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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, ECONÔMICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICA SOCIAL FABIANE BRIÃO VAZ TOLERÂNCIA, RELIGIÃO E DIGNIDADE NO ENCONTRO DE CULTURAS: LIÇÕES A PARTIR DO ESTUDO DO CASO ISLÂMICO NA FRANÇA Pelotas 2016

TOLERÂNCIA, RELIGIÃO E DIGNIDADE NO ENCONTRO DE … · 2020. 3. 28. · programa de pÓs-graduaÇÃo em polÍtica social fabiane briÃo vaz tolerÂncia, religiÃo e dignidade no

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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE PELOTAS

CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS, ECONÔMICAS E SOCIAIS

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICA SOCIAL

FABIANE BRIÃO VAZ

TOLERÂNCIA, RELIGIÃO E DIGNIDADE NO ENCONTRO DE CULTURAS: LIÇÕES A PARTIR DO ESTUDO DO

CASO ISLÂMICO NA FRANÇA

Pelotas

2016

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FABIANE BRIÃO VAZ

TOLERÂNCIA, RELIGIÃO E DIGNIDADE NO ENCONTRO DE CULTURAS: LIÇÕES A PARTIR DO ESTUDO DO

CASO ISLÂMICO NA FRANÇA

Dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Política Social, da Universidade Católica de Pelotas, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Política Social. Área de concentração: Estado, Direitos Sociais e Política Social. ORIENTADOR: Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies

Pelotas

2016

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FABIANE BRIÃO VAZ

TOLERÂCIA, RELIGIÃO E DIGNIDADE HUMANA NO ENCONTRO DE CULTURAS: LIÇÕES A PARTIR DO

ESTUDO DO CASO ISLÂMICO NA FRANÇA

Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do título de Mestre em Política Social e aprovada em sua forma final pelo Orientador e pela Banca Examinadora.

Orientador: ____________________________________

Prof. Dr. Luiz Antônio Bogo Chies, UCPEL

Doutor pela Universidade Federal do Rio Grande do

Sul – Porto Alegre, Brasil.

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Guilherme Camargo Massaú, UFPEL.

Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo, Brasil.

Prof. Dr. Marcelo Oliveira de Moura, UCPEL.

Doutor pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos – São Leopoldo, Brasil.

Coordenadora do PPGPS:

_______________________________

Prof. Dra. Vini Rabassa da Silva

Pelotas, abril 2016.

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

V393t Vaz, Fabiane Brião

Tolerãncia, religião e dignidade no encontro de culturas: lições a partir

do estudo do caso islâmico na França. / Fabiane Brião Vaz . – Pelotas:

UCPEL, 2016.

102f.

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Pelotas, Programa de

Pós-Graduação em Política Social, Pelotas, BR-RS, 2016. Orientador: Luiz

Antônio Bogo Chies.

1.imigração. 2.tolerância. 3.Voltaire. 4. França.5. globalização. 6.liberdade

religiosa. I.Chies, Antônio Bogo, or. II. Título.

CDD 261.72

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Cristiane de Freitas Chim CRB 10/1233

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Dedico este trabalho aos meus pais, Domingos Fernando e Nira, por me

proporcionarem os incentivos econômicos e morais necessários para esta

conquista.

AGRADECIMENTOS

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Aos meus professore, tanto os acadêmicos quanto os da vida, por

entenderem que um mundo melhor se faz quando se passa adiante o

conhecimento.

Aos amigos que foram inseridos na minha vida durante o período de

estudos em Pelotas e que contribuíram para o meu crescimento pessoal e

acadêmico.

E, especialmente, ao professor Luiz Antônio Bogo Chies por ter

disponibilizado de seu tempo e energia para fazer o imenso favor de nortear-

me na conclusão deste processo tão complicado que me foi a participação

neste Programa de Mestrado.

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RESUMO

Essa dissertação possui como objetivo observar o caso ocorrido na França do uso de uma Lei como subterfúgio para equalização das questões de encontros culturais negativos. Percebe-se aqui tal movimento social sob a ótica do conceito de tolerância religiosa com foco nas ideias do filósofo francês Voltaire com intenção de adquirir lições de cidadania e respeito à dignidade humana para o nosso país, Brasil, que atualmente recebe um número considerável de imigrantes em grupos de grande número direcionados à regiões determinadas muitas vezes causando estranheza aos brasileiros que ali residem.

Palavras-chaves: Imigração. Tolerância. Voltaire. França. Globalização. Liberdade Religiosa.

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ABSTRACT

This dissertation has aimed to observe the case in France through an analysis about the use of Law as subterfuge for equalization of negative cultural meetings. Furthermore it will analyze this social movement from the perspective of the tolerance concept focused on the ideas of the French philosopher Voltaire. All this with the intention to acquire lessons about citizenship and respect for human dignity to our country, Brazil, which receives a considerable number immigrants in many groups targeted to certain regions often causing strangeness to the Brazilians who live in there.

Palavras-chaves: Immigration. Tolerance. Voltaire. France. Globalization. Religious Freedom.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO. ............................................................................................ 11

2. LIBERDADE E TOLERÂNCIA RELIGIOSA. ............................................... 17 3. DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO CULTURAL E MULTICULTURALISMO. ................................................................................. 32

4. TOLERÂNCIA E SOLIDARIEDADE. ........................................................... 43

5. O CASO FRANCÊS: PRESENÇA ISLÂMICA E A LEI N. 2010-1191. ....... 60 6. ANÁLISE E CRÍTICA DO CASO FRANCÊS: PERSPECTIVAS E LIÇÕES PARA O BRASIL. ............................................................................................ 81 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS. ........................................................................ 91 8. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. ........................................................... 94

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1. INTRODUÇÃO.

A questão desenvolvida na presente dissertação de Mestrado se volta

para a problematização do uso da legislação como subterfúgio para a

equalização das questões de choque cultural, mais especificamente no âmbito

do direito de liberdade religiosa.

Tem-se como foco a amplitude do poder do Estado, em sua dimensão

legislativa e política, de regular e interferir no âmbito das manifestações e

práticas religiosas quando estas se inserem em confrontos culturais negativos.

Ou seja, quando existem dois ou mais pensamentos religiosos que, ao se

chocarem trazem percepções e interpretações diferentes por parte do outro.

Desenvolver essa Dissertação assumindo como temática eixo a questão

acerca da tolerância religiosa se justifica a partir da identificação de alguns

imaginários da sociedade brasileira, os quais são desmentidos por dados de

realidade: a imagem do Brasil como um país de democracia racial e

sincretismo/tolerância religiosa; a perspectiva de que a sociedade brasileira é

hospitaleira e receptiva aos estrangeiros.

A imagem do Brasil como “país hospitaleiro” foi enfrentada em recente

tese de doutorado, intitulada “Dois Séculos de Imigração no Brasil: A

Construção da Identidade e do Papel dos Estrangeiros pela Imprensa entre

1808 e 2015”, na qual o autor, Gustavo Barreto, sustenta-a como “um mito”.

(PUFF, 2015, sp).

Barreto analisou mais de onze mil edições de jornais e revistas

brasileiras desde a década de 1800 até o ano de 2015 e pôde concluir que,

apesar de alguns avanços, o tratamento do brasileiro direcionado aos

imigrantes é de aceitação seletiva com as diferenças, por exemplo, entre um

imigrante europeu e um africano.

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A Tese destaca que as questões da raça e do trabalho se fizeram

cruciais na história da migração em nosso país. Essa afirmação se fundamenta

com exemplos como o de 1891, quando o Governo decretou que pessoas

amarelas e negras não poderiam mais adentrar o Brasil subsidiados pelo

Estado (PUFF, 2015, sp).

Barreto esclarece que o problema da intolerância contemporânea

para com cidadãos possuidores de características diferentes como costumes,

cor, crença, línguas, trejeitos entre outros não é uma questão apenas de

Primeiro Mundo, destacando que a questão da imigração não foi deixada para

trás junto com a época das colonizações (PUFF, 2015, sp).

O Brasil, conforme conclusão de Barreto, não faz jus à imagem de

acolhedor afetuoso que passa para o resto do mundo. Em que pese sermos um

país de grande miscigenação, ao longo dos anos. A sociedade foi se tornando

homogênia à primeira vista, uma vez que “os diferentes” acabaram por recorrer

às margens da sociedade para se sentirem confortáveis longe dos olhares

daqueles que, no geral, são descendentes de europeus e até hoje carregam a

ideia da mídia dos anos 1800, quando os imigrantes Europeus eram sempre

tidos como superiores (PUFF, 2015, sp).

Tensionar o imaginário do Brasil como país hospitaleiro e sua

sociedade como receptiva ao estrangeiro ganha relevância haja vista que nos

últimos dez anos ele voltou a receber muitos imigrantes, sobretudo bolivianos,

haitianos, angolanos, senegaleses, ganenses.

A tese de Barreto, no sentido de que aqui se efetiva uma aceitação

seletiva em relação às diferenças, encontra exemplos no cotidiano, como

demonstram algumas notícias que recolhemos no ambiente virtual e que

reportam atos de xenofobia e racismo em relação a tais imigrantes:

a) Na plataforma online G1, no dia 3 de junho de 2015, encontra-se

uma reportagem que relata o caso em que um homem, na cidade

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de Canoas (RS), sentiu-se ofendido por ser atendido por um

frentista haitiano em um posto de gasolina. O homem gravou um

vídeo ironizando e humilhando o cidadão haitiano e o colocou

nas redes sociais, acreditando que sua atitude tenha sido digna

de visualizações e elogios e não admitindo para a redação do G1

que cometeu qualquer tipo de crime ou ato vexatório.

b) Outro caso foi o noticiado pelo jornal Gazeta do Povo, em sua

plataforma online, no dia 19 de outubro de 2014. Tratava-se de

um haitiano que foi espancado até perder os sentidos por

colegas de trabalho em Curitiba PR).

No plano da liberdade religiosa também nossa imagem de

sincretismo e tolerância merece ser tensionada, haja vista que o próprio fato da

Lei nº 11.635/2007 instituir a data de 21 de janeiro como “Dia Nacional de

Combate à Intolerância Religiosa” sugere existir um contexto de agressões a

ser enfrentado.

Similar procedimento exploratório no ambiente virtual, como o realizado

para fins de constatação de racismo e xenofobia em relação a estrangeiros,

agora na busca de eventos que confirmem uma realidade intolerância religiosa,

nos revela que em 2015 ocorreu um significativo aumento no número de

denúncias reportadas ao serviço Disque 100, envolvendo a questão. Foram

252 casos reportados em 2015 ao serviço da Secretaria de Direitos Humanos

do governo federal, representando um aumento de 69% em relação a 2014,

quando foram registradas 149 denúncias. Ainda de acordo com os dados, os

Estados do Sudeste concentram 42,8% das queixas recebidas no país

(AMORIM, 2016, sp).

Os praticantes de religiões oriundas da cultura africana são os mais

afetados, de acordo com dados reunidos pela Comissão de Combate á

Intolerância Religiosa do Rio de Janeiro (CCIR), segundo os quais mais de

70% dentre 1.041 casos de ofensas, abusos e atos de violência registrados no

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Estado entre os anos de 2012 e 2015 se relacionaram com esse segmento

(PUFF, 2016, sp).

São situações como a da menina Kaylane Campos, 11 anos, que no

ano de 2015 foi agredida com pedrada na cabeça no bairro Penha, Zona Norte

do Rio de Janeiro, ao voltar pra casa de um culto trajando vestimentas

candomblecistas (ZAREMBA, 2015, sp).

Também no ano de 2015 um terreiro de candomblé foi incendiado

em Brasília, felizmente não deixando feridos. Neste último caso, a imprensa

local já havia registrado 12 incêndios de mesmo cunho somente no ano de

2015 dentro do Distrito Federal (RODRIGUES, 2013, sp).

De acordo com especialistas existem duas explicações para esses

casos. Uma delas seria o racismo e a discriminação que remontam à época da

escravidão que rotulariam negativamente tais práticas religiosas, desde os

tempos do Brasil colônia, pelo fato de serem de origem africana. Outra

possibilidade são as ações de movimentos neopentecostais, que nos últimos

anos teriam se amparado de mitologias e preconceitos a fim de insuflar a

perseguição dos praticantes de religiões alheias à deles (PUFF, 2016, sp).

É, portanto, o contexto de uma sociedade brasileira em relação à

qual se deve tensionar o exercício da tolerância em relação aos encontros

culturais, sejam os que já lhe são estruturais (como os referentes as matrizes

religiosas de segmentos da população), sejam os que são renovados na

contemporaneidade, como os dos recentes movimentos migratórios, que

justifica e sustenta proposta da presente Dissertação, voltando-se ao

questionamento do papel do Estado, através da legislação, no equacionamento

de tais conflitos.

A estratégia escolhida para a abordagem de nossa questão de

pesquisa foi a análise de uma lei Francesa - Lei N° 2010-1192 – a qual proíbe a

ocultação da face em espaços públicos de território francês. Nossa perspectiva

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é de que o estudo desse caso específico, que é matizado pela questão da

imigração e da cultura islâmica dentro do território da França, possibilitará

extrair lições para a realidade brasileira.

O desenvolvimento do trabalho se inicia analisando os fundamentos da

liberdade e da tolerância como conceitos gerais, abordando principalmente a

questão da tolerância religiosa, porquanto consideramos a diferença de crença

religiosa como um fator determinante para que ocorram os confrontos culturais

negativos. As considerações do filósofo francês Voltaire sobre o conceito de

tolerância, bem como acerca dos conceitos de liberalismo e do racionalismo

em sua obra, serão a base dessa abordagem.

Em seguida, serão analisadas as noções necessárias ao

entendimento das dimensões contemporâneas da questão eixo do presente

estudo, as quais se referem às perspectivas da globalização cultural, do

multiculturalismo, da diversidade e dos encontros e choques culturais.

Na sequencia, passa-se a observar com maior detalhamento os

conceitos de Tolerância e Solidariedade, analisando a importância dessas duas

ideias para o bom andamento da sociedade multicultural em que vivemos.

Finalmente, se dará início ao estudo sobre os limites da expressão

religiosa, até onde o direito de expressar uma crença própria pode chegar sem

que interfira nos direitos de terceiros. E, ainda, até onde as respostas a tais

atos e expressões podem ir sem que se torne pejorativa e preconceituosa com

determinada classe religiosa.

Uma vez estabelecidas tais explicações, a análise se volta para a

problematização do uso de legislação pelo Estado como subterfúgio para

equalização das questões de choque cultural. Levantando o caso

demonstrativo de preconceito direcionado às religiões islâmicas que vem

ocorrendo dentro do continente europeu nos últimos anos. Enfatizando o

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estudo de caso sobre a Lei francesa N° 2010-1192, que proíbe a ocultação da

face em espaços públicos de território francês.

Dentro do último ponto citado irá ser levantado um breve histórico da

imigração do povo islâmico para o continente europeu, também abordando

concisamente aspectos explicativos da cultura muçulmana.

Tudo isso para que, ao final, consiga-se enxergar com mais clareza

as possibilidades de (in)tolerância dentro da Lei francesa estudada.

Reconhecendo-se os acertos e erros desta legislação – em nossa hipótese

pensada como subterfúgio para equalização de questões de choque cultural –

será possível levantar ensinamentos norteadores para as futuras normas

brasileiras, a serem produzidas de acordo com suas próprias demandas de

multiculturalismo.

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2. LIBERDADE E TOLERÂNCIA RELIGIOSA.

A definição de liberdade é um assunto extremamente abstrato. É um

conceito complexo, pois para cada individuo a liberdade será o oposto de sua

própria noção de escravidão. Contudo, a liberdade defendida aqui, é a

liberdade advinda do conceito que obteve maior difusão no mundo e que vigora

até hoje na sociedade ocidental.

Em seu verbete Liberdade de Pensamento, da obra Dicionário filosófico

Voltaire cria um debate acerca dessa liberdade interior de pensamento. O

filósofo apresenta duas personagens, sendo uma delas um inglês chamado

Boldmind, possuidor de um espírito intenso e atrevido, e outra sendo um conde

espanhol chamado Medroso.

Boldmind sempre insistia em tentar convencer Medroso a proclamar

seus pensamentos para que se libertasse de ser uma devota ferramenta da

inquisição. Porém o conde se mostrava pacato com sua condição de não poder

falar, escrever ou pensar. Então, quando Boldmind o questionou sobre o

porquê de ele não interrogar por conta própria os dogmas das religiões do

mundo, o conde asseverou sua incapacidade para tal ação, embasado no fato

de ele não ser um dominicano. Eis que o inglês lhe responde: “Sois homem e

isso basta”.

A noção de liberdade teve abordagem filosófica exposta por Aristóteles

em sua obra Ética a Nicômaco. Para o filósofo livre é aquilo que é causa de si

mesmo, sendo liberdade o resultado de uma ação deliberada em que o

indivíduo define as causas e os acabamentos em si mesmo (ARISTÓTELES,

1996 – p. 118-136).

O homem, segundo Aristóteles, só alcançaria plenitude ao exercer todas

as suas habilidades. Desempenhar atos livres seria importante para a

felicidade humana. A inteligência inclinaria o indivíduo para agir em

concordância com certa direção, porém ela não o coage a atuar de

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determinada maneira. Assim sendo, o homem conseguiria plenitude ao agir

livremente em concordância com a razão (ARISTÓTELES, 1996 – p. 118-136).

Corroborando com esse pensando, Zygmunt Bauman, em A liberdade,

1989, explica as consequências negativas da criação de normas políticas que

tentam penetrar nos recursos mais íntimos da vida dos cidadãos:

Notemos que a ubiquidade das regras políticas ao penetrarem nos recursos mais íntimos da vida individual repercute-se na “politização” de questões que noutras circunstâncias não teriam qualquer interesse para o Estado. Todos os problemas pessoais se transformam imediatamente em questões políticas; não podendo ser resolvidos sem recorrer a alguns setores do poder político. Qualquer tentativa dos indivíduos para usarem o seu próprio engenho ao enfrentarem as tarefas da vida é potencialmente perigosa, visto que vai destruindo o princípio da determinação da posição social dos indivíduos por mando político; é, portanto, considerada corrupção. (1989, p. 140)

Cabe como exemplo do citado acima realçar a religião para as mulheres

adeptas do islamismo, uma vez que para elas seus atos de expressão religiosa

nada mais são do que sua própria razão.

Assim, ao usarem véus que ocultariam a face elas estariam exercendo a

liberdade em concordância com sua própria razão. Ou seja, elas estariam

exercendo o sentimento de plenitude que cada ser humano procura ao

deliberar suas ações e atuar da forma que melhor julgar para si mesmo.

De acordo com o pensamento acima descrito, cabe a analogia da

proibição do uso de burcas e niqabs1 pelas mulheres islâmicas com uma

possível proibição aos adeptos do cristianismo de usarem crucifixos em seus

peitos nos locais públicos. Tal exemplo, igualmente, expressa uma profunda

intolerância.

De igual importância também se faz notar que, de outro lado, é fato que

muitas dessas mulheres foram criadas dentro de um ambiente islâmico radical,

1 Burca e niqabs são vestimentas usadas por mulheres islâmicas, sendo a primeira um tecido que cobre o corpo inteiro, deixando apenas os olhos aparentes e a segunda um véu que cobre somente os cabelos da mulher.

