TRABALHO E CONDIÇÃO HUMANA EM HANNAH ARENDT

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    Revista Hmus - ISSN: 2236-4358 Set/Out/Nov/Dez. 2011. N 3

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    O TRABALHO E CONDIO HUMANA EM HANNAH ARENDT

    Luciano Ricardo Nascimento1

    Resumo: O estudo discorreu sobre o trabalho em Hannah Arendt. Primeiramente, abordou-seo labor, o trabalho e ao como atividades relacionadas vida cotidiana do homem. O labor necessrio para que o homem consiga sobreviver e dar continuidade a espcie; o trabalhoproduz coisas artificiais; e a ao, por sua vez, tida como algo suprfluo, uma influncia dasnormas de comportamento humanas. Em um segundo momento, apresentou-se a evoluo dotrabalho, visto como algo que garantiria a subsistncia, evoluindo para um ofcio. Salientou-seque o trabalho, dependendo da poca, ocupou lugares diferentes na sociedade: na Grcia, eraconsiderado algo degradante e uma carga; quando a Igreja Catlica assumiu o controle deinmeras instituies que ditavam as regras sociais, o trabalho passou a ter uma importnciaelevada, tornando-se impulsionador para os membros da sociedade. Por fim, destacou-se queenquanto o homo faber se preocupa em fabricar coisas, que tudo pode ter seu uso, e que deveservir para formar outras coisas; o animal laborans utiliza as ferramentas projetadas pelo homofaber para atenuar suas atividades.

    Palavras-chave: Trabalho. Labor. Ao.

    WORK AND HUMAN CONDITION IN HANNAH ARENDT

    Abstract: The study reported on the work of the Hannah Arendt. First we dealt with the labor,work and the action as activities related to the daily life of man. The work is necessary so thatman can survive and continue the species; the work produces artificial things; and action, inturn, is seen as superfluous, an influence of the norms of human behavior. In the second step,

    we presented the progress of the work, seen as something that would guarantee a livelihood,evolving into a trade. We stand out that the work, depending on the epoch, had differentmeaning in society: in Greece, was considered as a degradation and a load; when the CatholicChurch took control of many institutions that dictate the rules of society, the work came to havea high importance, becoming a driving force for members of society. Finally, it was noted thatwhile the homo faber is concerned with making things, everything is useful, and should serve tofabric other things; the laborans animal uses tools designed by homo faber to mitigate itsactivities.

    Keywords:Work. Labor. Action.

    1 Especialista em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pelo Instituto Catarinense de Ps-Graduao - ICPG

    (Blumenau/SC) email:[email protected]

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    Introduo

    O estudo debateu sobre o trabalho em Hannah Arendt. Abordou-se,

    especificamente: o labor, trabalho e ao; a evoluo do trabalho; o homo faber; e, o

    animal laborans. No que se refere ao labor, trabalho e ao, destacou-se que na vida

    ativa, o labor um processo de ordem biolgica do corpo, cujo desenvolvimento e

    derrocada esto relacionados com as necessidades essenciais inseridas pelo labor no

    processo da vida. O labor necessrio, portanto, para a sobrevivncia do homem e

    tambm a continuidade da espcie. Frisou-se tambm que o trabalho produz um

    universo artificial de coisas, que so diferentes de qualquer ambiente natural. O

    produto do trabalho so os artefatos produzidos pelo homem. Apresentou-se que a ao

    uma atividade poltica por excelncia. O foco do debate foi distinguir labor, trabalho e

    ao.

    Na parte sobre a evoluo do trabalho, primeiramente enfatizou-se que o

    trabalho norteado pelo findar do produto, no qual exige habilidades; contudo,

    evidenciou-se que o trabalho nasceu da necessidade de subsistncia da vida humana e

    logo aps, evoluiu para um ofcio. O homo faber um fabricador de coisas, considera

    que tudo deve ter seu uso, que tudo pode servir de ferramenta para a obteno de

    outras coisas. Por outro lado, as ferramentas que servem para atenuar a carga e

    tambm servem para mecanizar o labor do animal laborans, so projetadas e

    inventadas pelo homo faber para a construo de um mundo feito de coisas. Esse foi o

    objeto da discusso. Portanto, definiu-se como objetivo geral do trabalho discutir o

    conceito de trabalho no livro A Condio Humana na filosofa Hannah Arendt. Para

    atingir tal objetivo, primeiramente buscou-se no texto conceitos chaves como trabalho,

    labor e ao. Logo aps, descreveu-se a evoluo do trabalho na sociedade. Definiu-se

    como problema de pesquisa, a seguinte indagao: qual o papel do trabalho na

    sociedade humana? Por fim, quanto aos aspectos metodolgicos, a pesquisa foi

    exploratria, alicerada na pesquisa bibliogrfica.

    1. Labor, trabalho e ao

    Na expresso vita activa, deve-se designar trs atividades humanas

    relevantes: labor, trabalho e ao. Trata-se de atividade relevantes porque a cada uma

    delas corresponde uma das condies primordiais nas quais a vida foi dado ao homem

    na Terra. O labor, para Arendt (2007), a atividade que corresponde ao processo

    biolgico do corpo humano, cujo crescimento espontneo, metabolismo e eventual

    declnio tm a ver com as necessidades vitais produzidas e introduzidas pelo labor no

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    processo da vida. O trabalho por sua vez, a atividade que corresponde ao

    artificialismo da existncia humana (ARENDT, 2007), existncia esta no

    necessariamente contida no eterno ciclo vital da espcie, e cuja mortalidade no

    compensada por este ltimo. O trabalho produz um mundo artificial de coisas,

    nitidamente diferente de qualquer ambiente natural. Dentro de suas fronteiras,

    conforme Arendt (2007) habita cada vida individual, embora esse mundo se destine a

    sobreviver e a transcender todas as vidas individuais. A condio humana do trabalho

    ser mundano.

