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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA SAVIO GONÇALVES DOS SANTOS A PESSOA EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU UBERLÂNDIA-MG 2011

A PESSOA EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU - Repositório ... · A pessoa em Jean-Jacques Rousseau / Sávio Gonçalves dos ... nos dizeres de Ernst Cassirer, ... A grande questão é que a

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA SAVIO GONÇALVES DOS SANTOS

A PESSOA EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU

UBERLÂNDIA-MG 2011

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SAVIO GONÇALVES DOS SANTOS

A PESSOA EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Filosofia, do Instituto de Filosofia, da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Orientador: Professor Dr. José Benedito de Almeida Júnior.

UBERLÂNDIA – MG 2011

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Elaborado pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação

S237p

Santos, Sávio Gonçalves dos, 1984- A pessoa em Jean-Jacques Rousseau / Sávio Gonçalves dos Santos. - 2011. 122 f. Orientador: José Benedito de Almeida Júnior. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de Uberlândia, Programa de Pós-graduação em Filosofia. Inclui bibliografia. 1. Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 - Crítica e interpretação - Teses. 2. Filosofia moderna - Séc. XVIII - Teses. I. Almeida Júnior, José Benedito de, 1965- . II. Universidade Federal de Uberlândia. Programa de Pós-Graduação em Filosofia. III. Título. CDU: 1(4/9)

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SAVIO GONÇALVES DOS SANTOS

A PESSOA EM JEAN-JACQUES ROUSSEAU Dissertação apresentada ao Programa de Pós Graduação em Filosofia, do Instituto de Filosofia, da Universidade Federal de Uberlândia, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de Concentração: Ética e Conhecimento

Aprovado em: ____/____/2011

Banca Examinadora

_______________________________ Prof. Dr. Pe. Sérgio de Siqueira Camargo

Faculdade Católica de Uberlândia

_______________________________ Profª. Dra. Geórgia Amitrano

Universidade Federal de Uberlândia

_______________________________ Prof. Dr. José Benedito de Almeida Júnior

Universidade Federal de Uberlândia Orientador

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À Carolina (Nina), meu primeiro e último amor. Como agradecimento pelo amor, carinho, apoio e compreensão. Eternamente indispensáveis!

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Agradecimentos

O ato de agradecer talvez seja um dos mais antigos da humanidade.

Agradecer não supõe somente dizer obrigado, mas estreitar os laços de amizade, e

reconhecer a importância do outro para sua existência, na formação da sua pessoa.

Assim, quero aqui atenuar os vínculos de, mais que amizade, de amor.

Agradeço a Deus, pela vida e pela constante benção, paz, saúde, amor,

proteção, inteligência, sabedoria e discernimento. Que Ele possa continuar com

seus presentes.

Agradeço a meus pais e meu irmão, pelo amor, carinho, apoio e dedicação!

Que Deus possa abençoá-los a cada dia e cada vez mais. Que um dia eu seja capaz

de retribuir.

Agradeço a Nina, meu primeiro, único e eterno amor. Sem a qual não seria

possível concluir este projeto! Muito obrigado pelo amor, apoio e compreensão. Por

ter paciência comigo nesta empreitada, estando sempre ao meu lado, e entendendo

quando não podia acompanhá-la nas jornadas! Ter você me faz lutar a cada dia

mais para te fazer feliz! Meu amor, nossa vida só começa! Este ano é especial!

Agradeço aos meus sogros, pelo apoio e pela preocupação; por me darem o

maior e melhor presente da minha vida. Por serem presença constante em minha

caminhada.

Agradeço, imensamente, ao meu mestre José Benedito, por aceitar, sem

pestanejar, a proposta de me orientar, mesmo com tantas dificuldades. A paciência,

o carinho e a dedicação, são exemplos de um verdadeiro amante da sabedoria e,

mais que isso, do humano que é. Muito obrigado pela tolerância e por aceitar, muitas

vezes, minhas vãs reflexões sem me desanimar. Ao senhor, deixo meus sinceros

agradecimentos e a eterna amizade que se inicia. Tenha certeza que me ensinou

muito sobre filosofia! Hoje, sou quase filósofo! Hoje, sou rousseauista! Mas acima de

tudo, conheci um verdadeiro filósofo.

Agradeço ao amigo e professor Acir Mário Karwoski, da Universidade Federal

do Triângulo Mineiro, pelo constante apoio e incentivo. Não estaria no mestrado

hoje, se não fosse suas orientações na elaboração do projeto e na força de vontade

transmitida nos conselhos dados.

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Agradeço ao meu eterno mestre Pe. Valmir Ribeiro, pelas incansáveis lições e

pela presença constante, mesmo que distante. Nunca me esquecerei dos momentos

de aprendizado, construídos ao longo dos anos. Se hoje sou a pessoa e o

profissional que sou, devo muito a ele.

Agradeço imensamente a professora Maria Soledade, e na pessoa dela toda

a Universidade de Uberaba, pelo apoio e compreensão em momentos tão delicados

e importantes da minha vida. Minha gratidão eterna a essa pessoa maravilhosa e

alma bondosa, que tem um papel fundamental em minha vida e de minha formação.

Agradeço a professora Geórgia Amitrano, pelas horas de debate filosófico em

suas aulas, e por aceitar estar na qualificação e na defesa do meu trabalho. Sua

filosofia deixou marcas em meu ser filosófico; sua riqueza enquanto pessoa me fez

entender muito mais da pessoa, do que qualquer texto! Muito obrigado!

Agradeço ao professor Pe. Sérgio Siqueira, pelo aceite em participar das

bancas deste trabalho. Que o conteúdo possa ter acrescentado algo a vasta

sabedoria e entendimento do senhor. Muito obrigado!

Agradeço ao senhor Alberto, do posto Vera Cruz, por ser parte essencial

deste mestrado. Pela paciência e pela generosidade em me ajudar quando o

dinheiro não era suficiente para as jornadas a Uberlândia. Muito obrigado!

Agradeço a Universidade Federal de Uberlândia, pela oportunidade de

realizar esse mestrado. Agradeço imensamente a todos os membros do

departamento de filosofia pelo apoio incondicional. Agradeço os colegas de sala,

pelas horas infindáveis de debate e reflexão.

Enfim, agradeço a todos, que de uma forma ou de outra contribuíram para

que este sonho fosse possível. Que Deus, em sua infinita misericórdia, abençoe a

todos, e transforme os sonhos em constante realidade.

Muito obrigado, de coração!

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"Enquanto estiver vivo, sinta-se vivo. Se sentir saudades do que fazia, volte a fazê-lo. Não viva de fotografias amareladas. Continue, quando todos esperam que desistas. Não deixe que enferruje o ferro que existe em você. Faça com que em vez de pena, tenham respeito por você. Quando não conseguir correr através dos anos, trote. Quando não conseguir trotar, caminhe. Quando não conseguir caminhar, use uma bengala. Mas nunca se detenha”.

Madre Teresa de Calcutá

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RESUMO

SANTOS, Savio Gonçalves dos. A pessoa em Jean-Jacques Rousseau. 2011. 121 p. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia. Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia MG, 2011.

A busca por dar sentido a vida do homem esbarra na necessidade de se definir suas bases. Assim, o objetivo será definir a pessoa em Jean-Jacques Rousseau, que se converte numa proposta de retomar os textos do genebrino, e trazê-los para a discussão contemporânea acerca do que se entende por pessoa. O caminho escolhido para a definição começa pelo estabelecimento da liberdade, seus conceitos fundamentais; a definição da verdadeira liberdade que só toma sentido se for em sociedade. Em seguida a busca é por tratar da passagem da homem do estado de natureza para o estado social; tal passagem faz com que se ecloda a necessidade do autoconhecimento, e da formação de bases solidas que se fundam na dinâmica social, tornando a análise para além dos moldes humanistas, inserindo, inclusive, a definição consciência e de opinião, como parte da pessoa.

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RÉSUMÉ

SANTOS, Savio Gonçalves dos. La personne de Jean-Jacques Rousseau. 2011. 121 p. Dissertation. Institute de philosophie. Université Fédérale de Uberlandia, Uberlandia MG, 2011. La recherche de donner un sens à la vie touche à l'homme sur la nécessité de definir leurs bases. L'objectif sera de définir la personne de Jean-Jacques Rousseau, qui devient une proposition de reprendre le texte du philosophe, et les amener à ladiscussion contemporaine sur ce que l'on entend par personne. La voie choisie pour la définition commence par l'établissement de la liberté, ses concepts fondamentaux, la définition de la vraie liberté qui n'a de sens que si elle est dans la société. Puis la recherche est pour la manipulation de la transition de l'homme de l'état de nature à l'état social, cette transition signifie qu'il éclate la nécessité pour la connaissance de soi, et la formation de préceptes qui sont ancrées dans la dynamique sociale, ce qui rend l'analyse au-delà humanistes des moules, d'insertion, notamment la définition de conscience et d'opinion, dans le cadre de la personne.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .................................................................................. 11 CAPÍTULO 1: DA LIBERDADE........................................................ 22 1.1 A liberdade natural ou da irrestrição.............................................................. 24 1.2 A liberdade civil ou da verdadeira liberdade.................................................. 27 1.3 A liberdade moral........................................................................................... 30 1.4 Liberdade civil................................................................................................ 35 1.5 A liberdade como legitimidade do pacto social.............................................. 39 1.6 A liberdade como fundamento da pessoa...................................................... 41 CAPÍTULO 2: A PESSOA EM ROUSSEAU.................................... 49 2.1 Definição de pessoa....................................................................................... 52 2.1.1 A pessoa física/natural.......................................................................... 53 2.1.2 A pessoa individual............................................................................... 57 2.1.3 O Outro.................................................................................................. 60 2.2 A passagem da pessoa física/natural para a pessoa moral/social................ 64 2.2.1 A Linguagem em Rousseau.................................................................. 64 2.2.2 A evolução do espírito humano............................................................. 68 2.2.3 A escravidão.......................................................................................... 70 2.2.4 O amor.................................................................................................. 72 2.2.5 A moral pessoal..................................................................................... 74 2.3 A pessoa moral/social.................................................................................... 78 CAPÍTULO 3: DA CONSCIÊNCIA E DA OPINIÃO.......................... 91 3.1 A formação da consciência pessoal............................................................... 92 3.2 A consciência e a ignorância.......................................................................... 96 3.3 A consciência da identidade........................................................................... 99 3.4 A reflexão aprimorada pela consciência........................................................ 104 3.5 Consciência versus opinião............................................................................ 109 CONCLUSÃO ................................................................................... 115 REFERÊNCIAS.................................................................................. 119

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INTRODUÇÃO

Analisar e refletir acerca do ser humano sempre foi um dos grandes entraves

da filosofia. O próprio Rousseau admite, no prefácio do segundo Discurso, que este

assunto é “o mais útil e o menos avançado de todos os conhecimentos humanos”

(ROUSSEAU, 2007, p. 25). Dessa forma, o ser humano, como essência do

pensamento filosófico, sempre se colocou ao longo da história, como um ponto de

questionamento variável e diverso. As definições, nem sempre claras, demonstram

que ainda hoje, em pleno século XXI, ele ainda não teve sua real definição

alcançada. Como um composto de dimensões, nos dizeres de Ernst Cassirer, o ser

humano não poder ser entendido como mero objeto de estudo, ou do pensamento.

Sua composição, para além da prática minimalista, se reveste de uma complexidade

que atravessa pontos de vista e suposições, e alcança proporções inimagináveis

quer no âmbito individual ou mesmo coletivo.

Dentre as dimensões desse humano é possível encontrar a característica

fundamental, a essência formadora do seu ser: a pessoa. Pessoa não simplesmente

resumida à definição de origem latina (Persona) que faz menção às máscaras, mas

sim, uma disposição ampla do que se pode chamar de um ser humano completo.

Inúmeros são os pensadores que se dedicam a tratar da pessoa e da sua formação,

mas poucos a colocam como fundamento para a compreensão de todo o mesmo

gênero humano. A grande questão é que a célebre frase do oráculo de Delfos,

"conhece-te a ti mesmo", nunca deixou de nortear os caminhos filosóficos, fazendo

com que, de maneira efetiva, fosse necessário, para o entendimento do homem, que

ele fosse capaz de seguir seu caminho a partir da prática da introspecção; em certo

sentido, pode-se falar da prática humanista na filosofia grega. Tal feito mostra a

habilidade inicial que o humano deve portar, para que as maiores dúvidas sejam

sanadas de acordo com as necessidades; ou seja, as respostas para as principais

perguntas sobre o humano não se encontram fora dele, mas sim, na suas dúvidas,

na sua pessoa, em sua completude.

Há, por parte deste trabalho, certa ousadia em se trazer Rousseau, um

pensador do século XVIII, que não se preocupa [cita o termo pessoa poucas vezes

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em seus escritos] em apontar linhas para a discussão da pessoa, para dentro da

temática. É evidente que o tema é de relevância filosófica, acadêmica e social,

principalmente por que o assunto [pessoa] nunca esteve tanto em voga. Campos

diversos, sejam eles ramificações da filosofia, ou não, estão na lida constante para

se buscar o aporte necessário para a definição do ser pessoa.

Um ponto interessante e fundamental do texto, é o segmento de uma linha

mestra filosófica, que perpassa os séculos sendo modificada em sua aplicação, mas

não no seu objetivo. O “conhece-te a ti mesmo” de Delfos se apresenta como meio

pelo qual se quer buscar responder, afinal, o que vem a ser pessoa.

De maneira especial a reflexão da pessoa não alcançou patamares tão altos

por conta do desconhecimento de sua importância. A filosofia sempre se interessou

pelo pensamento, relegando a outras instâncias e às ciências o dever de tratar de tal

ponto. O problema se encontra justamente no fato de que ao se pensar a dinâmica

construtora do ser do humano, ela só se torna realidade ao se começar pela

definição do que vem a ser a pessoa; não pura e simplesmente uma concepção

fisicista, ou mesmo psicológica; mas pessoa supõe, necessariamente, a existência

de pontos de sustentação formadores de uma essência que engloba aspectos

fundamentais, tais como: o outro, a sociedade, a racionalidade, a moral, a liberdade

etc.

Diante disso, o objetivo deste trabalho é buscar definir o fundamento do ser

humano, entendendo que para isso deve se passar pelo estabelecimento do ser

pessoa. Como sustentação da dissertação, escolhe-se os escritos de J.J Rousseau

(segundo Discurso, Contrato social, Emílio, Devaneios do caminhante solitário), que

elaborou uma série de textos cujo objetivo era tratar do ser humano; pois “Toda a

obra de Rousseau é baseada no conhecimento do homem. Rousseau busca estudar

o homem e todos os problemas que lhe surgem [...]”1 (DERATHÉ, 1984, p. 109).

O fato de trazer o pensamento de Rousseau para a contemporaneidade

mostra a ligação da filosofia com a história, sendo essa última, indispensável para a

1 “Toute l'oeuvre de Rousseau est axée sur la connaissance de l'homme. Rousseau remène à l'étude de l'homme tous les problèmes qu'il se pose” (DERATHÉ, 1984, p. 109).

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compreensão da primeira. Os textos de Rousseau apontam para a dupla

composição humana: a dinâmica natural, entendida como estado de natureza, e a

social como fundante do estado civil. Contudo, e para além dessa concepção, uma

leitura mais cuidadosa de tais textos leva a uma conclusão diferente. O pensador

coloca toda a questão do ordenamento social na necessidade de se definir o

humano a partir da sua liberdade, na busca de se compreender a origem da

desigualdade entre os mesmos. Entretanto, uma leitura mais atenta da bibliografia

de Rousseau aponta para a observação e a atenção do pensador para com o

humano. Isso fica exposto de maneira clara no prefácio do segundo Discurso que se

deve começar a estudar e conhecer os próprios homens. Em suas próprias

palavras2:

Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens? (ROUSSEAU, 2007, p. 25).

Ainda no Emílio lê-se:

Nosso verdadeiro estudo é o da condição humana. Aquele que melhor souber suportar os bens e os males desta vida é, para mim, o mais bem educado; donde se segue que a verdadeira educação consiste menos em preceitos do que exercícios (ROUSSEAU, 2004, p. 15).

A construção literária de Rousseau aponta momentos e comportamentos

necessários para o estabelecimento da condição humana num mundo modificado

pelo próprio homem. O pensador estabelece regras de conduta e comportamento,

onde a essência é compreender como se estrutura o homem enquanto ser; daí a

importância de se colocar a fundação da pessoa como o centro motor do seu

pensamento.

2 Em alguns pontos do trabalho, numa ousada prática filosófica, aparecem interpretações que não são diretamente de Rousseau, mas sim, interpretações feitas a partir de leituras anteriores, e mesmo de pesquisa em comentadores. Assim, o que se objetiva com tal prática é a verdadeira ação da filosofía: o filosofar.

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O pensamento de Rousseau extrapola a lógica do seu tempo; seu modo de

construir a reflexão filosófica coloca o problema, no caso a pessoa, para além de

sua própria história. Fato inegável é a influencia do contexto histórico em seus

escritos, o que faz com que o trabalho seja refletido, introdutoriamente, sob dois

aspectos: os fatos históricos em si, e a história da pessoa enquanto reflexão

filosófica.

Os escritos de Rousseau são frutos de uma época em que a Europa vivia

uma extrema injustiça social. Com o objetivo de manter a vida luxuosa da nobreza,

os trabalhadores e camponeses arcavam com a maior parte das dívidas, sendo que

os impostos eram pagos, em sua maioria, por este segmento. Neste contexto de

perda dos valores e a imposição de um comportamento que menosprezava o ser

humano, Rousseau emerge como um pensador que propõe o reconhecimento dos

valores fundamentais, e repudia as agressões que surgiram ao longo dos séculos.

A “Época das Luzes”, período de grande mudança cultural e intelectual na

história da modernidade, se tornou o espaço necessário para o florescimento da

discussão acerca do humano e sua real condição. A batalha das “luzes contra as

trevas”, da razão contra a fé, desencadeia um processo de ruptura com o passado,

que pode ser resumido pelo trinômio: liberdade, igualdade e fraternidade. Jean-

Jacques Rousseau será um dos grandes e importantes pensadores desse período.

Influenciado por Voltaire, Diderot e d’Alembert, Rousseau se dedicará a expor sobre

o comportamento social, sobre as formas de governo, sendo as desigualdades

sociais provocadas pelo próprio homem. O Estado assim passa a ser compreendido

como instituição humana, e sua legitimidade derivada da vontade popular.

Rousseau é o teórico do Estado Liberal. Explicar o Estado de maneira

racional, como resultado do pacto entre os homens (contrato), tinha muito mais do

que simplesmente o intuito de demarcar os limites sociais, mas sim, expor a

necessidade de uma mudança profunda na estrutura social. Avesso a determinados

comportamentos humanos, como o capitalismo, Rousseau se posicionou contra a

civilização burguesa, defendendo a tese da bondade natural do homem, pervertido

pela civilização.O filósofo exaltava a vida familiar, numa sociedade baseada na

justiça, igualdade e soberania do povo.

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Além de tudo, Rousseau era um pensador que visava os benéficos efeitos

da educação, sendo base da sociedade. A formação do cidadão, ao longo dos

tempos, sempre se deu pela política e pela educação, estabelecendo uma tênue

linha para a organização da sociedade. Dessa forma, se a natureza humana, que é

boa, for corrompida pela sociedade, ela precisará de uma profunda reforma, que

somente virá, em Rousseau, pela educação.

Rousseau contribuiu com o movimento romântico do século XIX,

estabelecendo formas básicas de pensar e sentir o mundo, contradizendo natureza

e sociedade. É justamente aqui que se apóia a ideia fundante deste trabalho. Falar

dessa pessoa, ou ainda, buscar esta pessoa nos escritos do genebrino é um

trabalho lógico e sistemático. Isso pelo fato de que, primeiramente, deve-se definir

os conceitos primeiros em Rousseau, tais como liberdade, pessoa, consciência e

opinião. Para a formação da pessoa há a necessidade de que todos essas etapas

estejam ligadas, de maneira coesa.

É fato que para se chegar a compreensão da pessoa em Jean-Jaques

Rousseau o caminho não foi fácil. O entendimento partiu da busca de uma ética

original do humano, baseando em sua bondade natural. O primeiro problema estava

formado: em Rousseau é impossível pensar em origem natural, uma vez que a

racionalidade, que possibilita a reflexão, só aparecerá em sociedade. Um segundo

ponto de dificuldade foi reler os textos do pensador, e buscar adequar os escritos

para um tema possível, e que não fugisse da linha ética. Aprender Rousseau foi

empolgante! Mérito do professor José Benedito.

Assim, para que haja um entendimento, o trabalho foi dividido em três partes

que se interligam para gerar a definição de pessoa em Rousseau. Para tanto, o

caminho será o seguinte: capítulo 1: Da liberdade; capítulo 2: Da pessoa e capítulo

3: Da consciência e da opinião. Em cada um dos capítulos serão estabelecidas

etapas para a composição da pessoa; pontos que deverão ser analisados, e unidos,

partindo da composição da liberdade humana, até chegar na formação da

consciência e da opinião, tomadas como expressões máximas dessa pessoa. Assim,

elenca-se algumas linhas acerca de cada capítulo, para uma breve compreensão.

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A primeira análise capitular, que discorre acerca da liberdade, se funda nos

textos segundo Discurso, Contrato social, Emílio e Devaneios do caminhante

solitário. A pessoa em Rousseau não pode ser concebida sem que primeiro se

estabeleça a necessidade de ser livre para que o encontro aconteça. Encontro pelo

fato de que o humano vai se encontrar com o seu ser pessoa.

A liberdade é a grande e profunda diferença dos homens para os demais

animais. Ao se tomar o segundo Discurso com primeira análise, será possível

entender a liberdade como irrestrição individual, fundada na autonomia e na

independência do homem, onde suas escolhas são limitadas pela condição física e

natural. Já no Contrato, Rousseau apresenta a liberdade não mais como irrestrita,

mas sim, condicionada, onde cada homem se aliena integralmente, em prol do

coletivo. Essa ação de alienação total dará origem ao que será chamado de vontade

geral.

Essa vontade geral é a total entrega das vontades individuais nas “mãos” do

coletivo, para que possa existir o verdadeiro ordenamento social. Sua vontade,

assim, passa a ser a vontade geral e vice e versa. A liberdade aqui é fruto da

convenção social, do acordo, do pacto, do contrato, onde as ações são reguladas

pelo povo e para o povo.

A passagem da liberdade natural, irrestrita, para a liberdade civil,

condicionada, coloca em contraponto os dois estados do humano: o natural e social.

A linha do pensamento rousseauista se esforça por colocar o homem como um ser

limitado pelos seus instintos, relegando à sociedade a responsabilidade por se

formar a verdadeira liberdade; dessa forma, objetivasse a demonstração de que a

vida social é extremamente necessária para a formação do humano e, no caso do

trabalho, da pessoa, inicialmente livre – irrestrita – se vê atada a ferros –

desigualdade ocasionada pelo desconhecimento da unidade: liberdade, bens e vida.

O grande esforço da filosofia do genebrino – mesmo que indiretamente – é

mostrar que o Estado natural não propicia a concepção da verdadeira liberdade. É

em natureza que o homem se encontra mais limitado e mais preso, por conta das

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limitações físicas e mesmo da natureza. Dessa forma, a passagem para o Estado

social depende do reconhecimento dos limites, da renúncia aos seus direitos, a

aceitação da vontade geral – que não anula a vontade particular – e gera a

verdadeira vida, a verdadeira liberdade do homem.

Assim, para que a liberdade e o ordenamento sejam mantidos há a

necessidade de que haja um instrumento de contenção e segurança. Tal

instrumento são as leis, oriundas do pacto social, fruto da vontade geral; elaboradas

pelos cidadãos, seguidas pelos súditos.

Somente com o estabelecimento de tais pontos é que se pode passar a

definição de pessoa em Rousseau. Não é possível conceber a pessoa sem que ela

seja, verdadeiramente, livre. Em momento algum Rousseau se afasta do

entendimento do humano, muito pelo contrário, suas forças estão centradas na

busca e na definição do humano, e tudo aquilo que o envolve. O genebrino concebe,

inclusive, o homem como ser individual, por conta da natureza, e coletivo, por conta

da sociedade. O fato que se torna uma curiosidade é quando o pensador coloca o

homem como o direto responsável por sua formação, através do coletivo e dos

frutos oriundos desse.

O primeiro passo para se compreender a pessoa em Rousseau é a

introspecção. A capacidade humana de voltar suas atenções para si mesmo e, a

partir das suas dúvidas e inquietações, traçar o caminho para a sua busca

fundamental: a pessoa. No inicio do segundo Discurso, Rousseau estabelece esse

caminho do autoconhecimento como prática humanista inicial, da qual é fruto,

deixando clara a sua intenção de se buscar estabelecer o modo da formação

humana. Em uma análise inicial, o paradoxo existente entre o homem natural e o

homem social se torna o fundamento.

A prática da introspecção, fruto da filosofia socrática, potencializa as

verdadeiras dimensões do humano, e possibilita o enfrentamento de situações que

podem ser solucionadas pelo próprio homem, ao se aprender o caminho para o

autoconhecimento. Dessa forma, a formação da pessoa em Rousseau, objeto de

estudo do capítulo 2, tem como princípio motor a passagem da vida natural para a

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vida social, apontando os principais temas que devem ser entendidos, para que haja

a possibilidade da formação pessoal. Dessa forma, o objetivo é demonstrar como o

homem é visto muito mais como pessoa, complementando a definição rousseauista

de ser humano e, ao mesmo tempo, responder a pergunta arranjada no prefácio do

segundo Discurso, dando margem para a consecução do que o pensador buscará

fazer no Emílo, que nada mais é, do que provar a manutenção da natureza da alma

humana, longe da corrupção social.

Para tanto, o caminho a ser seguido é composto de estágios da formação do

homem, e entremeios, a pessoa. O primeiro passo é definir a pessoa em Rousseau,

que assume contornos de individualidade, influenciada pelos Devaneios. Em

seguida, o objetivo será mostrar como a pessoa é individualizada e como o outro se

torna extremamente importante para a formação pessoal. Todo esse conjunto passa

a ser denominado de pessoa física/natural.

O outro ponto de ligação entre a pessoa e a liberdade, é justamente a

passagem da pessoa física/natural para a pessoa moral/social. Nessa passagem o

homem adquire características que o acompanharão para a vida social. Tais

características são: a linguagem, a escravidão, o amor e a moral; a vida em

sociedade, dessa forma, passa a ser compreendida como uma possibilidade para a

evolução do espírito humano.

O terceiro aspecto a ser tratado é a pessoa/moral social. Nesse aspecto, o

homem assume, por completo, sua característica social, passando a conviver com

os demais, na busca de se estabelecer uma sociedade que vise zelar pelos seus

instintos e vontades; para que os seus desejos sejam alcançados.

A partir da análise dessa pessoa, livre, social, que assume uma linguagem e

comportamentos específicos, consegue conviver graças a disposição legal que

fundamenta e orienta a disposição social, o terceiro capítulo se dedicará a formação

de dois pontos importantes em Rousseau: a consciência e a opinião; pois só é

possível falar da pessoa se ela agregar a todos essas características citadas

anteriormente, a sua capacidade racional, consciente e de convivência com a

opinião.

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A sustentação do argumento do terceiro capítulo se dá no modo como o

filósofo estabelece a relação necessária, base para que o homem seja autor de seus

caminhos e senhor dos seus passos. Assim, o homem para tomar consciência de

quem é, precisa ser capaz de ser. Essa consciência de ser não contradiz o pacto

social; a consciência não se funda na concepção do homem em estado de natureza,

mas surge do equilíbrio entre os dois estágios. A consciência é justamente a

possibilidade do conflito entre o homem natural com o homem social. É inegável que

a consciência seja formada pela influência de outros, ao passo que, ao mesmo

tempo, ela busca seguir a natureza, contrariando as leis dos homens.

A organização do capítulo está de tal forma estruturada para que haja a

percepção de que ambas, consciência e opinião, são partes da formação do homem

de Rousseau. Para tanto, o primeiro passo é compreender como se dá a formação

da consciência pessoal, mesmo sendo influenciada pelo coletivo. Em seguida, há a

necessidade de que se observe como a consciência lida com a ignorância, e vice e

versa; onde a pessoa será levada para o entendimento de que há sempre a

possibilidade de assumir uma vida não consciente.

Uma vez definida a pessoa ignorante e consciente, o caminho será a

construção da identidade da pessoa, o que possibilitará o reconhecimento e o

entendimento do humano como tal. A prática reflexiva, característica humana, será

tratada a partir da comparação com a consciência, finalizando com a luta existente

entre a prática consciente, e o mundo das opiniões, tratado por Rousseau, como

nocivo ao humano, mas não dispensável à sua formação.

Assim, o trabalho consegue estabelecer linhas lógicas no pensamento de

Rousseau, onde preexiste a necessidade de se estabelecer a análise da pessoa em

um pensador que tanto buscou falar do humano, estudar seus comportamentos,

entender seus hábitos e situações.

Muito além de simplesmente definir a pessoa em Rousseau, o trabalho emite

considerações acerca da verdadeira liberdade, da formação da pessoa e seus

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estágios – entre eles a linguagem, o amor, a escravidão – e, não menos importante,

sobre a consciência e a opinião.

Se, eventualmente, forem desmembrados cada tópico e subtópico deste

trabalho, o que se verá é, sem dúvida, a necessidade de se escrever, isoladamente,

sobre cada um dos assuntos, que em Rousseau não se esgotam, mas se

aprimoram; basta praticar a verdadeira filosofia. A filosofia da elucubração, do todo,

da prática, do pensar. Assim, o trabalho possibilita uma verdadeira leitura filosófica

para além dos moldes temporais e históricos, e assume um modelo de

contemporaneidade, de atualidade, mesmo se tratando de uma leitura do século

XVIII.

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CAPÍTULO 1 DA LIBERDADE

Ao se estabelecer guias que norteiem a discussão deste trabalho acerca da

proposta da pessoa nos escritos de J. J. Rousseau pauta-se pela análise de suas

obras célebres (segundo Discurso, Contrato social, Emílio, Devaneios do

caminhante solitário). Como fundamento de discussão, o objetivo será comentar os

escritos de Rousseau, com o intuito de se buscar as definições necessárias e o

aporte fundamental da sua filosofia, que aqui, verte-se para a liberdade, essência da

pessoa, primeira distinção da definição do homem. Assim, não há como se falar em

pessoa, sem que antes se defina o que vem a ser a liberdade. Definição, sentido e

significado que em Rousseau pode se confundir, a partir do momento em que se

realiza uma analogia do segundo Discurso, com o Contrato Social.

Pouco depois de escrever o Discurso sobre a origem da desigualdade, uma mudança começa, quase imperceptível no início, na reflexão. Rousseau nos leva a um episódio que surpreende seus intérpretes: ele escreveu o Contrato social, onde prevê a constituição desta sociedade que ele especificamente condenou e considerou o responsável por qualquer degeneração e toda a infelicidade da humanidade3 (CASSIRER, 1987, p. 28).

