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Trabalho

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  • UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARABA UFPB

    CENTRO DE CINCIAS JURDICAS

    PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM CINCIAS JURDICAS

    TEORIA CRTICA DA CIDADANIA PROF. DR. FREDYS ORLNANDO SORTO

    MARTHA MELQUADES MEDEIROS

    ENFOQUE DAS CAPACIDADES DE MARTHA NUSSBAUM:

    FRONTEIRAS DA JUSTIA E OS EXCLUDOS DA TEORIA DE JOHN RAWLS

    JOO PESSOA

    2014

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  • ENFOQUE DAS CAPACIDADES DE MARTHA NUSSBAUM: FRONTEIRAS DA

    JUSTIA E OS EXCLUDOS DA TEORIA DE JOHN RAWLS

    RESUMO

    Este trabalho visa abordar a teoria da justia social de Martha Nussbaum, que a autora define

    como ampliao da Teoria de Justia Social de Rawls, visto que a considera a teoria poltica

    mais forte que possumos na tradio do contrato social, mas critica-a por possuir reas no

    atingidas pelo modelo proposto: a justia transnacional, as pessoas com impedimentos fsicos

    e mentais, e animais no humanos. O enfoque das capacidades pretende suprir estas lacunas,

    ampliando as ideias centrais da teoria rawlsiana para abordar as novas questes.

    Palavras-chave: Teoria da Justia Social. Enfoque das Capacidades. Minorias. Cidadania.

    Dignidade Humana.

    I. INTRODUO

    Fronteiras da Justia (2006), obra da filsofa estadunidense Martha Craven

    Nussbaum, resultado de trabalhos apresentados pela autora nas Conferncias sobre valores

    humanos do Australian National University (novembro/2002) e Cambridge (maro/2003).

    Diferente de suas obras anteriores, como The Fragility of Goodness: Luck and Ethics in

    Greek Tragedy and Philosophy(1986), a autora sai da filosofia clssica para abordar a

    filosofia poltica, justia social, tica e polticas pblicas, pretendendo esboar o que seria

    uma complementao Teoria da Justia de John Rawls, que critica por ser moralmente

    inaceitvel consentir na excluso de determinados grupos do Contrato Social.

    Em que pese a autora definir seu trabalho como uma complementao teoria

    rawlsiana, buscaremos demonstrar que a autora tem contribuio acadmica importante,

    sobretudo quanto teoria das capacidades, que aparenta ser fruto de seu trabalho em parceria

    com Amartya Sen no WIDER (Wider World Institute for Development Economics Research),

    e de sua publicao em parceria com o mesmo em The Quality of Life (1993).

    Na obra em estudo, a autora retoma o enfoque das capacidades, a fim de

    consider-la como uma alternativa para solucionar o problema da excluso dos animais no

    humanos, deficientes e incapazes, e dos transnacionais do Contrato Social, no pretendendo

    com isto substituir as teorias contratualistas.

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  • II. OS CONTRATOS SOCIAIS E TRS PROBLEMAS NO SOLUCIONADOS PELA

    JUSTIA

    Nussbaum inicia sua obra defendendo que as teorias de justia social devem ser

    abstratas, a fim de permitir seu alcance alm dos conflitos polticos de seu tempo, bem como

    sensveis ao mundo e aos problemas mais urgentes, de modo a permitir reformulaes que

    respondam a novos problemas (Nussbaum, 2013, p.1).

    Com este intuito, elenca trs problemas ainda no solucionados de justia social,

    para os quais buscar apresentar solues: primeiro, da justia para com pessoas com

    impedimentos fsicos e mentais, que ainda no foram includas como cidads de forma

    equnime desigualdade esta que se reflete na prestao de assistncia mdica, educao, na

    concesso de direitos e liberdades polticas, entre outros; segundo, na concesso de direitos a

    todos os cidados do mundo, independentemente de sua nacionalidade; e terceiro, nas

    questes de justia relacionadas aos animais no humanos, que por algumas vezes foram

    abordadas como questes de tica, e no como justia social.

    Para tanto, a autora faz questo de elencar alguns conceitos que serviro como

    alicerce de sua teoria, a iniciar com a ideia de Contrato Social, que define como a deciso de

    um conjunto de indivduos racionais que se une em busca de benefcios mtuos,

    abandonando o estado de natureza para governar a si atravs da lei. (Nussbaum, 2013, p.3).