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as vezes não desejando continuar a seguir os costumes tradicionais da religião.

Tais mulheres, porém, encontram-se inseridas em um ciclo onde,

independentemente de suas vontades, os costumes da religião são a elas

impostos.

Os seres humanos coexistem com a comoção religiosa há muito tempo,

não sendo estranha a busca por respostas explicativas para a metafísica. O

que diferencia os seres humanos dos demais é, essencialmente, o fato de que

os primeiros estão constantemente em busca da razão. Assim, eles passam

muito tempo procurando compreender o sentido da vida.

Em vista do parágrafo acima, é legítimo afirmar que a religião há muito

desempenha um papel importantíssimo dentro das mais diversas civilizações,

preenchendo um papel de profundo significado na vida dos mais variados

povos.

Já no mundo moderno, com a pluralidade de religiões existentes

somadas às que estão em processo de criação, o estranhamento e a

intolerância com o diferente se faz cada vez mais cotidiano. Assim, percebe-se

a importância do exercício da tolerância para o bom andamento dessa

sociedade global em que vivemos.

Rodrigo Vitorino Souza Alves, em seu artigo Tolerância religiosa e a

política de reconhecimento, 2012, contextua:

Uma reflexão que envolva os desafios da relação entre religião e política certamente tocará o problema da violência. Com motivações religiosas são realizados ataques terroristas, ataques suicidas, explosões de estabelecimentos públicos, confrontos sangrentos. E não são raros esses eventos (2012, p. 1)

Alves relembra alguns casos como exemplo, entre eles a Nigéria, onde

milhares de pessoas foram mortas nos últimos dez anos em consequência de

conflitos que tiveram início por intolerância religiosa. Também, a Índia que no

ano de 2007 presenciou uma série de atentados causados por extremistas

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hindus na região de Orissa. Assim como na Europa e América do Norte onde

as intimidações e atentados originados por fanáticos religiosos geram

insegurança e medo (http://www.diritto.it/docs/33919-toler-ncia-religiosa-e-a-

pol-tica-de-reconhecimento/download?header=true).

Assim, esclarece que: “diante dessas circunstâncias faz-se necessário,

mais uma vez, afirmar a necessidade da tolerância, repensando os modos de

sua efetivação, pois somente através dela é que se conceberá a convivência

pacífica e harmônica” (ALVES, 2012, p. 3).

Cabe ressaltar que na esfera do Direito Internacional a tolerância e a

liberdade religiosa se encontram vastamente garantidas. A Declaração

Universal dos Direitos Humanos traz, em seu artigo 18, a previsão de que todo

o ser humano tem direito à liberdade religiosa. Nisso está incluída a liberdade

de manifestar a própria religião de maneira a ensiná-la, pratica-la, cultuá-la ou,

ainda, observá-la, isso tanto em público como em particular.

A Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de

Discriminação Racial, do ano de 1965, em seu artigo 5, avigora os direitos à

liberdade de pensamento, consciência, expressão e religião, dizendo que estes

devem ser respeitados pelo Estado.

Também o Pacto Internacional Sobre Direitos Civis e Políticos, do ano

de 1966, repete o já previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos ao

acrescentar no seu artigo 18 que nenhuma pessoa poderá ser submetida a

medidas de coerção a fim de abraçar uma religião.

Do ano de 1981, a Declaração sobre a Eliminação de Todas as Formas

de Intolerância e de Discriminação Baseadas na Religião ou Crença assegura

a liberdade religiosa. Afirmando o direito de culto, de criação de instituições de

caridade, de disseminação de publicações, de ensinamento, de observância de

dias sagrados, o direito a não discriminação por pretexto religioso, afirmando

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que qualquer diferenciação entre indivíduos por motivação religiosa estabelece

uma afronta aos direitos humanos.

No ano de 1992 a Declaração sobre os Direitos das Pessoas

Pertencentes à Minorias Nacionais, Étnicas, Religiosas ou Linguísticas afirma

a obrigação dos Estados de resguardar a existência de minorias religiosas.

A Declaração de Princípios sobre a Tolerância, de 1995, conceituou o

termo “tolerância” como sendo o dever de respeitar, acolher e contemplar a

prosperidade e a heterogeneidade das culturas. Asseverando que a tolerância

é: “uma virtude que torna a paz possível e contribui para substituir uma cultura

de guerra por uma cultura de paz”.

Contudo, diferentes religiões possuem entrosamentos doutrinários

adversos, fator que agrava a dificuldade da convivência entre as crenças e

torna a questão da tolerância ainda mais relevante.

Sobre a relação entre religião, Estado e liberdade individual e limitação

do poder estatal, Ana Karenina Righetto Borges, em seu artigo Os princípios

republicanos-constitucionais da liberdade religiosa e da separação

Igreja/Estado e seus históricos nas constituições brasileiras (2004), elucida:

A questão religiosa já teve grande influência sobre o Estado, como no período absolutista, havendo as mais cruéis e sangrentas perseguições a quem não aceitasse a doutrina dominante. Com as consequentes declarações e constituição dos países, que tinham como escopo a liberdade individual e a limitação do poder estatal, o princípio da separação Igreja/Estado foi sendo adotado e a liberdade religiosa reconhecida como direito inerente a todos os indivíduos. (2004, p. 23).

Com efeito, a separação entre Igreja e Estado, bem como a emergência

de direitos fundamentais foram passos significativos na perspectiva de

conformação e consolidação de uma sociedade civilizada, capaz de conviver

com as diferenças.

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Os direitos fundamentais possuem a característica de serem inerentes a

todos os seres humanos, devendo ser tutelados pelo Estado. Os de primeira

dimensão podem ser considerados como uma proteção concedida

indistintamente para todos os indivíduos e que tem como escopo a limitação de

poder estatal e a garantia da liberdade individual (BORGES, 2004).

Ainda com a intenção de elucidar a ideia de direito fundamental de

primeira dimensão, cabe salientar a concepção de Ingo Wolfgang Sarlet (2001).

Ele diz que os direitos de primeira dimensão se caracterizam por serem direitos

negativos em que não há intervenção estatal na liberdade individual, mas sim

independência individual em face do poder do Estado (SARLET, 2001, p. 21).

Antes de entrar na concepção de liberdade individual, cabe observar a

concepção de liberdade de alguns pensadores, visto que as concepções que

serão a seguir consideradas demonstram a legitimidade da liberdade de culto e

religião.

Inicialmente, vai ao encontro com as ideias aqui estudadas, o

pensamento de Immanuel Kant que idealizava uma comunidade jurídica

universal, onde o indivíduo e o Estado possuíram liberdade de fazer tudo que é

compatível com a igual liberdade de todos os outros. Uma sociedade onde

exista o máximo possível de liberdade negativa (SORIANO, 2002, p. 24-25).

Liberdade negativa é a expressão usada para denominar a liberdade

que se combate à forma de autoridade opressiva. “É a liberdade com ausência

de impedimento ou de constrangimento” (BOBBIO, 1997, p. 49).

Ainda, para fixar a ideia de não intervenção estatal nas liberdades dos

indivíduos, cabe fixar a concepção de John Stuart Mill.Para ele a intervenção

estatal na liberdade dos cidadãos deve ocorrer somente nos casos de

impedimento de ações que causariam danos a outros cidadãos (SORIANO,

2002, p. 25).

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Observando os entendimentos destacados, percebe-se que tais

pensamentos fundamentais para ideia liberalista nada mais são do que adágios

defensores das liberdades individuais dos cidadãos em relação ao Estado.

Assim sendo, tem-se que a liberdade religiosa está inserida no rol de direitos

individuais na linhagem dos direitos fundamentais. Visto que tal liberdade

corresponde à liberdade de consciência e crença. Devendo, então, ser tutelada

pelo Estado.

Maria Helena Diniz conceitua a liberdade individual como a liberdade

que: “todos os cidadãos têm de não sofrerem restrições no exercício de seus

direitos” (1998, p.121). Os direitos fundamentais devem ser aplicados nas

constituições e declarações estatais.

A liberdade religiosa já está inserida em diversas constituições. Tal

inserção é vista como respeito à dignidade humana e ao desenvolvimento da

sociedade (BORGES, 2004).

Percebe-se, então, que a liberdade religiosa como direito fundamental

do ser humano, está aprovado tanto nas Constituições dos países

democráticos, quanto em diversos Tratados Internacionais. Visto isso, tem-se

que está se tratando de uma liberdade pública, de uma prerrogativa individual

em face do poder do Estado.

Compreende-se, ainda, que a liberdade religiosa, além de ser entendida

como característica de direito fundamental do homem, apresenta-se como

sendo um principio Constitucional.

De tal modo, ao entender a liberdade religiosa como um direito de

primeira dimensão, se atribui ao Estado os deveres de não fazer e não atuar

nas áreas reservadas ao indivíduo. Aldir Guedes Soriano resume esse

entendimento: “Trata-se, portanto, de uma prerrogativa individual oponível ao

Estado” (2002, p. 05).

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Em que pese o parágrafo acima, sabe-se que o Estado em algumas

situações ainda tem o dever de atuar ou fazer. Cabendo a ele a tarefa de

proteger esse direito em face de possíveis transgressões praticadas por

autoridades políticas, por particulares ou ainda por agente públicos. Para Jorge

Miranda, enfocando explicitamente a questão religiosa:

Cabe, portanto, uma obrigação positiva ao Estado de impedir as eventuais violações ao direito de religião. Cabe, também, ao Leviatã viabilizar o exercício das diferentes religiões. É dizer: normalmente o Estado deve-se manter neutro, em face da religiosidade, até mesmo em decorrência do princípio da separação entre a Igreja e o Estado. Entretanto deve atuar, impedindo violações, através do poder de polícia e de uma adequada e eficiente prestação jurisdicional. Essa prestação jurisdicional, no caso em tela, se dá através da provocação do Poder Judiciário, principalmente com o exercício de garantias Constitucionais. Como, v.g., Mandado de Segurança e Mandado de Injunção,e, também, através do controle, concentrado e difuso, da constitucionalidade das leis. (1998, p. 78).

Ao absorver a ideia descrita, percebe-se que, além de o direito de

liberdade religiosa estar consagrado como um dos direitos fundamentais do

homem, ele também é inerente ao próprio pacto social. É um dos princípios

catalogado na Constituição e no constitucionalismo de diversos países.

Como exemplo atual de país ocidental demonstrador de respeito à

liberdade religiosa se tem Portugal que, em 22 de junho de 2001, decretou a

Lei da Liberdade Religiosa.

Tal Lei esclarece, logo em seu Capitulo I, os princípios que garantem tal

liberdade, dentre os quais destacamos: a liberdade consciência, de religião e

culto (artigo 1º); o princípio da igualdade (artigo 2º); separação Igreja/Estado

(artigo 3º); o princípio da não confessionalidade do Estado (artigo 4º), que

ilustra o fato de o Estado não adotar qualquer religião e nem se pronunciar

sobre questões religiosas; principio da cooperação entre Estado e as igrejas

radicadas em Portugal (artigo 5º).

Finalizando seu primeiro capítulo, a Lei portuguesa traz em seu artigo 7º

o principio da tolerância. Dispondo:

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Artigo 7º - Principio da tolerância. Os conflitos entre a liberdade de consciência, de religião e de culto de uma pessoa e a de outraou outras resolver-se-ão com tolerância, de modo a respeitar quanto possível a liberdade decada uma.

Ao fazer uma análise mais detalhada do resto da Lei citada percebe-se

que Portugal de fato exerce o princípio da liberdade religiosa. Contudo, deve-se

enxergar tal Lei apenas como um exemplo de maior exploração sobre o

assunto aqui abrangido, pois variadas constituições já adotaram a liberdade

religiosa em seu rol de direitos fundamentais.

Sobre o direito de consciência citado no 1ª artigo da Lei Portuguesa, Feu

Rosa esclarece: “A liberdade religiosa consiste no direito de que todo o

indivíduo tem de professar a religião que desejar, de ser ateu, de ser contra

toda e qualquer religião. Liberdade de culto e de propaganda religiosa é a

liberdade de consciência no que se refere à crença religiosa” (ROSA, 1995).

Cabe ainda diferenciar a liberdade de crença e de culto. Para isso

observa-se o ensinamento de Celso Ribeiro Bastos:

Pode haver liberdade de crença sem liberdade de culto. Era o que se dava no Brasil império. Na época, só se reconhecia como livre o culto católico. Outras religiões deveriam contentar-se com celebrar um culto doméstico, vedada qualquer outra forma exterior de templo (apud SORIANO, 2002, p. 72)

Por fim, é importante, também, salientar o conceito de liberdade de

organização religiosa. É comum que se encontre, dentro das mais diversas

sociedades, cidadãos que demandam proibição da organização religiosa.

Esses indivíduos possuem como principal argumento o fato de que existem

muitas seitas prejudiciais para a sociedade. Apontam que muitas das seitas,

nos dias atuais, se utilizam até de atividades ilícitas para exercer seu direito de

organização religiosa. Contudo, Soriano elucida:

A existência de abusos não justifica a supressão, generalizada, dessa liberdade pública. Além do mais, a liberdade de organização religiosa está, também, sob a égide da legislação penal. Assim, sendo, atividades ilícitas não são admitidas pelo ordenamento jurídico, mesmo quando praticadas sob pretextos religiosos. Não e razoável admitirem-se ilegalidades em nome da religião, justamente de quem

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se espera um comportamento ético e construtivo. Em suma, cultos atentatórios à ordem pública e aos bons costumes não podem contar com a proteção estatal (2002, p. 69).

O acesso dentro de uma sociedade religiosa acontece de maneira

voluntaria. Ocorre quando o indivíduo possui identificação com os dogmas de

certa crença e acredita ter encontrado a religião adequada as suas razões.

Assim sendo, o ingresso acontece de acordo com as regras de sua consciência

em livre convencimento.

Todavia, nada impede que esse cidadão abdique religião que até então

praticava, podendo ter encontrado nela alguma doutrina errônea, ou

simplesmente por se sentir insatisfeito. Ocorre que ao pretender sair de sua

religião o cidadão deve dispor da mesma liberdade vivenciada para seu

ingresso.

A igreja, por seu turno, é detentora do direito de disciplinar seus

membros para permanecerem na sociedade eclesiástica, como forma de

autopreservação e sobrevivência. No entanto o poder dessa disciplina encontra

limite, de forma que a exclusão do membro faltoso é a maior punição que uma

igreja pode aplicar.

Visto as distinções acima explicadas, nota-se que o direito de

consciência é um direito amplo que engloba tanto o direito de se possuir uma

crença como o direito de não praticar nenhuma religião. O direito de crença é

aquele que confere aos cidadãos a liberdade de escolher sua própria religião

de acordo com a razão própria de cada um. Enquanto que o direito de culto é

resultante do direito de crença, pois se caracteriza pela exteriorização dela e,

ainda, a liberdade de organização religiosa que garante aos crentes a formação

de cultos coletivos.

A tolerância religiosa, como já foi visto, é um direito e principio

consagrado nas Constituições de Estados democráticos e também expresso

em diversos tratados e convenções internacionais. O maior problema dos

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direitos humanos, nos dias atuais, não é mais encontrar fundamentos para ele,

mas sim descobrir maneiras de protegê-los (BOBBIO, 1992, p. 88).

Desse modo é imprescindível elencar fundamentos que justificam a

tutela do direito à liberdade religiosa. Como primeiro passo para fundamentar a

guarda aos direitos de crença se deve enxergar o ser humano como uma

pessoa. Após isso, se deve olhar para o Estado como uma organização que

possui obrigatoriedade em defender os interesses de cunho pessoal desse ser

humano. E, assim fundamenta-se que o Estado não pode interferir nos direitos

individuais (SORIANO, 2002, p.63).

O Estado deve intervir nas relações intersubjetivas entre seus

jurisdicionados somente quando exista implicação de ordem pública: “A

atuação do Estado se restringe às relações entre o homem e seus

semelhantes, e entre o homem e o Estado, respectivamente, nas esferas do

direito público e do direito privado. Na esfera que diz respeito à relação entre o

homem e Deus, o Estado não pode interferir” (SORIANO, 2002, p. 63).

Os Estados Unidos da América se tornaram exemplo de

Constitucionalismo, tendo seus moldes seguidos por várias nações ocidentais.

Isso se deu justamente pelo fato de que esse país, por meio de seus

fundadores, ter se atentado às perseguições religiosas que ocorriam no velho

mundo. Assim sendo, acautelaram-se em relação a novas perseguições, e,

inseriram a cláusula do não-estabelecimento na primeira emenda da

Constituição americana, e assim consagraram o princípio da separação entre

igreja e Estado (SORIANO, 2002, p. 66).

De acordo com Bernardo Schwartz, a primeira Emenda da Constituição

norte americana assim dispõe:

O Congresso não fará lei relativa à instituição de religião ou que proíba o livre exercício desta; ou restrinja a liberdade de palavra ou de imprensa; ou o direito do povo de se reunir pacificamente e de dirigir petições ao Governo para a reparação de suas lesões (1955, p. 31).

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Ressalta-se aqui que, nesse momento de criação da Constituição norte

americana, o país contou com o apoio de seus cidadãos que eram praticantes

e cultuavam diversas crenças distintas. Tanto os deístas quanto os cristãos

estavam juntos no propósito de estabelecer, no novo mundo, a separação entre

a Igreja e o Estado (SORIANO, 2002, p. 66).

Não obstante tudo o que foi exposto, faz-se de suma importância,

também, o fato de que todos os cidadãos possuem deveres em face do Estado.

Esse fato também ocorre com os cidadãos cristãos ou praticantes de qualquer

religião.

Sabe-se que existem limites para a liberdade religiosa, Soriano (2002, p.

69) lembra que não há que se confundir liberdade com libertinagem religiosa.

Os limites impostos à liberdade de crença por parte do Estado devem possuir,

apenas, o intuito de preservar a ordem jurídica.

Assim como não é cabível ao Estado agir de maneira inquisitória a fim

de dizer o que é verdadeiro e o que é falso no âmbito religioso, também não é

cabível aos religiosos praticar atividade ilícita em nome da religião. Assim

sendo, compete ao Estado atuar com seu poder de polícia nas ilegalidades

perpetradas em nome da religião, desde que estas se encontrem previstas em

lei.

O cidadão religioso possui o dever moral de respeitar a autoridade que

acredita ser divina. Porém, possui o dever compulsório de obedecer à

autoridade civil. Ele precisa sempre lembrar que está inserido em uma

sociedade. Deste modo a pessoa religiosa possui a obrigatoriedade de cumprir

seus deveres civis assim como todos os outros cidadãos.

Soriano expressa de maneira clara e de fácil absorção a justificativa para

as ações legítimas do Estado em face da liberdade de expressão religiosa:

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O Estado tem o direito de exercer o poder de polícia, assim como o de exercer o poder-dever jurisdicional, aplicando sanção aos desobedientes. Seu campo de atuação abrange os interesses e os bens da vida indispensáveis ao bem comum. Ao punir o homicídio e ao cominar uma pena correspondente, o Estado não o está fazendo em nome de um valor religioso, e, sim, em nome da ordem pública, a fim de garantir a subsistência da sociedade e o bem comum. Nesse campo, em que envolve as relações intersubjetivas (entre homens), o Estado pode atuar livremente, constituindo-se num instrumento da justiça Divina. O cristão deve, então, sujeitar-se à sanção estatal, não somente pelo castigo mas também pela consciência (2002, p. 107).