No primeiro, preocupado em responder como as desigualdades se originam,

a liberdade pode ser entendida como irrestrição individual, baseada na

independência e na autonomia, na qual o homem, dono de si mesmo, se faz livre

para escolher e decidir dentro dos limites que a condição natural apresenta. Ao

passo que no Contrato, a liberdade a que se refere é a condicional: cada homem

doa, de maneira voluntária, seus direitos para o bem comum. Assim,

[...] a alienação total de cada associado, com todos os seus direitos, à comunidade toda, porque, em primeiro lugar, cada um dando-se completamente, a condição é igual para todos e, sendo a condição igual para todos, ninguém se interessa por torná-la onerosa para os demais (ROUSSEAU, 1973, p. 38).

3 “Peu après la rédaction du Discours sur l’origine de l'inégalité, un revirement s'amorce, à peine perceptible d'abord, dans sa réflexion. Rousseau nous entraîne dans une péripétie qui fait toujours l'étonnement des interprètes: il écrit le Contrat social, il prescrit sa Constituition à cette société que précisément il condamnait et qu'il considérait comme responsable de toute la dégénérescence et de tout le malheur de l'humanité” (CASSIRER, 1987, p. 28)

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Com a instauração da vontade geral, Rousseau objetiva o bem comum de

maneira que o homem se coloca livre, verdadeiramente, quando obedece tal

vontade, que é sua vontade. Assim, o que na verdade se constrói é a dimensão de

uma liberdade como fruto da convenção social, dando ao individual a possibilidade

de se pensar e agir em prol do coletivo, pois “Diante do poder da vontade geral, toda

vontade particular ou individual se quebra. Já fizeram aderir a instituição estado,

significa que renunciou, absolutamente, a qualquer interesse particular”4

(CASSIRER, 1987, p. 28).

Rousseau ainda concebe a passagem dessa liberdade natural para a

liberdade civil como um processo legítimo. No capítulo inicial do primeiro livro do

Contrato, Rousseau propõe a ideia de que “o homem nasce livre, e por toda parte se

encontra a ferros” (ROUSSEAU, 1973, p. 28). Rousseau se esforça para dar a

entender que a liberdade aqui é tratada como irrestrita; e de certa forma, a

representação do nascimento transmite tal ideia, no sentido da construção de uma

vontade como que incontrolável do humano, limitada pelos instintos. Mesmo para se

conceber a dimensão de nascimento do humano, é preciso voltar às bases para a

lógica social; pois a dimensão racional criativa só se desponta em meio ao coletivo,

conforme o segundo Discurso. De certa forma, tentar estabelecer as bases de uma

realidade natural, obviamente deve-se passar pela dimensão social, pois é

impossível definir nascimento, liberdade e homem, sem tal dimensão. O que se quer

aqui é apenas demonstrar como a relação social é importante para a construção do

ser humano, inclusive da pessoa humana que, inicialmente livre [leia-se irrestrição],

se vê colocada a ferros [por conta da desigualdade humana originada a partir do não

cumprimento da vontade geral, fazendo com que a compreensão dos fundamentos

dessa mesma unidade: liberdade, bens e vida, não sejam respeitados].

Eles dão-se bem e a independência que caracteriza o estado de natureza, a liberdade natural, mas substituí-lo a verdadeira liberdade consiste na obediência à lei de todos. Só então eles se tornam

4 “Devant la puissance de la volonté générale, toute volonté particulière ou individuelle se brise. Déjà le fait d'accéder à l'instituition étatique signifie qu'on renonce absolument à tout intérêt particulier” (CASSIRER, 1987, p. 28).

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indivíduos sentindo-se seres superiores; isto é, personalidades independentes5 (CASSIRER, 1987, p. 33).

Rousseau demonstra que o estado natural não propicia ao homem a

verdadeira dimensão de liberdade. Por mais que o humano entenda que o espaço

natural possa ser concebido como um ambiente irrestrito, é nele que há uma maior

possibilidade de se encontrar uma situação de prisão e limitação. Numa analogia à

alegoria da caverna, o humano tem, no estado de natureza [assim como o escravo

preso na caverna], a construção de sombras [em Rousseau a falsa impressão de

liberdade] que em nada contribuem para o seu crescimento e desenvolvimento, mas

o fazem cada vez mais dependente dessa realidade, transformando-o em um reles

animal, como outros animais. Portanto, a passagem do estado natural para o estado

social supõe reconhecer tais limites em que se encontra, tais como a limitação, a

fraqueza, a independência, a amoralidade e irracionalidade, para se assumir a vida

social realmente livre.

“Unamo-nos, [...] para livrar da opressão os fracos, conter os ambiciosos e assegurar a cada um a posse do que lhe pertence: instituamos regulamentos de justiça e de paz, aos quais todos sejam obrigados a se conformar, que não façam acepção de pessoas e que de certo modo reparem os caprichos da fortuna, submetendo igualmente o poderoso e o fraco a deveres mútuos. Em uma palavra, em vez de voltar nossas forças contra nós mesmos, reunamo-las em um poder supremo que nos governe segundo leis sábias, que proteja e defenda todos os membros da associação, repila os inimigos comuns e nos mantenha em uma eterna concórdia” (ROUSSEAU, 2004, p. 73)

O pacto seria o instrumento inicial de ordenamento social, e as leis o

ordenamento final. A prática de tais preceitos garantiria a ordem, a segurança, os

bens, mas principalmente, a liberdade de todos. Daí que as leis têm a função de

reafirmar os traços da natureza humana, pelos quais cada cidadão possa

reconhecer as exigências da liberdade e da igualdade.

1.1 A liberdade natural ou da irrestrição

5 Ils abandonnent bien ainsi l’indépendance qui caractérise l’état de nature, la liberté naturelle, mais ils lui substituent la vraie liberté qui consiste dans l’obéissance de tous à la loi. C’est alors seulement qu’ils deviennent des individus em um sens supérieur, c’est-à-dire dês personnalités autonomes (CASSIRER, 1987, p. 33).

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Ao constatar que o homem encontra-se a ferros, Rousseau demonstra que o

estado natural não propicia a ele, a verdadeira dimensão de liberdade. Por mais que

o humano entenda que o espaço natural possa ser concebido como um ambiente

irrestrito, e pseudo feliz, é nele que há uma maior possibilidade de se encontrar uma

situação de prisão. Curiosamente, nem sequer o padrão de superioridade, adquirido

pela autoridade – que poderia ser atribuída a qualquer animal, necessariamente em

um bando, pois o autor deixa claro a presença de “demais” – não garante àquele

que a tem, a autonomia necessária, sequer a liberdade, pois “[...] homem algum tem

autoridade natural sobre seus semelhantes [...] só restam as convenções como base

de toda a autoridade legítima entre os homens” (ROUSSEAU, 1973, p. 32). Ou seja,

não se renuncia à liberdade, mas a garante em estado social.

Há mais liberdade quando se exige a submissão à vontade de um único ou uma oligarquia que nunca é nada de grupo de vontades individuais. O único poder legítimo é o poder exercido pelo princípio da legitimidade como tal, a idéia de lei em si, além da vontade particular6 (CASSIRER, 1973, p. 36-37).

A conquista dessa dimensão de liberdade individual, como uma superação

do coletivo, onde o indivíduo se deixa mover pelas paixões7, e somente por elas,

leva ao que ele, Rousseau, chama de escravidão. Mantendo essa prática, esse

indivíduo não conseguirá suster padrões de convivência social, chegando a

comprometer a organização coletiva. É justamente para se evitar tal ação que, no

Contrato social, Rousseau estabelece a passagem de uma liberdade natural à

liberdade civil como inteiramente legítima. Ao contrário do que pode parecer no

segundo Discurso, no Contrato, classifica a liberdade civil não como servidão, mas

sim, como um processo que promove a autonomia, livrando os homens dos maiores

grilhões que o atinham ao estado natural; principalmente a amoralidade – com

especial atenção neste trabalho, onde se propõe uma definição de pessoa em

6 Il n’y a plus de liberte lorsque l’on exige la soumission à la volonté d’um seul ou d’une oligarchie qui n’est jamais autre chose qu’um groupement de volontés individuelles. Le seul pouvoir légitime, c’est le pouvoir qu’exerce le príncipe de la légitimité em tant que tel, l’idée de la loi elle-même, par-delà lês volontés particulières (CASSIRER, 1973, p. 36-37). 7 Apesar de dar a entender que as paixões são negativas, a intenção não é essa; em nenhum momento o filósofo as coloca como desprezíveis, pelo contrário, Rousseau ainda deixa claro, no Emílio, que só há um verdadeiro cidadão, se houver, nele, paixão. O que não pode existir é que tais paixões controlem a vida do homem, de tal forma, que sucumba sua relação com o coletivo social, vindo a ferir e quebrar o contrato.

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Rousseau –, sendo a moral o fundamento da composição humana, inclusive para o

aporte necessário ao sustento do coletivo social.

Não vejo em todo animal senão uma máquina engenhosa, à qual a natureza deu sentidos para prover-se ela mesma, e para se preservar [...]. Percebo precisamente as mesmas coisas na maquina humana, com a diferença de que só a natureza faz tudo nas operações do animal, ao passo que o homem concorre para as suas na qualidade de agente livre. Um escolhe ou rejeita por instinto, o outro por um ato de liberdade, o que faz com que o animal não possa afastar-se da regra que lhe é prescrita, mesmo quando lhe fosse vantajoso fazê-lo, e que o homem dela se afaste frequentemente em seu prejuízo (ROUSSEAU, 2007, p. 41).

Em momento algum, dentro do coletivo, há a imposição de determinado

comportamento, ou ação. Primeiramente, não se pode obrigar o povo a uma

obediência, pois esse mesmo povo é soberano. Não há soberania se permanece a

imposição, somente na escolha. É por isso que o povo deve sempre colocar a

liberdade como um fator diferencial na sua ação, e assim, diante da obrigatoriedade

nas ações populares, por conta do coletivo, não há direito que sustente a

manutenção da opressão de determinado senhor sobre esse povo, visto que este

mesmo povo é senhor de suas ações, por conta da liberdade condicional. Sendo

esse senhor um membro soberano, ele também esta sujeito as mesmas formas de

ação do Estado que compõe, da soberania que exerce. Justamente por isso, que o

princípio regulador da vida em sociedade será a igualdade.

Em alguns pontos no pensamento de Rousseau, um leitor desatento poderia

entender que a noção de soberania se confunde com a de governo; o que não

ocorre. Enquanto a soberania é o exercício da vontade geral, sendo o soberano um

ser coletivizado, que transmite o poder ao governo, este último é entendido como

uma ligação existente entre o soberano e os súditos. Nas palavras de Rousseau, lê-

se quanto ao soberano:

Afirmo, pois, que a soberania, não sendo senão o exercício da vontade geral, jamais pode alienar-se, e que o soberano, que nada é senão um ser coletivo, só poder ser representado por si mesmo (ROUSSEAU, 1973, p. 50).

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É preciso, pois, esclarecer que quando se fala em soberania não se pensa

em um senhor, ou em mandatário que coloca sua vontade por sobre a vontade

geral; “[...] desde que há um senhor, não há mais soberano [...]” (ROUSSEAU, 1973,

p. 50). Não há, na concepção de Rousseau, a existência da soberania sem a

liberdade e a igualdade, o que dá origem, e sentido, ao corpo político. Já o governo,

por sua vez:

[...] É um corpo intermediário estabelecido entre os súditos e o soberano para sua mútua correspondência, encarregado da execução das leis e da manutenção da liberdade, tanto civil, quanto política (ROUSSEAU, 1973, p. 80).

O governo assim pode ser entendido como a força pública que determina as

ações segundo a vontade geral. E esse governo, entendido como povo, o direto

responsável pela garantia da liberdade e da igualdade, sendo essas fundamentais

para o estabelecimento da sociedade como um todo. O que se vê, diante disso, é

que a verdadeira liberdade só se apresenta no âmbito social. Em outras palavras,

somente a liberdade civil, ou ainda a liberdade consentida é a verdadeira liberdade.

1.2 A liberdade civil ou da verdadeira liberdade

Ao se buscar estabelecer as bases da liberdade civil, traduzindo os dizeres

rousseauistas para a linha pessoal, no Livro primeiro, capítulo primeiro do Contrato

social, é possível encontrar um Rousseau ligado à ideia de igualdade social, como

aquela definida pela manutenção dos direitos iguais. Tal leitura se fundamenta na

lógica de que essa igualdade será uma forma de se falar em liberdade civil para

alem da subserviência, que se alicerça no reconhecimento da verdadeira liberdade

em sociedade; é essa liberdade que gerará a ordem. Ou seja, somente pode se falar

de ordem social – pois a ordem social “[...] é um direito sagrado que serve de base

para todos os outros” (ROUSSEAU, 1973, p. 28) –, se houver igualdade, que

garanta a liberdade. De maneira que se algum homem vier a desobedecer a vontade

geral, será coagido a aceitá-la, sendo forçado a ser livre, pois a liberdade é

decorrência da igualdade básica e da convenção social.

[...] o maior de todos os bens, qual deva ser a finalidade de todos os sistemas de legislação, verificar-se-á que se resume nestes dois

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objetivos principais: a liberdade e a igualdade. A liberdade, porque qualquer dependência particular corresponde a outro tanto de força tomada ao corpo do Estado, e a igualdade, porque a liberdade não pode subsistir sem ela (ROUSSEAU, 1973, p. 72).

No que tange à convenção social, entendida como ação voluntária,

consciente, pode-se ainda acrescentar a ligação dessa com a liberdade civil. Aqui,

só se pode pensar em convenção se houver liberdade; e a liberdade é conseqüência

do coletivo, que por sua vez se estabelece sobre a igualdade de direitos, sendo

possível somente em sociedade. Assim, como num ciclo, a convenção depende da

liberdade, a liberdade só existe se for em sociedade. A sociedade só se firma sobre

a égide dos direitos [igualdade] fundamentais e da vontade geral, que só se encontra

no coletivo, na prática da mesma vontade. Em resumo, só há convenção se há

sociedade fundada na liberdade civil; pois em natureza, não se tem tal dinâmica de

formação humana, somente a preocupação com a vontade particular.

Essa vontade particular sustenta a ideia de manutenção das necessidades

individuais para a conservação da espécie. Em dado momento, em estado natural, o

homem percebe que não é possível a subsistência diante de situações variadas, tais

como a perseguição de outras espécies, a própria necessidade de reprodução, a

alimentação, ou mesmo sua capacidade de força reduzida; e visualiza a

possibilidade de construir relações com seus semelhantes, socializar. Essa situação,

em estado natural, se torna insustentável pela incapacidade em suprir as

necessidades do homem. Diante disso, a liberdade civil, por não possuir traços da

liberdade natural, e nem sequer conhecer os modos como ela se sustenta, ou ainda

no que ela se firma, traz para o homem modos de vida que possibilitam a resolução

de seus problemas, facilitando a sua vida como um todo, levando esse mesmo

homem a perceber a necessidade da convivência [permanente] com os seus

semelhantes. É possível ainda ressaltar, que foi graças a dimensão social que o

humano conseguiu subsistir.

Todo esse processo que foi possível construir, a partir das necessidades do

homem em estado natural, propiciaram a construção do pacto social, que se

fundamenta na liberdade civil. A sustentação dessa liberdade se encontra na

dinâmica da junção das forças; ou seja, visto que o homem não teria condição de

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gerar mais forças, ou mesmo criar, a união se tornou o caminho plausível e

necessário de maneira a “[...] orientar as [forças] já existentes” (ROUSSEAU, 1973,

p. 37). O padrão assumido de orientação se baseia na criação de um conjunto de

forças que, apoiado na manutenção da existência e na socialização, pode solucionar

os problemas de existência, garantindo a liberdade, que só se alcança,

verdadeiramente, no estado civil. É preciso ressaltar que o conjunto de forças “[...]

só pode nascer do concurso de muitos” (ROUSSEAU, 1973, p. 38), tendo em vista

que a liberdade e a força individuais se tornam as bases necessárias para a

construção e sustentação do coletivo social.

Ao tomar a força e a liberdade de cada indivíduo como fontes de execução

do coletivo, não se quer impor as vontades particulares sobre a vontade geral. O que

se quer ressaltar é a necessidade de que cada um dos que compõe o conjunto de

forças, entenda que sua participação e, consequentemente, a manutenção do

humano no coletivo, só se dará ao se reconhecer os cuidados individuais; ou seja, a

preocupação consigo mesmo, onde

O ato de associação dá vida, de modo imediato, a um corpo imediato, a um corpo coletivo e volitivo, cuja artificialidade de origem determina as condições de sua existência. Em primeiro lugar é um ser coletivo porque formado por uma multiplicidade de corpos singulares, de tal modo que não pode ser representado ou dividido simplesmente porque a consequência da representação ou divisão é a perda de si mesmo [...] (REIS, 2009, p. 100).

Rousseau, porém, não esclarece qual a sua intenção ao se referir a

liberdade particular. Para muitos – e ai se encontra um grande erro na interpretação

do pensamento rousseauista – a liberdade a que se refere é a natural. Contudo, é

preciso frisar que o genebrino não admite a concepção da liberdade real fora do

coletivo social, como já se afirmou neste trabalho, nem sequer a anulação da

individualidade. A liberdade coletiva, concebida como civil, passa a tomar novos ares

e, a partir desse momento, se converte em liberdade convencional. Tal liberdade

pode ser entendida como o cerne da organização social, onde cada um daqueles

que compõe essa organização, tem seus bens, e o seu ser pessoa, defendidos pela

força comum. É essa mesma dimensão de liberdade convencional que garante ao

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homem a dimensão de soberania, onde cada um “[...] só obedece, contudo, a si

mesmo [...]” (ROUSSEAU, 1973, p. 38).

Para que a sociedade se sustente a primeira ação a ser tomada é definir a

força comum como vontade da pessoa. A busca por se manter viva a dimensão

pessoal de cada um, traz à tona a manutenção de uma força que mantenha o

homem “tão livre quanto anteriormente”. Essa dimensão de liberdade pessoal, na

qual a ordem e a vontade partem do ser [pessoa], deve ser entendida, como

liberdade convencional; ou seja, que diz respeito a esse acordo firmado entre as

partes, pela ordem da junção das forças individuais. Dessa forma, fica claro que a

união da força, o coletivo, garante a existência da liberdade, e firma o pacto social;

em outras palavras, estabelece o contrato social. Com isso, o principal requisito para

que o contrato social exista, seja válido e permaneça, é a liberdade convencional,

que ratifica o ordenamento. Se por acaso a liberdade convencional for violada, ou

mesmo o pacto social apoiado na força coletiva venha a ser desprezado por alguns

dos membros do coletivo, ele retornará ao estado natural, à vontade particular, ao

individualismo, renunciando a vida social; é possível, assim, construir uma dupla

análise em Rousseau: a participação e a não participação na sociedade.

1.3 A liberdade moral

Para garantir que o ordenamento social funcione, e funcione bem, é preciso

estabelecer uma norma que busque mantê-lo: a moral. A capacidade moral surge a

partir da compreensão do coletivo baseado na igualdade; porque “[...] cada um

dando-se completamente, a condição é igual para todos [...]” (ROUSSEAU, 1973, p.

38). Percebe-se que o “ciclo social” é estabelecido a partir da igualdade, a primeira

forma de moderação moral do indivíduo em sociedade. Desse modo, não haveria

no mundo social um espaço destinado para a vontade particular, em detrimento da

vontade geral; pois “[...] cada um dando-se a todos, não se dá a ninguém [...]”

(ROUSSEAU, 1973, p. 39). A moral, contudo, se sustenta na lógica da aceitação da

vontade geral, submetendo seus impulsos naturais individuais ao coletivo. Essa

submissão não deve ser entendida como ascensão de uns sobre os demais. Como

dito, há uma condição igualitária para todos, que mantém o ordenamento, e para

algum que queira impor sua vontade particular, se reserva a vida fora da sociedade,

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longe dos benefícios e da força comum. “Nesse sentido, o dever fundamental que

cabe ao próprio Estado é substituir a desigualdade física entre os homens - que, é

inevitável – pela igualdade jurídica e moral”8 (CASSIRER, 1973, p. 38).

Essa leitura que concebe o ordenamento embasado na liberdade e na

igualdade, a sobreposição da vontade geral9 como requisito basilar, transforma as

relações da sociedade, tratadas tradicionalmente como política, na garantia da

liberdade. Portanto, não se concebe mais o humano em separado. A vida

independente já não existe; a lógica tende para a compreensão que coloca “[...] cada

membro como parte indivisível do todo” (ROUSSEAU, 1973, p. 39), e nele, a

conquista da liberdade verdadeira e, logicamente, a construção do corpo moral

coletivo.

O corpo moral coletivo garante a participação de cada indivíduo na

sociedade, sendo responsável pela formação do “eu comum”; ou seja, garante a

todos os membros da sociedade a consciência sobre todos os atos e

acontecimentos presentes na mesma sociedade. Não há espaço para a construção

de uma consciência individual, pois esse eu comum dará origem ao que se concebe

como pessoa pública, ou ainda a cidade, ou corpo político, “[...] o qual é chamado

pelos seus membros de Estado quando passivo, Soberano quando ativo, e Potência

quando comparado a seus semelhantes” (ROUSSEAU, 1973, p. 39).

Aqui, Rousseau define os aspectos organizacionais da sociedade, deixando

claro os termos referenciais, bem como os momentos em que são compreendidos.

Além de definir os aspectos sociais, o filósofo ainda classifica os aspectos coletivos

da sociedade; ou seja, dá-se o nome de povo quando se trata em coletivo, de

Cidadãos enquanto participantes da autoridade do soberano, e Súditos aos

submissos às leis do Estado.

8 En ce sens, le devoir fondamental qui incombe en propre à l’État est de substituer à l’inégalité physique entre les hommes – qui, elle, est inévitable – l’égalité juridique et morale (CASSIRER, 1973, p. 37). 9 É preciso ressaltar que em nenhum momento Rousseau desmerece a necessidade de se reconhecer a dimensão individual dentro do coletivo. Pelo contrário, ele reafirma a necessidade de se construir e significar a dimensão individual, que aporta o coletivo.

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Em Rousseau, tanto o súdito, quanto o cidadão, representam os indivíduos

que compõe a sociedade. Entretanto, a diferença que existe entre ambos reside na

prática, na ação. Enquanto o súdito é aquele que se coloca de maneira pacífica

diante da lei, o cidadão é aquele que se posiciona, que toma partido, pois “[...] a

essência do corpo político reside no acordo entre a obediência e a liberdade, e as

palavras súdito e soberano [...] se reúne numa única palavra – cidadão”

(ROUSSEAU, 1973, p. 111).

Não se trata de negar que [...] o cidadão consente com todas as leis [...] entretanto, trata-se de não negar que a liberdade civil e moral advêm do reconhecimento dos deveres do cidadão. [...] Pois a vontade geral está longe de ser um mero somatório de vontades particulares concordantes, é imprescindível a existência de um liame comum que lhes confira unidade [...] (REIS, 2009, p. 106).

A noção de soberania em Rousseau vem sustentar a definição de liberdade

como garantia fundamental do estado social. O primeiro passo na formação social é

assumir o compromisso com o coletivo, estabelecendo relações entre o público e o

privado, onde o ato de associação pode ser descrito como a renúncia da liberdade

natural, e a aceitação da liberdade civil, garantida em sociedade. Para que o

processo seja validado, a igualdade estabelece a primeira forma de ação moral,

como visto. Em nenhum momento no Contrato social, Rousseau coloca a

associação em sociedade como uma imposição. Fato curioso, mas para que a

sociedade se estabeleça, há de se pautar pela escolha individual, que possibilita a

aceitação, compromissada com a validação moral, suporte do coletivo, fator

essencial para o ordenamento, que se funda na igualdade.

Rousseau cria um sistema de ordenamento social baseado em uma

dimensão moral, por vezes, pouco observada. A fórmula estabelecida para que haja

um ordenamento social, sustentado pelo contrato, passa, necessariamente, pela

estruturação de conceitos chave para a construção da dimensão social, que se firma

sobre a igualdade e a liberdade. Toda a lógica criada se inicia com a junção desse

humano em sociedade através de um ato: a renúncia da liberdade natural, em prol

da liberdade convencional. Um ato para além da aceitação de uma moralidade

coletiva, mas que abarca o compromisso de lutar pela vontade geral através da

junção das forças individuais.

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A vontade geral, assumida por todos, e cada um dos indivíduos, deve

garantir a liberdade acima de qualquer aspecto. Numa reciprocidade necessária, ao

assumir o coletivo como parte da dimensão individual, o homem já não o faz de

maneira solitária, pelo contrário, a força coletiva agora será diretamente responsável

pela garantia de sua liberdade, e de todos os pontos relativos à união do público e

do privado. O que precisa ficar claro, no pensamento de Rousseau, é a ideia de que

não existe mais a dimensão individual isolada do coletivo; existe sim, a soberania,

com relação aos demais, mas a participação de cada membro da sociedade supõe a

aceitação livre do contrato social, onde há um acordo consigo mesmo. Desse modo,

não há a possibilidade de que se agregue ao corpo social determinado

aprisionamento com relação ao ser pessoa do Estado, que permanece livre com

relação ao pacto fundamental, e com o poder limitado, garantindo a sociedade

liberdade de ação e de encaminhamento.

Essa relação estabelecida entre política e moral, entre o cumprimento do

contrato e a obediência a uma entidade superior ao indivíduo, formula a dinâmica da

integridade contratual. Somente com o padrão de integridade estabelecido é que se

pode falar na existência do corpo político, ou mesmo a soberania. Dessa forma, é a

integridade do contrato que possibilita o reconhecimento do indivíduo como membro

do soberano e do Estado. De outro modo, a integridade é que garante a liberdade.

Fato importante de se perceber é a lógica da coletividade. Como a

sociedade forma um só corpo, unido pela força da vontade geral, “[...] não se pode

ofender um dos membros sem atacar o corpo” (ROUSSEAU, 1973, p. 41). A unidade

existente em ambas as partes traz à tona a dimensão do dever e do interesse como

reguladores do auxílio que se presta entre os contratantes. Na linha do interesse, a

formação social, sustentada pela força coletiva, não pode visar a interesses

contrários ao da sociedade. Diante disso, fica claro que o poder soberano é

insuperável, absoluto, como uma representação real de todos participantes do

contrato, sem abrir espaço para a dúvida quanto a constituição da sociedade, a

garantia da liberdade e manutenção da igualdade. Essa unidade pode ainda ser

tolhida quando há a imposição de alguns indivíduos, e o poder do Estado é tomado

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como numa tirania. Essa tomada do poder pode ser ainda realizada por uma dada

classe social, onde a vontade individual se sobrepõe a vontade geral.

No Contrato social, Rousseau não nega a possibilidade de que cada

indivíduo tenha a sua vontade particular; como homem, cada um tem a

possibilidade, e por vezes a necessidade, de possuir uma vontade diferente daquela

assumida pelo coletivo social. Ao se voltar a reflexão para a estruturação das bases

de uma sociedade, pode-se perceber que muitos daqueles que a compõe não

concordam como a mesma sociedade escolhe determinado caminho, meta, ou

mesmo toma alguma ação. Pela lógica do ordenamento social, essa vontade

particular pode ser voltada para a vontade geral. Do contrário, toda a ação desse

indivíduo pode ser tomada seguindo as suas próprias vontades, levando à

hecatombe social. Desse modo, ao se tomar a vontade individual como absoluta e

declarar a independência do contexto social, o homem corre o risco ou de ser

excluído da mesma sociedade, ou de transformar essa sociedade em uma

monarquia absolutista. Suas ações, contudo, passam a ser entendidas como mera

forma de agradecimento a convenção social, onde o não cumprimento das normas,

ou a não aceitação do contexto moral, levará ao não reconhecimento da ordem

social, a liberdade e a igualdade, retornando ao estado de natureza. Justamente

para se evitar tais ações, se estabelece a lógica do Estado como o responsável por

garantir os direitos da sociedade, que se fundamenta no ordenamento moral.

Assim, ao se estabelecer o Estado como fruto da moral social – igualdade –,

se converte a dimensão da vontade particular em vontade geral, não existindo

espaço para a aceitação da imposição natural e a perda da liberdade; e como a

racionalidade surge a partir da convenção social, o Estado ainda assume uma

característica de “ente de razão”, como o primeiro responsável pela garantia dessa

moral. Em certo sentido, o estabelecimento da moral como mantenedor da ordem

social deve, obrigatoriamente, passar pelo reconhecimento do Estado como o povo,

e esse, estabelecido sobre a igualdade. É nesse Estado que se encontram os

direitos de todos os cidadãos sendo que a “[...] injustiça [...] determinaria a ruína do

corpo político” (ROUSSEAU, 1973, p. 42). Assim, e para que o pacto social não seja

vão, é esse corpo político, garantido sobre a forma de Estado, que possibilitará a

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convivência social, a garantia da liberdade, a vontade geral e a união das forças,

sendo essa força comum, essência da vontade geral.

Caso haja algum dos membros que se recuse a tomar parte da vontade

geral, impondo a vontade individual, esse será conduzido, pelo corpo político, a

aceitar a liberdade como um fator diferencial. Obrigando o indivíduo a aceitar a

vontade geral, a igualdade, garante-se a liberdade do mesmo, e protege-se a

soberania e o Estado contra os excessos cometidos por alguns que queiram impor

sua vontade. Portanto, qualquer tentativa de se deixar o corpo político, a sua

liberdade e soberania, levará o indivíduo a contrair dependência de outra pessoa, ou

ainda a cometer abusos contra a ordem social. Essa não aceitação ao corpo político

leva o homem de volta ao estado natural, onde não há princípio de ordenamento, de

moral, de liberdade, somente a falsa sensação de liberdade; uma liberdade natural

que se sustenta na prática de irrestrição, de fazer o que se quer, dentro dos limites

físicos, o que qualquer animal possui. De maneira que o homem em estado natural

não passa de um animal que não compreende a necessidade de ser realmente livre,

exercitando sua prática racional, convivendo com o semelhante e criando um

sistema de sustentação da vida e da espécie que se firma no contrato, na igualdade

e na justiça.

A exigência e expectativa, e fez contra o Estado são de nitidez e uma determinação tal que o emprego tenha sido mal visto desde Platão. Na verdade, o que Rousseau considera como a tarefa essencial do Estado, antes de qualquer função de dominação é ser um educador (CASSIRER, 1973, p. 40).

1.4 Liberdade civil

Até o presente momento, a justiça não aparece no pensamento de

Rousseau. O genebrino somente vai tratar de definir parâmetros a partir do livro

oitavo do Contrato social, no qual ele fala do estado civil. Neste estado, o filósofo

passa a comparar a condição social com a existência natural do homem. Claramente

é possível observar que a vida em estado natural nada tem de mais a não ser a

garantia de existência, mas não se subsistência; em outras palavras, a verdadeira

liberdade e a sobrevivência, só serão alcançadas em âmbito social, com a liberdade

civil e a vida em sociedade. Pela linha de pensamento, já analisada em seus

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meandros, a verdadeira vida e liberdade só se encontram em estado social, na vida

em sociedade.