    Define o Estado de natureza como um tempo sem governo poltico, sem soberano, sem leis,

    sem tribunais, sem direitos propriedade estabelecidos e sem contratos, citando Hobbes

    (2014) para demonstrar que a vida nestas condies invivel, pelo que as pessoas abririam

    mo do uso privado da fora e da habilidade de tirar a propriedade de outrem em troca de paz,

    segurana, e na expectativa de obter vantagens mtua:

    Numa tal condio no h lugar para o trabalho, pois o seu fruto incerto;

    consequentemente, no h cultivo da terra, nem navegao, nem uso das

    mercadorias que podem ser importadas pelo mar, no h construes

    confortveis, nem instrumento para mover e remover as coisas que precisam

    de grande fora; no h conhecimento da face da terra, nem cmputo de

    tempo, nem artes, nem letras; no h sociedade, e o que pior de tudo, um

    medo contnuo e perigo de morte violenta, e a vida do homem solitria,

    miservel, srdida, brutal e curta.

    3

  • Considera que, em face deste Contrato ser firmado por pessoas livres, iguais e

    independentes, como ensina Locke, torna-se necessria a incluso de princpios polticos, tal

    como defendido pela filosofia poltica liberal, a fim de assegurar que se estabelea um

    conjunto de regras que adequadamente proteja o interesse de todos os indivduos.

    Dentre os contratualistas, a Teoria de Rawls apontada pela autora como a teoria

    mais poderosa e influente do sculo XX, que perseguiu a ideia de contrato de modo mais

    rigoroso e completo, sendo o alicerce para o enfoque das capacidades. Sobre esta, faz-se

    necessrio transcrever parte da introduo de Uma Teoria da Justia (1981) de John Rawls:

    Meu objetivo apresentar uma concepo de justia que generalize e leve a

    um nvel mais alto de abstrao a conhecida teoria do contrato social

    conforme encontrada em, digamos, Locke, Rousseau, e Kant [...] A ideia

    norteadora que os princpios de justia [] so os princpios que pessoas

    livres e racionais, interessadas em promover seus prprios interesses,

    aceitariam em uma situao inicial de igualdade.

    Ao abordar a tradio contratualista, Nussbaum afirma que esta traz duas

    contribuies importantes: os prprios interesses humanos so suficientemente satisfeitos em

    uma sociedade poltica onde todos tm seu poder subordinado lei e autoridade

    legitimamente constituda; e a ideia de que os seres humanos, quando despidos de vantagens

    artificiais, como riqueza, educao e posio, concordaro com um contrato especfico,

    porque o ponto de partida (que na teoria contratual o estado de natureza, enquanto na teoria

    da justia como equidade corresponde situao original de igualdade) justo, sendo o

    contrato justo por consequncia.

    Observe-se, no entanto, que a teoria rawlsiana diverge em dois aspectos bsicos

    de todas as vises tradicionais precedentes, primeiramente por Rawls pretender gerar

    princpios polticos bsicos a partir de um nmero reduzido de pressuposies a chamada

    justia procedimental pura, na qual o procedimento correto define o resultado correto, se

    distanciando da tradio histrica por defender que os seres humanos no possuem quaisquer

    direitos naturais no estado de natureza; segundo, porque, em relao ao papel dos elementos

    morais na elaborao do contrato, Rawls adere ao pensamento de Kant de que nenhuma

    pessoa deve ser usada como mero meio para fins dos outros, ao contrrio de autores como

    Hobbes, Locke e mesmo Kant em seus escritos polticos (p. 15).

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  • Neste ponto encontramos a ideia do vu da ignorncia, pois na definio do

    contrato, as partes no sabem que papel elas mesmas desempenharo nesta estrutura a ser

    formada.

    Este um ponto que Nussbaum critica, visto que a tradio e o contrato social

    firmado por pessoas livres, iguais e independentes que tero vantagens mtuas acaba por

    excluir pessoas que no tem aptido para oferecer vantagem a algum, bem como muitas

    vezes no tero suas necessidades especias atendidas em virtude da inexistncia de previso

    destas em razo da falta de conhecimento sobre as mesmas pelas partes contratantes, como o

    caso das pessoas portadoras de deficincias, um dos trs problemas no solucionados pela

    Teoria da Justia, como veremos a seguir.