    A ao, nica atividade que se exerce diretamente entre os homens sem a

    mediao das coisas ou da matria, corresponde, para Arendt (2007) condio

    humana da pluralidade, ao fato de que homens, e no Homem, vivem na Terra e

    habitam o mundo. Todos os aspectos da condio humana tm alguma relao com a

    poltica; mas esta pluralidade especificamente a condio e no apenas a conditiosine

    qua non, mas a conditio per quam de toda a vida poltica. Assim, o idioma dos romanos

    talvez o povo mais poltico que se conhece, empregava como sinnimas as expresses

    viver e estar entre os homens, ou morrer e deixar de estar entre os homens. Mas

    sua forma mais simples, a condio humana da ao est implcita at mesmo na

    Gnese (macho e fmea Ele os criou), se entender-se que est verso da criao do

    homem contrria, em princpio, da outra segundo a qual Deus originalmente criou o

    Homem (adam) a ele, e no a eles, de sorte que a pluralidade (ARENDT, 2007), dos

    seres humanos vem a ser o resultado da multiplicao. Aqui deve-se lembrar que

    quando se analise o pensamento poltico ps-clssico, muito de aprende analisando-se

    qual das duas verses bblicas da criao citada. Assim, tpico da diferena entre os

    ensinamentos de Jesus de Nazareth e de Paulo o fato de que Jesus, segundo Arendt

    (2007), discutindo a relao entre marido e mulher, refere-se a Gneses 1:27: no

    tendes lido que quem criou o homem desde o princpio f-los macho e fmea (Mateus,

    19:4), enquanto Paulo, em ocasio semelhante, insiste em que a mulher foi criada do

    homem e, portanto, para o homem, embora em seguida amenize um pouco a

    dependncia: nem o varo sem a mulher, nem a mulher sem o varo (I cor. 11:8 -12).

    A diferena indica muito mais que uma atitude diferente em relao ao papel da

    mulher. Arendt (2007) entende que para Jesus, a f era intimamente relacionada com a

    ao; para Paulo, a f relacionava-se, antes de mais nada, com a salvao.

    A ao seria um luxo desnecessrio, uma caprichosa interferncia com as leis

    gerais de comportamento, se os homens no passassem de repeties

    interminavelmente reproduzveis do mesmo modelo, todas dotadas da mesma natureza

    e essncia, to previsveis quanto a natureza e a essncia de qualquer outra coisa. A

    pluralidade a condio da ao humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto ,

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    como coloca Arendt (2007): humanos, sem que ningum seja exatamente igual a

    qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir. A trs atividades e suas

    respectivas condies tm ntimas relaes com as condies mais gerais da existncia

    humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade. O labor garante no

    apenas a sobrevivncia do indivduo, mas a vida da espcie. O trabalho e seu produto, o

    artefato humano, emprestam certa permanncia e durabilidade fertilidade da vida

    mortal e ao carter efmero do tempo humano (ARENDT, 2007). A ao, na medida em

    que se empenha em fundar e preservar corpos polticos, cria a condio para a

    lembrana, ou seja, para a histria. O labor e o trabalho, bem como a ao, tm tambm

    razes na natalidade, na medida em que sua tarefa produzir e preservar o mundo para

    o constante influxo de recm-chegados que vm a este mundo na qualidade de

    estranhos, alm de prev-los e lev-los em conta (ARENDT, 2007). Das trs atividades,

    a ao a mais intimamente relacionada com a condio humana da natalidade; o novo

    comeo inerente a cada nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o

    recm-chegado possui capacidade de iniciar algo novo, isto , de agir. Neste sentido,

    Arendt (2007) relata que neste sentido de iniciativa, todas as atividades humanas

    possuem um elemento de ao e, portanto, de natalidade. Alm disso, como a ao

    atividade poltica por excelncia, a natalidade, e no a mortalidade, pode constituir a

    categoria central do pensamento poltico, em contraposio ao pensamento metafsico.

    A condio humana deve ser compreendida como algo mais que as condies

    nas quais a vida foi dada ao homem. Os homens so seres condicionados: tudo aquilo

    com o qual eles entram em contato torna-se imediatamente uma condio de sua

    existncia (ARENDT, 2007). O mundo no qual transcorre a vida activa consiste em

    coisas produzidas pelas atividades humanas; mas, constantemente, as coisas que

    devem sua existncia exclusivamente aos homens tambm condiciona seus autores

    humanos. Alm das condies nas quais a vida dada ao homem na Terra e, at certo

    ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as suas prprias condies que,

    a despeito de sua variabilidade e sua origem humana, possuem a mesma fora

    condicionante das coisas naturais. O que quer que toque a vida humana ou entre em

    duradoura relao com ela, assume, de forma imediata, o carter de condio da

    existncia humana. por isso, para Arendt (2007) que os homens, independentemente

    do que faam, so sempre seres condicionados. Para evitar erros de interpretao,

    Arendt (2007) indica que: a condio humana no o mesmo que a natureza humana,

    e a soma total das atividades e capacidades humanas que correspondem condio

    humana no constitui algo que se assemelhe natureza humana. Pois nem o

    pensamento e a razo, e nem mesmo a mais meticulosa enumerao de todas elas,

    constituem caractersticas essenciais da existncia humana no sentido de que, sem elas,

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    essa existncia deixaria de ser humana. A mudana mais gritante da condio humana

    que pode-se imaginar seria a emigrao dos homens da Terra para algum outro

    planeta. Tal evento, j no inteiramente impossvel, conforme Arendt (2007),

    implicaria em que o homem teria que viver sob condies, feitas por ele mesmo,

    inteiramente divergentes daquelas que a Terra lhe oferece. O labor, o trabalho, a ao e,

    na verdade, at mesmo o pensamento como se conhece deixariam de ter sentido em tal

    eventualidade.