De acordo com o citado se pode concluir que os praticantes religiosos

devem arcar com seus deveres de cidadania perante a sociedade em que

vivem independentemente de suas ações de culto. No que abrange o direito

civil, então, tais indivíduos necessitam exercer deveres como, por exemplo,

pagar seus devidos tributos estatais. Tem o dever de agir dessa forma pelo

simples fato de possuírem a consciência de que o Estado lhes confere

proteção no campo dos direitos e garantias individuais, agindo assim como

forma de gratidão. Na relação cidadão/Estado, cada qual deve fazer sua parte.

Sobre as limitações do direito à liberdade religiosa, Alexandre de Moraes

ilustra:

Os direitos fundamentais não podem ser utilizados como um verdadeiro escudo protetivo da prática de atividades ilícitas, nem tampouco como argumento para afastamento ou diminuição da responsabilidade civil ou penal por atos criminosos, sob pena de total consagração ao desrespeito a um verdadeiro Estado de Direito. Os direitos e garantias fundamentais consagrados pela Constituição Federal, portanto, não são ilimitados, uma vez que encontram seus limites nos demais direitos igualmente consagrados pela Carta Magna. (1998, p. 40).

Além disso, Moraes ainda recomenda uma maneira de resolver

conflitos entre tais garantias fundamentais:

Quando houver conflito entre dois ou mais direitos ou garantias fundamentais, o intérprete deve utilizar-se do princípio da concordância prática ou da harmonização, de forma a coordenar e combinar os bens jurídicos em conflito, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros, realizando uma redução proporcional de âmbito de alcance de cada qual (contradição de princípios), sempre em busca do verdadeiro significado da norma e da harmonia do texto constitucional com suas finalidades precípuas (1998, p. 40).

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Em suma, percebe-se que a liberdade religiosa não caracteriza um

direito absoluto. Existe um perímetro, uma relativização ao direito de liberdade

religiosa. Como qualquer outro direito dos indivíduos residentes em

sociedades, a liberdade religiosa não pode, de maneira alguma, prestar papel

de escudo de proteção às práticas de atos que atentem contra o bom

funcionamento do organismo social.

Para melhor ilustrar a relatividade do direito à liberdade religiosa,

Celso Ribeiro Bastos explica:

O campo religioso, além de ser, por excelência, o das faculdades mais altas do ser humano, campo de realização dos anseios mais profundos da alma humana, é também espaço invadido por impostores, falsos profetas, que desnaturam esta atividade movidos por toda sorte de vícios. O Estado não pode pois deixar de estar alerta para coibir estas falsas expressões de religiosidade. (1988, p. 72).

Também sobre a relatividade do direito a liberdade religiosa, Soriano

exemplifica a possibilidade do Estado de coibir esse direito:

Se surgir uma religião que pregue o sacrifício humano, o Estado terá todo o direito de intervir com seu jus puniendi, posto tratar-se de uma questão de ordem pública. Assim, atividades ilícitas não podem ser praticadas em nome da religião. Dentro dos limites da legalidade (ou da ordem pública), a liberdade religiosa é inviolável. Isto significa que a sua relativização só poderá ocorrer em face de abusos incompatíveis com a convivência pacifica (2002, p. 89).

Esse tipo de discurso que incentiva a falsa expressão religiosa vem

se tornando cada dia mais comum. O aumento desse número de profetas

acaba por acarretar também no aumento do fanatismo religioso. Esses profetas

precisam incitar o fanatismo a fim de que os seus crentes contribuam para o

aumento de suas igrejas.

Sob outra perspectiva, o fanatismo religioso é e sempre foi um

impulso de grande importância para as ações terroristas. Chama-se Terrorismo

Religioso os tipos de fanatismo religiosos que atuam de forma danosa em face

da sociedade. Esse tipo de ação merece o repúdio dos cidadãos (SORIANO,

2002, p. 91).

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É de relevância para esse assunto citar alguns exemplos de

fanatismo religioso, como o suicídio coletivo de 193 pessoas que aconteceu na

Guiana sob o induzimento de Jim Jones em 1978. Ou o confronto de Waco,

que ocorreu entre os seguidores de David Koresh e o FBI em 1993, deixando

72 mortos. E, também, o ataque com gás sarin no metrô de Tóquio em 1995.

Contudo, é cabível a lembrança de que o Estado ao promover a

sanção dos falsos profetas que incitam o fanatismo, e, por sua vez, o

terrorismo religioso, não está praticando uma conduta de caráter perseguidor.

O Estado não tem o intuito de desaprovar os falsos profetas ou de eliminar as

falsas religiões. Mas sim, o intuito de batalhar contra a violação da ordem

pública, de atitudes que ferem as liberdades alheias e atentam contra a

segurança social.

Ante o exposto, entende-se que se deve relevar sempre em que

medida o Estado pode ou deve limitar a atuação do direito de liberdade

religiosa. Sobre esse tema, Soriano elucida:

Os limites do exercício desse direito são um aspecto de suma importância. Incorre-se no risco de se errar tanto para menor como para maior. O excesso poderá levar ao cerceamento à liberdade religiosa. Ao contrário, a lassidão – inércia estatal – favorece os abusos, terrorismo religioso e outras práticas criminosas (2002, p. 102).

É legítimo então concluir que a liberdade religiosa não se faz absoluta

perante o Estado. Não é uma liberdade ilimitada. Tanto no que diz respeito ao

Estado como no que diz respeito a Deus. Portanto assim como o Estado os

cidadãos também possuem o dever de respeitar o Estado Democrático de

Direito, mesmo que ao final prestem contas ao seu próprio Deus.

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3. DIREITOS HUMANOS, GLOBALIZAÇÃO CULTURAL E MULTICULTURALISMO.

Ao se falar em mundo contemporâneo, logo somos remetidos para a

ideia de vida globalizada, na qual diferentes culturas e religiões dividem as

mesmas notícias e compartilham diferentes informações. A tão falada

globalização acelerou, positivamente, um crescimento mútuo entre as nações

no sentido de que possibilitou um networking global significativo para o

conhecimento de outras culturas por parte dos cidadãos.

Porém, mesmo entendendo um pouco mais das culturas alheias, todo o

ser humano, instintivamente, acredita que seus valores e princípios são

superiores, fato que os leva a defender suas crenças e costumes com afinco

perante as possíveis ameaças de mudanças e implementações dentro do

ambiente em que foram criados.

Sobre essa liberdade para expressar e defender suas verdades,

Bauman lembra que:

Na sociedade onde vivemos, a liberdade individual move-se firmemente para a posição de centro cognitivo e moral da vida – com consequências de largo alcance para cada indivíduo e para o sistema social no seu todo (1989, p. 115)

Os direitos humanos, como defensores dessa liberdade, estão

embasados na ideia de uma natureza humana universal, partindo então do

princípio que para possuir tais direitos basta possuir a caracterização de

pessoa humana. Sendo assim, torna-se clara a ideia de que todo o ser

humano, independente de seus deveres com a política, economia e

peculiaridades de sua própria cultura, é possuidor desses direitos.

Assim, percebe-se que a ideia de direitos humanos universais está

fortemente ligada com a classificação biológica do ser humano, pois ao se

naturalizar o homem, encontrar a sua caracterização natural é que se vê,

claramente, que a igualdade dos seres humanos se encontra em sua

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classificação biológica ao passo que a diferenciação entre os mesmo está em

seus valores culturais.

Sobre o método universal de aplicação dos direitos humanos, Karine

Finn explica: “Numa visão universalista, a condição civil sugere que a liberdade

de cada povo esteja condicionada a regras impostas pela lei, que é escolhida e

querida por todos” (2006, p. 11).

Em seu artigo “Dialogo Intercultural dos Direitos Humanos”, Rachel

Herdy de Barros Francisco (2003) explica:

...parece questionável a contraposição da ideia de relativismo cultural à universalidade dos direitos humanos. O que se quer é precisamente superar essa tensão, que fecha as portas para o diálogo intercultural. A posição universalista é altamente etnocêntrica, na medida em que toma os valores de determinada cultura como universais – a experiência brasileira é exemplar neste caso, bastando lembrar o objetivo dos colonizadores do Brasil de propagar a fé cristã entre os aborígines. Por outro lado, a posição relativista absolutiza as diferenças, e qualquer tentativa de articulação entre as culturas representaria um ato de imperialismo cultural. (2003, p. 1)

Os direitos humanos são também um direito ao Estado, podendo ser

visto como mais uma das ferramentas que proporciona aos cidadãos a tutela

do Estado. O conceito universal desses direitos é embasado no fato de que

qualquer cidadão que passar por algum tipo de agressão, independentemente

dos ensinamentos e verdades que carrega consigo, irá receber a proteção do

Estado.

Percebe-se que nos dias de hoje, ao se tratar os Direitos Humanos, tais

como o direito de liberdade de opinião e de expressão religiosa, de maneira

política universal, está se impondo certos conceitos, tanto de direito quanto de

humanidade, sobre todas as culturas e religiões. Fato esse que certamente se

torna centro de discussões e desrespeito.

Ora, na comunidade ocidental pode ser desumano fazer com que

mulheres escondam seus rostos e corpos atrás de tecidos durante a vida

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inteira, porém isso não impede que no âmbito do oriente médio as mulheres se

sintam valorizadas pelo fato de preservar sua imagem perante a sociedade.

Bauman, ainda em A liberdade, elucida algumas possibilidades e

efeitos de um modelo de governo onde se tentaria burocratizar as

necessidades e liberdades individuais dos cidadãos:

A determinação burocrática das necessidades significa uma persistente falta de autonomia pessoal e de liberdade individual. A heteronomia de vida é o que constitui privação numa sociedade de consumo. A vida dos que são privados está sujeita ao governo burocrático, que isola e incapacita as suas vítimas, dando-lhes poucas possibilidades para lutarem, para darem resposta, ou mesmo para resistirem através da não-cooperação (1989, p. 137)

Temos que a palavra “cultura” determina a forma de vida, a tradição

de crenças e costumes criados dentro de determinado grupo de pessoas. É a

cultura que vai estabelecer as regras de sociedade civil dentro de desse grupo,

é ela quem vai determinar a base de todos os passos e ações do cidadão a ela

inserido.

Diante disso, cabe lembrar a problematização sobre a questão da

burocratização das liberdades individuais que Bauman explica:

Os burocratas “veem sem serem vistos”; falam e esperam que os ouçam, mas ouvem apenas os que pensam que vale a pena ouvir; resevam-se o direito de traçar a linha entre a verdadeira necessidade um mero capricho, entre a prudência e a prodigalidade, a razão e a falta dela, o “normal” e o “louco” (1989, p. 137)

Ainda assim, a cultura não é algo inerte ao tempo, ela caminha,

mesmo que em passos pequenos, junto com a contemporaneidade ao longo

dos anos, permitindo a quebra de alguns paradigmas assim como a criação de

novos. A globalização é um exemplo desse tipo de mudança. Com ela

diferentes nações já estabeleceram novas regras e deixaram antigas normas

no passado.

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A partir do pensamento descrito no parágrafo anterior, percebe-se

que a transformação causada pela globalização dentro das diferentes culturas

é evidente, e, sendo assim, somos remetidos à questão que circunda os

Direitos Humanos desde a sua criação: a consolidação de uma hegemonia

ocidental. Para melhor ilustração dessa questão, nas palavras de Finn:

Embora seja de difícil conceituação, os direitos humanos, são, resumidamente, aqueles fundamentais para todas as pessoas e necessários para o pleno desenvolvimento de suas potencialidades. O seu núcleo formador está alicerçado pelo princípio da dignidade da pessoa humana. Nesta ideia, os direitos humanos são como uma bússola norteadora para a construção normativa das sociedades, que devem elaborar suas leis de acordo com essas prerrogativas mínimas, independentemente das dessemelhanças culturais (2006 p. 35).

A visão relativista é defensora de que todas as culturas possuem

igual valor e devem ser respeitadas de acordo com suas realidades,

defendendo que a aplicação dos direitos humanos deve estar relativamente

adequada a cada uma dessas realidades.

A importância de uma visão relativista dos Direitos Humanos está

ligada aos moldes de mundo globalizado em que se vive hoje, haja vista a

formação de uma sociedade culturalmente globalizada.

Nesse contemporâneo sistema capitalista globalizado os Estados

caminham de maneira conjunta não conseguindo mais se abster de questões

alheias ao seu próprio território. Percebe-se que, historicamente, com o fim da

Guerra Fria (extinção da União Soviética na década de 1990), teve início

processo de fixação da sociedade mundial.

Octavio Ianni define:

O alcance mundial do capitalismo, que se esboça desde os seus primórdios, desenvolve-se de maneira particularmente aberta no século XX. E adquire novas características na época iniciada com o término da Segunda Guerra Mundial, quando a emergência de estruturas mundiais de poder, decisão e influência anunciam a redefinição e o declínio do Estado-Nação (1999, p. 63).

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O caminho da globalização teve como atributo fatores como a

internacionalização das finanças e seguros comerciais, a mudança da divisão

internacional do trabalho, o vasto movimento migratório do sul para o norte e a

competição ambiental que acelerou todos esses processos citados. Esse

caminho inclui também mudanças tanto na natureza dos Estados quanto nos

sistemas deles, que estão sendo internacionalizados em suas composições

internas e funções. (COX, 1990).

A globalização não caracteriza um fato acabado, mas sim um

caminho, em constante adaptação, ela representa a adequação dos países às

culturas alheias.

É de fácil absorvência que, por meio do comércio internacional, com

a venda de produtos globais, as economias e culturas dos países

industrializados estão cada vez mais conectadas, criando assim uma força

absolutamente maior do que a que teriam se estivessem sozinhas.

Tudo isso acarreta num caminho reto em direção aos países de

menor industrialização, para um dia agregar todos os países do globo em um

único sistema econômico e cultural.

Mesmo que no decorrer dos anos, após a Segunda guerra Mundial,

os Direitos Humanos tenham desempenhado um papel de política de Guerra

Fria, tornando seu caráter questionável, acabaram hoje por se tornar parte de

uma política progressista a fim de renovar a linguagem emancipatória. Nas

palavras de Boaventura de Sousa Santos:

Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E, no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, essas mesmas forças progressistas recorrem hoje aos direitos humanos para reinventar a linguagem da emancipação (1997 p. 11).

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A questão, para Santos, é se os direitos humanos serão capazes de

preencher o vazio deixado pelo socialismo, afinal, analisando a história desses

direitos percebe-se que parecem ter sido invocados, nos dias de hoje, com tal

propósito. Eis a resposta do autor: “A minha resposta é um sim muito

condicional” (1997, p 11).

Ao complementar sua resposta, explica que para enxergar os

direitos humanos como parte efetiva de uma política emancipatória é preciso:

“...que sejam claramente entendidas as tensões dialéticas que informam a

modernidade ocidental” (SANTOS, 1997, p. 11). E, finaliza:

A crise que hoje afecta estas tensões assinala, melhor que qualquer outra coisa, os problemas que a modernidade ocidental actualmente defronta. Em minha opinião, a política de direitos humanos deste final de século é um factor-chave para compreender tal crise (1997, p. 12).

Santos identifica três tensões dialéticas, a primeira ocorrendo entre a

regulação e emancipação social. Observa-se que no final desse século a

emancipação não é mais uma extensão da regulação social, mas sim um

fenômeno simultâneo a essa.

Enquanto, até finais dos anos sessenta, as crises de regulação social suscitavam o fortalecimento das políticas emancipatórias, hoje a crise da regulação social — simbolizada pela crise do Estado regulador e do Estado-Providência — e a crise da emancipação social — simbolizada pela crise da revolução social e do socialismo enquanto paradigma da transformação social radical são simultâneas e alimentam-se uma da outra (1997 p. 12).

A segunda tensão dialética ocorre entre o Estado e a sociedade civil,

visto que a última se reproduz de regulamentações advindas do Estado e que

tais regulamentações não possuem limites desde que as regras de produção

democrática de leis sejam respeitadas. Com isso o Estado moderno mostra-se

de caráter minimalista e, ao mesmo tempo, potencialmente maximalista

(SANTOS, 1997, p. 12).

A terceira e última tensão dialética acontece de um lado pelo

sistema político da sociedade moderna ocidental, que se caracteriza por

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Estados-nação soberanos coexistindo, designando o sistema interestatal e, de

outro, aquilo que denominamos globalização:

Hoje, a erosão seletiva do Estado-nação, imputável à intensificação da globalização, coloca a questão de saber se, quer a regulação social, quer a emancipação social, deverão ser deslocadas para o nível global. É neste sentido que já se começou a falar em sociedade civil global, governo global e equidadeglobal (SANTOS, 1997 p. 13).

Absorvendo as tensões dialéticas citadas, se estabelece uma maior

clareza dos problemas concernentes aos Direitos Humanos na modernidade

ocidental. A partir de tais tensões averiguamos a importância da

implementação de caráter multicultural aos direitos humanos.

O termo globalização é um tanto quanto difícil de definir, alguns o

caracterizam visto do ponto de vista econômico, outros podem até encarar a

globalização partindo da internacionalização do estilo vestual, da moda. Por

isso, temos que o termo globalização deveria ser entendido no plural, e não

como uma única entidade.

Aquilo que habitualmente designamos por globalização são, de fato, conjuntos diferenciados de relações sociais; diferentes conjuntos de relações sociais dão origem a diferentes fenômenos de globalização. Nestes termos, não existe estritamente uma entidade única chamada globalização; existem, em vez disso, globalizações; em rigor, este termo só deveria ser usado no plural (SANTOS, 1997 p.14).

O processo de globalizações dá-se, normalmente, a partir de algum

conflito, desembocando na imposição da cultura dos vencedores sobre os

vencidos, sendo assim a história das globalizações acaba sendo a história dos

vencedores contata por eles mesmos.

Segundo Santos, “não existe condição global para a qual não

consigamos encontrar uma raiz local, uma imersão cultural específica” (1997,

p. 14). Percebe-se também que, a medida que uma entidade local expande sua

influência pelo globo terrestre, a mesma faz com que as demais culturas fiquem

cada vez mais restritas ao seu localismo.

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Santos distingue quatro tipos de globalizações que partem de suas

diferentes formas de produção, sendo a primeira o localismo globalizado que:

“Consiste no processo pelo qual determinado fenômeno local é globalizado

com sucesso” (1997, p. 16).

A segunda é o globalismo localizado, que tem como exemplo a

prática do dumping ecológico (compra dos lixos tóxicos dos países de Primeiro

Mundo pelos países do Terceiro Mundo a fim de gerar divisas externas) e

consiste em: “...impacto específico de práticas e imperativos transacionais nas

condições locais, as quais são, por essa via, desestruturada e reestruturadas

de modo a responder a esses imperativos transnacionais” (1997, p. 16 - 17).

A terceira forma de produção de globalização seria o

cosmopolitismo. Tal se baseia no fato de que nada impede uma organização

das nações subordinadas com o propósito de defesa dos interesses comuns, e

que usem como ferramenta para isso o próprio sistema transnacional do

mundo atual.