O que ainda não se traçou nesse perfil de entendimento da liberdade é a

lógica da passagem do estado de natureza para o estado civil. Não há, no

pensamento rousseauista, como se pensar no homem para além da vida em

sociedade. Se deixado em estado natural, esse humano perecerá como qualquer

outro animal, exercitando uma simples existência, sem qualquer significado, sem

qualquer sentido. Não se quer aqui afirmar que haja um “destino” para cada

indivíduo, que deve ser resgatado pela convivência. O que se quer mostrar é que

somente em estado civil é que se consegue promover a vida, manter a espécie e

promover tal reflexão para além da realidade social. Sem sombra de dúvida

inúmeras mudanças marcam o ser natural que passa a social. Como todo processo

de mudança, há crises, angústias, rejeição, incompreensão; mas para além desses

pontos, existe a transformação dos instintos em justiça, como principal modificação

da passagem do estado de natureza para o estado civil.

Se em estado natural o homem não tinha a compreensão de moral, pois não

havia a necessidade de se colocar como igual entre iguais, a vida em estado social

exige dele o comportamento moral, como garantia das bases sociais, firmado na

justiça, ou ainda, no reconhecimento dessa justiça como fundamentação da

igualdade. Dessa forma pode-se entender que o estado natural não compreende a

ação moral; assim, em tal estado, o homem é um ser amoral, injusto e desigual.

Além da agregação do sentimento e da prática da justiça, o agora cidadão

passa a modificar suas ações, substituindo os impulsos, ou a prática instintiva, pelo

dever, pelo cumprimento da vontade geral, pela prática da justiça, pela igualdade e,

de maneira direita e real, o reconhecimento da verdadeira liberdade, a liberdade

civil. Tais ações demonstram uma situação que acompanha o homem desde os

primórdios: a luta entra instinto e razão. Essa passagem modifica ainda o modo

como esse homem reconhece os direitos que possui, ao invés de só se preocupar,

como o amor de si, com o sanamento de suas vontades. A dinâmica da convivência

faz com que ele reconheça a vida social como a possibilidade de obter e satisfazer

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suas necessidades, convertidas em uma ação coletiva, orientada pela igualdade e

pela prática do bem comum, ou seja, da política, exercida como corpo político.

[...] A vontade do corpo coletivo, que surge imediatamente pelo pacto social, tem como propósito, portanto, o bem de si mesmo. [...] O pacto de associação lhe dá origem formal, mas nada determina sobre o que é o bem comum. Este é tão incerto que Rousseau admite que, apesar de desejar-se sempre o próprio bem, nem sempre se sabe onde ele está [...] (REIS, 2009, p. 100).

Com o estabelecimento da vida social, da relação social, da prática

igualitária, o homem se vê forçado a orientar suas ações para além do cumprimento

das suas inclinações, passando a ouvir a sua razão. Para muitos, nessa mudança

de estado, Rousseau concebe o homem como um ser que perde algumas

qualidades, e mesmo vantagens, do mundo natural, e ganha algumas simbólicas

mudanças no corpo social. O que é preciso deixar claro é que nessa modificação, o

que o homem perde são algumas vantagens, mas “[...] ganha outras de igual monta

[...]” (ROUSSEAU, 1973, p. 42). Todas as dimensões humanas são aprimoradas no

estado civil, onde cada um dos modos de composição desse homem passam a ser

estimulados: “[...] suas faculdades se exercem, [...] suas ideias se alargam, seus

sentimentos se enobrecem, [...] sua alma se eleva [...]” (ROUSSEAU, 1973, p. 42).

De maneira efetiva, o homem natural deixa de lado sua liberdade irrestrita,

seus instintos puramente momentâneos (reprodução, alimentação etc.),

amoralidade, individualidade. E, ao se converter em homem civil, ele ganha a

liberdade verdadeira, o aprimoramento dos seus instintos, a vontade geral, a

segurança, a sobrevivência, a moralidade, a racionalidade etc. Fatores que passam

a ser colocados como um aprimoramento de seu espírito em sociedade.

Nessa contínua mudança, o homem passa agora de animal racional a um

ser inteligente e capaz. Se suas paixões, erroneamente concebidas não o levassem

para a degradação, ou um retorno ao estado natural, esse homem “[...] deveria sem

cessar bendizer o instante feliz que dela o arrancou para sempre [...]” (ROUSSEAU,

1973, p. 42). De maneira direta, a perda da liberdade natural, que na prática não tem

nada de liberdade, mas é composta de limitações, sendo livre somente na irrestrição

e na vida desregrada, traz a liberdade civil como um ganho que possibilita ao

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homem a vivencia da verdadeira liberdade, sustentada na igualdade e na justiça, no

exercício de seus direitos e da propriedade. Propriedade que aparece como um

diferencial na vida social, que por conta dos excessos cometidos pelo homem, e por

sua infidelidade ao pacto social, e a não obediência às leis, acaba sendo a geradora

dos problemas sociais. Para se evitar tal situação, Rousseau insiste no cumprimento

consciente dos modos de estabelecimento da ordem social, e o seguimento de uma

liberdade moral, que possibilita “[...] tornar o homem verdadeiramente senhor de si

mesmo” (ROUSSEAU, 1973, p. 43), livrando-o das vontades naturais, expressas

pelo simples apetite, ou instinto, que gera a escravidão, e ligando-o às leis sociais

que possibilitam a liberdade.

É preciso frisar que somente a vontade geral, a preocupação com o coletivo,

é que pode orientar o Estado. Tal vontade é concebida como o que há de comum

nas vontades individuais, ou o coletivo das consciências. De maneira que nesse

coletivo social, os interesses particulares são garantidos na vontade geral. Da

mesma forma, o homem só será livre se a ordem coletiva for mantida, sustentada

pelo que há de comum entre esses mesmos homens; o que possibilita a existência

de toda e qualquer sociedade. Não se pode confundir aqui, o interesse geral com

interesses comuns; o interesse geral é a junção dos interesses de todos e de cada

um dos que compõe o corpo social. Desse modo, a compreensão do soberano só

pode se dar mediante o coletivo social, e com o reconhecimento do povo, e a

garantia da vontade geral.

Dessa forma, o Estado passa a ser reconhecido como “pessoa moral”, que

tem o objetivo de sustentar a ordem social, baseando-se na igualdade e na justiça.

Através desses dois aspectos, o Estado passa a cuidar da conservação da

sociedade, promovendo a aceitação de todos os membros ao pacto social, juntando

as forças individuais para a manutenção da vontade geral, que se move para a

construção das necessidades de todos os cidadãos. Vale ressaltar que essa pessoa

moral do Estado não se torna independente da sociedade; muito pelo contrário, ela

somente existe se houver o reconhecimento da sociedade para com o Estado, e

esse Estado for composto de maneira soberana pelo povo. Essa personificação

existe no sentido de atribuir ao Estado a função de união dos membros da

sociedade em torno da vontade geral, visando a conservação da espécie e a

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manutenção do pacto social. Assim, ao pacto social se transmite a função de prover

poder político ao corpo político, dirigido pela soberania, encaminhado para a vontade

geral.

1.5 A liberdade como legitimidade do pacto social

No capítulo quarto do segundo livro do Contrato, Rousseau estabelece a

legitimidade do pacto social, mas é acusado de contradição ao afirmar que mesmo

em sociedade, o homem ainda possui direitos naturais. Mesmo em estado civil, o

homem não abandona a sua dimensão natural, o que pode vir a contrariar o coletivo

social. De certa forma, a noção de vontade individual permanece no humano,

mesmo depois de aceitar o coletivo social e a vontade geral. A não contradição do

parágrafo se encontra na hipótese levantada pelo genebrino quando, por conta da

inconstância das paixões, os homens acabam colocando a vontade individual por

sobre a vontade geral, transformando a liberdade civil em liberdade natural, voltando

ao estado inicial. A ideia de uma liberdade concebida como irrestrição parece levar o

homem a uma errônea compreensão da vida e da própria liberdade. Nesse contexto,

ele não compreende a dinâmica da igualdade e da justiça, dos benefícios oriundos

da sociedade, e prefere retornar ao estado de limitação e fragilidade que antes se

encontrava. Para se evitar tal situação, deve o soberano agir em prol do coletivo,

garantindo a existência de uma ordem que se funda na imposição da liberdade,

como visto anteriormente.

Uma questão que permanece, mesmo depois de se ter estabelecido os

moldes de ação e de construção da sociedade, do ordenamento e do pacto social, é

o que se entende por ação do soberano. Primeiramente é preciso chamar a atenção

para a compreensão de soberania, que não se sobrepõe ao corpo político, mas é

esse que garante a possibilidade de existência do primeiro. Portanto, o soberano

não pode, em nenhuma situação, agir de acordo com a vontade de um, mas

somente com a convenção social, através da garantia dos direitos e da prática da

igualdade. De maneira que toda ação soberana é uma ação de si próprio para si

mesmo; só há obrigatoriedade porque há mutualidade. Curiosamente, ao se referir

ao coletivo social, e pensar nele, o homem acaba por pensar em si mesmo, e

pensando em si, pensa nos demais; de maneira que “[...] o egoísmo natural

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transforma-se no senso de justiça do homem socializado” (MACHADO, 1973, p. 55),

onde o soberano (povo reunido em assembléia) manifesta sua vontade através da

lei.

A garantia da liberdade civil, da manutenção do ordenamento social, se

encontra no reconhecimento de todos e cada um, da vontade geral. Não adianta que

alguns a reconheçam e lutem por ela, enquanto outros a desprezam e seguem suas

vontades individuais. A lógica se encontra na conversão da liberdade natural em

civil, onde se legitima a vontade individual como vontade geral. É, por assim dizer,

extremamente necessário que a vontade parta de todos e sirva para todos, de

maneira que tudo o que for individualizado perde seu sentido de ser; visto que só se

é em estado civil. Estado civil que só se garante mediante a dimensão de igualdade

de direitos e deveres, como um conceito fundamental de moral.

Dessa maneira, reconhecendo a vontade geral, “[...] todo ato de soberania,

isto é, todo ato autêntico da vontade geral, obriga e favorece igualmente a todos os

cidadãos” (ROUSSEAU, 1973, p. 56). Não há aqui, espaço para a distinção, para o

reconhecimento da vontade individual como vontade geral; a vontade geral se

transforma em vontade individual, para que sejam reconhecidos os atos de

soberania: uma certa aceitação, acordo, entre o corpo e os membros, “[...]

convenção legítima por ter como base o contrato social” (ROUSSEAU, 1973, p. 56).

É preciso observar que o poder soberano não se sobrepõe à convenção social, mas

se limita por ela. É assim que se garante o reto funcionamento da sociedade, a

supremacia da vontade geral e a liberdade dos indivíduos, livrando-os de qualquer

desigualdade, ou mesmo injustiça, do ponto de vista do direito político e do direito

civil. Em sociedade podem ocorrer injustiças de um indivíduo para com outro, mas

haverá reparação baseada na lei. E como o ordenamento se sustenta na igualdade,

nenhum dos membros da sociedade pode ser mais onerado que outro; e se o fizer, o

poder não é mais soberano, nem representa a sua função de zelar pelos direitos dos

membros que o compõe.

No Contrato social, e para seu reto funcionamento, deve haver, por parte do

indivíduo, renúncia aos seus direitos, de modo que a alienação total se converta em

igualdade, preexistindo uma troca de estados e situações, onde há, de fato, a perda

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da liberdade natural, e o ganho da liberdade civil, onde há espaço e modo de

construir o homem e capacitá-lo como um ser racional e de moral. Esse processo de

passagem não pode ser direcionado, sob pena de se colocar como ilegítimo. A

legitimidade de tal processo se encontra justamente na transformação da vontade

individual em vontade geral, o que garante a funcionalidade do pacto social e,

consequentemente, agrega poder ao corpo político, o que possibilita a organização

social, a manutenção do mesmo Estado e do exercício da soberania.

1.6 A liberdade como fundamento da pessoa

Rousseau ainda vai tratar de um ponto fundamental para o funcionamento

do pacto social: o direito de vida e morte. No capítulo quinto do segundo livro do

Contrato, o pensador dispõe sobre quem tem o direito de tirar a vida do cidadão; a

questão se aprofunda quando ele estabelece que nem o próprio indivíduo tem tal

poder. Contudo, é preciso deixar claro que nada impede ao ser de “[...] arriscar sua

própria vida para conservá-la” (ROUSSEAU, 1973, p. 57). Fica evidente que, uma da

sociedade, cada indivíduo deve colaborar para a conservação, mesmo que para isso

sua vida seja colocada a prova. Rousseau afirma isso pelo fato de que muitos fazem

uso das vidas de outras pessoas que também compõe a sociedade, sem colocar a

sua em risco. Se o critério moral que norteia o coletivo social é a igualdade, então

“[...] Quem deseja conservar a sua vida à custa dos outros, também deve dá-la por

eles quando necessário” (ROUSSEAU, 1973, p. 57-58). Se o Estado tem a

obrigação de cuidar para que a vida de cada indivíduo que o compõe seja

conservada, ele também pode dispor de meios necessários para conseguir tal feito.

De maneira que cada um se torna obrigado a cumprir a vontade soberana, diante de

uma decisão geral, de modo que “[...] sua vida não é mais mera dádiva da natureza,

porém um dom condicional do Estado” (ROUSSEAU, 1973, p. 58).

Quando se coloca a dimensão do Estado como responsável pelas vidas dos

membros do mesmo, parece que a ideia de liberdade fica restrita ao Estado, e o

homem acaba limitado em suas ações pela imposição. O que se precisa deixar claro

é que graças a esse mesmo Estado que se pode falar em liberdade. Em nenhum

momento há a imposição do Estado [vontade coletiva fundada sobre o contrato, que

garante a soberania] sobre a vontade geral, sobre a soberania. Rousseau afirma

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simplesmente que as vidas daqueles que estão em sociedade devem ser colocadas

a serviço do mesmo soberano; e se, por acaso, houver a necessidade de que vidas

sejam ceifadas para o bem comum, numa decisão em conjunto, isso deve ser

decidido, respeitando a vontade geral. Toda essa dinâmica se baseia no

consentimento que cada indivíduo deu no contrato.

No caso de crimes cometidos contra à vida, volta-se a citar que nenhuma

agressão será tolerada, contra um membro do corpo social, sem que se atinja todo o

corpo. Dessa forma, ao se tornar um criminoso, o homem deixa de ser cidadão, e

quando viola as leis, passa a ser um traidor, que se preocupa somente com sua

vontade individual. Quando isso ocorre, a vontade geral é anulada, esquecida, e a

sua conservação passa a ser incompatível com a do Estado; assim, é “[...] preciso

que um dos dois pereça [...]” (ROUSSEAU, 1973, p. 58). Fica evidente que, sendo o

Estado a junção das forças individuais, esse terá uma maior ação e, possivelmente,

conseguirá se impor ao criminoso; por isso, “[...] quando se faz que um culpado

morra, é menos como cidadão do que como inimigo” (ROUSSEAU, 1973, p. 58),

pois, “[...] não sendo tal inimigo uma pessoa moral, mas um homem, então o direito

da guerra é o de matar o vencido” (ROUSSEAU, 1973, p. 58).

Curiosamente, a colocação de um indivíduo como um criminoso, o faz

retornar ao estado de natureza, sem a concepção dos direitos sociais, muito menos

da convenção social. Sua amoralidade aparece, não há padrões de manutenção da

igualdade, e sua prática se torna egoísta, quebrando o pacto social. Dessa forma, a

cidadania desse ser humano desaparece, sendo declarada contra ele, uma guerra

na qual o vencedor terá o direito de, se preciso for, expulsar o perdedor do coletivo.

Vale lembrar que não se pode matar os membros da sociedade; pois “[...] só tem o

direito de matar, mesmo para exemplo, aquele que não se pode conservar sem

perigo” (ROUSSEAU, 1973, p. 58). De maneira que cabe ao soberano, e somente a

ele, inocentar o culpado, se for o caso.

De maneira real, o homem troca a liberdade natural pela liberdade civil; essa

troca confere a ele um novo limite: a vontade geral. Aqui, a vida natural cessa e a

vida agora passa a ser encarada como dom do Estado. Em linhas gerais, o cidadão

é forçado, por si mesmo, a ser livre, tendo por base a vontade geral, que representa

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a sua própria vontade. O cidadão, assim, estatui para si a lei que ele mesmo deverá

obedecer, sendo a própria lei – expressão de sua vontade – fonte da sua autonomia;

o julgamento aqui passa a ser emitido somente com um cuidadoso julgamento, onde

o que se objetiva é o reconhecimento da quebra da vontade geral, da liberdade e,

consequentemente, da igualdade; pois obedecer as leis, é ser livre.

Numa dimensão estatal bem administrada, é possível perceber que não há

tantas punições, pois não há muitos crimes. Se cada um dos membros dessa

sociedade entende seu papel diante do coletivo, fica claro que a manutenção da paz

será objetivo de todos e cada um. A sustentação da liberdade, a garantia dos

direitos, a moral e a prática da justiça, possibilita um convívio tranqüilo, onde é

possível o exercício da soberania, a participação no Estado e a construção de uma

sociedade legítima. Dessa dimensão é que podemos traçar um perfil lógico para o

surgimento e a manutenção das leis, não com o intuito de se gerar um positivismo

dogmático por parte do Estado, mas sim, que seja garantida a autonomia da vontade

geral, em detrimento das vontades particulares, garantindo assim, a liberdade do

homem.

Em primeiro lugar, a cidade faz para o homem um equivalente ao estado de natureza, pois garante todas as dependências pessoais. Na cidade, o cidadão depende apenas da lei; e é a dependência das leias que o coloca longe da dependência dos homens. O pacto social consegue esse milagre de fazer os homens sem negar a dependência da liberdade. No cidadão, o contrato social é encontrado como uma liberdade civil, equivalente a liberdade natural, e ganha, além disso, a liberdade moral10 (DERATHÉ, 1984, p. 120).

Como sabido, e já visto anteriormente, é pelo pacto social que o corpo

político toma vida. Na busca de se estabelecer o “movimento e a vontade” do

mesmo corpo, Rousseau traduz, numa lógica inovadora, que a lei é fruto da

convenção social, e nada tinha de ligação com o estado natural, ou com a lei natural.

Em contrapartida, ao fazer tal analogia, o genebrino ainda estabelece uma diferença

basilar no comportamento dos dois estados: a estaticidade do estado natural, e a

10 Tout d’abord, la cité réalise pour l’homme um équivalent de l’état de nature, puisqu’elle le garantit de toute dépendance personnelle. Dans la cité le citoyen ne dépend plus que de la loi et c’est la dépendance des lois qui le met à l’abri de la dépendance dês hommes. Le pacte social a réalise ce miracle de rendre les hommes dépendants sans les priver de ;a liberte. Dans le contrat social le citoyen retrouve sous forme de liberté civile l’equivalent de la liberté naturelle, et gagne, em outre, la liberté morale (DERATHÉ, 1984, p. 120).

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dinamicidade do estado civil, da vida em sociedade. Tal dinamicidade só se sustenta

se apoiada na compreensão de que é a justiça, fruto da racionalidade – e essa da

sociedade – que garante a reciprocidade entre os membros de uma mesma

sociedade. Justamente para se manter esse padrão de ordenamento que são “[...]

necessárias convenções e leis para unir os direitos aos deveres, e conduzir a justiça

a seu objetivo” (ROUSSEAU, 1973, p. 60); assim, em estado civil, “[...] todos os

direitos são fixados pela Lei” (ROUSSEAU, 1973, p. 60).

A Lei é fruto da vontade geral. Sendo fruto dessa vontade, não há espaço

para considerar leis em particular, mas somente a fundamentação geral em que ela

estatui. Em momento nenhum a lei pode considerar um indivíduo e se esquecer da

sociedade, ou se focar numa ação particular; de maneira que “[...] qualquer função

relativa a um objeto individual não pertence, de modo algum, ao poder legislativo”

(ROUSSEAU, 1973, p. 61), mas tal função se destina ao executivo. Desse modo,

não cabe a ninguém em particular elaborar leis, pois elas são frutos da vontade

geral, e se não, são ilegítimas, pois não passam pelas nossas vontades, de modo

que a lei é a expressão da vontade geral, a garantia dos direitos fundamentais, da

liberdade e do ordenamento social.

A vontade geral é a expressão da liberdade dos cidadãos [...]. Pois, se o ato de associação tem como consequência imediata o surgimento de um corpo coletivo e volitivo, este mesmo ato nada determina acerca do que este corpo deverá fazer para conservar-se. Ainda que Rousseau. [...] A melhor constituição de um estado não é um conjunto de leis que se mantém por serem antigas, mas o conjunto dos cidadãos legitimamente reunidos em inúmeras assembléias do povo (REIS, 2009, p. 104).

A liberdade não pode ser concebida como ato de estado. O fato de se

pensar em um ordenamento social que respeite a liberdade, ou que dele surja,

advém muito mais de uma questão tipicamente social do ser humano, do que uma

necessidade argumentativa para a sustentação de ideais morais. A liberdade não

pode ser tomada como um mero ponto de compreensão da conduta humana [uma

simples abstração], mas sim, um meio pelo qual se pode compreender o padrão de

ordenamento social, como aquele que supri as necessidades do gênero humano, e

mais que isso, faz com que a igualdade ecloda como fator de solução para a

resignificação do próprio humano em sociedade, e o auto reconhecimento. Contudo,

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para se pensar numa liberdade verdadeira é preciso começar com o acordo, com a

alienação total da vontade individual, e o contrato estabelecido que prime pela

vontade geral.

A liberdade, necessariamente, começa a expor seus modos de ação,

quebrando com a compreensão de que é somente teoria, quando o ser humano é

capaz de entender que o primeiro passo para reconhecê-la é ter consciência de que

a ela só é possível em sociedade. O ser humano, desse modo, se vê sujeito a

liberdade como uma obrigação moral, como uma convenção consciente. Tal

raciocínio obedece a lógica de que para se falar em sociedade é preciso,

obrigatoriamente, falar de liberdade. A grande questão aqui levantada é de que esse

ordenamento se encontra de tal modo ligado a dinâmica da liberdade, que conceber

um é, consequentemente, gerar o outro. Esse ser sujeito a liberdade de maneira

consciente será o total responsável pela concretização de uma conduta moral que

respeite a dimensão coletiva dessa mesma liberdade. Observe-se que a sujeição

não é algo imposto pelo ambiente social, mas uma característica que está presente

em sua aceitação ao pacto social.

O ideal de aceitação consciente é muito mais que uma simples

compreensão do sentido da liberdade. A aceitação supõe uma tomada de

consciência. A proporção aumenta consideravelmente, quando se transfere para a

realidade social a necessidade de se obter o controle da sua liberdade, indo assim,

de encontro com o primeiro passo para uma ação integralmente civilizada. O

humano é o único animal que toma consciência de sua liberdade, e passa a utilizá-la

como meio para a afirmação social, a partir de preceitos morais. Por esses e outros

que a humanidade passou, ao longo dos tempos, a conceber a liberdade como uma

conquista, e não como uma virtude social.

Essa liberdade em relação à natureza, fundada na ação transformadora, vê

na sociedade um caminho necessário para a observação de que pensar o humano é

pensar na necessidade da responsabilidade para com o coletivo.

Mesmo existindo a dinâmica da passagem do estado natural para o social, é

preciso observar que essa mesma liberdade está além dos ditames históricos; ou

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seja, a essência do processo é o a mudança sócio-moral. A tomada de consciência

que leva a concepção de uma liberdade alicerçada na responsabilidade coletiva, na

vontade geral, faz com que a História assuma seu real papel, compreendendo que a

ação social narrada a luz dos moldes morais, pode ser determinante para a dinâmica

da pessoa humana através de preceitos coletivos. Fica claro que o desenvolvimento

da liberdade está ligado ao estado social. Pode parecer paradoxal, mas para o

entendimento da liberdade há a necessidade de que esse mesmo humano seja

reconhecido pelo seu desenvolvimento coletivo, e não subjetivo, que supera a

compreensão natural; de outro modo, a garantia do auto conhecimento se funda na

compreensão da liberdade e do direito político.

Para que a liberdade aconteça, para além do estado natural, ela deve

respeitar os modos de conduta que versam sobre a dinâmica da necessidade

(teoria) e da transformação (prática), colocando essa mesma liberdade posterior a

vontade geral. O ideal é mostrar que a liberdade está intimamente ligada ao padrão

de determinação social, que engloba padrões de necessidade e transformação,

necessariamente. Essa determinação leva à compreensão de que a liberdade,

entendida sob a ótica simplista, define o humano como ser sem impedimentos para

a execução de seus fins existenciais, numa troca mútua entre liberdade fundada nos

atos humanos e estes últimos na primeira. Dessa relação entre atos e a liberdade

eclodem quatro reflexões acerca do entendimento sobre a liberdade, a saber: 1 – as

obrigações humanas tendem a um fim existencial; o ser humano como aquele que

acolhe em sua existência os ideais de estado social, primando pela atenção ao

saneamento de seus princípios morais - Igualdade. 2 – não há um padrão de

liberdade ilimitada – irrestrita; o que há são padrões morais, históricos e sociais que

possibilitam a extensão da liberdade, colocando-a como fruto do contexto social. 3 –

o ser humano tem direitos naturais que vão muito além do estabelecido pelo contrato

social; a delimitação pelo meio objetivo se dá pelo simples fato de controle social,

que vê na moral, sua única solução. 4 – é preciso ressaltar a preocupação, de

maneira geral, com o abuso do poder; não se pode confundir a liberdade com

padrões de libertinagem, levando a um descrédito dos preceitos morais,

transformando a liberdade em mero hábito.

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Observe-se que dessa forma a liberdade acaba sendo posterior ao coletivo,

sendo a partir dela que o gênero humano chegou, e chega, a estabelecer as bases

sociais. O grande problema é quando as bases sociais são entendidas de maneira

diferente do padrão de liberdade, colocando-a dentro de uma dinâmica de redução;

isto é, aparece, por uma vontade individual, a liberdade reduzida, como meio de

contenção natural, de limitação do humano. Portanto, a limitação que passa a figurar

é a do próprio estado natural, que é estabelecida por uma vontade individual. Dessa

forma, é preciso estabelecer os preceitos do sistema de direitos, para que se

compreenda, no fim da reflexão, o que se estabelece como uma compreensão da

liberdade, que tem em sua concepção social valores morais que buscam a garantir,

diferenciando os direitos.

O primeiro ponto, dentro dos direitos, é conceber a diferença existente entre

o direito natural e o social. Os direitos naturais podem levar a uma falsa concepção

da liberdade, aplicando-a de modos diferentes de acordo com situações variadas, e

da vontade individual. Os direitos sociais possibilitam a verdadeira liberdade,

colocando-a como um artefato da realidade social; a sua garantia é marcada pela

existência de padrões que respeitem a existência humana em sociedade, gerando

um modo de concepção, baseado na igualdade e na justiça. Assim, a liberdade deve

ser concebida como uma virtude social. Uma virtude que possibilita a abertura para

novas realidades; que abre margem para a compreensão de outras possibilidades;

que mostra opções para problemas, antes, insolucionáveis; que leva o ser humano a

tomar a decisão correta na hora em que esta lhe for solicitada, como parte do

Soberano. Os padrões sociais, estabelecidos pela moral, ratificam a liberdade e

garantem padrões de conduta moral. É, portanto, urgente que se repense a

liberdade como uma necessidade essencial do ser humano; como um padrão que

leve ao reconhecimento da responsabilidade que aponta os rumos para uma

legitimidade social. Uma liberdade na qual a felicidade11 seja a condutora de seus

caminhos. Uma liberdade que leve a compreensão de que é impossível ser humano

sem ser livre, sem ser social; e é também impossível ser livre se não se é moral. É

preciso reconhecer realizar a liberdade da vontade geral.

11 A busca por definir o conceito de felicidade é algo anterior a Rousseau. Um dos primeiros filósofos a conceber tal ideia, e a trazê-la para dentro da discussão filosófica foi Aristóteles. Rousseau herda a ideia de felicidade do estoicismo.

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O próprio povo não poderia, se o desejasse, despojar-se desse direito incomunicável, porque, segundo o pacto fundamental, só a vontade particular obriga os particulares e só podemos estar certos que uma vontade particular é conforme à vontade geral depois de submetê-la ao sufrágio livre do povo (ROUSSEAU, 1973, p. 103).

É essa liberdade que reconhece no humano livre sua autonomia e, ao

mesmo tempo, percebe a necessidade de se praticar uma alteridade. Um humano

que encontra na liberdade civil uma situação de vida e liberdade. Comumente, traça-

se o perfil de liberdade como fazer o que se tem vontade, ou mesmo o que é

preciso. Ao longo de todos esses anos e depois de tantas discussões, a liberdade

ainda se encontra resumida a ações irrestritas. Na tentativa de buscar tratá-la para

além dessa concepção, e colocá-la como parte essencial para a vida humana, quer-

se traduzir liberdade como a participação em sociedade, onde se garante a

subsistência do indivíduo, onde haja padrões de conduta moral, estabelecida na

igualdade, e os direitos sejam garantidos pelo estado, povo soberano. Portanto,

repensar a liberdade é, necessariamente, repensar a política, a ética, a moral, a

sociedade e, claro, a pessoa humana. É preciso repensar a condição social versus a

condição natural; dispor de parâmetros que norteiem a vida em sociedade para além

da prática minimalista que oprime e condena, que assola e destrói, em nome da

vontade individual, da satisfação de seus interesses sobrepondo a vontade geral, os

interesses coletivos, o corpo político.

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CAPÍTULO 2 A PESSOA EM ROUSSEAU

Características delineadas, traços específicos, comportamento imprevisível,

marcos que definem, rusticamente, o animal humano. Animal de práticas instintivas,

comportamento inato, racionalidade limitada, o humano se apresenta como um misto

de escuridão e clareza, que se associa à prática coletiva, formando a dinâmica do

ser pessoa. Ser pessoa que se expressa não pela prática racional, mas sim, pelo

diferencial que se apresenta com o desenvolvimento do conhecimento –

característica basilar. Sendo o mais conhecido e menos estudado, o conhecimento

do humano se torna fator essencial de análise no pensamento de Rousseau,

deixando claro que “[...] a principal questão filosófica é a que pergunta sobre pelo

Homem” (MARTINS, 2009, p. 333).

Ponto nevrálgico das discussões promovidas pelo filósofo, a busca pela

definição do ser humano12 perpassa suas obras, mesmo que não explicitamente. O

pano de fundo, proposto com discussões embasadas em textos chave, transforma

Rousseau num pensador para além da ação humanista, e o insere na prática

existencial que se funda na manutenção do ser pessoa, formada por dimensões

específicas e essenciais.

