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TÓPICOS ESPECIAIS DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA

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Imagem da capa: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/b/b8/John_Locke.jpg

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José Dias Ademir Menin Junior Cunha

(Organizadores)

AUTORES: Doriedson Alves da Rosa/Erickson Rodrigues do Espírito

Santo/Geraldo Luiz Cheron/Késia Priscila Gomes Gentil/Patrícia Riffel de Almeida/Rafael Leite Ferreira Cabral/Lurdes de Vargas Silveira Schio/Péricles Ariza/Reginaldo César Pinheiro/Whesley

Fagliari dos Santos

TÓPICOS ESPECIAIS DE ÉTICA E FILOSOFIA POLÍTICA

Volume I John Locke

Primeira Edição E-book

Toledo - PR

2018

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Copyright 2018 by Organizadores EDITORA:

Daniela Valentini CONSELHO EDITORIAL:

Dr. José Aparecido Pereira – PUCPR Dr. José Beluci Caporalini – UEM

Dr. Luiz Carlos Lückmann - UNOESC REVISÃO FINAL:

Prof. Luciana Bovo Andretto CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:

Junior Cunha Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

Rosimarizy Linaris Montanhano Astolphi Bibliotecária CRB/9-1610

Todos os direitos reservados aos Organizadores. Todos os textos publicados nesta obra são de exclusiva responsabilidade dos seus

respectivos autores e coautores. Editora Vivens

Conhecer é Poder! Fone: (45) 3056-5596

Site: http://www.vivens.com.br E-mail: [email protected]

Tópicos especiais de ética e filosofia política:

T674 vol I: John Locke / organizadores José Dias

Ademir Menin, Junior Cunha; autores, Doriedson

Alves da Rosa ...[et al]. – 1. ed. e-book –

Toledo, PR: Vivens, 2018.

132 p.

Modo de Acesso: World Wide Web:

<http://www.vivens.com.br>

ISBN: 978-85-92670-68-9

1. Filosofia. 2. Locke, John. 3. Ciências

políticas. 4. Direito natural. I. Título.

CDD 22. ed. 100

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SUMÁRIO

APRESENTAÇÃO ................................................................... 9

I O PERFIL FILOSÓFICO DE JOHN LOCKE

Geraldo Luiz Cheron

Reginaldo César Pinheiro................................................................ 11

II A PROPRIEDADE NOS DOIS TRATADOS

DO GOVERNO CIVIL, DE JOHN LOCKE

Whesley Fagliari dos Santos

Késia Priscila Gomes Gentil ........................................................... 31

III A SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL:

origem, finalidade e legitimidade

Doriedson Alves da Rosa

Patrícia Riffel de Almeida .............................................................. 51

IV GOVERNO CIVIL ........................................................... 69

Rafael Leite Ferreira Cabral

Erickson Rodrigues do Espírito Santo ............................................ 69

V A LEI E O DIREITO NATURAIS ............................... 85

Lurdes de Vargas Silveira Schio

Péricles Ariza ................................................................................ 85

VI O DIREITO DE RESISTÊNCIA À TIRANIA .... 107

Péricles Ariza

Lurdes de Vargas Silveira Schio ................................................... 107

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APRESENTAÇÃO

Com alegria apresentamos aos acadêmicos de Filosofia esta obra que recolhe trabalhos oriundos de reflexões acontecidas durante o seminário de Tópicos Especiais de Ética e Filosofia Política no ano de 2017, onde foram estudados os dois tratados do governo civil de John Locke.

No primeiro capítulo, os professores Geraldo Luiz Cheron e Reginaldo César Pinheiro traçaram um perfil filosófico de John Locke.

No segundo capítulo, os professores Whesley Fagliari dos Santos e Késia Priscila Gomes Gentil trabalharam o conceito de propriedade nos dois tratados do governo civil de John Locke.

No terceiro capítulo, os professores Doriedson Alves da Rosa e Patrícia Riffel de Almeida trabalharam o problema da sociedade política ou civil: origem, finalidade e legitimidade em John Locke.

No quarto capítulo, os professores Rafael Leite Ferreira Cabral e Erickson Rodrigues do Espírito Santo trabalharam o conceito e as problemáticas envolvendo o governo civil em John Locke.

No quinto capítulo, os professores Lurdes de Vargas Silveira Schio e Péricles Ariza trabalharam os temas da lei e direito naturais em John Locke.

No sexto capítulo, os professores Péricles Ariza e Lurdes de Vargas Silveira Schio também trabalharam o direito de resistência à tirania em John Locke.

Boa leitura!

Os Organizadores

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I

O PERFIL FILOSÓFICO DE JOHN LOCKE

Geraldo Luiz Cheron* Reginaldo César Pinheiro**

INTRODUÇÃO

A tarefa de estudar o perfil filosófico de John Locke (1632-1704), parecia ser aparentemente fácil, já que o renomado filósofo inglês possui uma extensa bibliografia e uma infinidade de estudos elaborados ao longo dos mais de trezentos anos que sucederam a sua morte. Todavia, justamente a causa desta imensidão de escritos é que tal tarefa se revela ser a mais desafiadora. Afinal, o que poderia ser acrescentado sobre Locke que já não se tenha escrito?

Diante de tal interrogação é que se tem a mais importante constatação a respeito de Locke: ninguém consegue passar indiferente à sua filosofia. Seja para criticar ou para enaltecê-lo, Locke é um filósofo de estudo obrigatório da Filosofia, tanto pelas ideias que defendeu, como pelo pioneirismo que, talvez sem saber, ajudou a construir.

* Licenciado em Filosofia/UPFRGS. Especialista em Filosofia da História e Filosofia da Ciência, e em Pedagogia Escolar. Professor no Colégio Estadual Pedro II, Núcleo Regional da Educação de Umuarama. E-mail: [email protected]. ** Mestrando em Filosofia na Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE). Advogado no Paraná, com pós-graduação lato sensu em Docência do Ensino Superior pela Universidade Paranaense (2003) e em Direito Aplicado, pela Escola da Magistratura do Paraná (2012). E-mail: [email protected].

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O fato é que o estilo de Locke, considerado “claro, conciso e simples, tranquilo, racional, com grande senso comum; de argumentos simples, sóbrios, equilibrados, realistas e moderados” (VÁRNAGY, 2006, p.46), podem ter contribuído para a melhor difusão de suas ideias. O desejo de mudança e reforma, tanto no campo da filosofa política, quanto no campo da epistemologia foram características marcantes do pensamento de Locke (YOLTON, 1996, p.9).

Para Carreres (2016) a obra de Locke responde a três eixos fundamentais: a teoria do conhecimento, a economia e a propriedade. E acrescenta:

con estos tres ejes, sobre todo, Locke construye un edificio cuya figura central es el hombre individual, puesto que no existe un orden natural que trascienda al hombre y al cual pertenezca (p. 550).

Com vistas a evidenciar tais características, o estudo

foi desenvolvido destacando-se inicialmente a vida de Locke, o período histórico em que nasceu e viveu, bem como a sua formação acadêmica e os autores que serviram como fontes para Locke, vale dizer, que de alguma forma influenciaram seu pensamento. Em um segundo momento, tratou-se de analisar as suas principais ideias, que o fizeram tornar-se o Locke expressivamente conhecido.

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Perfil Filosófico... 13

1.1 NOTÍCIAS BIOGRÁFICAS

Na obra Dicionário Locke (1996), John W. Yolton caracteriza Locke como uma “das maiores contribuições intelectuais para a filosofia, a teoria política e a educação”. Os 72 anos de vida de Locke (1632-1704) foram marcados por muita agitação social e uma extensa atividade intelectual. Nascido em 29 de agosto de 1632, na cidade de Wrington, Somerset, sob o governo da dinastia Stuart, mais precisamente do rei Carlos I (1625 a 1649). Em 1646 Locke é admitido na Westminster School. Já em 1652, Locke obtém uma bolsa de estudos na Christ Church, da Universidade de Oxford. No ano de 1656, Locke conclui o bacharelado em humanidades e em 1658 obtém o grau de mestre na mesma área. Em 1664, é nomeado sensor de filosofia moral na Christ Church. Em 1668 é eleito membro (“fellow”) da já então prestigiada academia de ciências inglesa Royal Society.

Em 1671 Locke inicia a sua produção bibliográfica, ao escrever o primeiro esboço do Ensaio. No ano de 1673, inicia suas atividades como secretário do Conselho de Comércio até o final de 1674.

Em 1675, Locke obtém o grau de bacharel em Medicina. Apesar de receber pouco destaque em suas biografias – que evidenciam apenas os escritos filosóficos – Locke também teve alguns escritos médicos tais como Morbus (1666), Respirationis Usus (1666 ou 1667), Anatomie (1668), De Arte Medica (1669) e Methodus Medendi (1678). Tais textos, segundo Sánchez são “todos eles muito breves, mas cheios de reflexões, e que são um ponto de partida para saber até que ponto suas opiniões médicas estavam em conexão com suas doutrinas consideradas canonicamente como mais ‘filosóficas’.”1 (2008, p. 97).

1 Em tradução livre, abstraído do original: [...] todos ellos muy breves, pero cuajados de reflexiones, y que son un punto de partida para conocer em qué medida

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Em 1683 chega à Holanda, onde permanece até 1689. Em 1696 Locke é nomeado um dos comissários da Comissão para o Comércio e Plantações.

Na obra Ensaio acerca do Entendimento Humano critica as filosofias de Platão e Descartes, ao refutar o inatismo platônico. Já em Dois Tratados é possível notar a presença da filosofia de Filmer e Hobbes, ainda que para refutá-las. Afinal, anota Almeida:

Percebe-se que embora a contragosto, Locke pode ter absorvido mais do que esperada desta doutrina [referindo-se a Filmer], fazendo dela algo importante na constituição de sua teoria política – o que aliás é indicado pelas constantes referências a Filmer no Segundo Tratado (2005, p. 185).

Ao longo de sua produção intelectual Locke escreveu sobre metafísica, educação, filosofia política, economia e religião. Então a sua obra foi influenciada por grandes filósofos, como Platão, Aristóteles, Tomás de Aquino e Ibn Tufail; também os seus contemporâneos, tais como: Hugo Grotius, Richard Hooker, Robert Filmer, René Descartes e Tomas Hobbes.

Locke falece em 28 de outubro de 1704, deixando como principais obras Cartas sobre a Tolerância (1689), Dois Tratados sobre o Governo (1689), Ensaio acerca do Entendimento Humano (1690) e Alguns Pensamentos sobre a Educação (1693). Suas últimas palavras ilustram verdadeiramente o que significou sua filosofia: “Já vivi bastante e agradeço a Deus por ter gozado uma vida feliz; mas, na verdade, esta vida não passa de vaidade” (BOBBIO, 1997, p. 91) e em sua lápide algo que, pode-se dizer, seja a sua última contribuição: Hic juxta situs est Johannes Locke. Si qualis fuerit rogas, mediocritate sua

sus opiniones médicas estuvieron en conexión con sus doctrinas consideradas canònicamente como más ‘filosóficas’.

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contentum se vixisse respondet (“Aqui repousa Johannes Locke. Se perguntares como terá sido, responderá que viveu satisfeito com a sua mediocridade”).

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1.2 JOHN LOCKE E A TEORIA DO CONHECIMENTO

No campo do conhecimento, Locke que se destacou por ser o protagonista do empirismo (em contraponto ao inatismo), questiona tal tese por entender que todo conhecimento nasce a partir da experiência. Na obra O Ensaio acerca do Entendimento Humano (An Essay concerning Human Understanding), de 1690, Locke entende que a experiência é a fonte do conhecimento e que, posteriormente, mediante esforço da razão é que se desenvolve. Questionava tanto os princípios do conhecimento quanto a ação moral que os rejeita como princípios inatos. Rompe com aquela visão de transcendência e coloca toda a sua reflexão na imanência dos fatos, para fazer deles explodir a racionalidade. “Quem desconhece que, por se tratar da faculdade mais nobre da alma, é utilizado com maior e mais constante alegria que outra qualquer” (LOCKE, 1991, p. 3), pois enobrece a essência humana e a coloca num formato de evolução constante.

Locke pretende realizar uma investigação sobre o entendimento humano para certificar-se de como as ideias aparecem na mente e como elas podem ser percebidas. Uma coisa ele garante: “a maneira pela qual adquirimos qualquer conhecimento constitui suficiente prova de que não é inato” (LOCKE, 1991, p. 13). Refutava a afirmação daqueles que acreditam nos princípios inatos do conhecimento. Enaltecia o conhecimento empírico: “Seria um erro pensar que o empirismo é repúdio da razão. Ele é uma maneira diversa de conhecer a razão” (LARA, 1986, p. 40). Não tem fundamento aquele pensamento de que a alma em seu estágio inicial recebe tais especificidades e espera contribuir:

Como os homens, simplesmente pelo uso de suas faculdades naturais, podem adquirir todo conhecimento

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que possuem sem a ajuda de quaisquer impressões inatas e podem alcançar a certeza sem quaisquer destas noções ou princípios (LOCKE, 1991, p. 13).

Há dois princípios de consentimento universais, um especulativo e outro prático aceito por todos os homens, que tentam provar que o inatismo é algo que existe desde os primórdios dos tempos como algo concreto e real, mas tal argumento não tem consistência própria, pois se baseia num consenso de aceitação geral, que é possível, mas não tem como ser válido como prova. Não há como afirmar este precedente, porque tal coisa não existe. Algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo. Se não é, não existe e não pode ser conhecido por todos os seres humanos. Não vale como máxima universal. Por que “qualquer coisa que é, é” e “é impossível para a mesma coisa ser e não ser” (LOCKE, 1991, p. 13), tais proposições sobre o inatismo estão muito aquém de uma expectativa universal, não são válidas e por isso impossíveis de acontecer.

Locke justifica tal prerrogativa afirmando que não são suficientes para serem concretizadas, porque se estão naturalmente na mente humana (inatas), seriam perceptíveis e notórias em todas as pessoas, mesmo que estas tivessem alguma disfunção cerebral. Neste caso, mesmo assim elas deveriam estar ali. Se tais ideias estão impressas na alma ninguém poderia ser privado delas porque seriam de ordem da natureza. Logo, mesmo as pessoas com dificuldades mentais, ou crianças, não teriam como ficar de fora desta classificação. Então, como comparar seres da mesma espécie de mais racionais ou de menos racionais, mais inteligentes e menos inteligentes? “Esta falha é suficiente para destruir o assentimento universal que deve ser necessariamente concomitante com todas as verdades inatas” (LOCKE, 1991, p. 14). Essa é uma prova de que não há conhecimento humano absoluto e que ninguém consegue atingir a verdade definitivamente, pois o conhecimento humano se embasa

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em fatos e, por mais que o homem os observe, não irá ver neles necessidades. É muito contraditório ter algo impresso na mente e não perceber. Ou seja:

Se, portanto, as crianças e os idiotas possuem almas, possuem mentes, dotadas destas impressões, devem inevitavelmente percebê-las, e necessariamente conhecer e assentir com estas verdades; se ao contrário, não o fazem, tem-se como evidente que essas impressões não são noções impressas, como podem ser desconhecidas? Afirmar que uma noção está impressa na mente e, ao mesmo tempo, afirmar que a mente a ignora e jamais teve dela qualquer conhecimento, implica reduzir estas impressões a nada. Não se pode afirmar que qualquer proposição está na mente sem ser jamais conhecida e que jamais se tem disso consciência. Portanto, se a capacidade de conhecer consiste na impressão natural disputada, decorre da opinião que cada uma das verdades que um homem jamais chegará a conhecer será considerada inata (LOCKE, 1991, p. 14).

Segue-se disso que a mente humana está sobrecarregada de impressões, de ideias, mas que muitas vezes por um motivo ou por outro, se nunca forem despertadas por algo ou alguém, muitos nunca irão conseguir acessá-las. Ou todas as verdades estão impressas em todos e todos os seres humanos de tal forma podem percebê-las e nesse caso devem ser inatas, ou inutilmente alguém conseguirá distingui-las, confirmando a impossibilidade de serem inatas. Existem duas possibilidades para justificar o modo como assimilar ou apreender as coisas: no pensamento inatista, a razão e todo conhecimento humano surgem primeiro dentro da cabeça de cada pessoa de forma natural, ou seja, as ideias são inatas; contudo, “se a razão os descobre, não é uma prova de que são inatos” (LOCKE, 1991, p. 14).

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Os que defendem o inatismo alegam que quando o homem atinge certo grau de uso da razão consegue provar que estas são inatas ou que a partir do momento em que começam a exercitá-las eles passam a descobrir tal princípio. Mas isso implicará em afirmar que tudo aquilo que for manifestado pela razão estão impressos na mente, mas essa afirmação não tem nenhuma validade, pois “Aquilo que a razão descobre é falso” (LOCKE, 1991, p. 15, § 9). Não tem sentido descobrir algo que já está descoberto, revelado. Não pode ser inato tudo aquilo que a razão conhece. Se for inato é inútil dizer que a razão precisa conhecê-lo, pois já está ali, existe. São verdades que estão impressas na mente e esta os conhecia desde sempre. Se elas se manifestam antes mesmo do uso da razão pode-se dizer que os homens as conhecem e não as conhecem. Isso prova que elas não são inatas.

Há duas máximas que não são inatas: uma delas são a matemática e outras verdades inatas. A primeira carece da razão para ser provada. A outra, contudo, assim que for entendida, não precisa de nenhum raciocínio para ser compreendida e assentada. Isto será abordado mais adiante. A razão não contribui para a compreensão destas máximas. Possuí-las absolutamente é inteiramente falso e se isso provasse alguma coisa à conclusão a que se chega seria de que elas são totalmente falsas. Porque é evidente que tais máximas não existem na mente “tão cedo quanto o uso da razão” (LOCKE, 1991 p. 15, § 12). É falsa essa hipótese, porque o que se percebe nas crianças e nos ignorantes e em povos selvagens, é que não há nada que prova que eles pensam tais coisas em suas cabeças racionalmente, pois estas não estão naturalmente formadas em suas mentes. Se assim estivessem, provavelmente seriam inatas, mas não o são. Mesmo que “a posse do uso da razão fosse o instante de sua descoberta, isto não as provaria inatas” (LOCKE, 1991, p. 16, §14). Não importa se o uso da razão fosse antecipado, se

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20 Tópicos Especiais de Ética e Filosofia Política

já estivesse originalmente impressa na mente, não poderia ser aceito como inatos.

Os caminhos que a mente percorre para alcançar a verdade segue uma via diferente do inatismo. A mente vai captando aos poucos as informações que são adquiridas pela experiência. As verdades vão sendo obtidas por meio de leituras que se acumulam com o valor das experiências do passado e, por sua vez, estão a depender continuamente de experiências futuras. Segundo Lara, “a leitura continua em ato; a verdade está sempre se fazendo e, muitas vezes, se refazendo; o homem não pode repousar em aquisições definitivas” (LARA, 1986, p. 40). John Locke até concorda que algumas verdades podem ser adquiridas mais cedo ou mais tarde pela mente das pessoas, mas mesmo assim, não podem ser consideradas inatas. Elas, primeiramente aparecem de modo externo na mente e somente depois acabam sendo assimiladas, mas apenas dando a impressão de que são inatas, de que já estavam ali desde os tempos primitivos, mas que na verdade elas são frutos da experiência vivida pelo homem em determinadas circunstâncias e supõem o uso da memória para retê-las e receber ideias bem diferentes. Se isto é existente naquele instante ou não, uma coisa é certa:

Existe muito antes do uso de palavras, ou chega antes do que ordinariamente denominamos ‘uso da razão’, pois uma criança sabe como certo, antes de falar, a diferença entre doce e amargo. Os sentidos inicialmente tratam com ideias particulares, preenchendo o gabinete ainda vazio, e a mente se familiariza gradativamente com algumas delas, depositando-as na memória e designando-as por nomes. Mais tarde, a mente, prosseguindo em sua marcha, as vai abstraindo, apreendendo gradualmente o uso dos nomes gerais. Por este meio, a mente vai se enriquecendo com ideias e linguagem, materiais com que exercita sua faculdade discursiva. E o uso da razão torna-se

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diariamente mais visível, ampliando-se em virtude do emprego desses materiais. Embora a posse de ideias gerais, o uso de palavras gerais e a razão geralmente cresçam juntos, não vejo como isto possa de algum modo prová-las inatas (LOCKE, 1991, p. 16, § 15).

Se tal ação representa o inatismo, pode-se dizer que “um mais dois é igual a três, que doçura não é amargura” (LOCKE, 1991, p. 17, §18), e que outras coisas mais de mesma natureza tendem a ser inatas. Pensar assim é um princípio seguro? Para o filósofo em questão, não, pois estaria negando a possibilidade do ser humano construir o seu pensamento a partir da própria experiência. Nesse sentido o que se percebe é que o conhecimento humano não pode ser algo definitivo, absoluto, não se pode atingir a plenitude da verdade de modo absoluto. Dessa forma, o empirismo coloca em dúvida toda a verdade até então defendida no mundo ocidental: “Negando a intuição intelectual e situando o conhecimento humano no plano do sensível ou do empírico, o empirismo vai tirar do homem fundamentos definitivos e dogmáticos” (LARA, 1986, p. 40).

