p

392)

Aqui eacute encontrada uma tendecircncia comum a todas as formas simboacutelicas cada uma

delas toma a si mesma como a hegemocircnica para a vida humana Haacute uma tensatildeo

constante e impossiacutevel de ser resolvida entre cada uma das formas Eacute por conta

disso que o mito se faz um tema relevante no contexto de uma cultura

acentuadamente desenvolvida do ponto de vista da racionalidade Da mesma forma

a linguagem jamais deveraacute se restringir agrave anaacutelise loacutegica

131

ldquoEacute faacutecil apontar as faltas os defeitos as ambiguumlidades que satildeo inevitaacuteveis e que parecem ser

indeleacuteveis em cada uso da linguagem Mas esses males natildeo podem ser curados pelo misticismo

pelo intuicionismo ou sensacionismo A linguagem pode ser comparada com a lanccedila de Amfortas na

lenda do Santo Graal As feridas que inflige a linguagem no pensamento humano natildeo podem ser

curadas exceto pela proacutepria linguagem A liacutengua eacute a marca distintiva do homem ndash e ateacute mesmo no

seu desenvolvimento em sua perfeiccedilatildeo crescente ela permanece humana ndash talvez demasiado

humanardquo (LDST p 327)

158

ldquoO racionalismo sempre foi inclinado a pensar que do fato de uma uacutenica loacutegica

podemos inferir imediatamente que deve haver uma gramaacutetica uacutenica () Mas

estamos sempre expostos ao perigo de confundir algumas propriedades especiais da

nossa proacutepria liacutengua com propriedades semacircnticas universais quando nos

aproximamos do problema de um ponto de vista apenas loacutegico Nossa anaacutelise loacutegica

deve ser completada e corrigida por essas observaccedilotildees feitas por meacutetodos empiacutericos

atraveacutes de um estudo comparativo dos fatos linguumliacutesticosrdquo (LDST p 322)

Cassirer precisa aliar ao caraacuteter teleoloacutegico que se inscreve na ideacuteia de progressiva

libertaccedilatildeo do siacutembolo a perspectiva centriacutefuga da dialeacutetica Como bem aponta

Skidelsky (2008) disso resulta que a imagem da escada de Hegel deve ser

substituiacuteda pela imagem de uma aacutervore na qual ldquocada galho nutre novos galhos

enquanto continua a existir em seu proacuteprio direitordquo (p107)

159

O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL

O que perturba e assusta o homem natildeo satildeo as coisas

mas suas opiniotildees e fantasias sobre as coisas

Epiacuteteto

A Realidade Simboacutelica

Soliloacutequio

Uma das consequumlecircncias que podem ser tiradas das formas simboacutelicas eacute a de

que a realidade ndash nua independente da mente ndash ou bem natildeo existe ou se existe

natildeo possui valor primordial para a vida humana como querem o cientista ou o

filoacutesofo da ciecircncia 132 Este eacute o intrigante paradoxo que resulta do processo de

elaboraccedilatildeo simboacutelica a progressiva libertaccedilatildeo do espiacuterito ndash que representa o

afastamento em relaccedilatildeo agrave imediaticidade da vida e nesse sentido eacute o surgimento

mesmo do espiacuterito ndash essa libertaccedilatildeo eacute ao mesmo tempo um progressivo

afastamento do sujeito da realidade entendida no sentido ontoloacutegico e um

envolvimento cada vez mais complexo numa cadeia de significados gerados a partir

da proacutepria accedilatildeo humana A atividade da consciecircncia eacute tal que a afasta constante e

132

Aqui nossa interpretaccedilatildeo se aproxima daquela feita por Goodman em Modos de Fazer Mundos

ldquoNatildeo deveriacuteamos regressar agrave sanidade saiacuteda de toda esta louca proliferaccedilatildeo de mundos Natildeo

deveriacuteamos parar de versotildees corretas como se cada uma fosse ou tivesse o seu proacuteprio mundo e

reconhececirc-las todas como versotildees de um soacute e mesmo mundo subjacente O mundo assim

recuperado [] eacute um mundo sem espeacutecies ordem movimento repouso ou padratildeo ndash um mundo pelo

qual natildeo valeria a pena lutar contra ou a favorrdquo (p 58) Em termos epistemoloacutegicos Cassirer nos

parece um pluralista ou dito nos termos de Putnam sua filosofia propotildee um ldquorealismo internordquo para

cada uma das formas simboacutelicas ou mesmo para o acircmbito das especificidades dentro de uma mesma

forma simboacutelica como veremos adiante

160

progressivamente da realidade de sorte que o homem natildeo vive num mundo de

coisas mas num mundo de significados

ldquoNatildeo estando mais num universo meramente fiacutesico o homem vive em um universo

simboacutelico O homem natildeo pode mais confrontar-se com a realidade imediatamente

natildeo pode vecirc-la por assim dizer frente a frente A realidade fiacutesica parece recuar em

proporccedilatildeo ao avanccedilo da atividade simboacutelica do homem Em vez de lidar com as

proacuteprias coisas o homem estaacute de certo modo conversando constantemente consigo

mesmordquo (EM p 48)

Aqui vemos que a revoluccedilatildeo copernicana proposta por Kant assume sua forma

mais radical a importacircncia do processo de significaccedilatildeo eacute de tal ordem que as

questotildees metafiacutesicas ndash que eram indiscutivelmente relevantes agrave eacutepoca de Kant ndash

natildeo se colocam

Aleacutem disso notamos que a atividade simboacutelica eacute verdadeiro e irremediaacutevel

processo de alienaccedilatildeo tudo o que o homem eacute natildeo o eacute em si mesmo mas por meio

dos siacutembolos que constroacutei ldquoQuanto mais o espiacuterito desenvolver uma atividade rica e

eneacutergica tanto mais esta sua atividade precisamente parece afastaacute-lo das fontes

primordiais de seu proacuteprio serrdquo (PSF I p 73-4) Ou ldquotoda expressatildeo incipiente de

sentimento jaacute eacute o iniacutecio de uma alienaccedilatildeordquo (LKW p 116) Com efeito num primeiro

momento o que se infere disso eacute que a funccedilatildeo da filosofia consistiria em ldquoerguer este

veacuteu em sair da esfera mediadora do simples significar e designar e retornar agrave

esfera original da visatildeo intuitivardquo (Idem ibidem) Esse soliloacutequio entretanto natildeo

deve ser visto como um problema a ser combatido a tarefa que se impotildee ao homem

(e agrave filosofia especificamente) natildeo eacute a de escapar da realidade simboacutelica e se voltar

161

agrave imediaticidade da vida como propotildeem Bergson e outros partidaacuterios da filosofia da

vida

ldquoEm vez de retroceder no caminho ela [a filosofia da cultura] precisa tentar segui-lo

em frente ateacute o fim Se toda cultura se manifesta na criaccedilatildeo de determinados mundos

de imagens espirituais de determinadas formas simboacutelicas a meta da filosofia natildeo

consiste em colocar-se na retaguarda de toda estas criaccedilotildees e sim em compreendecirc-

las e elucidaacute-las em seu princiacutepio formador fundamental Somente ao tornar-se

consciente o conteuacutedo da vida adquire sua verdadeira forma A vida sai da esfera da

existecircncia meramente dada pela natureza ela deixa de ser uma parte desta

existecircncia assim como deixa de ser um processo meramente bioloacutegico para

transformar-se e completar-se na forma do bdquoespiacuterito‟rdquo (Idem ibidem)

O estado de alienaccedilatildeo que o siacutembolo engendra natildeo tem o valor negativo do conceito

marxista e nem do divertimento de Pascal mas sim o valor positivo da liberdade em

relaccedilatildeo agrave imediaticidade e ao determinismo da vida133 Eacute nesse sentido que Cassirer

afirma que a atividade simboacutelica eacute o gradual processo de transformaccedilatildeo da vida em

espiacuterito134 Eacute preciso que o homem se aliene de sua vida e se absorva no mundo