Celice Gomes Carmo Oliveira (2007), em seu artigo sobre a

concepção de globalização contra-hegemônica, esclarece essa terceira forma

de globalização identificada por Boaventura:

Na concepção do sociólogo, a globalização hegemônica, sinônima de neoliberalismo globalizado, vem enfrentando resistência através da sua forma contra-hegemônica, desde a década de 1990, sendo esta "o conjunto vasto de redes, iniciativas, organizações e movimentos [...] que se opõem às concepções de desenvolvimento mundial a estas subjacentes, ao mesmo tempo que propõem concepções alternativas" (2006, p. 400). Para ele, a oposição do ativismo trans-fronteiriço e do movimento democrático transnacional é pautada por uma proposta de luta contra a exclusão social e "redistribuição de recursos materiais, sociais, políticos, culturais e simbólicos", baseando-se nos princípios da igualdade e do reconhecimento da diferença (OLIVEIRA, 2007, p. 1).

O quarto e último tipo de globalização designado por Boaventura de

Souza Santos são os assuntos que dizem respeito às matérias de relevância

global, aquelas que só têm significado quando vistos sobre a totalidade do

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globo e que ele chama de patrimônio comum da humanidade Nas palavras

dele:

...é o que eu designo, recorrendo ao direito internacional, o patrimônio comum da humanidade. Trata-se de lutas transnacionais pela proteção e desmercadorização de recursos, entidades, artefatos, ambientes considerados essenciais para a sobrevivência digna da humanidade e cuja sustentabilidade só pode ser garantida à escala planetária. Pertencem ao patrimônio comum da humanidade, em geral, as lutas ambientais, as lutas pela preservação da Amazônia, da Antártida, da biodiversidade ou dos fundos marinhos e ainda as lutas pela preservação do espaço exterior, da lua e de outros planetas concebidos também como patrimônio comum da humanidade. Todas estas lutas se referem a recursos que, pela sua natureza, têm de ser geridos por outra lógica que não a das trocas desiguais, por fideicomissos da comunidade internacional em nome das gerações presentes e futuras (SANTOS, 1997 p.16).

Uma das formas proposta por Santos (1997) para adequação dos

direitos humanos ao multiculturalismo é a hermenêutica diatópica, que consiste

em um método em que diferentes nações estabelecem diálogos onde trocam

argumentos acerca dos ambientes mais profundos e fortes de suas culturas, os

chamados topois.

Os topois além de fortes são retóricos, não permitindo discussões

acerca de seus princípios culturais, assim facilitando a produção da troca de

argumentos de forma analítica e reflexiva para as culturas participantes da

hermenêutica diatópica. Santos explica:

A hermenêutica diatópica baseia-se na ideia de que os topoi de uma dada cultura, por mais fortes que sejam, são tão incompletos quanto a própria cultura a que pertencem. Tal incompletude não é visível do interior dessa cultura, uma vez que a aspiração à totalidade induz a que se tome a parte pelo todo. O objectivo da hermenêutica diatópica não é, porém, atingir a completude — um objectivo inatingível — mas, pelo contrário, ampliar ao máximo a consciência de incompletude mútua através de um diálogo que se desenrola, por assim dizer, com um pé numa cultura e outro, noutra. Nisto reside o seu carácter dia-tópico (1997 p. 23).

Daniela Mateus de Vasconcelos (2003), em sua publicação “A

globalização dos direitos humanos: impactos e desafios na ordem mundial

contemporânea” elucida a proposta da hermenêutica diatópica:

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O conceito de hermenêutica diatópica abarcaria a consciência de cada cultura da sua incompletude e da necessidade do seu diálogo com outras culturas. Como exemplo, o autor cita os possíveis diálogos entre o topos dos direitos humanos na cultura ocidental, os topos do dharma na cultura hindu e o topos da uma na cultura islâmica. Os diálogos interculturais seriam desta maneira, a “vacina” contra os efeitos nefastos da globalização hegemônica dos direitos humanos. A hermenêutica diatópica faria com que direitos humanos universais se tornassem direitos humanos multiculturais, na busca de uma universalidade intercultural dos direitos humanos. (2003 p. 20).

Para fácil compreensão da pretensão da hermenêutica diatópica, no

artigo eletrônico “Multiculturalismo e Direito Internacional”, Marcela Giorgi

Barroso ilustra: “Através da hermenêutica diatópica, Sousa Santos procura

traçar um caminho para superar as dificuldades que surgem do diálogo

intercultural” (2000, p. 4).

Diante dos conceitos e reflexões dispostos acima, percebe-se que o

diálogo intercultural, em que pese ter sido facilitado pelo o fator de proximidade

geográfica que vem ocorrendo no mundo globalizado, ainda possui muitos

obstáculos a serem superados.

Movimentar questões de crenças, princípios, e ideais que norteiam a

vida de cidadãos não é tarefa fácil. Por isso, cabe lembrar que numa relação de

multiculturalismo há que existir ponderação por ambas as partes do diálogo

intercultural.

Nisso, incluí-se tanto os nativos do território onde os imigrantes se

encontram como, também,a boa vontade para a adaptação e integração dos

imigrantes ao local a que se dispuseram levar suas vidas.

Ou seja, guardadas as devidas proporções da dignidade de cada

pessoa, é importante que ambos os lados trabalhem para um bom

relacionamento social. Em consonância com essa afirmação, temos o caso

recente de janeiro de 2016, no qual o prefeito da cidade de Durval, que fica na

região de Montreal, no Canadá (COSTA, 2016, sp.), recusou-se a tirar do

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cardápio do almoço de escolas públicas a carne de porco. Tal atitude era

demanda dos estudantes muçulmanos.

De acordo com os sites de notícias, o prefeito colocou a seguinte

justificativa para a recusa: “Os muçulmanos devem entender que eles têm de

se adaptar ao Canadá e Quebec, aos seus costumes, suas tradições, seu

modo de vida, porque é onde eles escolheram para imigrar.

Eles devem entender que eles têm de integrar e aprender a viver em Quebec.

Eles precisam entender que devem ser eles a mudar seu estilo de vida, não os

canadenses, que tão generosamente os acolheram” (COSTA, 2016, sp)

O exemplo acima demonstra como nenhuma das partes se encontra

sem razão, ou com toda ela e, assim, a importância de conceitos como

tolerância e solidariedade para o bom andamento de uma sociedade

multiculturalmente globalizada. Tais conceitos serão analisados mais

profundamente no capítulo seguinte.

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4. TOLERÂNCIA E SOLIDARIEDADE.

Neste item serão desenvolvidos os conceitos de tolerância e

solidariedade, uma vez que estas duas ideias se encontram no centro da

presente pesquisa. Como já demonstrado, a situação de globalização que a

sociedade vive atualmente encontra alguns obstáculos referentes ao

multiculturalismo.

Assim sendo, se faz necessário um item direcionado apenas a esses

conceitos, visto que adiante será demonstrada a importância do exercício da

tolerância e da prática da solidariedade dentro de nossa sociedade como

medidas para prevenção de atitudes extremas nos casos onde se tenha

necessidade de equalização no encontro de culturas.

Primeiramente, no presente capítulo, cabe uma breve apresentação de

Voltaire, uma vez que este autor será amplamente citado nessa dissertação,

sobretudo acerca de sua visão de tolerância religiosa, sendo que do presente

parágrafo em diante será reconhecido o nome do mesmo por inúmeras vezes.

Voltaire foi um importante escritor que, durante sua vida, escreveu cerca

de setenta obras, entre ensaios, poemas, romances, obras científicas e

históricas, peças de teatro, e mais de vinte mil cartas e mais de dois mil

panfletos. No campo das ideias, teve influência do físico Isaac Newton e,

devido aos três anos que passou refugiado na Inglaterra, do filósofo John

Locke (FERREIRA, 2009, p. 23).

Em suas obras Voltaire era defensor convicto das liberdades civis, sendo

elas liberdades de associação, de expressão e de religião. Combatia contra o

absolutismo criticando as instituições da monarquia. Assim como criticava o

poder da igreja Católica e a interferência que a mesma detinha no sistema

político.

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Defendia o livre comércio, censurando o controle do estado na

economia. Essas e outras ideias de Voltaire tiveram papel de grande influência

nos processos da Revolução Francesa e de Independência dos Estados

Unidos (FERREIRA, 2009, p. 24-25).

O filósofo era contra as prisões discricionárias, a tortura, e a pena de

morte, que em sua época aconteciam com frequência. Era defensor da religião

natural, onde cada indivíduo seria capaz de possuir a religião que melhor se

encaixasse com seus pensamentos, sem doutrinas ou dogmas da religião

cristã.

Deísta, acreditava em Deus apenas como causa e o princípio do

universo que criou. Lutava por uma monarquia que garantisse as liberdades

individuais, sob o comando de um soberano esclarecido.

Para Voltaire, as instituições grupais, como o Estado, almejam impor

regras de comportamento aos indivíduos de acordo com um interesse coletivo.

Assim, acabam por excluir a ausência de condições e limites que caracterizam

a pressuposição de liberdade.

Voltaire ainda defendia o uso da razão como o objeto que proporciona

aos indivíduos a capacidade do livre-arbítrio. Como se pode perceber, em sua

obra Elementos da filosofia de Newton, datada de 1738:

Tenho uma paixão violenta, mas meu entendimento conclui que devo resistir a ela. Ele me representa um maior bem na vitória do que na subordinação ao meu gosto. Este último motivo supera o outro e combato meu desejo por minha vontade. Obedeço necessariamente, mas de bom grado, à ordem da razão. Faço não o que desejo, mas o que quero, e neste caso sou livre, com toda a liberdade da qual uma tal circunstância pode me deixar suscetível. (1996, p. 39).

Julio Cezar Lazzari Junior, em seu artigo intitulado A religião racionalista

de Voltaire (2012), consegue expressar o pensamento acima demonstrado:

Voltaire contempla a luta do homem contra si mesmo como evidência de que há livre-arbítrio, pois estaria em poder do ser humano tomar a

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decisão final. O entendimento mostra que resistir à paixão é melhor, e o homem se submete livremente ao seu entendimento. (2012, p. 158)

O núcleo da batalha de Voltaire pelo racionalismo iluminista se

encontrava embasado em formular críticas direcionadas tanto para aos

costumes praticados pelos homens de sua época, como para as instituições

então vigentes.

Visto que o filósofo era grande crítico dos métodos utilizados pela Igreja

Católica e dos atos cometidos pelo fanatismo que a mesma imperava naquele

momento, ele tinha o intuito de analisar todas as insuficiências e equívocos

dessa cultura que era seguida cegamente pela sociedade.

Na perspectiva voltairiana, a razão ao ser entendida e praticada pelo

homem o levaria, em longo prazo, para um aperfeiçoamento tanto moral quanto

espiritual.

A razão nessa época tinha uma característica libertária. Voltaire

acreditava que ao desenvolver a razão de forma progressiva dentro de si o

homem seria aperfeiçoado.

O vocábulo tolerância traz em torno de si uma grande desconfiança por

parte dos indivíduos, visto que muitos deles confundem tolerar com aceitar o

erro. Praticar a tolerância em hipótese alguma significa aceitar o que se

considera errado.

O que ocorre é que as ideias diferentes de cada ser humano devem ser

aceitas de forma coerente e com bom senso, e jamais de maneira impostora ou

irresponsável.

A esse respeito, Norberto Bobbio leciona:

Quando se fala em tolerância nesse seu significado histórico predominante, o que se tem em mente é o problema de convivência de crenças (primeiro religiosas, depois também políticas) diversas.

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Hoje, o conceito de tolerância é generalizado para o problema da convivência das minorias étnicas, linguísticas, raciais, para os que são chamados geralmente de diferentes (1991, p.86).

Também com o intuito de elucidar os fundamentos da tolerância cabe

frisar aqui o pensamento de Jostein Gaarder:

Tolerância, ou seja, respeito pelas pessoas que têm pontos de vista diferentes do nosso, é uma palavra chave no estudo das religiões. Não significa necessariamente, o desaparecimento das diferenças e das contradições, ou que não importa no que você acredita se é que acredita em alguma coisa. Uma atitude tolerante pode perfeitamente coexistir com uma sólida fé e com a tentativa de converter os outros. Porém a tolerância não é compatível com atitudes como zombar das opiniões alheias ou se utilizar da força e de ameaças. A tolerância não limita o direito de fazer propaganda, mas exige que seja feita com respeito pela opinião dos outros (2000, p. 14).

É de importante entendimento o fato de que não se deve confundir

tolerância com indiferença. Bobbio diz que as pessoas podem ser tolerantes

tanto por boas como por más razões. Dessa forma ele explica a tolerância

movida por boas razões:

Entendida desse modo, a tolerância não implica a renúncia à própria convicção firme, mas implica, pura e simplesmente, a opinião (a ser eventualmente revista em cada oportunidade concreta, de acordo com as circunstâncias e as situações) de que a verdade tem tudo a ganhar, quando suporta o erro alheio, já que a perseguição, como experiência histórica, o demonstrou com frequência, em vez de esmagá-lo, reforçando-o (1992, p. 189).

Já a tolerância citada por Bobbio como praticada por más razões,

segundo ele, não deveria sequer ser caracterizada como tolerância, visto que

não estaria desempenhando um papel de defesa do direito de cada pessoa

expressar suas verdades. Porque esse tipo de tolerância simplesmente não se

importa com a verdade. É indiferente. (BOBBIO, 1992, p. 90-91)

A análise a ser feita nessa dissertação é decorrente do problema da

convivência em face do multiculturalismo. O pluralismo de crenças e culturas é

uma questão com que, infelizmente, a maioria da população ainda não se

instruiu o suficiente para suportar.

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Em decorrência dessa aldeia global que se vive hoje, as minorias

étnicas, linguísticas, raciais, entre outras, são as que mais sofrem com a

intolerância.

Voltaire, em sua obra, mostra-se um grande defensor da tolerância. Em

seus escritos, percebe-se que a intolerância já acontecia abundantemente em

sua época, sobretudo entre as instituições religiosas – como o catolicismo, que,

para ele, foi a instituição mais intolerante que existiu. Exemplos disso são os

textos que podem ser encontrados em Dicionário filosófico, onde ele discursa

sobre a tolerância.

Como cidadão francês no século XVIII, Voltaire estava frequentemente a

presenciar cenas de intolerância, sejam elas de classe, credo ou cor. Assim ele

se tornou um argumentador incansável em prol da tolerância, afirmando que

sem esta, o mundo se torna um lugar desordenado.

Segundo ele: “o melhor meio para diminuir o número de maníacos, se

ainda restam, é de confiar esta doença do espírito ao regime da razão, que

lenta, mas infalível ilumina os homens” (VOLTAIRE, 2009 p. 13).

O filósofo entendia que a tolerância seria capaz de fazer dos seres

humanos pessoas mais complacentes, seria essa complacência um

medicamento homeopático para o mal brutal que se tornara a intolerância em

sua época. Júlio César Ferreira em seu texto Tolerância ou intolerância: uma

reflexão a partir de Voltaire (2009), explica:

O conhecimento humano é limitado e por isso está sujeito ao erro; nisso consiste a razão da tolerância, que é privilegio assegurado e reservado à humanidade. Ele evidencia que tolerância não é aceitar tudo que se encontra pelo mundo, mas sim o ato de respeitar. Se o ser humano vir que todos são cheios de defeitos, erros e tolices,e reconhecer que o erro é natural a todo ser humano e que todos são iguais, será mais fácil existir o perdão mutuamente (2009, p.1).

A preocupação de Voltaire com a intolerância era tão grande que ele

escreveu um texto intitulado Tratado sobre a tolerância. Além desse tratado,

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durante sua vida, os títulos da obra do autor acabaram sendo resultado da

tendência que ele tinha por intervir em acontecimentos da sociedade francesa.

O Tratado sobre a tolerância é uma das obras mais comentadas de

Voltaire. É resultante do episódio mais exemplar da interferência do filósofo na

sociedade francesa. Ainda, demonstra com excelência o espírito voltairiano. O

Tratado teve como base o caso Calas.

O senhor Calas e sua esposa encontraram, no dia 13 de outubro de

1761, um de seus filhos enforcados em uma barra de madeira dentro de um

dos cômodos de sua casa. Quando a polícia chegou a casa, como de costume,

reuniu-se um aglomerado de curiosos em torno do local.

Do meio da multidão, ouviu-se um grito que dizia “Marco Antônio foi

enforcado por seus pais huguenotes porque se converteu ao catolicismo!”

(VOLTAIRE, 2000, p. 14). Huguenotes é uma palavra não totalmente definida,

mas, no geral, significava um adjetivo para os protestantes da época.

Após esse grito, um rumor foi espalhado pela cidade inteira e todos os

que estavam presente na casa foram presos. O jovem falecido passa a ser

visto pelo povo como um mártir da religião, uma idolatria fanática dominou o

município (VOLTAIRE, 2000, p. 14).

O processo foi levado ao Parlamento de Toulouse, que, sob a pressão

da opinião pública, condenou o senhor Calas à tortura e a morte. Seu outro

filho, Pedro, teve a condenação de ser banido do seu país.

As filhas foram colocadas em um convento. A senhora Calas,

juntamente com a empregada da família e um amigo que se encontrava na

casa no momento da morte foram inocentados. Todos os bens da família Calas

foram confiscados (VOLTAIRE, 2000, p. 14).

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O caso Calas chegou aos ouvido de Voltaire algum tempo depois do

ocorrido. A história obteve sua atenção pela dúvida que o abateu. Caso o

senhor Calas fosse realmente culpado então esse senhor teria cometido o

homicídio do próprio filho por fanatismo (NASCIMENTO, 1993, p. 12).

Porém, caso o senhor Calas fosse inocente, então o tribunal teria agido

por motivos de religião. Voltaire então pede para amigos o ajudarem a

investigar o caso, trazendo notícias da cidade. Assim, em menos de quinze

dias, o filósofo reúne informações indicadoras de que a cidade está diante de

um grande erro judiciário (NASCIMENTO, 1993, p. 12).

Esse caso se tornou uma das ocasiões mais intensas de Voltaire na sua

luta contra o que ele chamava de infâmia, quando se referia aos atos de

intolerância e males em geral causados pelos seres humanos. Ao perceber o

equivoco judiciário, ele iniciou uma campanha de mobilização social em prol da

família Calas (NASCIMENTO, 1993, p. 12).

Chegou a chamar os membros da família para comparecerem em

Ferney, fazenda onde morava, e lá os interrogou durante um longo período,

escreveu cartas para as autoridades francesas, mobilizou grandes figuras do

reino (NASCIMENTO, 1993, p. 13).

Em 1762, Voltaire publicou História de Calas. Em seguida, em 1763,

publicou o Tratado sobre a tolerância, onde apresentou a causa da família

Calas como a própria causa da humanidade.

Assim, a situação que ele criou acabou levando à cassação da decisão

do Parlamento de Toulouse pelo Parlamento de Paris. No ano seguinte os

familiares de Marco Antônio são novamente julgados e considerados, enfim,

inocentes.

A importância de estar ciente da história da família Calas e da luta de

Voltaire em seu favor, para essa dissertação, encontra-se no fato de que foi a

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partir desse momento que o filósofo estabeleceu os seus princípios de

tolerância.

Foi aqui que Voltaire publicou ideias que são capazes de guiar os

cidadãos em busca da obtenção da vivência em harmonia com os que pensam

diferente.

Tais ideias são de grande relevância até os dias atuais, pois a sociedade

ainda se depara com inúmeros casos de intolerância, casos que são

provenientes de diferentes naturezas, desde classe social até motivos de

diferenças de credo.

