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TORNAR-SE MÃE NUM PRESÍDIO: A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO POTENCIAL Isabel da Silva Kahn Marin 1 Introdução Este artigo é fruto das reflexões desenvolvidas a partir das supervisões realizadas para estagiários do 5º ano do Curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), que cursam o Núcleo “Intervenções Clínico-Educacionais junto à Criança e ao Adolescente - Constituição da subjetividade e cidadania”, e realizam um trabalho junto a grávidas e mães que aleitam seus bebês em penitenciárias. Esse núcleo tem como objetivo preparar o estudante de psicologia para a atuação junto a instituições e projetos sociais sob uma perspectiva educacional, de forma a promover o desenvolvimento e o bem-estar físico, psíquico e social das crianças e dos adolescentes. Para tal finalidade é preciso entender a criança em seu contexto social, levando em consideração as relações em que a mesma se insere enquanto sujeito com necessidades próprias. Busca-se também problematizar as questões cruciais que se apresentam em projetos de prevenção desenvolvidos em situações de extrema vulnerabilidade. 1 Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica – PUC/SP; Membro da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Vice-presidente da ABEBE (Associação de Estudos sobre o Bebê); Professora, pesquisadora e supervisora clínica/institucional do Curso de Psicologia da FACHS da PUC/SP nas áreas da infância, juventude e família. Responsável pelo Aprimoramento Clínico Institucional de Casal e Família, oferecido pela Clínica Psicológica “Ana Maria Popovic” da PUC/SP. Supervisora clínica e institucional de profissionais envolvidos em programas de atenção à saúde, educação, assistência e justiça. Contato: Rua Capote Valente 439/113. Tel.:11-30811-829. [email protected] .

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TORNAR-SE MÃE NUM PRESÍDIO: A CRIAÇÃO DE UM ESPAÇO

POTENCIAL

Isabel da Silva Kahn Marin1

Introdução

Este artigo é fruto das reflexões desenvolvidas a partir das supervisões

realizadas para estagiários do 5º ano do Curso de Psicologia da Faculdade de

Ciências Humanas e da Saúde da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

(PUC/SP), que cursam o Núcleo “Intervenções Clínico-Educacionais junto à

Criança e ao Adolescente - Constituição da subjetividade e

cidadania”, e realizam um trabalho junto a grávidas e mães que

aleitam seus bebês em penitenciárias.

Esse núcleo tem como objetivo preparar o estudante de psicologia para a

atuação junto a instituições e projetos sociais sob uma perspectiva

educacional, de forma a promover o desenvolvimento e o bem-estar físico,

psíquico e social das crianças e dos adolescentes.

Para tal finalidade é preciso entender a criança em seu contexto social,

levando em consideração as relações em que a mesma se insere enquanto

sujeito com necessidades próprias. Busca-se também problematizar as

questões cruciais que se apresentam em projetos de prevenção desenvolvidos

em situações de extrema vulnerabilidade.

1 Psicóloga, Psicanalista, Doutora em Psicologia Clínica – PUC/SP; Membro da Associação

Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental. Vice-presidente da ABEBE (Associação

de Estudos sobre o Bebê); Professora, pesquisadora e supervisora clínica/institucional do Curso de

Psicologia da FACHS da PUC/SP nas áreas da infância, juventude e família. Responsável pelo

Aprimoramento Clínico Institucional de Casal e Família, oferecido pela Clínica Psicológica “Ana

Maria Popovic” da PUC/SP. Supervisora clínica e institucional de profissionais envolvidos em

programas de atenção à saúde, educação, assistência e justiça. Contato: Rua Capote Valente

439/113. Tel.:11-30811-829. [email protected].

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A experiência dentro de um presídio com mães e bebês traz radicalmente

a vivência da violência e as dificuldades e desafios de se buscar significações

para rupturas e faltas, dentro de um sistema legítimo, ético e que resgate laços

de solidariedade e respeito humano.

Torna-se, portanto, um desafio, encontrar parâmetros para a intervenção

com as mulheres que se encontram em situação de privação de liberdade no

momento de sua gestação, ou no acompanhamento de seu puerpério quando

estão com seus bebês, visando garantir a saúde mental desses futuros

cidadãos.

A mulher gestante que se encontra na situação de privação de liberdade

tem o direito de ficar com o seu bebê durante o período de aleitamento

materno (180 dias) garantido pela Constituição Federal de 1988, (Artigo

5-L-CF) e pela L.E.P (Lei de Execução penal V. Art. 89, Lei 7.210/84,

alterado pela Lei n.11942/2009).

A psicologia aponta que se deve garantir uma segurança básica

para a constituição subjetiva que usualmente está referida à presença da

mãe, sendo que a gestação é o momento em que se funda esse

processo. Fortalecer esse momento é essencial, considerando inclusive

que o bebê poderá permanecer com sua mãe durante os primeiros seis

meses de vida, condição estabelecida por Lei.

Dentro desse cenário mostra-se de grande importância que se

garanta uma estrutura que proporcione uma permanência saudável tanto

para mãe como para seu bebê durante esse período. De acordo com o

art. 89 da Lei Nº. 7210/84, as penitenciárias femininas teriam que ser

dotadas de seções para gestantes e parturientes, porém, na prática, o

que se vê é que a grande maioria das penitenciárias carece desse tipo de

ambiente.

Sob essa perspectiva vigora uma parceria entre o Curso de

Psicologia da PUC e a Secretaria da Administração Penitenciária do

Estado de S. Paulo (SAP), particularmente junto a Coordenadoria de

Saúde da pasta, desde o ano 2000, quando estagiários do referido núcleo

realizaram um trabalho inicialmente na Penitenciária Feminina da Capital

e em seguida no antigo Centro de Atendimento Hospitalar à Mulher Presa

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(CAHMP)2, instituição reservada para o nascimento e amamentação dos

bebês, no chamado 'Trânsito Amamentação”, visando acompanhar as

gestantes e puérperas para dar suporte a esses vínculos primordiais

mãe/bebê.

Com o fechamento do CAHMP em maio de 2009, as atividades dos

estagiários foi interrompida e foi então que houve uma proposta

intermediada pela Coordenadoria da Saúde para se realizar um trabalho

na Penitenciária Feminina de Santana (PFS), junto ao Programa de

Atenção Integral à Saúde – Grupo de Gestantes, que se desenvolveu por

dois anos. Em 2012 retomou-se a proposta de estágio junto a gestantes e

pares mãe-bebê que se encontravam na Penitenciária Feminina da

Capital(PFC).

Demandas e pressupostos do trabalho. Primeiras impressões

Foi a diretora da PFC da época (2000) que demandou à

universidade a contribuição para que se pensasse como seria possível

garantir que os bebês que teriam por força da lei que ficar com suas

mães para o aleitamento não fossem prejudicados por estarem “presos”,

além de prepará-los para que a separação, que ocorreria forçosamente

aos 4 meses, não fosse traumática (o tempo previsto para licença

amamentação era de 4 meses, naquele momento).

Apesar de admitir não estar convencida de que isso seria uma

medida saudável para o bebê, estava disposta a desenvolver o trabalho

da melhor forma e por isso queria contar com a retaguarda teórico-

técnica que a academia poderia oferecer.

Nesse contexto desenvolveu-se a parceria com a PUC-SP acima

relatada. Um grande desafio se colocou para as pesquisas que

desenvolvíamos na universidade voltadas para projetos de prevenção e

atenção à primeira infância, por mais paradoxal que parecesse atuar

nesse contexto.

Logo de início deparava-se com muitos preconceitos. A imagem

2 Instituição subordinada à Coordenadoria de Saúde do Sistema Penitenciário e à Secretaria da Administração Penitenciária, localizado na Penitenciária Feminina do Butantã.

Inaugurada em 2005, essa unidade funcionou até meados de 2009, quando foi desativada.

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idealizada e romantizada da relação mãe-bebê não combinava com a

representação de um ambiente com grades e muito menos a ideia de

mulher bandida-mãe. A agradável surpresa de encontrar bebês muito

saudáveis, risonhos, com desenvolvimento psicomotor amadurecido para

sua faixa etária, sinais visíveis de segurança básica e autonomia, criava

um visível contraste com os funcionários do sistema penitenciário, para

quem trabalhar nessa realidade era quase um castigo.

