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Departamento de Direito “A DIGNIDADE HUMANA: UMA GENEALOGIA CRÍTICA” Alunos: Alice Brenner Mueller e Pedro Rogério Borges de Carvalho Orientador: Ilié Antonio Pele Introdução O conceito legal de dignidade humana foi condecorado com grande proeminência durante as últimas décadas. No Brasil e no mundo, tem importância jurídica central. No entanto, ainda não há consenso acerca de suas origens históricas, ou mesmo quanto ao seu real significado. Além disso, a noção de dignidade humana é comumente caracterizada por críticos como eurocêntrica, etnocêntrica, antropocêntrica, ambígua e, efetivamente, inútil. O termo está em circulação no Ocidente desde 44 a.C., quando Cícero dissertou sobre a dignitas hominis em seu De Officis. Entretanto, é incorreta a assunção de que a dignidade humana contida nos documentos das Nações Unidas e diversas Constituições do século XX seja compatível com aquela da tradição filosófica (da qual Immanuel Kant faz parte), a qual estabelece precipuamente obrigações do dignitário para consigo, que devem ser cumpridas a fim de fazer jus à sua dignidade e preservá-la – esta faceta da dignidade humana remonta à dignitas aristocrática romana e representa o chamado “paradigma tradicional da dignidade”. Assim como na Carta da ONU, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 a dignidade ainda não é apresentada como a justificativa dos direitos humanos, como acontece no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Nestes, a dignidade humana assume papel fundamental. A sua caracterização como base dos direitos humanos em tais documentos ilustra o “paradigma contemporâneo da dignidade”, no qual os direitos humanos derivam da inerente e inexorável dignidade da pessoa humana. Objetivos O objetivo principal deste trabalho é delinear a trajetória milenar do conceito, explicitando a ruptura paradigmática, mas também as continuidades entre o modelo antigo e o contemporâneo de pensamento de dignidade humana. Além disso, esta pesquisa visa investigar os fatores políticos e sociais que orientaram o uso e evolução da dignidade humana, sugerindo uma genealogia alternativa do conceito – enquanto analisa genealogias heterodoxas de autores modernos da matéria – e investigando se nesse processo de formação da concepção contemporânea de dignidade a influência da atuação de particulares foi relevante em comparação às tendências internacionais de administração do poder. Outro objetivo desse projeto é entender a genealogia da dignidade humana à luz das relações de poder, considerando a influência e o alcance do discurso de direitos fundamentais sobre o paradigma contemporâneo de dignidade humana (observando o debate universalismo-particularismo de direitos humanos) e analisando a ruptura entre o modelo contemporâneo de dignidade humana e sua tradição anciã. Ademais, é uma meta provar, na direção oposta do que é normalmente defendido nos estudos do assunto, que dignidade humana, definida como um valor inerente, não é a causa, mas a consequência de sua definição como valor absoluto. É também de importância avaliar o significado atual de dignidade

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Departamento de Direito

“A DIGNIDADE HUMANA: UMA GENEALOGIA CRÍTICA”

Alunos: Alice Brenner Mueller e Pedro Rogério Borges de Carvalho

Orientador: Ilié Antonio Pele

Introdução

O conceito legal de dignidade humana foi condecorado com grande proeminência

durante as últimas décadas. No Brasil e no mundo, tem importância jurídica central. No

entanto, ainda não há consenso acerca de suas origens históricas, ou mesmo quanto ao seu

real significado. Além disso, a noção de dignidade humana é comumente caracterizada por

críticos como eurocêntrica, etnocêntrica, antropocêntrica, ambígua e, efetivamente, inútil.

O termo está em circulação no Ocidente desde 44 a.C., quando Cícero dissertou sobre

a dignitas hominis em seu De Officis. Entretanto, é incorreta a assunção de que a dignidade

humana contida nos documentos das Nações Unidas e diversas Constituições do século XX seja

compatível com aquela da tradição filosófica (da qual Immanuel Kant faz parte), a qual

estabelece precipuamente obrigações do dignitário para consigo, que devem ser cumpridas a

fim de fazer jus à sua dignidade e preservá-la – esta faceta da dignidade humana remonta à

dignitas aristocrática romana e representa o chamado “paradigma tradicional da dignidade”.

Assim como na Carta da ONU, na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948

a dignidade ainda não é apresentada como a justificativa dos direitos humanos, como

acontece no Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e no Pacto Internacional sobre

Direitos Econômicos, Sociais e Culturais. Nestes, a dignidade humana assume papel

fundamental. A sua caracterização como base dos direitos humanos em tais documentos

ilustra o “paradigma contemporâneo da dignidade”, no qual os direitos humanos derivam da

inerente e inexorável dignidade da pessoa humana.

Objetivos

O objetivo principal deste trabalho é delinear a trajetória milenar do conceito,

explicitando a ruptura paradigmática, mas também as continuidades entre o modelo antigo e

o contemporâneo de pensamento de dignidade humana. Além disso, esta pesquisa visa

investigar os fatores políticos e sociais que orientaram o uso e evolução da dignidade humana,

sugerindo uma genealogia alternativa do conceito – enquanto analisa genealogias heterodoxas

de autores modernos da matéria – e investigando se nesse processo de formação da

concepção contemporânea de dignidade a influência da atuação de particulares foi relevante

em comparação às tendências internacionais de administração do poder.