Outra problemática que Locke discute se refere à possibilidade da não existência de “princípios práticos inatos” (LOCKE, 1991, p. 18, §1). Trata-se, segundo ele, “de princípios que dizem estarem gravados nos corações, mentes e almas – princípio, proposições ou verdades” (YOLTON, 1993, p. 130). São ideias que compõem as proposições e dividem-se em duas: a primeira se refere aos princípios morais práticos, que determina o que cada pessoa deve fazer ou como deve agir. Seriam: “Existe um Deus”, “promessas tem que ser respeitadas”, “Devemos honrar e respeitar nossos pais”, “Não devemos ferir ou causar dano a ninguém” (IDEM, p. 130). São injunções morais, práticas que pensavam ser inatas, mas que são questionáveis sob o ponto de vista lockiano; são princípios que não são aceitos como universais.

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Uma segunda questão que ele coloca é sobre os princípios lógicos (especulativos), são também considerados inatos, princípios de demonstração: “O que é, é e é impossível para a mesma coisa ser e não ser” (YOLTON, 1991, p. 130). Segundo alguns pensadores estes seriam a base de toda demonstração, portanto, inatos. Locke sem dúvida refutou tal ideia. Isso lhe custou muitas críticas, dentre elas as de William Sherlock, que as expressou do seguinte modo: “que a negação de ideias inatas, de quaisquer impressões naturais conatas e Ideias de um Deus, e de Bem e Mal, abala a religião e abre caminho para o ateísmo” (YOLTON, 1993, p. 131) ao que Locke respondeu, a proposição “Deus é para ser cultuado” é, “Sem sombra de dúvida, uma Verdade tão grande quanto qualquer outra que possa penetrar na mente do homem, e merece ocupar o primeiro lugar entre todos os princípios práticos” (YOLTON, 1993, p. 131) – mas não é inata, uma vez que as ideias que compõem essas proposição não são inatas.

Desse modo, o homem é convidado a superar a era das verdades eternas e acabadas, defendidas pelo dogmatismo, passando para uma nova fase da humanidade, que seria aquela de estar sempre em busca de algo novo, ou seja, de estar continuamente em construção, em relação à verdade. Seria uma tentativa voltada para o ceticismo, na qual o homem marcaria os limites do seu conhecimento, encontrando outro “instrumental capaz de arrancar dos fatos observados alguma inteligibilidade, determinada pelos próprios fatos e não por intuição de idealidades puras, tais quais aquelas que o racionalismo supõe descobrir” (LARA, 1986, p. 41). Uma vez tendo fim as transcendências, as questões éticas e políticas passam a visar novos focos, surgem outros episódios que devem ser revistos, questionados, interpretados e arquitetados como “fundadores de racionalidades históricas concretas os quais se elevam os valores humanos” (LARA, 1986, p. 41).

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1.3 JOHN LOCKE E A FILOSOFIA POLÍTICA

No campo da filosofia política, duas obras se destacam: Cartas sobre a tolerância (1689), Dois Tratados sobre o governo (1689).

As Cartas dividem-se em dois momentos. O primeiro opúsculo sobre o governo (1660) e o segundo opúsculo sobre o governo (1662). Não foram publicados a pedido do autor e somente a partir da metade do século XX foram conhecidos pelo público. Nos opúsculos Locke trata do Magistrado Civil que não pode interferir nas questões religiosas, ter ou não poder para legislar sobre religião e direito de impor uma religião igual para todos. “Nelas, advoga a liberdade de consciência religiosa (um dos principais temas políticos da época) sustentando a tese de que o Estado deveria apenas cuidar do bem-estar material dos cidadãos e não tomar partido de uma religião” (YOLTON, 1996, p. 9). Foi influenciado por Hobbes em relação às questões religiosas quanto a sedições. No primeiro momento analisa os perigos da liberdade e no segundo os não-conformismos religiosos, o poder das paixões individuais e o poder que os Magistrados teriam sobre tais questões para apaziguá-las.

Quanto à questão da tolerância religiosa, refere-se a elas em todos os sentidos e aspectos, pois a Inglaterra vivia em conflitos muito evidentes sobre tal questão. Foi um assunto que ocupou Locke por toda a vida. Tratava não somente das perseguições feitas entre cristãos (católicos) e protestantes, mas da falta de tolerância em relação a todos os seguimentos religiosos existentes. Defendia a separação entre religião e estado e as religiões não deveriam interferir nas coisas do estado e nem o estado nas coisas das religiões:

Tolerância pelos governos de práticas e crenças religiosas, tolerância entre seitas religiosas para diferenças de crenças e diferentes interpretações das Escrituras. De fato, Locke

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tinha dificuldade em tolerar a intolerância, sobretudo no caso daqueles prelados cristãos e dignitários eclesiásticos que tentavam impor doutrinas e dogmas que não se encontravam na Bíblia (YOLTON, 1996, p. 42).

Principalmente a religião cristã deve ser de tolerância. Fala de uma igualdade religiosa. O magistrado tem o poder de assegurar a ordem civil impedindo que a paz seja perturbada por questões religiosas. Deixa claro que a religião não pode atrapalhar as questões pertinentes de exclusividade do estado. O Magistrado pode criar leis para preservar a paz, mas não determinar o que a religião deve ou não fazer, mas “opunha-se vigorosamente ao uso da força como um meio de trazer as pessoas para a verdadeira religião” (YOLTON, 1996, p. 42).

Locke não toma partido em favor de nenhuma religião, mas a define como aquela capaz de levar à salvação. Busca desenvolver uma concepção de tolerância envolvendo todas as manifestações religiosas existentes e define igreja como uma sociedade livre e voluntária porque é feita de gente que livremente escolhe fazer parte dela. Não pode haver nenhuma força externa que consiga fazer com que alguém pertença a essa ou àquela igreja. É por escolha pessoal que alguém o faz. Insiste no primeiro dos quatro capítulos que escrevera sobre a tolerância que a religião:

não é instituída a fim de se erigir uma pompa exterior, nem para se obter domínio eclesiástico, nem para exercer a força compulsória; mas para reger as vidas dos homens de acordo com as regras da virtude e da piedade (YOLTON, 1996, p. 42).

Ninguém é obrigado a seguir uma religião ou igreja.

A função da igreja é reunir pessoas que prestam culto a Deus. O poder de uma igreja está em criar leis próprias tanto para guiar seus fiéis como para se manter socialmente em

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relação à aquisição de bens. Jamais uma igreja pode fazer uso da força para controlar seus fiéis ou o Estado. As igrejas devem tolerar umas às outras, bem como as pessoas que fazem parte desta ou daquela igreja devem fazer o esforço de tolerarem-se.

As igrejas devem evitar a ganância, pois o legado de cada uma é a fé e não o dinheiro, bastando o suficiente para manter a reunião dos fiéis. É uma sociedade livre e voluntária. E os seus chefes que exercem um direito legítimo de assim o serem, devem seguir o mesmo caminho. O que não pode é misturar política e religião: cada uma tem o seu papel, o seu lugar e a sua finalidade na sociedade. O estado deve cuidar das leis e não da fé. E é válido o contrário aos líderes religiosos.

As religiões não podem ficar querendo cuidar do estado, mas sim da fé que se baseia em convicções e não em leis, que é função do estado. Não devem ser toleradas igrejas que não respeitam as regras civis e aqueles que não aceitam a separação do estado e da igreja. Estes podem ser chamados de intolerantes.

Outros que ele considerava inimigos do estado eram os católicos romanos, porque não aceitavam as normas do estado como ele estava constituído. E os ateus também não devem ser tolerados de forma alguma, pois negam a existência de Deus e isso é um absurdo. O objetivo da carta era de defender a tolerância nas crenças religiosas e o poder supremo do magistrado que tem a função de criar as melhores leis para o seu povo. Aquele que viola as leis civis é que deve ser punido. Na Carta, uma das mais interessantes de suas obras, ele começa com um “apelo à consciência dos que perseguem, atormentam, destroem e matam outros homens em nome da religião, se o fazem ou não por amizade e bondade” (YOLTON, 1996, p, 43). Dentro de uma visão dos críticos o fato dele ter permitido mais de uma manifestação religiosa em certa localidade, poderia acarretar

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em falta de tolerância, pois uma iria querer se sobrepor à outra gerando conflitos. Termina a obra falando da heresia e do cisma religioso.

Hoje em dia a intolerância ainda continua muito forte em relação às questões religiosas no mundo e principalmente na interferência de alguns seguimentos nas coisas públicas, do estado, embora o estado muitas vezes faça o mesmo em relação às religiões querendo tirar proveito das mesmas. A estes, Locke tem algo a dizer: forçar os homens,

a ferro e fogo a professar certas doutrinas, e a obedecer a certas formas de culto exterior, mas sem levar em consideração seus costumes, é apenas um pretexto para tentar induzir as pessoas a aderir a um determinado grupo ou assembleia (YOLTON, 1996, p. 44). Um perigo é que sob a aparência de zelo com o bem público e o respeito às leis, sejam usadas a perseguição e a crueldade “nada cristãs”. O pretexto de religião não é melhor justificação para tais ações, as quais podem estar apenas ocultando “libertinagem e licenciosidade”. É importante ser claro a respeito das fronteiras entre religião e governo civil; a separação da igreja e do estado deve ser respeita (YOLTON, 1996, p. 44).

Locke acaba dizendo que cada um deve cuidar de si

mesmo para evitar problemas. Defende, portanto o direito à liberdade de cada um. Todos devem ser livres para fazer escolhas e para que as coisas funcionem bem. Afinal é o lema do liberalismo. A tolerância deve ser universal, um princípio categórico ao modelo kantiano, válido para todos; no caso de Locke, esse princípio é a liberdade religiosa. Ele não tentou transformar o discurso religioso em discurso racional, mas tratou a fé e a razão em âmbitos diferentes: “Os dogmas da religião estariam apenas fundamentados na

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crença, não consiste em um conhecimento verdadeiro, apenas na confiança individual de que seja uma matéria que efetivamente agrade a Deus” (SILVA, 2008, p.71), por isso merece muito cuidado ao se tratar desse assunto.

Outra contribuição de Locke decorreu da publicação da obra Dois Tratados sobre o Governo. O pensamento de Locke consistia em demonstrar que a sociedade era baseada em direitos naturais e no contrato social. Locke defendeu o que denominou de “estado de natureza”, que consistia em afirmar que, ao nascerem, todos os homens tinham direitos naturais (vida, liberdade de propriedade, religião). “O papel do governo é a proteção da propriedade de cada pessoa contra sua violação por outrem; essa é a razão pela qual as pessoas se juntam numa sociedade civil” (YOLTON, 1996, p. 44).

Para assegurar a preservação desses direitos, os indivíduos assentiam em delegar aos governos seus poderes, desde que preservassem os direitos à vida, à liberdade e à propriedade. (LOCKE, 1998, p. 385). Na medida em que se tornassem injustos (deixando de assegurar os citados direitos), os indivíduos estariam autorizados a não aceitar as decisões e, sobretudo, empregar resistência ao governo tirano.

Considerado o “Pai do Liberalismo”, Locke ganhou prestígio ao sustentar que todo governo surge como um contrato revogável entre os indivíduos, com a finalidade de garantir a proteção da vida, da liberdade e da propriedade. Sustentava também que os “contratantes” poderiam retirar a confiança no governante e, consequentemente, se rebelar, caso o governante não cumprisse com a sua função (VÁRNAGY, 2006, p. 46).

Locke estabeleceu o que depois veio a ser chamada de “cláusula” ou “condição” lockiana: os indivíduos têm o direito de apropriar-se de terras, visando sua produtividade, desde que não causem prejuízos aos demais.

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1.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, é preciso considerar que os ideais de Locke que triunfaram na Inglaterra de seu tempo, representaram também uma antecipação dos ideais iluministas e ofertaram significativo suporte teórico às grandes revoluções. Seus escritos influenciaram pensadores como Voltaire, no que se refere à tolerância e Montesquieu, na sua teoria da separação dos poderes (GIL-DELGADO, 2013, p. 67).

É importante destacar que a Revolução Gloriosa (1688) também foi influenciada pela teoria política de Locke e suas ideias também ecoaram no texto da Declaração de Independência (1776), redigida por Thomas Jefferson, bem como outros tantos movimentos.

E, finalmente, ao defender o indivíduo responsável, capaz de alcançar um conhecimento racional e legitimado para defender sua liberdade, Locke colocou seu nome na história, pois definiu as bases do liberalismo que doravante o mundo conheceria.

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LARA, Tiago Adão. Caminhos da Razão no Ocidente: a filosofia Ocidental, do Renascimento aos nossos dias. 2ª Edição, Petrópolis: Vozes, 1986.

LOCKE, John. Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

_____. Ensaio acerca do entendimento humano. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

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SILVA. Saulo Henrique Souza. A exterioridade do político e a interioridade da fé: os fundamentos da tolerância em John Locke. UFBA (Universidade Federal da Bahia faculdade de filosofia e Ciências Humanas Mestrado em Filosofia): Salvador, 2008.

VÁRNAGY, Tomás. O pensamento político de John Locke e o surgimento do liberalismo. BORON, Atilio A. (org). Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo. 2006.

WOOLHOUSE, Roger. Locke: a biography. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.

YOLTON, John W. Dicionário Locke. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996.

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II

A PROPRIEDADE NOS DOIS TRATADOS DO GOVERNO CIVIL, DE JOHN LOCKE

Whesley Fagliari dos Santos* Késia Priscila Gomes Gentil**

INTRODUÇÃO

Com uma argumentação bem contundente para fundamentar o seu pensamento político, no Capítulo V da sua obra Dois Tratados do Governo Civil (1689), o filósofo inglês John Locke apresenta o conceito de propriedade. É o tema central deste trabalho: entender e explicar a propriedade, sua efetivação e o contexto em que o pensador estudado estabelece para fixar sua teoria.

De acordo com Locke, a liberdade, a propriedade de si mesmo – consequentemente o direito à vida e a posse de bens materiais constituem a tríade sobre a qual se estrutura toda a sua teoria política. É necessário entender, contudo, como de fato a propriedade se estrutura. É fundamental compreender o que o referido pensador entende por propriedade, qual a extensão, as implicações e as consequências dela.

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Campus Toledo, Área de Concentração em Filosofia Moderna e Contemporânea, na Linha de Pesquisa Ética e Filosofia Política, e-mail: [email protected]. ** Mestre em Gestão do Conhecimento nas Organizações (UNICESUMAR), Área de Concentração em Educação e Conhecimento, pós-graduação em Aconselhamento Familiar e Intervenção Psicossocial, Especialização em Neuropsicologia, Graduação Pedagogia, e-mail: [email protected].

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Qual a justificativa encontrada pelo filósofo inglês para atribuir posse a determinado elemento outrora considerado bem comum? Quais critérios precisam ser respeitados para efetivar a apropriação de alguma coisa? Como Locke resolve o problema moral da acumulação desigual de bens materiais? 2.1 A PROPRIEDADE

Há, pelo menos, dois argumentos possíveis a que se pode recorrer para promover a explicação do conceito de propriedade, segundo os escritos de Locke em sua obra Dois Tratados do Governo Civil (1689): a razão natural e a revelação divina. O primeiro determina que o homem nasce com uma capacidade peculiar a ser desenvolvida – a razão, que colocada em ação, em prática, desenvolve a intervenção humana naquilo que é ofertado pela natureza de forma bruta. Essa interferência do homem na natureza é o trabalho. E por uma convenção entre os homens, a propriedade se constitui naquilo em que cada sujeito trabalhou.

O trabalho do seu corpo e a obra das suas mãos, podemos dizer, são propriamente dele. Sempre que ele retira seja o que for do estado em que a natureza o colocou, e aí o deixou, misturou o seu trabalho com esse objecto, e acrescentou-lhe algo que lhe é próprio, e assim converte-o em propriedade sua (LOCKE, 2006, p.251).

De acordo com o argumento da revelação divina, o homem estaria sujeito à vontade de Deus, que deu a terra, a natureza e todos os seres existentes nela, a todos os seus filhos. Mas o que a tradição religiosa não aponta e Locke vai evidenciar em seu raciocínio é que, mesmo contendo a natureza tudo o que o homem precisa para subsistir, ainda

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assim, faz-se necessária a intervenção humana pra valorar a matéria em estado bruto natural.

O homem é dotado de uma razão natural. De acordo com a racionalidade já existente naturalmente, o homem tem direito à sua preservação (comida, bebida, subsistência). Através da razão natural, é possível determinar que a propriedade consiste basicamente no pensamento de que o homem tem desde o seu nascimento direito à sua preservação, o que compreende comer, beber e tudo o que a natureza oferece para a sua subsistência.

A revelação divina, ou seja, a regência de Deus Todo Poderoso, criador de todas as coisas, fez concessões a Adão, a Noé e seus filhos. A propriedade é descrita como dádiva de Deus dada aos homens, isto é a terra e tudo o que contém na natureza são para o conforto e preservação da existência do homem. A razão humana, de igual modo, é também um presente divino e serve de benefício para a conveniência do homem. No texto bíblico, em Salmos 115:16, está expresso da seguinte maneira: “Os céus são os céus do Senhor; mas a terra a deu aos filhos dos homens.” Deus deu o mundo e a razão para que os homens fizessem bom uso dele. Segundo o pensamento de Locke,

Deus, que deu o mundo em comum aos homens, também lhes deu a razão para que dela fizessem uso para melhor servir a sua vida e a sua comodidade (LOCKE, 2006, p. 251).

A atividade própria do homem, o trabalho, é fundamental para compreender o conceito de propriedade lockeano. A natureza oferece de maneira igual a todos os homens suas coisas. Mas, por si só, em seu estado bruto, a matéria-prima ofertada pela natureza é insuficiente para a permanência do homem no mundo. É preciso trabalhar, interferir, manusear e transformar a natureza. Por ter a propriedade de si mesmo e ser capaz de trabalhar –

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interferindo dessa maneira no que é oferecido pela natureza, o homem traz em si o fundamento da propriedade: porque é dotado de uma capacidade racional, que trabalha melhorando sua vida, alterando a natureza e, o que produziu pelo trabalho, por sua vez racional e não-natural, é seu, somente seu e não “comum” a todos.

Embora a terra e todas as criaturas inferiores pertençam em comum a todos os homens, no entanto todo o homem tem a propriedade da sua própria pessoa. A esta mais ninguém tem direito senão ele (LOCKE, 2006, p.251).

O trabalho estabelece direito de propriedade sobre os bens comuns, inicialmente o que a natureza oferecia ao homem para sua necessidade era tido por suficiente. Mas isso mudou com o acordo feito entre os homens de atribuir valor a um novo elemento – o dinheiro. O valor atribuído ao uso de ouro e prata é impulsionado pelo desejo e pela convenção humana que lhe conferem um valor que excede sua utilidade ou necessidade para a manutenção da vida.

Antes, dentre todos os bens ofertados pela natureza, cada homem tinha direito de se apropriar de tudo quanto lhe fosse útil e somente o que pudesse utilizar garantindo, dessa forma, o acesso de todos à matéria bruta existente na natureza. Tudo o que fosse resultado do seu trabalho seria sua propriedade, já que seu trabalho transformara o que se encontrava em estado natural. Com o advento do dinheiro, tanto o sentimento de posse quanto a necessidade de acumular bens materiais, modifica completamente a compreensão do conceito de propriedade.

Adiante será apresentado, com maior cuidado de detalhes, o pensamento que Locke desenvolve acerca do trabalho e do dinheiro na obra Dois Tratados do Governo Civil (1689), referência deste trabalho.

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2.2 O TRABALHO COMO TÍTULO DE POSSE

O trabalho é um conceito muito importante para entender a propriedade em Locke. O trabalho é próprio do humano, porque associa a sua ação pensada – que transforma, modifica o que era até então natural – e o seu desejo de satisfazer às suas necessidades. O ato de trabalhar, agrega, acrescenta aquilo que a natureza não fez. Por esse fato, o trabalho atribui aquilo que a natureza não apresenta por si só: valor às coisas. A dor do trabalho, do esforço, surge para amenizar e extirpar a dor da carência, da necessidade.

[...] tornam-se propriedade daquele que lhes consagrou as suas dores, devido ao trabalho que os subtrai ao estado comum em que a natureza os deixou (LOCKE, 2006, p.254).

Os recursos naturais pertencem à humanidade e ninguém é proprietário original de algum espaço de terra qualquer, excluindo o resto da humanidade. Deste modo, faz-se necessário haver um meio pelo qual o homem possa se apropriar de determinado objeto em seu estado natural, usufruindo de seus recursos para o sustento de sua vida.

O trabalho proporciona a posse, o direito de propriedade a quem aplicou o trabalho sobre a natureza. O que está na natureza é de todos enquanto esta como a natureza os apresenta. O trabalho pertence a cada um, é individual. Ao aplicar o trabalho sobre qualquer objeto da natureza, tal objeto passa a ser do trabalhador, passa a ser sua propriedade, pois o seu trabalho lhe confere o direito de apropriação sobre o que foi transformado pela ação de suas mãos. Apropriar-se, portanto, de algo que a natureza proporcionou a todos é fruto do trabalho de cada indivíduo.