133

Em Form und Technik (1930) Cassirer trata da alienaccedilatildeo no sentido de Marx mediado pela leitura

de Simmel Laacute a questatildeo central eacute a alienaccedilatildeo social que a tecnologia produz Com efeito na deacutecada

de 1920 o consumismo comeccedila a despontar e os filoacutesofos natildeo tardam em notar as consequumlecircncias

disso para a sociedade em geral 134

Geist und Leben in der Philosophie der Gegenwart eacute o tiacutetulo dado a uma seccedilatildeo que inicialmente

fora projetada para integrar o terceiro volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas mas por razotildees

tanto estiliacutesticas (o volume jaacute estava extenso demais) quanto metodoloacutegicas (o assunto eacute

consideravelmente discrepante daquele que trata o mesmo volume) o filoacutesofo decidiu-se por tratar do

assunto num projeto em separado ndash e nunca concluiacutedo ndash que deveria dar conta da filosofia

contemporacircnea que para Cassirer significava a Lebensphilosophie Em termos gerais esse texto

mostra como a atividade da consciecircncia representa a contiacutenua passagem da vida ao espiacuterito A

mesma oposiccedilatildeo entre vida e espiacuterito jaacute estaacute presente no primeiro volume da Filosofia das Formas

Simboacutelicas Laacute apoacutes lembrar que limitaccedilatildeo e finitude satildeo marcas por excelecircncia do conhecimento

162

simboacutelico para que conheccedila a si mesmo ao conhecer o mundo E eacute justamente pelo

fato de que o homem conhece a si mesmo somente mediado pelo conhecimento dos

siacutembolos que ele constitui que a realidade crua perde seu valor

ldquoDeste ponto de vista o mito a arte a linguagem e a ciecircncia aparecem como

siacutembolos natildeo no sentido de que designam [bezeichnen] na forma de imagem

[Bildes] na alegoria indicadora e explicadora [hindeutenden und ausdeutenden] um

real existente mas sim no sentido de que cada uma delas gera e parteja seu proacuteprio

mundo significativo [Welt des Sinnes] Neste domiacutenio apresenta-se este

autodesdobramento [Selbstentfaltung] do espiacuterito em virtude do qual soacute existe uma

bdquorealidade‟ um Ser organizado e definido Consequumlentemente as formas simboacutelicas

especiais natildeo satildeo imitaccedilotildees e sim oacutergatildeos dessa realidade posto que soacute por meio

delas o real pode converter-se em objeto de captaccedilatildeo intelectual e destarte tornar-

se visiacutevel para noacutesrdquo (SM p 22)

Jaacute abordamos aqui o fato de Cassirer mesmo em Substacircncia e Funccedilatildeo natildeo se

ocupar em apresentar algo como tabelas de verdade quando da exposiccedilatildeo do

conceito de funccedilatildeo ndash mesmo que esteja em questatildeo a linguagem proposicional

Mesmo na obra de 1910 sua preocupaccedilatildeo em relaccedilatildeo agrave realidade natildeo estava

pautada pelos mesmos criteacuterios de Frege e Russell Vimos tambeacutem que no projeto

das formas simboacutelicas a questatildeo da significaccedilatildeo estaacute ainda mais apartada de algo

como a anaacutelise em termos de verdade ou falsidade De fato a significaccedilatildeo nem

mesmo se restringe ao acircmbito linguumliacutestico (ponto em que a filosofia de Cassirer

humano (em oposiccedilatildeo ao conhecimento divino) Cassirer assume a perda de ldquoconteuacutedo essencialrdquo

ocasionada pela atividade simboacutelica e diz ldquoSomente a suspensatildeo de toda determinaccedilatildeo atraveacutes da

imagem somente o retorno ao bdquopuro nada‟ dos miacutesticos pode reconduzir-nos agrave verdadeira fonte

primordial do ser Formulada de outra maneira esta oposiccedilatildeo apresenta-se como um conflito e uma

tensatildeo permanente entre bdquocultura‟ e bdquovida‟rdquo (PSF I p 73)

163

tambeacutem se distingue fortemente daquela do Ciacuterculo de Viena caudataacuterio da

concepccedilatildeo wittgensteiniana de significaccedilatildeo) Resta-nos ainda extrair uma uacuteltima

consequumlecircncia dessa distinccedilatildeo dos programas filosoacuteficos de Cassirer e do empirismo

loacutegico derivada da diferenccedila marcante na concepccedilatildeo de significaccedilatildeo para ambos

Dado que a filosofia de Carnap embora visasse a sistemas loacutegicos plurais ou

mesmo admitisse a existecircncia de registros de significaccedilatildeo natildeo-cognitivos seja

marcada e orientada por uma concepccedilatildeo de razatildeo indiscutivelmente associada agrave

ciecircncia (particularmente em torno da fiacutesica como comprova sua linguagem

fisicalista) e nesse sentido essencialmente aistoacuterica segue-se que seja

perfeitamente razoaacutevel falar em traduzibilidade entre distintos campos de

significaccedilatildeo Eacute assim que Carnap consegue passar da linguagem cientiacutefica para a

linguagem fiacutesica ou para a psicoloacutegica (neste uacuteltimo ponto com especial atenccedilatildeo agrave

psicologia behaviorista)

ldquoEm nossas discussotildees no Ciacuterculo de Viena chegamos agrave opiniatildeo de que essa

linguagem fisicalista [physical language] eacute a linguagem baacutesica de todas as ciecircncias

que ela eacute uma linguagem universal que compreende os conteuacutedos de todas as outras

linguagens cientiacuteficas Em outras palavras qualquer sentenccedila em qualquer ramo da

linguagem cientiacutefica eacute equumlipolente a alguma sentenccedila da linguagem fisicalista e

pode dessa forma ser traduzida para a linguagem fisicalista sem mudar seu

conteuacutedordquo (CARNAP 1935 p 89)

A noccedilatildeo de equumlipolecircncia ou traduzibilidade claramente alinha as diferentes

especificidades cientiacuteficas assim como faz com as demais atividades ou campos de

conhecimento humano se eles quiserem ser tratados como tal Daiacute a afirmaccedilatildeo de

Carnap citada no capiacutetulo anterior de que natildeo haacute p ex uma filosofia da mente ou

do mundo psiacutequico mas somente uma filosofia da psicologia (p 94)

164

Em diametral oposiccedilatildeo Cassirer insiste na pluralidade diversidade e de certa

forma na incomensurabilidade das formas simboacutelicas entre si Tanto a arte quanto

a religiatildeo ou a linguagem natildeo podem ser quantificadas e reduzidas a um

denominador racional comum ndash a uma foacutermula sintaacutetica universal ndash sob pena de

passar ao largo justamente daquilo que a elas eacute o mais essencial Natildeo eacute possiacutevel

traduzir uma experiecircncia religiosa justamente pelo fato de que ela natildeo eacute uma teoria

mas sim uma atividade do mesmo modo que o eacute a contemplaccedilatildeo esteacutetica Mas

aleacutem disso Cassirer afirma que ateacute quando levamos em conta duas ciecircncias em

particular ndash fiacutesica e quiacutemica p ex ndash ainda assim o objeto de cada qual natildeo pode ser

dito em uacuteltima instacircncia o mesmo

ldquonem no acircmbito da bdquonatureza‟ o objeto da fiacutesica coincide pura e simplesmente com o

da quiacutemica tampouco o da quiacutemica com o da biologia ndash porque cada uma destas

ciecircncias a fiacutesica a quiacutemica e a biologia tem um ponto de vista particular na

proposiccedilatildeo de sua problemaacutetica e submete os fenocircmenos a uma interpretaccedilatildeo e

conformaccedilatildeo especiacuteficas de acordo com este ponto de vistardquo (PSF I p 16-7)

Seria exagerar depreender disso que Cassirer afirma haver incomensurabilidade

entre as ciecircncias pois natildeo se nega que entre diferentes domiacutenios especiacuteficos do

conhecimento haja mais pontos em comum do que elementos exclusivos que

barrariam por completo o entendimento entre as partes Aqui sem maiores

prejuiacutezos cabe falar em equumlipolecircncia Da mesma forma ainda que visto por um

lado as formas simboacutelicas sejam irredutiacuteveis umas agraves outras e que de fato suas

respectivas especificidades sejam tal que tangenciem a incomensurabilidade ao

mesmo tempo todas devem ser remetidas ao mesmo princiacutepio de simbolizaccedilatildeo agrave

mesma raiz expressiva e eacute soacute nesse sentido que eacute possiacutevel que todas elas