Outro objetivo desse projeto é entender a genealogia da dignidade humana à luz das

relações de poder, considerando a influência e o alcance do discurso de direitos fundamentais

sobre o paradigma contemporâneo de dignidade humana (observando o debate

universalismo-particularismo de direitos humanos) e analisando a ruptura entre o modelo

contemporâneo de dignidade humana e sua tradição anciã. Ademais, é uma meta provar, na

direção oposta do que é normalmente defendido nos estudos do assunto, que dignidade

humana, definida como um valor inerente, não é a causa, mas a consequência de sua definição

como valor absoluto. É também de importância avaliar o significado atual de dignidade

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humana tomando como premissa “humanidade como valor”, uma ideia subjacente à quarta

geração de direitos humanos.

Metodologia

A presente investigação passa por diversos momentos históricos de produção de

conhecimento. Percebe-se como o léxico do termo se altera conforme a sociedade, podendo

demonstrar tanto proteção de minorias quanto de privilégios. Além das diferenças entre o

conceito tradicional e contemporâneo de dignidade humana, analisam-se principalmente as

relações de poder, os direitos humanos, as heranças da Doutrina Católica, implicações

econômicas e influências na jurisprudência – área em que, conforme a produção acadêmica

francesa mais recente sugere, a concepção anciã da dignidade humana tem sido utilizada pelos

julgadores a fim de limitar o livre consentimento e impor deveres, sem bases legais concretas

e certas, do indivíduo para consigo (tendência da qual o célebre caso de “Arremesso de Anão”

é uma amostra). Acolhemos a asserção de Oliver Sensen, que em seu estudo em perspectiva

histórica da dignidade humana verificou uma descontinuidade substancial entre o conceito

atual e aquele em voga até o início do século XX, e sua análise permeou e orientou este

trabalho.

A fim de esclarecer a natureza do conceito de dignidade humana cristalizado na Carta

da ONU e na Declaração Universal dos Direitos Humanos, se intentou investigar os principais

delegados responsáveis por defender a relevância do termo naquelas discussões,

notadamente Jacques Maritain e Virginia Girdersleeve, a fim de que, conhecendo a sua

formação e pano de fundo, se pudesse inferir a intenção dos “legisladores” desses

documentos e contemplar o significado que se originalmente pensou da dignidade humana

nessas cartas.

O grupo de pesquisa se reúne semanalmente para discussão de artigos científicos

pertinentes ao tema, majoritariamente obras internacionais. Com esses estudos, visa-se trazer

para o Brasil elementos de pesquisa sobre a dignidade humana usualmente restritos ao

estrangeiro e extremamente escassos no cenário acadêmico nacional. Os alunos mantêm um

blog para publicização e difusão da pesquisa: https://dignitygenealogy.wordpress.com/.

Resultados parciais

Os trabalhos se basearam principalmente em análises de textos acadêmicos que

tratam da dignidade como originária de diversas fontes. Os estudos começam a partir de

reflexões feitas sobre a separação de Oliver Sensen entre o conceito tradicional e

contemporâneo de dignidade humana. Pode-se dizer que o paradigma tradicional foi

dominante ao longo da história da filosofia e que o chamado paradigma contemporâneo

virtualmente não existiu ates do século XX.

A dignidade humana, em sua concepção tradicional, é em primeiro lugar a resposta

para a questão teórica do lugar do ser humano no universo. O termo “dignidade”, segundo

esse paradigma, é usado para expressar a posição especialmente elevada do ser humano em

relação ao resto da natureza, a qual ele conserva devido a certas capacidades que possui,

notadamente razão e liberdade. A este primeiro estágio Sensen se refere como “dignidade

inicial”.

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Somente em um segundo momento essa posição especial ganha relevância moral,

quando o indivíduo, através de uma premissa moral, é incumbido do dever de realizar

plenamente sua dignidade inicial. O autor chama esta segunda etapa de “dignidade realizada”.

Crucial para entender o contraste entre os dois paradigmas evidenciados pelo autor é

a noção de que a dignidade sob a égide tradicional não é um “valor propriedade”

independente possuído pelos seres humanos. A dignidade pode simplesmente e referir a

posição de prestígio ou status superior. No Império Romano tardio, dignidade era uma

expressão da vida política. A aristocrática dignitas romana era um termo de distinção aplicado

somente a uns poucos, podendo um indivíduo deter dignidade ainda que não fosse digno

(moralmente ou por falta de mérito).

O conceito de dignidade para os pensadores tradicionais é dúplice: ele começa com a

dignidade inicial, a fase básica compartilhada por qualquer ser humano, e depois se torna a

dignidade realizada, caso o indivíduo cumpra seu dever moral de cultivar suas virtudes

humanas. O primeiro a pensar dessa maneira foi o filósofo romano Cícero. Cícero utilizou o

aristocrático termo romano dignitas para designar a posição elevada ocupada pelos humanos

no universo. Estendeu, portanto, a aplicação da dignitas de modo universal a todos os seres

humanos.

O papa Leão I concede outro exemplo da concepção binária tradicional de dignidade.