    II.1. DEFICINCIAS E INCAPACIDADES (IMPEDIMENTOS)

    Os tericos clssicos em geral partem do pressuposto de que as partes contratantes

    eram homens, aproximadamente iguais em capacidades e aptos a desenvolver atividades

    econmicas produtivas, excluindo at os sculos XVII e XVIII as mulheres (Hobbes inclua-

    as), crianas e pessoas idosas, que no eram consideradas aptas a firmar tal contrato pelo

    contexto histrico. Apesar dos tericos contemporneos corrigiram parte desta omisso,

    nenhuma doutrina de contrato social incluiu pessoas com incapacidades mentais e fsicas

    srias e incomuns no grupo dos daqueles que escolhero os princpios do Contrato Social.

    Para a autora, esta omisso terica reflete a excluso social sofrida por estas por

    sculos, que tem contexto muito mais social do que uma limitao necessria por inaptido

    dos sujeitos:

    Elas no esto sendo tratadas como completamente iguais aos outros

    cidados; suas vozes no esto sendo ouvidas quando os princpios bsicos

    so escolhidos. Tais problemas parecem ainda mais graves quando

    reconhecemos que so sociais muitos dos fatores que algumas vezes excluem

    da participao na escolha poltica as pessoas com deficincia, e esto longe

    de serem evitveis. Assim, no h, por princpio, razo pela qual essas

    pessoas no poderiam ser includas em uma situao de escolha que no deve

    assumir nenhuma estrutura particular de instituies sociais.

    Nussbaum alerta que as pessoas com deficincias graves poderiam no serem

    includas como agentes formuladores da estrutura social, o que no seria uma injustia, desde5

  • que houvesse uma maneira de seus interesses serem levados em considerao. Tal argumento

    tem como base a ideia de que o contrato social associa duas questes a princpio distintas: por

    quem (partes) e para quem (cidados) so determinados os princpios bsicos das sociedades?

    A ideia moral central da tradio est alicerada na vantagem mtua e na

    reciprocidade. As pessoas com deficincias muitas vezes no podero oferecer vantagem, e

    no poder escolher significa tambm no ser includo no grupo daqueles para os quais os

    princpios so escolhidos. Se no se conhece a realidade das pessoas com deficincia,

    provvel que a estrutura escolhida torne-se injusta.

    Rawls faz distino entre as partes na posio original os contratantes, que

    definiro a estrutura; e os cidados, que tero suas vidas reguladas. Assim, as partes escolhem

    os princpios com base nos seus hipotticos planos de vida, e os cidados vivem o que foi

    escolhido com base nesses planos.

    Embora se possa fazer algumas adaptaes, as pessoas inseridas neste grupo no

    so livres para redesignar os prprios princpios da justia luz dos seus conhecimentos sobre

    sua realidade. Excluir pessoas com deficincia da escolha de princpios polticos bsicos

    implica grandes consequncias para aspirao igualdade da cidadania, por conta da estrutura

    caracterstica das teorias do contrato social.

    O prprio Rawls reconhece a limitao deste ponto de sua teoria, mas a soluo

    proposta por ele, que veremos adiante, considerada por Nussbaum como inadequada e difcil

    de ser retificada, embora esta reconhea que tal problema de incluso completa de cidados

    com impedimentos mentais e fsicos levantam questes que tocam o cerne da abordagem

    contratualista clssica da justia e da cooperao social. (p. 23)

    II.2. NACIONALIDADE

    A segunda deficincia encontrada por Nussbaum na teoria rawlsiana refere-se

    nacionalidade ou lugar do nascimento como influentes nas chances de vida bsica das

    pessoas. O modelo de contrato deveria ser estabelecido para construir uma nica sociedade,

    imaginada como autossuficiente, e no interdependente uma das outras, como ocorre com os

    pases pobres em relao aos ricos.

    Kant e Rawls reconhecem a importncia de se discutir a ideia de justia entre as

    naes, visto que haveria, na verdade dois nveis de contrato social regulado por princpios

    distintos: o Estado criado pelos sujeitos que, aps estabelecido, passaria a fazer pactos, agora

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  • com outros estados, tambm 'livres, iguais e independentes', a fim de garantir a paz entre

    estados e, consequentemente, para seus nacionais.

    Nussbaum questiona como seria a liberdade, igualdade e independncia

    aproximada dos Estados, no contexto atual, onde uma poderosa economia global faz escolhas

    econmicas serem interdependentes e impe s naes pobres condies que reforam e

    aprofundam as desigualdades existentes.