Rousseau estabelece uma série de reflexões, para que haja o entendimento

da vida social. Para muitos, Rousseau passa a ser o grande autor da era das

revoluções, sendo seus textos, símbolos que estabelecem um roteiro para a

promoção do entendimento da prática social. Contudo, e muito além de tal ação,

essa proposta se apresenta como linha mestra para se encontrar, e definir, a

essência da pessoa humana, presente, especialmente, no início do segundo

Discurso.

12 A questão da pessoa e a proposição de seu conceito tem outras conotações. Evidentemente que não se pode descartar a concepção atual de pessoa, agora composta (pessoa humana), definida por pensadores humanistas. Segundo Sgreccia (2002), a pessoa humana é uma unitotalidade, ou seja, unidade de corpo e espírito; e uma totalidade porque deve ser considerada em todas as suas dimensões (física, psíquica, espiritual, social e moral).

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Considero, igualmente, o assunto deste discurso como uma das questões mais interessantes que a filosofia possa propor, e, desgraçadamente para nós, como uma das mais espinhosas que os filósofos possam resolver: com efeito, como conhecer a fonte da desigualdade entre os homens, se não se começar por conhecer os próprios homens? (ROUSSEAU, 2007, p. 25).

O filósofo inicia o segundo Discurso estabelecendo um pensamento, uma

perspectiva de ação para a análise do ser humano. Rousseau percebe que tal

análise deve ser principiada pela busca de se entender a dimensão da introspecção,

ou ainda, numa busca pessoal que se pauta no autoconhecimento. Em suas

definições, Rousseau se debruça num viés humanista que, por hora, chega a ser

fenomenológico, deixando clara a intenção de promover uma análise minuciosa da

constituição do homem, das influências recebidas por ele em sociedade, em

contraposição ao estado primitivo em que se encontrava. Isso pelo fato de que a

análise desse humano não se refere a uma prática individualista, mas sim, a um bojo

racional que abarca disposições para se chegar a conceber o ser do humano,

artífice de sua história; ou ainda definir, nos dizeres de Almeida Jr. (2009, p. 17),

esse mesmo humano como “[...] um ser que é capaz de engendrar a própria história

e transformar a si mesmo”. Essa ambivalência existente entre o estado de natureza

e o social, eclode um complicador no pensamento de Rousseau.

Há, a este respeito, uma solidariedade entre a marcha uniforme da natureza e a maneira de viver simples, uniforme e solitária que nos foi prescrita pela natureza. É muito mais tarde somente que se abolirá a simplicidade e a uniformidade da vida animal e selvagem, quando, no estado civil, o homem torna-se o tirano de si mesmo e da natureza13 (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 233).

Ou nas palavras de Rousseau:

O homem natural é tudo pra si mesmo; é a unidade numérica, o inteiro absoluto, que só se relaciona consigo mesmo ou com seu semelhante. O homem civil é apenas uma unidade fracionária que se liga ao denominador, e cujo valor está em sua relação com o todo, que é o corpo social (ROUSSEAU, 2004, p 11).

13 “Il y a, à cet égard, une solidarité entre la marche uniforme de la nature et la manière de vivre simple, uniforme e solitaire que nous était prescrite par la nature. C'est beaucoup plus tard seulement que s'abolira la simplicité et l'uniformité de la vie animale et sauvage, lorsque, dans l'etat civil, l'homme sera devenu le tyran de lui-même et de la nature” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 233).

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O questionamento coloca o humano em conflito entre os estados de sua

existência: o natural e o social. Contudo, o grande diferencial a ser notado na busca

de se entender o ser humano é a introspecção. Essa capacidade de introspecção,

oriunda de uma prática socrática, e necessária, para o entendimento do

conhecimento humano, demonstra muito mais do que a compreensão de suas

potencialidades, mas traduz, de maneira prática, “nossas verdadeiras dimensões”.

Se se quer compreender o homem de Rousseau, deve-se passar pela dinâmica

essencial do ser pessoa; assim, o segundo passo para tal disposição [visto que o

primeiro é a liberdade] é compreender a importância de se conhecer, ou melhor, do

auto conhecimento. Isso fica evidente quando, no prefácio do segundo Discurso,

Rousseau afirma ser preciso repensar a lógica da discussão do homem a partir da

dinâmica exposta no pórtico do templo de Delfos14. Destarte, a influência da História

da Natureza se converte em base, segundo autos retirados das notas do mesmo

Discurso, onde se faz possível traduzir a busca pela pessoa em Rousseau, a partir

dessa célebre máxima grega, traduzida pela lógica, que se pautava no exame de si

mesmo e dos outros: de si próprio em relação aos outros, dos outros em relação a si

mesmo.

O princípio motor dessa discussão pode ser alçado com o estabelecimento

da relação existente do homem em estado de natureza, e sua evolução para o

estado social. Antes, porém, é preciso ressaltar que a dinâmica da pessoa em

Rousseau não se refere somente ao ser em estado natural, ou ao homem selvagem,

mas perpassa toda a modificação do gênero ao longo dos tempos e dos modos de

ser, como o filósofo elenca. Dessa forma, o objetivo é demonstrar como o homem é

visto muito mais como pessoa, complementando a definição rousseauista de ser

humano e, ao mesmo tempo, responder a pergunta arranjada no prefácio do

segundo Discurso, dando margem para a consecução do que o pensador buscará

fazer no Emílo, que nada mais é, do que provar a manutenção da natureza da alma

humana, longe da corrupção social; “[...] e o processo mais formal pelo qual a

14 Máxima conhecida da filosofia, traduzida como “Conhece-te a ti mesmo”.

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natureza cumpre esta condição é o isolamento do homem natural, isto é,

exatamente, a sua independência”15 (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 256).

Dessa forma, definir a pessoa dentro do pensamento do Rousseau tem

muito mais o objetivo de significar a liberdade do humano, dando margem para o

entendimento da alma humana, do que propriamente buscar provar novas análises

do pensamento do filósofo. Assim, as linhas aqui traçadas tratarão de apontar para a

existência dessa dimensão no pensamento daquele que, tradicionalmente, é

conhecido por rejeitar a dimensão da existência de maneira individual. Não se nega,

em nenhum momento, a possibilidade da significação da vida em sociedade, como

se verá; mas o intuito é demonstrar que para se entender a sociedade, é preciso

entender a liberdade; para se entender a liberdade é preciso entender o ser social;

para entender todo o processo é preciso compreender o ser humano, e esse como

pessoa, fonte do conhecimento.

2.1 Definição de pessoa

Pessoa, em sua etimologia, se entende como personalidade. Tal definição

enfrenta problemas; e estes problemas advêm do fato de que a grande discussão

travada no campo da filosofia define pessoa de vários modos16, o que poderia

complicar a análise a partir do pensamento de Rousseau, visto que em sua maioria,

as definições são propostas a partir da capacidade individual, e não do coletivo.

Assim, para compor a reflexão da pessoa, será preciso dividir a reflexão em três

momentos, a saber: a pessoa física/natural, a passagem do natural para o social e a

pessoa moral/social, onde se quer demonstrar que a formação da pessoa, em

Rousseau, só se dará mediante a geração do conhecimento.

Aportando a discussão aqui proposta, a definição da pessoa no pensamento

de Rousseau se baseia na fala do próprio pensador, nos Devaneios do Caminhante

Solitário, onde se lê: “Eis-me, portanto, sozinho sobre a terra, sem outro irmão, 15 “[...] et le procédé le plus formel, par lequel la nature remplit cette condition c'est l'isolement de l'homme naturel, c'est à dire, au juste, son independence [...]” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 256). 16 A tradição escolástica apresenta a pessoa como substância individual de natureza racional. Kant a define como um valor absoluto que determina a sua própria razão. No pensamento cristão, pessoa é o ser humano racional e livre, sujeito moral e espiritual, consciente do bem e do mal e responsável pelos seus atos.

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próximo, amigo ou companhia que a mim mesmo” (ROUSSEAU, 2010, p. 7). Esta

prática da solidão do caminhante mostra que uma primeira forma de se buscar

compreender a essência do ser humano só será possível a partir do

autoconhecimento. Rousseau coloca a sua essência pessoal como base para

reconhecimento do que é ele próprio. Curiosamente, a frase responde a fala do

templo de Delfos, numa busca incessante de conhecer-se. Assim, a definição de

pessoa tem muito mais o objetivo de buscar compreender a origem humana,

fazendo as devidas distinções, entendendo o presente do homem. É justamente

para se buscar entender a atual situação da humanidade que se analisa, neste

trabalho, a pessoa como origem e fundamento do ser humano. Tal prática leva a

resposta sobre o que é a pessoa; e entendendo o ser pessoa, entende-se o humano

e todo o mais.

Essa definição da pessoa esbarra, contudo, em aspectos mais

problemáticos, como a capacidade de mutabilidade humana. São essas mudanças

que possibilitam a construção histórica, presente num determinado tempo e espaço,

o que desfigura a alma humana. Porém, “[...] não é concebível que essas primeiras

mudanças [...] tenham alterado, ao mesmo tempo, e da mesma maneira, todos os

indivíduos da espécie” (ROUSSEAU, 2007, p. 26); há a manutenção dessa pessoa,

que se converte em base inabalável, mantenedora do ser do humano. Assim,

alcança-se aqui a primeira forma da pessoa física/natural, ou ainda a dimensão da

ação dessa mesma pessoa.

2.1.1 A pessoa física/natural

A pessoa física/natural se compõe, primeiramente, da incapacidade racional.

Nela, não estão descartadas as operações simples da alma, onde se buscam

garantir o bem-estar, aparecendo o primeiro dos instintos do homem selvagem: a

conservação. “O objetivo que a natureza oferece, e como ela atribui a tarefa para o

próprio homem é sua conservação: que é a condição que deve satisfazer a

constituição física do homem”17 (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 256). Em paralelo a esse

17 “Le but que la nature se propose et dont elle confie le <soin> à l’homme même, c’est as conservation: c’est là la condition à laquelle doit satisfaire la constitution physique de l’homme” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 256).

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primeiro instinto, a pessoa física/natural possui um comportamento diante da morte

de semelhante, por um efeito também natural, o que faz eclodir o segundo

comportamento instintivo: a comiseração, pois, “[...] a alma humana possui dois

princípios anteriores à razão. São eles o da conservação de nós mesmos e o de

comiseração, isto é, da repugnância em ver sofrer qualquer ser sensível” (MARTINS,

2009, p. 336-337). Ambos formam a essência da pessoa física/natural, na qual não

há a necessidade de agressão e disputa com os semelhantes, e nem sequer outros

animais. A concepção de liberdade é a da irrestrição, conforme citado no capítulo

anterior, a dinâmica do individualismo e da autonomia se apresentam, além de que

suas relações se resumem àquelas que satisfazem seus sentimentos, instintos e

quereres imediatos. Além do mais, dimensão do mal não existe na natureza

humana, o ser não concebe o que é o próprio mal, e muito menos o que é liberdade

verdadeira; não há a necessidade de maltratar o outro, e nem de se lutar pelo que

não se sabe. Essa primeira característica da pessoa em Rousseau surge como base

para se compor o homem original, apontando de maneira prática onde se encontram

as dificuldades sobre a origem de toda a complexidade de se conceber a pessoa,

por conta de um comportamento amoral.

Nessa primeira análise, a pessoa física/natural está ligada a toda a leitura de

um homem em estado de natureza. Como o próprio nome já diz, nesse primeiro

momento a busca pelo entendimento de uma capacidade humana enquanto ser

racional não existe; pois em Rousseau, tal capacidade só eclode a partir da vida em

sociedade, nesse caso, a partir da pessoa moral/social. Sendo assim, a fonte de

leitura para a produção dessa dinâmica estará concentrada em provocar a

compreensão do processo de evolução humana, partindo de sua composição

original, como ser em estado de natureza, que se relaciona simplesmente com o

mundo natural, de maneira animal. De certa maneira, é preciso destacar que a

possibilidade de construção do homem racional só se torna realidade tendo como

base de sua produção o ser em estado de natureza; em outras palavras, a pessoa

moral/social só pode ser pensada com base na pessoa física/natural.

Numa outra análise, pode-se ainda remeter tal reflexão à história da filosofia

antiga, onde se observa a compreensão de gênero humano como fruto da natureza

física (Physis); idéia que partia da lógica de uma ordenação natural das coisas, isto

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é, uma realidade material explicada através de causas naturais. Fato é que o

homem [em seu estado natural] se encontrava em estado de dependência do mundo

natural; a partir do momento em que ele passa a vida social é que começa a se falar

do nomos. Tais leis são frutos das instituições humanas, diferentes do previsto pela

idéia da physis; leis que surgem através da convenção social, que acrescentam ou

contradizem os princípios naturais. Em linhas gerais, nomos traz consigo a idéia de

costumes ou hábitos que se transmitem coletivamente, por tradição, na diversidade

cultural existente em uma mesma sociedade. É dessa idéia que se originam a

política (governo do homem pelo homem) e a ética (o homem por ele mesmo). O

que é preciso deixar claro é que mesmo em sociedade, a essência da pessoa

física/natural não desaparece, assim como a estátua de Glauco. O que se modifica é

a exterioridade, e não a essência.

Assim, como essência da pessoa física/natural os sentimentos de

conservação e comiseração se vertem em fundamento de análise. Dessa forma é

preciso definir ambos no intuito de buscar se compreender as próximas etapas da

evolução do homem; pois a piedade é o

[...] sentimento natural que, moderado em cada indivíduo a atividade do amor de si mesmo, concorre para a conservação mútua de toda espécie. É ela que nos leva sem reflexão em socorro daqueles que vemos sofrer; é ela que, no estado de natureza, faz as vezes da lei, de costume e de virtude [...] (ROUSSEAU, 2007, p. 54).

Dessa forma, o instinto de conservação do homem selvagem é parte inicial

da definição da pessoa física/natural. Como um animal em uma floresta, esse

instinto faz dele um ser pacífico e não perigoso, ao contrário do que muitos pensam,

a menos que seja ameaçado; pois sua vontade se volta para o sanamento dos

instintos básicos, entre eles, o de sobrevivência; “[...] ponde um urso ou um lobo em

luta com um selvagem [...] e vereis que o perigo será pelo menos recíproco [...]”

(ROUSSEAU, 2007, p. 37). Em sua realidade, o ser com seu instinto de

conservação não se acostuma ao mundo em constante mutação, como a vida em

estado social. Para ele, a natureza segue seu curso de maneira paulatina e

sequencial, não havendo espaços para a surpresa; não há paixões nem

inconstância produzida pela dinâmica coletiva.

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No instinto de conservação a pessoa física/natural não tem como vontade o

guerrear; o fazer frente a outros animais por simples antipatia, ou mesmo ciúmes e

inveja. Fora a necessidade de defesa ou alimentação, não há, em nenhum

momento, a presença de qualquer tipo de violência. Como não há presença de

valores e costumes coletivos, traduzidos como moral – o que se verá mais adiante

neste trabalho – a pessoa física/natural é desprovida de vícios e virtudes, a menos

que esses sejam usados para se manter a ordem de conservação; ou seja, os vícios

responderiam pelas ações relativas a não manutenção da espécie e as virtudes o

inverso.

É tarefa de sua conservação e da solidão onde ele não pode contar consigo mesmo, obrigando o homem primitivo a esse exercício que faz do seu corpo um instrumento universal e suficiente, a dar-lhe o benefício de ter sempre todas suas forças a sua disposição, estando sempre pronto para qualquer emergência e, por assim dizer, sempre com a auto-expressão que une tudo, como diz o Primeiro Discurso, ideia antiga da auto-suficiência do sábio18 (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 260-261).

Dessa forma a pessoa física/natural, unida ao instinto de conservação da

espécie, gera a disposição que melhor representa a paz e, por isso, seria a mais

interessante ao homem selvagem, enquanto disposição comportamental. Com o

intuito de se conservar a espécie, os humanos não entram em conflito, e nem sequer

ameaçam uns aos outros, pelo simples fato de que não há a necessidade de se

manter o coletivo, mas sim, a si próprio. De maneira que “[...] só no instinto ele tinha

tudo o de que necessitava para viver em estado de natureza” (ROUSSEAU, 2007, p.

30).

Esse estado natural, onde não havia a necessidade de se rivalizar, mas

somente existir, o seu primeiro cuidado pode ser resumido como o de se conservar.

Paralelo a ele, a pessoa física/natural é aquela que tem o instinto da comiseração.

Comiseração que pode ser definida como um proto modelo do princípio da

alteridade, assumido nos dias atuais. De certa forma, Rousseau propõe essa análise

18 C'est le soin de sa conservation et la solitude où il ne peut compter que sur lui-même qui obligent l`homme primitif à cet exercice que fait de son corps un instrument universel et suffisant, et lui donnent l'avantage d'avoir sans cesse toutes ses forces à sa disposition, d'être toujours prêt à tout événement et de se porter, pour ainsi dire, toujours tout entier avec soi: expression qui rejoint, comme la vertu du premier Discours, l'idée antique de l'autarcie du sage (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 260-261).

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ao tratar de definir a comiseração como “[...] um sentimento que nos põe no lugar

daquele que sofre” (ROUSSEAU, 2007, p. 54). A capacidade de comiseração está

presente pessoa moral/social, vindo a desaparecer somente no filósofo. É preciso

observar que algumas características são específicas de determinada pessoa, como

se verá mais adiante, sendo possível de se entender as mudanças sofridas pelo

homem ao longo dos tempos. A comiseração é um sentimento desse homem em

estado natural, do homem selvagem, que acaba por ser transmito ao homem social.

Curiosamente esse instinto depende do modo como o homem se relaciona com o

outro que carece da misericórdia. Se há uma identificação do primeiro com o

segundo, a comiseração tende a ser mais intensa do que se não houvesse nenhum

vínculo. Esse sentimento de bondade inicial, presente na pessoa física/natural, que

levará Rousseau a definir a piedade e a bondade como essenciais ao homem

selvagem. De certa forma, a pessoa física/natural representa o homem em estado

de natureza; de maneira direta, ele é bom por conta da sua pessoa, e pela sua

essência instintiva natural, em sua essência, em outras palavras, o que se modifica

é o que se lhe vem de fora.

Vale ressaltar que o instinto19, na concepção de Rousseau, se traduz na

capacidade do cumprimento das funções puramente animais, ou ainda, o que o leva

a permanecer no estado de natureza, entendendo que

[...] para permanecer no estado de natureza, o qual lhe é próprio, é que tenha como único cuidado a sua conservação, devendo, neste sentido, desenvolver apenas faculdades que lhes são naturais: a do ataque e a de defesa. Tudo o que ultrapasse este cuidado são excessos que transportam o homem natural para o homem social (MARTINS, 2009, p. 338).

Rousseau ainda acrescenta a essa análise, modelos de como foi a ação

instintiva que salvou o homem em dados momentos, como por exemplo, a

19 Não somente Rousseau trabalha com a questão dos instintos. Hume na "Investigação acerca do entendimento humano", define que a inferência que constitui o conhecimento causal é resultado da ação do princípio do hábito, onde a superioridade do instinto natural é princípio produtor de conhecimento. Pode-se ainda considerar o pensamento de Charles Darwin, em "A ascendência do homem", que considera parte da admissão fundamental de que homens e animais compartilham uma série de instintos naturais, e também a capacidade de aprender e, por isso, modificar seu comportamento a partir da experiência adquirida. Esta atribuição de capacidade epistêmica a outros animais sugere uma diferença unicamente gradativa entre a razão humana e a “razão” animal (MATOS, 2007).

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capacidade de gritar, dar o “grito de natureza” significando socorro, perigo ou até

alívio mediante determinadas situações. De maneira que a capacidade instintiva

desse homem selvagem é que o mantinha em estado de natureza. Na verdade, não

haveria a necessidade de nenhuma outra capacidade para lhe manter a vida e a

estrutura inicial em que se encontrava, não tendo, inclusive, necessidade do outro. É

essa formação, de certa forma egoísta, que faz com que surja a dinâmica da pessoa

individual.

2.1.2 A pessoa individual

A pessoa individual em Rousseau é uma derivação da pessoa física/natural.

Como composição da essência natural do homem selvagem, essa pessoa individual

pode ser exemplificada a partir da concepção da vida individual do homem em

estado de natureza. Um estado que segundo o próprio pensador evitaria os males e

as mazelas de nossas próprias obras mantendo essa realidade, esse modo de viver

“[...] simples, uniforme e solitária” (ROUSSEAU, 2007, p. 39). O exemplo vivo dessa

pessoa individual em Rousseau encontra-se na definição do amor de si mesmo.

Nele, caracterizado como “[...] sentimento natural que leva todo animal a velar pela

sua própria conservação” (ROUSSEAU, 2007, p. 118), se encontra a produção da

virtude do homem selvagem, e o leva ao comportamento humanista. Nesse estado

de natureza onde vigora o amor próprio, é que se encontra presente a dinâmica da

pessoa individual, onde cada homem em particular se observa, se orienta e se torna

juiz do próprio mérito. Ao conceber a pessoa individual como um modo pelo qual se

evitaria os malefícios das escolhas humanas, o que gera o amor de si, essa

dimensão pessoal se une a da pessoa física/natural, possibilitando a construção de

uma personalidade necessária ao estado de natureza. Tal personalidade se justifica

pela necessidade de adaptação a esse estado, o que pode ser percebido a partir da

compreensão da estruturação do seu corpo, que passa por constantes modificações,

tendendo para a manutenção de si.

A representatividade do corpo em Rousseau pode ser feita de alguns

modos. Contudo, nesse primeiro momento do trabalho, é preciso se ater a dinâmica

física/natural; ou seja, a lógica da representação do corpo humano enquanto

estrutura óssea e carnal, enquanto músculos e força, para que o animal consiga

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sobreviver a todas as intempéries, ele deve treinar seu corpo para a constante

adaptação ao sistema natural. Com o ser humano não é diferente.

Um primeiro olhar atento de Rousseau sobre esse corpo do homem, e ele

logo consegue se desvincular do animal projetado por Aristóteles20, forjado a partir

de convenções imaginárias e vagas.

[...] Rousseau não confunde o homem com o animal. O que cria um limite claro, não é a diferença qualitativa da liberdade, ainda não introduzida na imagem do homem físico, mas o simples fato de que, entre outros animas, o homem é, afinal, o mais vantajosamente organizado de todos21 (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 244).

Por conta de sua necessidade de sobrevivência, seja no âmbito da caça, da

fuga ou mesmo da capacidade de subir em árvores, esse corpo se torna robusto, e

se perfaz do único instrumento de utilização do mesmo humano. Essa dinâmica de

dependência e necessidade do corpo faz do homem uma pessoa altamente

dependente de sua condição física, onde sua personalidade, nesse caso, se traduz

como a preocupação com o bem-estar do seu corpo, para que esse lhe garanta,

individualmente, a conservação. É preciso ressaltar que a dimensão pessoal do

corpo não é possível de ser pensada fora da pessoa física/natural; tais

características só existem graças a capacidade de adaptação do humano em estado

natural. Daí o porquê de pessoa física/natural.

O bem-estar do corpo do homem em estado de natureza foi mantido com a

aplicação árdua de exercícios necessários. Em outras palavras, a necessidade de se

superar barreiras, vencer dificuldades e ameaças de outros animais, obrigou esse

mesmo homem a se tornar “[...] ágil, rápido na carreira, vigoroso no combate”

(ROUESSEAU, 2007, p. 62). Ele foi obrigado a aprender com a vida natural, com a

disputa, com a imposição das reações da hierarquia da natureza. Essa pessoa

corpórea levou o humano a compreender duas situações: a semelhança das suas

20 “[...] se as unhas alongadas não foram primeiro garras aduncas; se não era peludo como um urso; e se, ao andar de quatro patas, o seu olhar dirigido para a terra e limitado a um horizonte de alguns passos não marcaria ao mesmo tempo o caráter e o limite de suas ideias” (ROUSSEAU, 2007, p. 35). 21 “[...] Rousseau ne confond nullement l'homme avec l'animal, et ce qui crée une limite nette, ce n'est pas la différence qualitative de la liberté, qui n'est pas encore introduite dans ce tableau de l'homme physique, mais le simple fait que, parmi les autres animaux, l'homme est, à tout prendre, organisé le plus avantageusement de tous” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 244).

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necessidades com os outros da mesma espécie, e a entender as relações entre

todos; relações que primeiramente se colocam como num estágio de classificação

dos semelhantes, descritas como “[...] grande, pequeno, forte, fraco, depressa,

devagar, medroso, ousado [...]” (ROUSSEAU, 2007, p. 62), que lhe fizeram perceber

a necessidade de segurança e da prudência maquinal. Assim, a pessoa

física/natural agora se completava com a dimensão corpórea, na busca de conservar

a espécie. Com essa agregação, o ser em estado de natureza descobre uma nova

pessoa: o outro.

2.1.3 O Outro

Esse outro que o ser natural começa a perceber pode ser encarado não

como um reconhecimento de capacidade racional, de percepção de diferenças, ou

mesmo troca de ideias. Esse outro, essa outra pessoa, que compõe a pessoa

física/natural, é a capacidade de percepção do ser natural de que um semelhante se

encontra diante dele. Há semelhanças. Há uma igualdade de necessidades e de

comportamentos e condições. Essa pessoa natural percebe que há da mesma forma

para o outro, uma debilidade natural, física; há ataques; há necessidade de

sobrevivência, de alimentação. É certo que o semelhante não é para ele o que

significa para a pessoa moral/social. Mas “[...] as semelhanças que o tempo lhe pode

fazer perceber entre eles, sua fêmea é ele mesmo” (ROUSSEAU, 2007, p. 63, e que

“[...] a sua maneira de pensar e de sentir era inteiramente conforme a sua”

(ROUSSEAU, 2007, p. 63). Em linhas gerais a realidade natural é semelhante para

ambos.

Em determinado momento os homens percebem que não há como

sobreviver de maneira individual, além de observar as limitações que lhes são

apresentadas pelo estado natural; observam que é interessante o fato de se criar a

possibilidade de somar forças para conservação do todo [busca efetiva pela

liberdade, bens e vida]. Há um determinado momento, em que ele [o homem em

estado natural] não será capaz de se manter individualmente, e as semelhanças

lhes mostram a realidade de que todos estão travando a mesma luta pela

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sobrevivência, de maneira individual. Inegáveis são os motivos que esse ser

encontra para, de certa maneira, relegar o estado natural em busca de uma nova

forma de vida. As condições naturais não são propícias a esse indivíduo, a realidade

de disputa por comida com outros animais, a falta de água em determinadas

situações, a não segurança, enfim, todos esses, e muitos outros motivos, fazem com

que outro modelo seja pensado, sob pena de não manutenção do indivíduo; o que

inviabiliza a ideia de uma verdadeira liberdade em estado de natureza.

Diante dessa possibilidade, a sociedade se transforma em meio pelo qual se

manterá a existência, e garantia de suas necessidades22. Como não há a presença

de valores e normas que norteiem a conduta do ser natural, há a possibilidade de

que esse outro seja tratado como mero objeto a mão daquele que primeiramente

souber como utilizar, ou o que primeiramente perceber tal possibilidade. Assim, na

lógica desse comportamento humano natural, o que se verá é a completa ausência

de moralidade, o que fará surgir a pessoal amoral.

[...] os homens no estado de natureza, não tinham nem vícios nem virtudes, pode-se, novamente, perguntar como eles diferiam dos animais e como eles mereciam serem chamados de felizes23 [T.A.] (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 309).

O estado natural não propicia a capacidade moral. Ao que se sabe, no

pensamento de Rousseau, a moral só toma forma a partir do momento que há a vida

em sociedade. Dessa forma, como não há entre os seres nenhuma relação moral,

ou mesmo a remota colocação de deveres, de maneira que eles se encontravam em

um profundo estado de anomia. Essa falta de referenciais impossibilita a definição

do ser como certo ou errado, de maneira que a “[...] a mesma causa que impede os

selvagens de usar a razão [...] impede-os também de abusar das suas faculdades”

(ROUSSEAU, 2007, p. 52). Aqui se encontra a dinâmica central do pensamento de

Rousseau, ao afirmar que o homem é bom por natureza. É na pessoa amoral que

reside o fundamento da bondade desse homem natural; a pessoa física/natural não

22 Evidentemente que não se resume a isso, como já analisado; mas para que não se torne redundante, optou-se aqui, pela não repetição 23 “[...] les hommes dans l'etat de nature, n'avaient ni vices ni vertus, on peut, de nouveau, se demander en quoi ils se distinguaient des bêtes, et en quoi ils méritaient d'être appelés heureux” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 309).

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concebe a ideia de mal porque sua essência é boa. De sorte que “[...] não é nem o

desenvolvimento das luzes, nem o freio da lei, mas a calma das paixões e a

ignorância do vício que os impedem de fazer o mal” (ROUSSEAU, 2007, p. 52).

Como a dimensão da bondade não é conhecida pelo homem natural, mas somente

a ausência do mal, Rousseau consegue estabelecer um sentimento que colaborará

para a manutenção desse em natureza – alcançando a conservação da espécie e a

comiseração –, e ainda será ponto essencial para a sobrevivência em sociedade. Tal

sentimento é a piedade.

A pessoa piedosa é a dimensão mais intensa desse ser em estado natural.

De tal forma que a sua presença é percebida até o maior dos detratores das virtudes

acaba por reconhecer. Ao olhar para o ser em estado de natureza, percebe-se um

animal fraco e sensível. Quando se percebe a linha de vida desse ser, ou o modo

como ele é dependente dos semelhantes e de tudo que o cerca, a sua sujeição a

todos os tipos de doenças e situações, fica fácil perceber sua necessidade de

piedade. A piedade se torna um sentimento vívido, que possibilita a existência e a

significação do homem tanto em estado natural como social, como se verá adiante.

Em seu conjunto de virtudes, ainda não conhecido, o homem conta com a piedade

como universal; é essa lógica que faz do humano um ser, antes de racional,

piedoso.

Vale ressaltar que tal característica não está presente somente no humano,

mas muitos animais dão sinais de piedade. Em muitos casos esses animais acabam

sendo tão piedosos que reproduzem sinais de humanidade, e até mesmo uma

singela capacidade reflexiva. Esse sentimento de piedade é parte do humano. Uma

parte tão natural quanto a ação de respirar. Muitos rejeitam tal hipótese, como é o

caso de Hobbes, que concebe o homem mau por natureza, onde “[...] os homens

não tiram prazer algum da companhia uns dos outros” (HOBBES, 1974, p. 79).

Contudo, para exemplificar o sentimento de piedade, bastaria observar cenas de

desespero e dor, ligadas a semelhantes e a amados, que o mais repugnante dos

animais acabará sensibilizado pela situação.

A força desse sentimento é tão assombrosa que ela chega a se pautar como

o princípio da alteridade, demonstrado por muitos humanos já em estado racional. É

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justamente por tal feito que a piedade não só se encontra no estado natural, como

se apresenta no estado civil. Dessa forma, ela está presente tanto na pessoa

física/natural, quanto na moral/social; e se se aceita o fato de que a segunda não

existe sem a primeira – argumento a ser defendido neste trabalho – o que se

percebe é a possibilidade da manutenção do sentimento de piedade que só se

aprimora quando da passagem para o estado civil, pois “[...] tal é a força da piedade

natural, que os costumes mais depravados ainda têm dificuldade em destruir”

(ROUSSEAU, 2007, p. 53). A todo momento na vida em sociedade – adiantando a

reflexão – é possível se assistir a demonstrações desse sentimento: quando

acontece alguma desgraça natural, ou mesmo algum semelhante é colocado em

uma situação extrema, vêem-se pessoas chorando pelo ocorrido, “[...] que nos põe

no lugar daquele que sofre” (ROUSSEAU, 2007, p. 54).