Parecia que quanto mais as mães podiam sonhar para seus bebês a

liberdade que elas almejavam, mais ameaças e mais hostilidades eram

mobilizadas nos funcionários, que lamentavam não estar em unidades

masculinas ou mesmo em presídios onde não havia bebês.

Podíamos inferir que a valorização do vínculo mãe-bebê e,

consequentemente, da mulher “bandida” era perturbadora para os

agentes penitenciários. Sabe-se o quanto um bebê mobiliza a ternura

mas também o sentimento de desamparo das pessoas,que frente à sua

fragilidade temem não serem capazes de dar conta das demandas

incessantes e muitas vezes enigmáticas do bebê. Isso pode não apenas

desestabilizar as representações e defesas que colocavam as mulheres

presas do lado do mal, mas também justificar as práticas muitas vezes

distorcidas do sistema penitenciário. A delicada questão dos direitos

humanos em relação à população carcerária se fazia mais aguda nesse

contexto.

No entanto, precisávamos de alguns parâmetros para justificar

uma proposta de estágio que apoiasse o desenvolvimento de um projeto

de acompanhamento às gestantes e puérperas dentro do sistema

penitenciário de forma a garantir os direitos tanto das mulheres quanto

das crianças.

A importância da amamentação e do vínculo afetivo com a mãe

para o desenvolvimento do bebê parecia ser consenso, mas a questão da

separação era entendida como muito sofrida e prejudicial tanto para as

mães, quanto para os bebês depois. Orientada pela psicanálise,

lembrava que a separação é condição para subjetivação, desde que se

crie a transicionalidade necessária para que o bebê suporte a

descontinuidade de ser com sua mãe e a partir de suas competências

possa investir em outros objetos, ou seja, no mundo.

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Foi importante retomar as análises propostas no trabalho FEBEM,

Família e Identidade - O lugar do Outro, (Marin, 2010), ao discutir as

alternativas para as crianças institucionalizadas e privadas da

convivência com seus pais:

A perda, a falta e a separação não são em si o problema para a

formação da identidade, aliás, podem ser até os determinantes,

porém o que importa é a possibilidade de sua significação e a

condição para simbolização (...). Se acreditarmos que é a partir da

falta de ser que o sujeito pode manifestar seu apelo, viver seu

desejo, orientar-se e fazer sua própria história, é preciso deixar

surgir esse espaço da falta. Não se deve apenas preencher

totalmente a criança, mas também permitir que ela questione sua

origem, fale de seu abandono, entenda quem está ocupando os

lugares de proteção e apoio, e ao mesmo tempo de limite e

ordem, e para onde deve seguir seu destino. Essas são as

possibilidades de lhe dar condições para ser um sujeito

autônomo. (p.61e 62).

Em outras palavras, isso significa suportar a castração, função

parental essencial para o processo e subjetivação. Esse ponto levava

também a uma questão instigante, em relação à condição dessas

mulheres que provavelmente haviam transgredido a lei justamente por

terem dificuldades de se submeter às regras e frustrações que lhes eram

impostas. Seríamos capazes então de promover um espaço potencial 3

onde a transicionalidade fosse sustentada, para que a perspectiva do

corte e da separação pudesse ser antecipada e, de certa forma,

valorizada como espaço de crescimento e abertura para o mundo e

autonomia?

Orientadas pela concepção winnicottiana da relevância em se

possibilitar a criação de objetos transicionais para a constituição da

subjetividade, parecia-nos interessante utilizar esse recurso para nos

aproximar e iniciar um trabalho. Ocorreu-nos propor a montagem dos

Livros do Bebê, nos quais se poderia materializar o investimento das

3 Esse conceito é desenvolvido nos capítulos “Objetos transicionais e fenômenos transicionais” e “O brincar: uma posição teórica” em O Brincar e a Realidade, de D W Winnicott. Rio de Janeiro: Imago, 1975.

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mães nesses filhos, que passariam a ter um registro de suas histórias, de

seu crescimento, de seus projetos de vida. Esse livro poderia

acompanhar o bebê quando este se separasse da mãe, de certa forma

representando-a junto ao bebê, e poderia seguir sendo o registro da

história de vida do pequeno futuro cidadão.

Ao propormos que pensassem e/ou se comprometessem com esse

projeto de vida, essas mulheres forçosamente deveriam recuperar os

seus próprios projetos, o que muitas vezes passava por ressignificar o

crime, o que não era sempre desejável para muitas delas. Também

fundamental nesse processo era retomar a rede social-afetiva

significativa dessas mães, uma referência para seus bebês, preparando-

os para sua saída. Muitas delas haviam rompido as relações com suas

próprias famílias e decidir sobre o futuro do bebê ou mesmo falar de sua

história implicava retomar sua própria história familiar.

O mesmo se dava em relação aos pais de seus filhos, e sabemos o

quanto a função paterna é condição para que o corte da relação

simbiótica mãe0bebê se dê de forma consistente. Função paterna é

entendida aqui como um terceiro que se coloca entre a criança e seu

cuidador, de forma a convocar a criança a renunciar as suas satisfações,

instituindo-se na diferença como separada do adulto cuidador.

Portanto, recuperar a história dessas mulheres e de sua rede de

suporte significativa era fundamental para que a história dos bebês

pudesse ser fundada e sustentada por suas mães, para que eles

pudessem ser convocados como sujeitos e convidados a participar de seu

mundo e de sua cultura, assegurados pelo afeto e continência de suas

mães.

A possibilidade de os filhos serem acolhidos por sua rede familiar

após o período de convivência com sua mãe seria a saída desejável, mas

se isso não fosse possível sempre haveria a alternativa do acolhimento

institucional, o que não significaria para a mãe perder o poder familiar

sobre seu filho, desde que ela não renunciasse a isso e se ocupasse de

sustentar o vínculo com seu ele, mesmo que de dentro da prisão.

Considerando as histórias de vida dessas mulheres, a passagem

ao ato infracional e as condições de vulnerabilidade marcadas pelo

contexto de privação de liberdade, pareceu-nos fundamental garantir

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espaços de escuta, continência e reflexão favorecendo o mais frequente

compartilhamento de depoimentos possível, para que elas pudessem

sustentar o investimento nos seus filhos, participando da construção de

seus projetos de vida.

Dessa forma imaginamos propor atividades grupais tanto de cunho

dinâmico — visando trabalhar as principais questões trazidas pelo grupo,

possibilitando a troca de experiências, de sentimentos e angustias

comuns, o seu acolhimento e organização —, quanto de implicação na

atividade de potencialização dessa população enquanto mães, a partir do

recurso à construção de objetos transicionais (objetos construídos por

elas, a serem levados pelos bebês na separação, simbolizando esse

importante momento e ajudando a elaborar as angústias daí advindas,

como por exemplo: móbiles, brinquedos, porta-retratos, e álbuns do

bebê).

Sob esses princípios norteadores foi possível organizar a proposta

de estágio que foi se desenvolvendo desde 2000, em diferentes unidades

prisionais femininas na cidade de São Paulo, sempre adaptadas à

realidade e demandas locais, e que subsidiam as análises que se seguem.

Sempre se garantiu a realização de grupos com as mães e seus bebês e

com as grávidas, cujos objetivos gerais eram: (i) fortalecer o vínculo mãe-

bebê, considerando sua importância para o desenvolvimento da criança,

(ii) valorizar os atores institucionais em relação ao seu lugar de destaque

frente à promoção de saúde da mãe e seu bebê, e (iii) mobilizar a rede de

sustentação afetivo-social da dupla mãe-bebê, visando garantir a

convivência da criança com sua comunidade, como lhe é de direito. Mais

especificamente pretendia-se:

Valorizar e responsabilizar as gestantes para que desenvolvessem a

maternidade da melhor maneira possível, garantindo que se

constituíssem enquanto referência para esse filho que iria nascer

Promover um espaço de reflexão sobre a relação mãe-bebê que

propiciasse a construção de projetos para ambos

Trabalhar com as mães a temática da separação de forma a elaborar

melhor a perda e preparar seu filho para ir para o mundo

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Possibilitar que as mulheres se apropriassem das histórias de vida,

considerando suas diferentes características e personalidades

Estimular a amamentação, a brincadeira, a conversa, o olhar, o toque e

outros investimentos afetivos entre a mãe e o bebê.