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Aquele que se alimenta de bolotas que apanhou debaixo de um carvalho ou de maçãs que colheu das árvores na floresta, sem dúvidas que se apropriou delas. Ninguém pode negar que os alimentos são seus. Pergunto então, a partir de que momento é que passaram a ser seus? Quando ele os digeriu? Ou quando os comeu? Ou quando os cozeu? Ou quando os trouxe para casa? Ou quando os colheu? É evidente que o acto da colheita não os tornou seus, mais nada poderia fazê-lo (LOCKE, 2006, p.252).

O simples ato de colher já agrega valor ao fruto: um homem que colhe um fruto no bosque não precisa da permissão de toda a humanidade para se apropriar do fruto, já que para isso o homem pereceria de fome ante essa espera por liberação humana, mesmo com toda a abundância que Deus lhe proporcionou. Locke insiste no argumento do valor do trabalho e de que é o trabalho, a intervenção humana na oferta da natureza, que confere valor real às coisas. Mas, somente o trabalho que seja útil à vida humana é que tem valor verdadeiro. O consentimento de todos para que alguém se aproprie individualmente de alguma parte do que se é considerado bem comum não é uma exigência.

O trabalho gera a propriedade daquilo que, na natureza, era direito de todos: mas, é necessário atentar para o aspecto da utilização antes da deterioração do objeto. Locke é terminantemente contra o desperdício porque se cada indivíduo consome o necessário para a sua subsistência, a natureza fornecerá igualmente a todos (ao menos no início do mundo).

No começo do povoamento do planeta a realidade, a situação era bem diferente: a apropriação era uma necessidade a ser atendida pelo que o homem precisava para viver – e o trabalho proporcionava essa demanda e estabelecia a propriedade. Além de que, segundo Locke,

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Deus ordenara ao homem o trabalho. Cultivar a terra e ter a posse dela, então, são fatos interligados e subsequentes.

Deus e a razão comandaram-no a subjugar a terra, isto é, a melhorá-la para o benefício da vida, e que o fizesse investindo nela algo que lhe pertencesse, o seu trabalho (LOCKE, 2006, p.255).

O filósofo inglês, para exemplificar e aprofundar o argumento que mostra que é o trabalho humano – o que ele denomina de indústria – que significa e valoriza o suprimento das necessidades apresentadas pela humanidade, aponta que o que a natureza oferece tem que ser processado para, então, atender à demanda. Considerando um terreno baldio, se não for lavrado ou plantado, oferecerá pouquíssimo suprimento.

É, portanto, o trabalho que acrescenta a maior parte do valor à terra, sem o qual esta não valeria quase nada. É ao trabalho que devemos a maior parte dos seus produtos úteis [...] (LOCKE, 2006, p. 263).

Trabalhar a terra, introduzir o elemento ausente na natureza – o trabalho – determinava a posse, a propriedade. Desde que atendesse a duas prerrogativas: (1) usufruir para o bem somente da quantidade que precisava e (2) não deteriorar, desperdiçar, jamais deixar perecer – porque isso seria excedente, e esse é a parte do outro. Dessa maneira, a posse é legítima.

A colheita por si, contudo, só não permite que alguém tome posse para si de tudo quanto pode colher, pois a lei natural de propriedade impõe limites. “Deus nos deu tudo em abundância” (Timóteo 6:17): mesmo com essa afirmação vale ressaltar que esta doação é para o homem usufruir de modo vantajoso para a sua existência, sem que haja desperdícios. Mesmo que o trabalho sirva para fixar a propriedade do individuo, tudo quanto excede a sua

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necessidade é pertencente ao outro. Nada na criação foi criado para o desperdício e a destruição. Pela razão não há motivos para um homem ter abundância em detrimento de outros, já que existem abundantes provisões por longo tempo na natureza.

A medida da propriedade natural é estabelecida pela proporção do trabalho do homem e pela comodidade de sua vida. Portanto é impossível que o trabalho de um humano seja capaz de se apropriar de tudo, isto garante que nenhum homem venha extorquir o direito de outro. A regra de posse no início do mundo comandava ao homem de não se apoderar daquilo que de algum modo causasse prejuízo a alguém.

[...] aquele que empregava as suas dores sobre os produtos espontâneos da natureza, e dessa ou doutra forma modificava o estado em que a natureza os colocou, ao aplicar-lhes algum do seu trabalho, adquiriu por esse meio a sua propriedade. Mas se os frutos pereceram na sua posse sem ser devidamente usados, se os frutos apodrecessem ou se a caça se estragasse antes de os ter consumido, ele ofendia a lei comum da natureza [...] (LOCKE, 2006, p. 259).

Reconhecer em si o fundamento da propriedade – a propriedade de si mesmo – compreende identificar os desejos de satisfazer as próprias necessidades, mas, também, admitir a propriedade de si mesmo no outro. Estar disposto a respeitar os limites individuais de propriedade e, além disso, estabelecer acatamento do direito de propriedade alheia é o princípio de justiça.

Mas, o trabalho atribuiu propriedade somente até certo momento, até determinado ponto da história da humanidade. A partir do aumento considerável de pessoas habitando o planeta e o uso do dinheiro cada vez mais constante, como será apresentado adiante, surgiu a

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necessidade de estabelecer novos parâmetros para a definição da propriedade. São as leis positivas que passaram a delimitar o que é de quem.

[...] mediante leis feitas entre si, regularam a propriedade de cada um dos particulares da sua sociedade. Assim, por meio do pacto e do acordo, estabeleceram a propriedade que o trabalho e a indústria iniciaram; e as alianças concluídas entre os vários Estados e reinos, com o abandono expresso ou tácito de todas as pretensões e direitos às terras que estavam na posse dos outros membros da aliança, renunciaram por comum acordo às reivindicações do direito natural comum que originalmente tinham sobre esses países. Foi assim que, por um acordo positivo, estabeleceram entre os povos a propriedade das distintas partes do mundo (LOCKE, 2006, p. 264 e 265).

No estado de natureza o homem trabalha no cultivo da terra e, por isso, requer a posse dessa terra para si. No estado civil o que regula a aquisição, a posse e protege a propriedade privada é a lei positiva. As terras, no estado de natureza tão abundantes, no estado civil já não participam do domínio “comum”; agora são propriedade privada. 2.3 O ADVENTO DO DINHEIRO

Se no início, cada sujeito se tornaria dono daquilo que cultivasse a fim de saciar as suas necessidades e nada mais, também estaria garantindo aos demais indivíduos que fizessem o mesmo – trabalhassem para o seu sustento – e, dessa forma, todos poderiam ser proprietários daquilo em que aplicassem o seu trabalho, a sua labuta, o seu labor, a sua dor. Essa situação ganha outra configuração com a introdução do dinheiro.

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Até aqui se percebe que o trabalho firma o início da propriedade sobre os bens comuns aos homens: o direito e a conveniência andaram juntos. O homem tinha direito a tudo quanto podia aplicar seu trabalho. Deste modo, não tinha inclinação para mais do que aquilo que pudesse usar, o que em certo grau impedia a usurpação do direito dos outros.

O dinheiro altera o desejo de propriedade – antes dele a relação era de usufruir daquilo que se precisava. Isso passa a ser diferente com o elemento novo, o dinheiro. O advento do dinheiro trouxe um aspecto até então visto como errôneo – a acumulação, ou seja, ter propriedade além do que se necessita para a subsistência. Antes do dinheiro todos poderiam trabalhar naquilo de que se necessitava e a natureza seria fonte suficiente para abastecer a necessidade de todos os indivíduos.

O que me atrevo a afirmar ousadamente é que a mesma regra da propriedade, a saber, que todo homem deve ter a extensão de propriedade à qual consiga dar uso, ainda seria válida no mundo, sem causar impedimentos a ninguém, já que há terra suficiente para o dobro da população actual, se a invenção do dinheiro, e o acordo tácito dos homens de lhe atribuir valor, não tivessem introduzido (pelo consentimento) posses maiores, assim como o direito a elas (LOCKE, 2006, p. 258).

Mas, a população aumentou exponencialmente, as necessidades ficaram muito maiores, mas a fixação de propriedades não acompanhou tal crescimento. Foi necessário, então,

[...] se reunirem, agruparem e construírem cidades; depois, com o passar do tempo e por mútuo consentimento, estabeleceram as fronteiras dos seus respectivos territórios e chegaram a acordo quanto às demarcações que os separavam dos seus vizinhos. E por intermédio de

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leis que regiam cada um desses grupos fixaram a propriedade dos membros da mesma sociedade (LOCKE, 2006, p. 260).

Locke defende o argumento que acusa o desperdício dos produtos retirados da natureza e não consumidos como ato de desonestidade. Por outro lado, retirar da natureza somente o necessário legitima a propriedade. Mas, esse argumento é anulado pelo advento do dinheiro que, acumulado, não representa mais o desperdício porque não é um produto perecível. Nem tampouco da natureza.

O filósofo inglês aqui estudado demonstra que o mesmo princípio de trabalho legitimando a propriedade pelo cultivo da terra em abundância, suprimindo a necessidade de todos, ainda valeria se não houvesse acontecido na história da humanidade o dinheiro. O dinheiro representa a possibilidade de posses maiores do que a quantidade solicitada pela necessidade de sobrevivência e subsistência.

É indubitável que no princípio, antes que o desejo de ter mais do que cada um precisava tivesse alterado o valor intrínseco das coisas, que depende apenas da sua utilidade para a vida humana, antes que se tivesse acordado que um pequeno pedaço de metal amarelo, capaz de se conservar sem se estragar, nem deteriorar, valesse uma grande peça de carne ou um monte inteiro de grão [...] (LOCKE, 2006, p. 258).

O dinheiro – assim como a propriedade – é resultado de uma convenção entre os homens, um acordo. O homem, com a instituição do dinheiro, estabelece uma maneira de não mais ser acusado de inutilizar o que retira da natureza sem consumir porque inventa um substituto com mais valor de troca e fruto da racionalidade dada por Deus – o dinheiro. O metal precioso (ouro, prata), que não estraga, não é perecível, não é retirado da natureza e, portanto, se

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guardado mais do que o necessário para a subsistência desse ou daquele indivíduo, é um produto “duradouro, escasso e suficientemente valioso” (LOCKE, 2006, p. 266) e estimula o homem a acumular e a utilizar de maneiras diferentes.

2.3.1 Dinheiro, Desigualdade e Justiça

O uso do dinheiro pela humanidade pode ter sido estabelecido desta forma, o homem troca algo duradouro que não se deteriora, por coisas realmente necessárias para a sua vida, mas que seja perecível. O homem pode adquirir posses em dimensões diferentes e a invenção do dinheiro permitiu a ele de aumentá-las.

Como o ouro e a prata, tendo pouca utilidade para a vida do homem em termos de alimento, vestuário e transporte, obtém o seu valor apenas do consentimento dos homens, cuja medida é determinada, sobretudo pelo trabalho, é evidente que os homens consentiram que a terra fosse repartida de maneira desproporcionada e desigual. Por um consentimento tácito e voluntário, os homens encontraram um modo justo de possuir mais terra do que poderiam usar, mediante a aceitação de ouro e prata, que podem ser entesourados sem lesar ninguém, em troca do excedente; atendendo ao facto de estes metais não se estragarem, nem degradarem, nas mãos de quem os possui (LOCKE, 2006, p. 267).

Se antes o critério que estabelecia o limite para a acumulação era a quantidade necessária para a subsistência aliada ao fato de não deixar perecer o que fora retirado da natureza porque isso caracterizava o excesso, a partir do advento do dinheiro o que perece é exatamente essa fronteira moral de acúmulo de bens materiais.

Com o acordo feito entre os homens de valorar os metais preciosos e, consequentemente, o dinheiro como

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símbolo de posse, troca e acúmulo apresenta-se o fato da desigualdade surgir entre os indivíduos. A desigualdade, ou seja, o acúmulo de bens materiais, de terra, de forma desigual e privada, aparece como consequência de um pacto feito pelos próprios homens de atribuir e aceitar o valor simbólico – fantasioso – do ouro e prata (dinheiro).

Outro fato anulado pelo uso do dinheiro é o direito do outro (indivíduo) de também aplicar o empenho do próprio trabalho na matéria oferecida pela natureza para a sua subsistência. E, dessa maneira, estaria estabelecida a desigualdade entre os homens. Anteriormente, pelas vias do trabalho, acumular em excesso, além de desonesto porque feria a porção referente à outra pessoa, também era inútil, uma vez que o excesso pereceria sem uso. Mas nada disso mais é válido ao acumular dinheiro.

Os homens tornaram possível essa repartição desigual das posses privadas fora das fronteiras da sociedade, e sem que fosse preciso um pacto; bastou que atribuíssem valor ao ouro e à prata, e que concordassem tacitamente no uso do dinheiro (LOCKE, 2006, p. 267).

Na sociedade civil, mais tarde, a desigualdade será legitimada através de leis e constituições positivas que garantirão a todo o cidadão detentor de bens materiais acumulados o direito legítimo e positivo sobre essas posses.

Como já dito anteriormente neste texto, o dinheiro traz consigo à humanidade um desejo de propriedade diferente do existente quando o trabalho definia o que era de quem. E consequentemente faz pensar sobre o conceito de justiça, de consciência de si mesmo e da liberdade individual. Bem diferente do estado de natureza porque

O estado de natureza é governado por uma lei natural a que todos estão sujeitos. A razão, que é essa lei, ensina a humanidade inteira que a consultar que, sendo todos

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iguais e independentes, ninguém deve lesar outro na sua vida, na sua saúde, na sua liberdade, nem nas suas posses (LOCKE, 2006, p. 235).

Locke se preocupa em delimitar o direito de apropriar-se de alguma coisa e traz atrelado a esse direito o conceito de justiça. Se no início do povoamento do mundo era desonesto recolher da natureza mais do que o necessário para a própria existência, também o é agora apoderar-se do que é do outro, ou seja, fazer com que o direito individual de cada um de posse, de acumulação de bens materiais não interfira no mesmo direito presente também no outro.

Direito e conveniência andavam juntos; pois se cada homem tinha direito a tudo a que pudesse aplicar o seu trabalho, também não tinha a tentação de trabalhar para conseguir mais do que aquilo a que podia dar uso. Isso excluía todas as controvérsias acerca dos títulos e todas as usurpações dos direitos dos outros; reconhecia-se facilmente a porção que cada um apropriava para si: e era inútil, para além de desonesto, apropriar-se de uma porção excessiva, ou tomar mais do que o necessário (LOCKE, 2006, p. 268).

Há no homem a capacidade de razão, de reflexão, de autoanálise. Isso implica afirmar que é necessário que o indivíduo estabeleça entendimento sobre o (seu) desejo de posse, de apropriação existente em si mesmo. Tal percepção conduzirá à definição de limites. Sabendo determinar quais os próprios limites de apropriação, de controle do desejo de posse em si mesmo, o homem terá condições de respeitar no outro indivíduo, no outro cidadão, os mesmos direitos que também dele são partícipes. De acordo com o pensador inglês estudado neste artigo, é aí que reside a justiça. Em outras palavras, justiça é entender, identificar e respeitar –

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tanto em si mesmo quanto nos outros – a tríade lockeana: a liberdade, o direito à vida e a posse de bens materiais.

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2.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

John Locke, ao apresentar sua teoria política pautada em três pilares autofundantes e intrinsecamente complementares entre si – liberdade, direito à vida e posse de bens materiais – não está apenas demonstrando quem pode ter o que e quais as condições justificáveis para isso. Há algo maior expresso em suas palavras. Há uma questão moral na propriedade, no uso feito pelo homem da natureza e no destino engendrado por cada indivíduo para si mesmo, seja no estado de natureza, seja na sociedade organizada.

Não se trata do bem material em si, mas de toda a valoração que fora atribuída a esse determinado objeto. Ora sendo o trabalho, ora sendo o dinheiro, é o valor, é a simbologia apontada por Locke que merece atenção e cuidado na análise – ainda que ele não tenha dito explicitamente. Porque isso é tão importante? Porque é resultado de um acordo entre os homens. Porque o consentimento coletivo determina que a liberdade de cada sujeito seja respeitada na medida em que esse indivíduo respeite nos demais aquilo que ele próprio reivindica de respeito para si mesmo. É simbólico. E é racional. É puramente fruto da razão, atributo exclusivo dos indivíduos humanos.

Não é um valor em si mesmo. Para expressar de outra maneira, tanto o trabalho quanto o dinheiro deve ser respeitado como fonte geradora de propriedade porque os homens – de uma época passada ou da atualidade – entraram em acordo e consentiram em atribuir valor a isso. E deve ser respeitado como acordo, como combinado.

Adão ouviu de Deus que só se alimentaria do fruto do suor de seu próprio rosto. Em Gênesis 3:19, na Bíblia, está expresso assim: “Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!”. O valor dado

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ao suor do rosto de Adão é simbólico. É emblemático. E é imposição de um acordo entre os homens aceitá-lo na medida em que acatam o texto sagrado como fonte de verdade.

Pelo viés da explicação que recorre à lei da razão, admite-se que a coisa seja propriedade daquele indivíduo que lhe consagrou seu trabalho, mesmo que tal coisa em determinado momento tenha sido um bem comum de todos. É possível afirmar que ainda hoje a civilização admite com o início da apropriação de bens, que antes eram comuns à humanidade, certa consonância à lei da razão. Exemplo disso são os peixes no oceano que passam a pertencer ao pescador que os colhe. Ou seja, tudo quanto o trabalho remove do estado comum em que a natureza deixou, torna-se propriedade daquele que lhe empregou esforços.

Grande parte dos produtos úteis na vida cotidiana tem seu valor elevado e ressignificado pelo trabalho humano; quanto mais atividade o homem envolver na produção ou melhoramento1 de determinado produto, mais valor lhe é agregado. Exemplos disto: a valorização do vinho em detrimento da uva, da roupa em detrimento do algodão ou a valorização do pão maior que o trigo, isto é, pelo trabalho da indústria. Se, de um lado temos suprimento alimentar e vestimentas dados pela natureza, de outro, os bens materiais que o labor humano prepara. O valor estimado neste caso será atribuído em maior escala pelo esforço empregado na matéria-prima, do que o valor já existente no objeto em condições naturais.

Locke defendeu a propriedade em sua obra Dois Tratados do Governo Civil (1689). Se esse fato causou certa estranheza e incômodo em seus leitores – em sua época e

1 Até mesmo quando ao utilizar a palavra “melhoramento” para atribuir uma condição melhor a partir da intervenção humana em um produto ofertado pela natureza é possível perceber o teor moral contido na afirmação.

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ainda nos dias atuais – essa ocorrência se deve muito mais à moralidade a que o filósofo em questão insere na responsabilidade de cada pessoa em ser e ter propriedade, quer de um Criador, quer de si mesmo, do que propriamente na perspectiva das implicações sociais decorrentes da posse.

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REFERÊNCIAS BÍBLIA, Português. Bíblia Sagrada. 117ª edição rev. e atualizada no Brasil por Frei João José Pedreira de Castro, O.F.M. e equipe auxiliar da Editora. São Paulo: Editora Ave Maria Ltda., s.d.

LOCKE, John. Dois Tratados do Governo Civil. Tradução de Miguel Morgado, Coimbra: Edições 70, 2006.

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III

A SOCIEDADE POLÍTICA OU CIVIL: origem, finalidade e legitimidade

Doriedson Alves da Rosa

Patrícia Riffel de Almeida INTRODUÇÃO

A partir do capítulo VII do Segundo tratado, John Locke tematiza a sociedade política ou civil, refletindo acerca de sua origem, especificidade, finalidade, dinâmica de funcionamento e condições de legitimidade. Interessa-lhe apresentar argumentos que invalidem teses defendidas por teóricos absolutistas tais como Jacques Bossuet, Robert Filmer, Thomas Hobbes, inter alia. É visível especialmente o diálogo com a teoria do direito divino na obra O patriarca (1680) de Filmer, segundo a qual a sociedade política constituiria uma família na qual o rei seria o pai, sendo a sua autoridade inquestionável posto que estabelecida pela autoridade divina.

Por outro lado, nota-se igualmente, de forma pontual, a influência de Hugo Grotius, James Tyrrell e mesmo de Aristóteles e Hobbes, bem como, para alguns, a antecipação de teses posteriormente desenvolvidas por Jean-Jacques Rousseau.

O autor esforça-se, preliminarmente, por definir a sociedade política em oposição às demais formas de sociedade, tais como a conjugal, a parental e aquela ligada às relações de senhorio. Locke aborda também o início das sociedades políticas, o qual engendra concomitantemente a instituição do poder de elaborar leis e do poder de guerra e

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paz, e desenvolve a defesa da tese do consentimento da maioria como aquilo que deve guiar “o ato do todo” da comunidade concebida como um corpo único. Finalmente, ele procura rebater alguns argumentos contrários às suas teses. 3.1 A ORIGEM DA SOCIEDADE POLÍTICA 3.1.1 Da união conjugal e das responsabilidades

Um dos aspectos mais importantes, sobretudo no que diz respeito à sociedade civil lockeana é, com certeza, a ideia de família. Nesse caso, uma das razões basilares é o fato de que, essencialmente, ela servirá de base e de modelo daquilo que Locke identificará como sociedade civil. E não apenas isso, a própria existência, manutenção e preservação do gênero humano depende, em última instância, de um tipo de estrutura política em que os indivíduos possam, por assim dizer, viver em comunhão, cooperação e cuidados múltiplos, contínuos e permanentes, sempre sob a tutela tanto do pai quanto da mãe; e isso só pode ser alcançado através da família.