Logo no início do Tratado, após a narração que faz do caso Calas,

Voltaire instiga o leitor. Mostra que a simples lembrança de que todos os

homens deveriam ser irmãos é o exemplo e a vergonha dos povos que não

conhecem a tolerância (VOLTAIRE, 2000, introdução).

Questiona se a tolerância alguma vez deu iniciou à guerras civis. Então,

responde a própria pergunta mencionando das inúmeras vezes que a

intolerância cobriu a terra de sangue. O autor também já aproveita para

esclarecer o intuito do livro:

Não falo aqui senão do interesse das nações; e respeitando, como devo, a teologia, considero neste artigo apenas o bem físico e moral da sociedade. Imploro todo leitor imparcial a pesar essas verdades, retificá-las e desenvolvê-las. Leitores atentos, que se comunicam com seus pensamentos, vão sempre mais longe que o autor (2000, introdução).

Ao falar sobre a intolerância do governo francês, o autor destaca a

existência de diversos meios existentes para impedir que os grupos de

minorias se tornem perigosos.

Voltaire fixa a tolerância como primeira ação para tal impedimento, pois,

segundo ele: “Quanto mais seitas houver, tanto menos perigosa cada uma

será; a multiplicidade as enfraquece” (2000, introdução).

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Voltaire também lembra o leitor do fato de que desde a existência do ser

humano na terra já houve inúmeras injustiças causadas pela intolerância ao

distinto. Assim, mostra que a própria história da humanidade deve ser levada

em consideração antes de pensarmos em agir sem tolerância com certo grupo:

Houve um tempo em que se julgou necessário emitir decretos contra os que ensinavam uma doutrina contrária às categorias de Aristóteles, ao horror do vazio, às qualidades e ao universal por parte da coisa. Temos na Europa mais de cem volumes de jurisprudência sobre a feitiçaria e sobre a maneira de distinguir os falsos feiticeiros dos verdadeiros. A excomunhão dos gafanhotos e dos insetos nocivos às colheitas esteve muito em moda e ainda subsiste em vários rituais. A moda passou; Aristóteles, os feiticeiros e os gafanhotos foram deixados em paz. Os exemplos dessas graves demências, outrora tão importantes são inumeráveis (2000 introdução).

O capítulo VI do Tratado sobre a tolerância é intitulado se a intolerância

é de direito natural e de direito humano. É nesse capitulo que o autor afirma ser

o direito natural àquele que a natureza indica e que, em todos os casos, o

direito humano somente pode funcionar se estiver em consonância com esse

direito natural. E, ainda, o direito humano deve estar sempre de acordo, nas

palavras de Voltaire, com:

O grande princípio, o princípio universal de ambos, é, em toda a terra: “Não faças o que não gostarias que te fizessem”...O direito da intolerância é, pois, absurdo e bárbaro; é o direito dos tigres, e bem mais horrível, pois os tigres só atacam para comer, enquanto nós exterminamo-nos por parágrafos (2000, p. 84).

Além de discorrer sobre a ignorância dos povos intolerantes, Voltaire

também dedicou um espaço de seus escritos para lembrar belos exemplos de

tolerância que aconteceram dentre os povos da antiguidade.

Ele cita os Romanos como sendo um povo digno para se espelhar, e

alega que: “Entre os antigos romanos, desde Rômulo até os tempos em que os

cristãos disputaram com os sacerdotes do Império, não encontreis um único

homem perseguido por suas opiniões” (2000, p. 87).

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Voltaire afirma que a intolerância serve apenas para fabricar hipócritas

ou rebeldes. Dizia que o espírito da intolerância tem como base somente

razões muito más, visto que ela constantemente está a procurar pretextos para

praticar o ódio, e agarra-se até mesmo ao mais ínfimo dos motivos para

consagrar tal objetivo (2000, p. 87)..

Se faz importante observar o fato de que os motivos da crença, seja ela

qual for, em cada indivíduo tem um fator gerador diferente em cada um deles.

O que faz o credo ser produzido é nada mais do que a própria razão do

indivíduo.

Cada ser humano possui um vício de pensamento dentro de si. Esses

vícios podem ser desenvolvidos pelo meio em que foram criados, pelas

conversas que tiveram até determinado ponto da vida, entre outros fatores. O

importante é que a sociedade entenda que é impossível ocorrer a extração de

uma crença de um cidadão pela simples ameaça ou coerção.

Ao indivíduo que ama o ato de escrever, por exemplo, não o vai deixar

de amar porque lhe foi proibido pratica-lo. Assim como uma mulher que

acredita que a ocultação do rosto e dos cabelos lhe confere plenitude eterna

junto ao seu Deus não irá deixar de crer apenas porque uma Lei diz que ela

precisa mostrar o rosto.

Contudo, Voltaire mostra para o leitor, também, que há sim possibilidade

de se conseguir mudanças quanto às crenças de um cidadão. Mas, em

consonância com os pensadores que ele mesmo citou, faz enxergar que tal

acontecimento se dá somente de forma voluntária por meio de persuasão, nas

palavras do filósofo:

Quando nossos atos desmentem nossa moral, é que acreditamos haver alguma vantagem em fazer o contrário do que ensinamos; mas certamente não há vantagem alguma em perseguir os que não são de nossa opinião e em fazer-nos odiar por isso. Há, portanto, mais uma vez, absurdo na intolerância (2000, introdução).

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Apesar de grande defensor da liberdade de pensamento, Voltaire

sempre se mostrou desfavorável ao fanatismo. Em seu Tratado sobre a

tolerância ele doutrina:

Para que um governo não tenha o direito de punir os erros dos homens, é necessário que esses erros não sejam crimes; eles só são crimes quando perturbam a sociedade; pertubam a sociedade a partir do momento em que inspiram o fanatismo. Cumpre, pois, que os homens comecem por não ser fanáticos para merecer a tolerância.(2000, introdução)

Cabe frisar, nesse ponto do presente estudo, que reprimir o fanatismo

em nada diz respeito sobre a defesa da liberdade de expressão religiosa. O

fanatismo religioso se caracteriza nos atos de grupos que tomam ações

motivadas pelo ódio aos que acreditam numa religião diferente, enquanto a

liberdade de expressão religiosa está ligada somente ao ato de demonstrar

suas crenças publicamente por meio de acessórios, discursos, performances

entre outros.

Assim sendo, Comte-Sponville em seu Dicionário filosófico (2003),

mostra que a distinção que existe entre as expressões acima discutidas pode

ser facilmente entendida quando se enxerga a existência do intolerável:

O comportamento que tolero, também posso combatê-lo, em mim ou em outrem. Mas eu me proíbo de proibir: combato apenas por meio de ideias, não da lei ou da força. Deve-se tolerar tudo? Claro que não, pois para tanto seria preciso tolerar o intolerável, inclusive quando ameaça a liberdade, e deixar os mais fracos sem defesa: seria abandonar o terreno aos fanáticos e aos assassinos! O intolerável existe: é tudo que tornaria a tolerância suicida ou culpada (2003, p. 596).

De acordo com a perspectiva acima, estão as palavras de Voltaire

quando escreve: “Se quereis que tolerem aqui vossa doutrina, começai por não

serem intolerantes nem intoleráveis” (2000, p. 40).

Por fim, ainda com a intenção de destacar a importância da tolerância,

cabe lembrar o ensinamento de Confúcio que Voltaire cita em um dos diálogos

do seu conto Relato de uma disputa de controvérsia na China, quando um

mandarim elucida: “Ninguém deve acreditar que sabe mais do que os outros e

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que a razão só habita em sua cabeça. É assim que ensina nosso grande

Confúcio” (VOLTAIRE, 1993, p. 46).

O que Voltaire desejava explicar citando Confúcio era o fato de que cada

indivíduo acredita em sua própria razão. Para entender tal fato o indivíduo

precisa enxergar que, assim como ele, os outros cidadãos entendem de suas

crenças.

Sendo assim, todo ser humano deve sempre lembrar que a razão não

está inserida apenas em sua cabeça, estando todos, então, legitimados ao

acreditar no que desejarem.

Acerca da tolerância religiosa universal, Voltaire explana: “Não é preciso

uma grande arte, uma eloquência muito rebuscada, para provar que os cristãos

devem tolerar-se uns aos outros” (1993, p. 46).

O filósofo lembra que o homem sempre teve necessidade de um freio e

argumenta que “um ateu argumentador, violento e poderoso seria um flagelo

tão funesto quanto um supersticioso sanguinário”. (1993, p. 47).

A maioria das religiões ainda age com caráter condenatório e agressivo

em face das outras. Cada qual professa deter a verdade. Ante esse problema

se faz importante citar John Locke, que em sua Carta acerca da tolerância

explica: “Porque cada igreja é ortodoxa para consigo mesma e errônea e

herege para as outras. Seja no que for que certa igreja acredita, acredita ser

verdadeiro, e o contrário disso condena como erro” (1973, p. 30).

Aldir Guedes Soriano, em sua obra Liberdade Religiosa no Direito

Constitucional e Internacional (2002), aduz:

A tolerância religiosa não deve implicar na aceitação do erro doutrinário alheio, numa forma de união ecumênica, onde todos se unem em oração. Não obstante as restrições doutrinárias não devem passar por cima da dignidade da pessoa humana. Qualquer forma de persuasão no plano religioso deve ser

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temperada com respeito ao livre convencimento humano; e, por que não dizer, com amor fraternal? (2002, p. 34).

O homem sempre teimou em promover a desarmonia e a desavença,

fatores esses que são extremamente contributivos para a corrosão que a

sociedade vem enfrentando.

Como forma de solucionar esse problema Soriano sugere: “A tolerância

religiosa favorece a paz e o desenvolvimento de uma sociedade fraterna, justa

e pluralista. Se queremos paz, devemos fomentar uma sociedade tolerante”

(2002, introdução).

Nessa mesma vertente de entendimento, dizia Locke que “todo homem

tem o direito de administrar, exortar, convencer a outrem do erro e persuadi-lo,

através do raciocínio a aceitar a sua opinião” (1973, p. 12).

Para ele, o poder civil não deveria intervir nas relações religiosas, não

proferindo artigos de fé nem doutrinas ou qualquer forma de cultuar Deus pelo

por meio de lei civil (1973, p. 12).

De acordo com as reflexões acerca do conceito de tolerância, pode-se

afirmar que o ser humano possui a opção de se tornar mais tolerante em suas

relações culturais, intelectuais e sociais. E, assim, a sociedade teria a

oportunidade de estabilizar e até acabar com essa destruição cultural que vem

ocorrendo ao redor do mundo.

Os diferentes grupos de cidadãos que a humanidade abriga, possuem a

capacidade de tolerar os diferentes sem deixar suas próprias razões de lado.

Com a prática da tolerância a sociedade tem a oportunidade de viver em

harmonia.

A ideia de um tratado de paz entre os povos, onde viveriam todos

em uma comunidade universal, sendo estabelecida entre as nações uma

convivência pacífica e harmônica, onde todas mantivessem uma relação de

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comércio universal caracteriza-se pelo chamado cosmopolitismo.

Um dos princípios para a efetivação de uma sociedade nos moldes

do cosmopolitismo é o princípio da solidariedade. Sobre esse princípio

Guilherme Massaú, em sua obra intitulada O princípio republicano constituinte

do mundo-da-vida do estado constitucional cosmopolita (2016), aclara:

O princípio da solidariedade, na sua origem ocidental – a partir da doutrina da Igreja Católica – está sustentado na natureza do homem, pois ele constitui sua identidade. Ela existirá enquanto existir o homem, este é o fundamento da tese do ser humano como ser social. O homem não sobrevive sozinho, ele se encontra na companhia de outro e numa comunidade em geral organizada, por isso não é um ser só, mas social (comunitário) (2016, p.30-31).

Massaú explica que as pessoas possuem uma conexão com a

solidariedade e que essa relação se encontra na relação entre o eu e o outro,

quer dizer, a pessoa passar a existir na mutualidade do encontro ao se achar e

se desenvolver com o outro ainda que mantenha a sua individualidade (2016,

p. 31).

Além disso, também esclarece o fato de que a solidariedade

pertence também à relação entre indivíduo e comunidade. E, o que a

comunidade faz ou deixa de fazer também acarreta em consequências para o

indivíduo. (MASSAÚ, 2016, p. 31).

Diante disso:

A comunidade é formada por uma variedade de indivíduos e de interesses distintos, e a uniformização de todas as relações interindividuais não pode ser o objetivo da política. A convivência política deve basear-se sobre o entendimento do bem comum, o que é salutar, e o Direito, em contra partida a ela, constrói-se sobre a amizade. Isso não deve conduzir à igualdade a unidade, mas à harmonia (MASSAÚ, 2016, p. 39).

Cabe lembrar aqui que as características individuais dos cidadãos

não devem ser suprimidas em detrimento da coletividade, pelo contrário: “a

solidariedade na res publica constitui-se em elemento de equilíbrio entre o

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aspecto individual e o aspecto social, pois ambas são partes integrantes e

indissociáveis do ser humano” (MASSAÚ, 2016, p. 40).

Vale pontuar que nem sempre a solidariedade se encontrará

fundamentada na semelhança de determinada condição social, no

pertencimento de um mesmo grupo, de uma mesma sociedade ou de uma

mesma nacionalidade.

Massaú adverte que: “O princípio da solidariedade tem, atualmente,

uma reputação promissora, justamente por ser um período marcado por

indefinição, insegurança e intolerância”. E, também: “a solidariedade deve estar

pautada pela pluralidade oriunda da diferenciação cultural e social” (2016, p.

42).

Massaú explica, ainda, que a dignidade humana representa o ponto

inicial e final do princípio da solidariedade. Ainda que a dignidade traga como

consequências a autonomia da pessoa, a diferenciação, a multiplicidade, e

todas as prerrogativas subjetivas ao indivíduo, a Constituição Federal não tem

intenção de isolar os cidadãos em sua dignidade, mas, implica em uma

dignidade em solidariedade. Isso quer dizer que quando uma pessoa contribui

para a realização da dignidade alheia a mesma estará potencializando a sua

própria dignidade.

Em relação à esfera pública do Direito, a Constituição como documento máximo de ordem jurídica, determina os direitos, e, de certa forma, a ação política para efetivá-los. Por conseguinte, qualquer ação pública ou privada não deve ignorar nem ir de encontro aos princípios normativos constitucionais. Caso ocorra com a permissão dos órgãos competentes no sentido de excepcionar a ordem constitucional, estar-se-á violando a Carta Magna e permitindo exceções de inobservância da Constituição, rompendo com a base estabelecida pela representação da sabedoria popular. A observância constitucional deve abranger toda a extensão do texto constitucional (MASSAÚ, 2016, p. 54).

O autor também lembra que vivenciamos hoje um momento de

situações sociais complexas que ocasionam em uma necessidade de atuação

solidária entre os Estados. De acordo com ele:

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Encontram-se a violação dos direitos humanos, o problema ecológico, e a diferença de desenvolvimento econômico entre o Sul o Norte e do Leste e do Oeste e o problema da migração das populações pobres em direção aos países economicamente desenvolvidos. Esses problemas são de desigualdades internacionais que se configuram em um desafio da solidariedade e de tolerância perante os Estados diretamente envolvidos, mas também é preciso compreender que os demais Estados estão indiretamente vinculados e que não existem mais entes estatais que possuem a prerrogativa de se absterem de colaborações para amenizar ou resolver estes e outros problemas. A solidariedade, especialmente em âmbito mundial, é difícil, vagarosa e complexa de ser construída (2016, p. 62).

Temos, portanto, que a solidariedade se encontra na condição de ser

social do ser humano, seria ela configurada no equilíbrio entre o aspecto

individual e social do indivíduo. Sendo autenticada pela multiplicidade originária

da distinção cultural e social.

Enquanto que a tolerância se configura como o ato de conviver com o

diferente de maneira respeitosa, sem que se passe por cima de suas próprias

crenças e costumes, enquanto também não se adentra o espaço de liberdade

de terceiros para que, igualmente, vivam suas vidas respeitando os dogmas

que escolheram seguir.

Já na perspectiva do Estado, a tolerância deve ser observada no

sentido de não restringir as liberdades individuais dos indivíduos. Todavia o

Estado não deve permanecer omisso nos casos em que o choque cultural

desestruture alicerces fundamentais para o bom andamento social.

Ante o disposto, conclui-se que a expansão dos conceitos de tolerância

e solidariedade na consciência dos cidadãos sempre se fez importante para o

bom desenvolvimento social. Contudo, percebe-se que esses conceitos ainda

não conseguiram encontrar uma efetivação ideal onde seriam absorvidos e

praticados por todos os cidadãos.

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Ainda hoje, diariamente, com o fator das migrações e a transformação

do mundo como conhecemos em uma grande aldeia global, essas ideias vêm

encontrando novos obstáculos para sua concretização adequada.

Frisa-se assim, a importância da elaboração da presente dissertação,

que trabalha com intuito de analisar casos concretos onde se identifica a falta

desses conceitos nas atitudes de seus protagonistas a fim de trazer reflexões

que iluminem as ideias dos leitores, contribuindo para a difusão da ideia de

tolerância nos dias de hoje.

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5. O CASO FRANCÊS: PRESENÇA ISLÂMICA E A LEI N. 2010-1191.

A população muçulmana tem crescido consideravelmente dentro dos

países da União Europeia. Essas pessoas se tornam imigrantes motivadas por

fatores econômicos e políticos.

Países como a Síria e Iraque, que atualmente se encontram sitiados

pelo Estado Islâmico (ISIS), estão entre os países que mais originam migrantes

destinados para Europa (CAUMONT, 2013, sp).

Diante dos contemporâneos ataques islâmicos em território Francês e

das marchas de declaração anti-islamismo realizadas na Alemanha, o Instituto

PewResearch Center lançou no dia 12 de outubro do ano de 2013 um artigo

que destaca fatos interessantes no que diz respeito à população muçulmana

residente na Europa.

De acordo com esse Instituto a quantidade de povo muçulmano da

Europa vem crescendo em torno de um ponto percentual a cada década nos

últimos 25 anos. Passando de 4% no ano de 1990 para 6% em 2010. Isso quer

dizer que um total 29,6 milhões de cidadão muçulmanos residentes na Europa

no ano de 1990, se tornou 44,1 milhões de pessoas em 2010 (CAUMONT,

2013, sp).

De acordo com esses dados, percebe-se que, seguindo uma ordem

numérica de lógica progressiva, por volta do ano de 2030 o povo de religião

islâmica em território Europeu estará próximo a um número como 58 milhões

de habitantes. Sendo assim, se vai ter o dobro da população islâmica dentro da

União Europeia referente ao ano de 1990.

O Instituto PewResearch Center também destaca que a partir do ano de

2010 estima-se que dentro dos 27 países que formam a União Europeia vivem

aproximadamente 13 milhões de imigrantes islâmicos, o que representa 27%

da população de estrangeiros residentes nesse território.

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Ocorre que com o crescimento da população muçulmana, cresce

também o número de islâmicos extremistas dentro do continente europeu. As

guerras intermináveis nos locais de nascimento e criação dessas pessoas

tendem a gerar um sentimento de revolta quando se deparam com a injustiça

de obterem tamanho sofrimento e falta de acesso às necessidades básicas de

qualquer ser humano, transformando uma minoria praticante dessa cultura em

grupos fanáticos terroristas.

