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I ENCONTRO BRASILEIRO DE PSICANÁLISE E SEDUÇÃO GENERALIZADA
ANÁLISE DO CASO CLÍNICO DO PEQUENO HANS A PARTIR DA TEORIA
DA SEDUÇÃO GENERALIZADA
RENAN MARTIMIANO VIEIRA
GUSTAVO ADOLFO RAMOS MELLO NETO
MARINGÁ2012
VIEIRA, R. M.; RAMOS (MELLO NETO), G. A. Análise do caso clínico do pequeno Hans a partir da teoria da sedução generalizada. 2012. Apresentação de Trabalho no I Encontro Brasileiro de Psicanálise e Sedução Generalizada. Maringá-PR, 2012.
RESUMO
O presente trabalho tem a intenção de discutir alguns dos conceitos propostos por Laplanche que embasam a sua teoria da sedução generalizada. Para tanto, buscaremos analisar tais conceitos no caso clínico do pequeno Hans (1909/1996), com o intuito de averiguar as possibilidades teóricas a serem desenvolvidas a partir deste. Propomos discutir a proposta de Laplanche acerca do recalcamento em suas variadas formas: recalcamento originário, recalcamento propriamente dito e o retorno do recalcado, e iremos correlacionar estes conceitos com a proposta de Freud acerca do tema. O conceito de recalcamento é tão importante nos constructos teóricos da psicanálise que a princípio ele era correspondente ao conceito de inconsciente. Sendo que este último somente é apresentado sistematicamente em 1915 com a publicação de “O inconsciente”. Laplanche (1981/1992) propõe que, para melhor compreendermos o conceito de recalcamento é necessário entendermos o mecanismo do trauma em “dois tempos” como um evento inicial e contemporâneo desses primeiros recalcamentos. Ao analisarmos o caso do pequeno Hans (1909/1996), podemos ilustrar alguns conceitos se pensarmos na teoria do trauma em dois tempos, uma vez que, ao mesmo tempo em que o garoto tenta seduzir sua mãe, ele também é “seduzido”. Há passagens no caso clínico que evidenciam essa dupla sedução, que pode ser confirmada no cuidado da mãe com a criança, momento em que, muitas vezes, há um contato entre o cuidador e as partes genitais da criança. Outra suposição que surge é que Hans ainda não sofreu o grande recalcamento (pós-edípico), levando-nos a pensar que haveria uma maior facilidade de crianças entrarem em “contato” com conteúdos inconscientes. Sabemos que as crianças em particular, conseguem conviver com ideias extremamente opostas e ambíguas de uma maneira “pacífica”. Vemos que a contradição de pensamentos é mais evidente, o que pode ser comparado ao modo de funcionamento inconsciente denominado de processo primário. Há de se pensar que a clivagem operada pelo recalcamento originário no caso das crianças ainda não está totalmente completa, possibilitando assim a circulação de certos conteúdos entre as instâncias psíquicas, o que corrobora a hipótese de Laplanche (1981/1992) que propõe que o recalque originário não é nada mais que um momento primeiro e fundante de um processo que ocorre ao longo de nossas vidas.
Palavras-chave: Psicanálise, Teoria da sedução generalizada, recalcamento, pequeno Hans, inconsciente.
VIEIRA, R. M.; RAMOS (MELLO NETO), G. A. Analysis of the clinical case of Little Hans based on the theory of generalized seduction. 2012. Apresentação de Trabalho no I Encontro Brasileiro de Psicanálise e Sedução Generalizada. Maringá-PR, 2012.
ABSTRACT
This paper intends to discuss some of the concepts proposed by Laplanche that supports his theory of generalized seduction. To this end, we seek to analyze these concepts in the clinical case of Little Hans (1909/1996) with the aim of investigating the theoretical possibilities to be developed from there. We propose to discuss Laplanche’s proposal on repression in its various forms: primal repression, secondary repression and the return of the repressed; and we correlate these concepts with Freud’s proposal on the subject. The concept of repression is so important in the theoretical constructs of psychoanalysis that, at first, it was a correspondent for the concept of unconscious. Whereas the latter would only be systematically presented by Freud in 1915, with the publication of “The Unconscious”. Laplanche (1981/1992) proposes that, to better understand the concept of repression, it is necessary to understand the mechanism of trauma in "two times", as an initial and contemporary event of these early repressions. When we analyze the case of Little Hans (1909/1996) , some concepts can be illustrated and clarified if we think of trauma theory in two times, given that, as the child tries to seduce his mother, he is also "seduced". There are passages in the clinical case that shows this double seduction, which can be confirmed in the mother’s care for the child, in which there is often a contact between the caregiver and the child's genitals. Another question that appears is that Hans had not yet suffered the great repression (post-oedipal); leading us to think that it would be easier for children to get in "contact" with unconscious’ contents. We know that children in particular, live with extremely opposing and ambiguous ideas in a "peaceful" way. We notice that the contradiction of thoughts is more evident among them, as they can be compared to the unconscious’ operating mode called primary process. It may be thought that the cleavage operated by primal repression in the case of children is not yet fully complete, allowing the movement of certain content among the psychic, which corroborates Laplanche’s hypothesis (1981/1992) which proposes that the primal repression is nothing more than a first and founding moment of a process that runs throughout our entire lives.