A pessoa piedosa é uma dinâmica tão intensa na dimensão da pessoa

física/natural, que a expressão de Mandeville é capaz de representar toda essa

intensidade: “[...] os homens nunca teriam passado de monstros, se a natureza não

lhes desse a piedade em apoio a razão” (MANDEVILLE apud ROUSSEAU, 2007, p.

53). Fato real que possibilita a ação humana, e faz com que haja, inclusive, conforto

em determinadas situações. A piedade acaba sendo o elo entre a pessoa

física/natural e a pessoa moral/social. Ela permanece mesmo depois do homem ter

passado ao estado social, ou mesmo civil, como a manutenção e a possibilidade de

que nesse mesmo mundo haja a aplicação desse sentimento, como um formador de

virtudes sociais; de maneira prática, “[...] que é a generosidade, a demência, a

humanidade, senão a piedade aplicada aos fracos, aos culpados ou à espécie

humana em geral?” (ROUSSEAU, 2007, p. 53). E, “[...] se o amor-próprio é

encontrado e restaurado no estado de natureza, a partir do estado civil, este deve

ser dito como piedade [...]24 (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 334).

Esse sentimento de piedade presente no tanto no homem natural, quanto no

homem social é o que, de certa forma, faz a ligação das pessoas naturais, formando

a dimensão da pessoa física/natural. A piedade funciona como uma “costura” dos

pontos nevrálgicos aqui mencionados, ratificando a existência de uma essência

24 “[...] si l'amour de soi est retrouvé, et restauré dans son état primitif, à partir (et contre) l'etat civil, il faut en dire autant autant de la pitié [...](GOLDSCHMIDT, 1974, p. 334).

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pessoal, enquanto personalidade, presente no humano. É preciso observar que é

essa dimensão de piedade que possibilita a conservação, que dinamiza a

individualidade da espécie, que aprimora o corpo, que enxerga o outro como um

igual em necessidades e buscas, que aguça os sentimentos de manutenção e que

possibilita o reconhecimento da necessidade de sobreviver “[...] formando, por

agregação, um conjunto de forças” (ROUSSEAU, 1973, p. 37). É a piedade que

modera a ação egoísta dos homens e possibilita a conservação; é ela que torna real

o sentimento de coletividade, de preocupação com o todo, que “[...] concorre para a

conservação mútua de toda a espécie” (ROUESSEAU, 2007, p. 54). É a piedade

que traz ao homem o sentimento de comiseração; que aguça a prática da ajuda, do

socorro; a piedade é o que regulamenta a vida em natureza; é ela que inspira o

homem à bondade natural, convencionada sobre a égide do “[...] faze o teu bem com

o menor mal possível a outrem”. É a piedade que mantém acesa a chama da

bondade no coração do homem civil.

Mesmo com a manutenção da piedade e da pessoa física/natural, esse

homem percebe que não é mais possível a sua conservação. As inúmeras

dificuldades que se lhe apresentam, marcam o ponto máximo para a tomada de

atitude, que acontece com a observação dos seus semelhantes. Esse processo de

tomada de consciência somente acontece com a transformação da liberdade natural

em liberdade convencional, como visto anteriormente. Essa transformação não

acontece de maneira simples ou somente simbólica; a transformação obedece a

uma passagem. Tal passagem se refere ao momento exato, munido de

características peculiares, pelo qual o homem passa para o estado social. Em outras

palavras, é a possibilidade de que a pessoa física/natural se transforma na pessoa

moral/social.

2.2 A passagem da pessoa física/natural para a pessoa moral/social

A passagem é marcada por uma sequência de acontecimentos que fazem

com que a personalidade humana seja construída, e a verdadeira essência seja

revelada. Para tanto, é preciso estabelecer seis pontos de passagem, ou a

agregação de cinco características que fazem o homem natural passar a ser social.

São elas: a linguagem, o aprimoramento do espírito, a escravidão, o amor e a moral.

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Sem esses pontos fundamentais, não será possível estabelecer a sociedade civil.

Assim, é preciso passar ao primeiro ponto.

2.2.1 A Linguagem em Rousseau

A linguagem é o ponto fundamental da diferença entre o ser em estado de

natureza e o ser social. Pois “a linguagem era, para Rousseau, um dos fatores que

explicavam a passagem do estado natural ao estado social” (MARTINS, 2009, p.

343). Segundo ele, é graças a linguagem que os homens podem se relacionar com

os semelhantes, traduzindo numa necessidade o ato de comunicar. Essa

comunicação, porém, não se traduz somente da possibilidade da fala; a

comunicação pode ser entendida também como gesto, como símbolo ou mesmo

representação. Pode-se citar como exemplo da comunicação simbólica, as pinturas

rupestres presentes nas cavernas. A representatividade do que se passa e se vive,

torna-se pinturas para aqueles que advêm ou ainda para outros que por ali

passarem. Em outras palavras, a linguagem começa a representar, de maneira

sensível, o pensamento prematuro.

A este primeiro momento seguiu-se outro, quando as ideias começaram a multiplicar-se e se estabeleceu uma comunicação mais próxima entre os homens. Houve, então, a necessidade de procurar um maior número de sinais e, por consequência, uma linguagem mais alargada [...] (MARTINS, 2009, p. 343).

A linguagem aparece em um dado momento, quando os homens começam a

se relacionar, de modo social, como já visto. O contato com outro homem acaba

obrigando o primeiro a expressar emoções e sensações, o que esse o faz por meio

do movimento e da voz; ou seja, ele se utiliza de duas formas primitivas de

linguagem: dos gestos e dos primeiros grunhidos, onde a primeira impressiona mais

do que a segunda.

Em muitos casos, ou mesmo em errôneas interpretações, entende-se que o

homem inventou a linguagem como meio de se expressar, ou de expressar suas

necessidades, vontades e desejos. Por vezes as mais variadas situações em que

ele se encontrava o obrigaram a exprimir o que sentia, ou a comunicar a outros sua

raiva, dor ou mesmo desespero, o que se buscam traduzir como primeiras ações de

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comunicação. Contudo, a linguagem em Rousseau não surge das necessidades

primeiras; ou seja, “[...] há operações mentais que implicam um grau de pensamento

para o qual o homem natural não estava dotado pela Mãe Natureza” (MARTINS,

2009, p. 344).

A linguagem advém da capacidade das paixões desse mesmo homem, que

fazem com que ele se aproxime de seus semelhantes. Em sentido estrito, é o amor,

o ódio, a piedade, a cólera que fazem com que os homens sejam capazes de

expressar as primeiras formas vocais. Mas se o centro das atenções for o ser

natural, é possível observar que a [...] linguagem mais universal, mais enérgica e a

única que de que teve necessidade antes que fosse preciso persuadir homens

reunidos, foi o grito da natureza [...]” (ROUSSEAU, 2007, p. 47).

Mesmo a linguagem sendo oriunda da capacidade moral e das paixões

humanas, a sua contribuição não pode ser menosprezada. A imagem primeira da

comunicação humana, ainda em estado natural, remonta ao homem indo de

encontro com um semelhante; a cena impressiona pela capacidade que se tem de

comunicação. É justamente por tal motivo que a comunicação, através da

linguagem, é anterior a capacidade racional, em grau de importância, devido a

necessidade de se comunicar. É evidente que toda essa linguagem adquirida como

forma de relacionamento, possibilitou o humano a se unir, a unir forças em prol da

sua conservação. Foi a linguagem que transformou os símbolos; que aprimorou o

espírito humano; que possibilitou a reflexão e a expressão do pensamento e das

ideias25.

Dessa junção de ideias, pensamentos, reflexões, símbolos e sons, e a

formação das primeiras sociedades nasceram as línguas. São elas que

possibilitaram o relacionamento e a convivência da família, a proto sociedade. De

certo modo a arte da palavra foi o que facilitou a união dos semelhantes na

formação de seus modos iniciais de convivência. Se por um lado a palavra estimulou

o humano ao pensar, eles tiveram muito mais a “[...] necessidade ainda de saber

25 Adianta-se aqui a visão antropológica ao conceber o humano da forma citada. A leitura se perfaz de argumentos contundentes que demonstram, mesmo que prematuramente, a leitura humana de Rousseau; tal feito é fundamental para o estabelecimento da pessoa.

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pensar para encontrar a arte das palavras” (ROUSSEAU, 2007, p. 46). Sob outro

olhar, é possível que a observação de Rousseau traga mais complicação à definição

da linguagem na vida humana, quando se encontra diante do difícil problema: “[...] o

que foi mais necessário, a sociedade já ligada à instituição das línguas, ou as

línguas já inventadas para o estabelecimento da sociedade” (ROUSSEAU, 2007, p.

50). Fato inegável é a função que a linguagem exerce na composição da realidade

do ser humano. Mesmo não se estabelecendo a ordem da evolução, o certo é que a

linguagem aparece como um momento de virada na disposição da espécie,

possibilitando uma evolução no relacionamento e na manutenção da convivência por

necessidade. Assim, as primeiras sociedades são frutos da realidade da linguagem,

da criação de um idioma comum, de uma simbologia específica, de modos de

relacionamento com significado para além das possibilidades animais. A forma da

palavra ganha espaço no eco selvagem do grunhido.

A princípio, a forma de comunicação original, construída a partir de sons,

mais perto de grunhidos, ou mesmo de simbologias, não traduzem a verdadeira

forma da linguagem do ser social. Contudo, não se pode negar que a linguagem

marca a inserção de outro momento na passagem da pessoa física/natural para a

pessoa moral/social. Essa passagem é a evolução do espírito.

Com a virada da linguagem se estabelecendo na vida do homem, a

dimensão racional começa a se aprimorar. O homem agora comunicante se vê

capaz de aprimorar suas habilidades para além do comportamento natural, e passa

a abarcar a capacidade de perceber seus sentidos. A disposição para a visão, o tato,

a audição, o paladar e o olfato, até então utilizadas de maneira instintiva, passam

agora a ser observados de maneira racional. A inclusão na capacidade humana da

percepção e dos sentidos faz da evolução do espírito uma etapa de fundamental

importância para a passagem da irracionalidade para a racionalidade. Nesse

primeiro momento, a evolução do espírito ainda demonstra a igualdade de evolução

dos homens, deixando claro que, em Rousseau, a medida que o homem se

distancia da natureza, diminui a capacidade dos sentidos; a desigualdade “[...] deve

aumentar na espécie humana pela desigualdade de instituição” (ROUSSEAU, 2007,

p. 58).

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Na formação da sociedade civil, a evolução do espírito provoca não só o

avanço da espécie de maneira positiva. Essa mesma evolução possibilitará o

desenvolvimento de alguns, mas não de todos. A fundação de instituições humanas

provocará uma reviravolta na concepção de homem e na convivência desse com os

demais. O homem civil está destinado, pelo seu comportamento e suas escolhas, a

viver numa realidade de opressão e domínio. Esse mesmo espírito fará com que “[...]

uns dominarão com violência, outros gemerão sujeitos a todos os seus caprichos”

(ROUSSEAU, 2007, p. 58). De maneira que o espírito aprimorado em sociedade fará

do homem, antes independente e despreocupado, um ser dependente e altamente

carente da disposição coletiva para a sua sobrevivência; carência essa que não se

pauta na conservação, mas vai para o campo da subserviência, da escravidão e da

lei do mais forte.

2.2.2 A evolução do espírito humano

O grande ponto da evolução do espírito humano foi a inclusão da

racionalidade no comportamento humano. A relação entre os humanos, e esses com

o meio, acabou por gerar a observação de determinadas situações, comparações e

disparidades. Passou-se a perceber que havia animais maiores, mais fortes, que

enxergavam à noite, que sentiam o cheiro; em outro momento, observou-se que

havia semelhanças com os outros, com as fêmeas, por exemplo, e que as

necessidades e situações em que eles se encontravam pareciam semelhantes. Essa

análise passou a ser um diferencial para a sobrevivência e para a construção da

sociedade em si. Agora, antes de tomar qualquer ação, ou mesmo realizar

determinada tarefa, havia uma preocupação com a análise da situação, do meio, do

contexto e do outro. Obviamente a superioridade do homem sobre os demais

animais foi utilizada como meio pelo qual se buscou sempre evoluir cada vez mais:

ser mais rápido, mais ágil, mais esperto e, consequentemente, “[...] tornou-se o

senhor de uns e o flagelo de outros” (ROUSSEAU, 2007, p. 63). Essa mesma

capacidade de percepção fez do homem um ser voltado para o amor próprio. Até

certo ponto ele percebia a necessidade de conviver, ou de contar com o auxílio dos

seus semelhantes, para a satisfação de suas vontades. Quando essas já estavam

satisfeitas, ele simplesmente deixava de se preocupar com o coletivo.

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O aprimoramento do espírito não parava por ai. “[...] Quanto mais o espírito

se esclarecia, tanto mais a indústria se aperfeiçoava” (ROUSSEAU, 2007, p. 64). A

evolução da espécie provocou o surgimento de benesses para a geração de um

conforto desse mesmo homem. A possibilidade de montar as primeiras ferramentas

para auxiliar no trabalho, na lida diária; a formação de cabanas, do barro, do

machado, trouxe mais qualidade de vida e menos esforço a esse homem social.

A construção das primeiras formas de habitação agregou à pessoa

física/natural, um comportamento social voltado para a disposição de um amor de si,

uma disposição puramente moral/social. Pela primeira vez se “[...] introduziu uma

espécie de propriedade” (ROUSSEAU, 2007, p. 64), que obrigou a muitos daqueles

que se encontravam vivendo nesse coletivo a se adaptar, ou mesmo provocar as

primeiras brigas e rixas, os primeiros combates entre aqueles que se colocavam na

posição de ameaça aos donos das cabanas. Por outro lado, a percepção fez surgir a

dimensão da família; nela foi possível ver eclodir “[...] os mais doces sentimentos

conhecidos dos homens: o amor conjugal e o amor paternal” (ROUSSEAU, 2007, p.

64). Esses sentimentos humanos foram se aperfeiçoando, as ideias e os hábitos

foram se exercitando, o que possibilitou uma domesticação do gênero, o aumento

das ligações e dos laços de unidade entre os homens.

Entre os principais hábitos, formados a partir da pessoa espiritual,

encontram-se o canto e a dança; eles passam a ser a forma como os homens irão

se expressar, voltados para um divertimento e para determinada ociosidade, visto

que a vida em sociedade já possibilitava a tranquilidade da segurança, a certeza do

alimento e do repouso. Contudo, essa ação tipicamente saudável passa a ser

colocada como um empecilho para as relações sociais; a partir delas é possível ver

surgir “[...] o primeiro passo para a desigualdade e para o vício” (ROUSSEAU, 2007,

p. 66). A partir desse momento, o espírito humano conhece a consideração; por

conta da observação dos demais humanos, muitos passam a admirar e a contemplar

outros, tomando por esse determinado apreço.

Esse comportamento se apresenta como uma distorção da pessoa

física/natural, a partir do momento em que se passa a fazer escolhas entre os

semelhantes, e logo se estará promovendo a ira e a discórdia por conta dessas

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mesmas escolhas. Infelizmente a dimensão da evolução do espírito nem sempre

levou o homem a sua evolução enquanto espécie em comum. Por vezes é possível

perceber Rousseau afirmar que o homem em estado natural, mesmo com todas as

limitações e dificuldades, se apresenta em maior estado de paz e tranquilidade do

que o homem civil; e se não fosse pela piedade, há muito, os homens já teriam se

matado por completo. Dessa forma, fica claro como o sentimento de piedade se

torna a essência do humano para o pensamento de Rousseau. Mesmo com toda a

capacidade de raciocínio, é um sentimento natural que promove a manutenção da

ordem e da espécie. Essa situação de opressão e prisão, representada pela

dependência do outro, pelo domínio do mais forte, fará com que se chegue a outro

ponto da passagem para a pessoa moral/social: a escravidão e o amor. Aqui, quer-

se mostrar que ambos acabam sendo os diretos responsáveis, no pensamento de

Rousseau, por promover a distinção entre o homem selvagem e o homem social.

Assim, será preciso esclarecer cada um dos pontos, para se chegar a tratar dessa

dimensão pessoal moral/social.

2.2.3 A escravidão

Quanto à escravidão, vê-se que ela se torna uma realidade no âmbito

social, a partir do momento em que se analisa, por um lado, a limitação humana

(pensada fisicamente), e por outro, quando o comportamento individual supera a

vontade geral, por conta do amor de si. Em estado de natureza a limitação física, e a

dinâmica da liberdade irrestrita, coloca o homem limitado pela capacidade física;

entretanto, visto que o homem selvagem não é capaz de distinguir o que vem a ser

escravidão, ou mesmo subserviência, a escravidão do estado social é aquela que se

dá por conta da opressão e da perda da individualidade e da autonomia do estado

natural; de maneira que “[...] se me expulsam de uma árvore, estou livre para ir para

a outra; se me atormentam em um lugar, quem me impedirá de passar para outro?”

(ROUSSEAU, 2007, p. 59). Essa realidade que é a liberdade natural – não uma

liberdade verdadeira [essa que Rousseau chama de liberdade convencional] mas

uma falsa ideia de liberdade – possibilita ao homem selvagem negar qualquer forma

de opressão, pelo fato de que ele não se faz carente das necessidades sociais;

assim, ele se encontra satisfeito com tudo aquilo que o mundo natural lhe serve. A

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relação de escravidão não se sustenta pelo simples fato de que o modo de se

relacionar é o modo natual.

Diferentemente dos aspectos naturais, a escravidão se torna um

comportamento do homem social, pelo simples fato de ele ser dependente; a

escravidão é formada “[...] da dependência mútua dos homens e das necessidades

recíprocas que os unem” (ROUSSEAU, 2007, p. 59). Assim, a ela encontra aporte a

partir da realidade social, na passagem para a vida coletiva. Isso se torna

perceptível quando Rousseau estabelece a lógica da evolução do espírito humano

que pode, em determinado grau submeter uns aos caprichos de outros homens. Em

certo sentido a dinâmica do amor do bem-estar, impera a prática de um amor de si26

do homem social, foi a grande responsável pela eclosão da escravidão como um

comportamento do homem civil.

Há outro aspecto a respeito da escravidão que precisa ser mencionado, e

que, por vezes, acaba sendo deixado de lado quando se fala desse comportamento

no pensamento rousseauista: a escravidão social aniquilante. Nela não se pensa

somente na capacidade de um homem subjugar outro, mas sim na necessidade de

que o homem, uma vez na realidade coletiva, tem de estar nesse meio. Suas

carências e necessidades comuns fazem dele um escravo do mundo social, de

modo que sua essência natural acaba sendo ofuscada pela lógica civil. A pessoa

física/natural dá lugar a pessoa moral/social. Essa estreita relação que se forma no

seio social passa a escravizar não só os servos, mas até aquele que se torna

senhor, de modo que “[...] rico, tem necessidade dos seus serviços, pobre, tem

necessidade de seu auxílio” (ROUSSEAU, 2007, p. 71). Toda essa estrutura social

de escravidão cria um comportamento ácido e nocivo no ser natural; as dimensões

de sua pessoa são substituídas por composições sociais que o transformam muito

mais num animal, no quesito comportamento, atitudes e modos, do que o homem

selvagem em que desse modo antes se encontrava. Surgem sentimentos que

distorcem a manutenção da ordem social; a “[...] ambição devoradora, o ardor de

26 O termo amor de si apresenta um comportamento egoísta do humano. No texto opta-se pela não utilização do mesmo por ser anacrônico, e por se correr um risco conceitual, visto que Rousseau não o utiliza, e nem sequer o conhece.

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fazer fortuna relativa, [...] inspira os homens uma negra tendência a se prejudicarem

mutuamente” (ROUSSEAU, 2007, p. 71).

Esse sentimento de poder que irrompe o coração do homem social e dá-lhe

a falsa sensação de liberdade, acaba por, na verdade, deixá-lo escravo das

situações e da necessidade do social; no desejo de sobrepor sua vontade particular

por sobre a vontade geral, ele provoca a desigualdade na sociedade, e do mesmo

modo, gera, com essa atitude o “[...] primeiro efeito da propriedade” (ROUSSEAU,

2007, p. 71). Não satisfeitos com a geração de tal feito, muitos homens se

colocaram no lugar de oprimir e sufocar seus semelhantes, em prol de alcançar suas

riquezas, seus objetivos, suas metas pessoais. O que se torna ainda mais absurdo é

o fato de que, mesmo percebendo tal situação, muitos aceitam o jugo de outros,

ricos e poderosos, em troca de um tratamento que nem sequer o estado de natureza

seria parecido. O que por um lado trouxe ao homem selvagem condições de

superação e qualidade de vida, por outro levará o homem social a sua ruína.

Em síntese, a passagem do ser natural para o ser social, sob a ótica da

pessoa em Rousseau, pode ser representada da seguinte forma: “[...] a origem da

sociedade e das leis, que deram novos entraves ao fraco e novas forças ao rico,

destruíram sem remédio a liberdade natural, fixaram para sempre a lei da

propriedade e da desigualdade” (ROUSSEAU, 2007, p. 73).

É fato que não se está negando os avanços da vida social; é preciso

ressaltar que tal análise, defendida na questão da liberdade, se apresenta aqui como

uma reflexão da pessoa no pensamento rousseauista. Dessa forma, o intuito é

promover a geração da pessoa em Rousseau, provando que essa sempre se

encontrou de maneira efetiva ao longo de toda a definição do ser humano, seja

selvagem, seja social. É justamente por tal feito, o de se manter a ordem e se buscar

reorganizar a vida social, resignificar o ser humano, que a proposta deste trabalho é

mostrar dois elementos que permanecem ao longo do pensamento de Rousseau,

durante toda a sua reflexão: a piedade – que já foi analisada aqui – e o segundo é o

amor, que se tratará de agora em diante.

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2.2.4 O amor

O amor27 para Rousseau é muito mais uma essência do humano – como a

piedade – do que propriamente um sentido à parte, gerado por alguma disposição

de âmbito natural ou social. Em Rousseau, o amor assume uma dupla função: física

e moral. É esse mesmo amor que será responsável por manter o funcionamento, ao

lado da piedade, do ordenamento natural e do social.

A dinâmica do amor assume essa dupla dimensão pelo fato de que essa

passagem das pessoas é marcada por inúmeras situações, permanecendo apenas

essas duas em ambas as pessoas. O amor por sua vez é classificado em três

modos, a saber: o amor-próprio, o amor de si mesmo e o amor ao bem comum. O

amor de si mesmo pode ser definido como “[...] um sentimento natural que leva todo

animal a velar por sua própria conservação, e que, dirigido ao homem pela razão e

modificado pela piedade, produz a humanidade e a virtude” (ROUSSEAU, 2007, p.

118). Por sua vez, o amor-próprio “[...] é apenas um sentimento relativo, fictício e

nascido na sociedade, que leva cada indivíduo a fazer mais caso de si do que de

qualquer outro, que inspira aos homens todos os males que se fazem mutuamente

[...]” (ROUSSEAU, 2007, p. 118). O amor ao bem comum é aquele presente na

sociedade, onde a vontade geral se sobrepõe, onde a busca dos homens se vê

sustentada na prática coletiva que garante o bem comum, baseando na conquista

fundamental da liberdade, bens e vida.

Se por um lado o amor de si pode ser classificado como um amor menos

agressivo do que o amor-próprio, o fato é que não se pode deixar de observar que a

essência do amor permanece a mesma; ou seja, o que se modifica é o modo como

esse amor se relacionará e será motivado pelo mesmo homem ao longo de suas

etapas de evolução. O amor permanece intocado, apoiando na piedade para a sua

execução. A piedade é a direta responsável pela moderação do amor aplicado em

ambas pessoas, tanto na física/natural, quanto na moral/social. A piedade “[...] é um

sentimento natural que, moderando em cada indivíduo a atividade do amor de si

mesmo, concorre para a conservação mútua de toda a espécie” (ROUSSEAU, 2007,

27 O amor em Rousseau é algo coletivo. O amor é o sentimento do humano pela sociedade em que vive.

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p. 54). Ao passo que essa mesma piedade se torna ainda um sentimento “[...]

desenvolvido no homem civilizado” (ROUSSEAU, 2007, p. 54).

A grande queda do amor se dá diante das paixões; enquanto parte física

esse amor se encontrava no homem selvagem, somente no impulso que o levava

para o sexo oposto, onde “[...] cada um espera pacificamente o impulso da natureza,

a ele se entregando sem escolha, com mais prazer do que furor; e, satisfeita a

necessidade, todo desejo se extingue” (ROUSSEAU, 2007, p. 56); enquanto que o

amor no ambiente social se une as paixões, promovendo “[...] esse ardor impetuoso

que tantas vezes o torna funesto aos homens” (ROUSSEAU, 2007, p. 56).

Contudo, esse mesmo amor que se apresenta como característica da vida

em sociedade como algo funesto e desprezível, nem sempre é entendido dessa

forma; em Rousseau, quando esse amor se une a piedade como forma de

manutenção dos preceitos naturais e sociais, ele permanece como único meio pelo

qual se vê esse mesmo homem ser direcionado. Se por um lado é esse amor natural

que direciona o homem selvagem para a conservação da espécie, buscando a

fêmea para a reprodução, é esse mesmo amor que direciona o comportamento

moral do homem social, o amor ao bem comum. Mesmo sendo ele capaz de

promover análises e comparações, ou mesmo transformar o amor em motivo para a

guerra, é graças a esse mesmo amor que a dinâmica da conservação permanece na

vida social, dando margem para a manutenção do homem social, mantendo vivos os

mais nobres dos amores: o paternal e o familiar. Assim, a dimensão do amor,

mesmo como uma das passagens da pessoa, se torna uma dinâmica que estava

presente antes, e que permanece após a passagem para a vida social.

O amor concebido como um contraponto existente nas duas formas de

conceber a pessoa, tanto natural quanto social, se alia à piedade – que existe como

um comportamento do homem selvagem e do homem social – e passa a regular a

lida do homem social. É evidente que o homem selvagem, desprovido de

capacidade racional, não possuía a habilidade de compreender como esse mesmo

amor fazia parte de sua vida. Como um animal, suas ações eram frutos de uma

essência instintiva, que em nada se assemelha ao comportamento social, a não ser

pela necessidade de se reproduzir; o que, aliás, em muitas das vezes, fica evidente

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que a pessoa física/natural permanece latente na pessoa moral/social,

principalmente ao se tomar os crimes cometidos em sociedade, como por exemplo,

os crimes passionais, que são a maioria dentre as estatísticas. Dessa forma, esse

mesmo amor que pode, por um lado, orientar e manter a ordem social, por outro,

pode promover a desordem e modificar as ações desse homem social. A grande

questão aqui, se perfaz de uma análise mais criteriosa: a moral. É preciso ressaltar

que a moral é uma característica da pessoa moral/social; na verdade, muito mais do

que característica, se apresenta como centro da mudança. Entretanto, antes de se

compreender qual a influência que essa mesma moral vai exercer no âmbito social

e, consequentemente, de que maneira ela modifica o estado natural, é preciso se

definir o significado dessa moral, o modo como ela se apresenta, e de que maneira

Rousseau no segundo Discurso.

2.2.5 A moral pessoal

Em primeiro lugar, é preciso compreender que a moral é a ação que

modifica o comportamento, e que por sua vez, ao lado da piedade, determinava as

ações do homem selvagem. A partir da convivência social, a natureza humana

acaba sendo modificada pela necessidade de implantação da sociedade civil, o que

leva, necessariamente, ao surgimento da dimensão moral, e, em sequência, as leis.

A superação da natureza faz com que a dimensão piedosa do humano acabe

suprimida pela dimensão social, e o ordenamento acabe sujeito a uma orientação

normativa: leis. Dessa forma, o homem passa a ser formado pela sociedade em que

vive, transformando seus comportamentos naturais, ou mesmo sua liberdade natural

(entendida como liberdade de ação), que passa a ser compreendida como liberdade

convencional. Assim, o que há é a transformação da natureza “livre” em uma

sociedade tutelada, são os atos humanos que passam a ser compreendidos e

analisados pela moral, dequalificando a vertente natural. Pois

“[...] Rousseau observa desde o início que os homens, em estado de natureza, não tinham vícios nem virtudes, e se recusa a estabelecer a relação deles com uma moral postulada” 28 [T.A.] (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 308).

28 “Rousseau constate, dès le départ, que les hommes, dans ce état, n'avaient ni vices, ni vertus et qu'il refuse, entre eux, cette relation morale qu'avait postulée” (GOLDSCHMIDT, 1974, p. 308).

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Assim, o primeiro passo a ser tomado é desvincular as ações do homem

selvagem da vertente natural, filiá-las ao convívio social, onde não há mais espaço

para a prática irracional, que passa a ser substituída pela capacidade reflexiva. E

mesmo que o pensamento antigo sustente a idéia de que o elemento gerador da

convivência social estaria nos valores coletivos, não podemos nos esquecer dos

fatores históricos que, em sua essência são construídos pelos indivíduos, onde “[...]

tudo que é histórico, deve supor-se irremediavelmente humano” (LEVY, 2004, p. 51),

perfazendo a lógica do ser humano como centro do sistema social.

Para que a satisfação social aconteça há a necessidade de um fator motor

que busque condicionar o padrão de ordenamento social. Desse modo, aparece aqui

a necessidade de uma moral, como aquela que abrirá margem para uma ação

coletiva, pautada não mais na areté, mas sim no nomos. Portanto, a moral acaba

sendo a diretamente responsável por uma padronização das ações sociais,

inviabilizando que a ação natural se mantenha. Com a adeuqação da natureza

humana à possibilidade da escolha comum, de liberdade condicionada, e não mais

de liberdade autônoma, a vida do homem se vê ampliada em todos os aspectos.

Nascido para ser animal o ser humano opta por uma convivência entre pares que

acaba deixando com que suas escolhas sejam feitas em prol da administração da

vida social [alienação total].