165

encontrem um ponto concecircntrico ndash a unidade do conhecimento em sentido largo

que Cassirer buscava justamente para tirar o homem do leito de Procrusto135 Esse

ponto natildeo pode ser quantificado nem tomado como uma espeacutecie de realidade

independente ele eacute a proacutepria cultura a dinacircmica das Energie des Geistes em sua

interaccedilatildeo

ldquoSe a filosofia da cultura lograr apreender e tornar visiacuteveis estes traccedilos teraacute

cumprido em um novo sentido a tarefa de em face da pluralidade das

manifestaccedilotildees do espiacuterito demonstrar a unidade de sua essecircncia Porque esta

unidade se evidencia de maneira absolutamente clara na medida em que a

diversidade dos produtos do espiacuterito sustenta e confirma a unidade do processo

produtivo em vez de prejudicaacute-lardquo (PSF I p 75)

A tarefa simboacutelica da ciecircncia

As implicaccedilotildees epistemoloacutegicas da irremediaacutevel mediaccedilatildeo simboacutelica natildeo satildeo

de modo algum uma novidade radical para a filosofia da ciecircncia em geral 136 A

novidade fica por conta do lugar que ocupa a razatildeo no conjunto da cultura ainda

que ela seja a ldquomaior faccedilanhardquo do espiacuterito humano ela natildeo deve ocupar um lugar

hegemocircnico em relaccedilatildeo agraves demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute uma ideacuteia

que natildeo se enquadra nos postulados da praacutetica cientiacutefica se analisada

135

Natildeo devemos esquecer que encontrar uma unidade do conhecimento eacute condiccedilatildeo indispensaacutevel

assumida por Cassirer Por conta disso eacute que as formas simboacutelicas natildeo poderiam jamais ser tomadas

como absolutamente incomensuraacuteveis

136 Alguns comentadores de Cassirer Friedman em especial apontam o pioneirismo de Cassirer no

tratamento histoacuterico da ciecircncia ndash precedendo Koyreacute e Kuhn por exemplo ldquoEacute a primeira obra [Das

Erkenntnisproblem] de fato a desenvolver uma leitura detalhada da revoluccedilatildeo cientiacutefica como um

todo em termos da ideacuteia bdquoplatocircnica‟ de que a aplicaccedilatildeo radical da matemaacutetica agrave natureza (a assim

chamada matematizaccedilatildeo da natureza) eacute a realizaccedilatildeo central e global dessa revoluccedilatildeordquo 2000 p 88

166

isoladamente Pode-se dizer que a inserccedilatildeo da ciecircncia no conjunto da cultura seja

um criteacuterio regulativo no sentido de que orienta sua atividade sem prescrever-lhe

postulados metafiacutesicos ndash em sintonia aqui com o entendimento de Marburgo que

toma o a priori apenas como regulativo e natildeo como constitutivo

Entretanto o ideal regulativo ao qual deve se submeter a ciecircncia ainda eacute

vago poder-se-ia imaginar que o filoacutesofo esteja justificando uma imposiccedilatildeo

ideoloacutegica sobre a praacutetica cientiacutefica ndash tal como de certa forma o fizeram algumas

vertentes do neokantismo ndash o que significaria dizer que ela natildeo goza de autonomia

suficiente para escolher os objetos que deve investigar nem mesmo seus meacutetodos

Mas tal hipoacutetese eacute facilmente descartada quando se considera a seriedade com que

Cassirer se dedicou ao problema da epistemologia desde o iniacutecio de sua carreira137

bem como o proacuteprio lugar ocupado pela forma da ciecircncia na fenomenologia da

consciecircncia se ela eacute o produto mais elaborado a maior faccedilanha do espiacuterito e

representa a maior liberdade de que este eacute capaz natildeo faz sentido submetecirc-la a

criteacuterios que natildeo aqueles que ela mesma entende como adequados aos seus

procedimentos sob o risco de no caso de ser guiada por outros criteacuterios natildeo fazer

uso justamente da liberdade que a caracteriza e tornar-se serva de interesses

obscuros

Assim o ideal regulativo que se quer para a ciecircncia natildeo deve de forma

alguma interferir em sua praacutetica ndash ou seja nas escolhas metodoloacutegicas na

antecipaccedilatildeo de resultados ou outros ndash mas sim cuidar para que ela natildeo constitua um

137

Eacute preciso ressaltar que mesmo em suas obras de maturidade que de modo geral giram em torno

da questatildeo da cultura ou da antropologia filosoacutefica a questatildeo da ciecircncia eacute presente ndash a publicaccedilatildeo

em 1937 de Determinismus und Indeterminismus in der modernen Physik obra que discorre acerca

das implicaccedilotildees da mecacircnica quacircntica na questatildeo da causalidade ou ainda as inuacutemeras referecircncias

sobretudo agrave biologia e agrave quiacutemica ao longo de vaacuterios textos satildeo provas suficientes dessa

preocupaccedilatildeo

167

domiacutenio hermeacutetico agraves demandas do homem que a engendrou assim como o fez agraves

demais formas simboacutelicas justamente para dar-lhe respostas a suas inquietaccedilotildees

concretas Nesse sentido a luta de Cassirer pela ldquopureza epistemoloacutegicardquo para

tomar uma expressatildeo de Itzkoff (1971 p 103) que se verifica desde suas primeiras

obras deve ser contrabalanceada pela necessidade de natildeo isolaacute-la

intelectualmente Esta eacute indiscutivelmente uma marca da dialeacutetica das formas

simboacutelicas (tratada no capiacutetulo anterior) que pelo fato de natildeo dissolver as formas

baacutesicas do espiacuterito na progressatildeo em direccedilatildeo agraves mais elaboradas e por assim dizer

mais ldquopurasrdquo se vecirc fadada a uma perpeacutetua tensatildeo entre tendecircncias que tentam

cada uma delas fazer-se soberanas absolutas138

ldquo[] com efeito toda forma baacutesica do espiacuterito ao surgir e desenvolver-se procura

apresentar-se natildeo como uma parte e sim como um todo arrogando a si portanto

uma validez absoluta e natildeo meramente relativa Ela natildeo se contenta com sua esfera

particular buscando em vez disso imprimir o seu selo caracteriacutestico na totalidade do

ser e da vida espiritual Desta tendecircncia ao incondicional inerente a todas as

orientaccedilotildees individuais resultam os conflitos culturais e as antinomias do conceito de

culturardquo (PSF I p 24)

Dessa mesma tensatildeo permanente decorre como necessidade de equilibrar

forccedilas a necessidade de natildeo isolar nenhuma das formas da dinacircmica concreta em

que existem Mais precisamente Cassirer afirma a impossibilidade de entender

qualquer uma das formas simboacutelicas em separado do conjunto das formas a partir

do que eacute possiacutevel afirmar que o entendimento profundo da forma loacutegica proacutepria agrave

138

Cassirer chama atenccedilatildeo especialmente para a tendecircncia quase que intriacutenseca da forma miacutetica

(analisada principalmente em The Myth of the State) para constituir-se como uacutenica donde decorre a

caracteriacutestica intoleracircncia do pensamento miacutetico com relaccedilatildeo a tudo o que eacute diverso e disso a

imunidade do mito agrave argumentaccedilatildeo sua principal forccedila

168

atividade cientiacutefica soacute pode ser alcanccedilado quando esta eacute contraposta agrave arte agrave

linguagem ou ao mito

De fato ao longo de toda a obra de Cassirer a ciecircncia aparece como campo

central de discussatildeo Mas pode-se dizer com seguranccedila que sua contribuiccedilatildeo para o

desenvolvimento dela natildeo estaacute na proposta de perspectivas radicalmente novas de

compreensatildeo mas sim na necessidade de articulaacute-las como uma mesma forccedila

espiritual de conformaccedilatildeo ao mesmo tempo em que luta para garantir ldquocidadaniardquo agraves

demais formas simboacutelicas Por traacutes disso estaacute a preocupaccedilatildeo de natildeo tornar a ciecircncia

uma instacircncia absoluta e hermeacutetica pois que isso ao contraacuterio do que se pode

pressupor impediria ateacute mesmo a apreensatildeo do significado da proacutepria ciecircncia dado

o isolamento ao mesmo tempo em que tornaacute-la absoluta seria nada aleacutem de

envolvecirc-la numa camada valorativa protetora que a faria imune e destarte miacutetica