    H estgios de desenvolvimento econmico diferentes e as escolhas dos princpios

    bsicos variam em cada pas, sendo um fator de excluso e injustia. A pessoa ter os direitos

    que o lugar do seu nascimento quiser ou puder (sobretudo nos pases mais pobres) lhe

    garantir ressaltando que a situao dos aptridas ainda pior, pois a ausncia de direitos

    polticos acarretam uma srie de violaes a direitos humanos, bem como entra em choque

    direto com o direito do ser humano de ser aquilo que desejar, de realizar-se pessoalmente

    como defendido pelo enfoque das capacidades.

    SORTO (2011, p. 124) faz importante considerao acerca da cidadania universal,

    que consideramos diretamente relacionada a esta crtica no tratamento dos transnacionais por

    Nussbaum:

    O direito de cidadania de Kant limitado ao direito de hospitalidade. Alm

    do mais, excludente porque se aplica apenas a cidados (livres, iguais e

    independentes), o que significa excluso de outros seres humanos. Isto , a

    maioria dos que no tem propriedade, dos que vivem na inpia do lado de

    fora das fronteiras dos direitos, dos ignorantes de toda espcie cuja

    incivilidade resulta da falta de oportunidades.

    A autora aponta que Grotius desenvolveu, mesmo anteriormente s clssicas

    teorias contratualistas, um esboo do que seria uma sociedade internacional, construda com

    base em normas morais que constrangeriam os estados a respeitar direitos humanos dos

    indivduos, sob pena de, em algumas circunstncias, ser realizada a interferncia nos assuntos

    internos por outra pas.

    Ademais, temos a ideia de uma solidariedade internacional, visto que o conceito

    de propriedade dependeria da anlise completa de necessidade do pas e de seu excedente,

    concluindo-se que o pas pobre teria direito ao usufruto do excedente de outra nao.

    A teoria acima exposta incompatvel com a ideia de vantagem mtua do contrato

    social, bem como Rawls, em 'O direito dos povos', no trata o tema de forma suficiente,

    segundo Nussbaum, que afirma que a tradio da lei natural de Grotius mais til sua7

  • abordagem das capacidades que as teorias rawlsianas.

    II.3. PERTENCIMENTO ESPCIE:

    Nossas teorias de justia no incluem os animais no-humanos no contrato social.

    Estes animais no participam, por motivos evidentes, como partes na formulao do contedo

    da estrutura, mas tambm no so includo nos sujeitos de direitos desta.

    Segundo tericos tradicionais, no possumos deveres morais com relao aos

    animais (Kant) ou tais deveres seriam apenas caridade ou compaixo, e no justia (Rawls).

    Para Nussbaum, h grande deficincia de uma teoria no conseguir sequer compreender a

    relao entre humanos e animais, visto que as atividades humanas afetam diretamente outras

    espcies, causando-lhes grandes sofrimentos, que deveriam suscitar questes de justia.

    Tal concepo vem ganhando alguns adeptos, visto que na atualidade h ideias de

    'direitos dos animais', mas a sociedade em geral, quando reconhece alguma implicao

    jurdica nas relaes com animais, relaciona-os como objetos, e no como sujeitos de direitos.

    II.4. RAWLS E OS PROBLEMAS NO SOLUCIONADOS AUTOCRTICA

    Rawls reconhece quatro problemas difceis de resolver com sua concepo de

    justia: os direitos das pessoas com deficincias temporrias ou permanentes, fsicas ou

    mentais; a justia entre fronteiras nacionais (que aborda em O direito dos povos'); o que

    devido aos animais e ao resto da natureza e o problema de poupar para geraes futuras. Para

    o ltimo problema, afirma que sua concepo pode ser ampliada, para dar respostas

    plausveis, ponto que Nussbaum concorda, justificando porque no o abordou no livro em

    estudo.

    H duas explicaes para Rawls para que a justia como equidade possa falhar

    nestes problemas: a justia poltica no cobre tudo, nem podemos esperar que o faa; e a

    gravidade da ausncia da previso de alguns problemas s pode ser avaliada com o

    surgimento de casos especficos.

    A ideia do enfoque das capacidades pretende lidar melhor com estas questes,

    visto que, como iniciando sua obra, Nussbaum deixa claro que o enfoque das capacidades visa

    complementar a teoria contratualista, e no substitu-la. A abordagem alternativa de

    Nussbaum compartilha algumas ideias intuitivas com a verso rawlsiana do contratualismo, e

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  • porque os princpios que gera possuem uma semelhana bem ntima com os princpios da

    justia, podemos v-la como uma extenso ou um complemento da teoria de Rawls.