Por isso, Locke afirma (LOCKE, 1998, II, § 77, p. 451) que a “primeira sociedade” a ser formada foi aquela que se deu com a união entre um homem e uma mulher, formando a família. Ela seria, portanto, o germe de todas as demais sociedades que vieram a se desenvolver depois dela, embora, mesmo sendo tutelada por um senhor (o macho) ou uma senhora (a fêmea), ela não tenha se tornado, devido ao que ele mesmo definirá como elemento principal de um governo político, uma “sociedade política”.

A “sociedade conjugal”, do ponto de vista de John Locke, tem, por conseguinte, como princípio norteador e principal finalidade, a procriação (Idem, II, § 78, p. 452); contudo, envolve outros aspectos como a comunhão, o

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direito mútuo e recíproco ao uso do corpo do outro, além da responsabilidade, também compartilhada, pela sustentação, cuidados e conservação da prole. Um dos aspectos mais significativos, no entanto, é que ele não vê a procriação como um fim nela mesma, mas enquanto uma questão de suma importância para, fundamental e especificamente, a preservação da espécie humana. Isto é, através da união entre os cônjuges se estabelece e se propõe, a nível sobretudo humano e particular, a vontade de Deus e, portanto, da natureza, de que o homem, no âmbito de sua própria espécie, seja preservado. Na tentativa de ilustrar e justificar suas concepções, o pensador inglês vai traçando uma análise comparativa entre algumas espécies animais, destacando o modo como são desenvolvidos os cuidados com suas proles (Idem, II, § 79, p. 422).

Georges Duby (1919-1996), reconhecido historiador francês, na obra Idade Média, idade dos homens usa o termo “pulsão fundamental” para se referir – numa relação direta e inconteste com o pensamento de Locke –, à necessidade humana de promover a própria preservação, cuja força motriz e origem, segundo ele, estaria numa disposição natural e também cultural, para a conservação da espécie. Nesse sentido, haveria um tipo de código genético, previamente determinado, encaminhando comportamentalmente os indivíduos, além de regras e normas de cunho e natureza culturais, orientando as práticas individuais no ambiente estritamente social da convivência coletiva.

Locke (Idem, II, § 81, p. 454), por exemplo, não vê a união entre machos e fêmeas, no caso específico do gênero humano, como um caminho voluntário ou absolutamente amoroso, em que os que se unem o façam por pura afeição. O que não nega que afetos não sejam determinantes num primeiro momento, mas que a permanência dos laços matrimoniais, por assim dizer, se baseia em obrigações,

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responsabilidades e necessidades naturais ligadas e essencialmente ao ato de procriação. Em razão disso, e contrariando especialmente o pensamento conservador de sua época em ternos de relações matrimoniais, Locke (Idem, § 81, p. 454) fala de consenso, portanto, na espontaneidade do estabelecimento de vínculos entre homens e mulheres. O problema aqui, de acordo com os parâmetros religiosos e culturais da época, por outro lado, é a proposta, não tão velada assim, de dissolução dos laços matrimoniais, contrariando a ideia de indissolubilidade do casamento.

Em larga medida, sendo coerente com o “pensamento machista” da época, Locke fala de um governo que caberia ao homem, basicamente por ser “o mais capaz e mais forte” (Idem, § 82, p. 454-5). Entretanto, nega qualquer possibilidade de que este mesmo homem assuma a indesejável condição de “monarca absoluto”, tendo, em razão disso, direito de vida e morte sobre sua esposa. Por isso, ele faz menção a um pretenso direito feminino, não esclarecendo, todavia, pelo menos num primeiro momento, muito bem o que isso significa efetivamente, porém, asseverando que a esposa, querendo e havendo direito prescrito em lei, possa livre e eventualmente se separar.

Um outro detalhe, não menos significativo em relação à definição lockeana de família, é a questão que envolve a servidão e a escravidão – dois aspectos bem presentes e marcantes ao período histórico em que viveu Locke. O primeiro, relembrando o pensamento marxista, de certa forma, faz menção à venda da força de trabalho; o segundo, por outro lado, aos que se tornaram servos compulsórios e, por isso, sujeitos e objetos da vontade arbitrária de seus senhores. Em ambos os casos, contudo, eles também fazem parte, segundo Locke (Idem, II, § 85, p. 456), das famílias de seus senhores, mas com prerrogativas diferentes.

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Se os servos estarão, pelo menos momentaneamente, sujeitos aos mandos dos senhores dentro de certos limites e livres de suas arbitrariedades, o mesmo não acontece aos escravos, porque eles não são considerados “parte da sociedade civil” por não terem direito à vida, à liberdade e à propriedade privada. Parece, de certo modo, contraditório que, repudiando a escravidão como um estado de degradação da condição humana natural, Locke a justifique através da “guerra justa” (Idem, II, § 85, p. 456) – aquela que visa preservar o direito natural. No entanto, é fundamental que se entenda que essa forma de pensar era típica do período em que ele viveu, isto é, ao século XVII. Logo, não há nessa concepção nenhum “anacronismo cultural”, até porque, e de maneira extremamente clara e objetiva, John Locke defende a tese de que não é possível nenhuma sociedade política, nem qualquer mínima expressão de um corpo de cidadãos, se seus membros forem escravos, sem direito algum, e completamente submissos à vontade despótica e arbitrária de um indivíduo qualquer.

Por fim, Locke sustenta (Idem, II, § 86, p. 457) que qualquer família, por mais numerosa que seja, e mesmo subordinada a um “pater família” que reivindique para si a condição de “monarca absoluto”, não constitui uma sociedade política. A razão é simples: “ele não tem nenhum poder legislativo de vida e morte sobre nenhum dos membros da família”, nem mesmo em relação à “senhora da família”. Isso significa, em larga medida, a quebra da simples ideia medieval de que a mulher obrigatoriamente deveria ser submissa, porque ela personificaria a parte inferior (o corpo e a carne), enquanto o homem representaria a superior (a razão e o espírito) de um ser humano cindido (LEGOFF; TRUONG, 2014, p. 53). Consequentemente, na família lockeana moderna, as diferenças, mesmo existindo, já não são tão drasticamente marcantes quanto na idade média,

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ainda que manifestem certo grau de sexismo explícito e excludente.

3.1.2 Da sociedade civil

Ao definir o que seria a sociedade civil, de forma imediata e incisiva, Locke volta a reafirmar (Idem, II, § 87, p. 458), assim como fizera no início do livro, os valores que norteiam e determinam tal sociedade – o direito à vida, à liberdade e à propriedade privada, além do direito e da prerrogativa de punição imposta a quem violar esses direitos naturalmente constituídos. Ao fazer isso, o pensador inglês pretende estabelecer uma irrevogável distinção entre a sociedade política, que substitui o estado de natureza e as condições pré-sociais que caracterizam tal estado. A partir daí ele retrata a sociedade política como uma ordem social na qual é possível proteger e preservar a propriedade privada, punindo quem atentar contra o direito de seus proprietários. No entanto, há um detalhe de suma importância e crucial para a sua existência e eficiência administrativa e punitiva: ela deve ser o resultado espontâneo e também voluntário, do consentimento de seus membros constituintes, ou seja, ela surge quando “cada qual de seus membros renunciou a esse poder natural, colocando-o nas mãos do corpo político em todos os casos que não o impeçam de apelar à proteção da lei por ela estabelecida” (Idem, II, § 87, p. 458).

Dessa maneira, numa realidade social como essa, um dos alicerces fundamentais é o fato de que a lei instituída consensualmente, imposta a qualquer infrator sem nenhum tipo de vantagem jurídica – um prelúdio ao princípio jurídico da isonomia – acaba negando toda e qualquer possibilidade de imposição arbitrária de uma vontade particular que se imponha violenta, ilegítima e ilegalmente ao corpo político dos cidadãos. Desse modo, o poder político é um poder que

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se encarna e corporifica na vontade e na liberdade de legislar, de todos, enquanto comunidade que arbitra a si mesma sem excessos, violências ou injustiças. Todo delito, por assim dizer, representa uma afronta não mais apenas individual, pessoal e restrita, mas uma ofensa e provocação que incomoda e desagrada a totalidade de seus membros. Além disso, cabe ao executor político (ou ao juiz), coletiva e legalmente instituído, a incumbência de fazer valer as sanções prescritas em lei (Idem, II, § 88, p. 459).

Sendo assim, na sociedade política, insiste Locke (Idem, II, § 88, p. 459), o legislativo, a magistratura, o executivo e o “corpo político” devem, obrigatoriamente, corresponder às expectativas, zelando pelos direitos e deliberações da própria comunidade ou da sociedade civil que os institui, residindo aí sua origem e legitimidade inconteste. Dessa maneira, reitera Locke, há um tipo deslocamento e uma consequente delegação e transmissão temporária das responsabilidades, o que se pode, grosso modo, chamar de transferência de poder; isto é, são aqueles que a comunidade escolhe, livre e responsavelmente, os realmente responsáveis pela condução da ordem e da imposição disciplinar e legal aos dissidentes; não mais cada indivíduo absolutamente desprendido da comunidade e tomado pelo próprio arbítrio, em seu juízo particular e pessoal.

Diante dessas considerações basilares, também é possível definir a sociedade política ou civil lockeana como um estágio de desenvolvimento da convivência comum no qual o estado de natureza é abandonado e se estabelece voluntária, espontânea e consensualmente o que ele chama de “um povo, um corpo político sob um único governo supremo, ou então quando qualquer um se junta e se incorpora a qualquer governo já formado” (Idem, II, § 89, p. 460). Aí está, por assim dizer, o elemento fundante do corpo

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político, e da instituição cívica e coletiva, que é o estado lockeano.

Como uma consequência lógica do que até então havia afirmado, Locke define (Idem, II, § 90, p. 461), por conseguinte, o que seria uma “monarquia absoluta”. De imediato, ele (Idem, II, § 90, p. 461) contrapõe a “monarquia absoluta” à “sociedade civil”, dizendo que no caso do príncipe absoluto, ao incorporar o legislativo e o executivo, ele se tornaria o juiz de toda e qualquer causa, sem que se submeta a lei alguma – nenhuma punição lhe será infringida –, o que é incoerente com o estado civil no qual os indivíduos sujeitam suas vontades ao arbítrio de uma autoridade que, por definição, também está sob a jurisdição da lei comum. Na ausência do arbítrio de uma autoridade, ou juiz investido da ordenação jurídica definida pela própria coletividade, o que se tem é a representação inconfundível do estado de natureza de quem governa. E mais, ao ser negado o direito de defesa de sua propriedade diante de seu monarca, o súdito, de acordo com Locke (Idem, II, § 91, p. 463), acaba sofrendo a degradação “do estado comum das criaturas racionais”. Portanto, fica o sujeito impedido de reivindicar para si o direito de aplicação penal das sanções que a lei determina para quem infringe os direitos legalmente instituídos, mesmo que o infrator seja o príncipe.

Nesse sentido, ao criticar os que apoiavam o absolutismo, e com certeza um deles seria Thomas Hobbes (1588-1679) – sobretudo em razão da obra O Leviatã, embora não apenas ele – Locke novamente exprime a ideia, continuamente repetida ao longo do texto, de um tal exclusivismo do absoluto, condição política de um governo centrado em um único indivíduo e, por este motivo, nocivo a toda e qualquer representação constitutiva da sociedade civil. Desse modo, se o monarca em seu estado de superioridade, de isenção e exclusividade, das mais diversas maneiras, é desobrigado do cumprimento da lei, sua

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liberdade passa a ser uma liberdade sem limites, portanto, pura licenciosidade confrontando a liberdade circunscrita ao âmbito de um código legal confeccionado coletivamente. Aliás, ao falar do status do príncipe absolutista, o pensador político inglês afiança (Idem, II, § 93, p. 465) que isso seria equivalente a tomar “cuidado de evitar os prejuízos que possam cometer os furões ou as raposas, mas contentarem-se e ainda julgarem seguro ser devorados por leões”.

Um dos muitos desafios à governabilidade e ao bem-estar do súdito, na concepção de Locke, em relação a uma eventual disposição ao estabelecimento de governos centrados em regimes autoritários ou autocráticos, e não na sociedade civil como princípio regido pela coletividade, com seus parlamentos, senados ou “corpos coletivos de homens” (Idem, II, § 94, p. 466), é sua vocação a centralizações extremas, onde prevalece a repressão e o desrespeito a qualquer ordem jurídica mais elementar, não obstante esta mesma ordem também seja ao mesmo tempo ampla e geral, justamente com o intuito de estabelecer os fundamentos de uma possível convivência comum e coletiva. Por conseguinte, a sociedade civil, naquilo que a torna elementar, isto é, a defesa dos interesses coletivos, especialmente da propriedade privada, acaba sendo descaracterizada, transformada em um campo onde prevalecem determinações arbitrárias apenas e tão somente de quem exerce o governo. Isso legitimaria, para Locke, até certo ponto e dadas as devidas circunstâncias, o exercício de um direito à resistência – por parte do povo enquanto corpo e ente político – o que poderia, em última instância, culminar com um movimento não só de resistência, mas principalmente de retorno ao estado de natureza, o que não seria aconselhável em linhas gerais, embora fosse um mecanismo de expressão de um descontentamento que pode, digamos assim, restabelecer a ordem e o equilíbrio, entre as múltiplas forças existentes e conflitantes, no âmbito de uma sociedade civil ameaçada.

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3.2 CONSENTIMENTO E LEGITIMIDADE

Após defender a tese acerca da origem da sociedade política como a escolha compactuada por um corpo de homens livres, Locke passa a considerações mais específicas acerca da gênese da sociedade política, introduzindo o conceito de consentimento:

Sendo todos os homens, como já foi dito, naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem o seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade (LOCKE, 1998, II, § 95, p. 468).

Com efeito, segundo Locke, o estado de natureza é um estado de liberdade e igualdade. Ao contrário de Hobbes, para o qual o estado de natureza era um estado de total ausência de leis, para ele a lei natural preexiste à formação da sociedade política ou civil. A dificuldade do exercício deste direito natural à liberdade no estado de natureza, entretanto, é o que leva os homens a unirem-se em sociedade.

A finalidade da sociedade política não é outra senão preservar a propriedade de cada membro, concebida em um sentido amplo que envolve suas vidas, liberdades e posses 3. Ela se instaura mediante um ato de consentimento pelo qual o indivíduo concorda em abdicar da força da lei e criar um governo ou comunidade em que uma legislatura é instituída

3 “[...] e não é sem razão que ele procura e almeja unir-se em sociedade com outros para a mútua conservação de suas vidas, liberdades e bens, aos quais atribuo o termo genérico de propriedade” (LOCKE, 1998, II, § 123, p. 495).

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para criar a lei. De modo semelhante a Hobbes, também Locke concebe a comunidade como um corpo político:

Quando qualquer número de homens consentiu desse modo em formar uma comunidade ou governo, são, por esse ato, logo incorporados e formam um único corpo político, no qual a maioria tem o direito de agir e deliberar pelos demais [the majority have a right to act and conclude the rest] (LOCKE, 1998, II, § 95, p. 469; LOCKE, 1980, § 95, p. 52).

Locke argumenta que, uma vez instituída uma comunidade por qualquer número de homens, se ela não agir segundo o consentimento da maioria, ela não age em absoluto. Ele insiste nesse argumento afirmando que “torna-se impossível que [a comunidade] aja” (Idem, II, §96, p. 469), que nada senão o consentimento torna um ato “um ato do todo”. Este ato do todo, no entanto, recebe sua autoridade da lei natural: “o ato da maioria passa por ato do todo e, é claro, determina, pela lei da natureza e da razão, o que é o poder do corpo inteiro” (Ibidem).

O argumento de Locke é o de que é impossível a qualquer sociedade política prescindir do consentimento de uma maioria, e a observância do mesmo é o que determina a legitimidade de um governo:

[...] Por conseguinte, o que inicia e de fato constitui qualquer sociedade política não passa do consentimento de qualquer número de homens livres capazes de uma maioria no sentido de se unirem e incorporarem a uma tal sociedade. E é isso, e apenas isso, que dá ou pode dar origem a qualquer governo legítimo no mundo (Idem, II, § 99, p. 472).

Ao leitor acostumado à insistência de Locke na liberdade individual, não deixa de surpreender esta ênfase da soberania da maioria. De fato, os intérpretes não deixaram de notar a tensão existente na teoria lockeana entre, por um

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lado, a fundamentação última da autoridade política nos direitos naturais e, por outro, a autoridade do consentimento enquanto autoridade convencionada pelos homens unidos em comunidade4. Afinal, quão limitado é o governo criado por consentimento? Que poderes tem a maioria para decidir?

Por um lado, mesmo quando a maioria está no comando, ela não pode violar os direitos fundamentais à vida, à liberdade e à propriedade. Para Locke, nós não desistimos destes direitos fundamentais ao entrar na sociedade política ou civil. Se o próprio fim da sociedade política é a proteção da propriedade, tudo se passa como se não pudesse ser senão ilegítimo ao governo apossar-se de parte da propriedade de seus membros.

Por outro lado, as coisas se complicam quando mais adiante, no capítulo XI, intitulado “Da extensão do poder legislativo”, Locke afirma que o que conta como propriedade não é natural, mas definido pelo consentimento da comunidade:

[...] Portanto, dado que os homens em sociedade possuem propriedade, têm eles sobre os bens que, com base na lei da comunidade, lhes pertencem, um direito tal que a ninguém cabe o direito de tolher seus haveres, ou partes destes, sem o seu próprio consentimento (Idem, II, § 138, p. 510, segundo grifo nosso).

Poderíamos encontrar ainda outras formulações da ambiguidade que se quer apontar. Assim, por um lado, neste mesmo capítulo, o autor afirma que não é possível que o governo seja “absolutamente arbitrário” a respeito das vidas e fortunas de seus membros, uma vez que “nenhum corpo pode transferir a outro mais poder do que o que ele tem em

4 Dentre eles C. B. Macpherson, A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes a Locke (RJ: Paz e Terra, 1979); Michael Sandel, Justiça – o que é fazer a coisa certa (RJ: Civilização Brasileira, 2014).

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si mesmo” (Idem, II, § 135, p. 504). Não obstante, no capítulo XIII – “Da subordinação dos poderes da sociedade política”, afirma que a comunidade é “sempre o poder supremo, pois o que pode dar leis a outro, precisa ser superior a ele” (Idem, II, § 150, p. 519).

Ao ingressar na sociedade os indivíduos “abdicam [give up], em favor da maioria da comunidade, a todo o poder necessário aos fins pelos quais eles se uniram à sociedade” (Idem, II, § 99, p. 471-2), tal como seja julgado pela sociedade (sublinha o § 97), incluindo mesmo a jurisdição sobre suas posses (“a propriedade deverá ser regulamentada pelas leis da sociedade”, § 120, p. 492). Contudo, a sociedade não tem poderes absolutos, o que é sobejamente afirmado ao longo de todo o Segundo tratado.

A propriedade possui tanto um lado natural, quanto um lado convencional. Se, por um lado, uma apropriação arbitrária da propriedade é uma violação da lei da natureza e, portanto, ilegítima, o que conta como propriedade, por outro, é da alçada do governo, e, assim, sujeito não ao consentimento da própria pessoa particular, mas ao consentimento coletivo.

Voltaremos a isso nas considerações finais. Por ora, cabe concluir a apresentação das respostas de Locke às objeções em torno da teoria da origem das sociedades políticas por ele desenvolvidas a esta altura do Segundo tratado. Antes do mais, Locke responde à objeção segundo a qual na história não se encontrariam exemplos de agrupamentos de homens que tenham iniciado um governo da forma por ele descrita, afirmando ser isso natural uma vez que as comunidades desenvolveram a escrita apenas depois de satisfeitas outras necessidades mais fundamentais – cuja satisfação, no entanto, já pressupunha um governo estabelecido.

Em segundo lugar, ele responde à objeção segundo a qual os homens já teriam sempre nascido sob uma dada

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forma de governo e não teriam jamais tido oportunidade de iniciar outro, resposta que parece se dirigir especialmente ao Patriarcha de Robert Filmer. Efetivamente, para Filmer, Adão foi não apenas o primeiro ser humano, mas também o patriarca original da humanidade. Como pai, ele teria uma autoridade natural sobre seus descendentes. Desse modo a autoridade política dos reis é justificada por meio da sua descendência divina, a qual remontaria a Jafé, um dos filhos de Noé. O surgimento de conflitos pelo poder era evitado por meio da regra da primogenitura, que afastava de antemão as pretensões ilegítimas ao trono. Sobre a tese segundo a qual os homens nasceriam livres para escolher a forma de governo que mais lhes apetecesse, afirma Filmer:

Mas embora esta opinião vulgar tenha obtido uma grande reputação, todavia ela não é encontrada nos pais e doutores antigos da Igreja primitiva. Ela contradiz a doutrina e a história das Sagradas Escrituras, a prática constante de todas as monarquias antigas, e os verdadeiros princípios da lei da natureza. É difícil dizer se isso é mais errôneo na divindade ou perigoso na política (FILMER, R. in LOCKE, 1964, p. 251, tradução livre).