    A mais evidente indicao de que a sociedade constitui a organizao pblica

    do prprio processo vital talvez seja encontrada no fato de que, em tempo

    relativamente curto, a nova esfera social transformou todas as comunidades modernas

    em sociedades de operrios e de assalariados; em outras palavras, para Arendt (2007),

    essas comunidades concentram-se imediatamente em torno da nica atividade

    necessria para manter a vida o labor. Logicamente, para que se tenha uma sociedade

    de operrios no necessrio que cada um dos seus membros seja realmente um

    operrio ou trabalhador e nem mesmo a emancipao da classe operria e a enorme

    fora potencial que o governo da maioria lhe atribui so decisivas neste particular;

    basta que todos os seus membros considerem o que fazem primordialmente como

    modo de garantir a prpria subsistncia e a vida de suas famlias. A atividade do labor,

    embora sempre relacionada com o processo vital em seu sentido mais elementar e

    biolgico, permaneceu estacionada durante muito tempo, prisioneira da eterna

    recorrncia do processo vital a que se refere. A promoo do labor, conforme Arendt

    (2007) estatura de coisa pblica, longe de eliminar o seu carter de processo o que

    teria sido de esperar, se se recordar que os corpos polticos sempre foram projetados

    com vistas permanncia e suas leis sempre foram compreendidas como limitaes

    impostas ao movimento liberou, ao contrrio, esse processo de sua recorrncia

    circular e montona e transformou-o em rpida evoluo, cujos resultados, em poucos

    sculos, alteraram inteiramente todo o mundo habitado.

    No momento em que o labor foi liberado das restries que lhe eram impostas

    pelo banimento esfera pblica e essa emancipao do labor no foi conseqncia as

    emancipao da classe operria, mas a precedeu foi como se, de acordo com Arendt

    (2007), o elemento de crescimento inerente a toda vida orgnica houvesse

    completamente superado e se sobreposto aos processos de perecimento atravs dos

    quais a vida orgnica controlada e equilibrada na esfera domstica da natureza.

    Arendt (2007), coloca que sua distino entre labor e trabalho inusitada. A evidncia

    fenomenolgica a favor dessa distino demasiado marcante para que se ignore; e, no

    entanto, historicamente verdadeiro que, parte certas observaes espordicas - as

    quais por sinal nunca chegaram a ser desenvolvidas nas teorias de seus autores ,

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    quase nada existe para corrobor-la na tradio pr-moderna do pensamento poltico

    ou no vasto corpo das modernas teorias do trabalho. Contra essa carncia de provas

    histricas, porm, h uma testemunha muito eloqente e obstinada: a simples

    circunstncia de que todas as lnguas europias, antigas e modernas, possuem duas

    palavras de etimologia diferente para designar o que para todos, hoje, a mesma

    atividade, e conservam ambas a despeito do fato de serem repetidamente usadas como

    sinnimos (ARENDT, 2007).

    Assim, a distino de Locke entre as mos que trabalham de o corpo que

    labora , de certa forma, reminiscente da antiga distino grega entre cheirotechnes, o

    artfice, ao qual corresponde o Handwerker alemo, e aqueles que, como escravos e

    animais domsticos, atendem com o corpo s necessidades de vida ou, na expresso

    grega, to somati ergazesthai, trabalham com o corpo (mesmo neste exemplo, porm, o

    labor e o trabalho j so tratados como idnticos, pois a palavra empregada no

    ponein, laborar, mas ergazesthai, trabalhar). Somente em um ponto, que, porm,

    linguisticamente o mais importante de todos (ARENDT, 2007) o emprego antigo e o

    emprego moderno das suas palavras como sinnimas fracassou inteiramente: na

    formao do substantivo correspondente. Mas uma vez, encontra-se aqui completa

    unanimidade: a palavra labor, como substantivo, jamais designa produto final, o

    resultado da ao de laborar; permanece como substantivo verbal, uma espcie de

    gerndio. Por outro lado, assevera Arendt (2007), da palavra correspondente a

    trabalho que deriva o nome do prprio produto, mesmo nos caos em que o uso corrente

    seguiu to de perto a evoluo moderna que a forma verbal da palavra trabalho se

    tornou praticamente obsoleta.

    O motivo pelo qual esta distino permaneceu ignorada e sua importncia

    nunca foi analisada nos tempos antigos bastante visvel. Conforme Arendt (2007), o

    desprezo pelo labor, originalmente resultante da acirrada luta do homem contra a

    necessidade e de uma impacincia no menos forte em relao a todo esforo que no

    deixasse qualquer vestgio, qualquer monumento, qualquer grande obra digna de ser

    lembrada, generalizou-se medida em que as exigncias da vida na polis consumiam

    cada vez mais o tempo dos cidados e com a nfase em sua absteno de qualquer

    atividade que no fosse poltica, at estender-se a tudo quanto exigisse esforo. O

    costume poltico anterior, que precedeu o desenvolvimento da cidade-estado,

    meramente distinguia entre escravos inimigos vencidos, que eram levados para a casa

    do vencedor juntamente com outros despojos de guerra e l, como moradores da casa,

    trabalhavam como escravos para prover o prprio sustento e os dos seus senhores e

    os demiourgoi, os operrios do povo em geral, que tinham liberdade de movimento

    fora da esfera privada e dentro da esfera pblica. Em poca mais recente, os artesos,

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    aos quais Slon descrevia ainda como filhos de Atena e de Hefesto, chegaram a receber

    outro nome: eram chamados de banausoi, isto , homens cujo principal interesse o

    seu ofcio e no o mundo pblico (ARENDT, 2007).

    somente a partir de fins do sculo V que a polis passa a classificar as

    ocupaes segundo a quantidade de esforo que exigem, de sorte que Aristteles

    considerava como mais mesquinhas aquelas ocupaes nas quais o corpo se desgasta.