Os atos de protestos religiosos que esses grupos de minoria praticam

tem se tornado mais comum, tais atos têm provocado diferentes reações nos

cidadãos de origem europeia.

Ainda de acordo com a pesquisa realizada pelo Instituto Pew, a

Alemanha, França e Reino Unido são os países com a visão mais favorável

aos muçulmanos. Já em países como Itália, Grécia e Polônia mais da metade

dos entrevistados demonstraram opiniões negativas acerca da imigração

muçulmana em seus países (CAUMONT, 2013, sp).

Como já mencionado, a motivação desses imigrantes são, no geral,

políticas e econômicas. Eles buscam cidades que não possuam conflitos

étnicos ou políticos, procuram empregos e acabam por ocupar os cargos de

subemprego, aqueles que são comumente rejeitados pela população local.

De acordo com o disposto acima, nota-se uma dualidade: o povo

muçulmano transferindo suas vidas para outro país, perdendo sua identidade

cultural aos poucos, porém, buscando a garantia de uma vida digna para si e

seus descendentes longe dos conflitos políticos e econômicos de sua terra

natal; de outro lado, o povo europeu sofrendo com a minoria islâmica

extremista produzindo atos terroristas, enquanto a população muçulmana vai

tomando conta de suas ruas.

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Porém, ao mesmo tempo o povo europeu percebe a necessidade dessa

imigração para suprir a demanda de subempregos e mão de obra, uma vez que

grande parte da União Europeia sofre com a falta de natalidade.

A partir do disposto acima, cabe aqui elaborar um breve histórico do

desenvolvimento do mundo islamita e de sua expansão para o Ocidente, mais

especificamente para a Europa, abordando noções básicas da cultura e crença

muçulmana. Tal histórico será feito de maneira breve, exclusivamente para fins

de norteamento do assunto foco na presente dissertação.

De acordo com o historiador Mustafa Yazbek, estudioso dos povos

árabes, a religião islâmica é recente em relação às outras. Segundo ele, o

islamismo surgiu no século sete da era cristã, tratando-se, assim, de uma

religião nova em comparação com outras, como o cristianismo, o judaísmo ou o

budismo. Tudo começou com as pregações de Maomé, que nasceu no ano de

570, perto da cidade de Meca, na Arábia (YAZBEK, 2005, sp).

O historiador Yazbek conta que Maomé viveu meditando e passando por

crises de tremores que ninguém explicava até que em seus quase 40 anos de

idade ele disse ter recebido uma visita do arcanjo Gabriel que, segundo o

profeta, veio para declarar: "Sou o arcanjo Gabriel, enviado por Deus para

comunicar tua escolha, por esse mesmo Deus, para anunciar ao mundo suas

mensagens".

A partir disso, Maomé dizia ter passado a receber mensagens e ouvir

vozes frequentemente. Aos poucos foi recolhendo as informações recebidas

com ajuda de amigos e parentes para, por fim, compor o Alcorão, o livro

sagrado dos muçulmanos (YAZBEK,2005, sp).

Basicamente, o conteúdo das mensagens que o Profeta recebia dizia

respeito ao anúncio de uma única religião verdadeira, voltada para um único

Deus, contrária à idolatria, ao paganismo que predominava entre as principais

tribos que habitavam a Arábia.

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Yazbeck elucida que após a unificação das tribos árabes o islamismo se

expandiu rapidamente em todas as direções. Em poucas décadas o império

árabe ocupou uma extensão de terra somente comparável ao Império romano

em seu auge. (2005, sp)

O império islamita logo assumiu o papel de agente de ligação comercial

entre áreas economicamente importantes do mundo na época, sendo elas a

Europa, a África e a Ásia. O progresso militar atingido pelos muçulmanos

permitiu-lhes isolar a Europa, bloqueando o comércio especialmente através do

controle do mar Mediterrâneo. Para muitos historiadores, isso acentuou uma

tendência já existente desde o século V, voltada para a vida agrária, e que

conduziria a Europa ao feudalismo (YEZBEK, 2005).

Em menos de um século, a expansão islâmica já havia dominado os

impérios persa e bizantino, além da maior parte do norte da África e da

península Ibérica. Somente nesta última região, os muçulmanos

permaneceriam por cerca de oito séculos. Quando invadiram a península, no

ano de 711, empurraram a monarquia visigoda rumo ao norte, onde se

concentraria a resistência aos invasores durante os séculos seguintes

(YAZBEK, 2005, sp).

Yazbek explica a rápida expansão islamita com causas como a

numerosa população árabe da época, a expectativa de alcançar bons

resultados nos saques e a proposta de conversão dos infiéis ao islamismo à

verdadeira religião. (2005, sp)

A ocupação da Espanha foi o momento de auge na expansão islâmica:

O apogeu do islamismo ocidental foi vivido em território espanhol e desmoronou com a Reconquista cristã, concluída no ano de 1492. No entanto, a contribuição deixada pela civilização do Islão representa uma herança que continuou

depois disso a beneficiar toda a humanidade (YAZBEK, 2005,

sp).

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A longa permanência dos muçulmanos deixou marcas definitivas no

Ocidente e, nesse aspecto, o papel da Espanha foi o de ser a principal área

intermediária.

A cultura muçulmana no Ocidente agiu como uma força sintetizadora,

levando para as regiões conquistadas o que havia de mais importante em

todos os centros da atividade humana, o que havia de mais significativo no

conhecimento de chineses, indianos e gregos. Traduzindo as obras dos mais

importantes autores da Antiguidade clássica, os muçulmanos transferiam para

o Ocidente o conhecimento acumulado durante séculos (YAZBEK, 2005, sp).

O historiador, ainda, exemplifica as contribuições dos árabes no

ocidente: o desenvolvimento da cartografia, da astronomia, da química, da

medicina, da indústria, do comércio, da arquitetura e da matemática, da

filosofia e da literatura, além da álgebra (YAZBEK, 2005, sp).

De origem árabe também foram importantes intelectuais do período,

como o médico e filósofo Avicena, que teve sua obra enciclopédica, chamada

"Cânon", utilizada durante muito tempo nas escolas europeias de medicina; o

historiador IbnKhaldun, que muitos veem como precursor da abordagem

científica da vida social; e o sábio Al Biruni, que se dedicou a praticamente

todas as disciplinas científicas de seu tempo (YAZBEK, 2005, sp).

Diante do exposto, Yazbek resume:

Mais do que simplesmente uma religião, o islamismo pode ser

definido como uma civilização, um movimento ao mesmo

tempo político, religioso, econômico e social, que, a uma

velocidade extraordinária - tanto em termos de tempo quanto

de espaço -, se expandiu pelo mundo, O Islão começou com os

árabes, mas não se limitaria a eles. Em pouco tempo, os

árabes seriam um entre os vários povos formadores da

civilização islâmica, ao lado de andaluzes, iraquianos,

berberes, iranianos, turcos, sírios, além de outros (2005, sp).

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Ainda sobre essa questão, Maria do Céu de Pinho Ferreira Pinto

destaca:

O islão não é encarado somente enquanto credo religioso que condiciona a vida espiritual dos indivíduos; é, acima de tudo, um “modo de vida” que permeia e molda o tecido social. Esta crença reflete-se na tendência de falar do Islão como religião (dinwadawla), como um sistema de crenças e de lei (dinwadunya) (2003 p. 56).

As citações acima afirmam exatamente o que o Islamismo se tornou no

mundo atual, muito mais que uma religião, hoje a crença no profeta Maomé

carrega consigo todo um conjunto de princípios para a vida de seus crentes

como um todo.

Assim, essa religião transcendeu o seu nicho específico de público

inicial. Hoje o islamismo tem seguidores espalhados pelo mundo inteiro e

interferindo diretamente em aspectos como cultura e política nos locais onde a

religião é atuante.

Antes de prosseguir é importante dissertar um pouco sobre a religião

aqui discutida, uma vez que no Ocidente os conhecimentos acerca de tal

crença são, em sua maioria, muito rasos.

O Islamismo, Islão, Islã ou Islame, vem da palavra árabe

aslama "submissão", nesse caso, submissão a Deus (Alá). Os adeptos dessa

fé são chamados de muçulmanos, que vem da palavra árabe muslim "aquele

que se submete", sendo errôneo considerar que todo árabe é muçulmano

(PINTO, 2003, p. 20).

Sobre a crença muçulmana, Leandro Vilar explica:

No Islão, considera-se Alá como o deus único e Senhor do Universo, criador de tudo e de todos. Considera-se também a existência dos anjos, servos do Senhor e de demônios, servos do Diabo. Acredita-se também nos profetas os quais começaram com Abraão, sendo Mohammed o último desses. Nesse caso, Jesus Cristo é visto como um dos cinco grandes profetas, sendo o antecessor de Mohammed. Os muçulmanos

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não o veem como sendo o Filho de Deus e o Filho do Homem, logo não aceitam a Trindade, embora que considerem os milagres feitos por Cristo e sua ressurreição (2012, sp).

Além disso, a religião islâmica prega a concepção de um Juízo Final,

do Paraíso para os benevolentes e o Inferno para os pecadores. Considera que

os crimes cometidos durante a vida, serão julgados na morte, daí que se deve

sempre pregar o bem, não pela salvação própria, mas pelo bem ao próximo e

para Deus, assim como ele exigiu (VILAR, 2012, sp).

Hoje o Islão, é a religião com o maior número de seguidores e a

que mais cresce no mundo, tendo um número de convertidos estimados em

cerca de 1,6 bilhões, ganhando adeptos em todos os cantos do planeta e, não

obstante, ainda é uma religião marcada por preconceitos (VILAR, 2012, sp).

Os preconceitos a que Vilar se refere dizem respeito aos povos

praticantes de outras religiões que criticam o conservadorismo islâmico e sua

suposta tendência bélica, alegando-se que os muçulmanos são terroristas, algo

que a mídia distorceu ao longo dos anos, baseada na forma de como algumas

pessoas interpretaram as escrituras do Al-corão.

De acordo com o dito no parágrafo acima, infelizmente, a mídia vem

reportando atos praticados por muçulmanos que fazem com que a cultura

islâmica contemporânea seja marcada por movimentos que os especialistas

chamam de “ressurgimento”, “revivalismo” ou, ainda, “fundamentalismo”

(PINTO, 2003, p. 59).

O que ocorre no chamado fundamentalismo é que os cidadãos ditos

fundamentalistas trabalham para uma intensificação da consciência islâmica no

nível das massas do mundo mulçumano (PINTO, 2003, p. 59).

O fenômeno do fundamentalismo islâmico se faz de muita importância

para a cultura islã, uma vez que constitui um mecanismo de caráter

sociopolítico que permite tanto a renovação e afirmação do islão contra a

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decadência interna que vinha ocorrendo com seus próprios crentes e, ao

mesmo tempo, quanto à proteção contra ameaças externas (PINTO, 2003 p.

59-60).

Pinto, em sua obra intitulada “Infiéis na terra do islão: os Estados

Unidos, o Médio Oriente e o Islão” (2003), explica que:

O fenômeno de fundamentalismo religioso implica sempre um regresso aos preceitos religiosos originais, aos alicerces puritânicos da fé. Contudo, os movimentos revivalistas atuais nem sempre preconizam a imitação cega e literal dos modos de vida do tempo do Profeta Maomé. Efetivamente, estes movimentos tendem a incorporar novas práticas e valores para reforçar a sua viabilidade no contexto atual (2003, p. 40).

Pinto realça que, apesar da afinidade em termos de ideologia, existe

uma grande heterogeneidade em termos de movimentos islamitas. Assim,

torna-se uma tarefa extremamente difícil tentar caracterizar o Islão atual, uma

vez que o mesmo possui uma variedade imensa de correntes intelectuais e

grupos de sociedade muçulmana. Ela afirma que: “De fato, o mais exato seria

afirmar que o que realmente define o mundo islâmico é a diversidade dos

movimentos” (2003, p. 40).

Os grupos fundamentalistas iniciaram uma proliferação de sua ideologia

com maior afinco há cerca de quatro décadas. O objetivo desses muçulmanos

é criar um Estado teocrático dentro de uma sociedade que mantenha seus

valores norteados pelo islamismo.

Os islâmicos fundamentalistas radicais concentram sua crença em

determinados aspectos da doutrina muçulmana, como o conceito de soberania

divina (hakimiyya) e o papel do jihad.

Essa crença numa exclusividade de soberania divina confere a esses

cidadãos uma rigidez intelectual dogmática que os fazem rejeitar a leis

humanas uma vez que exigem um sistema político seguidor das regras divinas,

visto que esta seria a única lei soberana (PINTO, 2003, p.42).

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Contudo, os fundamentalistas não rejeitam os trunfos do mundo

moderno. Na verdade, eles aspiram a criação de um Estado contemporâneo

em termos de meios, mas não em termos de valores. Inclusive, a tecnologia

ocidental e seus meios de comunicação têm sido utilizados pelos grupos

fundamentalistas com intuito de conscientização das massas a respeito da

causa islâmica (PINTO, 2003, p. 42).

A relevância do fundamentalismo islâmico como força política ocorreu a

partir do início da década de 1970, quando uma série de acontecimentos no

mundo muçulmano trouxe como consequência esse movimento de busca

interior de autocrítica dos crentes dessa religião (PINTO, 2003, p. 45).

Na década de 1970 já era residente na Europa uma população

muçulmana significativa. Tal população, contudo, teve os olhos do mundo

voltados para si somente quando os grupos islâmicos fundamentalistas criaram

força suficiente para expandir suas crenças no mundo ocidental, muitas vezes

por meio de atos terroristas, tendo como maiores exemplos o atentado ao

World Trade Center nos Estados Unidos no ano de 2001 e, mais recentemente,

o ataque a Charlie Hebdo, no ano de 2015 na França.

No mundo ocidental contemporâneo, com a globalização, tecnologias,

aceleração da vida cotidiana e o foco na caminhada rumo à estabilidade

econômica, cada vez menos os cidadãos parecem estar apegados a ideologias

religiosas. Pode-se dizer até que, talvez, esse desapego ideológico religioso

seja um fator fundamental na diferença entre as sociedades ocidental e

oriental.

Essa diferenciação faz justamente com que os cidadãos do ocidente

enxerguem os islâmicos com certa hostilidade. De acordo com Pinto: “os

ocidentais temem o Islão por sua vitalidade como paradigma religioso

civilizacional, e, logo, pelo seu potencial como possível desafio ideológico ao

Ocidente” (2003, p. 52).

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É fato que nas últimas décadas os fundamentalistas islâmicos tem se

mostrado cada vez mais agressivos contra as práticas ocidentais.

Especialmente o caso do ataque a Charlie Hebdo demonstra uma hostilidade

que não se faz justificada de maneira alguma.

Contudo, se faz importante a reflexão sobre os limites da liberdade

expressão religiosa. Até que ponto se deve responder agressividade com mais

agressividade? Quais as vantagens seriam extraídas de uma reposta

intolerante?

Pois, como já explicitado, tolerar jamais é aceitar o errado, porém, deve-

se entender a motivação alheia para as atitudes que os levaram até tal ponto e,

assim, procurar a alternativa menos danosa e degradante para ambos os

lados.

É a partir dessas observações que se parte para a próxima fase da

presente dissertação, na qual será observado com mais detalhe o caso dos

muçulmanos na França e da atuação do Estado frente às adversidades

culturais sofridas pelos cidadãos dentro do território francês.

Para dar início a esta etapa, será feito um estudo de caso da Lei que

proíbe a ocultação da face em espaços públicos do território da França,

analisando a estrutura da mesma e as justificativas e fundamentações de sua

criação.

No dia 07 de outubro de 2010, na França, foi aprovada pelo

Conselho Constitucional n. 2010-613 a Lei n. 2010-1192, que normatiza a

ocultação da face em espaço público. A promulgação pelo Presidente da

República Francesa se deu no dia 11 do mês de outubro do ano de 2010.

Tal Lei traz em seu núcleo o impedimento dos cidadãos franceses

de se utilizarem de quaisquer formas, artigos, artefatos e outros meios

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destinados a ocultar a face em espaços públicos. Entende-se como espaço

público toda via pública e lugares abertos ao público ou, ainda, lugares

destinados aos serviços públicos. Assim sendo, o legislador elenca que são

espaços públicos:

São também considerados lugares públicos: praias, jardins públicos, passeios públicos, assim como lugares onde qualquer indivíduo possa e queira pagar por uso deste espaço: cinemas, teatros; os vários tipos de comércio: cafés, restaurantes, lojas; estabelecimentos bancários, rodoviárias, estações de trem; metrô, aeroportos; e também prefeituras, tribunais, hospitais, agências de correios, e instituições de ensino: escolas, colégios, universidades; pronto-socorro, agências de emprego, museus e bibliotecas. 2

Conforme a Circular de 02 de março de 2011, relativa à aplicação do

ordenamento aqui apresentado, ocultar a face significaria causar receio às

exigências mínimas da vivência em coletividade. Tal atitude provém de uma

sensação de supressão e ameaça na população.

A mesma Circular justifica que o motivo para o engenho dessa

norma é o fato de que o seu país de origem se encontra em situação de

necessidade de reafirmação dos valores da República e das exigências do

convívio em sociedade. Assim, tal Lei foi divulgada como sendo um desejo

nacional de reafirmação.

Ainda nessa Circular, o governo francês explica que, pelo fato de a

atitude reprimida na Lei causar as consequências já citadas, ela é conflitante

com os princípios de Liberdade, Igualdade e Dignidade Humana que são os

preceitos formadores da República Francesa.

Segundo os governantes franceses, a República deve se manter

com a face descoberta e embasada em torno do conjunto de valores comuns

2 Constituent des lieux ouverts au public les lieux dont l’accès est libre (plages, jardins publics, promenades publiques...) ainsi que les lieux dont l’accès est possible, même sous condition, dans la mesure où toute personne qui le souhaite peut remplir cette condition (paiement d’une place de cinéma ou de théâtre par exemple). Les commerces (cafés, restaurants, magasins), les établissements bancaires, les gares, les aéroports et les différents modes de transport en commun sont ainsi des espaces publics (Tradução do autor).

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para a construção de um futuro compartilhado entre todos, fato pelo qual ela

não poderia convir com qualquer forma de intimidação ou sentimento de

exclusão causado pela ocultação da face em público.

O artigo 3º da Lei estabelece a punição que deve ser aplicada aos

casos de descumprimento da norma. Neste caso, é cabível pena de multa,

podendo variar de acordo com Lei Complementar; ou seja, o valor em espécie

pode variar de acordo com a jurisdição onde a infração foi cometida.

Existe ainda a possibilidade de ser substituída por pena alternativa

de prestação de serviço voluntário, que poderá ser igualmente pronunciada de

acordo com as mesmas jurisdições a título de pena alternativa e/ou

complementar. Além disso, a Circular de 02 de março de 2011 regulamentou

que:

A prestação de serviço voluntário, adaptado à infração cometida, deve respeitar o valor republicano de igualdade e respeito pela dignidade humana. 3

O legislador estabeleceu, também, um prazo de seis meses, a partir

da entrada da Lei em vigor, para que tal sanção começasse a ser aplicada.

Esse prazo se fez necessário para preparar a sensibilização do público.

O legislador preocupou-se, principalmente, com a absorção do

conteúdo da Lei por parte das pessoas que seriam diretamente comprometidas

por exercitarem a prática da ocultação da face.