Encontrar nesse sistema possibilidades interessantes de pertinência para

a mulher e seu bebê, assim como resgatar a rede de pertinência

existente fora da instituição

Valorizar o ambiente institucional e todos que o compõem como

responsáveis por garantir a sustentação necessária para a constituição

subjetiva e saúde mental dos bebês.

Como estratégia de intervenção para o desenvolvimento do projeto

propunha-se grupos semanais com duração de uma hora e meia, durante o

tempo de permanência das internas na instituição; conversas individuais,

quando necessário, e conversas com a coordenação e os funcionários que

trabalhavam diretamente com essa população. As atividades realizadas

incluíram:

Construção do Livro do Bebê, com informações sobre o bebê e a mãe

(fotos, como cuidar, a rotina da criança, história de vida de cada um).

Trabalhar e resgatar a questão da figura da mãe e mulher. Para tal, foram

propostas atividades de reflexão, técnicas de massagem, atividades

artísticas, etc.

Uso de músicas infantis, construção de brinquedos, confecções de

decorações infantis na tentativa de tornar o local mais lúdico.

Aproveitar propostas e sugestões trazidas pelas mulheres, possibilitando as

trocas de conhecimento.

Essas atividades visaram trabalhar as principais questões trazidas pelo

grupo, possibilitando a troca de experiências, de sentimentos e angústias

comuns, o seu acolhimento e a sua organização.

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Tecendo o trabalho: encontros entre a teoria a as vivências. Espaços

potenciais.

Entendemos que os primeiros meses de vida são de extrema importância

para o desenvolvimento físico e emocional do bebê. Esse período inicial é

fundamental para a construção da subjetividade da criança, uma vez, que a

estrutura psíquica do sujeito se constrói na estreita e íntima relação entre a

criança e sua mãe durante os primeiros anos de vida. É essencial, portanto,

que se estabeleça um vínculo afetivo, criado pela familiaridade e proximidade

com as figuras parentais no início da vida. É importante ressaltar que a história

do bebê começa muito antes de seu próprio nascimento. Dar espaço para que

essa história seja lembrada, investida e resgatada se mostra um aspecto

relevante para se determinar o lugar que essa criança ocupará, fator que se

mostra fundamental para a singularidade do sujeito que nasce. É esse lugar

que cada criança ocupa em suas respectivas famílias o responsável pela

singularidade, aspecto essencial para o desenvolvimento psíquico.

Esse lugar deve ser entendido em sua dimensão metafórica

- não se trata somente de um quarto, um berço ou um

nome, mas de ocupar uma posição subjetiva, de fazer uma

diferença com sua chegada, de modificar posições familiares

estabelecidas até então. É um lugar pleno de determinações

também simbólicas. Cada bebê que chega vem dar

seguimento a uma família que tem história de várias

gerações. Além de sua herança genética, herda também –

simbolicamente – os acontecimentos, as experiências

significativas vividas por seus familiares e antecedentes,

cuja história vem dar continuidade. Nessas determinações,

seu sexo, suas feições, a ordem de seu nascimento- em

relação aos irmãos de sua própria fratria ou à de seus pais –,

as circunstâncias da gravidez, do parto, e do puerpério, vão

construir elementos importantes de uma combinatória que

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resultará justamente em um lugar particular que

determinará a forma como será esperado, como serão

interpretados suas manifestações, como será tratado, ou

seja, as diversas significações que receberá para poder ir

entendendo que acontece com o seu corpo, ir decifrando

tanto o seu mundo interno quanto seu mundo externo

(BERNARDINO, 2006, p. 26).

A partir disso considera-se a gestação, assim como a relação do par

mãe-bebê nos primeiros meses de vida, períodos privilegiados de investimento,

transmissão de uma história e aquisição de um lugar que dizem respeito à

chegada do bebê. Isso não deveria ser diferente no contexto da prisão, o que

nos levava a buscar a sustentação possível para a complexidade desse

processo num ambiente aparentemente hostil a processos de criatividade,

ternura e esperança.

As pesquisas e os aportes teóricos que buscam compreender a dinâmica

dos primórdios da constituição subjetiva, particularmente da gestação e do

bebê, contribuíram muito para encorajar a prática nessa realidade.

A gestação

O tempo de gestação é um tempo de elaboração necessário para a

construção do bebê no imaginário da mãe. Segundo Aragão (2008), a mãe

passa a se relacionar com um objeto virtual que diz respeito a uma relação

particular que esta estabelece com o bebê em seu ventre. Essa relação de

objeto virtual é um “processo dinâmico e adaptativo que envolve o conjunto de

comportamentos, afetos e representações em torno do embrião e do feto”

(Aragão, 2008, p111).

A gestação é um período no qual a mulher se prepara para a relação

objetal, o que envolve o tempo, e espaço e a identificação. A relação com o

objeto virtual vai do extremo do investimento narcísico da mãe, momento em

que quase não há investimento objetal, até a emergência progressiva de um

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investimento objetal. Ou seja, a mãe vai aos poucos construindo um bebê em

seu imaginário, o que será a matriz de todo o desenrolar posterior da relação

de objeto, quando seu bebê imaginário tiver dado espaço a um bebê real, de

carne e osso.

Todo esse processo não se dá sem angústias, dúvidas, expectativas e

ansiedade. Os mitos em torno das necessidades especiais das mulheres

grávidas, que não podem ser contrariadas e devem ter seus desejos satisfeitos,

nada mais são do que mecanismos culturais de apoio ao processo ambivalente

que é a espera de um novo chegante. Por mais que os avanços da tecnologia

ofereçam a ilusão de controle e certeza (imagens ecográficas cada vez mais

perfeitas, recursos para prever patologias, má formações do bebê, etc.), quem

será o bebê que vai nascer segue um mistério. O medo e a dúvida sobre a

capacidade de ser uma boa mãe também. Suportar, portanto, o tempo da

gestação gera muita ansiedade. “Toda criação de um outro humano envolve a

violência do encontro com o outro e envolve o risco de jogar-se numa

empreitada para a qual não se tem garantia, apesar de todos os progressos da

medicina e da ciência atual”.(ARAGÃO, 2011).

Isso evidencia como é essencial a capacidade de lidar com o ainda por

vir, e, portanto, com o inédito, o desconhecido, o que leva tempo para se

apresentar. Na atualidade, onde a temporalidade parece estar marcada pelo

instantâneo e as ilusões de controle são quase realizadas, a exposição ao

desconhecido é vivida de forma muito ansiosa, muitas vezes insuportável.

Pode-se pensar que o processo de antecipação imaginária fica

comprometido, o que traz questões importantes sobre os efeitos disso no

psiquismo nascente do bebê. Podemos imaginar como esse processo se torna

particularmente difícil para a mulher encarcerada. Ela não tem o apoio de sua

rede familiar e social, e nem sempre consegue o atendimento médico

desejado. Como muitas mulheres contemporâneas, expressam que só teriam

sossego se pudessem fazer ultrassom todos os dias, e ter um médico de

plantão para responder a todas as sensações que mais se manifestam como

patologias do que como a vida de um bebê, de “um estranho em mim”.

Dessa forma, o espaço grupal sustentado por uma escuta acolhedora e

atenta na penitenciária constitui-se num ambiente privilegiado para se pensar

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o bebê imaginário e investir na criança que está por chegar. As conversas e

reflexões proporcionadas pelo coletivo são uma forma de dar suporte às mães,

uma vez que a vivência de sofrimento ocasionado pelo encarceramento e seus

desdobramentos podem ser dificultadores de um maior investimento da mãe

em seu filho.