O que se pode concluir de tudo o que ateacute aqui foi dito acerca da ciecircncia na

filosofia das formas simboacutelicas eacute que seu progresso deve sempre ser concebido em

relaccedilatildeo ao conjunto das formas simboacutelicas ou seja da cultura A isso equivale dizer

que agrave ciecircncia como representante por excelecircncia da liberdade e da autonomia do

espiacuterito eacute imprescindiacutevel que seu progresso seja aferido em termos de avanccedilos

concretos da humanidade139 a preocupaccedilatildeo de Cassirer estaacute em assegurar que a

praacutetica cientiacutefica seja re-humanizada Aqui por um lado fica evidente a filiaccedilatildeo de

Cassirer ao corpo de questotildees que fez o neokantismo se constituir como criacutetica ao

positivismo (expostas no primeiro capiacutetulo) e por outro inscreve Cassirer em seu

momento histoacuterico ndash o momento de um judeu alematildeo exilado defensor convicto da

repuacuteblica de Weimar que viveu de perto os horrores da perversatildeo do progresso

139

Na verdade isso pode ser notado em textos anteriores como o jaacute citado Freiheit und Form de

1916

169

cientiacutefico que descolado daquilo que deveria conduzir sua praacutetica e tomado pela

ὕβρις tornou-se nefasto para a proacutepria humanidade

Eacute certo que a filosofia de Cassirer natildeo logrou sucesso junto aos filoacutesofos da

ciecircncia que o seguiram A cisatildeo em relaccedilatildeo ao Ciacuterculo de Viena ndash que de acordo

com a visatildeo geral a respeito da filosofia da eacutepoca eacute a cisatildeo que marca a divisatildeo

entre filosofia continental e analiacutetica ndash marca em Cassirer o iniacutecio de um caminho

que dada uma seacuterie de contingecircncias natildeo fez sucesso nos debates filosoacuteficos da

eacutepoca140 Mas haacute um dado importante do estopim da divisatildeo entre o receacutem criado

Ciacuterculo de Viena e a antiga Escola de Marburgo a publicaccedilatildeo do Tractatus de

Wittgenstein Os efeitos do texto de 1922 publicado pelo vienense foram

profundamente sentidos nos filoacutesofos do Ciacuterculo que ignorando a preocupaccedilatildeo

central de Wittgenstein de ldquopreservar a integridade do indiziacutevelrdquo (SKIDELSKY 2008

p 142) adaptaram as preocupaccedilotildees deste notadamente loacutegicas agraves suas

140

O fato de Cassirer ter tido uma carreira acadecircmica entrecortada por forccediladas mudanccedilas (Cf

GAWRONSKY 1949) foi de certa forma determinante para que o filoacutesofo natildeo conseguisse reunir em

torno de si estudantes e colegas por tempo suficiente para que sua obra fosse devidamente

apreciada e criticada bem como para que fosse difundida e continuada apoacutes sua morte A morte

inesperada de Cassirer em 1945 eacutepoca em que estava sendo elaborado o volume dedicado a ele na

Library of Living Philosophers de Schilpp (publicado em 1949) impediu ateacute mesmo que o filoacutesofo

tomasse conhecimento e respondesse agravequilo que ateacute entatildeo era a maior coletacircnea de textos criacuteticos

sobre sua filosofia E mesmo essa coletacircnea de artigos evidencia que a filosofia de Cassirer natildeo

havia ainda sido devidamente compreendida dado que muitos dos textos erram bruscamente o alvo

em suas consideraccedilotildees Isso se deve tambeacutem ao fato de que Cassirer se lanccedilava entatildeo a um

domiacutenio realmente inexplorado de investigaccedilatildeo ndash a antropologia filosoacutefica ndash ainda que ele fosse visto

mormente como um filoacutesofo da ciecircncia Fato eacute que apoacutes a morte de Cassirer cessaram-se as

publicaccedilotildees sobre sua obra salvo os textos isolados de Hamburg em 1956 e de Itzkoff em 1971 A

retomada de estudos a seu respeito ocorreu apenas a partir da deacutecada de 1980 com a paradigmaacutetica

publicaccedilatildeo de Krois Symbolic Forms and History (1987) e com o esforccedilo deste junto a Verene nos

EUA (e mais tarde Moumlckel na Alemanha) para a publicaccedilatildeo das obras poacutestumas e manuscritos do

autor Hoje a filosofia de Cassirer ocupa lugar nas discussotildees contemporacircneas mas ainda aqueacutem do

que merece como comprova o fato de no Brasil trabalhos a seu respeito natildeo chegarem a uma

dezena aleacutem de serem raros ou inexistentes cursos ou coloacutequios dedicados agrave discussatildeo de sua obra

170

preocupaccedilotildees epistemoloacutegicas ndash a divisatildeo das proposiccedilotildees entre elementares

verdadeiras ou falsas por si mesmas ou natildeo-elementares que satildeo verdadeiras ou

falsas em virtude das proposiccedilotildees elementares que as constituem foi tomada como

a divisatildeo entre proposiccedilotildees que se referem diretamente a experiecircncias sensoacuterias ou

as que nelas se apoacuteiam ndash e como resultado puderam levar a termo o empirismo

radical resultado da depuraccedilatildeo do fenomenalismo de Mach dos postulados

metafiacutesicos nele contidos

Por influecircncia da obra de Wittgenstein Carnap (assim como Schlick e os

demais) se afasta dos postulados (neo)kantianos de suas primeiras obras (como

tratamos no primeiro capiacutetulo) ao passo que Cassirer se manteacutem fiel ao ideal de

conhecimento geneacutetico e agrave postulaccedilatildeo de juiacutezos sinteacuteticos a priori ainda que sua

obra de maturidade natildeo possa ser chamada de neokantiana Mas agrave parte a relaccedilatildeo

entre Cassirer e o positivismo loacutegico a visatildeo de Cassirer acerca do desenvolvimento

da ciecircncia pode ser de grande relevacircncia para o estudo da histoacuteria da ciecircncia ainda

que ela seja num primeiro momento irreconciliaacutevel com o programa de Kuhn e de

outros historiadores da ciecircncia141 aleacutem da relevacircncia que tecircm suas obras para os

141

Dizemos que as visotildees de Cassirer e Kuhn satildeo irreconciliaacuteveis num primeiro momento por conta

da anaacutelise que faz Friedman (2005) acerca de como a ideacuteia de revoluccedilatildeo de Kuhn natildeo

necessariamente refuta a ideacuteia de progresso invariante da ciecircncia de Cassirer Partindo da relaccedilatildeo

que Kuhn guarda com Meyerson (aleacutem de Maier Koyreacute e Metzger) citada no prefaacutecio e no capiacutetulo

introdutoacuterio de The Structure of Scientific Revolutions e do fato de que Meyerson e Koyreacute satildeo

declaradamente opositores de Cassirer Friedman discorre acerca da especificidade da concepccedilatildeo de

ldquoinvariantes da experiecircnciardquo de Cassirer (Cf SF p 265 e SS) que requer em contraste com

Meyerson (que demandava a permanecircncia de um mesmo referencial substancial ao longo do tempo)

a continuidade atraveacutes do tempo apenas de estruturas matemaacuteticas ndash as seacuteries conceituadas no

iniacutecio da obra ndash (SF p 323-4) Dessa forma Friedman encontra uma brecha na argumentaccedilatildeo de

Kuhn dado que ao insistir na incomensurabilidade entre o sistema newtoniano e a teoria da

relatividade o faz natildeo em termos matemaacuteticos mas em termos dos referenciais fiacutesicos

171

campos da biologia (Cf KROIS 2004) da quiacutemica e da proacutepria fiacutesica como eacute o caso

de Determinismo e Indeterminismo na Fiacutesica Moderna (1937)

Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft

O projeto de uma filosofia da cultura

Ateacute aqui o projeto de uma filosofia das formas simboacutelicas foi tratado em seu

aspecto epistemoloacutegico com destaque para a crise da razatildeo contexto em que foi

idealizada e que de certa forma sempre esteve presente como pano de fundo das

reflexotildees de Cassirer A (re)definiccedilatildeo do homem como um animal symbolicum

entretanto eacute tanto epistemoloacutegica quanto moral e incide veementemente sobre a

instrumentalizaccedilatildeo da razatildeo provocada pelo seu descolamento em relaccedilatildeo agraves

demandas da humanidade e agraves demais esferas de atividade Esse eacute o principal elo

que manteacutem a obra de Cassirer no eixo da contenda entre neokantianos e

positivistas sobre a primazia das Naturwissenschaften ou das

Geisteswissenschaften expostas no capiacutetulo inicial embora dificilmente sua obra de

maturidade possa ser reduzida a uma mera tentativa de sustentar os postulados da

Escola de Marburgo142

Cassirer parte da contenda entre as ciecircncias naturais e as ciecircncias do espiacuterito

ndash o fracasso da aplicaccedilatildeo dos postulados contidos em Substacircncia e Funccedilatildeo