    Embora se recusasse a conceder cidadania aos banausoi, teria aceito pastores e

    pintores mas no camponeses e escultores. Ver-se- que, parte seu desdm pelo

    labor, os gregos tinham suas razes para no confiar no artfice ou, ou antes, na

    mentalidade do homo faber. Essa desconfiana, porm, s encontrada em certos

    perodos, ao passo que todas as antigas classificaes das atividades humanas, inclusive

    as que, como a de Hesodo, supostamente enaltecem o labor (o labor e o trabalho

    (ponos e ergon) so diferenciados em Hesodo: s o trabalho devido a Eris, a deusa da

    emulao [...] mas o labor, como todos os outros males, provm da caixa de Pandora e

    punio imposta por Seus porque Prometeu o astuto o traiu. Desde ento, os deuses

    esconderam a vida dos olhos dos homens, e sua maldio atinge o homem que se

    alimenta de po. Hesodo aceita como natural que o trabalho numa fazenda, seja feito

    por escravos e animais domsticos. Louva a vida cotidiana o que, para um grego, j

    bastante extraordinrio mas o seu ideal o fazendeiro abastado e fino, e no o

    trabalhador que fica em casa e mantm-se afastado das aventuras do mar e dos

    negcios pblicos da agora, tratando apenas de sua vida), repousam na convico de

    que o labor do corpo, exigido pelas necessidades deste ltimo, servil, conforme

    entendimento de Arendt (2007).

    Consequentemente, as ocupaes que no consistiam em labor, mas ainda

    assim eram exercidas com a finalidade de atender s necessidades da vida, foram

    assimiladas condio de labor; e isto explica as mudanas e as variaes de avaliao

    e classificao em diferentes perodos de tempo e em diferentes lugares. A opinio de

    que o labor e o trabalho eram ambos vistos como desdm na antiguidade pelo fato de

    que somente escravos o exerciam um preconceito dos historiadores modernos

    (ARENDT, 2007). Os antigos racionavam de outra forma: achavam necessrio ter

    escravos em virtude da natureza servil de todas as ocupaes que servissem s

    necessidades de manuteno da vida. Aqui, Arendt (2007) lembra que Aristteles inicia

    sua famosa discusso da escravido com a afirmao de que, sem o necessrio, nem a

    vida nem a boa vida possvel. Ter escravos a forma humana de dominar a

    necessidade e, portanto, no para physin, contra a natureza; a prpria vida o exige.

    Portanto, os camponeses, que produzem o necessrio para a vida, so classificados,

    tanto por Plato como por Aristteles, na mesma categoria que os escravos.

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    Exatamente por esse motivo que a instituio da escravido era defendida e

    justificada. Laborar significava se escravizado pela necessidade, escravido esta

    inerente s condies da vida humana. Pelo fato de serem sujeitos s necessidades da

    vida, os homens s podiam conquistar a liberdade subjugando outros que eles, fora,

    submetiam necessidade. A degradao do escravo era um rude golpe do destino, um

    fado pior que a morte (ARENDT, 2007), por implicar a transformao do homem em

    algo semelhante a um animal domstico. Assim, qualquer alterao na condio de

    escravo, como a alforria, ou qualquer mudana de circunstncias polticas gerais que

    elevasse certas ocupaes a um nvel de relevncia pblica, significava

    automaticamente uma mudana na natureza do escravo. Arendt (2007) aponta que

    assim que Aristteles recomendava que os escravos incumbidos de ocupaes livres

    fossem tratados com mais dignidade e no como escravos. Por outro lado, quando, nos

    primeiros sculos do Imprio Romano, certas funes pblicas, que sempre haviam

    sido executadas por escravos pblicos, passaram a ser consideradas mais dignas e mais

    importantes, esse servi publici que, na verdade, cumpriam tarefas de funcionrios

    pblicos receberam permisso de usar a toga e desposar mulheres livres.

    No de se surpreender que a distino entre labor e trabalho tenha sido

    ignorada na antiguidade clssica. A diferenciao entre a casa privada e a esfera poltica

    pblica, entre o domstico que era um escravo e o chefe da casa que era um cidado,

    entre as atividades que deviam ser escondidas na privatividade do lar e aquelas que

    eram dignas de vir a pblico, apagaram e predeterminaram todas as outras distines,

    at restar somente um critrio: na privatividade ou em pblico que se gasta a maior

    parte do tempo e do esforo? A ocupao motivada por cura privati negottiou cura

    rei publicae, para cuidar de negcios privados ou para atender s coisas pblicas?

    (ARENDT, 2007).

    Com o advento da teoria poltica os filsofos aboliram at mesmo estas

    distines que, ao menos, haviam estabelecido uma diferena entre as atividades, e

    opuseram a contemplao a todo e qualquer tipo de atividade. Com eles, at mesmo a

    ocupao poltica foi rebaixada posio de necessidade; e esta, da por diante, passou

    a ser o denominador comum de todas as manifestaes da vita activa. No se pode

    esperar, conforme Arendt (2007) auxilio do pensamento poltico cristo, que aceitou a

    distino feita pelos filsofos e refinou-a; e, como a religio destina-se multido,

    enquanto a filosofia somente para alguns poucos, deu-lhe validade geral, obrigatria

    para todos os homens. A primeira vista, porm, surpreendente que a era moderna

    tendo invertido todas as tradies, tanto a posio tradicional da ao e da

    contemplao como a tradicional hierarquia dentro da prpria vta activa, tendo

    glorificado o labor (trabalho) como fonte de todos os valores, e tendo promovido o