Questões como o afastamento da família; a incerteza de seu futuro na

instituição (principalmente das mães que ainda não foram sentenciadas); a

vivência num ambiente sentido como ameaçador; o medo de se vincular ao

filho e depois ter que se separar, pelo menos temporariamente; o medo e/ou

culpa por eventualmente serem ou terem sido usuárias de drogas e

comprometerem a saúde dos bebês, entre outros, são fatores que podem

comprometem o investimento no filho, pela mãe.

Outro ponto importante a salientar diz respeito ao fato de que, durante a

gravidez, ocorre uma construção antecipatória do reconhecimento da

alteridade do bebê, o que pode ser marcado por momentos de alternância de

aceitação e rejeição, vivenciados por grande parte das gestantes como crise.

Enquanto o bebê cresce no ventre da mulher, seu próprio psiquismo passa por

transformações, sendo que só aos poucos ela vai abrindo espaço em seu

psiquismo para o bebê. O sentimento de si e o de seu próprio espaço psíquico

se alteram para conter um outro estrangeiro dentro do seu próprio corpo e na

sua vida. (Aragão, 2010).

A ambivalência desse processo põe em cheque o suposto amor

incondicional que a mãe tem por seu bebê. No contexto da prisão, esse

processo se faz ainda mais difícil, pois a manifestação de dúvida ou conflito

quanto à capacidade de dar conta de dar sustentação a um bebê é

rapidamente entendida como expressão da perversão da mulher, ou resposta a

uma história de violência que deve ser negada.

Pôde-se observar, ao longo dos grupos realizados, uma grande

dificuldade de algumas gestantes de perceberem seus filhos na barriga e se

colocarem no papel de mãe e sonhar com a chegada do bebê, conferindo um

lugar especial para o filho. O fato de estarem num grupo, desenvolvendo

atividades conjuntas com outras gestantes, e até mesmo com outras mães que

estavam com seus bebês – construindo álbuns, pensando no nome a ser

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escolhido e seu significado, medindo barrigas ou o tamanho de bebês ou

fazendo e recebendo massagens –propiciou essa possibilidade de antecipação

imaginária e acolhimento à estrangeiridade do bebê. Em outras palavras,

permitia que o tempo da gestação se constituísse como “um esboço da criação

de um espaço psíquico materno constitutivo de um suporte no qual o bebê

possa advir como um ser subjetivado, e não mais como um ser biológico

somente” (Aragão, 2011, p.40). Podia-se assim pensar o bebê e sua chegada.

Era o ponto de partida para pensar seu destino.

A gravidez, por outro lado, caracteriza-se como um período

extremamente fértil para a produção imaginária, permitindo a retomada de

posições infantis, edípicas em relação às imagos parentais, com ênfase

particular nas questões de sexuação, retomando os percalços da relação da

menina com a mãe dos primeiros tempos. (Aragão, 2011). A possibilidade de

organizar grupos mistos com gestantes e mães que já estavam com seus

bebês possibilitou uma troca muito rica entre as mulheres, uma vez que cada

uma estava vivendo diferentes etapas da maternidade, permitindo, assim, o

compartilhamento entre elas nesse período que engloba um processo

complexo, circundado por constantes mudanças. As gestantes se mostravam

mais sensíveis a retomar essas relações mais primitivas, que muitas vezes

vinham sendo negadas devido ao seu afastamento da família em função do

crime, ou por vivências muito sofridas e conflituosas.

O fato de serem incentivadas a retomar a história familiar para acolher

seu bebê e pensar seu futuro era, muitas vezes, motivo de resistência para as

mães. Isso se fez muito evidente no período de trabalho no CAHMP - Trânsito

Amamentação. Apesar de lá existir um espaço organizado no sistema

penitenciário para acolher mães e bebês, mais protegido do que nas grandes

unidades, as mulheres perdiam suas referências sociais e familiares por

estarem afastadas de seu local de origem. Ficavam como que submersas na

maternidade, que, por um lado, podia parecer sublime,, mas, por outro, trazia

sérios riscos de despersonalização, colocando inclusive riscos para a saúde

psíquica do bebê.

O bebê e sua mãe.

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A identificação da mãe com seu bebê é fundamental para que ela se

envolva com a criança, fornecendo-lhe apoio, cuidado, amor e significando,

assim satisfazendo as necessidades do bebê. Winnicott, pediatra e psicanalista

inglês cuja obra volta-se especialmente para a relação inicial mãe-bebê e seus

efeitos na constituição no aparelho psíquico, afirmava claramente o papel

fundamental da mãe na determinação do psiquismo que se constitui. Esse

autor chama de “mãe suficientemente boa” aquela que consegue suprir as

necessidades do filho. Em 1956 teorizou sobre o estado de “Preocupação

Materna Primária”, momento especial e peculiar em que a mulher grávida se

encontra, estendendo-se até semanas após o parto. Esse estado diz de uma

condição psicológica em que a mulher se encontra em um estado de

sensibilidade aumentada durante, e especialmente, no final da gravidez e

primórdios da vida do bebê.

Essa Preocupação Materna Primária, segundo o autor, permite à mãe

identificar-se com o seu bebê, conseguindo adaptar-se a ele e responder as

suas necessidades de modo delicado e sensível. Para o desenvolvimento desse

estado, que de certa forma pressupõe um “adoecimento progressivo,” uma

espécie de enlouquecimento, Winnicott pontua a necessidade de a mulher

“estar saudável”, no sentido psíquico, tanto para entrar como para sair desse

estado, visto ser ele passageiro e temporário, porém essencial. As mães que

conseguem atingir esse estado são capazes de fornecer uma adaptação

“suficientemente boa” às necessidades do bebê. Outras mães, contudo,

permanecem identificadas com o bebê, por um tempo maior, não retornando a

sua vida integralmente, nem correspondendo às crescentes demandas do filho,

portanto acarretando prejuízos emocionais tanto para ele, quanto para ela.

Esse ponto deve ser particularmente observado e cuidado no contexto da

penitenciária, pois o risco de a mãe “grudar-se” a seu filho como única

alternativa de existência é grande.

Dentro dessa lógica, é de extrema relevância ter-se um enfoque e um

olhar acerca da importância da amamentação nesses primeiros meses de vida,

pois a relação do bebê com o seio é uma das formas mais privilegiadas de

investimento, troca e construção do vínculo tão essencial da díade mãe/bebê.

Contudo, é fundamental recuperar o que entendemos desse momento, para

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não reduzi-lo a um encontro total boca-seio.

O bebê, após ser acometido por uma tensão advinda do momento do

nascimento, investirá toda sua pulsão na relação oral – de extrema importância

para a constituição subjetiva da criança – que estabelecerá com o seio. Outro

aspecto relevante que se coloca é a importância de propiciar outros lugares de

investimento da mãe com o bebê para que, posteriormente, possa se dar a

separação dessa dupla (por lei, no caso das mulheres presas,após os 6 meses).

Ou seja, deve-se destacar a importância do investimento materno no momento

da amamentação – centrado na relação do bebê com o seio – para que, mais

tarde, esse investimento possa ganhar outras configurações, e que outros

objetos possam ser investidos.

Abordar esse tema é, em primeiro lugar, validar a importância do outro

na relação com o bebê para o surgimento do sujeito psíquico. Referir-se à

necessidade de um outro, não quer dizer ser uma máquina de prestação de

cuidados, mas a alguém com um interesse e um investimento especial por

esse bebê, para que ele se sinta investido e desejado.

Sob essa perspectiva, é fundamental propiciar um ambiente em que esse

investimento seja potencializado, olhado e até construído de modo a permitir

que os medos, desejos e os afetos das mães em relação aos bebês possam ter

espaço de elaboração, fator essencial para o fortalecimento do vínculo da

díade mãe/bebê. O olhar para a questão da amamentação se mostra fator

crucial, indicativo da qualidade do laço estabelecido entre a dupla, uma vez

que o contato entre os corpos durante a amamentação mostra-se como

ambiente privilegiado de investimento, de circulação de afeto entre a mãe e o

bebê.

Ao fazermos uma pesquisa convencional, nos moldes médico-científicos,

acerca do tema da amamentação, encontramos, com frequência, inúmeros

dados que indicam as vantagens e os efeitos da amamentação em relação à

saúde orgânica do bebê. Esse fato é comprovado por meio de estatísticas que

apontam baixas taxas de mortalidade e morbidade infantis quando as crianças

são alimentadas no seio. O discurso científico privilegia as qualidades nutritivas

e imunológicas do leite materno, deixando de lado os aspectos intersubjetivos

da relação mãe e filho, estabelecida no ato de amamentar.