A partir do momento em que a moral social aparece, a natureza se coloca

em segundo plano, não desaparece por completo, pois se afirma com a presença da

piedade, fazendo com que ecloda uma natureza social, como parte da nova

essência adquirida. É justamente por esse motivo que há a necessidade de uma

moral que apareça não como um ato subjetivo apoiado em valores, mas represente

uma adaptação individual, um condicionamento ao sistema social, sujeitando sua

vontade particular a vontade geral. Nessa concepção supera-se os ideais que levam

a compreensão de um homem natural e, consequentemente, um padrão de ação

que prime pelos moldes da conduta social. Dentro dessa ótica vem à tona a

dimensão do juízo moral, como aquele composto de valores sociais, reunidos e

defendidos por alguém em particular, ou por determinado grupo. Partindo da

compreensão de que tais juízos morais são determinados por alguém, ou por um

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grupo, e esses tendo em suas formação características mutáveis, logo esses

mesmos juízos se modificam, colocando-se na posição de acompanhar os possíveis

avanços ou retrocessos de seus idealizadores e defensores. Tal compreensão moral

pode evoluir ou involuir, mas os juízos morais permanecem como necessários à

manutenção de determinado sistema social, sendo indispensáveis para a

conservação da ordem. O grande porém se encontra em sua explicação; pois os

juízos não podem ser explicados, porque expressam e representam atitudes

emocionais que só se justificam através das mesmas emoções compositoras sendo,

desse modo, pertencentes ao homem social. Ao não observar preceitos e moldes

racionais, os juízos deixam de lado a dimensão da reflexão prática e passam a

assumir um papel tipicamente sensibilizador, fundando suas ações em preceitos

caracteristicamente cognoscitivos.

Mesmo desempenhando uma função cognoscitiva, os juízos morais são de

cunho racional; e mesmo sem uma explicação devidamente racional, eles devem

passar pela consciência pessoal, adequando suas ações e condutas para esse novo

meio em que se encontram. Na sociedade moderna, por exemplo, a moral social

acaba sendo assumida sem maiores questionamentos; como consequência de tal

feito, hoje, ela [a moral], se vê acuada e obrigada a contínuas explicações por conta

de suas inúmeras adequações às evoluções sociais. Numa sociedade em que a

moral ordena o comportamento, ela se converte em puro juízo de valor; e com isso,

aparece no meio social uma ética que se baseia tipicamente na moral: a ética

relativista. Isso se dá pelo fato de que a busca de uma padronização das ações

individuais, que supera a construção original, leva a conversão dos juízos morais

numa reprodução de ações permanentes que represente os ditames morais,

excluindo a vertente ética de seu meio. Dessa forma, os juízos morais obedecem as

condutas de valor individual, que por sua vez, acabam sujeitos ao contexto social em

que se esta inserido.

Assumindo a ideia de que haja um juízo moral relativo, assume-se que em

cada sociedade existam juízos normativos que, mesmo distintos, têm a mesma

validade. Pode-se citar como exemplo a família e sua constituição como proto-

modelo de sociedade. Cada família, em seu tempo, assume valores e normas que

passam a modificar o ambiente em que estão inseridas. Como modelo universal de

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relacionamento inicial do humano, a família eclode como centro mantenedor dos

valores morais e como construtora dos juízos de valor; é a esse “[...] juízo imperativo

casuístico da consciência, em dependência da apreensão racional da moralidade”

(MESSNER, 1960, p. 44) que dá-se o nome de escolha. É justamente em tal escolha

que se concebe a manutenção do sistema moral, apoiado na ideia de juízo de valor

que parte da liberdade social. É nesse ponto que se apresenta o declínio do coletivo.

Entre outras, a parte central da manutenção dessa dinâmica de pessoa se sustenta

sobre a concepção da liberdade, das paixões, da razão, do corpo social, da família e

da legislação; assim, será preciso analisar e discutir cada um desses pontos como

meio pelos quais se chegará a tratar da diferença da pessoa humana para a pessoa

civil.

O homem em estado natural é um ser ausente de condição racional, livre de

qualquer influência moral. A sua passagem para o mundo social inaugura não só

essa mudança, mas também o senso de justiça; a inversão do puro instinto animal

para o comportamento racional prático. Se antes ele era amoral, agora ele se torna

justo. Não quer dizer, obviamente, que o homem natural fosse um ser sem

condições de vida, pelo contrário, havia uma vida limitada. Rousseau vai além e

traduz a passagem do estado natural para o social, em agregação da concepção e

da ação justa. Contudo, o fazer justiça só se torna possível por conta da reunião de

três pontos: liberdade convencional, vontade geral e moral. Assim, para que haja

uma ação realmente justa, deve-se conceber a dimensão coletiva como aquela que

garantirá os direitos e os deveres. De certa forma, percebe-se a mudança da

concepção de pessoa; da pessoa individual, para a pessoa social e igualitária. É por

isso que a vida em sociedade leva o homem a concepção racional, sendo a razão o

corpo coletivo, a vontade geral.

2.3 A pessoa moral/social

No capítulo VIII do Contrato, Rousseau busca diferenciar o ser em estado de

natureza do estado civil. Ainda nesse capítulo, ainda no primeiro parágrafo, após

demarcar a ação da mudança na vida do humano, ele começa a traduzir os

benefícios que o estado civil trás ao indivíduo. A evolução do ser humano, que ao se

colocar os dois momentos do mesmo homem em comparação, não seria possível

acreditar que se trataria da mesma pessoa. É preciso observar que mesmo com a

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vida social garantindo benefícios a esse ser, ele cometerá abusos – por motivos já

citados – o que o levará de volta às origens naturais e, consequentemente, ao modo

simplório no qual se encontrava.

Comparado com o homem vivendo no estado natural da sociedade, o homem vivendo em um estado de natureza se rebaixa para um nível inferior, quase ao nível da animalidade, em relação aos direitos civis, pois se comporta primeiramento como um ser livre e feliz29 [T.A.] (DERATHÉ, 1984, p. 111).

Contrapondo a utilização do verbo “perder” empregado pelo autor, o homem

não perde sua liberdade natural; ele a renuncia em prol da liberdade convencional.

O verbo perder, em determinada leitura, dá a entender que lhe foi tomada a

liberdade, fato que não ocorre. Em segundo, esse direito ilimitado do homem, só se

deu a conhecer graças a vida em sociedade; pois se do contrário fosse, ele nunca

teria chegado a conceber algo assim, pois não teria conhecimento racional. A

dimensão da liberdade civil, assumida pelo homem em junção com a vida social, faz

com que ele tenha garantido todas as suas vontades, assumidas pela vontade geral.

O que aparece de novidade nessa análise é a propriedade. Essa propriedade passa

a ser garantida pela união das forças, como já visto, mas se torna legitimada pelo

direito de ocupação, que aqui aparece. Essa ação, contudo, gerará desigualdades,

citadas por Rousseau no segundo Discurso, que poderá ser sanada com as devidas

observações ao Contrato social.

Toda essa disposição das leis, como aquelas que evitarão os exageros

cometidos pelos seres sociais, acaba direcionada à liberdade moral. Terceira

concepção de liberdade tratada por Rousseau é ela que possibilita ao homem se

reconhecer como livre, soberano, compositor do Estado, e mais que isso,

reconhecer a pessoa social, e nessa, a dimensão do outro, mesmo que ele não

chegue a falar dessa forma. De maneira que as paixões naturais levam à prisão; as

leis, à liberdade. Assim, é reconhecido que em estado social é que os homens são

livres, possuem propriedades, têm direitos e vontades garantidos, traduzidos pela

29 “Comparé à l'homme naturel vivant dans l'état de societé, l'homme vivant à l'état de nature se trouve rabaissé à un niveau inférieur, presque au niveau de l'animalité, alors que, comparé à l'homme civil, il apparaissait avant tout comme un être heureux et libre” (DERATHÉ, 1984, p. 111).

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vontade social. Por tal compreensão que se chega a conceber a ideia da pessoa

moral/social.

Uma das principais características da pessoa moral/social é a possibilidade

de escolha. Não será necessário aqui ressaltar a importância da liberdade, pois essa

já fora tratada num primeiro momento. Dessa forma, o objetivo principal em se

pensar a pessoa em Rousseau, em especial a pessoa moral/social, reside no fato de

que a concepção de humano vai muito além do que tradicionalmente se concebe.

Ela se funda muito mais num conjunto de situações e fatores que traduzem a

dinâmica da formação do ser humano em sociedade, do que propriamente uma

imposição meramente natural; ou seja, há no homem natureza e sociedade.

O homem não perde sua essência natural – o ser bom. A natureza humana

se vê modificada pelas situações externas, como no caso da estátua de Glauco,

onde o que se modifica é a parte exterior da estátua. O mal vem de fora e

permanece fora; o que se apresenta é a degeneração humana por conta das

influencias das paixões e dos vícios, mas não a destruição.

A aparência não nos mostra o que é o homem, só encobre sua natureza original. O processo social reforça a contradição entre aparência e realidade, impedindo-nos o conhecimento do verdadeiro homem. [...] Além disso, a situação se complica porque o coberto pela máscara não é a autentica natureza humana, mas o ser que tem sido corrompido e desfigurado pelo desenvolvimento social (GRIMSLEY, 1988, p. 29).

É a presença necessária do contrato. O contrato social passa a vigorar como

solução para as relações humanas, estabelecidas a partir da junção de forças e da

garantia da liberdade, mantidas pela lei. A existência humana agora se verte, de

maneira voluntária, para estabelecer seus parâmetros na lógica da necessidade do

todo, e não do particular. A quebra desse acordo implica na volta às origens, a força

individual e a não existência do coletivo; suprime-se a renúncia da liberdade natural,

em prol da convencional, e se instaura um retrocesso ao estado de natureza.

Dentro da lógica da vida social, cada um dos homens coloca seus direitos

nas mãos do coletivo, participando de suas decisões. De certa forma, a vida natural

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acaba “controlada” pelo coletivo. Dispõe-se de sua autoridade pessoal e a transfere

para a vontade coletiva – geral – mantendo a participação nas decisões sociais

através da elaboração das leis. Interessante se faz perceber que não há a anulação

da pessoa, do ser, pelo contrário, permanece reconhecida a individualidade,

garante-se a participação na vontade geral e, se por algum motivo, houver vontade

de reaver os seus direitos naturais, deve ser afastado do convívio social. Com essa

leitura, Rousseau assegura um princípio essencial para a manutenção da vida em

sociedade: a igualdade. Todo esse processo só pode ser garantido se todos os

membros que compuserem o coletivo tiverem acesso aos bens, tiverem os mesmos

direitos; de maneira geral, aparece aqui a dimensão da moral coletiva, que se apóia

no trato da igualdade.

Essa junção do coletivo, ou ainda, o modo como se organiza, passa a ser

concebido como Estado, autoridade e potência, sendo para cada um destinadas

características. Curioso perceber que indiretamente, ou mesmo diretamente,

Rousseau traduz as formas de relacionamento humano ao se falar da formação

social. Entre outros, ele estabelece formas de relação natural e formas de relação

social. Em estado natural, o homem se relacionava com tendências animais, com

intenção de sanar suas necessidades animais. Já no estado social, a relação se

estabelece para além dessas necessidades, e insere os fundamentos da sociedade:

igualdade e liberdade. Na linha de que não existe mais o individual, as ações se

orientam para o nós (Estado), as Leis (Soberano) e os outros (Sociedade). O fato de

que não mais existe somente o eu, se reforça com a nomenclatura utilizada para se

referir a realidade social. É preciso notar que mesmo diante da coletividade, figura a

necessidade de que se reconheça o indivíduo com suas vontades, que caminham

como vontade geral. Para tanto, Rousseau classifica essa relação em três

momentos: Povo (coletivo), Cidadãos (particular, participantes do poder soberano) e

Súditos (sujeitos a lei do Estado). Assim, a dimensão social ganha respaldo, onde

existe o poder soberano, como aquele que garante a liberdade, a moral, a igualdade,

a racionalidade, enfim, o funcionamento do coletivo a partir da possibilidade da

vontade geral.

Ao contrário do animal, o homem é capaz de escolher através da sua

liberdade. Nos dizeres de Rousseau, o homem escolhe “[...] por um ato de liberdade”

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(ROUSSEAU, 2007, p. 41). Enquanto o animal não porta essa capacidade, sendo-

lhe vetada a possibilidade de “[...] afastar-se da regra que lhe é prescrita”

(ROUSSEAU, 2007, p. 41), o homem se afirma e constitui pela mesma possibilidade

de escolha garantida pela liberdade. Em Rousseau não há a formação social de

maneira imposta, mas sim através de uma “[...] sociedade organizada de forma

consciente e aceita voluntariamente” (MACHADO, 1973, p. 29), através do contrato.

O projeto desse contrato se baseia no fato de que o indivíduo deve

reconhecer a sua dupla dimensão: a particular e a coletiva. Se esse indivíduo não se

reconhece partícipe dessa realidade, a lógica do acordo é inviabilizada. E como

parte desse processo há alguns passos que precisam ser executados:

primeiramente perceber que a força individual já não o leva a sobrevivência; para

tanto, é preciso que essa se uma a outras e forme o coletivo social. Em segundo

lugar, deve-se tomar a liberdade natural – limitada por conta de todos os aspectos

que foram mencionados anteriormente – renunciá-la, e assumir a liberdade

convencional, trazida pelo acordo. Nessa liberdade, não se pensa em suprimir a

personalidade do indivíduo, mas a converte em uma necessidade para a efetivação

do contrato. Dessa forma o indivíduo chega a participar da soberania e, ao mesmo

tempo, do Estado. Agindo dessa forma, o corpo social se torna um, uma pessoa

moral. A sociedade se torna a fundadora e a curadora da moral e do direito, e toda

ação será definida a partir da pessoa social, de cada membro do Estado.

A garantia da manutenção da liberdade individual no soberano é a condição

para que o acordo contrato se sustente. Contudo, essa liberdade muitas vezes é

concebida como fazer a sua vontade ser cumprida, a qualquer custo; a questão é

inversamente disposta. A vontade individual se torna a vontade geral, sem que se

desapareça; sendo que para a sociedade não pode haver a vontade individual que

supere a vontade geral. Essa associação garante aos membros soberanos

[indivíduos] poder para criar as leis, possibilitando ao Estado, um caminho de

ordenação social. Com isso os interesses particulares são garantidos no coletivo, e

ao mesmo tempo, a segurança social passa a ser garantida, partindo da

manutenção da liberdade.

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Um ponto curioso na reflexão de Rousseau é esse quando ele vai tratar das

vontades individuais. De certa forma, Rousseau passa a encarar a possibilidade da

existência – segundo essa interpretação – da vontade individual. Em suma, parece

que o indivíduo, por vezes controlado pela razão e pela moral social, acaba, em

dado momento, cedendo aos preceitos naturais (leia-se volta à liberdade natural). O

cidadão acaba tentado a cumprir a suas vontades sobre a vontade geral. Nesse

movimento, ele apóia na sua independência de ser, ser em estado social, e afirma a

dimensão individual, se colocando, automaticamente, fora do Estado.

Em sua concepção – curiosamente possibilitada pela razão obtida no seio

social – esse humano começa a renegar o acordo, passa a acreditar que esse atinge

a sua dimensão individual, sob pena de perda de suas vontades e benefícios,

supostamente encontrados em natureza, pela aceitação da vontade geral. Ao se

analisar a questão da moral, sob a ótica do seu postulador o Estado, reconhecido

por Rousseau, percebe-se que esse cidadão, pela sua escolha, participa dos

benefícios da sociedade, do contrato, sem, contudo, cumprir suas obrigações como

tal. Em outras palavras, ele acaba assumindo a liberdade natural como superior a

liberdade convencional e a liberdade moral; é o que a pouco se disse: a vontade

natural sobrepõe a vontade geral e, logo, a vontade particular. De toda essa ação

brotará, como diz o contratualista, “[...] a ruína do corpo político” por conta da

inversão da igualdade em injustiça; o que leva a conclusão de que o indivíduo em

estado natural tem um comportamento individual do amor de si.

A garantia do funcionamento da sociedade, do estabelecimento do corpo

social, depende do pacto social, gerador das leis. A elas compete a obrigação de

regular as forças sociais, agora podendo punir aquele que não cumprir com sua

parte no contrato. Em outras palavras, o corpo social levará o indivíduo a manter a

sua liberdade, a liberdade convencional, um ser livre, por uma questão de

sobrevivência, escolha e por conta da manutenção da vontade coletiva, visto que a

liberdade natural fora renunciada pelo acordo. Se houver a insistência do indivíduo

para sair do corpo social, ele cairá na dependência de outrem, não garantindo o

funcionamento do corpo social, fugindo da pátria; essa que honra os compromissos

civis, o que se chama de política. A importância do corpo social é tamanha, pois

apresenta um modo de subsistência do homem, bem como a manutenção da ordem

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para a conservação da espécie. Esse corpo social aparece como contraposição ao

corpo natural; ou seja, inúmeras são as necessidades humanas que levam a

sobreposição de um pelo outro. Diz-se sobreposição pelo fato de que o corpo natural

não deixa de existir com o corpo social, mas sim, o segundo acaba por suprimir, por

convenção, o primeiro.

Ao corpo social o homem deve sua vida e suas ações; pois é graças a ele

que há a superação dos principais problemas encontrados no estado de natureza.

Pode-se citar como exemplo, as ameaças dos inimigos, a ampliação da capacidade

defensiva, a sobrevivência pela alimentação, a conservação da espécie pela

reprodução, a facilidade de relacionamento com o estabelecimento de costumes e

comportamentos coletivos, enfim, inúmeras são as vantagens trazidas pelo corpo

social. É evidente que ao se fazer uma comparação com o indivíduo natural, não se

pode esquecer os avanços tecnológicos que se encontram em sociedade, o que

facilitou a vida do homem. Contudo, há em Rousseau, um lado negativo ao se

pensar no corpo social. Com o avanço das tecnologias, o homem acaba se

sujeitando as benesses das máquinas e se atrofiando enquanto ser independente.

Com isso, as relações entre pares se agudizam no sentido de que começam a existir

situações em que a disputa aparece como caminho para a resolução dos problemas

e para a superação de situações de cunho natural, ou seja, “[...] quanto mais o

espírito se esclarecia tanto mais a indústria se aperfeiçoava” (ROUSSEAU, 2007, p.

64).

Com o passar do tempo, o homem social passou a descobrir possibilidade

de aprimoramento de sua espécie. Equipamentos e ferramentas, bem como a lida

com a matéria prima natural, foram sendo desenvolvidos e aperfeiçoados, e,

consequentemente, os homens se juntaram nas primeiras formas de família,

distintas por conta de seus hábitos. A família, entendida como a proto sociedade,

marca o diferencial para a formação da pessoa em Rousseau. Como parte da

composição da pessoa moral/social, a família passa a ser o núcleo do corpo social,

sendo a primeira responsável pela existência das propriedades individuais, e a

formadora dos preceitos morais iniciais.

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Essa posição da família em Rousseau apresenta uma distinção quando se

compara o Contrato e o segundo Discurso. No primeiro, o autor apresenta a família

como “a mais antiga de todas as sociedades, e a única natural” (ROUSSEAU, 1973,

p. 29); no segundo Discurso Rousseau aponta que “cada família se torna uma

pequena sociedade tanto mais unida quanto o apego recíproco e a liberdade eram

seus únicos laços” (ROUSSEAU, 2007, p. 64). Uma liberdade, desde já,

convencional, pois uma vez superada a necessidade da família “[...] desfaz-se o

liame natural” (ROUSSEAU, 1973, p. 29). O fato que chama a atenção dentro da

questão da família é a disposição para formação da pessoa. Como o viés em

questão aponta para a necessidade de se estabelecer a pessoa no pensamento de

Rousseau, a análise e a compreensão da família traduz-se num caminho necessário

para se definir essa segunda concepção da pessoa no pensamento rousseauista. É

dentro da concepção de família que se vê eclodir a dimensão do amor, que sustenta

o coletivo social, conforme o predito no Contrato.

No Contrato social, Rousseau explica como as forças individuais dos

homens orientam a vida social. Apoiada nas paixões, a liberdade se limita e passa a

ser do amor de si. A vida social permite ao homem um avanço, uma evolução no

modo de vida pessoal, nas suas ações, no modo de conceber a mesma e de se

relacionar. A dinâmica do amor de si aparece como aquela que possibilitará a

consecução da força individual; é essa força que passa a se unir em sociedade.

Dessa forma, a união em um amor ao bem comum, transforma a pessoa individual

em pessoa social, e essa em pessoa moral. O amor de si é convertido em amor pela

pátria, no qual as vontades individuais são agregadas em vontade geral. Assim, ao

buscar satisfazer as necessidades do coletivo, através da manutenção da vontade

geral, consegue-se atingir o bem comum. Se esse caminho é seguido, a vida social

não corre o risco de ser atribulada por situações de quebra do pacto social. A

dimensão moral passa a figurar como aquela que garantirá que todo cidadão, agora

uma pessoa moral, passe a cumprir com suas obrigações e tenha seus direitos. A

pessoa moral dá sustentação à pessoa social, significando o homem civil, mantendo

a ordem e conservando a espécie reunida em sociedade, organizada em Estado,

suprindo as necessidades.

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A necessidade de sobrevivência se converte em amor pela sociedade; as

necessidades passam a ser supridas com a convivência; a liberdade é garantida;

pois “[...] o verdadeiro amor, será sempre honrado pelos homens” (ROUSSEAU,

2004, p. 237). O amor aprimora a razão, enxerga o que não se consegue enxergar

de maneira racional. A pessoa que ama, dessa forma, é uma pessoa sociável; isto é,

“[...] Longe de vir da natureza, o amor é a regra e o freio de suas tendências [...]”

(ROUSSEAU, 2004, p. 238).

Cumpre observar que o sentido de piedade aqui tomado como “[...] a

ignorância do vício que os impedem de fazer mal [...]” (ROUSSEAU, 2004, p. 238),

conforme o segundo Discurso. O sentimento humano pelo outro cria, numa

dimensão ética como que original, um comportamento humano, uma tendência à

humanidade. A lógica é justamente a de fazer com que o humano consiga aprimorar

seu senso crítico, à luz da moral social, primando pelo princípio da igualdade. A

pessoa piedosa, da relação social com base na pessoa natural, passa, dessa forma,

a temer a realidade da injustiça. Com isso, abre-se margem para, a partir do

entendimento, da racionalidade, se buscar a felicidade; não a felicidade particular,

que se esgota no amor de si, e impossibilita a relação social, mas sim, a felicidade

coletiva, que em si, se converte na realização social da vontade geral, formada pelas

vontades particulares, de maneira que “[...] cada um pode ser amanhã o que é hoje

quem ele assiste” (ROUSSEAU, 2004, pp. 250-251). Nessa lógica, ao se alcançar a

felicidade coletiva, consequentemente, se alcançará a felicidade pessoal, de

maneira que não se pode ser feliz longe da relação social.

A relação social não se estabelece somente com o outro. A pessoa que

ama, para ser amada, deve ser piedosa. Ser piedoso é saber unir, no seu ser, as

dimensões compositoras da pessoa natural e da pessoa social. Não se abandona a

sua estrutura fundamental, se aprimora suas capacidades de relacionamento, agora

unidas à capacidade de julgamento, de análise, de convivência. O amor de si,

convertido em amor do outro através da piedade natural, mas não anulando a

pessoa, faz com que a dimensão humana se converta numa outra concepção: a

pessoa piedosa, que só se verifica a partir da junção do ser natural com o ser social.

Somente a piedade possibilita a vida individual, e a vida social. Somente a pessoa

piedosa é capaz de assumir, verdadeiramente, a vida social como sua vida;

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entretanto, como parte do soberano, a vontade particular não é anulada. Ela se torna

um contraponto com a vontade geral, e ordenada pelo contrato, fundamento de um

direito público.

É preciso observar que a formação da pessoa humana em sociedade, não

abandona, de maneira alguma, as características de formação individual. Ao

contrário, ela só acontece de maneira livre; e só se é verdadeiramente livre em

sociedade. A liberdade natural não possibilita ao homem a concretização desse

processo, a formação da pessoa plena. Mesmo que a vida em natureza seja

transpassada pelo sentimento de piedade, não há um padrão de racionalidade que

faça com que esse mesmo ser natural reconheça suas ações, ou tome

conhecimento do que é um ato moral; só há a amoralidade. O reconhecer a situação

em que o outro se encontra, através desse sentimento de piedade, possibilita ao

homem compreender que aquilo que pode ser mais detestado por ele, pode “estar

aos seus pés [...]”.

A sabedoria do homem natural que vive no estado de sociedade é, em suma, a tranquilidade apreciada espontaneamente pelo homem selvagem, por falta de imaginação e paixão, que precisamos recuperar usando a razão30 [T.A.] (DERATHÉ, 1984, p. 118).

A vida social deve ser o reduto da felicidade, que se complementa com a

vida familiar. A moral, o amor, a piedade, se unem a uma vontade superior que é o

amor ao coletivo. A superação do amor próprio, a aceitação do outro e, mais que

isso, o entendimento de que esse outro pode ser ele num futuro, leva ao

entendimento de que somente na vida social é que existirá as bases necessárias

para a fundação da pessoa em Rousseau. Assim, não se haverá uma realidade de

desprezo do humano, nem do outro, nem do social. Em outras palavras: “[...]

Homem, não desonres o homem” (ROUSSEAU, 2004, p. 253). Nessa ordem, o

homem deve reconhecer seu semelhante. Essa mudança de comportamento

possibilitará um comportamento ético, que engloba ainda, como já falado, o amor, a

piedade, a racionalidade, a vida social, a liberdade, formadores da pessoa moral.

30 “La sagesse de l'homme naturel vivant dans l'état de société, c'est, en somme, la tranquillitas animi dont jouit spontanément l'homme sauvage, faute d'imagination et de passions, mais qu'il nous faut reconquérir à l'aide de la raison” (DERATHÉ, 1984, p. 118).

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Padrões de comportamento que levarão, inegavelmente, a uma melhora do

ambiente social.

A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que antes lhe faltava [...] Embora nesse estado se prive de muitas vantagens que frui da natureza ganha outras de igual monta [...] O que o homem perde pelo contrato social é a liberdade natural [...] o que ele ganha é a liberdade civil (ROUSSEAU, 1973, p. 42).

O objetivo de Rousseau com isso é reafirmar que os traços da natureza

humana através de um pacto e de leis, nas quais se reconheçam a liberdade e a

igualdade. Com a formação do pacto social e, consequentemente, do

estabelecimento das formas de relacionamento dos homens em sociedade,

Rousseau vai se dedicar, no capítulo em que trata das leis dentro do Contrato, a “dar

movimento e vontade” ao corpo político. Curiosamente, as duas dimensões, se bem

observadas, podem ser percebidas em toda a construção da vida social. Ao buscar

dar definições á liberdade, o filósofo não perde o foco da dupla dimensão humana,

necessárias, mesmo que não tratadas abertamente, até agora, a construção da

realidade coletiva. Vontade e movimento são necessários para que o homem aceite

todos os pontos básicos do contrato. Contudo, o que ele busca agora fazer, é

delimitar o caminho de ação do coletivo, do Estado, de maneira a manter a vontade

geral. Para tanto, faz uso da Lei.

A sustentação dessa dimensão legal no estado civil marcará a continuidade

da vida em sociedade. Até o presente, viu-se como chegar a tal estágio; agora se

precisa estabelecer como essa sociedade se conservará. Afinal, por esse mesmo

motivo é que houve a junção das forças individuais. Esse conhecimento do

movimento e da vontade social, que garantem a manutenção da liberdade individual,

terá vínculo com o estado natural; mesmo que em alguns momentos –

principalmente no segundo Discurso – Rousseau dê a entender que o humano

tenha, em sua essência, aspectos puramente naturais, ele chega a conclusão, após

o contrato social [que justifica o segundo Discurso], que as leis são criadas pela

convenção social e, a partir daí, buscará traçar um modelo de como essas leis dão

movimento e vontade a sociedade, o que legitimará a sua existência e,

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consequentemente, a liberdade. Dessa forma, Rousseau traduz numa frase o

dinamismo da vida social em contraponto com a apatia da vida natural: o homem

“[...] deveria sem cessar bendizer o instante feliz que dela [estado de natureza] o

arrancou para sempre e fez, de um animal estúpido e limitado, um ser inteligente e

um homem” (ROUSSEAU, 1973, p. 42).

Tal dinamismo da vida social só pode ser garantido com o estabelecimento

das leis. Às leis competem a função de estabelecer a justiça, que parte da

adequação da vontade geral e da definição da liberdade convencional. A pergunta

pelo objetivo dessa justiça dá-se a resposta como uma necessidade social; ou ainda,

qual é a função da sociedade? Se à sociedade cabe a função de orientar suas ações

para a realização da vontade individual, reunidas na vontade geral, ela é,

obrigatoriamente, a possibilidade de satisfação das vontades. A esses direitos

individuais, que se unem no coletivo, cabe a lei discernir e buscar efetivar para cada

homem. Dessa forma, se há a somente a vontade particular, anula-se a liberdade

civil, também concebida como liberdade convencional. O que se quer efetivar com

tal afirmação, é justamente a capacidade da garantia dos direitos civis em

complemento da vontade individual, fomentada pelo bem comum.

É possível perceber em Rousseau essa prerrogativa da lei, principalmente

se tomando-se o manuscrito de Neuchâtel, onde se lê:

“É-se livre quando submetido às leis, porém, não quando se obedece a um homem, porque nesse último caso obedeço a vontade de outrem, enquanto obedecendo à lei não obedeço senão à vontade pública que tanto é minha como de quem quer que seja” (ROUSSEAU, 1964, p. 492).

O que precisa ficar claro é a lógica da liberdade que o homem possui em

sociedade. É-se fruto de sua própria liberdade, das suas próprias leis, de suas

escolhas, visto que se é parte do coletivo, soberano, partícipe do Estado. A isso,

Rousseau dá o nome de República

Chamo pois de República todo Estado regido por leis, sob qualquer forma de administração que possa conhecer, pois só nesse caso governa o interesse público e a coisa pública passa a ser qualquer

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coisa. Todo o governo legítimo é republicano (ROUSSEAU, 1973, p. 61).

A República – espaço por excelência da liberdade e da vontade geral –

traduzida como formadora das leis tem em sua essência, a participação popular na

consecução das mesmas [leis]. Essa democrática participativa que envolve o

pensamento rousseauista coloca no povo – soberano – a responsabilidade por

decisões. Nessas decisões, fica claro, e evidente, a necessidade de salvaguardar as

vontades particulares, unidas na vontade geral, onde se encontra a real

possibilidade se ser pessoa, garantindo assim, a existência de liberdade e de vida

sustentada na igualdade.

“[...] uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes (ROUSSEAU, 1983, p. 38)

Daí a necessidade de que esse corpo social seja adequado as vontades

naturais em vontade geral, associá-la a razão – coletivo social – e a resguardar os

preceitos morais – vontade geral –, numa busca de se manter e conservar a

espécie. Não se quer dizer que a sociedade deve escolher e decidir pelo indivíduo,

desrespeitando a sua participação no Estado; pelo contrário, é preciso que esse ser

tome consciência da necessidade de sua participação na construção do corpo

social. Com essa participação ele terá a manutenção de sua vida, a liberdade

verdadeira, a racionalidade, a moralidade, a propriedade, além de ter seus direitos

garantidos e assegurados pelas leis, que ele mesmo participou da criação, para a

sustentação da República. É somente neste espaço, da República31, que se verá a

criação da pessoa em Rousseau. Portanto, para que ela possa figurar como

essência do homem, ela deve ser pensada na lógica social. Assim, só pode-se dizer

que há a dinâmica da pessoa, quando se tem, efetivamente garantidas suas

vontades individuais pela vontade geral.