Segundo seu entendimento, seres humanos se distinguem de animais em virtude de certas

características que possuem e que aos animais faltam: a razão a liberdade em relação a

desejos carnais. Por possuir tais capacidades especiais, o humano deveria fazer devido uso das

mesmas. Apesar das semelhanças nesse aspecto, Leão I não se baseia em uma concepção

finalística, como Cícero, mas substitui a premissa teleológica por um uma teológica. O dever

deriva do comando de Deus direcionado aos seres humanos de imitar os trabalhos divinos – a

demanda de Deus aos humanos de comportarem-se à sua semelhança é justa, pois assim por

Ele foram criados, “à sua imagem e semelhança”.

A concepção de dignidade humana achada em Pico dela Mirandola segue a mesma

estrutura básica de dois níveis usada por Cícero e Leão, o Grande. Segundo o pensador

renascentista, a dignidade inicial do ser humano, a superioridade dos seres humanos em

relação aos animais, justifica-se pelas suas capacidades, não necessariamente pela forma

como ele escolhe exercitar essas capacidades. Em seu Discurso sobre a Dignidade do Homem,

de 1486, Pico considera que a dignidade inicial do ser humano consiste em não possuir posição

fixada na “corrente do ser”, a qual se estende desde Deus até os animais mais inferiores. A

dignidade dos seres humanos encontra-se na sua capacidade de escolher seu próprio lugar na

“ordem universal”.

O dever de realizar a dignidade inicial é vinculado à moralidade. A razão exposta por

Pico segundo a qual um indivíduo deveria viver de acordo com suas capacidades superiores é:

buscar o mais alto, o mais vantajoso e mais ambicioso é o que Deus desejava que o ser

humano fizesse. Quando fala de “mais alto”, o eminente renascentista refere-se à cadeia do

ser. Ele não se refere à dignidade como se fosse um “valor propriedade”, do modo como o

paradigma contemporâneo emprega.

Kant também exibe a concepção tradicional de dignidade humana. Seu pensamento se

aproxima em diversas formas do de Cícero, porém diverge principalmente na premissa

normativa realizadora da dignidade humana empregada: Kant utiliza o Imperativo Categórico,

ao passo que Cícero aplica um aspecto teleológico.

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Muitos acadêmicos defendem que, para Immanuel Kant, dignidade seria um valor

interior de todo ser humano que constitui o motivo a embasar o dever de um indivíduo de

respeitar a outros. Consequentemente, Kant é habitualmente alinhado ao paradigma

contemporâneo da dignidade humana. Observando este fato, Oliver Sensen esclarece que seu

objetivo não é contradizer tal colocação, mas demonstrar que o pensamento de Kant

apresenta os aspectos principais do padrão tradicional de pensamento sobre dignidade

humana. Kant utiliza o termo dignidade para se referir a uma prerrogativa ou posição elevada.

Dignidade expressa uma relação de superioridade entre dois objetos.

O filósofo usa a concepção tradicional binária de dignidade humana, pois dita que a

dignidade da natureza humana repousa em sua liberdade (dignidade inicial), mas a dignidade

de um ser humano, seu valor, perfaz-se com o uso de seu livre arbítrio (dignidade realizada).

Este, que diferencia o humano do resto da natureza, é intimamente ligado à lei moral, que se

manifesta perante os seres humanos como o Imperativo Categórico, o princípio supremo da

moralidade.

Em virtude do Imperativo Categórico, um indivíduo tem deveres para com si mesmo

de se abster de violar a sua prerrogativa em relação à natureza. Como a longa tradição de

filósofos do paradigma tradicional, Kant discorre sobre dignidade majoritariamente em relação

a deveres de um indivíduo para consigo. Como ensina o filósofo, a dignidade da humanidade

consiste na sua capacidade de produzir lei universal, embora seja também sujeito dessa

mesma fonte de direitos. Isto é, a elevação da condição humana justifica-se por sua liberdade

e capacidade de moralidade.

Mesmo quando Kant aparenta se dirigir à obrigação de respeitar a dignidade de

terceiros, ele conecta isso aos deveres reflexivos do indivíduo. A dignidade não é a razão pela

qual se deve respeitar alguém, mas o que se deve respeitar em alguém. Assim como o

indivíduo deve esforçar-se para concretizar sua própria dignidade, todos estão sujeitos à

mesma obrigação para consigo. Dado que alguém deve respeitar aos outros, segundo o

princípio universal de moralidade kantiano, deve respeitar esse esforço. Ou seja, o motivo para

respeitar os demais e sua busca pela dignidade realizada não é o fato destes possuírem um

“valor propriedade” chamado dignidade, mas sim a demanda do Imperativo Categórico.

No padrão de pensamento tradicional, o foco primário não é na dignidade dos outros,

mas na realização da dignidade própria do indivíduo. A principal preocupação dos autores

notórios do paradigma tradicional analisados é avaliar como alguém deve aperfeiçoar a si

próprio, não como deve se comportar em relação a outros seres humanos.

Na concepção tradicional de dignidade humana, a ênfase é em deveres, não em

deveres. Possuir dignidade (a dignidade inicial) é fonte do dever de realizá-la através do devido

uso das capacidades especiais individuais. Além disso, na concepção tradicional, a dignidade

humana não é um valor. “Dignidade” expressa uma condição de superioridade relativa em

oposição a uma qualidade intrínseca, ainda que a posição elevada decorra de uma

característica intrínseca como razão ou liberdade.