    III. O ENFOQUE DAS CAPACIDADES:

    Na introduo deste trabalho frisamos que a ideia de Capacidades defendida

    por Amartya Sen e por Martha Nussbaum, tendo estes inclusive trabalhado e publicado em

    conjunto. Enquanto Amartya Sen concentra-se na mensurao comparativa da qualidade de

    vida, apesar de tambm estar interessado em questes de justia social, Martha Nussbaum

    visa fornecer a base filosfica para uma explicao das garantias humanas a serem respeitadas

    e implementadas pelos governos de todas as naes, como um mnimo de respeito que a

    dignidade humana requer, sendo as capacidades humanas o que as pessoas so de fato

    capazes de fazer e ser, instrudas, de certa forma, pela ideia intuitiva de uma vida apropriada

    dignidade do ser humano.(p. 84)

    As capacidades so apontadas pela autora como fontes dos princpios polticos

    para uma sociedade liberal pluralstica, devendo ser perseguidas por toda e qualquer pessoa,

    cada uma sendo tratada como um fim, e no um mero instrumento para fins dos outros,

    empregando-se uma ideia de nvel mnimo para cada capacidade. uma explicao do

    mnimo de garantias sociais centrais, compatvel com diferentes vises sobre lidar com

    questes de justia e distribuio que surgiriam uma vez que todos os cidados estivessem

    acima do nvel mnimo. (p.91)

    O objetivo social deve ser conseguir trazer todos os cidados para cima do nvel

    mnimo de capacidades, devendo comear a partir da concepo de dignidade do ser humano

    e da vida que seja apropriada a esta dignidade.

    O enfoque das capacidades no pretende fornecer uma explicao completa de

    justia social, mas uma alternativa s abordagens econmico-utilitaristas que dominam as

    discusses sobre qualidade de vida, centralizando a ideia de desenvolvimento apenas ideia

    de crescimento econmico. Como ressalta a autora, a lista a seguir exemplificativa, que

    dever sofrer, como j sofreu, modificaes ao longo do tempo luz da crtica:

    As capacidades humanas centrais:

    1. Vida: Ter a capacidade de viver at o fim da vida humana de durao

    normal.; no morrer prematuramente, ou antes que a prpria vida se veja to

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  • reduzida que no valha a pena viv-la.

    2. Sade fsica: Ser capaz de ter boa sade, incluindo a sade reprodutiva; de

    receber uma alimentao adequada; de dispor de um lugar adequado para

    viver.

    3. Integridade fsica: Ser capaz de se movimentar livremente de um lugar a

    outro; de estar protegido contra ataques de violncia, inclusive agresses

    sexuais e violncia domstica; dispor de oportunidades para satisfao sexual

    e para a escolha em questes de reproduo.

    Numa leitura distrada, poderamos apontar que as primeiras capacidades (vida,

    sade fsica e integridade fsica) so direitos j unnimes, reconhecidos expressamente em

    quase todos os ordenamentos jurdicos e na ordem supranacional.

    Porm, a abordagem das capacidades da forma especfica como foi tratada, revela

    a dimenso dos termos utilizados, a exemplo do direito sade, que inclui na abordagem de

    Nussbaum o direito alimentao, tal como foi inserido recentemente em nossa Constituio

    no rol dos direitos sociais (art. 6) pela Emenda Constitucional n 64, de 2010. No obstante,

    a lista tutela determinadas capacidades inerentes s liberdades externas e internas:

    4. Sentidos, imaginao e pensamento: Ser capaz de usar os sentidos, a

    imaginao, o pensamento e o raciocnio e fazer essas coisas de modo

    'verdadeiramente humano', um modo informado e cultivado por uma

    educao adequada, incluindo, sem limitaes, a alfabetizao e o

    treinamento matemtico e cientfico bsico. Ser capaz de usar a imaginao e

    o pensamento em conexo com experimentar e produzir obras ou eventos,

    religiosos, literrios, musicais e assim por diante, da sua prpria escolha. Ser

    capaz de usar a prpria mente de modo protegido por garantias de liberdade

    de expresso, com respeito tanto expresso poltica quanto artstica, e

    liberdade de exerccio religioso. Ser capaz de ter experincias prazerosas e

    evitar dores no benficas.