As pessoas diretamente afetadas pela Lei de Proibição da Ocultação

da Face receberam uma cartilha de informações sobre a mesma, que foi

elaborado pelo Ministério das Cidades Francesas em conjunto com o Ministério

3 L’obligation d’accomplir un stage de citoyenneté peut également être prononcée par les

mêmes juridictions, à titre de peine alternative ou de peine complémentaire. Le stage de citoyenneté, adapté à la nature de l’infraction commise, doit notamment permettre de rappeler aux personnes concernées les valeurs républicaines d’égalité et de respect de la dignité humaine.

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da Solidariedade e Coesão Social e o Ministério do Interior Francês.

Havia uma finalidade de conscientizar a minoria da sociedade

francesa que se utiliza das formas de ocultação da face estabelecidas na

norma. Assim sendo, a cartilha ajudaria esses cidadãos a compreenderem os

motivos e embasamentos do presente ordenamento. Ficou designado ainda

que:

[...] em hipótese alguma tal dispositivo significa uma forma de negociação, mas sim de esclarecimento. Oferecendo um serviço personalizado, respeitando o direito das mulheres. 4

Mesmo anteriormente à inserção dessa nova norma no ordenamento

jurídico Francês, já havia antecedentes jurídicos que previam o rumo tomado

pelo governo com a criação dessa Lei em 2010. É o caso do Decreto Nº 2009-

724 de 19 de junho de 2009, responsável por inserir no Código Penal do país

uma seção X, que no capítulo V, de título IV do livro VI, determinou:

Da Ocultação da Face por Ocasião de Manifestações Sobre Vias Públicas Art. 645-14 – É punido por multa prevista por Leis Complementares, o fato de uma pessoa, no centro, ou aos arredores imediatos de uma manifestação sobre vias públicas, ocultar voluntariamente sua face afim de não ser identificada, em circunstâncias capazes de causar temor, atingindo a ordem pública. 5

O dispositivo acima citado, segundo o seu Decreto de origem, não

remete à punição prevista nos casos de pessoas que estão se manifestando

conforme seus costumes locais ou também nos casos em que a ocultação do

rosto se dê por motivo legítimo e justificado.

Retomando a Lei n. 2010-1192, esta teve como uma de suas

4 L’objectif est de proposer aux personnes qui se dissimulent le visage une information complète sur la loi et un accompagnement personnalisé (Tradução do autor). 5 De la dissimulation illicite du visage à l’occasion de manifestations sur la voie publique Art. R.

645-14 − Est puni de l’amende prévue pour les contraventions de la cinquième classe le fait pour une personne, au sein ou aux abords immédiats d’une manifestation sur la voie publique, de dissimuler volontairement son visage afin de ne pas être identifiée dans des circonstances faisant craindre des atteintes à l’ordre public.

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consequências a elaboração de penalidades para os casos em que alguém se

utilize de força a fim de obrigar outro alguém a ocultar a própria face. O

governo francês, na Circular de 02 de março de 2012, alega que:

A repressão deste delito faz jus a vontade dos poderes públicos de lutar vigorosamente contra todas as formas de descriminalização e violência contra as mulheres que se mostram cada vez mais favoráveis ao princípio de igualdade entre os sexos. 6

Assim sendo, esse delito previsto no artigo 4º da Lei criou o novo

artigo 225-4-10 no capítulo V, título II, do Código Penal Francês, que

estabelece:

Da Ocultação Forçada da Face: Art. 225-4-10 – Obrigar outrem, por meio de coação, ameaça, violência, abuso de autoridade ou abuso de poder, em razão de sexo, a punição prevista será de um [01] ano de reclusão e de trinta mil [30.000] EUROS de multa. [Caso de Majoração] Obrigar menor a ocultação da face, aplica-se a penalidade acima em dobro, ou seja, dois [02] anos de reclusão, e sessenta mil [60.000] EUROS de multa. 7

A presente Norma se fez aplicada em todos os territórios da

República Francesa a partir do dia 11 de outubro de 2011, incluindo além dos

conjuntos das grandes cidades, também as suas províncias.

A Circular publicada em de 02 de março de 2011 pelo governo

francês estabelece que somente dois fatores é suficiente para que os cidadãos

sejam autuados como infratores da Lei em questão, sendo eles: (a) o fato de a

pessoa utilizar objetos com finalidade de ocultação da face e (b) esta pessoa

se encontrar em espaço denominado público.

6 La répression de ces agissements participe de la volonté des pouvoirs publics de lutter

vigoureusement contre toutes les formes de discriminations et de violences envers les femmes, qui constituent autant d’atteintes inacceptables au principe d’égalité entre les sexes. 7 De la dissimulation forcée du visage

Art. 225-4-10. − Le fait pour toute personne d’imposer à une ou plusieurs autres personnes de dissimuler leur visage par menace, violence, contrainte, abus d’autorité ou abus de pouvoir, en raison de leur sexe, est puni d’un an d’emprisonnement et de 30 000 € d’amende. Lorsque le fait est commis au préjudice d’un mineur, les peines sont portées à deux ans d’emprisonnement et à 60 000 € d’amende.

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Os objetos a serem considerados destinados a ocultar a face

também estão especificados na Circular, como:

[...] são aqueles que tornam impossível a identificação de uma pessoa. E não se torna necessário que para isso a face esteja totalmente coberta. Estão expressamente proibidos o uso de gorros, toucas, de véus integrais (burkas, niqab...), máscaras, e/ou qualquer outro acessório ou tipo de vestimenta tendo por efeito, sendo utilizado isoladamente ou associado, a ocultação da face. Tendo em vista que uma infração já caracteriza uma contravenção, a existência da intenção, torna-se indiferente: qualquer que seja o meio utilizado para a ocultação da face já caracteriza um crime. 8

A Lei ainda prevê, em seu artigo 2º, algumas exceções à norma.

Primeiramente, o impedimento não se sobrepõe às pessoas que estiverem se

utilizando de ocultação do rosto para casos prescritos ou aprovados pelas

disposições legais ou regulamentares.

Um exemplo disso é o caso do artigo 431-1 do Código de Trânsito,

que determina o uso de capacetes aos guias e caroneiros de motocicletas e

outros veículos de duas rodas motorizados; há também os casos em que a

ocultação ocorra por motivos de saúde, que está disposto dentre as Leis

trabalhistas sobre a segurança do trabalhador que manuseia artigos perigosos.

Ainda inserido no campo das exceções estão os casos em que a

ocultação se dá por motivos de prática esportiva, festas ou manifestações

artísticas e de tradições. Dispõe o legislador:

Assim sendo, as procissões religiosas, desde que apresentando uma característica de tradição, entram no campo das exceções à proibição imposta pelo artigo 1º. Sob o título de práticas esportivas figuram as proteções da face previstas em várias categorias. 9

8 Les tenues destinées à dissimuler le visage sont celles qui rendent impossible l’identification

de la personne. Il n’est pas nécessaire, à cet effet, que le visage soit intégralement dissimulé. Sont notamment interdits, sans prétendre à l’exhaustivité, le port de cagoules, de voiles intégraux (burqa, niqab...), de masques ou de tout autre accessoire ou vêtement ayant pour effet, pris isolément ou associé avec d’autres, de dissimuler le visage. Dès lors que l’infraction est une contravention, l’existence d’une intention est indifférente : il suffit que la tenue soit destinée à dissimuler le visage (Tradução do autor). 9 Ainsi les processions religieuses, dès lors qu’elles présentent un caractère traditionnel, entrent dans le champ des exceptions à l’interdiction posée per l’article 1er. Au titre des pratiques

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O legislador notou também sobre as condutas a serem adotadas nos

espaços públicos, discorrendo sobre a função dos chefes de serviços, que,

segundo ele, devem, dentro dos locais onde exercem autoridade, prezar pela

respeitabilidade do disposto na Lei.

Ficou, então, ao encargo desses chefes explicarem o espírito da Lei

aos seus subordinados. E, ao encargo de todo agente público exercer suas

atividades de acordo com a Lei, passando o entendimento da mesma para os

usuários dos serviços públicos. Dessa forma, será possível que os usuários

consigam valer-se da Lei corretamente, criando o bom convívio da sociedade

dentro de tais espaços.

A Lei não só deliberou sobre a função dos chefes de serviços, mas

também sobre o controle de acesso aos locais públicos, constituindo que:

A partir do dia 11 de abril de 2011 será de responsabilidade dos agentes de serviços públicos, pedir para as pessoas que estiverem com suas faces ocultas, descobri-las, permitindo ou negando acesso aos locais públicos. Em oposição, a Lei não confere a nenhum agente, o poder de exigir o descobrimento da face, ou a retirada da pessoa que já se encontrar em locais públicos. 10

Não obstante precisar as exceções de ocultação da face e a conduta

a ser adotada por agentes públicos, o legislador ainda se preocupou em

elencar as exceções dos denominados lugares constituídos de vias públicas,

abertos ao público.

sportives figurent les protections du visage prévues dans plusieurs disciplines (Tradução do autor). 10 A compter du 11 avril 2011, les agents chargés d’un service public, qui pouvaient déjà être conduits à demander à une personne de se découvrir ponctuellement pour justifier de son identité, seront fondés à refuser l’accès au service à toute personne dont le visage est dissimulé. Dans le cas où la personne dont le visage est dissimulé serait déjà entrée dans les locaux, il est recommandé aux agents de lui rappeler la réglementation applicable et de l’inviter au respect de la loi, en se découvrant ou en quittant les lieux. La dissimulation du visage fait obstacle à la délivrance des prestations du service public (Tradução do autor).

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Como exemplo, têm-se os automóveis particulares, acorrendo que

uma pessoa a bordo de seu carro particular não está infringindo a Lei em

questão, mas não deixa de estar passível às aplicações das leis de trânsito.

Ocorre ainda, uma deliberação sobre o fator das religiões que

pregam o exercício do uso de véus. Para o legislador, os véus se enquadram

nos artefatos que ocultam a face. Nesse caso específico a Lei dispõe sobre a

ausência de restrições ao exercício da liberdade religiosa nos lugares de culto.

Entretanto, a norma prevê a proibição do uso do véu mesmo nas

situações em que o cidadão praticante de tal costume se encontra inserido em

seu ambiente de culto religioso. Assim sendo a Lei especifica que: “uma vez

que estes lugares são abertos ao público, são também diretamente regidos

pelo emprego da Lei”.

Os governantes franceses, na Circular de 02 de março de 2011,

relativa à aplicação do ordenamento aqui discutido, declararam que a criação

da LEI Nº 2010-1192 aconteceu como consequência de um clamor social, de

um desejo de reafirmação da República por parte da própria população

francesa, nomeando o material informativo publicado sobre a nova Lei de A

República mostra sua cara.

O portal virtual do jornal francês LE FIGARO, em 07 de abril de

2011, publicou uma reportagem referente aos dados da população francesa e

suas religiões, explicando a existência de uma Lei datada de 1872 que proíbe a

cobrança pelo Estado Francês sobre dados do censo a partir de questões

sobre as crenças religiosas, por considerar que esse tipo de informação possui

caráter privado.

Tal princípio foi reafirmado em uma lei aprovada em 06 de Janeiro

de 1978, afirmando que “é proibido coletar ou processar dados de caráter

pessoal relacionado à origem racial ou étnica, bem como as opiniões políticas,

filosóficas ou religiosas”.

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Porém, ainda na mesma reportagem, o jornal explica que mesmo

sem poder estimar prontamente sobre as porcentagens de cada religião no

país o governo tem o direito de fazer perguntas indiretas sobre religião a fim de

obter um número aproximado, de modo que usou um critério de origem

geográfica das pessoas como base para o cálculo.

O governo computou todas as pessoas que residem na França e são

provindas de países detentores de uma população muçulmana dominante, ou

cujos pais o são. Esse cálculo permitiu que o Ministério do Interior, que lida

com questões relativas à religião, se pronunciasse em junho de 2012 através

do ministro Claude Guéant, que declarou: “nós estimamos que haja cerca de 5

a 6 milhões de muçulmanos na França de hoje”. 11

Apesar da declaração acima citada, os últimos dados publicados no

mês de outubro de 2010 pelo instituto INSEE (French National Institute for

Statistics and Economic Studies) , originários de um estudo chamado de

Trajetórias e origens, concluiu que a França tem 2,1 milhões de muçulmanos

declarados.

Em concordância com tal estudo, estimativas do jornal Le Figaro

afirmam que, do número levantado pelo Ministério do Interior, apenas 33% são

praticantes declaradas de religião islâmica, assim sendo, aproximadamente 2

milhões de pessoas.

Contudo, tem-se que a religião mulçumana é a segunda maior

população religiosa da França, perdendo apenas para os adeptos do

catolicismo romano que, segundo o publicado pela CIA World Factbook em

2003, somam em média 83% da população francesa.

11 (Mis à jour le 07/04/2011 à 17:57 | publié le 05/04/2011 à 17:56 - http://www.lefigaro.fr/actualite-france)

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Os legisladores ainda previram um prazo de seis meses, a partir da

entrada da Lei em vigor, para dar início às efetivas sanções de

descumprimentos da norma. Fato que se deu para fins de esclarecimento e

sensibilização dos aderentes ao uso de artefatos que ocultam a face.

Todavia, diante dos dados citados, existiria algum tempo

considerado o suficiente para que, aproximadamente, dois milhões de pessoas

deixassem de lado uma vida inteira de crenças e respeito aos seus próprios

costumes e tradições?

Ainda sobre os motivos alegados para a concepção da Lei em pauta,

alegam os governantes que a atitude de ocultação da face acarreta uma

discrepância aos princípios da República Francesa de liberdade, igualdade e

dignidade humana (Circulaire du 2 mars 2011 relative à la mise en œuvre de la

loi no 2010-1192 du 11 octobre 2010).

Mas, como ficam as sensações de indignidade proveniente da

exposição de uma parte do corpo, os cabelos, aos quais as mulheres islâmicas

consideram sagrada e inviolável, senão pelo ato do casamento?

As mulheres de religião mulçumana depositam uma confiança no ato

de ocultar os cabelos. A crença que recai sobre essa privação é proveniente de

séculos de tradição passada de ancestrais para descendentes e o núcleo da

crença é justamente a visão indigna que se tem das mulheres que usam os

cabelos expostos.

Além disso, as mulheres seguidoras de religião islâmica anseiam por

honrar seus maridos, assim sendo, a atitude de descobrir os cabelos, ou o

rosto para as praticantes radicais, acarreta em um verdadeiro sentimento de

indignidade para elas.

Percebe-se, então, que o direito de liberdade clamado na Lei Nº

2010-1192 se encontra equivocado. A religião, para as mulheres adeptas da

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religião mulçumana, nada mais é do que sua própria razão. Assim sendo, ao

usar véus que ocultariam a face elas estariam exercendo a liberdade em

concordância com sua própria razão. Ou seja, elas estariam exercendo o

sentimento de plenitude que cada ser humano procura ao deliberar suas ações

e atuar da forma que melhor julgar para si mesmo.

De igual importância também se faz notar a vontade dos franceses

em, de alguma forma, amparar as mulheres mulçumanas, pois é fato que

muitas delas foram criadas dentro de um ambiente islâmico radical. E, às

vezes, não desejam continuar a seguir os costumes tradicionais da religião,

porém se encontram inseridas em um ciclo onde, independentemente de suas

vontades, os costumes da religião são impostos a elas.

Percebe-se claramente o anseio de proteção às mulheres

enquadradas no parágrafo anterior no Artigo 225-4-10 do Código Penal

Francês. Esse artigo foi implantado como consequência da Lei n. 2010-1192 e

dispões sobre punições para o ato de utilizar-se de força para obrigar que

alguma pessoa oculte a própria face.

Sabe-se ainda que o governo francês declarou a vontade dos

poderes públicos do país em combater vigorosamente a violência contra a

mulher.

Assim sendo, é válido, também, questionar se: se faz legítimo privar

inúmeras mulheres do exercício do seu direito de liberdade de expor seus

valores e sua crença religiosa em prol da defesa de algumas que anseiam por

parar de seguir a religião em questão?

Por fim, é ainda plausível de questionamento o fato de que os

cidadãos praticantes de religião islâmica, segundo a Lei, poderiam expressar

sua religião em procissões de cunho tradicional em lugares públicos.

Entretanto, se encontrariam proibidos de demonstrarem seus hábitos religiosos

mesmo dentro dos locais de culto.

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Logo, os indivíduos adeptos de crença mulçumana estariam

proibidos de demonstrar sua adoração pelos costumes e tradições da religião

em locais que são designados exclusivamente para esse fim.

Diante de todo o exposto, compete questionar se existe a

possibilidade de a presente Lei ser considerada merecedora de

reconhecimento. Visto que, enquanto se declara fundamentada pelo princípio

da liberdade, também regulamenta a aplicação de sanção para a simples ação

de demonstrar religião em público.

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6. ANÁLISE E CRÍTICA DO CASO FRANCÊS: PERSPECTIVAS E LIÇÕES PARA O BRASIL.

A questão aqui desenvolvida traz a análise da Lei Francesa 2012-1192

como subterfúgio para a equalização das questões de choque cultura, mais

especificamente na esfera do direito de liberdade religiosa.

A análise teve como foco a magnitude do poder do Estado, em sua

dimensão legislativa e política, para regular e interferir no âmbito das

manifestações e práticas religiosas quando estas se inserem em confrontos

culturais negativos. Ou seja, quando existem dois ou mais pensamentos

religiosos que, ao se chocarem trazem percepções e interpretações diferentes

por parte do outro.

Essa Dissertação foi desenvolvida pensando especialmente sobre a

questão acerca da tolerância religiosa na sociedade brasileira. Se justificando a

partir de dados da realidade nacional que desmentem a imagem do Brasil

como um país de democracia racial e sincretismo/tolerância religiosa na

perspectiva de que a sociedade brasileira é hospitaleira e receptiva aos

estrangeiros.

Tensionar o imaginário do Brasil como país hospitaleiro, observando

ações intolerantes praticadas por cidadãos, que podem levar o Estado a tomar

atitudes por meio da criação de legislação ganha relevância haja vista que nos

últimos dez anos, como já demonstrado, nosso país voltou a receber muitos

imigrantes.

Deste modo, o contexto de sociedade brasileira atual deve trazer o

exercício da tolerância para o centro de suas analises em relação aos

encontros culturais.

Sejam esses encontros estruturais (como os de matrizes religiosas de

segmentos da população, vistos no item 1 deste trabalho), sejam os que são

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renovados na contemporaneidade, como os dos recentes movimentos

migratórios.

Com a multiplicidade de crenças e culturas existentes somadas às

religiões que estão em processo de criação, o estranhamento e a intolerância

com o diferente se faz cada vez mais cotidiano. Assim, percebe-se a

importância do exercício da tolerância para o bom andamento dessa sociedade

global em que vivemos.

Como já visto anteriormente, no Brasil, são relatados na mídia um

grande número de casos de intolerância religiosa. Isso ocorre com

determinadas religiões, em especial religiões de origem africana, que são

praticadas por uma minoria da sociedade brasileira.

É facilmente percebido que os grupos minoritários são, precisamente, os

grupos que mais carecem de amparo, em relação aos direitos fundamentais.

Por esse motivo reserva-se um espaço do presente tópico ao direito

internacional das minorias religiosas.