Por outro lado, a concepção contemporânea da dignidade humana consiste em um

valor material intrínseco, que impõe um "chamado moral" e a obrigação de respeitá-lo. Não

muda circunstancialmente e é precipuamente fonte de direitos que o indivíduo pode invocar

em face de quaisquer e todas as pessoas.

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Passou-se a analisar, em seguida, o trabalho de Samuel Moyn, que refuta a premissa

tradicional segundo a qual o conceito contemporâneo de dignidade humana surgiu devido a

grandes eventos históricos, como a declaração de independência dos Estados Unidos da

América ou a Segunda Guerra Mundial, por exemplo. O autor afirma que o termo tem suas

origens modernas em 1937 na Irlanda, quando foi pela primeira vez inserido em uma

constituição, em um contexto conhecido como "constitucionalismo religioso", uma terceira

perspectiva sobre o constitucionalismo, entre os valores liberais estabelecidos pela Revolução

Francesa e a demanda generalizada por uma ordem social religiosa integral. Uma alternativa

tanto à extrema atomização do liberalismo clássico quanto aos modelos completamente

autoritários e corporativistas, comunismo e fascismo, que reduziam os povos a massas

indistinguíveis, tirando o indivíduo de suas singularidades. Os irlandeses optaram por uma

terceira via comunitarista, pautada em solidariedade e valores cristãos. Os irlandeses eram os

verdadeiros pioneiros, tanto na formulação do constitucionalismo religioso como na fundação

de seu projeto através da positivação da dignidade humana, cristalizada como um princípio

fundador no preâmbulo de sua constituição de 1937. Para o preâmbulo, a encíclica Divini

Redemptoris, escrita pelo Papa Pio XI sobre o comunismo ateu, foi usada como referência e

inspirou a inclusão do conceito de dignidade.

Segundo papas modernos, direitos humanos representavam o produto do liberalismo

pernicioso inaugurado com a Revolução Francesa e poucos católicos os relacionavam à

dignidade humana. Porém, conforme os Aliados desenhavam seu caminho rumo ao

encerramento da Segunda Guerra após a vitória na batalha de Stalingrado, cada vez mais

católicos vinculavam a noção de dignidade da pessoa humana de então a direitos humanos.

Moyn define como ponte entre a Constituição Irlandesa de 1937 e os

desenvolvimentos posteriores da dignidade humana a declaração natalina do Papa Pio XII ao

mundo, segundo a qual a Dignidade da Pessoa Humana era o primeiro dos princípios para

construir um futuro pacífico. A partir de então, a concepção de dignidade individual ganhou

enorme popularidade na Europa. Mais a frente, nos meses finais da guerra, com o declínio dos

modelos corporativistas autoritários, dignidade para Pio XII pressupunha os valores

democráticos conservadores, que impediriam a difusão de políticas comunistas e liberais, além

de promover a centralidade das normas morais católicas, contendo as tendências secularistas.

Não havendo outra fonte aparente, Moyn entende que é auto evidente que foi o Papa o

responsável pela difusão e proeminência da ideia de dignidade e sua relação com direitos

durante o período da Segunda Guerra Mundial.

Após investigar a Irlanda, a pesquisa se voltou para a França. O termo “indignidade

nacional” é francês e foi cunhado na época da Revolução Francesa chamada de Terror, como o

oposto de fraternidade, para justificar a pena de morte para quem fosse contra o regime.

Posteriormente, foi utilizado na Liberação como uma política moral, a fim de afastar a nova

república francesa da República de Vichy. Ou seja, um meio de purificar a República punindo

aqueles que haviam colaborado com os nazistas com morte cívica.

Após o atentado ao Charlie Hebdo, o conceito foi reinvocado, tendo como novo

inimigo interno o terrorismo. Porém, nesse caso, o termo “indignidade nacional” não

objetivava apenas a renovação da república, mas trazia consigo um forte senso de pertença à

nação francesa. Utilizado como uma forma de discriminação entre franceses de origem árabe e

franceses de origem europeia, o instituto permitiria expulsar jihadistas nacionais da França da

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comunidade, sem, no entanto, retirar a nacionalidade dos mesmos e violar a Declaração

Universal dos Direitos Humanos.

Camille Robcis escreve este trabalho com o objetivo de traçar a genealogia através da

qual dignidade da tradição francesa se associou a ordem pública e pertença nacional. Seu

argumento é dúplice. Em primeiro lugar, a autora sugere que a noção de dignidade humana

circulando no meio jurídico francês desde a década de 1990 é corporativista.

O modo com que o termo “dignidade humana” tem sido utilizado na França

contemporaneamente não coloca ao centro o indivíduo, a promoção abstrata de liberdade

individual, mas sim as obrigações que ele tem para com a comunidade, para o social e, em

suas formulações mais recentes, para a França. Nesse sentido, a versão francesa de dignidade

é teoricamente muito mais próxima à do catolicismo político e ao personalismo que à visão

kantiana ou o entendimento liberal da dignidade. O objetivo não é conceder aos indivíduos

vários direitos considerados privados e idiossincráticos, mas garantir a integração social e

psíquica de todos os cidadãos à comunidade nacional: em outras palavras, garantir sua

“dignidade”.