(dedicada agraves ciecircncias naturais) agraves ciecircncias do espiacuterito foi o que motivou a ampliaccedilatildeo

142

Na verdade Cassirer carregou por toda vida o roacutetulo de neokantiano ainda que agrave revelia Quando

da proposta de Schilpp de dedicar uma ediccedilatildeo da Library of Living Philosophers a Cassirer este

encarou a proposta como uma oportunidade de finalmente aclarar sua relaccedilatildeo com o neokantismo e

sobretudo com Cohen Cf Cassirer T p 94

172

epistemoloacutegica que resultou na formulaccedilatildeo da Filosofia das Formas Simboacutelicas ndash e

essa contenda ganha uma formulaccedilatildeo radicalmente nova em sua obra o filoacutesofo

abandona a proacutepria noccedilatildeo de Geisteswissenschaften em prol da noccedilatildeo de

Kulturwissenschaften ndash termo que inclusive consta como tiacutetulo dos textos escritos

em 1941 Nesta obra que de acordo com depoimento de Toni Cassirer esposa do

filoacutesofo foi elaborada para ser o quarto volume da Filosofia das Formas Simboacutelicas

Cassirer substitui o termo que empregava usualmente ndash Geisteswissenschaft ndash por

outro que num primeiro momento mostra-se equivalente Mas aqui sustentamos

haacute uma mudanccedila sutil que na verdade deixa entrever um aspecto indispensaacutevel

para a compreensatildeo do conceito de cultura que propotildee o filoacutesofo se mantivermos a

discussatildeo em torno de qual dos gecircneros de ldquociecircnciardquo deve ter primazia sobre o

outro natildeo chegaremos ao acircmago da questatildeo que eacute o fato de que a cultura natildeo

deve ter centro ldquoEscolher entre a ciecircncia natural e a Kulturwissenschaft entre o

naturalismo e o historicismo parece ter sido deixado ao sentimento gosto subjetivo

do pesquisador a controveacutersia se torna cada vez mais preponderante sobre a prova

objetivardquo (LKW p 88) Em outras palavras se levarmos em conta os motivos iniciais

que levaram Cassirer a propor a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo e

aprofundamento da criacutetica da razatildeo tendo em conta que a principal causa da ldquocrise

do conhecimento de sirdquo estava no fato de que ela se converteu num centro de

articulaccedilatildeo tal que hierarquizou abaixo de si todas as demais manifestaccedilotildees do

espiacuterito entatildeo somos levados a admitir que a criacutetica da cultura seja eminentemente

plural por definiccedilatildeo descentralizada De antematildeo descartamos a interpretaccedilatildeo do

termo como erudiccedilatildeo cultivo refinado do espiacuterito letramento destacado do vulgo

elegacircncia ou outros semelhantes embora seja oacutebvio que os conteuacutedos da cultura

por assim dizer erudita tenham seu lugar no corpo da cultura de que ora tratamos

173

Trata-se antes de uma abordagem antropoloacutegica que visa compreender a accedilatildeo

humana em todas as suas manifestaccedilotildees sem juiacutezos preacutevios de valor oriundos de

determinadas praacuteticas culturais em particular143

Vale dizer que o termo Kulturwissenschaft usado por Cassirer natildeo deve ser

associado agrave Kulturphilosophie que propotildee Windelband seguido mais tarde por

Rickert A concepccedilatildeo de cultura dos filoacutesofos de Baden eacute de longe diversa daquela

que aqui propotildee Cassirer E essa diferenccedila eacute tal que a partir da criacutetica que Cassirer

faz da concepccedilatildeo partilhada pela Escola de Baden podemos extrair ainda outras

consequumlecircncias intrigantes da proposta de Cassirer144

Como eacute sabido Windelband propotildee distinguir metodologicamente entre

ciecircncias nomoteacuteticas e ciecircncias idiograacuteficas cabendo agraves do primeiro tipo que satildeo as

ciecircncias naturais estabelecer o conhecimento da realidade a partir de leis gerais e

agraves do segundo tipo as disciplinas histoacutericas caberiam a determinaccedilatildeo dos eventos

particulares145 Assim a Kulturwissenschaft seria em primeiro lugar uma ciecircncia dos

eventos ou da realidade orientada por um tipo de loacutegica que eacute irreconciliaacutevel com

143

Natildeo eacute outra razatildeo que faz a traduccedilatildeo para liacutengua espanhola do Ensaio sobre o Homem levar o

tiacutetulo de Antropologia Filosoacutefica Com efeito o termo eacute usado comumente por Cassirer como

sinocircnimo na maior parte das vezes de criacutetica da cultura

144 Krois (1987 p 72-3) tece algumas comparaccedilotildees possiacuteveis entre as concepccedilotildees de cultura da

Escola de Baden e de Cassirer sobretudo o papel central que ocupa a histoacuteria ldquoNa Escola de Baden

a filosofia da cultura era sinocircnimo de filosofia da histoacuteriardquo (Idem ibidem) Mas o dualismo

metodoloacutegico de Baden eacute de fato irreconciliaacutevel com a concepccedilatildeo de Cassirer quando profundamente

analisada como mostraremos

145 Birkeland et Nilsen (2002) mostram como a dicotomia proposta por Windelband estaacute ligada agrave sua

tentativa de superar o positivismo bem como mostram em que medida a concepccedilatildeo de formaccedilatildeo dos

conceitos nas ciecircncias ndash notadamente dualista ndash proposta por Rickert estaacute em diametral oposiccedilatildeo

agravequela feita por Cassirer em Substacircncia e Funccedilatildeo Com efeito no texto de 1910 Cassirer apresenta

suas discordacircncias em relaccedilatildeo agrave proposta de Rickert na uacuteltima seccedilatildeo do capiacutetulo IV (p 220-33)

como jaacute dissemos no primeiro capiacutetulo deste texto

174

aquela que orienta a ciecircncia dos conceitos 146 Cassirer ainda que do mesmo lado

da Escola de Baden no que concerne agrave criacutetica ao positivismo natildeo endossa a

proposta de separaccedilatildeo metodoloacutegica pois que ela torna impossiacutevel o

estabelecimento de uma unidade do conhecimento Na verdade Cassirer contesta a

proacutepria dicotomia entre nomoteacutetico e idiograacutefico em relaccedilatildeo aos objetos dos quais as

ciecircncias deve se preocupar A divisatildeo parece ser arbitraacuteria e impraticaacutevel ndash ldquono seu

trabalho concreto a ciecircncia ela mesma de modo algum segue as ordens do loacutegicordquo

(LKW p 89) Ademais ldquona ciecircncia natural emergem problemas que soacute podem ser

trabalhados pelos meacutetodos conceituais da histoacuteria Do outro lado natildeo haacute razatildeo para

natildeo aplicar meacutetodos cientiacuteficos de inquiriccedilatildeo para o estudo de assuntos histoacutericosrdquo

(Idem p 90) Por fim natildeo bastasse a arbitrariedade da divisatildeo proposta ela ainda

parece inconsistente quando analisada em relaccedilatildeo ao programa filosoacutefico amplo da

Escola de Baden

ldquoWindelband e Rickert falavam como disciacutepulos de Kant Estavam determinados a

alcanccedilar para a histoacuteria e as Kulturwissenschaften o que Kant alcanccedilou para a ciecircncia

matemaacutetica da natureza Eles buscaram remover ambas da jurisdiccedilatildeo da metafiacutesica

Tomando ambas como dadas as condiccedilotildees de possibilidade delas deveriam ser

investigadas ao modo da inquiriccedilatildeo bdquotranscendental‟ de Kant Mas se a posse de um

sistema universal de valores se converte numa dessas condiccedilotildees necessaacuterias surge

a questatildeo de como o historiador pode chegar a tal sistema e como sua validade

objetiva eacute estabelecida Se ele busca estabelececirc-la nas bases da proacutepria histoacuteria ele

estaacute em risco de se envolver num argumento circular Se ele busca uma construccedilatildeo a

146

Podemos ler em Rickert (1902 p 255) ldquoA realidade empiacuterica se torna natureza se a

considerarmos em relaccedilatildeo ao geral e se torna histoacuteria se a considerarmos em relaccedilatildeo ao especiacutefico