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Sem negar a contribuição médica acerca do tema que prioriza os

aspectos biológico, imunológico e físico da amamentação, importa ressaltar a

relevância dos aspectos psíquico, relacional e intersubjetivo, para, assim, abrir

um campo de entendimento que extrapola a prevenção das doenças orgânicas

e a função puramente alimentar, da amamentação. Portanto, é importante

evidenciar a ligação estrita do processo de amamentação aos fatores

subjetivos, sensoriais e afetivos que embora muitas vezes ocorra no plano

consciente, na grande maioria dos casos passa por uma ação inconsciente

envolvendo a dupla mãe-bebê.

Venho discutindo (2013)4 a importância de se instalar um circuito da

oralidade, não apenas sob a óptica da relação prazer, envolvendo seio-boca,

engolir, preencher, calar, aquietar, pacificar, através de leite, pílulas ou

equipamentos mágicos, mas também permitindo a construção de narrativas

que transformem as vivências em experiências comunicáveis.

Cuidar do surgimento das palavras, da sua afinação com a experiência

vivida, de seu vigor e sentido; cuidar do ouvir, do balbuciar do murmurar, do

falar, do cantar, do contar do silenciar; do cuidar, enfim, da experiência inicial

com palavras, é condição para o desenvolvimento pleno desse ser simbólico

que é o homem. É ter em mente “puericultura, abrangendo as ações de cultivo

da palavra e da poesia com a criança pequena.” (Machado, 2012).

Recorro à Etimologia, para reiterar essa proposição que aproxima cultura

e colo; do latim: cultum, supino de colo, deriva outro particípio: o futuro,

culturus, o que se vai trabalhar, o que se quer cultivar. Termo referente tanto

às labutas do solo, agricultura, quanto ao trabalho feito no ser humano desde a

infância. Também do latim collum se origina colo (pescoço), territorialidade da

mãe que cuida.

Colo de mãe: braços que sustentam; seios que alimentam as cordas

vocais que vibram e a caixa torácica que ecoa acalantos. Sons calorosos,

palavras carregadas de sentimentos, pressentimentos, desejos e receios

maternos. Colo espaço do corpo da mãe propício à cultura. Mãe intermediadora

de cultura transmite elementos do anterior para o posterior, do mundo pré-

4 Texto organizado para a intervenção “Família: dinâmica psicossomática dos vínculos, narratividade e constituição subjetiva”, apresentada em mesa redonda no V Simpósio da Psicossomática Psicanalítica: Integração, Desintegração e Limites, promovido pelo SEDES Sapientia, em S. Paulo, 2013.

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existente ao filho, mas também o inverso, do filho para o mundo. Porta-voz do

filho pequeno, penetra seu mundo interior e traduz suas necessidades, seus

sentimentos, receios de desejos. Embala-o com textos de terror e ternura.

Suporta e dá suporte para o até então inominável: vazio, ruptura, desamparo.

Por tudo isso foi fundamental garantir nos grupos de púerperas e

gestantes momentos em que se recuperava as cantigas de ninar que

conheciam, suas histórias, as histórias que lhes contavam e que gostam de

ler/contar... Afinal, como apontam as cantigas de ninar e os contos infantis, o

medo do desamparo, que se configura em cucas, bruxas etc., retoma as

angústias primordiais do humano, ao se deparar com a impotência frente a

perda da ilusão de um colo que ofereceria a segurança total. “Quem canta seus

males espanta”... Os pais, ao cantarem, não estariam falando de seus medos

também? Precisam do encorajamento para suportar deixar seus filhos

crescerem num mundo sem proteção, etc..

Apresentação do mundo/função paterna.

O bebê que vem ao mundo marca um momento inédito; apesar de toda

herança que carrega é, por assim dizer, um estrangeiro que pede acolhimento

em sua cultura para poder ser civilizado. Propõe-se aqui assumir que o bebê

deve se encontrar num ambiente que pensa, apoiado no pensamento de

muitos outros que acreditam que ele pensa. Sendo assim, o nascimento de um

bebê por si só não torna seus pais pais, nem o bebê um sujeito. A mulher que o

pariu será responsável por esse momento fundante de acolhimento, mas

precisará descobrir e interpretar as expressões desse chegante para que ele se

civilize de acordo com o esperado por todos os que fazem parte de sua cultura.

No caso da penitenciária, a mãe se encontra, num primeiro momento,

sozinha para essa tarefa civilizatória. Enfatiza-se, assim, a importância de se

propiciar espaços de elaboração e fortalecimento do vínculo da díade, uma vez

que, para a mãe ser capaz de se identificar com o seu bebê e poder a conhecer

e satisfazer as necessidades dele é importante que a mulher esteja numa

condição especial para isso. Condição que a possibilite sentir-se valorizada

tanto enquanto mulher, como no desenvolvimento da maternidade e tendo

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papel fundamental no destino de seu filho.

Verificou-se que, no trabalho desenvolvido com as mães no presídio, foi

essencial propiciar atividades que incentivassem as mulheres a se olharem,

que pudessem investir e produzir algo não só para o bebê, mas nelas próprias,

considerando que é essencial a mulher estar investida e potencializada para

suportar esse lugar de “ser mãe”; afinal, nos primeiros meses de vida, como

pontua Winnicott, “não existe um bebê sem sua mãe”.

Julgamos, portanto, que um olhar e um espaço voltados especialmente

para a mulher que se encontra na fase de gravidez e puerpério na condição de

privação de liberdade são essenciais para que estas se sintam capazes e

potentes para desempenhar esse papel tão importante e complexo de

adaptação dos pares mãe-bebê nas primeiras semanas de vida do lactante.

Nessa situação, principalmente, em que a sua rede de suporte se

encontra, em sua maioria, fragilizada ou ausente, e considerando-se que essas

mulheres estão afastadas de suas referências afetivas, de seus/suas parceiras

sexuais; que a gestação implicou num processo de regressão psíquica e

transformação física para acolher um outro, provocando as angústias já

analisadas anteriormente; que elas não dispõem nem mesmo de espelhos

naquele espaço, pode-se imaginar que as condições para dar suporte ao bebê

estão prejudicadas e que o estado de enlouquecimento provisório pode se

tornar mais permanente.

Uma atividade que se mostrou muito potente sob essa perspectiva foi o

“cantinho da beleza”, um espaço no grupo em que se disponibilizavam

maquiagens, apetrechos para o cabelo, cremes, esmaltes para unhas e

espelhos. Apostava-se, assim, que o investimento em si próprias facilitaria sua

identificação com o bebê de modo a garantir a continuidade e previsibilidade

dos cuidados, fundamental para o desenvolvimento psíquico do lactante nos

primeiros meses de vida.

Tal atividade foi notável num dia em que as mães estavam muito

excitadas, animadas e felizes, enfeitando umas as outras, tendo praticamente

"esquecido" de seus filhos naquele momento, verdadeiramente dedicadas a si,

fascinadas consigo mesmas. Os bebês, que ficaram em uma roda no centro,

observavam suas mães encantados. Nenhum chorou, ficaram todos tranquilos,

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espelhados em suas mães, que estavam também tranquilas.

Na semana seguinte, porém, quando a proposta era fazer a página do

livro "Quem é a mamãe", em que deveriam contar quem eram elas para o seu

bebê, a atividade foi muito difícil de realizar: as internas apresentaram

resistência, dado o momento em que precisavam olhar para si, refletir sobre o

seu percurso de vida, suas opções. Tal atividade quase não aconteceu, porque

muitas mães não conseguiram escrever nem desenhar sobre si, demonstrando

ansiedade e angústia. Os bebês também choraram bastante e ficaram

inquietos, espelhados em suas mães. Mas o desafio era não desistir e trabalhar

para que a história desse bebê pudesse ser contada e assumida...