31 É preciso observar que, em Rousseau, República não difere de democracia, aristocracia ou monarquia; mas sim o povo reunido [Estado], que, através do soberano, escolhe a melhor forma de governo, de acordo com a necessidade.

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CAPÍTULO

3 DA CONSCIÊNCIA E DA OPINIÃO

A busca por se estabelecer a pessoa como centro do pensamento filosófico

de Jean-Jacques Rousseau se apóia na disposição para o entendimento de que o

filósofo genebrino mantém o homem como centro de suas reflexões. Contudo, tal

disposição não compreende esse mesmo homem como um ser individualizado, mas

sim, “[...] o homem enquanto ser que é capaz de engendrar a própria história e

transformar a si mesmo” (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 17). Essa capacidade de

entendimento do homem como aquele que é responsável pela construção do seu

ser, apoiado na dinâmica social, traz consigo a necessidade de se entender que

essa construção só acontece, verdadeiramente, quando o homem é capaz de

encontrar as respostas para as suas dúvidas, e nelas, significar sua existência, ou

ainda, quando ele alcança a interiorização necessária para que chegue a conceber o

seu ser pessoa. É essa análise do ser pessoa que se busca neste trabalho, fundado

na lógica de que ela só é possível quando se estrutura bases sólidas. Tais bases

são a consciência e a opinião.

Em Rousseau, a formação do homem, tratada com base na fundação da

liberdade do humano, conquistada verdadeiramente em sociedade, faz com que a

dinâmica racional venha à tona. Sua sustentação se dá no modo como o filósofo

estabelece a relação dessa necessária base para que o homem seja autor de seus

caminhos e senhor dos seus passos.

Ao sair de minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre; será homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deve ser, ele será capaz de ser, se preciso, tão bem quanto qualquer outro; e, ainda que a fortuna o faça mudar de lugar, ele sempre estará no seu (ROUSSEAU, 2004, p. 15).

O que se percebe é que Rousseau deixa claro acerca da obrigação de uma

formação inicial do humano, não como uma profissão, ou condicionamento para

determinado cargo, mas sim, como a primeira obrigação a partir de sua

interiorização, de que é preciso ser formado como homem. Observe-se que a

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formação do homem, verdadeiramente, segundo o genebrino, faz-se a partir da

disposição para a consciência. O homem precisa tomar consciência de quem é, é

preciso que ele seja “[...] capaz de ser” (ROUSSEAU, 2004, p. 15). Essa consciência

de ser não contradiz o pacto social; a consciência não se funda na concepção do

homem em estado de natureza, mas surge do equilíbrio entre os dois estágios.

[...] Contudo, a educação e o direito político poderiam restaurar o elo e permitir que a cultura não fosse a negação da natureza. O reino do imediato é instaurado pela educação, mas não o imediato da natureza, como sugere a ironia voltairiana sobre a vontade de andar de quatro e sim o imediato do sentimento (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 9).

3.1 A formação da consciência pessoal

A formação da pessoa, a partir da consciência, parece, em dado momento,

que caminha para a contradição do estado civil e do pacto celebrado. Na linha de

pensamento do Vigário saboiano – intertexto presente no Emílio – Rousseau coloca

que a disposição primeira da consciência é justamente para se negar a linha de

ação social, afirmando que ele diminuía, e até anulava, a capacidade do ser homem.

Ao que parece, o meio social seria o inteiro responsável por minimizar a construção

de uma consciência da pessoa, por conta da influência exercida, por essa mesma

sociedade, sobre o indivíduo. Assim, o ponto essencial para a definição da

consciência da pessoa se dá justamente no impasse formado pelo viés social em

contraposição a disposição natural. Por um lado, a consciência acaba sendo

formada pela influência de outros [sociedade], ao passo de que, ao mesmo tempo,

“[...] ela se obstina a seguir a ordem da natureza contra todas as leis dos homens”

(ROUSSEAU, 2004, p. 373). É essa possibilidade de se fazer um balanço entre os

dois modos de vida humano, dispostos pelo pensador em suas obras, que se vê a

possibilidade de se tomar consciência.

Entretanto, como o pensamento de Rousseau, quando observado em seus

textos: segundo Discurso e Contrato social, não estabelece ligação entre ambos, tal

feito permite a geração de uma definição que, conforme Almeida Júnior (2009, p. 8-

9): “[...] caberia ao leitor exegeta encontrar o elo entre as obras”. Sendo que “[...] na

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primeira leitura a síntese se daria pela revolução, na segunda, [...] é a educação que

sintetiza”.

Em sua formação, o homem não abandona o estado natural; ele é capaz de

conservar em si as “luzes primitivas”, que continham o meio necessário para que se

livrasse do vício. A construção do homem social precisa manter em sua essência a

influência das duas paixões naturais do estado de natureza: piedade natural e amor

de si. Essa base natural precisa ser completada pela convivência em sociedade, ou

seja, o meio social precisa formar a consciência desse humano, de maneira que

essa surja do impasse formado pelas duas possibilidades, sendo que a vida em

sociedade e a capacidade racional trazem a tona a reflexão do humano, que passa a

questionar a realidade social a partir da observação. Dessa forma, a observação

aparece como um primeiro fator diferencial na construção da consciência. Essa

pessoa humana, disposta a partir da compreensão de liberdade, vivente na

sociedade fundada no contrato, toma para si a capacidade de observar. Em tal

comportamento, o homem toma consciência do que acontece a sua volta, e percebe

que em sociedade são “[...] invertidas as ideias sobre o justo, o honesto e todos os

deveres do homem” (ROUSSEAU, 2004, p. 374), obrigando esse a uma atenção à

natureza humana, presente em todos os humanos em sociedade. Contudo, tal

atenção não se dá de maneira completa e efetiva, pelo fato de que uma vez

alcançada a capacidade racional e tomada a consciência, a partir do impasse entre

os dois estados, não se perde mais tais disposições humanas, mas se estabelece a

dúvida para com o sistema social e o sistema natural.

A colocação da dúvida como processo inicial do “querer” filosófico, traz para

a discussão a ideia de que se deve partir das questões para se chegar as respostas,

como diz o próprio Rousseau: “[...] disposições de incerteza e de dúvida que

Descartes exige para a procura da verdade” (2004, p. 374).

A consciência é que possibilita ao humano o entendimento da realidade; é

ela quem busca equilibrar os sentimentos do humano e conduz suas ações de

maneira “ajuizada”.

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Consciência! Consciência! Instinto divino, voz celeste e imortal; guia seguro de um ser ignorante e limitado, mas inteligente e livre; juiz infalível do bem e do mal, que tornas o homem semelhante a Deus, és tu que fazes a excelência de sua natureza e a moralidade de suas ações; sem ti nada sinto em mim que eleve acima dos bichos, a não ser o triste privilégio de me perder de erro em erro com a ajuda de um entendimento sem regra e de uma razão sem princípios (ROUSSEAU, 2004, p. 411-412).

É esta consciência que será a juíza do homem. Um instinto divino

responsável pelo encontrar o meio termo existente entre a razão e os sentimentos;

ela é o guia que faz com que natureza e sociedade possam conviver.

A busca pela verdade, pela formação da pessoa humana a partir da

consciência, se dá justamente na capacidade de discernimento do homem para com

as opiniões. Tais opiniões – objeto a ser trabalhado adiante – marcam

profundamente a formação da pessoa, pois faz com que essa seja levada por

caminhos errados e até perigosos. É essa dimensão da opinião, presente na

formação do homem que faz com que a desigualdade entre eles se amplie, levando,

em paralelo, ao surgimento do mal em estado social, fomentado pela prática do

amor de si, em detrimento da vontade geral. Tal comportamento faz com que o

homem se distancie de sua dimensão natural e se firme somente na dimensão

social, o que aguça a percepção para o entendimento de que é preciso permanecer

o que era; isto é, agregar a dimensão social sem perder a natural; meio termo

ajustado pela consciência, que passa a ser a essência do humano, reconhecida,

como dimensões naturais.

Gouhier acredita que a expressão fides quaerens intellectum (a fé requer o intelecto), significa, em Rousseau que, tanto a fé quanto o intelecto são naturais. Ambos são luzes que Deus dá aos homens e, por isso, não podem negar-se mutuamente (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 102).

Não é possível, em Rousseau, que o humano se distancie por completo de

sua dimensão natural. Negar tal situação, seria negar a própria existência do

humano, que só se fundamenta a partir da lógica natural.

Permanecer o que era; deixar-se alterar pela mudança: tocamos aqui em categorias que para Rousseau são o equivalente das categorias teológicas da perdição e da salvação. Rousseau não crê no inferno,

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mas, em compensação, acredita que a perda da semelhança é uma infelicidade essencial, enquanto permanecer semelhante a si mesmo é uma maneira de salvar sua vida, ou ao menos uma promessa de salvação (STAROBINSKI, 1992, p. 27).

Se a consciência se apresenta como essência do humano, a manutenção da

semelhança permanece como necessidade para que sua capacidade racional, e

mesmo sua existência, sejam mantidas; e que tais capacidades não encontrem

obstáculos na sua formação. Dessa forma a consciência não pode ser formada a

partir dos preconceitos sociais, mas sim, “[...] fechar as portas ao vício para que a

virtude se manifeste” (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 26). Isso não quer dizer que a

sociedade deve ser deixada de lado na busca de se formar o humano; o papel da

consciência – pode-se dizer – se apóia claramente na educação do homem. Essa

ponderação entre a consciência natural e a consciência social cabe a educação. Ela

deve “[...] ordenar as relações entre a natureza e a cultura ou história [...]” (ALMEIDA

JÚNIOR, 2009, p. 28), e sendo a cultura e a história frutos do meio social, o sentido

vai para além de manter a ponderação entre tais pontos, mas a capacidade de tomar

consciência, dessa forma, passa a seguir as disposições previstas pela educação;

sendo a educação a “[...] ponte entre a natureza e a cultura” (ALMEIDA JÚNIOR,

2009, p. 28).

Essa característica da educação como mediadora dos estados do homem

(natural e social) faz com que a opinião – fruto das intervenções sociais no âmbito

de formação individual da pessoa – seja limitada e ponderada. As opiniões

aparecem como um mar de possibilidades nas quais o “navio” homem se encontra

“[...] sem leme, sem bússula e entregues às tempestuosas paixões [...]”

(ROUSSEAU, 2004, pp. 374-375). Se esse homem segue as imposições sociais,

fundadas nas opiniões, seu futuro é incerto e sua consciência não passa de mera

conjetura; em outras palavras, ela não passa de um “[...] instrumento da imaginação

desregrada” (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 29). Consideradas como simplesmente

aparências externas, as opiniões são passíveis de dúvida daqueles que portam a

capacidade cognosciva, aprimorada pela educação. É justamente essa educação

que faz com que as opiniões sejam analisadas, de maneira que se foque, durante a

formação da pessoa, na essência, isto é, na fundamentação da capacidade racional,

que se sustenta na prudência entre os estados humanos, gerando a consciência a

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partir das virtudes, o que possibilita ao homem consciente a atravessar, pela ponte

da educação, entre o estado natural e o estado social sem cair no emaranhado das

paixões.

[...] A relação da desigualdade entre os homens, produzida pela sociedade, com a origem do mal é direta: à medida que aumenta a desigualdade, o mal se alastra pela sociedade e o homem, nessa mesma proporção, encontra-se cada vez mais distante do seu estado natural (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 23).

Se as paixões se mantêm em estado natural, não existindo obviamente, a

dimensão social, a conservação fica ameaçada, e as paixões, restritas a esse

comportamento puramente animal, leia-se homem em estado de natureza, quando a

vida em sociedade se torna realidade, a liberdade se converte em realidade latente e

vívida. A consciência das paixões e, consequentemente, seu controle, possibilitará

uma qualificação do homem, vertendo suas ações para o coletivo. É essa ação que

possibilitará a sociabilidade do homem civil. Se a liberdade aparece movida por

nossas paixões e, ao mesmo tempo, tende à conservação da espécie, logo, é

impossível pensar no estado social, sem se pensar nas paixões racionalizadas como

garantias da manutenção da liberdade comum.

3.2 A consciência e a ignorância

Outro ponto a ser analisado dentro da formação da pessoa humana, e a

respeito da consciência, é a questão da ignorância. Muitas vezes a tradição filosófica

aponta que a ignorância é o primeiro passo para se descobrir o conhecimento. No

caso do pensamento rousseauista a ignorância pode ser considerada de duas

maneiras, a saber: a ignorância da consciência e a consciência da ignorância. No

primeiro nega-se a possibilidade de se chegar à consciência, apoiando-se em

fundamentos não tão legítimos, ou mesmo que se fundam sobre as opiniões

estabelecidas pela realidade social. No segundo, o homem, ciente do que quer

conhecer, trabalha com a possibilidade de selecionar aquilo que quer conhecer, ou

mesmo tomar consciência, de acordo com seus desejos; o que provoca a anulação

da verdadeira liberdade e a criação de um mundo imaginário onde não há espaço

para a felicidade verdadeira. Contudo, em ambas as formas vêem-se a existência e

a necessidade da consciência. Na primeira, a consciência é turvada pela ignorância;

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na segunda, a consciência se funda na ignorância. Dessa forma, o humano é capaz

de ignorar a si mesmo, a sua natureza e sua origem, se estabelecendo como um ser

racional e moral.

Expostos os dois pontos iniciais da discussão acerca da ignorância que

surge e se mantém a partir da consciência humana, se faz preciso tecer uma análise

crítica acerca dos três modos de ignorância. Num primeiro momento, a lógica textual

assume uma característica de contraponto ao se ater à díspare conceituação entre

tais dimensões humanas. É preciso apresentar o homem como o artefato32 de uma

realidade natural; aqui, numa primeira análise, pode-se visualizar o humano que tem

sua origem dependente de um fator inicial – o estado natural – promovendo uma

ambiguidade com o processo histórico-social. Ao se inverter o contexto histórico-

social, não quer afirmar que inexista a necessidade de tal compreensão, muito pelo

contrário, o que se quer mostrar é que o ser humano, antes de se tornar um ser

social e histórico é um ser natural, portador de liberdade tutelada pela incapacidade

racional, amoral, numa afirmação constante de uma falsa felicidade (apoiada nos

vícios), promovendo assim uma resposta para suas dúvidas existenciais, que em

nada se apresentam como a verdadeira compreensão da realidade e da vida em

sociedade. A solução para o homem seria justamente o processo educacional.

[...] A educação, desse modo, deve assumir seu papel: ordenar as relações entre a natureza e a cultura ou história; mas não lhe cabe corrigir a natureza, pois essa, como dado, não poderia ser alterada pelo homem. É sobre a cultura que cabe operar mudanças e correções, pois, ela, e somente ela, é fruto da obra humana (ALMEIDA JÚNIOR, 2009, p. 28).

Tal análise é possível quando se parte da existência da liberdade humana,

que caminha para a manutenção da natureza, gerando um nível de responsabilidade

individual. Quando se fala em uma responsabilidade individual não se pensa em um

comportamento de introspecção, mas sim, uma abertura para o entendimento de

que sua identidade pessoal só pode ser construída com um modo social, onde ainda

preexista o vínculo com o ser natural, sendo que as paixões ainda podem

32 Apesar de ser um termo anacrônico, a ideia de se colocar o homem natural como um artefato advém da capacidade racional, estimulada pela consciência da pessoa, que faz com que o homem social seja capaz de analisar o seu estado anterior. Dessa forma, artefato aqui assume contornos de uma análise pós social, pós racional.

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influenciar. Quando o ser humano se encontra em um estado natural, sua liberdade

de irrestrição alcança patamares que inviabilizam o aparecimento do ser pessoa,

colocando essa mesma liberdade como um limitador existencial. É a tomada de

consciência que faz com que ele compreenda a necessidade da vida em sociedade,

onde seu intelecto se faz capaz de discernir entre o bem e o mal.

Rousseau esboça uma definição que coloca o ser humano num caminho de

auto-determinação; a existência de uma responsabilidade na qual não há a

necessidade de se deixar a dimensão presente faz do humano um ser que

compreende o imediato; não um ser que só age pela prática imediatista, mas sim,

aquele que concebe a necessidade de se estar no presente para entender o

passado, modificando o futuro. Ele caminha no limiar de sua existência superando

as dificuldades sem que, para com isso, tenha que levar a cabo a anulação de sua

liberdade natural. Um ser em estado tal que sua racionalidade encontra, mais do que

nunca, espaço para repensar sua existência; ele é essencialmente bom, justamente

por ser racional, possui a necessidade da consecução de uma vida com prazer; mas

não um hedonismo. O ideal da pessoa humana é o da personalidade – do fator

humano – que se realiza na harmonia do orto-prazer que não se oponha a dinâmica

necessária, onde se vê que “a máxima felicidade” (BENTHAM, 1830, apud

MESSNER, 1960, p. 14).

Tal ideia de superação humana está presente em toda a filosofia

jusnaturalista, que concebe o humano como ser capaz de ir além de seus ambientes

e limites. Há, contudo, duas formas de ação que caminham lado a lado com a

superação: a vontade e o intelecto. É dentro da dimensão da vontade que se

encontra a prática minimalista do livre-arbítrio. O livre-arbítrio aparece como um

aspecto da vontade racional que se explica como princípio da causalidade33 dessa

mesma vontade; assim, o ser humano transforma a lei natural numa determinante de

sua conduta, tomando o livre-arbítrio como um valor maior que sua liberdade e, por

isso, minimizando a dimensão humana, que tem na liberdade sua maior virtude

(areté – como citado na explicação anterior). Quanto ao intelecto, a crença inicial é

33 Aqui opta-se pela utilização do advérbio causalidade, ao invés de causa, pelo fato de que o livre-arbítrio se apresenta como um fenômeno que surge de maneira específica; isto é, através da vontade racional. É entender sua inteligibilidade.

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que tal capacidade humana é aquela tipicamente responsável por modificar o

mundo, chegando a transformá-lo. Curiosamente, podem-se perceber características

comportamentais humanas, tais como: construção, modificação e destruição,

figurando um ser que é, ao mesmo tempo, artífice e artefato da natureza.

O humano é um ser preso ao presente e sempre indo ao encontro do novo;

um ser que se abre para o mundo em que vive a tal ponto de gerar uma com-fusão34

de identidade, na qual ele não é capaz de se diferenciar do que o mundo que o

cerca. Uma liberdade tal que nada se antepõe aos seus “desejos ilimitados”, e o leva

ao privilégio da posse imediata da verdade. É um modo de vida que assume, em

certo ponto, os ideais kantianos nos quais “o ser humano e, de modo geral, todo ser

racional, existe como um fim em si mesmo [...]” (KANT, 1797, apud COMPARATO,

2006, p. 458). O fato curioso é que esse mesmo ser humano se faz incapaz de

conceber limitação e finitude, seja no tempo, ou no espaço; ele almeja sempre mais

e mais, numa constante de ações e modificações. Talvez seja esse o motivo que

outrora levou Camões a afirmar: “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

muda-se o ser, muda-se a confiança; todo o Mundo é composto de mudança,

tomando sempre novas qualidades” (CAMÕES, apud COMPARATO, 2006, p. 474).

Apesar das mudanças serem uma constante na vida humana, os seres humanos,

em estado social, estão numa lida para definirem as identidades individuais.

3.3 A consciência da identidade

Falar de identidade é falar da construção de um modelo de comportamento

que norteia a questão da dignidade humana. É a linha de execução grega

[prósopon] que concebe a necessidade de que cada individuo tenha sua

personalidade [persona] e mais, alcance a dignidade [dignitas]. É justamente para se

entender a forma compreendida como individual natural que se deve buscar

fundamentar tal compreensão numa linha que abarque o indivíduo, não somente

como um animal racional e suas manifestações (especulativa, técnica, artística e

ética), mas como singular presença livre no mundo. É esse o princípio da vida em 34 Amparado pela lógica heideggeriana, o termo con-fusão [neologismo] se apresenta como a capacidade humana de fundir o seu eu, encontrado através da prática da introspecção, sua pessoa, com o coletivo e sua formação cultural e moral. Esse feito faz com que o humano se veja inserido, de tal modo, no contexto social, que lhe é impossível viver sem o coletivo.

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sociedade: o dever. Essa determinação que leva o ser humano à plenitude de sua

natureza e, consequentemente, à manutenção do seu ser social, liga-se diretamente

com a autodeterminação. Em linhas gerais luta-se pela plenitude da natureza

humana que age conforme a lei social, baseada na livre vontade, para se poder

falar, verdadeiramente, de um dever ser. Dessa forma a “[...] moralidade é para o

homem a retidão natural aferida pelos fins existenciais, ao homem indicados pela

sua própria natureza” (MESSNER, 1960, p. 66).

O dever ser leva a busca do conhecimento de suas necessidades à saída do

estado de natureza, para a entrada no mundo moral. Um ponto a ser entendido é

que o humano foi obrigado a se modificar, a se adaptar às necessidades surgidas, a

superação de obstáculos oriundos da própria natureza, porque:

Tal foi a condição do homem nascente; tal foi a vida de um animal limitado, de início, às puras sensações, e pouco se beneficiando dos dons que lhe oferecia a natureza, longe de pensar em arrancar-lhe alguma coisa; mas logo se apresentaram dificuldades; foi preciso aprender a vencê-las [...]. As armas naturais que são os galhos de árvores, e as pedras logo se encontraram sob sua mão. Ele aprendeu a superar os obstáculos da natureza, a combater, se necessário, os outros animais, a disputar sua subsistência com os próprios homens, ou a compensar-se daquilo que era preciso ceder ao mais forte (ROUSSEAU, 2007, p. 121).

A obrigação do meio em que se encontrava inserido levou o ser humano a

passar para o estado social; fato que não cessará, de agora por diante, de se

modificar, de se atualizar. O grau de dificuldade de sobrevivência passará a ser um

fator determinante para a espécie, o que levará a uma evolução psicológica. Na

dinâmica do conhecimento, novas formas de análise e compreensão estarão

disponíveis; a figura do ser humano acabará sendo modificada, inclusive pela

concepção pessoal, que passará a enxergar a sua superioridade, aniquilando a

virtude, e dando lugar ao vício.

É justamente com essa ação [de trocar as virtudes pelos vícios] que se

encontra o fim do homem natural, e vê-se aparecer o homem social. A

espontaneidade deixa o ser humano, passando a vigorar a reflexão;

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Da sociedade e do luxo que ela engendra, nascem as artes liberais e mecânicas, o comércio, as letras, e todas essas inutilidades que fazem florescer a indústria, enriquecem e perdem os Estados (ROUSSEAU, 2007, p. 103).

Surge, em paralelo com os vícios, a dimensão do outro, mais precisamente a

cisão existente entre o eu e esse outro e, nesse passo, a sociedade se constitui e

nela, a propriedade e a desigualdade. O ser humano começa a apresentar, cada vez

mais, necessidade de possuir bens e riquezas, numa busca de satisfação de seus

desejos íntimos, e de ser reconhecido pelos outros. Com a junção de tais desejos, o

humano deixa de lado a vertente da realização de suas verdadeiras necessidades,

invertendo sua busca pela felicidade para uma busca pelos valores criados a partir

de uma evolução gradual da razão.

A sede do ter, que corrompe o hábito de partilhar, vem se mostrando cada

vez mais presente no meio social. A busca desenfreada por saciar as vontades toma

o lugar do sentido de igualdade, criando o seguimento aos vícios e as paixões, pré

definidas pela sociedade. Vale lembrar que no estado civil, limita-se a natureza do

ser humano a um aparato de condicionamentos infundantes [inúmeros vícios que

deterioram os valores] que exterminam a autonomia deste. A civilização adere a um

conformismo aniquilante que minimiza suas potencialidades a um aparelhamento

medíocre que subordina sua natureza a um resquício, inviável, de sobrevivência no

âmbito social. Sob essa ótica, o que Rousseau tem a dizer é que a natureza é pura e

completa. Dessa forma, é preciso assumir a liberdade natural, na busca da

manutenção do humano social. É justamente aqui que se encontra o ponto que

inviabiliza ao homem o encontro com a consciência pois ele não é capaz de a

perceber; ele se torna dependente.

Existem dois tipos de dependência: a das coisas, que é da natureza, e a dos homens, que é da sociedade. Não tendo nenhuma moralidade, a dependência das coisas não prejudica a liberdade e não gera vícios; a dependência dos homens, sendo desordenada, gera todos os vícios, e é por ela que o senhor e o escravo depravam-se mutuamente (ROUSSEAU, 2004, p. 311).

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Essa forma de se compreender o desenvolvimento da pessoa em Rousseau

vai levar esse mesmo homem a uma dupla formação da consciência: a consciência

individual e a consciência coletiva. Na primeira, vê-se a necessidade de que esse

homem seja introspectivo, busque voltar para si mesmo alcançando as respostas

para suas dúvidas; ao praticar tal feito, sua capacidade racional tende a ser menos

influenciada, pois não terá as influências sociais carregadas de opiniões e vícios.

Contudo, essa formação da consciência individual pode levar o homem a um

isolamento do contexto social, voltando suas atenções para a prática de conquista

dos desejos em contraposição a vontade coletiva. Na segunda forma de concepção

da consciência, a coletiva, vê-se que a formação se dá a partir das opiniões sociais,

que foram dispostas ao ser humano desde seu nascimento em dada sociedade. Ao

que se sabe, desde o nascimento, inúmeras são as formas de influências que a

pessoa recebe, sendo que em boa parte delas não há a possibilidade de negação ou

ponderação. Nesse caso, a consciência passa a ser formada pela vontade coletiva,

que se sobrepõe aos desejos e vontades individuais. A influência do coletivo na

formação da pessoa pode parecer, por um lado, um malefício, visto que a ideia é

que se estimule o desenvolvimento individual do homem enquanto um ser racional;

contudo, por outro lado, essa análise feita a partir da necessidade da sociedade para

a subsistência do humano, traduz em linhas gerais a obrigatoriedade de seu

seguimento. Isso se dá por conta de que o homem só é completamente livre,

racional e moral em convivência com o coletivo social.

Assim, para que a consciência seja formada de maneira efetiva e completa,

sem que algum dos modos seja relegado ao esquecimento, prima-se pelo

entendimento de que a educação é o melhor caminho a ser seguido, para que a

formação do homem não seja prejudicada, ou que se dedique somente a seguir um

dos moldes de formação de consciência citados. Entretanto, essa mesma formação

da consciência encontra-se limitada. Na capacidade de entendimento e

compreensão humanas, o que Rousseau chama de espírito humano, se faz

presente uma composição de objeções insolúveis, que marcam a pessoa como

centro dessa mesma formação. Se portanto, a ideia é partir da análise da pessoa em

si para o entendimento da consciência e sua limitação, percebe-se que em

Rousseau, não se dispensa a lógica necessária para a fundação dos princípios

fundamentais da filosofia; isto é, é preciso entender a si mesmo para se chegar ao

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objetivo de responder as dúvidas do próprio humano. Se o principal objetivo é

conhecer o humano, a busca pela pessoa, como base fundante se torna o primeiro

passo. Dito de outra forma, não se chega a conhecer a consciência sem se

conhecer o homem; é preciso “[...] voltar o olhar primeiro para mim, a fim de

conhecer o instrumento de que quero me servir [...]” (ROUSSEAU, 2004, p. 378).

Essa busca pela compreensão da pessoa, com disposição para o

entendimento da existência, ou mesmo da consciência – objeto de estudo direto

deste ponto do trabalho – deve, obrigatoriamente entender que não há a

possibilidade de que se forme tal disposição sem a consideração de que outros

seres coexistem, que são apreendidos pelas sensações. Tais sensações que não

figuram como a pessoa em si formam a pessoa do homem, essa fundação inicial

disposta como essência da compreensão da consciência humana. Essa capacidade

de entendimento dos outros seres externos à pessoa, traz ao homem a disposição

que Rousseau chama de matéria. É essa matéria, reunida fora do homem e que age

sobre esse mesmo homem que, reunidas em seres individuais, formam os corpos. O

que se percebe é que para o reconhecimento do outro como um ser material é

preciso que os sentidos agreguem à consciência suas disposições e suas ações; e

para que a pessoa seja reconhecida como tal, se faz preciso que o outro reconheça

a matéria e seus sentidos sejam estimulados. O que fica claro é que a busca pelo

entendimento da pessoa, através da consciência, se traduz numa lógica ao mesmo

tempo simples e complexa. Simples pelo fato de que basta a ação dos sentidos para

que haja o entendimento dos corpos e, consequentemente da pessoa. Complexo

pelo fato de que não é a pessoa que se define e entende, mas é o outro, através de

seus sentidos e seu entendimento, que ratifica a existência do primeiro. Assim, o ser

pessoa se classifica como entendimento pela consciência alheia, não dispensando

as disposições externas para a resolução dos entraves internos.

Toda essa disposição para o entendimento de si no outro só se dá graças

aos sentidos. Com isso, outro fator relevante para a definição da consciência da

pessoa composta pelo entendimento do outro, perpassa pelos instrumentos

necessários a formação dessa mesma consciência, ou seja, os sentidos. Graças a

esses aparelhos de sobrevivência humana é que se pode falar em definição de ser e

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de pessoa; dessa forma, fica evidente que graças aos sentidos, o homem é capaz

de perceber os objetos das sensações, furtos dos sentidos. Por isso,

Perceber é sentir; comparar é julgar; julgar e sentir não são a mesma coisa. Pela sensação, os objetos oferecem-se a mim separados, isolados, tais como existem na natureza; pela comparação, movimento-os, transporto-os, por assim dizer, coloco-os um sobre os outros para julgar sua diferença ou sua semelhança e geralmente todas as suas relações (ROUSSEAU, 2004, p. 379).

Em sua disposição e funcionamento, a capacidade cognoscitiva do homem,

baseada no entendimento dos sentidos, formadores da razão, possui dois modos de

ação: a percepção e a comparação. No primeiro, o homem tem como instrumento

inicial disposto pelos sentidos a capacidade de perceber pessoas, coisas, objetos,

situações, enfim, um sistema que possibilita sua existência no mundo conhecido. Já

a capacidade de comparação faz com que a percepção seja aguçada, podendo

ponderar entre formas, moldes, modelos, traduzindo em definição o que outrora se

havia percebido. Essa capacidade pela razão, a de comparar e de discernir,

Rousseau dá o nome de reflexão “Que se dê este nome a essa força do meu

espírito que aproxima e compara minhas sensações [...]” (ROUSSEAU, 2004, p.

381).

3.4 A reflexão aprimorada pela consciência

A capacidade reflexiva do humano que se habilita pela consciência efetiva,

começa a sua análise não com os objetos externos, mas sim, com a volta primeira

dessa habilidade humana: consigo mesmo. Ou seja, num primeiro momento, a

pessoa consciente, portadora da reflexão, compreende os objetos e os seres que

lhes são exteriores. Entretanto, “[...] o primeiro objeto que se apresenta a mim para

compará-los sou eu mesmo” (ROUSSEAU, 2004, p. 381). Tal dinâmica faz com que

se chegue à conclusão de que a verdadeira essência da consciência é a pessoa do

homem, e a pessoa do homem é sua consciência. Dessa forma, o homem se torna

causa sensível da sua própria formação; de maneira que a consciência e a reflexão

só são possíveis graças as considerações do próprio homem acerca de si mesmo,

ao passo de que a consciência se torna, a saber, a força motora da pessoa.