[] A diferenccedila metodoloacutegica mais geral pode ser procurada no que as ciecircncias fazem com essa

realidade ou seja depende se ela busca o geral e irreal no conceito ou o real no especiacutefico e

singularrdquo Apud Birkeland e Nilsen op cit p 96

175

priori de tal sistema como o proacuteprio Rickert fez com sua Filosofia dos Valores foi

provado repetidas vezes que tal construccedilatildeo natildeo pode ser levada a cabo sem

suposiccedilotildees metafiacutesicas e assim em uacuteltima anaacutelise o problema termina justamente

onde comeccedilourdquo (Idem p 90-1)

Em vez de postular uma divisatildeo metodoloacutegica Cassirer propotildee uma divisatildeo

baseada em diferentes modos de percepccedilatildeo Trata-se da distinccedilatildeo entre percepccedilatildeo

de coisa e percepccedilatildeo de expressatildeo expostas no ensaio de mesmo nome contido

em Zur Logik der Kulturwissenschaft Notadamente trata-se de uma abordagem

fenomenoloacutegica que nos remete aacute noccedilatildeo de pregnacircncia exposta aqui no capiacutetulo

anterior

ldquoA anaacutelise da forma dos conceitos como tal natildeo eacute capaz de trazer completa clareza

agravequilo que especificamente distingue as Kulturwissenschaften das ciecircncias naturais

Em vez disso devemos levar a inquiriccedilatildeo a um niacutevel ainda mais profundo Devemos

nos comprometer com uma fenomenologia da percepccedilatildeo e perguntar o que ela pode

nos oferecer para a soluccedilatildeo de nosso problemardquo (Idem p 93)

A anaacutelise fenomenoloacutegica da percepccedilatildeo revela que ela possui uma orientaccedilatildeo dupla

de um lado o poacutelo-objeto [Gegenstandpol] caracterizado pela orientaccedilatildeo em

direccedilatildeo a um mundo de coisas [Dingwelt] de outro encontramos o poacutelo-ego [Ichpol]

orientado para um mundo de pessoas [Welt von Personen] Esquematicamente

Cassirer chama cada poacutelo respectivamente de Es e Du147 ldquoNum dos casosrdquo diz ele

147

Optamos por manter os termos Es e Du em alematildeo por carecer em liacutengua portuguesa de um

pronome neutro equivalente ao Es Traduzi-lo por isso como por vezes eacute feito poderia levar a algum

equiacutevoco de interpretaccedilatildeo

176

ldquoobservamos o mundo como um objeto completamente espacial e a soma total das

transformaccedilotildees temporais que se completam nesse objeto ao passo que no outro

caso o observamos como se fosse algo bdquocomo noacutes mesmos‟ Em ambos os casos a

alteridade persiste mas o fato revela a uma diferenccedila caracteriacutestica O ldquoEsrdquo eacute um

absoluto outro um aliud o ldquoDurdquo eacute um alter egordquo (Idem ibidem)

A compreensatildeo das ciecircncias culturais depende inteiramente da compreensatildeo da

percepccedilatildeo da expressatildeo mas o desenvolvimento do pensamento cientiacutefico

corresponde justamente agrave negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva a partir da qual

somente surge a significaccedilatildeo

ldquoA ciecircncia constroacutei um mundo no qual as qualidades expressivas ndash as caracteriacutesticas

do fidedigno ou do feacutertil do amistoso ou do aterrorizante ndash satildeo inicialmente repostas

como puras qualidades sensiacuteveis com cores tons e coisas do tipo E ateacute essas

devem ser ainda mais reduzidas Elas satildeo somente propriedades bdquosecundaacuterias‟

baseadas em propriedades primaacuterias ie determinaccedilotildees puramente quantitativasrdquo

(Idem p 95)

Aqui podemos reconhecer a tradiccedilatildeo filosoacutefica que vai de Descartes ateacute o empirismo

loacutegico ndash ambos citados como exemplo na mesma argumentaccedilatildeo Fato eacute que para

Cassirer a negaccedilatildeo da dimensatildeo expressiva natildeo eacute nada aleacutem de mais uma faceta

da luta da razatildeo contra o mito No afatilde de se proteger da forccedila do mito natildeo soacute os

produtos e configuraccedilotildees miacuteticas foram atacados mas sua proacutepria raiz (Idem p 94)

Eacute necessaacuterio entender que os objetos da cultura ainda que tenham seu lugar

no tempo e no espaccedilo natildeo devem ser analisados por assim dizer meramente em

suas propriedades quantitativas fiacutesicas haacute de se considerar a dimensatildeo

significativa simboacutelica que emerge apenas da percepccedilatildeo expressiva Como

177

exemplo geral Cassirer toma o quadro A Escola de Atenas de Raphael Ao

observarmos a obra podemos focar nossa atenccedilatildeo apenas no tecido da tela

coberta por pinceladas de tinta Nesse caso a obra de Raphael natildeo seraacute nada aleacutem

de mais um existente no tempo e no espaccedilo [Dasein] Mas no momento em que nos

atentamos agrave dimensatildeo expressiva da percepccedilatildeo o objeto em questatildeo assume uma

significaccedilatildeo radicalmente diversa

ldquoAqui noacutes natildeo nos perdemos na observaccedilatildeo das cores natildeo as vemos como cores ao

inveacutes eacute atraveacutes das cores que noacutes vemos o que eacute objetivo ndash uma cena definida a

conversa entre dois filoacutesofos Mas ainda assim o que eacute objetivo nesse sentido natildeo eacute o

uacutenico o verdadeiro tema da pintura A pintura natildeo eacute meramente a apresentaccedilatildeo de

uma cena histoacuterica uma conversa entre Platatildeo e Aristoacuteteles Pois na realidade natildeo

satildeo Platatildeo e Aristoacuteteles que falam a noacutes aqui mas o proacuteprio Raphaelrdquo (Idem p 95)

A semelhanccedila com o exemplo citado no capiacutetulo anterior das possiacuteveis

significaccedilotildees que uma simples linha poderia assumir eacute patente Na verdade

podemos tomar essa anaacutelise da percepccedilatildeo expressiva como um detalhamento da

percepccedilatildeo esteacutetica do exemplo anterior Mas aqui o objetivo do filoacutesofo natildeo eacute tanto

mostrar como nossa percepccedilatildeo necessariamente implica em algum tipo de

significaccedilatildeo e sim apontar as trecircs dimensotildees que constituem uma obra [Werk]

cultural genuiacutena Satildeo eles (1) o ser-aiacute [Dasein] fiacutesico (2) o objeto-representaccedilatildeo e

(3) a evidecircncia de uma personalidade uacutenica produtora da obra Se o objeto cultural

natildeo for considerado necessariamente nessas trecircs dimensotildees o resultado seraacute

apenas superficial Com efeito natildeo haacute outro modo de ter acesso agrave subjetividade de

Raphael senatildeo por meio da objetivaccedilatildeo dela por meio de sua obra Mais do que

isso o mundo do Eu e o de Raphael ndash os poacutelos da percepccedilatildeo ndash se constituem

178

reciprocamente por partilharem o ndash e por agirem no ndash mesmo universo de

significaccedilatildeo E eacute essa partilha de um universo de significaccedilatildeo uma espeacutecie de

condicionamento reciacuteproco que nos conduz a outra questatildeo importante da

discussatildeo sobre a cultura a noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo

Antes poreacutem de tratar da noccedilatildeo de civilizaccedilatildeo presente na obra de Cassirer

cabe finalizar um assunto pendente Dissemos acima que a noccedilatildeo de

Kulturwissenschaft natildeo deve ser associada agravequela dos filoacutesofos de Baden Quando

Cassirer opta pelo termo ele faz referecircncia agrave Kulturwissenschaftliche Bibliothek

Warburg em Hamburg A importacircncia do instituto criado por Aby Warburg para a

obra de Cassirer eacute realmente digna de nota como provam as reiteradas referecircncias

de todos os principais comentadores de Cassirer148 Foi laacute que ele teve contato com

o precioso acervo coletado por Aby Warburg com o qual inclusive partilhava

inquietaccedilotildees e perspectivas acerca da questatildeo da cultura humana Aleacutem de textos

escritos especialmente para leituras realizadas na proacutepria biblioteca haacute uma nota de

agradecimento de Cassirer a Saxl no prefaacutecio do segundo volume da Filosofia das