Para maior esclarecimento sobre o tema das minorias, Canotilho se

manifesta:

Minoria será, fundamentalmente, um grupo de cidadãos de um Estado, em minoria numérica ou em posição não dominante nesse Estado, dotado de características étnicas, religiosas ou linguísticas que diferem das da maioria da população, solidários uns com os outros e animados de uma vontade de sobrevivência e de afirmação da igualdade de facto e de direitos com a maioria (CANOTILHO, 1995)

Acerca disso, Wucher aduz que “tanto a carta das Nações Unidas

quanto a Declaração dos Direitos Humanos não se referem às minorias (são

omissas), embora proíbam a discriminação em função da raça, do sexo, da

língua e da religião” (WUCHER, 2000).

Ainda sobre esse tema, Pires explana:

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Em 18 de dezembro de 1992, a Assembleia Geral das Nações Unidas adotou a Declaração sobre os Direitos de Pessoas que pertencem a Minorias Nacionais ou Étnicas, Religiosas e Linguísticas. Apesar de seu caráter jurídico não-vinculativo, essa Declaração é considerada o instrumento de abrangência global mais generoso em termos de “discriminação positiva”, ou seja, que mais confere direitos especiais a minorias no mundo. (PIRES, 2000)

A partir da adoção dessa Declaração pela Assembleia Geral das Nações

Unidas, o mundo todo começou a debater o assunto das minorias. Assim,

finalmente lhe foi auferido a atenção que merece, e que lhe foi por tantos anos

se manteve descuidada. O artigo 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e

Políticos (1966) dispõe, com força vinculada entre os Estados Signatários:

Nos Estados em que já minorias étnicas, religiosas ou linguísticas, as pessoas pertencentes a essas minorias não poderão ser privadas do direito de ter, conjuntamente com outros membros de seu grupo, a própria vida cultural, de professar e praticar sua própria religião e usar sua própria língua.

É importante lembrar que a França, país de origem da Lei que é

analisada nessa dissertação, se encontra inserida entre os cinco países que

formam o Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas (ONU).

Assim sendo, a França, juntamente com os outros países integrantes da

ONU, adotou o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos. Concordando

então com seus artigos, incluindo o artigo acima destacado.

Após conceituar minoria, e de fácil entendimento que a situação dos

islâmicos em território francês é de grupo minoritário religioso. A respeito do

sentimento religioso que abraça a consciência dos seres humanos, Rui

Barbosa explana:

A liberdade religiosa, como a liberdade de consciência, é um direito de natureza tão elevada, tão difíceis de palpar são, em teoria, as suas relações com os interesses individuais e sociais do homem, que o povo não se pode apaixonar por ela, compreender-lhe o alcance, tentar-lhe a reivindicação enquanto o não despertam com uma provocação direta e material. (BARBOSA, 1987, p. 23)

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Os mais diversos grupos religiosos podem ser enquadrados nas

características de uma minoria. É ainda legitimo afirmar que em todos os

territórios do mundo, nos dias atuais, residem grupos de minorias religiosas.

Grupos numericamente inferiores aos das religiões predominantes em seus

países, com propriedades diferenciadas de culto e organização religiosa.

Essas minorias, normalmente, possuem um senso muito grande de

solidariedade um para com os outros, visto que necessitam agir dessa maneira

em prol da preservação e sobrevivência de sua cultura. Sobre essa

necessidade de preservação das minorias religiosas, Soriano reflete:

As minorias de hoje são os prováveis refugiados de amanhã, porquanto se encontram em descompasso com a maioria. A partir de suas peculiaridades como grupo religioso, pode sobrevir um fundado receio de sofrer perseguição, que é o pressuposto básico da condição de refugiado, como se verá no momento oportuno. É óbvio que nem toda minoria sofrerá perseguição, pois a diferença apresentada pelo grupo pode ser tolerada elo restante da população. No entanto, no momento em que a diferença doutrinária não é tolerada, o grupo em questão passa a ser discriminado e perseguido, de alguma forma. (SORIANO, 2002, p. 67).

Nesse ponto, percebe-se que com o advento da Lei francesa n. 2012-

1192 as mulheres islâmicas residentes no território desse país podem ser

facilmente encaixadas na definição de perseguidas. Ocorre que a diferença

doutrinária da religião dessas mulheres não está sendo tolerada.

Isso acarreta a elas uma perseguição por parte do poder de polícia do

Estado. Como já citado, esse poder fiscaliza as ruas do país detendo as

mulheres que expressam sua religião com o uso da burca ou do niqab. E as

mulheres detidas apenas são liberadas após o pagamento de multas.

Sabe-se que, apesar de existir inúmeros estudos em cima do tema, é de

grande dificuldade para um Estado entender até onde deve agir quando se

trata de religião. A França, em 2004, por exemplo, agiu de maneira legítima ao

proibir os alunos de escolas públicas de ostentar sinais identificadores de

credos religiosos.

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Essa proibição se fez válida para todos. Como os alunos islâmicos não

podem fazer uso do véu, os judeus não podem usar o quipá e a cruz no peito

para os católicos também foi proibida.

Essa lei reforçou o princípio da laicidade do Estado francês

(MAIEROVITCH, 2010), visto que as escolas são locais de aprendizado é

cabível que a religião de uma criança não interfira na escolha de livre

consciência de outra pela religião que talvez venha a seguir para o resto da

vida.

Contudo, a Lei Nº 2012-1192 é focada apenas às mulheres de religião

mulçumana. A propósito da dosagem correta de ação do Estado nas questões

religiosas, Soriano aclara:

Espera-se do Estado a obrigação de proporcionar uma condição de vida digna a todos, sem discriminação religiosa. Tendo em conta a complementaridade desses direitos (vida e liberdade religiosa), é cediço que ninguém pode ser privado do direito à vida, entendida, aqui, no sentido lato sensu; vida plena e abundante, por professar essa ou aquela religião. Destarte, independentemente da religião, a Constituição garante ao cidadão os direitos sociais ao trabalho, classificados pela doutrina como sendo os de segunda geração Significa dizer que qualquer um tem o direito de manter a sua crença pessoal, e não ser, por isso, discriminado no campo social ou laboral. (SORIANO, 2002, p. 87)

No website oficial da França (www.france.fr), o próprio país na página

onde estão elencados instituições e valores usa o texto de sua Constituição

para demonstrar que o: “Valor fundador e principio essencial da República, a

laicidade é uma invenção francesa”. Assim o demonstra:

A França é uma República indivisível, laica, democrática e social. Garante a todos os cidadãos igualdade perante a lei, sem distinção de origem, raça ou religião. Respeita todos os credos.» determina a Constituição de 1958. O “livre exercício de cultos” é reconhecido desde 1905 com a entrada em vigor da lei sobre a separação da Igreja e do Estado. Longe de ser uma arma contra as religiões, este texto restringe-as à esfera privada, consagrando assim a laicidade do espaço público. O Estado francês não privilegia nenhum culto e garante a sua coexistência pacífica de acordo com as leis e os princípios da República.

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Ante todo o exposto, percebe-se a falta de coerência entre a Lei

francesa Nº 2012-1192 e os princípios que o próprio país alega serem seus

norteadores.

Aqui, se deve lembrar o que disse Jorge Miranda em Manual de Direito

Constitucional: “se o Estado, apesar de conceder aos cidadãos o direito de

terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar, aí

não haverá liberdade religiosa” (MIRANDA, 1998, p. 21).

Ora, se uma pessoa se encontra juridicamente proibida de praticar sua

religião, não haverá liberdade religiosa. Entendendo a vida no sentido lato

sensu é claro que o cidadão coibido de exercer sua expressão religiosa está

vivendo sem dignidade humana.

No caso da Lei aqui analisada, as mulheres islâmicas estão sendo

proibidas de expressar sua religião em espaços públicos, englobando assim

desde acesso ao mercado de trabalho e educação.

Diante disso entende-se que essas mulheres não estão recebendo a

tolerância conceituada por Voltaire demonstrada no item 4 do presente

trabalho. Assim, conclui-se que a proibição do uso do niqab e da burca em

território francês não é racionalmente tolerante.

Incumbe, também, lembrar que as alegações feitas no website oficial da

França são de cunho liberal, assim sendo, a luta de Voltaire pela implantação

de práticas de tolerância e do pensamento liberal dentro do território francês se

fez valer.

Mesmo que teoricamente, hoje, o país se considera uma república liberal

respeitadora de todas as minorias. As ideias de Voltaire foram e são, até os

dias atuais, de grande importância para o bom funcionamento das sociedades.

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O cidadão deve sempre se lembrar dos ensinamentos do filósofo e

tentar aplicá-los o máximo possível tanto no ordenamento jurídico dos países

quanto na vivencia entre os seus jurisdicionados.

Por fim, cita-se Soriano para uma noção de encerramento sobre a

importância do principio de separação entre a Igreja e o Estado e da liberdade

religiosa:

Os princípios da liberdade religiosa e da separação Igreja/Estado possuem importância ímpar em ordens democráticas materiais, pois estão ligados à esfera íntima dos indivíduos, à suas mais pessoais convicções. Seu desrespeito gera a discriminação, a exclusão, e, ainda, os chamados prisioneiros de consciência. Atos de intolerância religiosa, realizados pelo Estado ou com a conivência deste, podem representar uma quebra da democracia material e do tratamento igualitário destinado às pessoas. O favorecimento de qualquer crença ou culto, a imposição de quaisquer ônus aos membros de certas comunidades religiosasou a exclusão da plena participação das atividades da vida política de fiéis de alguns credos representam a incapacidade de coviver com o plural e de respeitar as minorias. Ora, esses fatores todos são condição para a contrução de uma ordem democrática material. (SORIANO, 2002, p. 23).

Ainda, com intuito de finalizar o trabalho, é de importante entendimento a

atrocidade que é tornar qualquer pessoa prisioneiro de sua própria consciência.

Não há motivos que justifiquem o impedimento de consciência do ser

humano. Todo o cidadão, até mesmo os reprimidos exteriormente, possui

dentro si suas próprias ideias e entendimentos a respeito daquilo que os cerca.

Conforme exposto em todo o decorrer do presente trabalho, verificou-se

que a Lei francesa Nº 2012-1192 interfere nos direitos individuais das mulheres

de religião mulçumana residentes no país.

Também se pôde perceber que a norma estudada prevê a proibição do

uso do véu mesmo nas situações em que o cidadão praticante de tal costume

se encontra inserido em seu ambiente de culto religioso. Com isso, tem-se que

tal Lei também está coibindo o direito de culto e organização religiosa.

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Foi percebido que a Lei enquanto se declara fundamentada pelo

princípio da liberdade, também regulamenta a aplicação de sanção para a

simples ação de demonstrar religião em público. Demonstrando assim certa

falta de coerência em seu texto.

Como já visto anteriormente, o Estado está no seu direito de impor

algumas normas quando na necessidade de intervir no comportamento dos

cidadãos reprimindo determinadas ações que desembocam em desordem

pública.

Contudo, ao analisar o caso da Lei Francesa 2012-1192 vê-se que a

questão do véu, principalmente dos niqabs, cobrindo exclusivamente os

cabelos das próprias mulheres que creem no islamismo, percebe-se que não

há aí um fato gerador de desordem pública ou ofensa direta a terceiros.

Assim sendo, a Lei aqui estudada, ao ser aplicada como subterfúgio

para a equalização para as questões de choque cultural, se fez exacerbada

diante dos princípios de liberdade e tolerância que deveriam nortear as ações

do Estado.

Ficou aparente que os diferentes grupos de cidadãos que a humanidade

abriga, possuem a capacidade de tolerar os diferentes sem deixar suas

próprias razões de lado. E que, com a prática da tolerância a sociedade tem a

oportunidade de viver em harmonia.

Contudo, ficou também esclarecido que a liberdade religiosa não é um

direito absoluto. E nem pode ser usada como escudo protetivo a fim de

mascarar atividades ilícitas ou que transtornem a ordem pública. Portanto os

cidadãos religiosos possuem, igualmente com todos os cidadãos, o dever de

respeitar o Estado Democrático de Direito.

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Foi por fim verificado que as mulheres islâmicas ao serem proibidas de

expressar sua religião em espaços públicos, estão sendo privadas de seus

direitos à liberdade de expressão.

Pois se tem que essas mulheres não podem manifestar os dogmas em

que acreditam. Tornam-se, assim, escravas de suas próprias consciências.

Conclui-se então que é correta a afirmação de que a Lei aqui analisada não se

faz racionalmente tolerante.

Ocorre que, em que pese a análise mais detalhada fazer com que se

verifique a falta de tolerância direcionada ao povo de religião muçulmana, ainda

não se lê expressamente na Lei referências diretas às mulheres de religião

islâmica.

A Lei clama por vários princípios da República para inibir o ato de cobrir

o rosto em espaços públicos, citando em alguns artigos sobre os artefatos

religiosos e logo após retoma a escrita sobre os princípios que regem o bom

funcionamento da República.

Assim, ao passar pelos artefatos religiosos, mesmo que citando

expressamente as vestimentas de burca e o niqab, o legislador o faz de

maneira que tende a deixar essa parte obscura, como que mascarando uma

das reais intenções da Lei.

Percebendo toda a situação atual do território francês em relação aos

muçulmanos, entende-se que essa Lei foi redigida com intuito de trazer de

maneira velada a intolerância para com a cultura islâmica.

Dessa forma, há que se estar atento à situação brasileira uma vez que

se apresenta em importante momento no que diz respeito a demanda de seus

imigrantes. Primeiramente recomenda-se que seja espalhada e exercitada a

ideia de tolerância entre os cidadãos comuns para que a trabalhem em seus

dia-a-dia.

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Em seguida recomenda-se que sejam voltadas as atenções para os

projetos de legislações, tendo como intuito detectar uma possível motivação de

intolerância sendo mascarada em formato de Lei. Visto que tal atitude pode

comprometer a liberdade individual de uma parcela de indivíduos de tal

maneira a trazer a tona conflitos internos que venham a prejudicar sua

liberdade de pensamento e expressão.

Ainda que a quantidade de pessoas atingidas por uma Lei intolerante

seja uma parcela mínima de determinada sociedade, essa parcela é formada

por seres humanos e, como visto anteriormente, os direitos de liberdade de

expressão são amplamente amparados por decretos e pactos Internacionais.

Isto ocorre justamente por ser de entendimento global comum que todo

individuo tem direito a fatores mínimos de qualidade de vida. Estando entre

esses fatores a tranquilidade psicológica e a paz social necessária para que se

possa acreditar e seguir os dogmas que melhor lhe convém e que mais se

encontre de acordo.

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7. CONSIDERAÇÕES FINAIS.

O presente trabalho foi introduzido com demonstrações de casos

práticos de intolerância religiosa decorrentes de choques culturais negativos

ocorridos em território brasileiro. Explanando o intuito de problematizar o uso

da legislação como subterfúgio para a equalização das questões de choque de

cultura, mais especificamente no âmbito do direito de liberdade religiosa.

A proposta de foco foi a análise da amplitude do poder do Estado, em

sua dimensão legislativa e política, de regular e interferir no âmbito das

manifestações e práticas religiosas quando estas se inserem em confrontos

culturais negativos. Ou seja, quando existem dois ou mais pensamentos

religiosos que, ao se chocarem trazem percepções e interpretações diferentes

por parte do outro.

Para isso, a presente pesquisa contou com a elaboração de uma análise

sobre os conceitos de tolerância e liberdade. Foi averiguado as consequências

negativas da criação de normas políticas limitadoras de liberdades pessoais,

sendo notado que a aplicação de normas restritivas de liberdades individuais

não interfere na razão própria de cada indivíduo, que, em seu âmago segue

com sua cultura e crenças.

Foi averiguado, ainda nesta segunda parte do trabalho, que, na esfera

do Direito Internacional a tolerância e a liberdade religiosa se encontram

vastamente garantidas. Como, por exemplo, na Declaração Universal dos

Direitos Humanos traz, que traz em seu artigo 18, a previsão de que todo o ser

humano tem direito à liberdade religiosa. Nisso está incluída a liberdade de

manifestar a própria religião de maneira a ensiná-la, pratica-la, cultuá-la ou,

ainda, observá-la, isso tanto em público como em particular.

Ficou estipulado que a liberdade religiosa não se faz absoluta perante o

Estado. Não é uma liberdade ilimitada. Tanto no que diz respeito ao Estado

como no que diz respeito a Deus. Portanto assim como o Estado os cidadãos

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também possuem o dever de respeitar o Estado Democrático de Direito,

mesmo que ao final prestem contas ao seu próprio Deus.

Foram trabalhadas também algumas questões sobre o mundo

globalizado e multiculturalismo. Foram expostos conceitos e reflexões onde se

percebeu que o diálogo intercultural, em que pese ter sido facilitado pelo o fator

de proximidade geográfica que vem ocorrendo no mundo globalizado, ainda

possui muitos obstáculos a serem superados.

Mobilizar questões de crenças, princípios, e ideais que norteiam a vida

de cidadãos não é tarefa fácil. Em uma relação de multiculturalismo há que

existir ponderação por ambas as partes do diálogo intercultural. Ou seja,

guardadas as devidas proporções da dignidade de cada pessoa, é importante

que ambos os lados trabalhem para um bom relacionamento social.

A presente dissertação também direcionou atenção aos princípios de

solidariedade e tolerância. No aspecto tolerância teve-se maior embasamento

na ideia do filósofo Voltaire, já no que tange a solidariedade foi trabalhado de

acordo com o prof. Guilherme Massaú.

Lembrando que o vocábulo tolerância traz em torno de si uma grande

desconfiança, visto que há confusão sobre tolerar ser aceitar os erros. Porém,

praticar a tolerância em hipótese alguma significa aceitar o que se considera

errado. O que ocorre é que as ideias diferentes de cada ser humano devem ser

aceitas de forma coerente e com bom senso.

A solidariedade foi tida como um dos principais princípios para a

efetivação de uma sociedade nos moldes do cosmopolitismo, sendo ele

sustentado na própria natureza do homem, que é um ser social.

Lembrando que as características individuais dos cidadãos não devem

ser suprimidas em detrimento da coletividade, a solidariedade deve ser

constituída como elemento de balanceamento entre o aspecto individual e o

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aspecto social, pois ambas são partes integrantes do ser humano.

Em seguida, foi feito uma análise esmiuçada da Lei francesa que se

encontra no cerne da questão do presente trabalho, uma vez que a mesma

desperta preocupações na possibilidade de ser tida como norma exemplo para

países que sofrem de choques culturais negativos em detrimento de grande

demanda de imigração.

Assim sendo, foi indagado se existe a possibilidade de tal Lei ser

considerada merecedora de reconhecimento. Uma vez constatado que a

mesma enquanto se declara fundamentada pelo princípio da liberdade,

também regulamenta a aplicação de sanção para a simples ação de

demonstrar religião em público.

Passou-se então a analisar criticamente a Lei francesa 2012-1191 a

fim de se extrair ensinamentos para o Brasil. Sendo concluído que,

independente dos casos de intolerância ocorridos em território brasileiro, os

legisladores não devem tomar de exemplo o caso francês de utilização de

norma para equalização dos casos de choque cultural negativo.

Pois, em não se tratando de casos extremos onde se tenha ameaça

ao bem estar social, esta dissertação de mestrado não considera racional que

o Estado utilize seu poder para restringir liberdades individuais.

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