Uma mulher que está investida narcisicamente será mais capaz de se

apresentar como suficientemente boa, ou seja, suportará acreditar na sua

competência para atender as demandas de seu bebê e, portanto, não precisará

estar colada a ele para garantir sua potência psíquica. Permitirá que se instale

um ritmo previsível de presença e ausência, que dará apenas a ilusão ao bebê

de uma continuidade físico-psíquica com sua mãe, garantindo seu sentimento

de unidade e integração.

Alternar entre presença e ausência implica que o adulto cuidador confira

ao bebê a condição de interlocutor, pois sabe que o bebê pode esperar para

ser atendido, acreditando na sua possibilidade de apelo. Estabelecem-se assim

os primeiros ritmos para o bebê: sono-vigília, fome-saciedade, etc. Essas são

condições indispensáveis para que o bebê adquira sua potência de investir no

mundo, acreditando nas relações humanas. São as primeiras organizações para

que a simbolização aconteça, revelando que é o apelo (grito, choro, olhada)

que traz o objeto, e que ele não é onipresente. São formas de a mãe ir

anunciando que ela existe para além do filho, já que não é sua extensão,

criando assim a possibilidade de lhe convidar a olhar para o mundo, para além

de seu seio.

Winnicott descreve todo esse processo da dependência absoluta para o

de dependência relativa, característico do primeiro ano de vida do bebê até

que ele consiga atingir o estágio da independência, destacando a importância

de o cuidador garantir três condições: (i) a sustentação do sentimento de

continuidade de ser para o bebê (holding), (ii) manipulações da mãe sobre o

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corpo do bebê para atender suas necessidades, mudando-lhe de posição,

estimulando-o tonicamente para que desenvolva seu aparelho sensório motor

(handling), processo que facilita a formação de uma parceria psicossomática na

criança, e (iii) a apresentação de objetos, que introduz intermediários entre ela

e o bebê, permitindo que ele crie e recrie suas vivencias, tornando real o

impulso criativo da criança.

Pudemos constatar nos encontros com as mães presas muitas diferenças

entre elas em relação a desenvolvimento de tais funções. Algumas

estimulavam muito seus bebês, encorajando-os a investir muito nos outros e

no mundo. De certa forma desejavam para eles o “mundão”, como diziam.

Outras se apegavam aos seus bebês de forma muito fusionada, colocando-os

no peito o tempo todo, assim revelando a falta de perspectiva, tanto para si

próprias como para eles. Outras ainda não suportavam estar com seus bebês,

e preferiam que fossem logo embora.

Embora em alguns casos essas dificuldades revelassem questões

subjetivas daquelas mulheres, também foi possível perceber questões

institucionais que reforçavam o vínculo estreito da mãe com seu filho ou, ao

contrário, contribuíam para o desamparo da mulher, impedindo que

suportassem acolher seus bebês.

Uma delas diz respeito à carência de atividades, lazer e espaços

oferecidos para as mães que se encontram aprisionadas. Elas perdem o direito

de trabalhar, por estarem em licença maternidade e, frequentemente, por

estarem em espaços especiais, não usufruem as atividades escolares ou

culturais que são oferecidas nas unidades maiores.

O trabalho realizado pelos estagiários demonstrou a função essencial de

espaços que permitam a elaboração das difíceis questões inerentes à situação

da mãe que se encontra em privação de liberdade, para que estas possam

ampliar o olhar, foco e interesse para outros aspectos além do bebê. Isso

permitirá que elas consigam pensar na rede de suporte para esse bebê, assim

como olhar para si mesmas, criando um projeto futuro ao lado dessa criança.

Observou-se, em algumas unidades, nem mesmo espaços lúdicos para os

bebês são garantidos, pois são penitenciárias que tiveram que se adaptar para

receber a nova realidade. Faltam brinquedos, os ambientes físicos nem sempre

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são adequados para permitir, por exemplo, que fiquem no chão, de forma a

estimular seu desenvolvimento motor, há ausência de playgrounds, o que

compromete inclusive a visita de outros filhos, tema que será abordado mais

adiante.

Em um grupo em que a discussão sobre a carência de espaços e

atividades oferecidas para as mães e bebês veio em pauta, uma mãe disse:

“Quando a criança dorme, daí já era, não temos mais nada para fazer”. Foi

interessante essa problematização, pois as mães vinham falando com

frequência sobre a dificuldade de as crianças dormirem. Entendemos que essa

questão poderia se relacionar a um ambiente que está organizado apenas para

favorecer uma dedicação exclusiva dessas mães aos seus bebês durante 6

meses, incentivando a fusão total entre os corpos, sem garantir momentos que

promovessem intervalos e reflexões acerca do delicado período que antecede a

separação.

Winnicott (1958-1990) ensinou-nos sobre a fundamental importância de

sustentar a presença na ausência. Assim sendo, é de fundamental importância

que a mãe, ou figura substituta, consiga renunciar a oferecer seu corpo como

único consolo para o bebê se aquietar. O momento do sono marca,

incontestavelmente, a separação dos corpos e anunciaria a capacidade de o

bebê estar só. Acalentar um nenê para que durma, se aquiete, durma e sonhe,

fora do controle da mãe é uma alternativa interessante.

A solidão cantada nas cantigas de ninar, o terror, o medo, a ausência

seriam evocadas para quem? Mãe ou bebê? Lembro de: “nessa rua, nessa rua,

mora um anjo, que se chama, que se chama solidão...”. Não é difícil imaginar o

quanto, para as mulheres presas, quando são fechadas as celas à noite, a

solidão se impõe. Velar o sono do filho traz a condição solitária para quem

acompanha alguém que dorme.

Nessa perspectiva poderíamos nos perguntar o que expressam os bebês

insones. Ao ocuparem todo o espaço, buscam preenchê-lo forçando a presença

permanente do objeto, denunciando que não há afastamento possível. Não há

sonho, e as condições para simbolização se tornam precárias. Relembremos os

acalantos, onde mesmo evocando o terror e a surpresa, a enunciação da

presença/ausência da mãe, proteção/desamparo da criança se alterna em

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ritmos previsíveis e repetitivos, tornando-se organizadores da agitação, para a

entrega ao sono.

Há um tempo de espera, embalado por um ritmo encantador, que, além

de organizar a inquietude e conduzir ao sono, vinca a capacidade de espera em

níveis profundos do psiquismo infantil e materno, assim ,fundando a

capacidade da esperança. Espera, distância, ausência, condições para a

simbolização. E não só para os bebês que terão que se separar

obrigatoriamente de suas mães. Vale para todos.

Esses aspectos, muito trabalhados nos encontros com os estagiários,

forçosamente traziam as experiências de cada mulher com suas famílias e

histórias. Dessa forma ia-se tecendo as possibilidades de sustentar para cada

um dos bebês que estavam ali, um projeto de vida, a partir de sua mãe, e que

deveria contar com o apoio da rede social mais ampla, pois sabemos que

quando a mãe é capaz de ser porta-voz do mundo, este se apresenta como

uma atração para a criança.

As conversas, muitas vezes difíceis, eram permeadas pela fabricação de

brinquedos, páginas dos álbuns e contação de histórias, que gradualmente

deslocavam a posição de bandidas para a de mulheres com potências, que

podiam investir e se responsabilizar por seus filhos, mesmo sem os recursos

mágicos onipotentes aos quais muitas delas recorriam quando cometiam os

atos criminosos.

Era muito frequente nos contatos iniciais que as mulheres se

apresentassem ao grupo via crime cometido (“eu sou L., estou aqui por 157, ou

“eu sou do Partido tal”), como forma de garantir sua potência e identidade.

Falar do potencial bebê ou de seus sonhos de mãe certamente as remetia à

fragilidade e dependência. Por isso, nem sempre era fácil falarem de si, de

“quem é a mamãe”, contar da família de origem ou de “quem é o papai”,

atividades propostas em torno da produção do álbum.

Ao longo do trabalho, à medida que o grupo promovia espaços para

pensar em questões como: o que eu imagino para o meu bebê? Que mãe eu

fui/sou/ gostaria de ser? Qual foi o meu percurso? Quem eu sou para além do

“157” do código penal?, essas questões foram se transformando. As mulheres

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começaram a se apresentar como pessoas com um nome e uma história para

além do ambiente prisional.

