TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO · PDF file25 a 27 de maio de 2010 – Facom-UFBa – Salvador-Bahia-Brasil TODO CAMBURÃO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO POSSÍVEIS ANALOGIAS

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  • 25 a 27 de maio de 2010 Facom-UFBa Salvador-Bahia-Brasil

    TODO CAMBURO TEM UM POUCO DE NAVIO NEGREIRO

    POSSVEIS ANALOGIAS ENTRE O CAPITO DO MATO E O POLICIAL

    Eliezer Santos1

    Jordnia Freitas2

    Shagaly Araujo3

    Resumo: Este trabalho pretende explicitar possveis ligaes ideolgicas entre o

    policial da atualidade e o capito do mato do regime escravocrata, tomando como base a

    observao das ideias dispostas pelo e sobre o narrador-personagem do livro Elite da

    Tropa, escrito por Luiz Eduardo Soares, Andr Batista e Rodrigo Pimentel, alm dos

    registros histricos contidos no livro Da fuga ao suicdio de Jos Alpio Goulart. Essas

    referncias possibilitaro perceber como esses indivduos parecem comungar de um

    conjunto de prticas coercitivas, dentre as quais a mais forte seria a de ver o sujeito

    negro como suspeito em potencial.

    Palavras-chave: Capito do mato. Policial. Segurana pblica.

    mole de ver

    Que em qualquer dura

    O tempo passa mais lento pro nego

    Quem segurava com fora a chibata

    Agora usa farda

    Engatilha a macaca

    Escolhe sempre o primeiro

    Negro pra passar na revista

    Pra passar na revista

    (Todo camburo tem um pouco de navio negreiro Marcelo Yuka)

    Os capites do mato eram homens responsveis pela captura de negros fugidos.

    Em sua maioria, eram libertos, que exerciam essa funo em troca de um pagamento por

    parte dos proprietrios, conhecido como tomadia. A escolha de ex-escravizados para o

    cargo se dava pelo fato de estes conhecerem bem as rotas de fuga. Conforme Bezerra

    (2004), nem todos os forros estavam aptos para o ofcio, pois

    1 Estudante de Comunicao Social Jornalismo da Faculdade 2 de Julho ([email protected]).

    2 Estudante de Comunicao Social Jornalismo da Faculdade 2 de Julho ([email protected]).

    3 Estudante de Letras Vernculas da Universidade Federal da Bahia ([email protected]).

  • para um homem livre pobre tornar-se capito do mato, era necessrio que fossem

    reconhecidos nele bons antecedentes, ratificados por uma recomendao prestigiosa.

    Por isso, o interessado em tornar-se capito do mato deveria se apresentar a um

    homem-bom, que o recomendaria s autoridades locais (BEZERRA, 2004).

    O termo capito do mato faz aluso a um pssaro homnimo, que auxiliava os

    homens no resgate dos fugitivos. Quando estes adentravam nas matas, a ave cantava

    estridentemente, o que permitia aos capites identificar o esconderijo.

    Para atuar em seu trabalho, o capito recebia de seu contratante armamento e

    uma equipe de homens para auxili-lo nas buscas. Este, como descreve Rugendas

    (1824), tambm utilizava ces ensinados, alm de outros recursos, caso fosse

    necessrio. O cargo era exercido no perodo de um ano, podendo ser estendido,

    mediante o aval do Imprio. Sua posio social era ambivalente, pois se situava entre a

    camada escravizada e o senhorio. Entretanto, o capito do mato gozava de baixo

    prestgio na sociedade. Nascimento (2006) explica que

    mesmo sendo considerado livre, o negro que j fora escravo no tinha sua

    integrao sociedade assegurada. Este negro no circulava tranquilamente entre os

    brancos, nem entre os negros escravos, restando-lhes a vida marginalizada, ou seja, no

    possua seus espaos de fato como Homem Livre na sociedade. Diante disso alguns se

    entregavam a funo de perseguir e ir contra os negros que apresentassem tipos

    especficos de resistncia ao sistema vigente. Faziam isso como forma de ofcio, como

    maneira de ganhar sua ascenso social, como forma de transitar prximo dos senhores,

    numa falsa impresso de participar da elite (NASCIMENTO, 2006).

    No h registros de quando surgiu esta profisso, entretanto, sua normatizao se

    deu a partir do sculo XVIII. De acordo com Goulart (1972, p. 77) o ofcio resultou de

    gerao espontnea, motivada pela imperiosa necessidade de capturar escravos fugidos,

    no s para faz-los retornar posse e aos servios de seus senhores, como para

    reprimir suas constantes tropelias4.

    Para a sociedade brasileira colonial, o capito do mato figurava-se como o

    instrumento usado pelas autoridades para a manuteno da ordem escravista, mediante o

    uso de mtodos repressores e hostis, alicerado pelo poder armado, para com a

    populao negra subalternizada. Atualmente, podemos identificar, no ofcio policial,

    vestgios da postura adotada pelos capites de outrora, tendo em vista que ele assume

    hoje tal papel, aspecto observado no livro Elite da Tropa, escrito por Luiz Eduardo

    Soares, Andr Batista e Rodrigo Pimentel, em 2005.