Mais especificamente, a dignidade tem emergido como um dos melhores

instrumentos para conter os excessos da democracia e dos direitos humanos, os quais muitos

criticam desde a década de 1980. Movimentos sociais e críticos desde então se posicionam,

por sua vez, afirmando que o termo originalmente instrumento para aquisição de direitos na

verdade torna-se contra si mesmo, sendo uma justificativa para tirar certos direitos,

principalmente de minorias.

Na cultura política e jurídica francesa, dignidade apresenta-se como um instrumento

para definir os limites da nação como idealizada na forma de comunidade, bem como para

regular os limites entre as esferas pública e privada. Esse é o segundo ponto principal que a

autora visa desenvolver.

Hoje em dia, na França, pode-se dizer que o termo "dignidade humana" é usado como

um elemento de constrangimento de direitos e não como um ampliador desses, como

comumente pensado. Neste contexto, a dignidade humana não é entendida como um valor

intrínseco de uma pessoa, mas como um projeto de uma regra biopolítica, contrariando o

sentido mais recorrente de direitos humanos e inclusão democrática.

De modo semelhante, a autora francesa Stéphanie Hennete-Vauchez argumenta que

princípio da dignidade humana aplicado hoje em dia, pode estar, na realidade, mais

claramente ligado à concepção anciã de dignidade - a dignitas. O modelo de dignidade

humana tal como é percebido através dos seus recentes usos jurisprudenciais na França e em

outras cortes europeias põe em foco as obrigações (e não os direitos) de uma pessoa, que

deve observar certos deveres para consigo, em detrimento de seu livre consentimento e

arbítrio pessoal.

Em todos os casos concretos analisados pela autora em sua pesquisa jurisprudencial o

princípio da dignidade humana não serviu como fundação de direitos humanos, mas como um

limitador de direitos consagrados. Além disso, os juízes em suas decisões determinaram que

dignidade humana como tal havia sido violada e necessitava ser restaurada pela via judicial. O

bem protegido pelo judiciário foi um objeto abstrato, uma dignidade humana que não se dizia

restrita a uma pessoa.

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Assim como a dignidade tradicional tinha como razão de ser a proteção de status

social ou profissional de determinadas classes, a dignidade contemporânea parece tratar

também de uma categoria, porque defende a humanidade como uma classe. Essa noção tem

grande espaço na jurisprudência atual.

Muriel Fabre-Magnan, professora de Sorbonne, preocupa-se com as condições

limítrofes da sociedade dos dias de hoje e por isso defende a ideia de que o conceito de

dignidade humana emergiu pois direitos humanos tradicionais centrados no indivíduo já não

são suficientes. “O princípio da dignidade humana marca a unidade da espécie humana. Por

meio de cada pessoa, individualmente, a humanidade pode ser ferida como podem os

indivíduos que a compõem”. Ainda segundo Fabre-Magnan, a ascensão do princípio da

dignidade humana é um indicativo de que há algo superior às vontades individuais, algo

transcendental. Ninguém, portanto, pode consentir validamente em ter sua dignidade violada,

um indivíduo não pode renunciar à sua dignidade. A dignidade – enfatiza Fabre-Magnan com

base no aforismo medieval dignitas non moritur – nunca morre. Este é um claro elo entre a

concepção atual de dignidade humana distinguida pela autora e a concepção tradicional de

dignidade e remonta à dignitas real do medievo.

A segunda semelhança com a concepção anciã de dignidade é o entendimento de que

a dignidade humana engloba simultaneamente o indivíduo e a espécie humana – ao mesmo

tempo é o singular e o universal. Como entende a Corte Constitucional Federal Alemã,

“dignidade humana é a dignidade do ser humano como uma espécie”. Ou seja, a

“humanidade” é um emblema do princípio da dignidade humana.

Nesse modelo, todo ser humano é um depositário – mas não um proprietário – de

uma parcela da humanidade, para a preservação da qual ele pode ser submetido a uma

variedade de obrigações em todo tempo e lugar. Dignidade humana sintetizaria o universo de

obrigações originadas simplesmente do fato de ser membro da humanidade. Tais obrigações

são de natureza objetiva e vinculam todos os sujeitos de direito.

Segundo Jeremy Waldron o conceito legal de dignidade poderia ser entendido como

uma evolução de normas legais baseadas em posição hierárquica, cargo ou honra. Este

processo evolutivo, fundado na equidade, teria provocado a difusão da dignidade a todos os

seres humanos, não mais somente aqueles membros de segmentos sociais particularmente

elevados, de modo que todos os indivíduos devem ser igualmente respeitados, uma vez que

são iguais como seres humanos. Nesse sentido, a dignidade humana teria evoluído da base do

que uma vez deu privilégios à nobreza. A dignidade humana, hoje, um privilégio concedido

àqueles que ocupam a posição de ser apenas humano.