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    animal laborans posio tradicionalmente ocupada pelo animal rationale no

    tenha produzido uma nica teoria que distinguisse claramente entre o animal laborans

    e o homo faber, entre o labor do nosso corpo e o trabalho de nossas mos (ARENDT,

    2007). Ao invs disso, encontra-se primeiro a distino entre trabalho produtivo e

    improdutivo; um pouco mais tarde, a diferenciao entre trabalho qualificado e no-

    qualificado; e, finalmente, sobrepondo-se a ambas por ser aparentemente de

    importncia mais fundamental, a diviso de todas as atividades em trabalho manual e

    intelectual. Das trs, porm, Arendt (2007) revela que somente a distino entre

    trabalho produtivo e improdutivo vai ao fundo da questo; e no foi por acaso que os

    dois grandes teoristas do assunto, Adam Smith e Karl Marx, basearam nela toda a

    estrutura do seu argumento. O prprio motivo da promoo do labor como trabalho na

    era moderna foi a sua produtividade; e a noo aparentemente blasfema de Marx de

    que o trabalho (e no Deus) criou o homem, ou de que o trabalho (e no a razo)

    distingue o homem dos outros animais, era apenas a formulao mais radical e

    coerente de algo com que toda a era moderna concordava. Alm do mais, tanto Smith

    quanto Marx estavam de acordo com a moderna opinio pblica quando

    menosprezavam o trabalho improdutivo, que para eles era parastico, uma espcie de

    perverso do trabalho, como se fosse indigno deste nome toda atividade que no

    enriquecesse o mundo (ARENDT, 2007). Marx compartilhava do desprezo de Smith

    pelos criados servis, que como convivas ociosos ...nada deixam atrs de si em troca do

    que consomem. Contudo, todas as eras anteriores era moderna, ao identificar o

    trabalho com a escravido, tinham em mente precisamente esses criados servis, esses

    caseiros, oiketaiou familiares, cujo trabalho era exigido pela mera subsistncia e que

    eram necessrios para o consumo isenta de esforo, e no para a produo. O que eles

    deixaram atrs de si em troca do que consumiam foi nada mais nada menos que a

    liberdade, ou, na linguagem moderna, a produtividade potencial de seus senhores

    (ARENDT, 2007).

    Em outras palavras, a distino entre trabalho produtivo e improdutivo

    contm, embora eivada de preconceito, a distino mais fundamental entre trabalho e

    labor. Aqui, deve-se atentar que a distino entre trabalho produtivo e improdutivo se

    deve aos fisiocratas, que diferenciavam entre classes produtoras, proprietrios e

    estreis. Como afirmavam que a fonte original de toda produtividade residia nas foras

    naturais da terra, o critrio de produtividade que adotavam tinha a ver com a criao de

    novos objetos, e no com as necessidades e desejos dos homens. Realmente tpico de

    todo labor nada deixar atrs de si: o resultado do seu esforo consumido quase to

    depressa quanto o esforo dependido (ARENDT, 2007). E, no entanto, esse esforo, a

    despeito de sua futilidade, decorre de enorme premncia; motiva-o um impulso mais

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    poderoso que qualquer outro, pois a prpria vida depende dele. A era moderna em

    geral e Karl Marx em particular, fascinados, por assim dizer, pela produtividade real e

    sem precedentes da humanidade ocidental, tendiam quase irresistivelmente a encarar

    todo o labor como trabalho e a falar do animal laborans em termos muito mais

    adequados ao homo faber, como a esperar que restasse apenas um passo para eliminar

    totalmente o labor e a necessidade.

    Sem dvida, a evoluo histrica que tirou o labor de seu esconderijo e o

    guindou esfera pblica, onde pde ser organizado e dividido, (em sua introduo ao

    segundo livroA Riqueza das Naes, Adam Smith destaca que a produtividade se deve

    diviso do trabalho, e no ao prprio trabalho), constituiu poderoso argumento no

    desenvolvimento dessas teorias. Contudo, um fato ainda mais relevante neste

    particular, j pressentido pelos economistas clssicos e claramente descoberto e

    expresso por Karl Marx, segundo Arendt (2007), que a prpria atividade do trabalho

    (labor), independentemente de circunstncias histricas e de sua localizao na esfera

    privada ou na esfera pblica, possui realmente uma produtividade prpria, por mais

    fteis ou pouco durveis que sejam os seus produtos. Essa produtividade, para Arendt

    (2007) no reside em qualquer um dos produtos do labor, mas na fora humana, cuja

    intensidade no se esgota depois que ela produz os meios de sua subsistncia e

    sobrevivncia, mas capaz de produzir um excedente, ou seja, mais que o necessrio

    sua reproduo. Uma vez que no o prprio trabalho, mas o excedente da fora de

    trabalho humana, que explica a produtividade do trabalho, a introduo deste termo

    por Marx, como Engels observou corretamente, segundo Arendt (2007), constitui o

    elemento mais original e mais revolucionrio de todo o seu sistema. Ao contrrio da

    produtividade do trabalho, que acrescenta novos objetos ao artifcio humano, a

    produtividade do labor s ocasionalmente produz objetos; sua preocupao principal

    so os meios da prpria reproduo; e, como a sua fora no se extingue quando a

    prpria reproduo j est assegurada, pode ser utilizada para a reproduo de mais de

    um processo vital, mas nunca produz outra coisa seno vida (ARENDT, 2007).

    Mediante violente opresso numa sociedade de escravos, ou mediante a

    explorao na sociedade capitalista da poca de Marx, pode ser canalizada de tal forma

    que o labor de alguns bastante para a vida de todos. Deste ponto de vista puramente

    social, que o ponto de vista de toda a era moderna, mas que recebeu sua mais

    coerente e grandiosa expresso na obra de Marx, todo trabalho produtivo; e perde

    sua validade a distino anterior entre a realizao de tarefas servis, que no deixam

    vestgios, e a produo de coisas suficientemente durveis para que sejam acumuladas.