    5. Emoes: Ser capaz de manter relaes afetivas com coisas e pessoas fora

    de ns mesmos; amar aqueles que nos amam e que se preocupam conosco,

    sofrer na sua ausncia, em geral, ser capaz de amar, de sentir pesar, sentir

    saudades, gratido e raiva justificada. No ter o desenvolvimento emocional

    bloqueado por medo e ansiedade (Apoiar essa capacidade significa apoiar

    formas de associao humana que podem se revelar cruciais para seu

    10

  • desenvolvimento.

    Um ponto crucial no trabalho de Martha Nussbaum a ideia da necessidade do

    desenvolvimento intelectual do indivduo e da sua participao nas esferas pblica e privada,

    tal como defendido por Hanna Arendt, em A Condio Humana (1958), como podemos

    observar nas demais capacidades elencadas:

    6. Razo prtica. Ser capaz de formar uma concepo de bem e ocupar-se

    com a reflexo crtica sobre o planejamento da prpria vida (Isso inclui

    proteo da liberdade de conscincia e prtica religiosa)

    7. Afiliao. A. Ser capaz de viver com e voltado para os outros, reconhecer

    e mostrar preocupao com outros seres humanos, ocupar-se com vrias

    formas de interao social, ser capaz de imaginar a situao do outro

    (Proteger esta capacidade significa proteger as instituies que constituem e

    alimentam tais formas de afiliao e tambm proteger a liberdade de

    associao e de expresso poltica. B. Ter as bases sociais de autorespeito e

    no humilhao; ser capaz de ser tratado como um ser digno cujo valor

    igual ao dos outros. Isso inclui disposies de no discriminao com base

    em raa, sexo, orientao sexual, etnia, casta, religio, origem nacional.

    8. Outras espcies: Ser capaz de viver uma relao prxima e respeitosa com

    animais, plantas e o mundo da natureza.

    9. Lazer: Ser capaz de rir, brincar, gozar de atividades recreativas.

    10. Controle sobre o prprio ambiente: A. Poltico Ser capaz de participar

    efetivamente das escolhas polticas que governam a prpria vida; ter o direito

    participao poltica, protees de liberdade de expresso e de associao.

    B. Material: Ser capaz de ter propriedade (tanto de bens imveis quanto de

    mveis) e ter direitos de propriedades em base de igualdade com os outros;

    ter o direito de candidatar-se a empregos com base de igualdade com os

    demais; ter a liberdade contra busca e apreenso injustificadas. No trabalho,

    ser capaz de trabalhar como ser humano, exercendo a razo prtica e

    participando de relacionamentos significativos, de reconhecimento mtuo

    com os demais trabalhadores.

    Nussbaum afirma que tais capacidades so universais, importantes para todo e

    qualquer cidado, em toda e qualquer nao, e que toda pessoa deve ser tratada como um fim,

    11

  • retomando a crtica ao utilitarismo. uma espcie de abordagem dos direitos humanos, na

    concepo da autora, que tem sido associados ideia de dignidade humana.

    O enfoque das capacidades diverge da teoria rawlsiana por esta ltima ser

    procedimental, pois no aborda o resultado para avaliar sua adequao moral, mas utiliza-se

    de determinado procedimento que modela certas caractersticas-chave de equidade e de

    imparcialidade, e apoia-se nesse para gerar um resultado apropriadamente justo.

    J o enfoque das capacidades assemelha-se ao julgamento penal, pois o

    procedimento ser bom na medida que promova o resultado esperado. Se determina um

    contedo apropriado existncia digna e busca-se procedimentos polticos que alcancem tal

    resultado esperado, sendo o procedimento considerado justo se atingiu o resultado esperado.

    A autora faz uma relao entre seu enfoque das capacidades e as teorias

    contratualistas, afirmando que o primeiro, por no utilizar a descrio humiana das

    circunstncias da justia, no est obrigado utilizar a fico de que as partes do acordo so

    livres, iguais e independentes, mas est preocupada em utilizar uma concepo mais

    semelhante realidade.

    Levando em consideraes as alteraes que ocorrem durante o curso de tempo,

    nota-se que as pessoas no so iguais em poderes e habilidades, mas oscilam conforme as

    circunstncias; no so independentes, pois, como animais polticos, seus interesses esto

    ligados aos interesses de outros ao longo de suas vidas. Reconhecer a diversidade de

    situaes um dos pontos fortes desta teoria.

    No obstante, o enfoque das capacidades faz parte da tradio liberal por conceber

    que a pessoa tem um profundo interesse na escolha do seu modo de vida e de princpios

    polticos que a governem a ideia de liberdade, que ser necessria para seu

    desenvolvimento pleno e vida digna.