Afirma Locke que, embora a origem das sociedades políticas possa de fato ter sido baseada na autoridade de um só homem, a saber, na do pai, posteriormente houve, no entanto, a necessidade da escolha deliberada de um governante. Por isso, afirma,

Embora olhando para trás tão longe quanto os registros nos apresentam quaisquer relatos do povoamento do mundo e da história das nações, encontremos comumente o governo nas mãos de um único homem, tal não invalida o que afirmo, a saber, que o início da sociedade política depende do consentimento dos indivíduos em juntarem-se e formarem uma única sociedade (LOCKE, 1998, § 106, p. 477).

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Locke procura mostrar que, ao menos no que diz respeito aos inícios pacíficos de governos, eles tiveram sua origem no consentimento do povo, fosse em relação ao mando de um único homem, fosse posteriormente na escolha do mais capaz de governá-los. Com isso, ele polemiza contra a tese absolutista da origem das monarquias legítimas, segundo a qual os homens nasceriam sob um governo, sendo destituídos da liberdade de iniciar outro. Neste contexto, a tradição deixa de fornecer à sociedade um princípio de continuidade política.

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3.3 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para Locke, a sociedade política surge da necessidade dos homens de assegurarem suas vidas, liberdades e propriedades. A comunidade deve ser guiada pelo consentimento da maioria que ganha a forma de “ato do todo”, o qual, porém, recebe sua autoridade da lei natural: “o ato da maioria passa por ato do todo e, é claro, determina, pela lei da natureza e da razão, o que é o poder do corpo inteiro” (LOCKE, 1998, II, §96, p. 469).

O que tem em mente Locke ao afirmar que o ato do todo se regula “pela lei da natureza e da razão”? Como compreender esta distinção? No Ensaio sobre o entendimento humano (1690), ele argumenta contrariamente à existência de princípios inatos, tanto lógicos quanto morais. Isto, contudo, não o conduz à negação de quaisquer leis morais, pois há uma diferença entre princípios morais inatos e princípios naturais os quais, contudo, apenas são acessíveis através de uma aplicação correta da razão:

Há uma grande diferença entre uma lei inata e uma lei natural, entre algo que foi impresso originariamente no nosso espírito, e algo que, embora ignorado por nós, pode vir a ser conhecido por virtude de uma correcta aplicação das nossas faculdades naturais. E eu penso que tanto ofende a verdade quem afirma que existem leis inatas como quem nega que existem leis cognoscíveis pela luz natural, ou seja, sem a ajuda de uma revelação positiva (LOCKE, 1999, I, 3, s. 13, p. 66).

Fiar-se na lei da natureza parece ser insuficiente para justificar o fundamento da legitimidade dos governos no consentimento coletivo. De fato, mesmo Filmer considerava a sua teoria de acordo com os “verdadeiros princípios naturais” (FILMER, sup. cit.). E, com efeito, ao longo dos séculos XVIII e XIX uma imensa gama de pensadores e

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políticos buscaram fundamentar teorias as mais díspares a partir do “direito natural”. Para Locke, ao contrário, a lei natural parece ter que sempre passar pelo crivo da comunidade, no seio da qual ela se torna clara mediante uma “aplicação correta da razão”.

Macpherson observa que há dois níveis de consentimento na teoria de Locke: um que se dá ainda no estado de natureza a respeito da “aceitação convencional da obrigatoriedade dos contratos comerciais”, consentimento ao dinheiro e às posses desiguais, e outro que se dá com a instituição da sociedade civil, a saber, “a concordância de cada um em entregar todos os seus poderes à maioria” (MACPHERSON, 1979, p. 222).

Para Macpherson, não há de fato nenhum conflito entre as afirmações de Locke quanto à lei da maioria e quanto ao direito de propriedade, uma vez que Locke “estava supondo que apenas os que tinham propriedades eram integralmente membros da sociedade civil, e, portanto, da maioria” (Idem, p. 264).

O debate quanto a se Locke era individualista ou coletivista perderia o sentido diante do fato de que o individualismo de Locke é na verdade um coletivismo. A visão da teoria lockeana como a defesa de que os indivíduos são naturalmente livres e iguais e que só podem ser sujeitos à jurisdição externa pelo próprio consentimento não atingiria a sua significação principal, a saber, “fazer do indivíduo o proprietário natural de sua própria pessoa e de suas próprias capacidades, nada devendo à sociedade por elas” (Idem, p. 267). O individualismo de Locke assim “não exclui, mas ao contrário, requer a supremacia do estado sobre o indivíduo. Não é uma questão de mais individualismo, ou de menos coletivismo; antes, quanto mais rematado o individualismo, mais completo é o coletivismo” (Idem, p. 268).

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REFERÊNCIAS DUBY, Georges. Idade Média, idade dos homens. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

FILMER, Robert. Patriarcha. In: LOCKE, John. Two treatises of government, with a supplement – Patriarcha by Robert Filmer. New York: Hafner Publishing, 1964.

LE GOFF, Jacques; TRUONG, Nicolas. Uma história do corpo na Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2014.

LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo Civil. São Paulo: Martins Fontes, 1998.

___________. Ensaio sobre o entendimento humano. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1999.

___________. Second Treatise of Government. Edited, with an Introduction, by C. B. Macpherson. Cambridge: Hackett Publishing Company, 1980.

MACPHERSON, C. B. A teoria política do individualismo possessivo de Hobbes até Locke. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.

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IV

GOVERNO CIVIL

Rafael Leite Ferreira Cabral* Erickson Rodrigues do Espírito Santo**

INTRODUÇÃO

A investigação que aqui se apresenta foca o livro “Dois Tratados do Governo Civil” de John Locke, tendo como ponto de partida o capítulo IX, em que o autor apresenta seu grande e principal objetivo, a união dos seres humanos em comunidade, colocando-os sob a tutela do governo. Já no capítulo X, Locke apresenta vários estilos de comunidades e de leis criadas pelos homens, para a eleição dos “governos”. Ao mencionar a democracia, a oligarquia e a monarquia, ele estabelece que o melhor termo para corresponder a comunidade é o termo latino “civitas”. No capítulo XI, Locke aponta que o homem em sociedade desfruta da propriedade em paz e segurança por meio das leis criadas pelo poder legislativo para garantir essa situação, gerir a sociedade e propiciar justiça. Por fim, no capítulo XII Locke trata do poder legislativo ao qual é transferido o direito de constituir como deverá ser empregada a força da comunidade no que diz respeito à sua preservação e aos seus

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Área de Concentração em Filosofia Moderna e Contemporânea, na Linha de Pesquisa “Ética e Filosofia Política”, Advogado, [email protected]. ** Mestre em Educação - Graduado em Música e em Filosofia: Professor da Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC). [email protected].

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membros. Neste capítulo é ainda abordada a dinâmica com os demais poderes executivo e federativo que, embora sejam distintos entre si, devem ser concentrados em um mesmo órgão.

Nesse sentido, ao abordar a constituição Locke estabelece um acordo entre governantes e governados que tem como base um conjunto de leis escritas promulgadas a partir de um estado natural, igualitário e pacífico.

O pensamento político lockeano, está embasado na historicidade e nas tradições inglesas de ordem empíricas, correlacionando-as aos fatos da vida real. Assim, Locke busca na experiência inglesa a forma de superar o absolutismo da época.

O enfrentamento do tema sobre o governo civil de John Locke pressupõe o seu contraponto aos elementos fundamentais do Estado Natural, pois a instituição do primeiro tem por objetivo superar as deficiências do segundo.

Nesse passo, é oportuno rememorar, brevemente, que o Estado de Natureza é regido pela Lei Natural promulgada por Deus e descoberta pelo homem por meio de seu instinto de autopreservação mediado pela razão.

Os homens, como criaturas de Deus, são iguais por natureza e, portanto, têm sua inviolabilidade (ninguém pode destruir o que Deus criou) e de seu patrimônio garantida pela Lei Natural que lhes outorga a prerrogativa de executá-la com o objetivo de repelir qualquer tentativa de submissão ao arbítrio de outrem.

Mesmo diante de tal cenário de liberdade e autonomia do homem no estado de natureza, o filósofo inglês, aponta que

[...] as inconveniências a que estão expostos pelo exercício irregular e incerto do poder que cada homem tem de punir as transgressões dos outros levam-nos a procurar refúgio nas leis estabelecidas de um governo e a tentar

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salvaguardar a sua propriedade. É por essa razão que cada qual está disposto a renunciar ao seu poder individual de punição para que seja exercido apenas por quem for designado por eles, e segundo as regras que a comunidade, ou quem for autorizado para esse propósito, estabeleça de comum acordo. Encontramos aqui o direito originário quer do poder legislativo, quer do poder executivo, assim como dos governos e das próprias sociedades. (LOCKE, ,2015, II, p. 317, § 127).

Com efeito, os homens mediante um único pacto criam a sociedade política instaurando o governo cuja finalidade é superar três deficiências do Estado de Natureza: a) ausência de “lei estabelecida, fixa e conhecida, que o consentimento geral aceitou e autorizou como [...] medida comum para decidir todas as controvérsias”; b) ausência de um “[...] juiz conhecido e imparcial com autoridade para resolver os conflitos de acordo com a lei estabelecida [...]”; e c) ausência de um “[...] poder que suporte e sustente a sentença quando esta é justa e que a execute devidamente [...]” (LOCKE, 2015, II, p. 316, §§ 124/126).

Essas deficiências no estado natural são suprimidas com a instauração do governo civil mediante a instituição do poder legislativo, executivo e federativo adiante abordados.

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4.1 PODER LEGISLATIVO

Locke delineia as diversas formas de governo possíveis diante da criação das sociedades civis. Se há a nomeação de pessoas de tempos em tempos para a elaboração das leis, caracteriza-se uma democracia. Nos casos de atribuição dessa faculdade a alguns homens escolhidos, a seus herdeiros e sucessores, configura-se uma oligarquia, que pode ser monarquias hereditárias ou eletivas.

Locke aponta que a comunidade deve ser explicada conforme o significado preconizado pelo termo latim civitas, correspondente à forma de associação na qual vários indivíduos unem-se em torno de um mesmo objetivo, visando o bem comum. O modo de atribuição do poder supremo de fazer as leis determina a forma da comunidade política (LOCKE, II, pág. 320, § 132).

Com o objetivo de proteger sua liberdade e propriedade os homens transferem todo seu poder individual e natural à comunidade que, por sua vez, estabelece, mediante a primeira lei positiva fundamental, o poder legislativo (LOCKE, 2015, II, p. 320, § 134).

O contrato social forjado por Locke tem a virtude de se fundar na “aliança entre todos os indivíduos membros que depois de estarem mutuamente comprometidos fazem um contrato de governo”. (ARENDT, 2015, p. 77).

Esse compromisso entre os indivíduos, delineado por Locke, antecedente a instituição do Governo, suscita a versão horizontal do contrato social, como denomina Hannah Arendt que ainda ressalta que essa versão:

“[...] limita o poder de cada indivíduo membro, mas deixa intacto o poder da sociedade; a sociedade então estabelece um governo ‘sobre o firme terreno de um contrato original entre indivíduos independentes”. (ARENDT, 2015, p. 77).

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É esse comprometimento entre os indivíduos e, portanto, o resguardo do poder de cada um de retomar os poderes delegados, que diferencia o contrato social de Locke da versão vertical de contrato social assentada por Hobbes que supõe o contrato direto entre o súdito, que renuncia sua liberdade, e o soberano que a garante (ARENDT, 2015, p. 77).

Uma vez firmado esse compromisso entre os indivíduos, é instituído o legislativo pela primeira lei fundamental da sociedade que o torna o poder supremo e sagrado da comunidade política, dele resultando os demais poderes.

O legislativo será composto pelas pessoas em que a comunidade confia a missão “[...] de ser governados por leis declaradas, pois, sem isso, a paz, o sossego e a propriedade serão tão precárias como eram no estado de natureza” (LOCKE, 2015, II, pp. 324-325, § 136).

O consentimento dos súditos, manifestado quando da outorga do poder de criar leis ao legislativo, consubstancia, portanto, o fundamento central da legitimidade do legislativo, pois implica o compromisso moral dos súditos de cumprirem a lei.

Nesse sentido Locke afirma que: [...] tem força e obrigação de uma lei apenas o ato sancionado pelo poder legislativo que o público escolheu e nomeou. Sem esta aprovação, a lei não teria o que é absolutamente necessário para que ela seja uma lei: o consentimento da sociedade. Pois ninguém tem o poder de impor leis à sociedade; este poder resulta do seu consentimento e da autoridade que a sociedade confere. (LOCKE, 2015, II, p. 321, § 134).

Dessa premissa resulta o princípio da legalidade, que, por um lado, limita o arbítrio do governo ao impor que o poder seja exercido em consonância com as leis estabelecidas

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pelo legislativo e, portanto, consentidas pelos súditos; e, por outro lado, garante ao povo o conhecimento de seus deveres e a segurança de que a sua propriedade (a legislação permite que todos saibam o que pertence a quem) e sua liberdade estarão resguardadas dentro dos limites da lei instituída (LOCKE, II, 2015, p. 324 e 326, § 137).

A despeito da legitimidade atribuída ao legislativo – “[...] que tem o direito de determinar como a força da comunidade política será empregue na preservação da comunidade e de seus membros” (LOCKE, II, 2015, p. 329, § 143), ele não é um poder absoluto ou arbitrário, mas sim possui nítidas limitações que podem ser apontadas nos seguintes termos:

1 - O poder não pode ser mais do que aquilo que as pessoas lhe outorgaram, de modo que não pode ir além “[…] do que essas pessoas tinham no estado de natureza antes de entrarem em sociedade e o cederam à comunidade, porque ninguém pode transferir a outrem mais poder do que possui (LOCKE, 2015, II, p. 322, § 137).

2 – O legislativo jamais pode chamar a si o poder de governar por meio de decretos extemporâneos e arbitrários somente o deve fazer por leis a partir das quais os magistrados efetivarão sua autoridade (LOCKE, 2015, II, p. 322, § 137).

3 – Tal poder não pode jamais retirar dos indivíduos a sua propriedade (que é um dos principais motivos de sua criação), ou lançar impostos sobre esta sem seu consentimento.

4 – Não pode transferir seu poder de elaboração de leis a terceiros, pois só o povo tem legitimidade para o fazer.

5 - Os legisladores estão vinculados às obrigações da lei natural que não cessam na comunidade, antes elas são delimitadas e complementadas com penas atribuídas pelas leis humanas (LOCKE, 2015, II, p. 323, § 134).

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6 – Em razão da possibilidade de alternância é exigido sobriedade do membro da assembleia, pois ao deixar o cargo será atingido pela mesma lei. (LOCKE, 2015, II, p. 326). Do mesmo modo, como o legislador não executa suas leis procurará na sua edição moderação a qual estará sujeito. (LOCKE, 2015, II, p. 330)

O desrespeito dessas limitações autoriza o povo, que possui o poder residual não revogável, a realizar o ato revolucionário ou de insurreição contra o poder tirânico (LOCKE, 2015, II, p. 332, § 134), conforme sustenta Locke:

[...] como o poder legislativo é apenas um poder fiduciário para agir em vista de determinados fins, permanece ainda no povo um poder supremo de remover ou alterar o poder legislativo quando se considera que este poder agiu contrariamente à missão que lhe foi confiada. [...]. Assim, a comunidade retém perpetuamente um poder supremo de se salvar das tentativas de desígnios de qualquer pessoa, incluindo os seus legisladores, sempre que forem tão tolos ou tão malvados a ponto de conceber e levar a cabo desígnios que atentem contra as liberdades e propriedades dos súditos (LOCKE, 2015, II, p. 332, § 149).

Uma vez delineado o poder legislativo é possível

analisar os demais poderes que dele são desdobramentos na concepção de Locke.

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4.2 PODERES EXECUTIVO E FEDERATIVO

Conforme demonstrado acima, para Locke o legislativo é supremo, pois tem o poder, outorgado pela comunidade, de impor a lei, prescrever regras de conduta que uma vez violadas origina o poder de execução. Desse modo, todos os outros poderes derivam dele e a ele estão subordinados (LOCKE, 2015, II, p. 332, § 150).

A rigor, para Locke, o executivo consubstanciaria quase um desdobramento do legislativo, de modo que seria uma tentação demasiado forte para a fraqueza humana que as mesmas pessoas que tem o poder de fazer as leis tivessem nas suas mãos o poder de executá-las (LOCKE, 2015, II, p. 329, § 143).

Miguel Morgato bem consigna que o poder executivo é herdeiro direto do direito individual de execução da lei natural (LOCKE, 2015, II, LXXVI) que no Estado Natural estava sujeito ao arbítrio e às paixões.

Com a instauração do governo civil e na tentativa de se afastar dessas contingências, o executivo cumpre a função de um juiz, conhecido e imparcial, de resolver os conflitos em conformidade com a lei estabelecida pelo legislativo e de garantir a execução de sentença quando esta é justa (LOCKE, 2015, II, p. 316, § 124).

Por último, Locke menciona o poder federativo que seria o responsável pela segurança e defesa dos interesses da comunidade fora dela, poder este que também deve ser regido pelo executor das leis, pois segundo o filósofo:

[…] é quase impraticável colocar-se a força do Estado em mãos distintas e não subordinadas, ou os poderes executivo e federativo em pessoas que possam agir separadamente, em virtude do que a força do público ficaria sob comandos diferentes, o que poderia ocasionar, em qualquer ocasião, desordem e ruína (LOCKE, 1978, II, p. 92).

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Diante da subordinação tanto dos poderes executivo e federativo ao poder legislativo, que ocupa a posição suprema numa comunidade política, este possui o poder de retirar a execução da lei do executivo e punir a má administração de sua execução na repressão das condutas violadoras da legislação.

Locke sustenta que o legislativo pode ter seu funcionamento periódico, pois não é necessário constantemente editar novas leis, contudo é imprescindível a execução das leis já editadas, o que exige o funcionamento permanente do executivo (LOCKE, 2015, II, p. 334, § 153).

Locke, contudo, aponta que o caráter periódico do legislativo e permanente do executivo, não pode permitir que este iniba o funcionamento daquele, o que caracterizaria verdadeira violência contra o povo e desvio de sua finalidade, de modo a “[...] instalar o estado de guerra com o povo, o qual tem direito de restabelecer os legisladores no exercício do seu poder (LOCKE, 2015, II, p. 334, § 153).

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4.3 A DIVISÃO DE PODERES E A PRERROGATIVA

Como acima demonstrado, Locke não se preocupou em delinear todas as funções e limitações de cada um dos poderes, nem mesmo de conceituá-los.

Sua preocupação estava mais focada na possibilidade de a sociedade ter representantes com poderes suficientes para bloquear ataques à sua liberdade e atentar contra sua propriedade com tributos sem justificativa e consentimento (TUCKNESS, 2016).

De qualquer modo, ao comparar sua obra às ulteriores formulações sobre a doutrina da divisão de poderes, especialmente de Montesquieu, é fácil perceber que suas características essenciais já permeavam os Dois tratados do governo civil.

Locke, contudo, complica bastante sua doutrina de divisão de poderes a partir do que conceitua como exercício da prerrogativa que põe em cheque a supremacia do legislativo por ele proposta (TUCKNESS, 2016).

O autor objeto de estudo sustenta que Quando os poderes legislativo e executivo estão em mãos distintas [...], o bem da sociedade requer que várias coisas sejam deixadas à discricionariedade de quem possui o poder executivo. Como os legisladores não conseguem prever e dotar de leis tudo o que pode ser útil para a comunidade comum da natureza o direito de usar esse poder para o bem da sociedade em muitos casos, em que as leis positivas nada prescrevem, até que o poder legislativo possa reunir-se convenientemente e legislar nesse sentido. (LOCKE, 2015, II, p. 340, § 159)

Vale dizer, Locke assegura ao executivo, até então subordinado ao legislativo, a discricionariedade de atuar livremente sem a prescrição de lei (legalidade), desde que em

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benefício da comunidade e de acordo com a finalidade do governo (garantia da liberdade e do patrimônio).

Pior, Locke admite a atuação do executivo não só no caso de omissão da lei, mas também admite que o executivo atue de maneira contrária à lei promulgada pelo legislativo:

[...] A prerrogativa define-se como uma autorização que o povo dá aos seus governantes para fazerem certas coisas da sua própria iniciativa no silêncio da lei, e, por vezes, contrárias até à letra da lei, em nome do bem público e que são aprovadas ulteriormente pelo povo (LOCKE, 2015, II, p. 342, § 164).

A solução fornecida por Locke para aferir a legitimidade do exercício da prerrogativa por parte do executivo, complica ainda mais sua teoria. Isso porque o autor afirma que nessas situações em que não há juiz para solucionar a questão é necessário apelar ao céu (appeal to heaven), como se vê:

E sempre que o conjunto do povo, ou um único homem, é privado do seu direito, ou está sujeito ao exercício de um poder ilícito, e não tem a quem apelar na terra, então tem a liberdade de apelar ao céu, se a importância da causa lhes parecer suficientemente grave (LOCKE, 2015, II, pp. 344-345, § 168).

Apelar ao céu, afirma Tuckness, envolve o direito de pegar em armas, contra o seu oponente (direito de revolução ou revolta) e deixar Deus julgar quem está certo (TUCKNESS, 2016).