    Como se notou, de acordo com Arendt (2007), o ponto de vista social idntico

    interpretao que nada leva em conta a no ser o processo vital da humanidade; e,

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    dentro de seu sistema de referncia, todas as coisas tornam-se objetos de consumo.

    Numa sociedade complementar socializada, cuja nica finalidade fosse a sustentao

    do processo vital e este o ideal, infelizmente um tanto utpico, que orienta as teorias

    de Marx a distino entre labor e trabalho desapareceria completamente; todo

    trabalho tornar-se-ia labor, uma vez que todas as coisas seriam concebidas, no em sua

    qualidade mundana e objetiva, mas como resultados da fora viva do labor, como

    funes do processo vital.

    2. Labor, subsistncia e ofcio

    O trabalho das mos, em contraposio ao labor do corpo - o homo faber que

    faz e literalmente trabalha sobre (aqui deve-se lembrar que a palavra latina faber,

    que provavelmente se relaciona com facere [fazer alguma coisa, no sentido de

    produo], aplicava-se originariamente ao fabricante e artista que trabalhava com

    materiais duros, como pedra ou madeira; era tambm usada como traduo do grego

    tekton, que tem a mesma conotao. A palavra fabri, muitas vezes seguida de tignarii,

    designava especialmente operrios de construo e carpinteiros. No de pode

    determinar onde e quando a expresso homo faber, certamente de origem moderna e

    ps-medieval, surgiu pela primeira vez), os materiais, em oposio ao animal laborans

    que labora e se mistura com eles fabrica a infinita variedade de coisas cuja soma

    total constitui o artifcio humano (ARENDT, 2007). Em sua maioria, mas no

    exclusivamente, essas coisas so objetos destinados ao uso, dotados da durabilidade de

    que, segundo Arendt (2007), Locke necessitava para o estabelecimento da propriedade,

    do valor de que Adam Smith precisava para o mercado de trocas, e comprovam a

    produtividade que Marx acreditava ser o teste da natureza humana. Devidamente

    usadas, elas no desaparecem, e emprestam ao artifcio humano a estabilidade e a

    solidez, sem as quais no se poderia esperar que ele servisse de abrigo cultura mortal

    e instvel que o homem.

    A durabilidade do artifcio humano no absoluta; o uso que dele faz-se,

    embora no o consumam, o desgasta. O processo vital que permeia todo o saber

    tambm o atinge; e se no usa-se as coisas do mundo elas tambm perecero mais cedo

    ou mais tarde, e retornaro ao processo natural global do qual foram retiradas e contra

    o qual foram erigidas. Se abandonada a si mesma ou descartada do mundo humano, a

    cadeira voltar a ser lenha, e a lenha perecer e retornar ao solo de onde surgiu a

    rvore que foi cortada para transforma-se no material sobre o qual se trabalhou e com o

    qual se construiu. Mas, para Arendt (2007) embora este possa ser o fim inevitvel de

    todas as coisas individuais no mundo, sinal de que so produtos de um fabricante

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    moral, no certo que seja o destino final do prprio artifcio humano, no qual todas as

    coisas podem ser constantemente substitudas com o ir e vir de geraes que habitam o

    mundo construdo pelo homem. Alm disso, embora o uso provavelmente desgaste os

    objetos, o desgaste no o destino destes ltimos, no mesmo sentido em que a

    destruio o fim intrnseco de todas as coisas destinadas ao consumo. O que o uso

    desgasta a durabilidade. esta durabilidade que empresta s coisas do mundo sua

    relativa independncia dos homens que as produziram e as utilizam, a objetividade

    que as faz resistir, obstar e suportar, pelo menos durante algum tempo, as vorazes

    necessidades de seus fabricantes e usurios.

    Em relao aos instrumentos do trabalho e a diviso do labor, pode-se

    mencionar que infelizmente, parece ser da natureza das condies da vida, tal como

    esta foi dada ao homem, que a nica vantagem possvel da fertilidade da humana fora

    de trabalho (labor power) consista, para Arendt (2007), em sua capacidade de prover as

    necessidades da vida e de mais de um homem ou de uma famlia. Os produtos do labor,

    produtos do metabolismo do homem com a natureza, no duram no mundo o tempo

    suficiente para se tornarem parte dele, e a prpria atividade do labor, concentrada

    exclusivamente na vida e em sua manuteno, to indiferente ao mundo que como

    se este no existisse. O animal laborans, compelido pelas necessidades do corpo, no

    usa esse corpo livremente como o homo faber utiliza as mos, que so os seus

    instrumentos principais; e por isso que Plato sugeriu que os operrios e escravos

    eram no apenas sujeitos necessidade e incapazes de liberdade, mas incapazes

    tambm de dominar o lado animal de sua prpria natureza. O fato de que a escravido

    e o banimento no isolamento do lar constituam, de modo geral, a condio social de

    todos os trabalhadores antes da era moderna, segundo Arendt (2007), deve-se

    basicamente prpria condio humana; a vida, que pra todas as outras espcies

    animais a prpria essncia do ser, torna-se um nus para o homem em virtude de sua

    inata repugnncia futilidade.