    Uma caracterstica importante do enfoque das capacidades a negao da

    necessidade de que os princpios da justia social garantam vantagens mtuas, havendo a

    necessidade, em determinados casos, de cooperao sem vantagens para realizao da justia.

    J quanto s motivaes das partes, no h grandes diferentes entre o enfoque das

    capacidades e a teoria rawlsiana.

    Por fim, ressalte-se que os trs problemas da justia elencados vem a cada dia

    adquirindo maior importncia, pelo que necessrio repensar na atual teoria contratualista a

    fim de solucion-los adequadamente.

    12

  • IV AS DEFICINCIAS E O CONTRATO SOCIAL

    Aps uma abordagem terica consistente acerca da tradio contratualista e da

    apresentao do enfoque das capacidades, a autora passa a anlise de algumas situaes

    concretas, a fim de demonstrar as repercusses dos trs problemas de justia no solucionados

    pela teoria rawlsiana.

    O primeiro deles aborda a assistncia como necessidade e problema da justia,

    visto que crianas e adultos com impedimentos mentais so cidados, sujeitos de direitos que

    devem ter, em qualquer sociedade decente, uma resposta s suas necessidades de assistncia,

    educao, autorrespeito, atividade e amizade.

    Como dito anteriormente, em algumas situaes talvez no seja possvel que estes

    sujeitos possam oferecer vantagem ou reciprocidade com as instituies bsicas da sociedade,

    mas em todos os casos devero ser oferecidos meios para que estes possam alcanar as

    capacidades inerentes sua condio.

    necessrio ainda enxergar que a pessoa com limitaes ter um cuidador, que

    precisa do reconhecimento das suas necessidades especiais, no decorrentes de fatos naturais,

    mas de fatores sociais. A me de uma criana com deficincia, numa sociedade justa, deveria

    ter maior flexibilidade de horrios de trabalho, a fim de garantir o desempenho das atividades

    que competem a fim de assegurar o pleno desenvolvimento das capacidades de seu filho.

    H necessidade de incluso de todos os indivduos na sociedade, respeitadas suas

    caractersticas, deficincias e potencialidades. Esses problemas no podem ser ignorados

    como se afetassem apenas um pequeno grupo de pessoas, embora o Estado deve garantir o

    direito das minorias, pois tais incapacidades podem ser temporrias ou permanentes, e

    ningum est livre de sofrer tais limitaes.

    Algumas verses do contrato social partem unicamente da racionalidade egosta,

    subentendendo-se que as pessoas com deficincia so improdutivas, o que no verdade. Elas

    podem contribuir com a sociedade de diversas maneiras, desde que a sociedade crie condies

    sob as quais possam fazer isso.

    Outro ponto abordado o conceito de Lar e Famlia. Lar, inerente esfera

    'privada', onde as pessoas agem por amor e afeto, e no por vantagem mtua. As relaes

    contratuais esto fora do lugar e a igualdade no o valor central, mas os afetos naturais.

    Nussbaum define a famlia como instituio poltica, definida e modelada, em aspectos

    fundamentais, por leis e instituies sociais. Para a autora, a teoria contratualista no

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  • adequada, pois no trata a famlia como entidade poltica, no contribuindo para soluo dos

    problemas de justia encontrados dentro da vida familiar, o que seria mais uma falha.

    A excluso de pessoas com deficincia do contratualismo kantiano de Rawls um

    ponto de tenso, haja vista que John Rawls v claramente as vantagens de conceber os bens

    primrios como uma lista multivalente de capacidades, como apresenta Amartya Sen, mas a

    rejeita, pois se empenha a medir posies sociais com referncia renda e riqueza. Uma lista

    de coisas no deve servir como parmetro, mas a lista de capacidades humanas parece ser o

    tipo certo de lista a se almejar.

    Alm disso, tal teoria ter xito somente de contiver uma psicologia poltica

    mais complexa que deixe claro como uma cooperao no entendida

    somente em termos de vantagem mtua pode ser sustentada, assim como a

    concepo poltica da pessoa que contenha uma descrio mais ampla que a

    mera racionalidade kantiana, que inclua o maravilhoso e o digno nas pessoas.

    V CAPACIDADES E DEFICINCIAS

    O enfoque das capacidades uma teoria no contratualista do cuidado. A autora a

    define no como uma doutrina poltica sobre os direitos bsicos, nem uma doutrina moral

    abrangente, mas uma doutrina que especifica certas condies necessrias para que uma

    sociedade seja dignamente justa, na forma de um conjunto de direitos fundamentais para

    todos os cidados. Para Nussbaum, s haver dignidade humana com a realizao destas

    condies.