Aqui, portanto, subjaz uma das contradições do pensamento de Locke, pois a despeito de todo o fundamento do autor no poder dos indivíduos de edificar uma sociedade mediante seu consentimento que é exercido pelo Legislativo, tal poder dos indivíduos é manifestamente

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enfraquecido com a possibilidade do exercício da prerrogativa.

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4.4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A maior virtude do contrato social proposta por Locke resulta da valorização da aliança entre os indivíduos que por meio de sua primeira lei fundamental instituem o poder legislativo e o governo, mas ao mesmo tempo permanecem com o poder de removê-los quando atuarem em desconformidade com a finalidade de suas instituições.

Locke é considerado o precursor do liberalismo principalmente em virtude de sua doutrina garantir a soberania do legislativo com a função precípua de proteger a liberdade e a propriedade, mas ao mesmo tempo resguarda a possibilidade de os proprietários se rebelarem contra o governo quando entenderem que tal objetivo não está sendo cumprido pelo governo civil.

É de se observar, contudo, que Locke foca o poder de rebelião contra o governo, que não cumpra a sua finalidade, na figura do proprietário (vide: LOCKE, 2015, II, p. 325/329, §§ 137/142), o que pode ensejar uma tendência elitista a autorizar rebeliões apenas por estes.

Com efeito, a fim de evitar esse tipo de interpretação, vinculadas essencialmente aos direitos do proprietário, é necessário buscar o direito de rebelião em todo o contexto da obra de Locke que se fundamenta na lei natural que propugna que todos são livres, iguais e independentes.

Desse modo, não se pode autorizar a rebelião exclusivamente aos proprietários, sob pena de se permitir que estes se rebelem contra governo legítimo justamente quando esse objetiva resguardar a igualdade e a liberdade de todos os indivíduos ainda que em detrimento do patrimônio dos proprietários.

O direito de rebelião, portanto, não pode ser visto como direito de destituir um governo legítimo vinculado apenas a uma classe (dos proprietários), mas sim deve ser

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analisado a partir da perspectiva de todos os desdobramentos da lei natural.

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REFERÊNCIAS ARENDT, Hannah. Desobediência Civil, In: Crises da república. Tradução José Volkman, São Paulo: 3º ed., Perspectiva, 2015.

BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natural. Tradução Sérgio Bath. Brasília: Edunb, 1997.

LOCKE, John. Dois tratados do governo civil. Tradução de Miguel Morgado; Edições 70, Lisboa, Portugal, 2015.

______. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil. São Paulo: Nova Cultural, 1978.

TUCKNESS, Alex. "Locke's Political Philosophy", The Stanford Encyclopedia of Philosophy. (Spring 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.). Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/spr2016/entries/locke-political/>. Acesso em 21 de novembro de 2017.

VÁRNAGY, Tomás. O pensamento político de John Locke e o surgimento do liberalismo. En publicacion: Filosofia política moderna. De Hobbes a Marx Boron, Atilio A. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales; DCP-FFLCH, Departamento de Ciências Políticas, Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas, USP, Universidade de São Paulo. 2006. ISBN: 978-987-1183-47-0. Disponível em: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/secret/filopolmpt/04_varnagy.pdf Acesso em 19 de novembro de 2017.

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V

A LEI E O DIREITO NATURAIS

Lurdes de Vargas Silveira Schio* Péricles Ariza**

INTRODUÇÃO

Nesse texto, mostrar-se-á alguns argumentos sobre a noção de lei natural e a noção de direito natural em Locke, a partir da obra Dois Tratados Sobre o Governo Civil. Locke não tem uma discussão específica sobre o conceito de direito ou de um direito, mas referências a um certo número de direitos naturais, tais como: à vida, à liberdade e aos bens. Ele também, não visa expor um tratado sobre o que é a lei natural. O objetivo de Locke é propor uma nova maneira de fundamentar o governo civil. Para isso, ele se cerca, por exemplo, do conceito de lei natural e do de direito natural para explicar ou dar conta do objetivo a que se propôs.

* Doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Florianópolis (UFSC, 2011) com a tese Cognitivismo Ético: A Fundamentação dos Conceitos Morais em Locke, na área de Lógica e Epistemologia. Mestre em Filosofia (UFSC, 2003), com a Dissertação A Concepção de Substância em John Locke, na área Lógica e Epistemologia. Especialista em Epistemologia - Filosofia da Ciência- (UFSC, 1996). Graduação e Licenciatura em Filosofia e História pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE-1995). ** Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Área de concentração em Filosofia Moderna e Contemporânea, na linha de Pesquisa “Ética e Filosofia Política”. Graduação em História (UNIPAR, 2007) e em Filosofia (UNIOESTE, 2016).

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Parte das discussões sobre a lei e o direito naturais, centra-se sobre o que Locke considera os direitos naturais, a liberdade, a propriedade, a justiça, o dever, a obrigação e como os homens devem ser governados, por exemplo, observa-se que no primeiro tratado, Locke aborda a obra de Robert Filmer, Patriarcha, or The Natural Power of Kings (1680), porque Filmer defendeu uma forma monárquica de governo baseada na descendência de Adão via Deus.

Não se pretende abordar, por exemplo, o aspecto cético da argumentação de Laslett sobre se Locke seria um filósofo ou um teórico político. Busca-se apresentar os argumentos relevantes para compreender a relação entre os conceitos de lei e direito naturais. O aspecto político do pensamento de Locke: a influência da lei e do direito naturais na constituição do governo civil.

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5.1 O CONTEXTO DA LEI E DO DIREITO NATURAIS

Antes de expormos o contexto da lei e do direito

naturais, vale lembrar que para Simmons, em 1953 Leo Strauss escreveu que a filosofia moral e política da Locke dava ênfase sobre o direito natural e não sobre o dever e a obrigação natural. Aqueles direitos são a fundamentação da lei da natureza. Richard Cox seguiu Strauss e a lei da natureza tem como preocupação principal com o direito de autopreservação e somente depois de atendido esse direito é que a lei determina o dever com os outros. De acordo com Locke os direitos são por natureza superior aos deveres. A ideia é que os direitos são a base ou categoria primária do fundamento do governo e da moral lockeana. Muitas escolas têm defendido uma opinião oposta da teoria moral de Locke. Para David Gauthier, lei e dever, não direitos, são a fundamentação da ética de Locke. E James Tully (aparentemente seguindo John Dunn) reivindica que “A lei de natureza é [...] a fundamentação do direito natural de Locke”; “A prioridade da lei natural” mostra que Locke utilizou só uma teoria limitada do direito” (cf. SIMMONS, 1992, p.69).

Contudo, independente das interpretações divergentes, nenhuma delas extrai um significado coerente da concepção lockeana da função da lei e do direito naturais para a fundamentação, por exemplo, do governo civil. Assim, busca-se argumentar, neste texto, que a lei e o direito naturais em Locke têm mais do que uma reflexão secundária à fundamentação da sociedade e o surgimento do governo civil.

Deste modo, a fim de identificar com alguma exatidão os pressupostos, assim como os objetivos da filosofia de Locke, é importante levar em conta o que está por trás do seu pensamento.

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Para Yolton, parte das discussões sobre o direito natural está relacionada com a propriedade, a lei da natureza, justiça, dever e obrigação, mas Locke acreditava que “os direitos que as pessoas têm, também não se chocam, ou que as tensões entre interesses e direitos concorrentes serão resolvidos” (YOLTON, 1996, p.81), pela lei natural.

As atenções das leituras feitas sobre a lei natural, o direito natural e o governo nas obras de Locke centrou-se no Segundo Tratado. Observa-se que no Primeiro Tratado, Locke aborda a obra de Robert Filmer, Patriarcha, or The Natural Power of Kings (1680).

Segundo Yolton, nessa obra, Filmer defendeu uma forma monárquica de governo baseada na descendência de Adão via Deus. O pai da família era, com efeito, o governante desse grupo. O rei de um país desempenhava um papel semelhante. Filmer usou vários argumentos extraídos da Bíblia para apoiar a sua tese. Locke replicou com leituras detalhadas das Escrituras, mostrando que Filmer atribuía-lhes significados inexistente, mas que servissem para justificar os seus pontos de vista nesse livro [...], por exemplo, a inexistência sobre o poder parental na família; algumas referências aos conceitos de pessoa e propriedade e também à doutrina de leis da natureza (YOLTON, 1996, p. 86).

Em outras palavras, Locke critica o pensamento de Filmer, porque Filmer defendia o direito natural do rei sobre seus súditos para governar. Filmer acreditada na semelhança do direito dos pais para orientar os seus filhos com o direito do rei para governar os seus súditos. Da mesma forma que Adão deveria obedecer ao seu criador, os súditos deveriam estar submissos ao rei.

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Para Filmer é a providência divina que determina os princípios políticos e sociais imutáveis. Além disso, para Filmer, não há o que Locke chamou de a lei da natureza. A inexistência da lei natural deixa o homem em uma sociedade civil à submissão do rei que tinha obtido o seu direito de governar de uma ordem divina. Portanto, não há uma relação entre a lei e o direito naturais, mas uma dissociação, uma vez que não há lei natural e o direito para governar não provém do consentimento do povo, mas de ordem divina, mais precisamente, da descendência de Adão.

Segundo Laslett, uma das primeiras preocupações de Locke ao escrever a obra Dois Tratado Sobre o Governo Civil foi “com a autoridade do Estado na religião, em seguida, com a lei natural que sancionava tal autoridade e com o fundamento da lei natural na experiência” (Locke, 1998, p.26). Para Laslett, há uma nítida ruptura com o legado que Locke recebera e um vivo contraste com a sua reputação final. Havia uma forte influência da religião no modo como a sociedade se estruturava. O absolutismo predominava como forma de governo e tinha como fundamento a autoridade divina.

No Contexto de Locke, para Laslett, “os reis são chamados deuses na Escritura e o povo é a fera no entender dos doutos” (Locke, 1998, p. 27). Tem-se aí um dos maiores conflitos com a doutrina dos Dois Tratados Sobre o Governo Civil, mas observa-se que ao ler a obra que Locke é um convicto defensor da autoridade. Um homem disposto a não se deter diante de nenhum obstáculo para garantir os fundamentos do governo civil. Para Laslett, Locke defendia a autoridade legítima e não arbitrária, como fez Filmer, porque Le está convencido da diferença fundamental entre a autoridade política e a autoridade religiosa. Locke, segundo Laslett, “não se sentiu tentado a abraçar a mais segura e eficaz das posições não liberais, o

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direito divino dos reis, baseada no patriarcalismo, embora efetivamente o mencione” (LOCKE, 1998, p.27).

Condizente com o pensamento de Laslett, para Yolton, Locke inicia o Segundo Tratado com um resumo do que fez no Primeiro tratado:

1) Que Adão não tinha, seja por direito natural da paternidade ou por doação positiva de Deus, autoridade de qualquer natureza sobre os seus filhos ou domínio sobre o mundo, como pretende; 2) Que, se ele tivesse, seus herdeiros, contudo, não teriam direito a ela; 3) Que, caso os seus herdeiros os tivessem, por não haver lei de natureza ou lei positiva de Deus que determinando qual é o legítimo herdeiro em todos os casos que se possam surgir, o direito de sucessão, e consequentemente de deter o mandado, não poderia ter sido determinado com certeza; 4) Que, mesmo que houvesse sido determinado, ainda assim o conhecimento de qual é a linhagem mais antiga da descendência de Adão foi há tanto tempo completamente perdido que em todas as raças da humanidade e família do mundo não resta, a nenhuma mais do que a outra, a menor pretensão a ser a casa mais antiga e a ter o direto de herança (LOCKE , 1998, p. 379-80, II,§1).

Mas se Locke não aceita o patriarcalismo como uma forma legítima de governar, então qual é a forma mais efetiva de governar defendida por Locke? Para responder essa questão nos reportaremos aos pressupostos do seu pensamento político.

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5.2 ASPECTOS DO PENSAMENTO POLÍTICO DE LOCKE

Como dito acima, se deixarmos de lado os aspectos céticos do pensamento de Laslett sobre se Locke seria um filósofo ou um teórico político, então pode-se apresentar os argumentos relevantes para compreender a relação entre os conceitos de lei e direito naturais do pensamento político lockeano.

Laslett nos chama a atenção para o aspecto de que se observarmos as correspondências entre Locke e Tirrell, então notar-se-á que ao longo de toda a obra política, a expressão “lei natural” é usada com tranquila segurança, como se não pudesse haver dúvida quanto à sua existência, seu significado e seu conteúdo nas mentes do autor e do leitor. A lei natural, afirma Locke, é “clara e inteligível a todas as criaturas racionais” (II §124). A lei natural é de tal modo um código positivo que governa o estado de natureza, porque “o estado de natureza tem para governá-lo uma lei de natureza que a todos obriga” (II,§6), cujo conteúdo é “preservar-se [...] e cada um deve, tanto quanto puder preservar o resto da humanidade” (II, §6), mas suas obrigações “não cessam na sociedade”; todos os homens, em toda parte, devem submeter-se à lei da natureza, i.e., à vontade de Deus” (LOCKE, 1998, p.117, II,§135).

Como vimos acima, para Filmer não existia uma lei natural para o homem governar-se mesmo sendo ela a mais nítida expressão da vontade de Deus.

Para Laslett, Muito pode ser dito sobre Locke o filósofo, e Locke o teórico político, para iluminar sua posição na história do pensamento, bem como a lógica do problema implicada pelas relações entre filosofia e política. A descrição convencional do pensamento de Locke como uma

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peculiar e fecunda mescla de empirismo e racionalismo sugere os termos da discussão (Locke, 1998, p. 127).

Laslett, comenta que os vários volumes de Grótios, Pufendorf, Hooker e os demais que ocupavam as estantes de Locke e dominavam a atividade intelectual nesse campo, todos eram exposições de um sistema único e sintético […] apoiado em uma visão cristã para compreender a grande cadeia do ser […] a lei natural era o pressuposto comum e era em termos dela que buscavam descobrir em sistema fechado, […] a bem poucos deles nos desporíamos a dar o nome de ‘filósofo’, mas a tarefa a que se lançaram era de ordem filosófica […] Locke era filósofo, mas para ele o sistema era aberto (LOCKE, 1998, p.126).

Locke tem um estudo da natureza totalmente diferente dos seus contemporâneos. A atitude lockeana é que a lei natural, segundo Laslett

[…] consistia parte do seu racionalismo, da sua visão de que o universo deve ser compreendido racionalmente, incluindo as operações da divindade e as relações entre os seres humanos, mas em todos os pontos, é preciso compará-la e adequá-la aos fatos empíricos observados acerca do mundo criado e do comportamento humano (LOCKE, 1998, p.127-8).

Para Bobbio, em Locke existe um campo de ação considerada determinadas pela lei natural, porque a razão reconhece como um conjunto de regras sob a forma de obrigação.

as leis por excelência são as leis naturais, ou seja, aquele conjunto de dispositivos derivados de Deus ou da razão – ou de Deus mediante a razão, que obrigam indistintamente todos os homens a fazer ou a deixar de fazer algo. Pode haver uma concepção rigorosa da lei

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natural, que considera tudo o que não é comandado é proibido e vice-versa. Nesse caso, deixa de haver uma esfera de ações indiferentes5 ou lícitas, no sentido estrito, entre as que são ordenadas e as que são proibidas. De acordo com a concepção comum de lei natural, no entanto, o direito natural constitui uma ordenação não rigorosa, que admite uma esfera de ações que não são nem ordenadas, nem proibidas. São deixadas, assim, ao livre julgamento e à livre disposição de cada ser, individualmente (BOBBIO, 1997, pp. 93-4).

5 Não iremos nos aprofundar ao problema da fundamentação das ações indiferentes, porque foge aos objetivos desse texto, mas quem quiser se aprofundar, ver BOBBIO, N. Locke e o Direito natural. Tradução de Sérgio Bath – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

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5.3 LOCKE: A LEI NATURAL, O DIREITO NATURAL E A LIBERDADE

Laslett argumenta que para Locke, na teoria social e política do Dois Tratados Sobre o Governo Civil, “O homem nasce livre e igual ao seu semelhante, mas não está livre da superioridade de Deus e nem é igual a Deus” (LOCKE, 1998, p.135). Além disso, Locke afirma (II, §57) que “onde não há lei não há liberdade” (LOCKE, 1998, p.433). Curiosamente estamos diante da pergunta: mas por que Locke associa a noção de liberdade com a noção de lei? Uma resposta imediata é que a noção de liberdade está ligada à noção de lei. Sem a noção de lei não teremos a noção de liberdade.

Segundo Michaud, “a liberdade do indivíduo é a sua própria vida [...] quem atenta contra a minha liberdade atenta contra a minha vida” (MICHAUD, 1991, p. 46).

Nos textos de Locke, a noção de lei, (II, §57) está a referir-se à lei natural, ou seja, à lei da razão. Em outras palavras, a razão como uma capacidade humana, pode conhecer os diferentes acordos e desacordos entre os diferentes conteúdos dos pensamentos. Sem o conhecimento, não há o que ser decidido nem o que ser obedecido. Nas palavras de Locke,

A lei que deveria governar Adão seria a mesma que viria a governar toda a sua descendência, a lei da razão. Mas tendo a sua progênie outro modo de entrar no mundo, por um nascimento natural que a produz ignorante e sem o uso da razão, não estava ela submetida de imediato a essa lei, pois ninguém pode ser submetido a uma lei que não lhe seja promulgada e dada a conhecer apenas pela razão, não se pode dizer que aquele que ainda não cedeu à sua razão esteja sujeito a essa lei; e por não estarem os filhos de Adão imediatamente, assim que nasciam, submetidos a essa lei da razão, não estavam imediatamente livres. Pois a lei,

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em sua verdadeira concepção, não é tanto uma limitação quanto à direção de um agente livre e inteligente rumo a seu interesse adequado, e não prescreve além daquilo que é para o bem geral de todos quantos lhes estão sujeitos. Se estes pudessem ser mais livres sem ela, a lei desapareceria por si mesma como inútil; e mal merecia o nome de restrição à sede que nos protegesse apenas de pântanos e precipícios. De modo que, por mais que possa ser mal interpretado, o fim da lei não é abolir ou restringir, mas conservar e ampliar a liberdade, pois, em todos os casos de seres criados capazes de leis, onde não há lei, não há liberdade. A liberdade consiste em estar livre de restrições e de violência por parte dos outros, o que não pode existir onde não existe lei. Mas não é, como já foi dito, a liberdade para que cada um faça o que bem quiser (pois quem poderia ser livre quando o capricho de qualquer outro homem pode dominá-lo?), mas uma liberdade para dispor e ordenar como se quiser a própria pessoa, ações, posses e toda a sua propriedade, dentro dos limites das leis às quais se está submetido; e, portanto, não estar sujeito à vontade arbitrária de outrem, mas seguir livremente a sua própria (LOCKE, 1998,pp. 433-34).

Observa-se que nessa passagem, Locke expõe que a liberdade consiste em o homem estar livre de restrições e de violência por parte dos outros, o que não pode existir onde não existe lei, ou seja, tem-se um elo, um vínculo entre a lei e a liberdade. Por conseguinte, se não houver o conhecimento do que a lei estabelece para o homem, então não haveria sentido a existência da lei. A função da liberdade e da lei se auto anulariam. Portanto, a lei natural tem a função de garantir a liberdade de cada um e a igualdade de todos.

Segundo Laslett, Locke (II §4) expõe que

é a lei da natureza que estabelece os limites da liberdade natural e como a lei é a expressão da vontade divina, é

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possível uma reconciliação entre a onipotência de Deus e a liberdade humana (LOCKE, 1998, p.137-8). Observa-se que como os homens conhecem as

orientações de Deus por meio da razão, uma vez que a razão é a “voz de Deus” no homem, então não há conflito entre a vontade de Deus e a vontade humana. Em I, §86, Locke afirma que a razão foi

implantada nele pelo próprio Deus como um princípio de ação, o desejo, o forte desejo de conservar sua vida e existência, a razão, que era a voz de Deus nele, não poderia senão ensiná-lo e assegurá-lo de que, ao perseguir aquela sua inclinação natural para conservar a sua existência seguia ele o desígnio de seu artífice e tinha, portanto, o direito de fazer uso das criaturas que a razão e os sentidos lhe indicavam ser úteis [necessários] para tal fim (LOCKE, 1998, p. 293-4).

Os homens nascem em um estado que, de posse de sua racionalidade, conhecem a lei estabelecida por Deus para a sua conservação e direção. Diante disso, o homem conhece que Deus, como criador do homem, tem o direito de governá-lo e fazer com que o homem perceba, por meio da razão o que a lei natural determina.

Além disso, observa-se que em I, §101, “a lei de natureza é a lei da razão” (LOCKE, 1998, p 307). É a razão, que descobre, ou seja, que faz o homem conhecer a lei da natureza, um princípio de ação, o desejo, o forte desejo de conservar sua vida e existência e que os torna livres.