Em verdade, a noção de que a dignidade humana e os direitos fundamentais que lhe

seguiram foi generalizada e difundida a partir de uma base aristocrática restrita rumo às

massas é bastante recorrente. Sobre tal movimento, podem-se pressupor duas explicações

alternativas: ou houve concessão piedosa de direitos por parte das elites, ou houve

engajamento e ativismo por parte da coletividade das camadas menos abastadas. Ambas as

visões podem ser pensadas a partir da leitura de Didier Fassin das Economias Morais. Fassin

escreve, em “Les Économies Morales Revisitées”, sobre a economia moral, marcada por duas

características. Em primeiro lugar, é historicamente situada, uma vez que concerne ao mundo

anterior, das sociedades pré-mercado, agora sob pressão do mercado econômico. Em segundo

lugar, é socialmente restrita, haja vista que se refere aos dominados, sejam camponeses ou

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trabalhadores. Portanto, a economia moral é uma ferramenta que possibilita pensar

especificamente relações de diferença temporal e desigualdade social.

A economia moral é sobre emoções e valores, sobretudo no que tange o senso de

justiça. A dimensão avaliativa (o que é tolerável) tem primazia sobre a dimensão normativa (o

que deveria ser feito). Trata-se do senso de justiça que mesmo as camadas sociais mais

incultas possuem e que pode movê-las a lutar pelo que consideram justo – seus direitos.

Também no texto de Fassin, se lê sobre casos históricos onde grupos inimigos,

compadecidos da situação de extrema desgraça do lado oposto, fazem concessões e oferecem

ajuda e alívio a esses seres humanos em situação degradante. Tal leitura fundamenta a visão

daqueles que são pela possibilidade de uma generalização passiva e misericordiosa da

dignidade, que envolveu a aristocracia concedendo direitos de bom grado às camadas

populares, mais pobres e necessitadas (em oposição à versão litigiosa da história, em que os

coletivos lutam pelos seus direitos). Instigou também uma nova fronte na presente pesquisa:

sobre o “sentimento de dignidade humana”. O termo é aparentemente muito antigo e aparece

em textos do século XIX, mas nossas pesquisas sobre o assunto foram incipientes e o tema

será objeto de investigações futuras neste projeto de pesquisa. No entanto, sobre o tema das

intuições sobre valores e gênese de direitos fundamentais, foram feitas outras incursões.

Jeremy Waldron observa que usualmente se coloca o valor da dignidade humana em

posição elevada. Isso pode significar que ela contaria mais do que os outros valores ou que

significaria uma classificação, novamente ligada ao status.

Há também essa diferenciação no que o autor chama de “conotações físicas”, quando

afirma que a dignidade tem ressonâncias de algo definido como porte nobre: quando ouvimos

que alguém tem dignidade, pensamos em uma pessoa com presença, autocontrole, sem

angústias, etc. A proibição de tratamento degradante, por exemplo, pode ser lida como

exigência de que a todas as pessoas seja dada a possibilidade de se apresentar com um

mínimo de autocontrole e estabilidade emocional.

Em uma visão filosófica de dignidade, seria bom, portanto, não apenas unir os usos de

dignidade expostos em lei, mas fazê-lo de forma a iluminar o sentido dessas intuições sobre

“ortopedia moral”. Uma boa definição de dignidade humana irá explicá-la como um status

muito geral, mas que também irá gerar uma definição do indivíduo como nobre, ilustre e dará

importância para a proibição de tratamentos humilhantes e degradantes.

Esses elementos estéticos da dignidade humana, que remontam à sua origem humana

na dignitas, que tinha mais a ver com estética do que com ética, também ressoam na

genealogia alternativa proposta por Stephen Riley, em “Dignity as the Absence of the Bestial”.

A dignidade conota uma série de comportamentos, normalmente ligados à nobreza e

à aristocracia, que implicam em autocontrole consciente e posição elevada na hierarquia

social. Embora ainda mantenha essas características, esse conceito evolui etimológica e

filosoficamente, abrangendo, portanto, a ausência de qualidades animalescas e selvagens nos

seres humanos. Riley argumenta que o atual foco do estudo da genealogia da dignidade

apagou essas ideias, ainda que as mesmas componham o indicador do status de humano.

Logo, são essas noções que baseiam o estudo metafísico dessa qualidade particular do homem

e que surgem da fenomenologia da ausência.

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O que diferencia os homens dos demais animais pode ser explicado pela antropologia

e pela psicologia. A evolução para a postura ereta, que nos traz dignidade por conta de ser a

mesma consciente, é nossa maior diferenciação manifesta em relação aos demais seres. Já a

autoconsciência aponta para uma diferença de forma qualitativa.

Nós somos mais do que nosso corpo, uma vez que temos consciência dele. Também

nos diferenciamos por termos costumes sociais que buscam garantir e cultivar a dignidade

culturalmente. Consequentemente, não deveríamos ser classificados junto aos demais

animais.

A associação com a aristocracia é um paradoxo, visto o apelo cultural da dignidade

humana como um pré-requisito da democracia. Riley argumenta que esse princípio não nasceu

da dignitas e foi transportado para um cenário democrático. Ao invés disso, o corpo seria o

lugar da dignidade, com os homens tendo sua imagem não bestial, assim como a capacidade

se ter um comportamento aristocrático. Essa dignidade advinda da importância do corpo se

chama dignidade simpliciter (absoluta, em latim), ou dignidade simplesmente, em uma

tradução literal do inglês.