Keywords: Psychoanalysis, Theory of generalized seduction, repression, little Hans, unconscious.
1
ANÁLISE DO CASO CLÍNICO DO PEQUENO HANS A PARTIR DA TEORIA
DA SEDUÇÃO GENERALIZADA
O recalcamento e suas problemáticas.
O presente trabalho pretende realizar uma discussão acerca do conceito de
recalcamento proposto por Freud. Serão abordadas as noções de recalcamento
originário, recalcamento propriamente dito e o retorno do recalcado com o intuito de
melhor compreender tais conceitos. A título de análise, será utilizado o caso clínico do
pequeno Hans (1909/1996), bem como as formulações teóricas de Jean Laplanche, um
dos mais importantes psicanalistas de nossa época, criador da teoria da sedução
generalizada (1987/1992).
Um texto base para uma melhor compreensão destes conceitos é o texto de
Freud denominado “Repressão” 1 (1915/1996), no qual o autor propõe que o
recalcamento é uma defesa que não existe em nós desde os primeiros anos de vida, mas
que ocorre quando há uma cisão marcante entre as atividades mentais inconscientes e
conscientes. Em sua essência o recalcamento atua enquanto um agente que afasta
determinados conteúdos do consciente, ou seja, busca manter inconsciente aquilo que
em um dado momento poderá gerar determinado conflito entre o eu e o desejo.
O autor faz uma diferenciação de duas fases na vida anímica: o recalcamento
originário; e o recalcamento propriamente dito. O primeiro consiste em não permitir que
o representante pulsional se torne consciente, enquanto o segundo relaciona-se às
cadeias de pensamento/associativas (idéias) que entraram em contato com o
representante recalcado e que, por gerarem desprazer, sofrem o mesmo destino daquilo
que foi primeiramente recalcado. Por esse motivo, o recalcamento propriamente dito é
considerado como uma pressão posterior (Freud, 1915/1996).
O recalcamento originário é então considerado como o fundador das primeiras
formações inconscientes. Deste modo, seu mecanismo não pode ser explicado através
de um investimento do inconsciente – pois este ainda não está constituído – e nem
através de um desinvestimento do sistema pré-consciente/consciente, podendo ser
1 Nota: na presente tradução das Obras psicológicas completas de Sigmund Freud o conceito de repressão se equivale ao conceito de recalcamento, portanto em nosso trabalho utilizaremos o termo recalcamento proposto por Laplanche e Pontalis (2001). O termo repressão será mantido apenas nas citações.
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explicado somente pelo mecanismo do contra-investimento. Entretanto, para que haja
um recalcamento propriamente dito, há de existir a priori um recalcamento originário.
Entende-se o recalcamento originário enquanto um fundante do psiquismo em seu
aspecto tópico. Freud, no entanto, não deixa claro de onde provém este contra-
investimento. Como explicar o mecanismo de contra-investimento para a formação do
recalcamento originário, se este mecanismo, segundo Laplanche (1981/1992), é um
processo do sistema pré-consciente/consciente que no momento ainda não foi fundado?
Há que se pensar no suposto contra-investimento enquanto algo que tenha sua
origem em experiências primitivas muito fortes. Segundo Freud (1915/1996), as causas
imediatas que produzem os recalques originários podem advir de fatores quantitativos,
que possuem uma força excessiva de excitação com rompimento do para-excitações.
Para Laplanche (1981/1992), o recalcamento originário é simultaneamente uma
primeira inscrição e uma primeira fixação, sendo que no desenvolvimento psíquico o
indivíduo permaneceria bloqueado em dado momento e uma determinada lembrança
ficaria fixada a uma representação, tornando-se assim uma verdadeira moção e não
apenas força.