Formas Simboacutelicas que o ajudara durante as pesquisas realizadas no instituto A

nota revela a importacircncia que Cassirer dava ao acervo laacute encontrado

ldquoOs esboccedilos e trabalhos preliminares para este volume jaacute estavam avanccedilados

quando em razatildeo de minha nomeaccedilatildeo em Hamburgo travei contato mais proacuteximo

com a Biblioteca de Warburg Ali encontrei no domiacutenio da pesquisa mitoloacutegica e da

histoacuteria geral das religiotildees natildeo apenas um material rico quase incomparaacutevel pela

sua abundacircncia e singularidade ndash mas esse material em sua organizaccedilatildeo e

classificaccedilatildeo no cunho espiritual impresso por [Aby] Warburg parecia referido a um

problema unitaacuterio e central que se ligava estreitamente ao problema fundamental de

148

Cf p ex Krois (2002) Habermas (1997) Skidelsky (2008 esp cap IV) ou ainda Saxl (1949) e

Gay (1968)

179

meu proacuteprio trabalho Essa concordacircncia estimulou-me mais ainda a continuar pelo

caminho jaacute comeccedilado ndash parecia que isso atestava que a tarefa sistemaacutetica que este

livro dera a si mesmo se relaciona internamente com as tendecircncias e exigecircncias

oriundas do trabalho concreto das proacuteprias ciecircncias do espiacuterito e do esforccedilo pela sua

fundamentaccedilatildeo e aprofundamento histoacutericosrdquo (p 10)

O dado eacute relevante se atentarmos para o fato de que de acordo com Peter Gay o

ciacuterculo de intelectuais que se mantinham em contato com o instituto de Warburg ndash

dos quais podemos destacar Erwin Panofsky e Edgar Wind aleacutem de Saxl e o proacuteprio

Cassirer ndash ia na contramatildeo da concepccedilatildeo cultural da eacutepoca e se faziam a ldquoantiacutetese

ao brutal antiintelectualismo e misticismo vulgar que ameaccedilavam barbarizar a cultura

alematilde dos anos vinterdquo (GAY 1968 p 46)

O instituto Warburg com seu ldquoempirismo austerordquo nas palavras de Gay

(idem ibidem) partilhava de uma concepccedilatildeo de cultura que foi marca dos ideais de

democracia de Repuacuteblica de Weimar Aqui Kultur (germacircnica) natildeo eacute um termo que

se opotildee agrave Civilization (estrangeira) tal como largamente difundido por parte

consideraacutevel da produccedilatildeo intelectual (desde o periacuteodo da Primeira Guerra e que

perdurou nos tempos da repuacuteblica de Weimar) cujas obras estatildeo envoltas pela

atmosfera miacutetica da afirmaccedilatildeo nacional alematilde como se esta estivesse destinada a

cumprir um papel sagrado na histoacuteria e tivesse o dever de preservar e espalhar (e ndash

por que natildeo dizer ndash impor) sua cultura contra a barbaacuterie e decadecircncia das outras

naccedilotildees (Cf GAY 1968 p 107-8)

180

Cultura e Civilizaccedilatildeo

Da mesma forma que Cassirer propotildee a criacutetica da cultura como substituiccedilatildeo

da criacutetica da razatildeo ele propotildee a substituiccedilatildeo da definiccedilatildeo de homem como animal

rationale por animal symbolicum Haacute um evidente paralelo quando consideramos as

duas substituiccedilotildees e esse paralelo nos mostra que a discussatildeo sobre a cultura seraacute

uma discussatildeo sobre a atividade simboacutelica Destarte se considerarmos ainda que

Cassirer toma a cultura como ldquoo processo da progressiva autolibertaccedilatildeo do homemrdquo

(EM p 371) percebemos que a atividade simboacutelica eacute por excelecircncia aquela que

proporciona ao homem sua autolibertaccedilatildeo

Interessante aqui eacute notar que de um lado haacute uma prerrogativa moral impliacutecita

na atividade simboacutelica ao homem eacute devido sair da imediaticidade da vida e isso

representa simultaneamente trilhar o caminho da liberdade ndash em relaccedilatildeo ao

determinismo da vida ndash e da autonomia ndash entendida como o desenvolvimento do

espiacuterito em suas diversas direccedilotildees e natildeo apenas naquela que identifica como em

Kant a autonomia como o uso autocircnomo da razatildeo Nesse sentido fica claro de que

modo a obra de Cassirer se aproxima mutatis mutandis do ideal moral iluminista

Se para Kant a autonomia significa o uso da razatildeo sem a direccedilatildeo de outrem e por

conseguinte a capacidade do indiviacuteduo de fazer pleno uso de suas faculdades

mentais aqui o que se passa eacute que o espiacuterito se constitui como tal na medida em

que age atua A construccedilatildeo da realidade pelo espiacuterito eacute presente mesmo no mito

ainda que como jaacute discutido nesse momento de seu desenvolvimento o espiacuterito

entenda que haacute uma realidade objetiva que se impotildee (em termos de significado) a

ele agrave revelia O desenvolvimento do espiacuterito o leva a entender (e aqui a religiatildeo e a

arte satildeo preponderantes) que o mundo ao contraacuterio eacute constituiacutedo tambeacutem por

181

construccedilotildees (no caso as imagens miacuteticas) e que o espiacuterito deve se posicionar em

relaccedilatildeo a isso seja renegando as imagens (tomadas como aparecircncia) como faz a

religiatildeo seja assumindo-as como faz a arte Mas eacute somente quando o espiacuterito

chega agrave Bedeutungsfunktion de fato que ele eacute capaz de entender a si mesmo como

o produtor de significaccedilotildees ou seja eacute o momento em que o espiacuterito chega agrave

constataccedilatildeo de sua plena autonomia Vale dizer trata-se do mesmo momento em

que o espiacuterito alcanccedila sua plena liberdade

Quando Cassirer apresenta sua proposta de redefiniccedilatildeo do homem

apontando inclusive para o fato de que a definiccedilatildeo anterior ndash animal rationale ndash era

sobretudo a expressatildeo de um imperativo moral ele aponta para outra importante

virtude do siacutembolo qual seja abrir ao homem o caminho para a civilizaccedilatildeo (EM p

50)149 Aqui podemos identificar outro ponto de convergecircncia do pensamento de

Cassirer com os ideais cosmopolitas iluministas com a ressalva de que a feacute

depositada por estes na razatildeo eacute transferida para a atividade simboacutelica Dessa

transferecircncia entretanto decorre uma modificaccedilatildeo radical na concepccedilatildeo de

civilizaccedilatildeo

Primeiramente cabe dizer que a orientaccedilatildeo mais comum no que concerne agrave

histoacuteria da civilizaccedilatildeo eacute a de progresso caudataacuteria da admissatildeo da razatildeo como

paracircmetro universal de valoraccedilatildeo Eacute o que podemos ver seja no iluminismo no

149

O termo civilizaccedilatildeo como se pode notar natildeo tem a conotaccedilatildeo pejorativa que possuiacutea no contexto

dos historiadores de Weimar A proacutepria oposiccedilatildeo que se fazia entre Kultur e Civilization na verdade

jaacute era marca de uma tentativa de imposiccedilatildeo de padrotildees locais aos povos em geral e isso eacute

notadamente incompatiacutevel com a proposta de Cassirer Aqui podemos entender por qual razatildeo a

filosofia de Cassirer eacute tomada como a expressatildeo de um espiacuterito democraacutetico em seu mais profundo

sentido bem como as razotildees que aqui nos conduzem a apontar como principal consequumlecircncia da

filosofia das formas simboacutelicas a necessidade de pensar a diversidade cultural

182

idealismo alematildeo ou no positivismo150 Dadas as caracteriacutesticas desse modelo de

razatildeo admitido pela modernidade podemos depreender que a civilizaccedilatildeo tenderia a

um ponto uniacutevoco em seu progresso haveria portanto um certo ideal de civilizaccedilatildeo

traccedilado em consideraccedilatildeo aos postulados da razatildeo (Esse parece ser o imperativo

moral inscrito na definiccedilatildeo claacutessica de homem da qual fala Cassirer) A univocidade

impliacutecita no ideal de progresso tem seus efeitos na concepccedilatildeo de humanidade ndash

cosmopolita 151 ndash e de cultura ndash racional e homogecircnea Natildeo eacute difiacutecil conceder

portanto que nos termos da antropologia filosoacutefica o eurocentrismo cultural seja

correlato da centralidade da razatildeo na histoacuteria da filosofia Eacute o que se depreende por

exemplo do fato de a histoacuteria da cultura para Herder culminar na Europa ou do

tipo de categorizaccedilatildeo de que se vale Adorno para analisar a muacutesica e a literatura