    As ferramentas e instrumentos que pode suavizar consideravelmente o esforo

    do labor, no so, eles mesmos, produtos do labor, mas do trabalho; no pertencem ao

    processo do consumo: so parte integrante do mundo de objeto de uso. O papel que

    desempenham, por maior que seja para o labor de qualquer civilizao, de acordo dom

    Arendt (2007), jamais pode atingir a importncia fundamental que os instrumentos

    tm para todo tipo de trabalho. Nenhum trabalho pode ser produzido sem

    instrumentos: o aparecimento do homo faber e o surgimento de um mundo de coisas,

    feito pelo homem, so na verdade, contemporneos da descoberta de instrumentos e

    ferramentas. Do ponto de vista do labor, as ferramentas reforam e multiplicam a fora

    humana at quase substitu-la, como ocorre em todos os casos nos quais as foras

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    naturais, como os animais domsticos, a fora hidrulica ou a eletricidade, e no coisas

    materiais, so dominadas pelo homem. Da mesma forma, para Arendt (2007), os

    instrumentos aumentam a fertilidade natural do animal laborans e produzem uma

    abundncia de bens de consumo.

    Embora os instrumentos e ferramentas, destinados a produzir algo alm e

    totalmente diferente do mero uso, sejam de importncia secundria para a atividade do

    labor, o mesmo no se aplica ao outro grande princpio do processo da lide humana, a

    diviso do trabalho (enquanto labor). A diviso do labor , segundo Arendt (2007),

    realmente, resultado direto do processo de labor, e no deve ser confundido com o

    princpio, aparentemente semelhante, da especializao que prevalece nos processos de

    trabalho e com o qual no deve ser equacionada. A especializao do trabalho e a

    diviso do labor tm em comum somente o princpio geral da organizao, princpio

    este que, em si, nada tem a ver com o trabalho ou o labor, mas deve sua origem esfera

    de vida estritamente poltica, ao fato de que o homem capaz de agir, e de agir na

    companhia e em acordo com os outros. Somente dentro da estrutura da organizao

    poltica, onde os homens no apenas vivem, mas agem juntos, podem ocorrer a

    especializao do trabalho e a diviso do labor.

    Contudo, cabe enfatizar que, conforme Arendt (2007), enquanto a

    especializao do trabalho essencialmente guiada pelo prprio produto acabado, cuja

    natureza exigir diferentes habilidades que, em seguida, so reunidas e organizadas em

    um conjunto, a diviso do labor, pelo contrrio, pressupe a equivalncia qualitativa de

    todas as atividades isoladas para as quais nenhuma qualificao necessria; e estas

    atividades no tm uma finalidade em si mesmas, mas representam, de fato, somente

    certas quantidades de labor power, somadas umas s outras de modo puramente

    quantitativo. A diviso do labor baseada no fato de que dois homens podem reunir o

    seu labor power e proceder um com o outro como se fossem um s. A revoluo

    industrial substituiu todo artesanato pelo labor; o resultado foi, para Arendt (2007),

    que as coisas do mundo moderno se tornaram produtos do labor, cujo destino natural

    serem consumidos, ao invs de produtos do trabalho, que se destinam a ser usados. Da

    mesma forma como os instrumentos e ferramentas, embora originados pelo trabalho,

    sempre foram empregados tambm no processo de labor, a diviso do labor,

    inteiramente adequada e em consonncia com o processo do labor, tornou-as uma das

    principais caractersticas dos modernos processos de trabalho, isto , da fabricao e

    produo de objetos de uso. A diviso do labor, e no um aumento de mecanizao,

    substitui a rigorosa especializao antes exigida para todo o tipo de artesanato. O

    artesanato, na viso de Arendt (2007), necessrio somente para o projeto e fabrico do

    modelo, antes que este seja produzido em massa, o que tambm depende de mquinas

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    e ferramentas. Mas a produo em massa seria, alm disso, completamente impossvel

    sem a substituio de trabalhadores e da especializao por operrios e pela diviso do

    labor.

    Ferramentas e instrumentos diminuem o esforo e a dor, e com isso mudam o

    modo pelo qual a urgente necessidade inerente ao labor era, antes, percebida por todos.

    No mudam a necessidade em si; servem apenas para escond-la de nossos sentidos.

    Algo semelhante se aplica aos produtos do labor, que no se tornam mais durveis por

    serem abundantes (ARENDT, 2007). O caso diferente na transformao moderna do

    processo do trabalho pela introduo do princpio da diviso do trabalho. Neste caso,

    Arendt (2007) explica que a prpria natureza do trabalho alterada e o processo de

    produo, embora no produza absolutamente objetos para o consumo, assume carter

    de labor. Embora as mquinas tenham levado a um ritmo infinitamente mais rpido de

    repetio que aquele prescrito pelo ciclo dos processos naturais e bem possvel que

    esta acelerao especificamente moderna faa ignorar o carter repetitivo de todo labor

    , a repetio e a interminabilidade do prprio processo imprimem-lhe a marca

    inconfundvel do labor. Isto se torna ainda mais claro nos objetos de uso produzidos

    por essas tcnicas de trabalho. Os ideais do homo faber, fabricante do mundo, que so

    a permanncia, a estabilidade e a durabilidade, foram sacrificados em benefcio da

    abundncia, que o ideal do animal laborans (ARENDT, 2007). Vive-se em uma

    sociedade de operrios, porque somente o labor, com sua inerente fertilidade, tem

    possibilidade de produzir a abundncia; e transforma-se o trabalho em labor,

    separando-o em partculas minsculas at que ele se prestou diviso, na qual o

    denominador comum da execuo mais simples atingido para eliminar do caminho

    do labor power humano que parte da natureza e talvez a mais poderosa de todas as

    foras naturais o obstculo da estabilidade inatural e puramente do artifcio

    humano.