De acordo com Laplanche (1981/1992), o recalcamento originário por vezes é
considerado algo mitológico ou transcendental, devido ao seu caráter “lógico” que só
encontra sua manifestação ao pensarmos no recalcamento propriamente dito. Pois na
análise deste último é evidente que há uma espécie de atração para baixo de conteúdos
inconscientes já existentes (recalcamento originário).
Freud (1915/1996) afirma que, para o conceito de recalcamento ficar mais
completo, teríamos que supor que antes da organização anímica alcançar a fase de cisão,
a tarefa de rechaçar os impulsos pulsionais seria de responsabilidade de outros
mecanismos, aos quais as pulsões podem estar sujeitas – a saber: a reversão ao oposto
ou o retorno em direção ao próprio eu (self) do sujeito. Desta forma, para o autor, esses
dois processos são anteriores à fundação da cisão anímica por parte do recalcamento
originário.
Em seu texto “A dissolução do Complexo de Édipo” (1924/1996), Freud
também aborda a questão do recalcamento. Ele explica que com o declínio da fase
edípica há um grande recalcamento que “enterrará” a trama edípica estabelecida entre os
pais e a criança de uma forma duradoura. Se este recalcamento for bem sucedido o
desenvolvimento ulterior da criança será considerado normal e caso haja algum
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comprometimento do recalcamento haverá a possibilidade de um desenvolvimento
patogênico futuramente. Nota-se que ao abordar o recalcamento após o declínio do
complexo de Édipo, fala-se do recalcamento propriamente dito.
Caso clínico do pequeno Hans e suas implicações teóricas.
Os conceitos até então apresentados podem ser exemplificados através de
algumas passagens retiradas do caso clínico do pequeno Hans (1909/1996). Supõe-se
que Hans, no momento de sua análise, ainda não completou o que se conhece como
grande recalcamento. Tal suposição pode ser explicada pelo fato de ele ainda possuir
sentimentos totalmente opostos convivendo pacificamente um ao lado do outro, tais
como o amor e o ódio sustentados em relação a seu pai. Estes sentimentos tornam-se
extremamente conflitantes e confusos para a criança.
De acordo com Freud (1909/1996):
No adulto esses pares de emoções contrárias não se
tornam, via de regra, simultaneamente conscientes, exceto
nos clímaxes de amor apaixonado; em outros até que um
deles consiga manter o outro completamente fora de vista.
Mas nas crianças eles podem existir pacificamente lado a
lado, por um tempo bem considerável (Freud, 1909/1996,
p.104).
Evidentemente Hans se encontra na fase de desenvolvimento psíquico que em
psicanálise é denominada de fase fálica. Pode-se supor também, que ele está vivendo
claramente as vicissitudes advindas do complexo de Édipo e do complexo de castração
(processos que são considerados por Laplanche como assistentes de tradução). Este
momento do desenvolvimento psíquico é para Hans tão contundente a ponto de
desencadear o surgimento de seus sintomas: a fobia de cavalos.
Sabe-se que Hans tinha quatro anos e nove meses quando começou a manifestar
os primeiros sintomas de sua ansiedade, bem como o começo de sua fobia. Neste
momento a criança está vivendo o ápice de afeição por sua mãe, sendo que as suas duas
tentativas de seduzi-la comprovam esta teoria. Esse aumento da atração do garoto para
com sua mãe se transforma em ansiedade, que rompe com o conteúdo recalcado.
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Ainda não sabemos de onde pode haver-se originado o
ímpeto para o recalcamento. Talvez fosse apenas
conseqüência da intensidade das emoções da criança, que
ficara acima da sua capacidade de controle; ou talvez
também estivessem em ação outras forças que ainda não
tenhamos identificado (Freud, 1909/1996, p.31).
Aparentemente o pequeno Hans é tomado por conteúdos catexizados que
invadem a sua consciência e lhe provocam desprazer, sendo desta forma recalcados. O
que é apontado como o ímpeto para tal recalcamento, supostamente advém do que se
pode considerar como o recalcamento originário, fazendo com que as
ideias/representantes que entrem em “contato” com conteúdos traumatizantes sejam
também recalcados (recalcamento propriamente dito).
Laplanche (1981/1992) assinala que para melhor compreender o conceito de
recalcamento, é necessário entender o mecanismo do trauma em “dois tempos”. Sendo
este apontado como um evento primário e contemporâneo desses primeiros
recalcamentos.