Para Locke “nascemos livres como nascemos racionais” (Locke, 1998, p. 437, II,§61). Como criaturas racionais o homem tem a capacidade de decidir, porque “[...] a liberdade de agir conforme a sua própria vontade baseiam-se no fato de ser ele possuidor de razão, que é capaz de instrui-lo sobre a lei pela qual ele se deverá governar [...]” (LOCKE, 1998, p. 438,

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II, §63). Portanto, a razão segundo Laslett, significa mais que a capacidade do livre arbítrio. A razão tem consequências fundamentais para liberdade e igualdade naturais. A razão definida como uma lei (a lei de natureza) ou um poder, é soberana sobre todas as outras ações humanas. A razão pode determinar as ações de mais de um homem em situação social, como faz a consciência (II, §8) (cf. Locke, 1998, p. 138).

Até aqui vimos como a lei natural se relaciona com a liberdade, mas como a lei natural se relaciona com o direito natural? Para responder esta questão investigar-se-á qual é o papel da razão – lei natural, para o direito natural.

Uma das mais surpreendentes consequências da teoria lockeana, diz Laslett, é na relação do homem com os outros homens em sociedade por meio da razão. Em II 172,

Especificamente falando, qualquer homem que procure submeter outrem a seu poder, à sua vontade, negando que esse outro indivíduo é tão livre quanto ele, porque também é detentor de razão, assim se recusando a reconhecer na razão a regra entre os homens (LOCKE, 1998, p.139)

Em outras palavras, para Locke a razão é o modo de cooperação entre os homens, porque a razão é “o vínculo comum pelo qual o gênero humano se une em uma única irmandade e sociedade” (II §172). A razão é o modo como Locke entende a conservação da justiça dentro e fora da sociedade organizada.

Tendo renunciado à razão concedida por Deus para ser a regra entre um homem e outro [...] e tendo renunciado o caminho da paz que essa razão ensina e feito o uso da força de guerra para impor seus injustos fins a outrem, a que não tem direito algum, [itálico nosso] revertendo assim de seu próprio gênero para o dos animais ao fazer da força [...] sua regra de direito, ele torna-se passível de ser

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destruído pela pessoa prejudicada e pelo resto da humanidade, como qualquer outra besta selvagem ou fera nociva que proceda do modo destrutivo para com seus pares (LOCKE, 1998, p. 539, II, 172).

Portanto, nesta passagem observamos que para Locke o direito natural do uso da razão ocupa um lugar privilegiado, pois se o homem renunciar ao uso da razão a que tem direito, então se colocará ao gênero dos animais. O homem não só compromete a sua vida como, também, a vida de toda a humanidade.

O homem tendo na razão o direito de autogovernar-se pode, também, por meio dela decidir o que quer fazer da sua vontade, porque, por exemplo,

o Leviatã defendia que o patriarca monárquico, subordinava toda a vontade humana a uma única vontade; convertia o direito e o governo numa questão de vontade, [...] e qualquer um que almejasse os direitos e poderes do soberano poderia ser tratado como animal (LOCKE, 1998, p. 140).

Assim, observamos que, desprovido da razão, o homem se coloca à mercê da vontade de outros, submetidos ao governo de outros sem a possibilidade de estabelecer um governo ou criar uma sociedade. Como diz Laslett, “Carlos e Jaime Stuart se encaixam com grande facilidade no papel dos ‘animais selvagens com os quais os homens não podem ter sociedade ou segurança’” (Locke, 1998, p.140).

Cada um, diz Locke, “detém o poder executivo da lei da natureza” (LOCKE, 1998, p. 141. II, §6,7,8,9,13). Se alguém transgredir a lei da natureza, todos os demais têm o direito de puni-lo por isso e de reivindicar uma retribuição, não apenas em nome dos danos próprios sofridos como para defender a autoridade “da razão e a equidade comum, que é a medida fixada por Deus às ações dos homens, para a

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mutua segurança destes” (II, §8). Locke defende que é possível fazê-lo individualmente, mas podemos e devemos colaborar com outros indivíduos contra a “agressão contra toda a espécie”. Deste modo, é no direito natural do uso da razão que se baseia o direito de governar como também o seu poder para governar, pois consiste num poder coletivo, utilizado contra um defensor, ainda que exercido por um único homem. O direito de governar, bem como o poder para governar, são um direito e um poder naturais, fundamentais e individuais, equiparados aos de conservar a si próprios e ao resto da humanidade (II, §§128-30). São de natureza judicial, já que consistem no pronunciamento e na aplicação da lei da natureza, que é a da razão.

Por isso, em Dois Tratados sobre o Governo Civil, onde Locke rejeita os argumentos de Filmer em favor da absoluta e ilimitada soberania de Adão sobre todos os outros, observamos que Locke também enfatiza o assunto da natureza humana comum entre os seres humanos. Locke defende que todos os homens “participam de natureza, faculdades e poderes comuns [...] e devem compartilhar de direitos e privilégios comuns” (I, §67). Yolton argumenta que, para Locke, “A execução da lei da natureza no estado de natureza é colocada nas mãos de cada pessoa; qualquer um tem o direito de castigar os transgressores dessa lei” como um modo de impedir a violação dos direitos de outros (II, § 7).

Para Locke segundo Yolton, todo o homem nasce “com direito a perfeita liberdade [dentro das limitações imposta pela lei da natureza] e gozo incontrolado de todos os direitos e privilégios da lei da natureza” (II, § 87). Quando os homens decidem constituir uma sociedade civil, cedendo parte do poder que tinham no estado de natureza a um governante ou grupo. Os direitos do governo devem ser explícitos (II, § 111), porque o corpo legislativo “está na obrigação de dispensar justiça e decidir dos direitos dos súditos

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mediante leis promulgadas, com caráter permanente, por juízes de reconhecida autoridade” (II§136). Quando um governo viola o seu mandato ou fracassa na manutenção da ordem, “o povo torna-se multidão confusa, sem ordem ou conexão” (II §219). A justiça não pode ser administrada nessas condições, os direitos do homem não podem continuar a ser protegidos. Quer a dissolução do governo seja culpa do povo ou dos governantes,

quem quer que [...] empreende pela força invadir os direitos seja do príncipe, seja do povo e lança as bases para derrubar a constituição e a estrutura de qualquer governo justo, é altamente responsável pelo maior crime de que um homem seja capaz (II, § 230).

Nessa passagem observa-se que, quando a força é convocada para a resolução dos problemas na sociedade, significa que se instalou o estado de guerra, por que, segundo Locke, “usar a força sem direito coloca essa pessoa em estado de guerra contra os outros (II, § 232). Veremos alguns aspectos no que se segue o que é que faz uma sociedade romper com o direito natural ao uso da lei natural e entrar em guerra.

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5.4 DIREITO NATURAL, ESTADO DE NATUREZA E ESTADO DE GUERRA

Para Michaud, Locke define o poder político como aquele que tem o direito legislativo, ou seja, diz Locke,

Considero, portanto, que o poder político é o direito de editar leis com pena de morte e, consequentemente, todas as penas menores, com vistas a regular e a preservar a propriedade, e de empregar a força do Estado na execução de tais leis e na defesa da sociedade política contra os danos externos, observando tão somente o bem público (LOCKE, 1998, p. 381, II, §3).

Segundo Michaud, Locke “contra Filmer, observa-se que a origem do poder, não vem do pai, do marido, do senhor nem do dono, mas da lei natural já existente no estado de natureza” (MICHAUD, 1991, p. 37), porque, como dissemos, no estado de natureza, o homem tem o direito inalienável de defender-se. “cada homem tem o direito de punir o ofensor e de ser o executor da lei natural” (LOCKE, 1998, p.388, II, § 10).

Para Locke, aquele que violar a lei natural se põe em estado de guerra.

A força ou a intensão declarada de uso da força sobre a pessoa de um outro, quando não haja um poder superior comum sobre a Terra, ao qual apelar em busca de assistência, constitui o estado de guerra (LOCKE, 1998, p. 398, II, §19).

Locke, em II, 21, afirma que no que se refere ao estado de guerra, ele é “uma das razões para que os homens se reúnam em sociedade”. Segundo Michaud, o estado de guerra lockeano é a interrupção do estado de natureza. A guerra dura enquanto não houver a paz e a reparação dos prejuízos. O agredido tem o direito de destruir o seu

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agressor, porque exerce o seu direito natural de autodefesa. O estado de natureza constitui a norma da sociedade política e o governo civil se esforça para realizar os fins já presentes no estado de natureza (cf. MICHAUD, 1991, p. 40).

Segundo Tadié, enquanto que para Filmer, é a providência divina que determina os princípios políticos e sociais imutáveis, para Locke, Deus determina aos indivíduos a obrigação de respeitar a lei natural, obrigação que o homem pode conhecer por meio da razão, ou seja, todos os homens podem conhecer e respeitar a lei natural igualmente, porque os homens podem fazer uso de sua razão, alicerçada na percepção sensível.

Além disso, em parte alguma do texto, diz Tadié, Locke afirma que Deus tenha colocado um homem acima dos demais, ao contrário, nenhum homem, nenhum monarca, está acima dos demais e os homens são iguais e livres necessariamente e ao mesmo tempo. “isto não é pôr em questão o poder de Deus, mas simplesmente colocá-lo, só ele, acima dos homens” (TADIÉ, 2005, p. 50).

Mais uma vez, vale ressaltar que no Segundo Tratado, Locke retoma a relação entre a lei natural e a razão. Ali Locke defende que a lei natural garante os direitos naturais de cada um a preservar-se e preservar a humanidade.

Além disso, no estado de natureza, o homem possui direitos e deveres que lhes são dados pela lei de natureza e é vontade de Deus que o homem possua ao mesmo tempo livre-arbítrio e razão; Locke funda assim, no estado de natureza, as regras ou as leis para todas as ações humanas e de todas as relações sociais.

Observa-se, entretanto que o estado de natureza impõe certos limites. Como cada um pode exercer o seu direito natural de auto preservar-se e ser juiz em causa própria, então a desordem pode surgir, assim, diz Locke em II, 13, “admito sem hesitar que o governo civil é o remédio adequado para as inconveniências do estado de natureza”

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(Locke, 1998, p. 391), porque, “no estado de natureza não existe lei que permita aos homens julgar imparcialmente sobre o direito e as faltas de cada um” (TADIÉ, 2005, p. 53). Portanto a sociedade civil está fundada sobre a existência de um contrato que tem por finalidade preservar a lei e os direitos naturais, por exemplo, à vida, à liberdade e os bens. Com o contrato, os homens colocam fim ao estado de natureza e anunciam a entrada, por um consentimento, na sociedade política.

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5.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo exposto que a lei e o direito naturais fundamentam o governo civil, porque para Locke,

a liberdade dos homens sob um governo consiste em viver segundo uma regra permanente, comum a todos nessa sociedade e elaborada pelo poder legislativo nela erigido: liberdade de seguir minha própria vontade em tudo quanto escapa a prescrição da regra e de não estar sujeito à vontade inconstante, incerta, desconhecida e arbitrária de outro homem. Assim como a liberdade da natureza consiste em não estar sujeito à restrição alguma, senão à da lei da natureza (LOCKE, 1998, p. 403).

Quando o homem se encontrar na submissão de alguém, ele estará sob o domínio de um poder absoluto e arbitrário que existe apenas fora do direito natural e fora do consentimento dado para a constituição da sociedade. Seja como for, quando um governo se torna tirano ele transgride o direito natural, pois “onde acaba o direito começa a tirania (II, 202), deste modo, o povo se vê na condição de resistir.

O direito à resistência é de suma importância no pensamento político lockeano, pois “a força só se opõe a força injusta e ilegal” (II, 204), uma vez que o estado de guerra não cessou. Quando o legislativo é alterado e quando age em contradição com a sua finalidade, o direito à resistência pode ser exercido. O povo tem a obrigação de exercer o direito de resistir.

Portanto, como vimos acima, Deus dá aos indivíduos a obrigação de respeitar a lei da natureza, obrigação que podem conhecer por meio da razão. Os homens podem respeitar igualmente e conhecer a lei natural, porque podem fazer uso da sua razão.

Vimos que, no Segundo tratado, Locke expõe claramente o vínculo entre o conhecimento da lei natural e a

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razão. O vínculo que Locke estabelece entre a lei e o direito naturais e a constituição do governo civil. A liberdade do homem como se fosse a sua própria vida, pois sem ela não haveria sentido o pressuposto do consenso para a constituição do governo civil, porque na oposição de Locke a Filmer decorria da absoluta liberdade que Locke defende para o homem. Assim, a lei natural garante o direito natural que cada um tem e a igualdade de todos.

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REFERÊNCIAS BOBBIO, Norberto. Locke e o direito natrual. Traduçao de Sérgio Bath – Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1997.

LOCKE, John. Dois Tratados Sobre o Governo. Tradução de Júlio Fischer – São Paulo: Martins Fontes, 1998.

MICHAUD, Yves. Locke. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro :Editor Jorge Zahar,1991.

SIMMONS, A. John. The Lockean Theory Of Rights. Princeton University Press. Princeton, New Jersey, 1992

TADIÉ, Alexis. Locke. Tradução de José Dias de Almeida Marques. São Paulo: Estação da Liberdade, 2005.

YOLTON, W. John. Dicionário Locke. Tradução de Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Editor Jorge Zahar,1996.

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VI

O DIREITO DE RESISTÊNCIA À TIRANIA

Péricles Ariza* Lurdes de Vargas Silveira Schio**

INTRODUÇÃO

John Locke é um dos principais filósofos modernos. Ele desenvolve e apresenta a clássica teoria do direito natural ou do estado de natureza e do direito positivo ou estado civil, da necessária passagem e evolução dos homens de um estado de selvageria, de liberdade plena, mas perigosa e de insegurança permanente, para um estado racional, de liberdade limitada, capaz de garantir a paz entre os homens. No entanto, segundo Locke, existe uma grande diferença entre estado de natureza e estado de guerra, pois para Locke, os direitos mais elementares sobre os quais os demais direitos devem ser pautados ou que os mesmos se fundamentam, dentre eles todo o direito positivo, são, na verdade, direitos naturais. Os principais direitos naturais que Locke não apenas defende, mas considera “sagrados”, uma vez que os mesmos não são apenas direitos naturais, mas

* Mestrando em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná. Área de concentração em Filosofia Moderna e Contemporânea, na linha de Pesquisa “Ética e Filosofia Política”. Graduação em História (UNIPAR,2007) e em Filosofia (UNIOESTE, 2016). ** Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de Florianópolis (UFSC, 2011) na área Lógica e Epistemologia. Mestrado (UFSC,2003). Especialização em Epistemologia (UFSC,1996). Graduação e Licenciatura Plena em Filosofia e História (UNIOESTE,1995).

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também divinos, pois foram feitos por Deus para o homem, são: o direto à vida, à propriedade e à liberdade.

Na obra Segundo Tratado Sobre O Governo, John Locke apresenta uma espécie de “teologia liberal” e política, considerando os direitos dados por Deus a Adão, Eva e seus filhos, direitos não apenas naturais, mas, acima de tudo, como dito, divinos. Por serem para Locke os direitos naturais considerados direitos “divinos e sagrados”, devem ser preservados e rigorosamente respeitados. Isso vale, segundo o filósofo, tanto para os indivíduos particulares, mas principalmente para os governos. Entretanto, Locke busca estabelecer, com base no direito natural, não apenas os limites do indivíduo, as condições de liberdade na sociedade civil, mas também, os limites do poder soberano, ou seja, os limites do governo ou governantes.

Segundo Locke, nem governantes nem governados possuem ou devem possuir a soberania absoluta, porque a soberania pertence única e exclusivamente à lei – como também a Deus –, a qual deve estar acima dos homens e da sociedade civil. Portanto, segue-se que, como parte integrante deste trabalho e dos estudos realizados sobre John Locke para a publicação deste e-book, apresentamos a seguir a teoria lockeana acerca do direito de resistência contra a tirania, também entendido e defendido pelo filósofo como direito de defesa, talvez sua mais importante contribuição para a filosofia política. Neste sentido, convidamos o leitor para que possa ler e refletir conosco sobre como Locke irá desenvolver sua crítica sobre o poder soberano, o direito do povo de resistência à tirania e à opressão.

Para Tarcov, por exemplo, “a defesa de Locke do direito de resistência tem levantado várias questões. Uma delas é se ele era consciente do uso feito pelos [...] conspiradores ou oligarcas” (TARCOV,1999, p. 198). Estes que, por sua vez, costumam utilizar-se com frequência do “direito de defesa” para massacrar muitas vezes o povo e

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mantê-lo sob rigorosa e covarde dominação, espoliação e opressão.

Para Locke, entretanto, quando um governo ou governante não zela pela defesa da vida, da propriedade e da liberdade de seu povo, mas, pelo contrário, atua em sentido inverso, guiado por interesses privados e vontades pessoais, o governo entra em estado de guerra contra seu povo, que graças ao direito natural e também “divino”, poderá e deverá resistir.

Com isso em mente, podemos nos perguntar: poderão os súditos usarem da força contra seus príncipes e governantes quando estes transgredirem a lei ou o pacto social e ameaçar as vidas, famílias, propriedades e liberdades dos cidadãos?

Para responder essa pergunta nos debruçaremos, na primeira sessão deste texto, sobre o conceito de tirania; na segunda sessão, sobre a diferença entre a dissolução da sociedade civil e do governo; na terceira sessão, sobre a origem da rebelião; e na quarta e última sessão, sobre o direito de defesa ou de resistência de um povo com o objetivo de evidenciar algumas considerações sobre a teoria política lockeana da revolução social.

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5.1 SOBRE A TIRANIA

Para John Locke, a ninguém pode ser permitido exercer o poder para além do direito legítimo, ou seja, para além do que estabelece a lei e o pacto social. Todo o poder ou direito, para que seja ou possa ser considerado legítimo, deve necessariamente possuir o consentimento do povo na sua maioria. É neste sentido que, de acordo como Locke, a origem e a fundação de um governo, da autoridade e da legitimidade do mesmo, consistem, na verdade, no consentimento do povo e não na conquista, como muitos confundem. Neste sentido é que Locke classifica a tirania como um governo que exerce um poder do tipo degenerado ou corrompido, para além do poder legítimo e que a ninguém poderia ser permitido. A tirania é um governo baseado na conquista, no interesse privado e particular. A tirania não leva em conta a vontade da maioria, o consentimento do povo e dos governados ou do bem público. Ela também se manifesta como um poder que é exercido pela força, sempre em vantagem própria. A tirania é um governo que visa a vantagem de quem governa. O governo governa segundo sua própria vontade, não segundo leis e, por isso, de acordo com Locke, trata-se de um governo sem legitimidade ou autoridade. Portanto, não é a força ou a conquista quem dá o direito ou representa a origem da autoridade e de um governo, mas o consentimento do povo ou, como poderíamos dizer, dos governados.

O rei ou governo, para Locke, para que possa exercer um governo legítimo, deve ser aquele que possui o consentimento e a confiança do povo. O rei se eleva ao poder através do povo e não aquele que sobre o povo se impõem pela força e pela guerra. Afinal, um governo legítimo ou civil representa a superação ou meio de evitar a continuidade do estado de guerra. Para constituir o estado

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civil os homens estabelecem um pacto de paz, tolerância e consentimento, evitando exatamente o uso da violência e da força. Portanto, a tirania é uma espécie de governo que não possui nada de “político” ou “civil”, mas é, na verdade, um estado de guerra entre tirano e povo.

Para Locke, um rei torna-se e degenera-se em tirano quando ignora as leis estabelecidas e passa a governar de acordo com suas próprias leis. Deste modo, a diferença entre um rei e um tirano consiste que o primeiro faz das leis o limite de seu poder e o segundo subordina tudo à ambição e vontade pessoal, acreditando que seu governo e seu povo devam satisfazer seus desejos e aspirações individuais, muitas delas, quase sempre, contrárias ao interesse e ao pacto estabelecido com o povo. O rei legítimo faz do bem público e geral da população o objetivo de seu governo. Enfim, onde termina a lei começa a tirania, defende Locke.

Mas, retomando a questão exposta no início do texto, vale dizer, se poderia um povo resistir às ordens de seus príncipes ou governantes quando estes tornam-se ou degeneram-se em tiranos, seria legítimo o povo resistir contra o governo que rompe o pacto e se recusa a seguir as leis estabelecidas, governando ao seu bel prazer e interesse? Locke responde:

Não se deve opor força senão a força injusta e ilegal; quem quer que resista em qualquer outra circunstância atrai para si uma condenação justa, tanto de Deus como dos Homens. (LOCKE, 1999, p.209, § 204)

Como podemos observar, o religioso Locke procura recorrer ao poder ou vontade de Deus para buscar fundamentar sua tese do direito de resistência contra a tirania, uma vez que o período em que o filósofo inglês escreve sua obra é dominado por governos e teorias absolutistas, onde o poder supostamente provindo de Deus

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é, claro, dentro da perspectiva religiosa, mais legítimo que o poder provindo dos homens.