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[...] o mundo não é um grande animal que se move por si mesmo; há, pois, alguma causa de seus movimentos estranha a ele, a qual não percebo; mas a persuasão interior torna-me essa causa de tal modo sensível que não posso ver o sol caminhar sem imaginar uma força que o empurre, ou, se a Terra gira, acredito sentir uma mão que a faz girar” (ROUSSEAU, 2004, p. 383).

E ainda, As primeiras causas do movimento não estão na matéria; ela recebe o movimento e comunica-o, mas não o produz. Quanto mais observo a ação e a reação das forças da natureza agindo umas sobre as outras, mais acho que, de efeitos em efeitos, devemos sempre remontar a alguma vontade como primeira causa [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 384).

Em certo sentido, e de certa forma, o pensamento de Rousseau estabelece

uma determinada lei que rege as relações entre a pessoa e o estabelecimento de

sua consciência. Tal lei pode ser resumida na palavra vontade. A vontade é a lei que

se estabelece para o regimento do homem e o próprio Universo. A vontade é a

grande regente das mudanças; sejam naturais ou sociais.

[...] Quero agir e ajo; quero mover meu corpo e meu corpo se move. [...] A vontade é-me conhecida por seus atos, não por sua natureza. Conheço essa vontade como causa motriz, mas conceber a matéria produtora do movimento é claramente conceber um efeito sem causa, é conceber absolutamente nada (ROUSSEAU, 2004, pp. 384-385).

Essa lei da vontade ainda estabelece o modo como a ação do homem

consciente se dará. Ela nomeia três passos fundamentais para o estabelecimento da

verdadeira consciência da pessoa, a saber: Ação, Comparação e Escolha. Os três

modos indicam como se define a inteligência; pois somente a um ser ativo e

pensante é possível executar tais ações. Todos esses aspectos se unem, através da

razão do homem, com o intuito de formar a consciência humana e justificar a pessoa

do homem em Rousseau. Porém, há alguns atributos em especial que demarcam a

ação desse humano e da sua consciência. A primeira grande ação é a de observar.

Como um exímio observador o homem forma sua pessoa no hábito se relacionar e

de conviver com a capacidade de observar. A união dos sentidos faz com que essa

habilidade seja fundamental para o estabelecimento da comparação, da análise e da

diferenciação. Outro instrumento da capacidade humana é o de medir e calcular;

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graças a comparação, o humano tem a possibilidade de demarcar e salientar

diferenças entre os objetos analisados e determinadas situações, além de conseguir,

através de uma associação de números e símbolos, estabelecer a quantidade de

determinado item etc, que esteja disposto a tomar consciência. Há ainda a

possibilidade de prever movimentos; o homem possui uma habilidade, oriunda da

observação e da comparação, que lhe possibilita a existência vindoura diante de

determinada ameaça. Tal capacidade de prevenção de movimentos traz consigo a

consideração de que será preciso estar atento a todo e qualquer movimento a sua

volta, o que depende ainda mais dos seus sentidos. A habilidade humana não se

esgota ai. Mas ao homem é dada a possibilidade de se tornar o “rei da terra que

habita” (ROUSSEAU, 2004, p. 391).

[...] pois não somente ele doma todos os animais, não somente dispõe dos elementos por sua indústria, mas também só ele na terra sabe dispor deles, e ainda se apropria, pela contemplação, dos próprios astros de que não pode aproximar-se (ROUSSEAU, 2004, p. 391).

Observe-se que a capacidade contemplativa, que se aparece como uma

habilidade do homem, só pode ser exercida com a reflexão e a inteligência. Dessa

forma, é inútil a comparação do homem aos demais animais; é justamente por tal

feito que não se pensa tais pontos presentes no homem selvagem; pois somente ao

homem civil, consciente e racional, que é possível a compreensão da existência e da

necessidade da sociedade para a sua subsistência. Ao passo que para a devida

definição da pessoa em Rousseau, a consciência de civilidade passa a ser ponto

essencial. Somente tal consciência e a opinião – como se verá adiante – trará ao

homem a possibilidade de entendimento que o coloca por sobre qualquer outro

animal. A essa capacidade de entendimento que se dá o nome de consciência de si,

ou ainda, do auto conhecimento, que parte das inconstantes dúvidas, fundamentais

para a pessoa.

[...] o homem não é outro; eu quero e não quero, sinto-me ao mesmo tempo escravo e liberto; vejo o bem, amo-o, e faço o mal; sou ativo quando escuto a razão, passivo quando minhas paixões me arrastam, e meu pior tormento quando sucumbo é sentir que pude resistir (ROUSSEAU, 2004, pp. 393-394).

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A consciência de si é um caminho lógico que se estabelece quando o

homem chega à compreensão de si mesmo. A análise que se desenvolve desde

quando o homem começa a olhar para dentro de si, passa por todas as etapas aqui

citadas, desemboca na possibilidade de que a sua formação pessoal não se

encontra somente dependente de si, mas sim, de toda a sociedade em que ele se

encontra inserido, numa ação recíproca de formação, onde a sua vontade acaba

sujeita, em certo sentido, a vontade de outros. É, portanto, uma consequência da

consciência e do ser realmente livre. Assim, a condição para a formação do homem,

sua consciência e, consequentemente, da sua pessoa depende da consciência da

liberdade e da consciência da escolha. De maneira que

Sem dúvida não sou livre para não querer meu próprio bem, não sou livre para querer meu mal, mas a minha liberdade consiste justamente no fato de eu só poder querer o que é conveniente para mim, ou que considero como tal, sem que nada de alheio a mim me determine [...] (ROUSSEAU, 2004, pp. 395-396).

Diante disso, a possibilidade de ser livre verdadeiramente marca a formação

do homem em sua consciência. Sua pessoa é formada a partir da noção de

liberdade, que se concretiza na vida social, conforme já visto neste trabalho. É essa

liberdade verdadeira, possibilitada pela junção das forças humanas, que ratifica a

capacidade racional e faz eclodir a dimensão da consciência do homem.

Quanto à consciência, e sua capacidade de escolha, essa requer do homem

uma atenção maior. A liberdade que se lhe aparece por conta da vida em sociedade,

faz com que ele possa escolher e diferenciar suas ações. É somente nessa

liberdade condicional que o homem encontra a possibilidade de escolher. Assim,

“[...] ela [a natureza] o fez livre para que ele fizesse não o mal, mas o bem por

escolha” (ROUSSEAU, 2004, p. 396). É preciso ressalvar um aspecto interessante

no pensamento de Rousseau acerca da pessoa; ao que se sabe, a pessoa se

encontra no mundo, vivendo em uma sociedade livre, através de um consentimento,

sustentada pelo contrato entre as partes soberanas, com a possibilidade de escolha.

Entretanto, como o homem é passível de tentações pelas paixões, cabe à

consciência o papel de conter os avanços dessas paixões, fazendo com que o

humano não se deixe levar por aquilo que seria mais nocivo. Esse mal que o homem

acaba vivendo não é fruto de situações exteriores, mas sim de sua própria escolha.

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“O mal moral é incontestavelmente obra nossa, e o mal físico nada seria sem os

nossos vícios” (ROUSSEAU, 2004, p. 397).

Toda essa condição que aparece ao homem por conta de sua disposição

para a consciência, fruto de uma razão ativa e viva, faz com que a vida em estado

de natureza seja visada como um meio pelo qual se evita os males sociais. Por esse

motivo é que inúmeros são aqueles que confundem o pensamento rousseauista no

sentido de entender que a vida social é nociva, e é ela que promove a desigualdade

entre os mesmos homens. Porém, o que se apresenta como real motivo para tal

entendimento não se encontra sustentado pela análise e comparação entre o

segundo Discurso e o Contrato; mas sim, no fato de que é a capacidade de análise

reflexiva, disposta pela dimensão racional do homem, que faz com que ele passe a

comparar, refletir e analisar situações que antes eram impensadas e inimaginadas.

Esse fundamento da consciência que sustenta a reflexão da situação

humana, que encaminha o entendimento pessoal, não se estabelece em parâmetros

sobre humanos e supranaturais; há uma tendência a transferir para entidades

espirituais tidas como superiores a culpa pela situação em que o homem se

encontra. A possibilidade de resposta para tais problemas é irrisória, visto que o que

realmente pode-se dizer como responsável é o próprio homem. A sua consciência,

sustentada pela sua pessoa traduz a essência da busca humana: si mesmo. A

grande questão antropológica do pensamento de Rousseau não está em

disposições sociais apoiadas por governos e governantes ditadores, mas reside no

fato de que a pessoa, em todas as suas atribuições, não é levada em consideração.

Rousseau se dedica, ao longo de suas obras, a tratar do homem, de sua vida, da

sociedade, das formas de governo, da liberdade, mas não se preocupa em colocar

em questão a grande linha mestra do pensamento filosófico: “conhece-te a ti

mesmo”, como pergunta fundamental que atravessa séculos sem ser respondida. O

arquétipo filosófico do eu permanece como fonte de resolução e complicação para

uma discussão que nunca saiu do âmbito interno, que nunca se colocou para além

da pessoa. A pessoa em Rousseau é a ponte fundamental entre o ser natural e o ser

social. Uma análise que se traduz de maneira objetiva e simples no Emílio:

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[...] Basta consultar-me sobre o que quero fazer; tudo o que sinto estar bem está bem, tudo o que sinto estar mal está mal. O melhor de todos os casuístas é a consciência, e só quando regateamos com ela recorremos as sutilezas do raciocínio [...] (ROUSSEAU, 2004, p. 404).

Assim, em linhas gerais, pode-se definir a consciência como “[...] a voz da

alma, [pois] as paixões são a voz do corpo” (ROUSSEAU, 2004, p. 405). Essa

definição leva ao entendimento de que a pessoa em Rousseau é aquela que possui

a capacidade de escutar a voz da natureza e a voz da sociedade; é a ponte

necessária entre a vida natural e a vida social.

Existe, pois, no fundo das almas um princípio inato de justiça e de virtude a partir do qual, apesar de nossas próprias máximas, julgamos nossas ações e as de outrem como boas ou más, e é a esse princípio que dou o nome de consciência (ROUSSEAU, 2004, p. 409).

A consciência, portanto, se apresenta como um intermédio entre o ser

natural e o ser social. É ela quem possibilita ao homem a sua formação efetiva, com

a possibilidade de que as duas formas possam se encontrar no mesmo humano,

sem que haja o excesso de uma das partes. A consciência possibilita o

discernimento entre as ideias adquiridas e os sentimentos naturais; na prática, “[...]

as ideias são sentimentos e os sentimentos são ideias [...]” (ROUSSEAU, 2004, p.

410, nota).

A consciência é tímida, ela ama o sossego e a paz; o mundo e o barulho assustam-na, os preconceitos de que a fazem nascer são seus mais cruéis inimigos; ela foge ou cala-se diante deles; sua voz sonora abafa a dela e a impede de se fazer ouvir; o fanatismo ousa contrafazê-la e ditar o crime em seu nome. Por fim, ela se revolta de tanto ser mandada embora; já não nos fala, já não nos responde e, depois de tão longos desprezos por ela, é tão difícil chamá-la de volta quanto custou bani-la (ROUSSEAU, 2004, p. 412).

O que se percebe é que a capacidade de consciência desenvolvida pelo

homem pode ser abalada por um instrumento social: a opinião. São as opiniões, ou

o que o genebrino chama de “Império das Opiniões” que levam o homem para a

errônea compreensão de vida, humanidade, essência e existência.

3.5 Consciência versus opinião

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A disposição do modo de pensar de Rousseau acerca da opinião, ou das

opiniões, não é de tudo novo. Ao esboçar certa aversão ao mundo das opiniões, o

genebrino evoca uma discussão que antecede ao seu tempo. A tradição filosófica há

muito já colocava a opinião como um campo destinado a falsidade, ou ao domínio do

falso. Ao que se sabe, por opinião se entende um juízo baseado numa crença

acerca da verdade de algo, sem propriamente um exame crítico, ou ainda uma teoria

que dê sustentação a tal hipótese. Na filosofia clássica, principalmente no

pensamento de Aristóteles, a opinião (doxa) se coloca num campo de falsidade por

opor-se à ciência (episteme) e ao pensamento racional (dianoia); em linhas gerais

há a contraposição a prática racional; o que leva ao entendimento de que a

formação da opinião se coloca simplesmente no campo das ilusões e do erro, ou

nos dizeres de Aristóteles: “[...] a opinião se aplica ao que, sendo verdadeiro,

poderia ser falso e vice-versa” (ARISTÓTELES, 1947).

Em outro sentido, especificamente no campo epistemológico, a opinião

poderia ser entendida como um conhecimento imediato, que se baseia nas opiniões

vividas e experienciadas; em certo sentido, a opinião seria um fundamento que

busca designar objetos por sua utilidade, numa clara oposição à ciência.

Em Rousseau a opinião se reveste de um diferencial. Por um lado, a

compreensão da opinião se traduz numa lógica de sustentação da sociedade,

assumindo para si uma dimensão coletiva; em outras palavras, poderia se dizer

opinião pública. Em outro momento, essa mesma opinião de Rousseau se apresenta

como base necessária para a formação do indivíduo, pois “[...] Vendo por tristes

observações serem invertidas as minhas ideias sobre o justo, o honesto e todos os

deveres do homem, eu perdia a cada dia alguma das opiniões que recebera [...]

(ROUESSEAU, 2004, p. 374). Essa contraposição se apresenta de maneira clara

nos escritos do genebrino ao se tomar o Contrato social e o Emílio; e justamente

para se evitar a sobreposição de um comportamento nocivo ao homem é que a

distinção se apresenta como opinião, quando relativo ao campo individual, e império

das opiniões quando se quer evidenciar a influência exercida pela sociedade. A esse

ponto afirma Nascimento (1989, p. 40):

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A opinião pública, por sua vez, enquanto força racional capaz de exercer uma pressão sobre os indivíduos, exige, para se caracterizar como instância julgadora, um processo de esclarecimento, um processo de formação do público, precisa tomar o lugar do preconceito, que nada mais e do que a perpetuação do erro como verdade.

Dessa forma, a concepção da opinião como uma dimensão do público quer

repensar muito mais do que a dimensão humana pessoal; mas busca uma

formulação adequada para o coletivo, de maneira que as influências

preconceituosas deixem de existir e passe a vigorar a prática racional.

Em Rousseau é preciso expor as definições de opinião pública de maneira

que se deixe claro quais são os pontos importantes, devido ao fato de que em

muitos dos seus textos, os termos podem ser utilizados de maneira que gere uma

confusão no leitor; de maneira que será preciso uma atenção redobrada para se

chegar a compreender quais sentidos o genebrino quer atribuir a opinião. Entretanto,

mesmo com tal observação passível de atenção, neste trabalho se fará a opção por

trazer a tona a discussão da opinião pública como o meio necessário para a

formação integral da pessoa. Para tanto, será preciso tomar cada um dos momentos

que envolvem tal formação, que se divide em sete pontos, a saber: olhar do outro;

estima pública; reputação; preconceito; julgamento público; consideração pública e

opinião pública.

A dimensão do olhar do outro marca a vida do homem social, como o

primeiro passo para a sua formação no ciclo social. Quando passa a viver em

coletivo, por necessidades já elencadas e sabidas, o homem se encontra como um

outro; como outro, ele também reconhece os outros que se encontram a sua volta, e

o modo como esse outro o observa passa a ser fundamental para a sua construção

enquanto pessoa. É evidente, como já se viu, que a significação como pessoa

depende do modo como esse outro homem passa a olhar o primeiro; ai, a partir das

comparações e ações racionais, a definição pessoal passa a vigorar. Assim, só há o

eu, se existe o outro e seu olhar. Em Rousseau, por outro lado, essa dependência

criada pelo olhar do outro, pode ser nociva para o homem, uma vez que ele “[...] já

não vive por si mesmo” (NASCIMENTO, 1989, p. 45). Tal comportamento faz do

homem um ser que caminha para a manutenção da estima pública.

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A estima pública, por sua vez, aparece como um instrumento de ação do

homem em sociedade que quer ser reconhecido pelo outro, e quer criar e manter

uma determinada reputação para o seu convívio em sociedade. As suas ações

passam a ser mediadas não mais por necessidades do coletivo, ou por uma vontade

individual; mas sim, é tomada por um comportamento que tende a afastar o homem

de sua real liberdade e de sua natureza35, forjando uma pessoa que não consegue

fazer a ponte necessária entre as duas realidades [natural e social], mas que se

torna altamente dependente do coletivo, anulando sua dinâmica individual por

completo. Pois “[...] a educação negativa consiste em fazer com que Emílio não se

deixe dominar pelo império da opinião, da aparência, mas que saiba viver por si

mesmo [...]” (NASCIMENTO, 1989, p. 46). O homem que consegue realizar tamanho

feito passa a ser observado por essa sociedade com determinado preconceito; este

preconceito se dá não pelo fato de ser diferente, mas por conta de que muitos

daqueles que têm essa atitude, não conseguem se livrar da necessidade da opinião

pública, e não consegue promover uma reflexão pessoal. Dessa forma, o julgamento

público aparece não como um benfeitor, mas sim, “[...] como algo extremamente

negativo, fator de corrupção que faz com que o homem se afaste sempre de seu

estado de liberdade e de inocência [...]” (NASCIMENTO, 1989, p. 45).

Essa mutação promovida pelo julgamento público faz com que o homem

fique sujeito ao império das opiniões, que comanda outros pontos da vida social,

como a moda, ou altera os costumes. Em certo sentido, há uma estreita ligação da

vida social com o império das opiniões, pelo simples fato de que há uma espécie de

segunda natureza do homem, visto que “[...] sem a reputação, sem as honras, sem o

olhar do outro, não haveria vida em sociedade” (NASCIMENTO, 1989, p. 49).

Apesar de muitos autores concordarem que o império das opiniões em

Rousseau deva ser extinguido da prática humana, o que se percebe, ao se defrontar

com o texto Considerações sobre o governo da Polônia, é que o processo é

inversamente necessário. O olhar do outro e a opinião pública podem ser de grande 35 O que aqui se chama de natureza é a disposição do homem natural de Rousseau nem para o bem e nem o mal. Em outras palavras, “[...] os homens nesse estado, não tendo entre si nenhuma espécie de relação moral nem de deveres conhecidos, não podiam ser bons nem maus, nem tinham vícios nem virtudes [...] (ROUSSEAU, 2007, p. 51).

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auxílio e ajuda na formação do homem social. A opinião pública poderia funcionar

como lei não escrita.

[...] Entre todos os povos do mundo, não é em absoluto a natureza, mas a opinião, que decide a escolha de seus prazeres. Melhorai as opiniões dos homens, e seus costumes purificar-se-ão por si mesmos (ROUSSEAU, 1973, p. 142).

Como uma espécie de censor, a opinião ajuda na formação da lei, que

orienta a sociedade. Rousseau deixa claro que deve existir uma estreita relação

entre os poderes públicos e as opiniões, de maneira que é impossível ao homem

civil se ver completamente livre de tais pontos.

As opiniões de um povo nascem de sua constituição. Embora a Lei não regulamente os costumes, é a legislação que os faz nascer; quando ela enfraquece, os costumes degeneram, mas então o julgamento dos censores não fará o que a força das leis não fez (ROUSSEAU, 1973, p. 142).

O que se apresenta assim é a necessidade de que as opiniões sejam

regulamentadas. Esse feito se dá pela censura.

A censura mantém os costumes, impedindo as opiniões de se corromperem, conservando sua retidão por meio de aplicações sábias e até, algumas vezes, fixando-os, quando ainda se mostram incertos (ROUSSEAU, 1973, p. 142).

Assim, o pensamento de Rousseau se coloca num paradoxo envolvente. Por

um lado há a necessidade de se livrar das opiniões, como aquelas que contribuem

para a não-formação do homem, para seu vício, mas por outro lado, em outro

momento, somente as opiniões podem manter um povo vivo, sendo elas o conjunto

de tradições e costumes. É justamente aqui, quando existe o problema da opinião

em Rousseau, que se apóia o ponto de discussão deste trabalho.

Quando se toma a consciência e a opinião como reais e essenciais

formadores da pessoa no pensamento rousseauista, a grande questão é justamente

se afirmar que, ao contrário do que se pensa, em nenhum momento Rousseau se vê

perdido, ou mesmo confuso, em seus escritos. Durante todo o tempo em que

desenvolve seus pontos fundamentais para o aporte à discussão, o pensador tem

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estabelecido a necessidade inegável de se colocar no centro do processo a pessoa,

o ser humano. Ao contrário dos grandes contemporâneos que apontam a ciência

como a solução para os problemas e dúvidas, o genebrino acena para o homem,

para a formação essencial dessa figura; numa espécie de antropocentrismo, ele

dispõe que a grande resposta para todas as situações está centrada na reflexão

individual, que somente se desenvolve no seio social. Por tal motivo que em seus

textos não há a apologia completa a um sistema, como o caso da consciência e da

opinião, mas o que existe é a figura desse humano que precisa saber refletir acerca

dos pontos principais que o envolvem e, na sua essência, encontrar respostas para

a convivência e os problemas sociais. A essa essência do homem que se dá o nome

de pessoa.

A pessoa em Rousseau, portanto, será o grande ponto fundamental de toda

a estrutura dos seus textos. É justamente por tal motivo que “[...] não encontramos

em nenhum momento a figura do intelectual portador da verdade e que deve, por

isso mesmo, transmiti-la a homens ignorantes e cheios de preconceitos”

(NASCIMENTO, 1989, p. 54). Rousseau faz questão de deixar claro que a pessoa

humana será o centro de suas atenções. É evidente que ele não cita tal informação

em seus escritos, mas é possível deduzir a partir de uma cuidadosa leitura do

segundo Discurso, bem como de alguns pontos do Emílio, principalmente o

intertexto do Vigário saboiano. É possível dizer ainda que Rousseau adiantou a ideia

de pessoa como um ser racional e livre, definido por sua dimensão de ser racional e

livre, com viés moral e espiritual, consciente do bem e do mal.

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CONCLUSÃO

A construção deste trabalho não seguiu por caminhos fáceis. Desde o

estabelecimento do tema primeiro: a ética original em Rousseau, até a definição

deste tema: a pessoa em Rousseau foi um longo caminho. O entendimento de que o

pensamento de Rousseau não cabia a ideia de algo original, pois a estrutura do

seus escritos trabalha com a dinâmica do social, se deu mediante a releitura de

todos os textos, bem como a orientação do professor José Benedito. Assim, a

possibilidade de entender que a busca de um comportamento ético supõe a

definição de ser humano, fez com que fossem estabelecidos parâmetros de ação

para a escrita deste trabalho, que tem como pano de fundo a formação da essência

do ser humano, que é a pessoa humana.

A busca de uma concepção de pessoa, formada a partir das leituras dos

textos de Rousseau, auxiliada por seus principais intérpretes, como Victor

Goldschmidt e Jean Starobinski, se constrói numa sucessão de etapas onde a teoria

se transforma numa realidade latente, composta de pontos simples e, ao mesmo

tempo, complexos. Não há a possibilidade de se estabelecer a ideia de pessoa sem

que compreenda a origem desse ser humano, para além da postulação animal, ou

mesmo natural. A compreensão alcança parâmetros de superação do ser em estado

natural, porém, não abandona a necessidade de sua participação efetiva na

composição da pessoa. Justamente por tal fato, que o ponto inicial é a análise da

liberdade, ou das liberdades, onde o pensamento de Rousseau se coloca como um

delimitador dos aspectos humanos, formando a realidade social baseada em

parâmetros naturais.

A pessoa de Rousseau é um ser individualizado, se pensado no estado

natural e, ao mesmo tempo, coletivizado, quando encarado como estado social. Este

mesmo homem se modifica com a passagem para o estado social, e o faz para

garantir a liberdade, os bens e a vida. Ao se colocar neste estado social, o homem

corresponde de maneira errada, por conta do amor de si, gerando os conflitos

sociais. Tais conflitos passam a ser regulados pelas leis, oriundas da vontade geral,

da qual o individuo faz parte, de maneira que a “alienação necessária” se apresenta

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como meio pelo qual se promove a verdadeira liberdade e a igualdade. Em outros

termos, o homem cria as leis às quais estará submetido pela vontade geral [que se

torna a reguladora das ações sociais].

Assim, a pessoa em Rousseau será entendida como a capacidade de

manter seus traços naturais [no caso a bondade], que se tornam anulados pela

sociedade. A estátua de Glauco mostra justamente isso: a essência humana

permanece intacta, como a cabeça da estátua. O tempo não modifica a essência,

mas sim, a superfície. O homem permanece bom, quando pensado em sua

natureza, e se degenera em vivência social [o mal lhe é externo]; entretanto, a

degeneração não significa destruição.

O pessimismo histórico do Discurso é contrabalanceado pelo otimismo antropológico que é uma das constantes do pensamento de Rousseau. “O homem é naturalmente bom”. A bondade natural está perdida para sempre? Sim, se se consideram as sociedades. Não, se considera o homem singular. O mal não reside na natureza humana, mas nas estruturas sociais (STAROBINSKI, 1991, p. 300-301).

A análise da liberdade passa pela compreensão de estágios separados. Ou

seja, há a liberdade natural, a liberdade convencional, todas sustentadas pela

soberania da vontade geral, onde a formação individual não abandona as essências

naturais. Esse sentimento e prática de liberdade traz ao humano a possibilidade de

uma existência verdadeira, significada pela ação prática da alteridade e do

reconhecimento da autonomia, princípios fundamentais para o reconhecimento da

pessoa do humano.

A única forma de liberdade, na sociedade civil, é aquela da qual todos participam em igualdade de condições, de modo a promover a liberdade como valor social. Assim, não há renúncia, mas conquista; não há submissão, mas igualdade; não há destruição, mas construção da liberdade e da moralidade nas relações entre os homens (TOMAZELI, 1999, p. 34).

Tomados os pontos essenciais para a delimitação da pessoa, isto é, a

liberdade, o caminho levará ao estabelecimento da pessoa. Para se chegar a essa

etapa, se faz preciso compreender que esta pessoa tem estágios. O primeiro deles é

a pessoa física/natural, onde as bases são estabelecidas obedecendo a princípios

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naturais originais, que se convertem em características do ser social, que gera o

segundo estágio: a pessoa moral/social. Essa última é a junção dos aspectos

naturais, com os aspectos sociais, unidos pela ponte da piedade, comportamento

comum em ambos estágios. Ao se alcançar a pessoa social, com características

naturais, chega-se a definição de consciência e da opinião, aspectos extremos do

ser humano que se faz racional, moral, social e egoísta. Tais aspectos sustentam o

contrato social, uma vez que ele se apóia na liberdade convencional, ratificando o

ordenamento.

Assim, a definição da pessoa em Rousseau, se encontra estabelecida na

capacidade do humano de assumir a liberdade, praticar a introspecção, possuir a

consciência e saber como lidar com a opinião. De maneira que o ser social, livre de

uma vez por todas, dos seus aspectos naturais, se coloque no caminho para a

mudança; mudança essa que acontece somente com a educação. Se o homem é

bom por natureza, e a sociedade o corrompe, a sociedade não consegue corrompê-

lo por completo; a sua alma, sua consciência, permanece com a essência natural,

com comportamentos naturais, que se unem ao ser social, transformando assim, a

pessoa de Rousseau, num misto de natureza, sociedade e educação.

Na ordem natural, sendo os homens todos iguais, sua vocação comum é a condição de homem, e quem quer que seja bem educado para tal condição não pode preencher mal as outras relacionadas com ela. Pouco me importa que destinem meu aluno à espada, à Igreja ou à barra. Antes da vocação dos pais, a natureza o chama para a vida humana. Viver é o ofício que quero ensinar-lhe. Ao sair de minhas mãos, concordo que não será nem magistrado, nem soldado, nem padre; será homem, em primeiro lugar; tudo o que um homem deve ser, ele será capaz de ser [...] ROUSSEAU, 2004, p. 15)

Não se quer, em momento algum, provar que a pessoa tenha,

obrigatoriamente, que seguir um determinado caminho, ou mesmo um destino. O

que se quer, antes de tudo, é mostra que somente em estado civil é que se

consegue manter a vida; evidentemente que a ligação com o estado de natureza

não será esquecida de uma vez por todas, conforme já afirmado. A personificação

da liberdade, que por hora parece ousadia, tende a levar a reflexão da pessoa em

Rousseau para a linha humanista de uma vez por todas. Por mais que o

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ordenamento seja dado pelo Estado, esse não tem o intuito de impor a vontade

sobre a vontade geral, sobre a liberdade de cada cidadão.

A pessoa em Rousseau ainda enfrenta o mundo das opiniões, como um mal

necessário. Fato que o indivíduo possui opinião e, ao mesmo tempo, convive no

império das opiniões, quando influenciado diretamente pela sociedade. A opinião se

opõe a prática racional, como visto, mas é parte da formação da pessoa. Esse

paradoxo coloca o pensador como confuso por rejeitar e aceitar, ao mesmo tempo, a

dimensão da opinião. É justamente para solucionar as divergências existentes

nesses conceitos que Rousseau apresenta a educação como saída para a real

compreensão e vida humana. Educação essa, que se converte em espaço para a

construção do humano, que esbarra na necessidade de se reconhecer como ser,

conhecer-se, entender-se, compreender o meio em que se vive, suas necessidades

fundamentais, a necessidade do outro para a construção de si, a fundamentação

moral, a sociedade como meio de sobrevivência, a prática racional, a

fundamentação crítica e a ação prática.

Uma análise que coloca a definição de pessoa na contemporaneidade não

como um ponto solucionado, mas sim, uma reflexão que ainda merece maiores

contornos, uma vez que a cada nova análise, se percebe algo novo. A limitação da

pesquisa se encaixa justamente neste ponto: durante as leituras optou-se por não

utilizar os livros autobiográficos de Rousseau, como Confissões, Rousseau, juiz de

Jean-Jacques, por se entender que esta análise deve ser consecutiva deste

trabalho.

Por fim, trazer Rousseau para o debate acerca da pessoa mostra que o

campo filosófico não pode se esgotar nos limites do tempo, mas deve alçar vôos

mais altos, no intuito de alcançar a verdadeira dimensão do ser filosófico: a busca

pela verdade, a análise do todo. Ser pessoa não é simplesmente existir, ou mesmo

viver, mas sim, autoconhecer-se, possibilitando uma prática que hoje não é mais tão

praticada: a reflexão pessoal. Nesse conhecimento pessoal, residem as respostas

para as dúvidas, mas muito mais que isso; reside a possibilidade de se entender a

liberdade, a vida, a sociedade, a moral, a ética, a razão, a consciência, a opinião, a

realidade, enfim, o ser.

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