Segundo o autor:
O que é importante, para o nosso propósito, é a noção de
um “antes da clivagem”, a qual não seria puramente
mítica, ou de uma pré-clivagem, ou de um estado sem
inconsciente. Estado sem inconsciente, do qual os
primeiros anos da infância poderiam fornecer referência
(Laplanche, 1981/1992, p. 62).
Neste estado de “uma certa” presença, o infante é invadido por representações,
vindas a partir do mundo dos adultos, que não são passíveis de tradução neste momento
(mensagens enigmáticas), mas que permanecem implantadas e inseridas em seu
psiquismo. A primeira e a mais importante dessas representações é, evidentemente, o
seio. Tais representações possivelmente se tornarão os resquícios inconscientes,
advindos do recalcamento originário, que Laplanche denominou como objetos fonte da
pulsão (Laplanche, 1981/1992).
Essa relação entre a criança e o adulto é denominada pelo autor como a situação
antropológica fundamental, que é compreendida como o “des-encontro” entre o infante
e o adulto. Adulto este que é dotado de um inconsciente (essencialmente sexual) com
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resíduos de mensagens enigmáticas de sua própria infância, que entra em contato com a
criança, que por sua vez não possui ativadores hormonais da sexualidade e que a
principio não tem fantasmas sexuais.
Acerca dessa situação, Laplanche afirma que:
A criança diante dele faz apelo ao infantil nele. A relação
originária se estabelece, devido a isto, num duplo registro:
uma relação vital, aberta, recíproca, que podemos
perfeitamente dizer interativa, e uma relação onde está
implicado o sexual, onde a interação não ocorre mais, pois
a balança é desigual. No ser humano [...] há um sedutor e
um seduzido, um desviador e um desviado (1987/1992, p.
111).
É a partir deste estágio da vida humana que o autor propõe sua teoria da sedução
generalizada, pois este momento demonstra algo que todos vivenciam, portanto algo
geral. Esta situação pode ser evidenciada através da teoria do apoio (“étayage”), que,
segundo Laplanche (1970/1985), ocorre no desenvolvimento psicossexual a partir do
momento em que a sexualidade incipiente se apoia em um mecanismo de conservação
da vida, ou seja, a criança, ao entrar em contato com o seio materno, primeiramente
busca saciar a sua necessidade de alimento, mas em um segundo momento inicia-se
também um processo sexual. Pois, paralelamente à alimentação há uma excitação dos
lábios e da língua através do mamilo e do leite morno. A teoria do apoio assume um
papel de uma “sedução originária” (essencialmente traumática) que conforme o autor é
o processo que provoca o recalcamento originário.
Ainda segundo Laplanche:
Pode-se supor que esse investimento sexual, que pode ser
considerado perverso no sentido dos Três ensaios de teoria
sexual, não é percebido, suspeitado pelo bebê, como fonte
deste obscuro questionamento: o que ele quer de mim,
além de me aleitar e, no fim das contas, por que ele quer
me aleitar? (1987/1992, p. 135).
Retornando a Freud, torna-se evidente que em seus primeiros trabalhos ele
denominou tais representações como sexuais-pré-sexuais, já que a criança neste
momento ainda não compreende tal situação enquanto algo sexual. Porém, estas
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representações, segundo Laplanche (1981/1992), poderiam ser chamadas de “limbos” –
pelo fato da cisão entre inconsciente e pré-consciente/consciente ainda não ter sido
efetivada – entretanto, em um segundo tempo (Teoria do trauma em “dois tempos”)
estas representações se apresentam como insuportáveis, pois se tornaram fontes internas
e independentes de excitação, que nesse momento se encontram recalcadas. Essas
representações (objetos fonte) carregadas de excitação serão responsáveis por
desencadear o surgimento da pulsão sexual. Sendo assim, o autor supõe que o
recalcamento originário ocorre em dois tempos: um exógeno, que pode-se considerar
como um evento traumático “em si”, momento no qual ainda não houve a clivagem,
mas que irá inscrever como ferro em brasa os primeiros significantes e representações; e
um segundo tempo onde o trauma se transforma em autotrauma, provocando assim o
recalcamento (Laplanche, 1981/1992).