Além disso, a postura ereta também tem um sentido simbólico de ausência de

submissão e liberdade. Sendo capazes de se orientar de maneiras diferentes, os humanos

ganham conhecimentos distintos daqueles que têm os animais. Razão, conhecimento e

postura estão, portanto, interligados, apresentando-se como características exclusivamente

humanas que remetem à dignidade.

O filósofo Ernst Bloch argumenta que a fenomenologia da postura ereta rejeita a

redução do homem a animal, tornando a dignidade, assim como a justiça, a base de uma

crítica do Direito: haveria uma lei natural, que para Bloch clama pela preservação da

humanidade, que é impensável que se dê através do direito positivo. A lei positiva trata o

soberano como um animal, oferecendo segurança através da força. A postura ereta serviria,

então, para conectar a particularidade física dos homens, bem como os sinais externos de

degradação, à dignidade humana (chamada pelo pensador de “metafísica da posição humana

universal”). Essa é uma teoria de materialismo da dignidade, que correlaciona as

reivindicações dos marginalizados e desrespeitados ao direito natural.

A natureza pode ser tanto racional quanto irracional. A virtude dos humanos estaria na

sua capacidade de cultivar e dominar heranças naturais. O filósofo Cícero fez uma tentativa de

sintetizar as qualidades humanas naturais da razão e da sabedoria com a obrigação de cultivar

comportamentos e atitudes. Essa seria, portanto, a composição natural e auto imposta que

nos distinguiria dos animais.

A dignidade acompanha a aristocracia, onde as virtudes cultivadas são mantidas. No

entanto, a dignidade não é sempre manifesta. Ela é, na realidade, uma potencialidade

presente em cada indivíduo, mas que só faz sentido quando exercida propriamente como um

comportamento aristocrático. Portanto, a falta da dignidade aristocrática revela o animal

dentro de cada um.

A dignidade e o cultivo de virtudes aristocráticas, porém, não indicam nenhum elo

entre homens. Essas características não são a base de uma natureza humana compartilhada,

mas sim do processo de se tornar humano.

A ampliação da dignitas para todos, na noção romana, não foi uma universalização das qualidades aristocráticas, e nem uma igualdade universal e metafísica entre os indivíduos. Foi, na realidade, uma extensão do status de pessoa, colocando uma máscara de humano e

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sujeitando todos à lei. Dessa forma, não se cria um status uniforme, mas estende-se a possibilidade daqueles que não seriam soberanos a serem também responsáveis. O universalismo da dignidade é, sem dúvidas, um tipo de democratização, sendo o lugar de tensão entre os impulsos do corpo e as obrigações da pessoa.

Atualmente, a atribuição da dignidade ainda guarda paradoxos herdados do

pensamento romano e medieval (como comportamentos derivados da soberania e qualidades

metafísicas). Observamos no cenário contemporâneo dimensões epistemológicas e

ontológicas do termo. Epistemologicamente, se a dignidade e soberania do indivíduo são

coincidentes, isto é, se mais do que uma imitação comportamental do soberano, envolve

capacidade de auto legislação, então o indivíduo retém uma relação contraditória com a lei. A

superação desse cenário é dada por Kant, quando o mesmo argumenta que a dignidade

humana surge da humanidade reificada. Ontologicamente, se a dignidade é encontrada nos

indivíduos, ou seja, dependente de condições sociais ou hierárquicas, como poderia ser um

status, elevando inerente e inexoravelmente tanto o particular como toda a humanidade? Esse

questionamento é feito por aqueles que encaram o pensamento dignitário como ferramenta

para buscar a democratização da soberania.

A democratização da dignidade precisa de uma base material sem vínculos com a

metafísica da humanidade ou com pertencimento a um sistema social: a dignidade material de

cada indivíduo, que, porquanto “inferior” possa ser, apresenta em si ausência de caracteres

bestiais. Riley demonstra isso com aspectos reais comuns a todos os seres humanos, de reis a

miseráveis: o uso de roupas ou o trabalho o humano – cuja dignidade advém da possibilidade

de relações de trabalho não exploratórias, típicas daqueles que podem manifestar a ausência

do bestial. Diferentemente de animais, os quais, em seu trabalho, são puramente

instrumentos da indústria humana, o ser humano, ainda que aliene o seu trabalho, mantem

relações com os frutos do trabalho.

Em Hume encontra-se o núcleo das análises modernas de dignidade como ausência do

animalesco. Em sua análise simples e devastadora da retórica da dignidade, expõe como base

da dignidade a ausência do bestial através de comparação e perspectiva, sem o uso de

propriedades inerentes: “dignidade, utilizada como meio de elevação do status humano, é

pura retórica. A posição da humanidade depende inteiramente da perspectiva da qual a

comparação é feita: comparados a deuses somos bestas; comparados a bestas somos deuses”.

O discurso contemporâneo do “humano” hoje pode ser contemplado em dois eixos de

um debate conflituoso: nas concepções científicas da biologia e comportamento humanos, de

um lado, e na independência normativa, de outro. Nietzche, Freud e Foucault convergem no

entendimento de que a ausência do animalesco no humano se tornou um fenômeno

ambivalente. Embora fosse necessário acobertar a bestialidade humana através de

construções legais e sociais para atingir uma forma distintivamente humana, a ausência do

bestial é reconhecida como repressão do bestial.