Contudo, na mesma proporção em que a história ia se construindo, mais

dificuldades e angústias iam aparecendo. Sustentar a verdadeira história para

o bebê que ali estava, entendendo que o fato de a mãe ter-lhe assegurado não

apenas a vida, como também um projeto de vida que incluía outras referências

que não as própria mãe, as fazia, por exemplo, retomar a maternagem com

outros filhos de quem haviam se separado logo ao nascimento, eventualmente

criados por avós e sem conhecer a condição da mãe estar presa.

A ideia de poupar o sofrimento, de não poder frustrar seus filhos, além da

vergonha e culpa pela situação de aprisionamento, precisava ser enfrentada.

Portanto, procurava-se resgatar com elas o sentido do que se vinha discutindo

e descobrindo: um bebê que confia na sua mãe é capaz de se vincular ao

mundo sem, contudo, perder a referência essencial que o constituiu nos

primeiros tempos. Como alerta Mannoni: “O sentimento que um indivíduo tem

de seu lugar no mundo está igualmente ligado à maneira como, em sua vida

ele importou ou não para alguma pessoa, e importou para alguém sem ter

precisado, para tanto, apagar-se como sujeito (1982 p.60-61).

Buscava-se assim pensar com elas, por exemplo, o que estariam sentindo

seus filhos para quem foi dito que elas haviam viajado, sendo que elas não

mais apareciam, uma justificativa muito frequente para explicar a ausência da

mãe. Não seria melhor saber que elas estavam impedidas de estar com eles,

do que sentir que foram abandonados? Mas isso seguramente remeteria ao

crime e à punição, uma vez que o impedimento da presença materna se dava

por uma ordem judicial.

Separar a criminosa da mãe nem sempre era fácil. Implicaria na

responsabilização da mãe pelos seus atos antissociais, o que não a tornava

necessariamente uma mulher incapaz de investir amorosamente em seu filho e

se responsabilizar pelo seu destino, implicando-se, inclusive, na sua educação.

É preciso abrir um parêntesis nessa discussão, para dizer da expectativa

criada por esse projeto de trabalho junto às mães presas, de que a mulher

pudesse, nesse processo, recolocar-se frente à situação de frustração, de

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imposição de limites, e, quem sabe, construir um novo projeto de vida para si

própria que não reproduzisse o ato criminoso.

Se ela conseguisse suportar a falta do filho sem negar os conflitos e

frustrações decorrentes da sua impossibilidade de controlar totalmente sua

existência no mundão, assim dependendo de outros que fariam sua função, na

esperança de poder retomar seus cuidados diretamente, talvez pudesse se

organizar de outra forma que não transgredindo.

Novamente destaca-se aí a importância da troca entre as mulheres no

grupo, onde compartilhavam vivências diferentes, nesse sentido. Havia aquelas

que, sim, faziam questão de se fazer presentes e recebiam visitas dos filhos,

que podiam encorajar as outras sobre a importância do laço entre eles.

Gradativamente percebia-se que a possibilidade de fortalecimento do vínculo

mãe-bebê sustentado naquele espaço tornava possível imaginar um destino

para o futuro bebê “fiado” pela mãe. Sua ausência poderia ser simbolizada,

não negada. Conversava-se que, para além do álbum poderia haver cartas,

garantia das visitas, comprometimento da mãe nas decisões sobre o futuro da

criança, como decidir creche, escola, quem ficaria com a criança, etc.

Ampliava-se assim o vínculo mãe-bebê para a relação com outros e mais

outros.

A função paterna, como mencionamos, estava garantida assim, por mais

doloroso que fosse anunciar o imprevisível e incerto. Aliás, o tema do pai era

bastante conflituoso. Estabelecia-se muitas vezes uma confusão entre o próprio

pai e o pai da criança, evidenciando a falta que a figura paterna representava.

Era fundamental, entretanto, refletir sobre o homem-marido, o homem-pai, o

homem-amante, sobre o papel da figura masculina em suas vidas e na vida dos

bebês, possibilitando assim a identificação da criança com seu pai, mesmo que

ausente.

Isso porque a referência à origem remete a criança a sua posição na

genealogia familiar, elemento constituinte de sua subjetividade, marcando a

ruptura com o corpo de sua mãe. Françoise Dolto e Caroline Elliachef (1995),

psicanalistas francesas, com larga experiência no tratamento de crianças que

sofreram rupturas significativas em suas vidas, apontam para a fundamental

importância de se falar a verdade de sua história, propondo que “a verdade

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colocada em palavras redinamiza” (DOLTO, 1991), trazendo experiências

significativas que revelam que o bebê percebe, através das diferenças no

ambiente, nos odores, no tato e por meio das sensações de seu corpo, os fatos

que ocorrem em sua vida, como a separação em relação à mãe, no caso em

questão.

Procuramos discutir ao longo deste texto as condições para que esse

corte seja constitutivo e não mais uma violência arbitrária. A evocação da rede

significativa para o bebê, que funda sua história, que garante que ele importa

para o mundo, pode, sim, ser sustentada pela mãe. Mas isso só é possível se

ela também é sustentada. Por isso, é essencial compartilhar todas essas

concepções com as equipes técnicas e agentes penitenciários para relativizar a

concepção de que amamentação, apenas no sentido do aleitamento, como

representado no próprio nome da unidade, Centro de Atendimento Hospitalar à

Mulher Presa (CAHMP) - Trânsito Amamentação garante as condições para o

desenvolvimento saudável do bebê. Sustentar espaços para valorização das

mulheres, das histórias de vida, dos vínculos significativos é primordial para se

garantir, de fato, os direitos de cidadania às mulheres e aos bebês.

Vale lembrar que ter acesso à própria história implica em garantir às

mulheres o conhecimento em relação ao andamento do processo judicial, à

definição das sentenças, às visitas dos familiares, ao envio das cartas, à

localização das famílias, aos pais das crianças, às visitas aos médicos, bem

como à articulação com o hospital onde as crianças eventualmente estão

internadas quando necessitam de hospitalização.

A esse respeito, um dos temas recorrentes nos grupos com as mães

referia-se à angústia por não receberem quase nenhuma informação sobre o

estado de saúde de seus bebês quando eram hospitalizados. As presas ficavam

muito nervosas pela falta de notícias e por não saberem quando seus bebês

iriam voltar. Nem sempre era garantida a atualização das informações, e

comentava-se sobre a resistência do hospital em atualizar a contento o estado

de bebê. Essa “má vontade” do hospital foi relacionada à “aura que envolve a

penitenciária”. Relataram também que as pessoas enxergam a prisão como

“lixo social”, que têm medo de qualquer relação com ela e que, por isso,

qualquer comunicação era muito difícil.

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Outro tema frequente nos grupos, relacionado à questão da rede social,

diz respeito ao abrigo. O número de crianças que vai para o abrigo é

relativamente pequeno; a maioria são os filhos das mães estrangeiras ou de

mães que moram em outros estados, cuja família não consegue recursos para

buscar esses bebês e, alguns raros casos, de mulheres que não têm com quem

deixar os seus filhos. Ainda assim, o tema do abrigo era recorrente e

percebemos que muitos medos e mitos o permeavam.

As internas tinham dúvidas sobre como se dá o funcionamento da

instituição, dizendo não confiar na mesma, e não saber nem como funcionava

a escolha do abrigo para o qual iriam seus filhos, e tampouco quem seriam

seus cuidadores. O abrigo aparecia nos grupos na imagem dos orfanatos, de

que as crianças não seriam bem cuidadas, e a possibilidade da adoção como

uma certeza.

Discussões sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e direitos

da criança acolhida e sua família foram motivos de muitos encontros, assim

como o papel do Fórum nos encaminhamentos dos bebês e a importância da

implicação da mãe nesses processos. A mobilização da assistente social como

mediadora dessas relações se fazia essencial, mas, sem dúvida, a mãe precisa

acreditar na importância de seu investimento no filho para insistir na

manutenção de seu vínculo com ele, não abrir mão de seu poder familiar,

cobrar as visitas, fornecer informações sobre a família extensa, valorizando

também sua presença (família) no abrigo e, quem sabe, organizando-se para

ficar com a criança.