Com a finalidade de elucidar a teoria do trauma em dois tempos, pode-se
retornar ao caso do pequeno Hans, no qual é possível perceber que ao mesmo tempo em
que o garoto tenta seduzir sua mãe, também é “seduzido” por ela. Há passagens que
evidenciam essa dupla sedução, que pode ser confirmada no cuidado da mãe em relação
ao infante, no qual muitas vezes há um contato entre o cuidador e as partes genitais da
criança. No caso do pequeno Hans em particular, a zona genital foi desde o começo
aquela que gerou um prazer mais intenso. O desencadeamento do sintoma da criança
pode ser pensado como o segundo momento do trauma, partindo do pressuposto que as
primeiras representações já haviam sido inscritas e que o recalcamento originário já
havia ocorrido. Entretanto, de acordo com Laplanche (1981/1992), o recalque originário
não é mais que um momento primeiro e fundante de um processo que percorre a vida
toda.
É possível propor também no caso de Hans que, com a eclosão de sua doença e
durante a análise feita por seu pai, existia certa desconexão entre o que a criança falava
e o que ela pensava, havendo então uma pressão dos conteúdos inconscientes sobre a
criança. Sendo que o conteúdo de seus pensamentos lhe provocava certo desconforto na
sua relação com seus pais. Pensando no sentido tópico dos processos anímicos, pode-se
perceber que o recalque entre o sistema pré-consciente e inconsciente estava sendo
obliterado, o que é comprovado com o desencadeamento do sintoma (Freud,
1909/1996).
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Em sua análise existia muita coisa que ele mesmo não podia dizer, sendo que seu
pai, através da sugestão, lhe apresentou ideias que até então a criança não seria capaz de
possuir. Desta maneira, pode-se supor que o pai de Hans estava lhe ajudando na
tradução das mensagens enigmáticas advindas do processo de recalcamento originário.
Uma das questões apresentadas por Freud em seu texto “O Inconsciente” (1915/1996) e
retomada por Laplanche no texto “O Inconsciente e o Id”, se relaciona às duas hipóteses
do funcionamento psíquico: hipótese tópica (dois registros) e a hipótese funcional.
De forma resumida, segundo Freud: A hipótese tópica compreende que há uma
separação topográfica dos sistemas psíquicos em Ics, Pcs e Cs, desta maneira acredita-se
que uma idéia possa existir em dois lugares do mecanismo mental, ou seja, pode haver
dois registros da mesma idéia, um Pcs/Cs e outro Ics. Já a hipótese funcional
compreende que o que ocorre neste processo seria uma mudança de estado meramente
funcional, ou seja, a ideia seria “transformada” em outro estado psíquico. Laplanche
(1981/1992), por sua vez, acredita que a hipótese funcional se mantém ao ser
relacionada ao processo de recalcamento. Enquanto a hipótese tópica se conserva na
medida que compreende o que acontece no processo de retorno do recalcado.
Ao trabalhar com a questão do recalcamento originário e o seu processo que se
realiza em dois tempos, pode-se considerar que a hipótese tópica proporciona uma
melhor compreensão acerca desse fenômeno. Pois em um primeiro momento as
primeiras significações/representantes são implantadas e inscritas no psiquismo
enquanto um trauma “em si”. Já em um segundo momento uma situação vivenciada
(assemelhando-se a um insight) pode provocar a recordação traumática, se tornando um
autotrauma e sendo assim recalcada. Desta maneira há uma inscrição em um momento
pré-clivagem e uma inscrição que provem do recalcamento originário.
Porém Laplanche assinala que:
A concepção do recalcamento originário não impõe
precisamente a hipótese de uma segunda inscrição, num
segundo lugar, das representações recalcadas. Com efeito,
antes do recalcamento originário (não é um “antes” no
sentido estritamente mítico, sem que por isso seja
puramente cronológico), pode-se dizer que existe um
único lugar, e é simultaneamente que as primeiras
representações são recalcadas e se cria, por conseguinte, o
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lugar onde elas vão inscrever-se, sobretudo aquelas que
irão constituir o núcleo primordial de um id (1981/1992,
p.67).
O autor afirma que a clivagem do psiquismo ocorre de modo simultâneo a
implantação dos primeiros significantes, ou seja, as primeiras representações são
recalcadas e simultaneamente ocorre a cisão entre os sistemas inconsciente e pré-
consciente/consciente. Desta maneira, o recalcamento originário ocorreria em dois
tempos simultâneos.
Considerações finais e possibilidades teóricas.
Em seu texto “O Inconsciente e o Id” (1981/1992), Laplanche discorre acerca de
uma suposta reconstrução do inconsciente dizendo que:
Porque o inconsciente já não se define, essencialmente, em
relação à consciência, mas em relação a um sistema pré-
consciente-consciente (insisto na palavra sistema) que
tomou o lugar do que se tornou inconsciente e que
constantemente o contra-investe; porque a reconstrução do
passado não é, por si só, reencontro do inconsciente;
porque [...] esse trabalho de construção pode favorecer
ressurgimentos, mas estes são freqüentemente erráticos,
fragmentários, alusivos, metonímicos, até alucinatórios.