Diversidade Cultural

Quando Cassirer define a cultura como a ldquoprogressiva autolibertaccedilatildeo do

espiacuteritordquo natildeo se deve entender que a referecircncia ao progresso tenha sentido

teleoloacutegico como se perspectivasse um ideal uniacutevoco uma espeacutecie de espiacuterito

absoluto Isso por conta de que a ldquoautolibertaccedilatildeordquo deve ser tomada como concreta e

(re)inscrita em cada indiviacuteduo ndash donde deriva sua dimensatildeo universal Como bem

aponta Krois (2002 p 28)

150

Obviamente em todos os casos citados haacute exceccedilotildees como o emblemaacutetico caso de Rousseau

Todavia natildeo se pode negar que Rousseau representava a contracorrente de sua eacutepoca

151 Poderiacuteamos aqui talvez propor a mesma aproximaccedilatildeo que faz Aristoacuteteles entre as noccedilotildees de

animal racional e animal poliacutetico afinal do ideal de razatildeo iluminista deveria se seguir a compreensatildeo

da humanidade cosmopolita

183

ldquoTodos devem agir de um modo uacutenico e individual Cada pessoa tem uma situaccedilatildeo e

vida uacutenicas Mas a bdquoautolibertaccedilatildeo‟ assume formas recorrentes libertaccedilatildeo do medo

da injusticcedila da ignoracircncia Isso natildeo eacute uma doutrina de progresso Natildeo eacute uma marcha

linear de eventos mas uma infindaacutevel tarefa que sempre assume novas formas em

cada vida individual A histoacuteria como a histoacuteria da cultura tambeacutem sempre toma

novas formasrdquo152

A univocidade e a homogeneidade que estatildeo impliacutecitas no modelo teleoloacutegico

convencional de compreensatildeo da cultura satildeo agora substituiacutedas por uma apreensatildeo

positiva da diferenccedila da diversidade decorrecircncia esperada da admissatildeo da cultura

como um processo essencialmente relativo153

Como se pode notar a abordagem de Cassirer para o problema da cultura

natildeo tem precedentes na histoacuteria da filosofia tampouco ela faz parte de um certo

momento filosoacutefico em que a questatildeo se colocava amplamente Prova disso eacute que

por um longo periacuteodo a programaacutetica da filosofia de Cassirer foi razatildeo de seu

ostracismo sobretudo nos dias aacuteureos da filosofia analiacutetica Contudo em vista do

crescente interesse pelo que hoje se costuma chamar de ldquoestudos culturaisrdquo154

percebemos claramente como a perspicaacutecia de Cassirer o colocou anos agrave frente do

seu tempo De modo geral a temaacutetica poacutes-estruturalista ndash a exemplo da noccedilatildeo de

diferenccedila de Derrida ndash parece apontar para o mesmo caminho traccedilado por Cassirer

Evidentemente haacute pontos importantes em que as perspectivas divergem a exemplo

152

Krois aponta tambeacutem a relaccedilatildeo da ldquoautolibertaccedilatildeordquo com a leitura que Cassirer faz de Goethe Cf

1987 p 176-181 ou 2002 p 28

153 Com efeito evitar a absolutizaccedilatildeo mesmo da proacutepria diferenccedila eacute uma tarefa importante que

marca a perpeacutetua dialeacutetica da cultura Sucumbir a qualquer instacircncia tomando-a como absoluta

(como o fez a cultura ocidental com a razatildeo) eacute abrir portas para o retorno do mito e para a

intoleracircncia agrave diversidade que o caracteriza

154 De acordo com Krois (2002 p 20) o termo deriva do Centre for Contemporary Cultural Studies

em Birmingham Inglaterra criado na deacutecada de 1960

184

da recusa poacutes-estruturalista da noccedilatildeo de humanidade (que em Cassirer diga-se de

passagem natildeo eacute substancial mas funcional) Mas os pontos de convergecircncia

saltam aos olhos a cultura eacute tomada em sentido antropoloacutegico ou seja natildeo eacute

norteada por uma ideacuteia universal de razatildeo a cultura portanto natildeo eacute tomada no

singular mas no plural As divisotildees entre os campos de pesquisa natildeo satildeo

estanques de modo que para se falar em identidade cultural por exemplo eacute

necessaacuterio um esforccedilo conjunto da poliacutetica da literatura da arte da sociologia da

filosofia da histoacuteria e da etnologia A anaacutelise dos meios de vida concretos eacute

evidentemente mais importante do que a valoraccedilatildeo a priori com base em conceitos

estranhos o que implica levantar dados oriundos de fontes diversas por meacutetodos

variados no lugar de manter-se fiel a uma determinada tradiccedilatildeo interpretativa

Por fim resta dizer que a filosofia de Cassirer eacute ainda pouco explorada em

vista do que pode fornecer para elucidar a histoacuteria da filosofia do seacuteculo XX ou

mesmo para questotildees contemporacircneas Em tempos nos quais a intoleracircncia entre

povos soacute faz crescer e nos quais a razatildeo e a ciecircncia parecem natildeo conseguir

corresponder agraves expectativas nelas depositadas faz-se urgente uma reavaliaccedilatildeo

das bases a partir das quais se edificam nossas accedilotildees Colocar de volta o homem

no centro da discussatildeo eacute o primeiro passo para que alcancemos uma resoluccedilatildeo de

fato Nada aleacutem de lanccedilar novas luzes agrave velha inscriccedilatildeo de Delfos conhece-te a ti

mesmo

185

REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS

Nota de esclarecimento

As referecircncias primaacuterias estatildeo listadas em ordem alfabeacutetica por tiacutetulo e as

secundaacuterias em ordem alfabeacutetica por autor Dado que a proposta do trabalho estaacute

ligada a uma interpretaccedilatildeo particular do desenvolvimento da filosofia de Cassirer ao

longo de suas obras foi necessaacuterio indicar o ano de publicaccedilatildeo das mesmas ndash como

fiz durante todo o texto Entretanto por vezes a ediccedilatildeo usada natildeo foi a original e

assim a paginaccedilatildeo indicada natildeo corresponde agravequela do original Por conta disso

nos casos em que a ediccedilatildeo citada no corpo do texto natildeo corresponde agravequela que foi

efetivamente consultada a referecircncia aqui eacute acrescida do ano de primeira

publicaccedilatildeo da obra entre colchetes logo apoacutes o tiacutetulo

Primaacuterias

CASSIRER E El Concepto de la Forma Simboacutelica en la Construccioacuten de las

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___________ The Development of Cassirer‟s Philosophy Introduccedilatildeo a BAYER T

Cassirer‟s Metaphysics of Symbolic Forms A Philosophical Commentary New

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  • GENEALOGIA DA CRIacuteTICA DA CULTURAUM ESTUDO SOBRE A FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS DE ERNST CASSIRER
  • AGRADECIMENTOS
  • RESUMO
  • ABSTRACT
  • LISTA DE ABREVIATURAS
  • SUMAacuteRIO
  • PARA LER CASSIRER
  • ORIGENS DA FILOSOFIA DAS FORMAS SIMBOacuteLICAS
    • Ponto de partida a constataccedilatildeo de um fracasso
    • Escola de Marburgo
    • Doutrina de Marburgo
    • Substacircncia e Funccedilatildeo
    • Rupturas
    • Cisatildeo
      • AS FORMAS SIMBOacuteLICAS E A CONSTITUICcedilAtildeO DA CULTURA
        • Ampliaccedilatildeo do campo epistemoloacutegico
        • Conceito de forma simboacutelica
        • Uma teoria da significaccedilatildeo
        • Pregnacircncia Simboacutelica
        • As funccedilotildees de objetivaccedilatildeo e a dialeacutetica das formas simboacutelicas
          • O PROBLEMA DA REALIDADE E A DIVERSIDADE CULTURAL
            • A Realidade Simboacutelica
            • Da Geisteswissenschaft agrave Kulturwissenschaft
              • REFEREcircNCIAS BIBLIOGRAacuteFICAS