De Cícero à ciência moderna, o aparecimento ou desaparecimento do animalesco no

indivíduo humano não está relacionado à diferença qualitativa entre a espécie humana e os

animais, mas à manifestação individual da ausência do bestial. Dignidade denota as condições

materiais necessárias para resistir retrocesso a comportamentos animalescos, mas não é, a

dignidade, totalmente dependente dessas condições externas – a dignidade é possível

enquanto as pressões externas não forem totalmente agressivas ao valor próprio do indivíduo,

e nesse sentido dignidade é universalizável.

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Parte importante da pesquisa foi a investigação sobre as dinâmicas entre o discurso de

direitos fundamentais e a noção de direitos inerentes. Michel Foucault enxerga a constituição

histórica do sujeito do conhecimento por meio de um discurso tomado como um conjunto de

estratagemas que fazem parte das práticas sociais. A partir dessa pretensão, perguntamos:

poderia ser que o discurso dos direitos fundamentais gerasse a noção de dignidade humana?

Em outras palavras, foi a noção (pelo menos o conceito mais recorrente de dignidade humana,

o contemporâneo) originado no seio dos debates sobre os direitos fundamentais, que teria

criado, de maneira natural, a noção de dignidade humana no âmbito social sob a incidência

desses discursos?

Esta proposição apresentada não é certamente uma questão de uma aparição, um

nascimento inexplicável do conceito, pois, em última análise, explicaria a genealogia da

dignidade humana numa base jusnaturalista. No entanto, não é tão artificial como uma

invenção, calculada. Nietzsche apresenta uma clara diferença entre origem (Unsprung) e

invenção (Erfindung). O primeiro pressupõe continuidade. O segundo, uma ruptura,

acompanhado de um pequeno começo. A dignidade humana se originou no contexto do

discurso dos direitos fundamentais – seria uma certa noção percebida e extraída, da maneira

mais lógica, das ideias apresentadas e defendidas por aqueles cujos motivos políticos levaram

a acreditar e defender os direitos fundamentais. Se as pessoas estão condecoradas com

direitos fundamentais, pressupõe-se que é porque têm um certo valor. Ou, uma vez que todas

as pessoas têm direitos fundamentais, entende-se que têm algum atributo especial, a partir do

estabelecimento de direitos fundamentais.

Foucault usa Nietzsche para explicar seu ponto de vista sobre o conhecimento. O

conhecimento não é, como acreditava a tradição filosófica ocidental, uma característica da

natureza humana. O conhecimento não foi originado, foi inventado. Emerge da relação

dialética, violenta, entre os instintos humanos e as coisas a serem conhecidas, o mundo. O

conhecimento não tem nenhuma relação original com seus objetos. Portanto, os instintos –

tudo o que o animal humano faz e pensa - podem, sem qualquer relação natural com o objeto,

criar um conhecimento que não tenha nada em comum com eles.

Dito isso, a dignidade humana poderia ser puramente uma construção humana, uma

ideia que não se refere necessariamente à "verdadeira natureza humana", nem à humanidade.

A dignidade humana poderia ser um conceito simplesmente inventado por intelecto humano

que não exerce nenhuma relação (transcendentalmente verdadeira) com a substância

concreta a que se refere, o ser humano. No esquema proposto por Nietzsche - no qual os

instintos exploram as coisas a serem conhecidas produzindo, na superfície da natureza

humana, o conhecimento – as coisas a serem conhecidas podem ser facilmente substituídas

pelo "ser humano", e o conhecimento pela "dignidade humana".

Conclusão

Os estudos em perspectiva histórica favorecem a proposição de uma tese: somente a

partir dos documentos da ONU a dignidade humana passou a derivar e depender apenas do

indivíduo, e por isso sua caracterização como “inerente”. Não é um termo fútil, uma vez que

em toda a tradição anterior da dignidade humana esta era uma glória refletida, vinculada a

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algum fator externo, fosse a Natureza (em Cícero), Deus (na Doutrina Católica), ou a Moral

Universal (em Kant), e o ser humano só tinha dignidade na medida em que era um espelho

dessas virtudes. Mas, no paradigma contemporâneo, é o ser humano o protagonista do Direito

Internacional e sua dignidade lhe é intrínseca.

No futuro, se pretende prosseguir com investigações históricas heterodoxas, de modo

a buscar as origens desconhecidas ou esquecidas da dignidade humana, bem como aprofundar

o estudo sobre as correlações entre dignidade humana e o conceito de nacionalidade,

buscando em Hanna Arendt, Giorgio Agambem, Roberto Espósito e Michel Foucault, bem

como diversos outros autores atuais reconhecidos na comunidade acadêmica internacional,

fontes para esta análise que visará abordar temas atualíssimos da política internacional, como

o dos refugiados e o desafio que os Estados enfrentam frente o dilema da absorção ou rejeição

dessas grandes massas populacionais, nacionais de outros países, que, amparados por tratados

internacionais que estabelecem obrigações aos Estados signatários, buscam refúgio. A

investigação no campo teórico poderá oferecer respostas práticas a problemáticas do Direito

Internacional contemporâneo.

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