Daí o problema de confirmar, se assim se pode dizer, no
tratamento, esse reencontro entre a reconstrução e o
ressurgente; problema de um verdadeiro reconhecimento
do inconsciente (p. 80).
No caso do pequeno Hans, em sua análise ele é invadido por fantasias e sonhos
extremamente angustiantes que de certo modo se assemelham a esses fenômenos
“inconscientes” que invadem a consciência como um bloco errático. Tem-se a suposição
de que Hans ainda não sofreu o grande recalcamento (pós-edípico), deste modo haveria
uma maior facilidade de crianças entrarem em “contato” com conteúdos inconscientes?
Como foi evidenciado anteriormente, sabe-se que as crianças em particular conseguem
conviver com idéias extremamente opostas e ambíguas e que “convivem” de uma
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maneira “pacífica”. Esta contradição de pensamentos mais evidente pode ser comparada
ao modo de funcionamento inconsciente, denominado de processo primário.
A partir destas considerações pode-se relacionar o modo de pensamento infantil
ao modo de pensamento psicótico? Guardada as suas devidas proporções, se for tomado
o que Freud propôs acerca da psicose, entendendo-a enquanto um “inconsciente a céu
aberto” regido também pelo processo primário, há evidências de uma possível relação.
Mesmo por que, nos casos de psicose o modo de funcionamento psíquico é considerado
muito primitivo e regredido.
No texto de Laplanche denominado “Três acepções da palavra “inconsciente”
no quadro da Teoria da Sedução Generalizada” (2003) o autor apresenta a sua proposta
de aparelho psíquico, buscando enquadrar tanto os neuróticos quanto os não-neuróticos,
e afirma que:
No recalcamento, e especificamente no recalcamento
originário, as mensagens do outro, provenientes da única
realidade para o humano, a realidade do outro, vêm a) se
inscrever, num primeiro momento, no inconsciente
encravado ou subconsciente. b) São em seguida
retomados, retraduzidos, e desde então repartidos entre
uma tradução pré-consciente e restos inconscientes
(Laplanche, 2003, p. 411).
Neste mesmo artigo Laplanche (2003) aborda a questão do aspecto psicótico e
borderline do aparelho psíquico. O autor propõe que nestes casos há um fracasso radical
da tradução, sendo que nada é traduzido. A mensagem original é implantada ou
intrometida e permanece sem modificações, constituindo o que o autor denomina de
inconsciente encravado. Cabe aqui perguntar se em casos de psicose e transtornos
borderline há um recalcamento originário ou se há uma falha neste recalcamento,
fazendo com que a pessoa regrida aos estágios infantis?
Pode-se perceber que os esforços em compreender mais profundamente a teoria
psicanalítica, apresentados nesse trabalho, trouxeram mais dúvidas e indagações. E são
essas dúvidas e indagações que fazem a teoria caminhar e se enriquecer. Isso nada mais
é do que a proposta de Bion citada por Laplanche (1987/1992) de repensar a teoria,
refletir, perlaborar (a noção de um pensamento em espiral).
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Freud, S. (1915/1996a). O instinto e suas vicissitudes. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIV) Rio de Janeiro: Imago.
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Freud, S. (1924/1996b). O Ego e o Id. (Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira, V. XIX) Rio de Janeiro: Imago.
Laplanche, J. (1970/1985). Vida e morte em psicanálise. Porto Alegre: ARTMED.
Laplanche, J. (1981/1992). O Inconsciente e o id. In: Problemáticas IV. WMF Editora.
Laplanche, J. (1987/1992). Novos fundamentos para psicanálise. São Paulo. Martins fontes.
Laplanche, J. (2003). Três acepções da palavra “inconsciente” no quadro da Teoria da Sedução Generalizada. Revista de Psicanálise da Sociedade Psicanalítica de Porto Alegre,(10), 403-418.
Laplanche, J; Pontalis, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
Sigal, A. M. (2002) O Originário: um conceito que ganha visibilidade. Em Colóquio de homenagem a Piera Aulagnier, SP: Programa de Pós-Graduação da PUC-SP. Recuperado em 15 junho, de 2011, de http://www2.uol.com.br/percurso/main/pcs30/30Sigal.htm