    A obra descreve o cotidiano do Batalho de Operaes Especiais do Rio Janeiro

    BOPE, sob o prisma de um policial negro, estudante do curso de Direito da Pontifcia

    Universidade Catlica PUC, que, em nenhum momento da narrativa, tem seu nome

    4 Astcia, travessura.

  • citado. As situaes descritas na obra mostram aspectos psicolgicos e metodolgicos

    que giram em torno da funo policial, os quais servem como suporte comparativo na

    observao de semelhanas com as prticas do capito do mato.

    A organizao hierrquica do sistema de segurana pblica da

    contemporaneidade assemelha-se com a estrutura que demarcava os papis dos agentes

    que compuseram a base escravocrata, como observamos neste trecho: O governador

    dorme o sono dos justos; o secretrio descansa em bero esplndido; o comandante

    repousa como um cristo; e o soldado, l na ponta, suja as mos de sangue (SOARES;

    BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 37). Assim como o capito do mato ocupava um dos

    ltimos lugares na escala de controle do sistema vigente em sua poca, o policial

    quem executa, no cotidiano, as tticas esquematizadas por seus superiores.

    O elemento primordial na associao desses personagens , sem dvida, o objeto

    de perseguio compartilhado por ambos: o negro. O narrador-personagem do livro

    Elite da Tropa deixa claro que a abordagem policial mais rigorosa direcionada, quase

    que automaticamente, populao negra, obedecendo ao imaginrio predominante na

    sociedade, que projeta no sujeito negro o estigma de indivduo suspeito:

    no vamos ser cnicos e fingir que vivemos no paraso da democracia racial. E

    no estou falando s porque sou negro e vtima do preconceito, no. Milhes de vezes

    me pego descriminando tambm. Na hora de mandar descer do nibus, voc acha que

    escolho o mauricinho louro de olhos azuis, vestidinho para a aula de ingls, ou o

    negrinho de bermuda e sandlia? E no venha me culpar. Adoto o mesmo critrio que

    rege o medo da classe mdia. isso mesmo, a seleo policial segue o padro do medo,

    instalado na ideologia dominante, que se difunde na mdia (SOARES; BATISTA;

    PIMENTEL, 2005, p. 135).

    A percepo estereotipada adquirida pela maioria da populao em relao ao

    negro, no provm unicamente de vivncias atuais. Ela tambm fruto de um construto

    histrico, que sempre o apresentou como um ser inferior, marginalizado e propenso

    atividades criminosas. Nesse sentido, a ideologia dominante que se prolifera ao longo

    dos anos, apresenta-se como estmulo e reforo para justificar as aes policiais:

    vocs ficam me olhando com essa cara e resmungando, mas eu queria ver se

    fosse uma negrinha de cabelo pixaim, malvestida. Duvido que me viessem com essas

    delicadezas. Atire em mim a primeira pedra quem jura que no faria galhofa da pobre

    coitada e no faria questo de contribuir com um pontap para a surra na negrinha.

    Como voc v, a cor da pele a nossa bssola. E, nisso, somos apenas adeptos

    modestos fiis da cultura brasileira (SOARES; BATISTA; PIMENTEL, 2005, p. 136

    137).

    As semelhanas entre as figuras em discusso neste artigo evidenciam-se, se

    observarmos, tambm, as descries trazidas por Goulart (1972) sobre o caador de

    escravos, em seu livro Da Fuga ao Suicdio, e as compararmos com os relatos

  • dispostos em Elite da Tropa. As obras, em certos momentos, dialogam entre si, tendo

    em vista que narram indivduos situados em diferentes momentos histricos, mas que

    possuem caractersticas extremamente parecidas.

    Goulart (1972) descreve o capito do mato como:

    corpulento, de m catadura, que tem o andar macio dos felinos e a disposio

    dos afeitos luta, em especial, a capoeiragem. O chapu de abas largas, desborda-lhe,

    sobre o rosto, escondendo-lhe a direo do olhar: no olhar duro, penetrante e frio; ou

    defende-lhes das soalheiras faiscantes e abrasadoras do vero. Botas de cano alto, de

    couro flexvel de veado, montam-lhe ao meio das coxas. Longa capa de baeta despenca-

    lhe dos ombros, agasalhando-o nas pocas invernosas. No punho, dependurada, a

    indefectvel tala, pronta a entrar em ao no lombo de qualquer das arimrias: no do

    cavalo ou no do escravo (IDEM, 1972).

    A postura e a indumentria deste profissional funcionavam como um modo de

    confirmao da autoridade que lhe era conferida. Para o policial contemporneo,

    atributos como estes, aliados ao uso de armamento mais sofisticado, no so

    simplesmente elementos que compem seu fardamento, mas sim, uma representao

    simblica, que, em si, j demarca a ideologia do aparelho policial:

    temos um puta orgulho do uniforme preto e do nosso smbolo: a faca cravada na

    caveira. Os marginais tremem diante de ns. No vou iludir voc: com os marginais,

    no tem ap