A partir das questões trazidas pelas detentas em relação ao hospital e

aos abrigos pudemos perceber a dificuldade de articulação da penitenciária

com a rede social. O presídio apresenta-se para as outras instituições como um

lugar de ameaça, ao mesmo tempo em que não busca outra forma de se

mostrar e trabalhar, acabando por legitimar o que os outros pensam sobre a

população que atende.

Esse distanciamento acaba ocorrendo também com relação aos fóruns

em que estão acontecendo os processos das presas. Parte das mães não sabe

como está o seu processo, muitas não vêem seus advogados há algum tempo,

e pode acontecer de não virem buscá-las quando vão ter uma audiência. Pode-

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se perceber que existe uma dificuldade de todo o sistema em trabalhar com

esse tipo de população, juntando-se ao bloqueio dificuldade que as próprias

detentas têm de olharem para si e de se cuidar.

O papel da instituição nesse processo mostrou-se extremamente

importante. Buscar uma maior articulação com os fóruns, com os abrigos,

consulados, serviços jurídicos, o hospital para onde podem ir as crianças,

mantendo assim uma rede estruturada entre todas essas instituições, é

fundamental para garantir a circulação de informações. Isso é condição para

um melhor atendimento às mães e seus filhos, uma vez que a falta de

informação, muitas vezes, é geradora de fantasias, angústias e medos que

podem repercutir de forma negativa na saúde mental dos bebês. Reuniões

entre essas instituições podem contribuir para que essa rede de fato se forme.

É notável também a separação e o distanciamento existente entre os

atores da instituição. A direção, o setor administrativo, os agentes

penitenciários, os enfermeiros, psicólogos, entre outros profissionais, e as

detentas, cada um ocupa um papel que está muito distante do outro. A

articulação entre eles é pequena e não é constante.

Sob essa perspectiva também se mostrou muito relevante a necessidade

de realizar um trabalho com os funcionários das penitenciárias, especialmente

com aqueles que lidam diretamente com as mães e os bebês. Considerando

que o trabalho dentro de uma penitenciária já é complexo e envolve questões

difíceis, no caso deles essa tarefa se torna ainda mais delicada e importante,

pois, assim como as mães, todos os funcionários também fazem parte da

formação dessas crianças. Muitos dos mitos e resistências já apontados neste

texto poderiam ser trabalhados, contanto que se criasse um espaço de escuta

e sustentação para esses funcionários, que também são afetados pela

complexa dinâmica que envolve a chegada de um bebê.

Queremos ainda ressaltar a importância da participação das detentas no

investimento do espaço que as acolhia, de forma a adequá-lo para o

acolhimento aos bebês. O fato de muitas penitenciárias ainda não estarem

adaptadas para receber as mães e seus bebês fez com que, ao longo do

processo do estágio, esses aspectos fossem questionados de forma a se pensar

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estratégias para tentar modificar minimamente aquele local. Era frequente a

queixa das mães em relação à falta de recursos para os bebês que não

possuíam nenhum tipo de brinquedo, e que nem mesmo as famílias podiam

entrar com esses objetos.

Rodas de conversa incentivaram as mulheres a pensar em projetos para

enfeitar as celas e estimular, de alguma maneira, o ambiente para os bebês.

Muitas idéias surgiram: cartazes, para deixar os espaços mais coloridos,

chocalhos, mordedores ou móbiles. Vale destacar que essas atividades não

desresponsabilizam o poder público de realizar os devidos investimentos na

construção e manutenção dos espaços prisionais, no sentido de garantir os

direitos humanos da população atendida.

Por outro lado, destacamos a relevância de projetos que implicam os

detentos na participação de atividades educativas e culturais para se pensar a

reabilitação possível. Sob essa perspectiva, vale comentar que, como recurso

de mobilização, os grupos para confecção de brinquedos resgataram, com as

mães, as atividades de que gostavam de brincar quando crianças. Evidenciou-

se, então, que muitas falavam de uma infância já ligada ao crime, da

frustração por não possuir objetos de desejo e o roubo como tentativa de

compensação, muitas vezes sob testemunho e cumplicidade dos familiares. Por

isso mesmo, a confecção de objetos por elas próprias, que iam sendo usados

pelos bebês e incorporados no espaço compartilhado, tornando-o investido por

elas, teve um grande valor. Assim, as marcas de tinta que lambuzavam as

mãos de mães e bebês, carimbadas nos cartazes, cartões, brinquedos, iam às

vezes se espalhando pelo chão: corações, manchas coloridas, nomes, tornando

o ambiente, pelo menos durante o grupo, mais lúdico e colorido. Alguns

cartazes e objetos produzidos por elas acabaram sendo incorporadas ao

espaço comum, enfeitando as paredes.

Concluindo

Entendemos que o trabalho desenvolvido pelos estagiários funcionava à

base de um lento e paciente contágio, microafetações que, aos poucos, davam

conta de resgatar uma sensação de vida necessária a um ambiente

suficientemente bom, e por consequência, à mãe que geraria esse espaço em

seu próprio corpo e em seu próprio espaço de residência provisória.

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Visto que a assistência, cuidado e atenção às gestantes e puérperas em

situação de privação de liberdade é um direito constitucional, consideramos de

extrema importância garantir um trabalho voltado para esse público, de modo

a proporcionar espaços em que a saúde psíquica possa estar em pauta,

trabalhando a valorização dessas mulheres (mães ou futuras mães) não só no

aspecto do ser mãe, como também no de ser mulher, contribuindo para o

reconhecimento e responsabilização dessas mulheres para que possam

desenvolver a maternidade do filho que vai nascer.

Mostra-se, também, a necessidade de se trabalhar, por um lado, com o

processo de identificação dessas mães com os seus bebês e, por outro, de

poder refletir e elaborar a consequente separação inerente à situação da dupla,

fatores esses que se mostram essenciais para que essa mulher seja capaz de

dar sustentação para a constituição psíquica da criança.

Os objetos produzidos durante os grupos possibilitaram que as mães

materializassem o investimento em seus filhos, promovendo reflexões

importantes acerca da construção de um projeto de vida para ambos, aspecto

que se mostra essencial dentro de uma instituição prisional. Esses objetos ao

mesmo tempo testemunhavam os processos que ali ocorriam, convocando

todos que participavam da vida institucional a se posicionarem.

Pensamos ter demonstrado como foi possível tecer uma rede de

sustentação simbólica, condição necessária para a constituição da

subjetividade do sujeito humano, permitindo que ele ocupe o seu lugar de

cidadão, num ambiente aparentemente hostil.

É, portanto, fundamental que se siga investindo não apenas na

construção de presídios que satisfaçam às condições básicas de atendimento à

população carcerária, respeitando os direitos humanos daqueles que lá

convivem, mas também na formação dos trabalhadores desse sistema. A

proximidade com a vulnerabilidade e violência características desse espaço

mobiliza muita angústia e mecanismos de defesa, nem sempre adequados

quando se almeja apoiar os direitos dos detentos.

A situação das mães e bebês no presídio torna essa questão mais aguda,

como apontamos. Por essa razão, destacamos as possibilidades de integração

entre diferentes setores técnicos e profissionais que ocorreram durante os

estágios, assim como a realização de um Curso de Atualização Profissional em

Assistência Materno-Infantil, realizados em 2013. Esse curso foi promovido pela

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Coordenadoria de Saúde da Secretaria de Estado de Administração

Penitenciária (SAP), visando conjugar esforços na estruturação de ações

referentes à temática da Assistência à Saúde Materno-Infantil e Reintegração

Social das unidades femininas. Uma equipe de especialistas foi contratada para

ministrar o curso para técnicos de saúde, assistentes sociais, agentes de

segurança, trabalhadores de unidades prisionais da SAP que acolhem

gestantes e púerperas em período de amamentação.

Oxalá a oportunidade de publicar este texto contribua e inspire o

desenvolvimento de projetos semelhantes, constituindo-se em oportunidades

criativas para que a população sob medida de privação de liberdade encontre

alternativas de inserção social.

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