    No enfoque das capacidades, a explicao dos benefcios e objetivos da

    cooperao social possui desde o princpio uma dimenso moral e social. Os seres humanos

    cooperam em razo de um amplo campo de desejos, entre eles o amor pela prpria justia e o

    por uma compaixo moralizada por aqueles que possuem menos que precisam para levar

    vidas decente e dignamente.

    Para Nussbaum, a justia no s pode surgir em uma situao de igualdade

    aproximada e vantagens mtuas, como defendem os contratualistas. O enfoque das

    capacidades se sente livre para empregar uma explicao da cooperao que trate a justia e

    a incluso desde o comeo como fins de valor intrnseco, e para o qual os seres humanos

    esto unidos por muitos laos altrusticos, e no s de vantagem mtua. (p.195)

    14

  • Neste ponto me filio autora, visto que no devemos ser obrigados a ser

    'produtivos' para ganhar o respeito e sermos sujeitos de direitos, pois isto deve surgir em

    funo da dignidade humana. Em que pese a produtividade ser necessria ao

    desenvolvimento, no o fim principal da vida social, e forar todos os indivduos a realizar

    'funcionalidades' para assegurar-lhe direitos seria ditatorial e antiliberal.

    No quer dizer que para Nussbaum todas as pessoas sejam obrigadas a exercer

    todas as capacidades elencadas, mas que devem ser propiciadas condies favorveis a fim de

    que, caso a pessoa deseje, possa exerc-las. Neste sentido que a autora defende a

    possibilidade de renncia a direitos fundamentais, a exemplo da eutansia, ao elencar na

    primeira capacidade (vida) pode ser retirada antes que a prpria vida se veja to reduzida que

    no valha a pena viv-la. Como liberal, defende que correto promover a oportunidade de

    planejar sua vida, mas no se pode negar ao ser humano as escolhas nesta conduo.

    VI. CONSIDERAES FINAIS

    A teoria contratualista, conforme defendido pela autora, ainda figura como a

    melhor teoria de justia social bsica desenvolvida at o momento, mas possui lacunas que

    poderiam ser supridas com a utilizao do enfoque das capacidades. A ideia central da

    elaborao da lista vlida, haja vista nos instigar a perguntar qual seria o modo de viver e

    agir minimamente compatvel com a dignidade humana. Esta lista, que exemplificativa,

    pode no dar uma explicao completa de justia social, mas figura como uma alternativa s

    abordagens econmico-utilitaristas que dominam as discusses sobre qualidade de vida,

    estritamente relacionadas ideia de crescimento econmico, e no de desenvolvimento.

    Garantir a todas as pessoas, independentemente de seu vnculo poltico com

    algum estado ou sua capacidade produtiva, um nvel mnimo de capacidades em razo da

    concepo de dignidade do ser humano e da vida que seja apropriada uma ideia que

    contribui para o aperfeioamento de nossas estruturas sociais, que deve ser louvada. Porm, o

    arranjo poltico pblico deve garantir a base social de todas as capacidades da lista, pois

    devero ser criadas polticas pblicas que abordem a questo da tutela[guardianship], da

    educao e incluso e pessoas com impedimentos ou deficincias, bem como relacionadas ao

    trabalho de assistncia, entre outros, visto que moralmente inaceitvel consentir com uma

    teoria de justia que aceite expressamente a excluso de minorias, o que reflete muito mais

    uma falha social do que uma limitao necessria por inaptido destes sujeitos.

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  • REFERNCIAS:

    ARENDT, Hanna. A condio humana. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007.

    NUSSBAUM, Martha C. Fronteiras da Justia: deficincia, nacionalidade e pertencimento

    espcie. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2013.

    RAWLS, John. Teoria da Justia. Uma Teoria da Justia. Braslia: Universidade de Braslia,

    1981.

    SEN, Amartya. Desenvolvimento como Liberdade. So Paulo: Companhia das Letras, 1999

    SORTO, Fredys Orlando. O projeto jurdico de cidadania universal: reflexes luz do direito

    de liberdade. Anuario hispano-luso-americano de derecho internacional. Madrid, vol. 20, p.

    103-126, ene/dic. 2011.

    HOBBES, Thomas. Leviat. So Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014

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