Para Locke nada pode justificar a força hostil, exceto quando se é negado a alguém o recurso legal. Por exemplo, quando temos nossa vida, família e propriedade ameaçadas por um assaltante comum e não temos tempo para recorrer e utilizar as vias legais para nos proteger. Porém, na existência de um governo civil e em casos em que a vida não está ameaçada, deve-se recorrer às vias legais, evitar os excessos, a força e apelar à lei para que haja reparação e punição. Na inexistência de um estado ou governo civil, que garanta a proteção de nossa vida, onde esta se encontra visivelmente ameaçada, a lei de natureza, segundo Locke, nos dá o direito de destruir o indivíduo que se colocou em estado de guerra contra nós e nos ameaçou com nossa destruição. Por conseguinte, quando a força é utilizada de maneira ilegal, ou seja, em desacordo com a lei ou pacto social, esta força coloca quem a usa, de acordo com Locke, em estado de guerra e torna legal a resistência, ou seja, o uso da força como legítima defesa. Assim, respondendo à pergunta inicial, quando quem transgride a lei ou pacto social e ameaça nossas vidas, famílias, propriedade e liberdades é o governo, os súditos podem usar da força contra seus príncipes e governantes.

Locke procura descrever cuidadosamente algumas situações no qual se poderia classificar como legítima uma possível resistência popular frente ao governo, ou seja, uma “rebelião popular”. O cuidado que Locke procura ter com suas palavras se devem ao fato de estar o filósofo escrevendo em pleno período absolutista, onde o poder soberano dos reis supostamente possuía sua origem em uma “graça divina” e, claro, em um forte apoio da igreja. Seja como for, Locke não hesita em defender a legitimidade de rebelião e de autopreservação do povo frente a um rei ou governo que oprime e violenta seu povo, mesmo quando

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este é composto por membros que conquistaram o poder por via hereditária e pela “graça divina”, ou melhor, pela graça da igreja. Quando um rei ou um governo apelam para a tirania automaticamente deixam de existir, ou seja, não há mais rei ou governo, mas tirania e “anarquia”.

Segundo Locke, se todos constatam que um governante diz pretender agir de uma maneira, mas na verdade age de outra, se o mesmo utiliza sem ressalvas artifícios para escapar da lei, se usa da confiança depositada pelo povo empregando-a contrariamente ao mesmo e aos objetivos para os quais se propôs, algo deve ser feito. Outros aspectos de tirania que legitimariam uma ação contrária do povo em relação a seu governo, de acordo com Locke, ocorrem quando magistrados subalternos são escolhidos em função de fins não aprováveis pelo povo e onde os magistrados são retribuídos pelo favorecimento ou pela desgraça, de acordo com seu apoio ou sua oposição. Quando algo não pode ser feito e ainda assim é aprovado na forma de lei como sendo “a melhor medida tomada em favor do povo”, também temos mais um exemplo de arbitrariedade e de tirania. Enfim, segundo Locke, se toda uma sequência de ações revela abertamente que um governo tende muito mais contra o seu povo do que a favor do mesmo, então é necessário a dissolução do governo.

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6.2 DIFERENÇA ENTRE DISSOLUÇÃO DA SOCIEDADE CIVIL E DISSOLUÇÃO DO GOVERNO

Quando escreve no último capítulo da obra Segundo Tratado Sobre o Governo sobre a possibilidade ou necessidade de dissolução de um governo quando o mesmo se corrompe, Locke procura deixar clara a diferença entre a dissolução do governo e a dissolução da sociedade civil. Embora governo e sociedade civil sejam constantemente confundidos, ambos são elementos consideravelmente diferentes. A sociedade civil não pode ser dissolvida por um governo, embora isto ocorra quando este se corrompe ou degenera. Já o governo pode e deve ser dissolvido pela sociedade civil quando isto ocorrer.

O governo constitui-se para manter a unidade, a segurança e a proteção da sociedade civil dos inimigos externos e internos. Quando o governo não é capaz de garantir a proteção e a unidade da sociedade civil, segundo Locke, ele naturalmente se dissolverá, vítima de conflitos internos no país ou de uma invasão inimiga estrangeira que possa querer ou desejar conquistar a nação. Neste sentido é que o principal objetivo do governo é garantir a paz para seu povo e a constituição de uma ordem social que conserve a sociedade civil mantendo-a ao abrigo e fora da violência. Entretanto, quando um país é vítima de invasão estrangeira ou sofre com uma tirania e violência praticada no interior de seu próprio território, o governo e o legislativo se dissolvem. Com a dissolução das leis e do governo, segundo Locke, o povo se torna uma multidão confusa sem ordem ou coesão e acaba, por conseguinte, fazendo com que o povo ou a multidão retornem ao estado original de natureza e, com isso, também ao estado de guerra.

Para Locke, o próprio direito e sentimento natural de autopreservação da vida, da liberdade e da propriedade fará

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com que os indivíduos busquem resistir, naturalmente e a constituir um novo governo ao formar um novo legislativo. Este governo, que não nasce de uma conquista, mas de um pacto entre os indivíduos, só se estabelece e possui razão de ser, segundo Locke, para garantir a preservação da propriedade do povo e de cada indivíduo. O fim a que se propõem os homens quando escolhem e autorizam um legislativo é que hajam leis, regulamentos estabelecidos, instituições que garantam a proteção e defesa para as propriedades de todos os membros da sociedade. Instituições que possam moderar a dominação de cada parte e de cada membro da mesma.

Mas, quando no interior de uma nação um governante, o legislativo ou qualquer instituição passam a agir contra a confiança neles depositada, quando são estes quem tentam invadir a propriedade dos súditos e transformar a si mesmos, ou qualquer parte da comunidade em senhores que dispõem arbitrariamente da vida, da liberdade ou dos bens do povo? O que fazer? A passagem é longa, mas trata-se de uma das poucas passagens em que Locke procura problematizar a questão, por isso somos obrigados a transcreve-la aqui integralmente:

[...] sempre que o legislativo transgredir esta regra fundamental da sociedade, e, seja por ambição, por medo, por tolice ou por corrupção, tentar dominar a si mesmo ou pôr as mãos em qualquer outro poder absoluto sobre as vidas, as liberdades e os bens do povo, por este abuso de confiança ele confisca o poder que o povo depositou em suas mãos, para fins absolutamente contrários, e o devolve ao povo, que tem o direito de retomar sua liberdade original, e pelo estabelecimento de um novo legislativo (o que ele considerar adequado) promover sua própria segurança e tranquilidade, que é o objetivo pelo qual estão em sociedade. O que eu disse aqui com respeito ao legislativo em geral, se aplica também ao

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executor supremo que, tendo uma dupla confiança nele depositada, tanto uma participação no legislativo quanto na suprema execução da lei, age contra ambas quando começa estabelecer sua própria vontade arbitrária como a lei da sociedade. Ele age também contrário à sua confiança quando emprega a força, os recursos do Tesouro e os cargos públicos da sociedade para corromper os representantes e obter conivência com seus propósitos; ou se abertamente ele alicia os eleitores e lhes prescreve escolher indivíduos que por solicitações, ameaças promessas ou quaisquer outros meios já concordaram com suas intenções, e emprega esses eleitores para enviar às assembleias homens que se sentissem obrigados, no futuro, a votar de uma certa maneira e fazer adotar leis determinadas. Assim sendo, o que é este controle sobre candidatos e eleitores, este novo modelo de procedimento eleitoral, senão cortar o governo pela base e envenenar a verdadeira fonte da segurança pública? (LOCKE, 1999, p.219, §222)

É possível observar claramente nessa passagem que Locke não concorda com a manipulação de qualquer segmento da sociedade. O filósofo, desse modo, considera que a manipulação de eleitores e de votos também é outra característica da tirania, porque procura maquiar seu autoritarismo com uma face diplomática e política. Neste sentido, o povo percebendo estar sendo enganado e oprimido por seu governo, segundo Locke, pode e possui o direito natural e legítimo de resistir ao mesmo. Na verdade, o povo não só pode resistir a um governo tirano, não somente têm o direito natural e sagrado de sair dele, mas, também, de impedi-lo. Ou seja, de antecipar-se a tirania, de evitar que ela chegue ou consolide seu poder.

Locke argumenta o quanto é difícil um povo se rebelar contra a tirania de um governo. Embora seja difícil, isto é algo possível de ocorrer, porque a história nos revela muitos exemplos, tais como, a natureza possui suas próprias

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leis e tendências, até mesmo um cão dócil é capaz de reagir se ameaçado e violentado por muito tempo. O mesmo, naturalmente, vale para um governo tirano que abusa de seu povo e do poder que lhe foi confiado. Portanto, após a tirania ter se instaurado, não resta alternativa ao povo, a não ser rebelar-se. Diante disso, vejamos como a rebelião se origina com o aprofundamento da tirania a fim de ilustrar os meios de evitar a ambas.

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6.3 SOBRE A ORIGEM DA REBELIÃO E OS MEIOS DE EVITÁ-LA

Ao defender o direito natural e legítimo de defesa do povo em relação a um governo que o oprime, polemiza Locke, “pode-se argumentar que esta hipótese se arrisca a incitar a frequente rebelião” (LOCKE, 1999, p.220, XIX, § 223). Entretanto, para o filósofo inglês, a mais grave das rebeliões inicia-se quando um governante ou governo se corrompem, quando estes se rebelam contra as leis e contra o povo.

Locke argumenta que, apesar de todas as dificuldades e aparente impossibilidade do povo se rebelar contra seus superiores, quando “maltratado e governado de maneira ilegal, estará pronto na primeira ocasião para se libertar de uma carga que lhe pesa demais sobre os ombros” (LOCKE, 1999, 221, XIX, § 225). Tais revoluções, segundo Locke, não ocorrem devido a pequenas faltas cometidas na administração dos negócios públicos. Elas ocorrem naturalmente e inevitavelmente, quando erros graves por parte do governo, como dito acima, a aprovação e decretação de leis injustas e inoportunas, assim como uma longa sucessão de abusos, prevaricações e fraudes tornam-se visíveis ao povo. Este, por sua vez, quando não pode deixar de perceber o que o oprime, nem de ver o futuro infeliz que lhe espera, provavelmente, cedo ou tarde, irá se rebelar e entregar o poder para quem possa lhe garantir o fim em si do governo, que é, segundo Locke e toda a doutrina contratualista, o de garantir a paz, a vida, a propriedade e a liberdade das pessoas, dos súditos e cidadãos. Neste sentido, escreve Locke:

Eu respondo que este poder que o povo detém de restaurar sua segurança instaurando um novo legislativo, quando seus legisladores agem contra a sua missão, invadindo sua propriedade, é a melhor defesa contra a rebelião e o meio mais eficaz para impedi-la (LOCKE, 1999, p.221, XIX, § 226).

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Como podemos perceber, Locke enfatiza a tese de que a rebelião não possui sua origem no povo, na revolta deste contra seus governantes, mas no sim do governo, quando este rompe com o pacto e a lei estabelecida em comum acordo entre os homens, governantes e súditos. E ao se rebelarem contra a lei ou pacto social estabelecido, os próprios governantes dissolvem o governo e restabelecem novamente o estado de guerra, de anarquia e tirania, por isso são ou podem ser considerados, também, segundo Locke, propriamente rebeldes. Assim sendo, conclui o filósofo:

Estou certo de uma coisa: seja quem for, governante ou súdito, que tente pela força invadir os direitos do príncipe ou do povo e determinar a base para a derrubada da constituição e da estrutura de qualquer governo justo, ele é altamente capaz, e deve responder por todos os males do sangue derramado, da rapina e da desolação que o destroçamento de um governo traz para um país. Aquele que age assim merece que a humanidade o considere como inimigo comum e como uma peste, e como tal deve ser tratado (LOCKE, XIX, § 230). Todos concordam que é permitido resistir pela força aos súditos ou aos estrangeiros que utilizam da força para se apossar dos bens de quem quer que seja. Mas tem-se negado, nos últimos tempos, que se possa resistir aos magistrados que agem da mesma forma. Como se aqueles que têm os maiores privilégios e vantagens propiciadas pela lei tivessem assim o poder de infringir essas leis, sem as quais eles não seriam em nada superiores aos seus semelhantes. Sua ofensa é muito maior, tanto porque não sabem agradecer a parte mais vantajosa que a lei lhes dá, quanto porque falharam na missão que o povo lhes outorgou (LOCKE, 1999, p. 225, XIX, § 231).

Portanto, Locke claramente expõe que para evitar a rebelião, tanto o povo quanto os governantes devem

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respeitar as leis e cumprir com o que foi estabelecido pelo consentimento. Com a ausência de um legislativo justo, todos podem se apossar dos bens e invadir a liberdade uns dos outros, culminando na destruição da constituição e com a base ou possibilidade de estabelecimento de um governo justo. Diante disso, o povo recupera o direito de defender-se, ou, como na terminologia e tese lockeana, “é legítimo que o povo resista a seu rei” (LOCKE, XIX, § 232). Assim, busquemos agora, no ponto seguinte, abordar o direito de resistência ao governo tirano a fim de investigar como e por que Locke chegou a essa conclusão e a necessidade de defesa deste direito.

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5.4 SOBRE O DIREITO DE DEFESA OU RESISTÊNCIA POPULAR

Para fundamentar a teoria sobre a legítima defesa de um povo em relação à tirania ou direito de resistência, mesmo contra reis e príncipes absolutistas de sua época, Locke resgata os textos em latim escritos por William Barclay, conhecido por ser o grande defensor da monarquia absoluta que, apesar disso, admite que “se tem o direito de resistir a um rei quando esse deixa de ser rei”. A qualidade de um rei é definida pela capacidade que este possui de zelar pela paz, pela vida, pela propriedade e liberdade de seus súditos. Quando do contrário, este é rei apenas no nome, pois ao não possuir ou desaparecer as qualidades que fazem um Rei ser realmente Rei, o Rei não existe ou desaparece. Fundamentando-se no argumento de autoridade e nos textos latinos de Barclay, em um período de governos absolutistas e permanentes abusos cometidos por inúmeros tiranos em sua época, Locke procura encontrar segurança e sustentação para a defesa de sua tese. Porém, Locke apresenta ao mesmo tempo suas críticas às limitações defendidas por Barclay. Este defende que: “a autodefesa é uma parte da lei de natureza; não pode ser negada à comunidade, nem mesmo contra o próprio rei” (LOCKE, XIX, § 233) Mas, de acordo com Barclay, não se deve deixar que ela (a comunidade) se vingue sobre ele (o rei), pois isso não está de acordo com a lei da natureza. Segundo Barclay:

[...] se o rei demonstrar um sentimento de ódio, não apenas a determinadas pessoas, mas se colocar contra todo o conjunto da comunidade civil, de que ele é o chefe, e, com um mau uso intolerável do poder, cruelmente tiranizar todo o povo ou uma considerável parte dele, neste caso o povo tem o direito de resistir e se defender da injúria. Mas isso deve ser feito com cautela, pois ele só tem o direito de se defender, não de atacar seu

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príncipe. BARCLAY, Contra Monarchomachos, lib. Iii, c. 8 (LOCKE, XIX, § 233)

Ainda, de acordo com Barclay: “O povo pode reparar os danos causados, mas não deve, por nenhuma provocação, exceder os limites da reverência e do respeito devidos” (LOCKE, XIX, § 233). E, para finalizar, conclui: “mas o conjunto do povo pode, com respeito, resistir à tirania intolerável; mas quando ela for apenas moderada, devem suportá-la” (LOCKE, XIX, § 233).

Para Locke, esta é uma maneira ridícula de resistir, pois, como “resistir à força sem revidar os golpes, ou como combater com reverência”? O resultado segundo Locke será inevitavelmente, como o próprio filósofo ironiza em latim:

Libertas pauperis haec est: Pulsatus rogat, et pugnis concisus adorat Ut liceat paucis cum dentibus inde reverti. 6

É assim que para Locke terminará sempre a resistência imaginária de homens como Barclay, onde quem é violentado não possuem o direito de revidar os golpes. Neste sentido é que Locke se contrapõe a Barclay e suas limitações ao direito de resistência. Pois, para Locke, aquele que pode resistir deve ter o direito de lutar. O filósofo inglês, se contrapondo aos homens que pensam como Barclay, ainda sugere:

Aquele que é capaz de conciliar os golpes e a reverência pelo que eu saiba merece, por suas penas, uma paulada civil e respeitosa no primeiro momento propício (LOCKE, 1999, p. 228, XIX, § 235).

A razão que Locke apresenta e defende, partindo dos escritos de Barclay e de uma crítica a este, é a de que quando

6 “Tal é a liberdade do pobre. Agredido, ele suplica, e golpeado a socos, ele implora que o deixem sem lhe arrancar os dentes.”

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um rei ou governante não cumpre com sua palavra, trai ou oprime seu povo, cuja liberdade ele devia cuidadosamente ter preservado. Tais ações em nada se diferenciam de uma invasão ou tentativa de dominação estrangeira, pois, segundo Locke:

O direito do povo é igualmente invadido e sua liberdade perdida, quer eles sejam tornados escravos de um senhor dentro de seu país, quer de uma nação estrangeira; e aí reside a injustiça, e contra ela o povo só tem o direito de defesa (LOCKE, 1999, p. 232, XIX, § 239).

Assim sendo, segundo Locke, o povo tem o direito e dever de resistir contra um governo que trai sua confiança e o oprime, do mesmo modo que tem o direito e dever de se defender de um tirano estrangeiro que busque pela força submeter sua nação, sua vida, propriedade e liberdade. Mas, Locke vai além de Barclay, ao defender como legítimo o uso da força e violência por parte dos súditos contra seus governantes quando estes traem a confiança neles depositada e dissolvem o governo com a ruptura do pacto, da transgressão à lei e da implantação da tirania.

Mas quem neste caso, pergunta Locke, poderá julgar se o príncipe ou o legislativo agiram contra a missão que lhes foi confiada? O próprio Locke responde: “O povo será o juiz”!

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6.5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por fim, de acordo com a teoria lockeana do direito e da política, o povo, ao entregar e confiar o poder soberano a um governante, legislativo ou assembleia, renuncia ao seu poder e à sua liberdade plena que possuí no estado de natureza em prol da paz e da fundação de um governo, não podendo reassumir este poder soberano, a menos que tenha estabelecido limites para a duração de seu legislativo, tornando temporário o poder supremo deste. No entanto, seja como for, quando por malfeitos e arbitrariedades por parte daqueles que detém a autoridade, quando aqueles que deveriam garantir a paz, a vida, a propriedade e a liberdade dos indivíduos de seu país agem de maneira a não garantir nada disso, mas, pelo contrário, agindo em sentido inverso, então os mesmos dissolvem o estado civil e afundam a sociedade novamente em estado de guerra. Neste sentido, seremos, então, obrigados a concordar com Locke quando este encerra sua obra dizendo que: “o povo tem o direito de agir como supremo e exercer ele próprio o poder legislativo; ou ainda colocá-lo sobre uma nova forma ou em outras mãos, como achar melhor” (LOCKE, 1999, p. 234, § 243).

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REFERÊNCIAS ASHCRAFT, Richard. A Filosofia Poitica. In: LOCKE/Vere Chappell. (org.). [Tradução de Guilherme Rodrigues Neto] - Aparecida, SP: Ed. Ideias & Letras, 2011.

LOCKE, John. Segundo Tratado Sobre o Governo Civil: ensaio sobre a origem, os limites e os fins verdadeiros do governo civil. Petrópolis, RJ: Editora Vozes, 2ª Edição, 1999.

TARCOV, Nathan. Locke’s Second Treatise and “The Best Fence Against Rebellion” Review of Politics, 43 pp.198-217. In: MILTON, J.R. Locke’s, moral, political and legal philosophy. Ashgate, Dartmouth. Aldershot, Brookfield USA, Singapore, Sydney, 1999.

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OS ORGANIZADORES

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JOSÉ DIAS Licenciado em Filosofia pela Universidade de Passo Fundo - RS (1996) e Bacharel em Teologia pela Unicesumar (2014); Especialista em Docência no Ensino Superior pela Unicesumar (2015); Mestre em Direito Canônico pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (1992); Mestre em Filosofia pela mesma Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2006); Doutor em Direito Canônico também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2005); Doutor em Filosofia também pela Pontifícia Universidade Urbaniana, Cidade do Vaticano, Roma, Itália (2008). Atualmente é professor Adjunto da UNIOESTE, no Campus de Toledo-PR, onde é Coordenador do curso de Licenciatura em Filosofia; Pesquisador do Grupo de Pesquisa “ÉTICA E POLÍTICA”, da UNIOESTE, CCHS, Campus de Toledo-PR; parecerista de revistas filosóficas e juristas.

E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/9950007997056231

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ADEMIR MENIN Mestre em Filosofia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma-PUG (2013). Especialista em Letras (Estudos Linguísticos e Literários) pela Universidade Estadual do Norte do Paraná-UENP (2010). Graduado em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná-UNIOESTE (1995). Graduado em Teologia pela Pontifícia Universidade Urbaniana de Roma-PUU (1999).

E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/1532052919863437

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JUNIOR CUNHA Graduando do curso de Licenciatura em Filosofia pela Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Toledo-PR. É estagiário da Biblioteca Universitária da UNIOESTE-Campus Toledo. Bolsista – no período de 01 de junho de 2016 a 31 de março de 2017 – do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), vinculado a CAPES/MEC. Bolsista – no período de 1 de abril de 2017 até 31 de março de 2018 – do Projeto de Extensão Teatro em Ação, vinculado ao Programa Universidade Sem Fronteiras-USF, financiado com recursos do Fundo Paraná. Atualmente desenvolve pesquisa nas áreas de Teatro e Filosofia com enfoque em William Shakespeare e Friedrich Nietzsche.

E-mail: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/7824455868007103

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