    3. Homo faber

    Os utenslios e instrumentos do homo faber, do quais advm a experincia

    fundamental da noo de instrumentalizao, determinam todo trabalho e toda a

    fabricao. Sob este aspecto, realmente verdadeiro, segundo Arendt (2007), que o fim

    justifica os meios; mais que isto, o fim produz e organiza os meios. Cabe dizer que o fim

    justifica a violncia cometida contra a natureza para que obtenha o material, tal como a

    madeira justifica matar a rvore e a mesa justifica destruir a madeira. em ateno ao

    produto final que as ferramentas so projetadas e os utenslios so inventados, e o

    produto final que organiza o prprio processo de trabalho, determina a necessidade de

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    especialistas, a quantidade de cooperao, o nmero de auxiliares, etc. durante o

    processo de trabalho, tudo , julgado em termos de adequao e serventia em relao

    ao fim desejado, e nada mais. Os mesmos critrios de meios e fins aplicam-se ao

    prprio produto. Embora este seja um fim em relao aos meios pelos quais foi

    produzido, nunca chega, segundo Arendt (2007), a ser um fim em si mesmo, pelo

    menos no enquanto permanea como objeto de uso. A cadeira, que o fim do processo

    de carpintaria, apenas pode demonstrar sua serventia se voltar a ser um meio seja

    meio de troca, seja como objeto cuja durabilidade permite que se o use como meio de

    tornar a vida mais confortvel.

    O problema do critrio de utilidade inerente prpria atividade de fabricao

    que a relao entre meios e fins na qual se fundamentam lembra uma cadeira na qual

    todo fim pode novamente servir como meio em outro contexto. Em outras palavras,

    pode-se dizer que num mundo estritamente utilitrio, todos os fins tendem a ser de

    curta durao e a transformar-se em meios para outros fins (ARENDT, 2007). Esta

    perplexidade, intrnseca a todo utilitarismo sistemtico, que a filosofiapar excellence

    do homo faber, pode ser diagnosticada teoricamente como, de acordo com Arendt

    (2007), a capacidade inata de perceber a diferena entre utilidade e significncia,

    expressa na linguagem pela diferena entre para que e nome de qu. Assim, o ideal

    de serventia, que orientar uma sociedade de artfices como o ideal de conforto numa

    sociedade de operrios ou o ideal de aquisio que governa as sociedades comerciais

    , j no , realmente, uma questo de utilidades, mas, para Arendt (2007), de

    significncia. em nome da serventia em geral que o homo faber julga e faz tudo em

    termos de par qu. O ideal de serventia, em si, como os ideais de outras sociedades, j

    no pode ser concebido como lago de que se necessita para que se obtenha outra coisa;

    sua serventia no admite discusso. evidente que no h resposta pergunta que

    Lessing, certa vez, dirigiu aos filsofos utilitrios de seu tempo: e para que serve a

    serventia?. A perplexidade do utilitarismo que perde na cadeia interminvel de meios

    e fins sem jamais chegar a algum princpio que possa justificar a categoria de meios e

    fins, isto , na viso de Arendt (2007), a categoria da prpria utilidade. O para que

    torna-se o contedo do em nome de qu; em outras palavras, a utilidade, quando

    promovida a significncia, gera a ausncia de significado. Dentro da categoria de meios

    e fins, e entre as experincias do conceito de instrumento que governa todo o mundo

    dos objetos de uso e da utilidade, no h como pr termo cadeia de meios e fins e de

    evitar que todos os fins, mas cedo ou mais tarde, voltem a ser usados como meios, a no

    ser, no ser apontar que determinada coisa um fim em si mesma. No mundo do

    homo faber, onde tudo deve ter seu uso, isto , servir como instrumento para a

    obteno de outra coisa, o prprio significado no pode parecer seno um fim, um fim

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    em si mesmo. Pois, Arendt (2007) revela que assim que atingido, todo fim deixa de

    ser um fim e perde sua capacidade de orientar e justificar a escolha de meios, de

    organiz-los e produzi-los. Para a ser um objeto entre objetos, ou seja, acrescentado

    ao enorme arsenal de coisas dadas do qual o homo faber seleciona livremente os meios

    de atingir seus fins.

    O significado, ao contrrio, deve ser permanente e nada perder de seu carter,

    seja ele alcanado ou, antes, encontrado pelo homem, ou fora do alcance do homem e

    inalcanvel por ele. O homo faber, por no passar de um fabricante de coisas e por

    pensar somente em termos dos meios e fins que decorrem diretamente e sua atividade

    de trabalho, , para Arendt (2007), to incapaz de compreender o significado como o

    animal laborans incapaz de compreender o conceito de instrumento. E tal como os

    utenslios e instrumentos que o homo faber usa para construir o mundo tornam-se o

    prprio mundo para o animal laborans, tambm o significado deste mundo, que

    realmente est fora do alcance do homo faber, torna-se para ele, um paradoxal fim e si

    mesmo. A tragdia, contudo, que, no instante em que o homo faber parece realizar-

    se, em termos da atividade que lhe prpria, passa a degradar o mundo das coisas, que

    o fim e o produto final de sua mente e de suas mos. Se o homem-usurio o mais

    alto de todos os fins, ou como coloca Arendt (2007), a medida de todas as coisas, ento

    somente a natureza, que o homo faberv como material quase sem valor sobre o qual

    ele trabalha, mas at mesmo as coisas valiosas tornam-se simples meios e, com isto,

    perdem o seu prprio valor intrnseco.

    Na medida em que o homo faber, o homem instrumentaliza; e este

    emprego das coisas como instrumentos implica em rebaixar todas as coisas categoria

    de meios e acarreta a perda do seu valor intrnseco e independente; e chega um ponto

    em que no somente os objetos da fabricao, mas tambm a terra em geral e todas as

    foras da natureza que evidentemente foram criadas em o auxlio do homem e

    possuem uma existncia independente do mundo humano perdem seu valor por no

    serem dotadas de refeio resultante do trabalho (ARENDT, 2007). No foi por outro

    motivo que esta atitude do homo faber em relao ao mundo que os gregos, em seu

    perodo clssico, diziam que todo o campo das artes e ofcios, no quais os homens

    trabalhavam com instrumentos e faziam algo no pela satisfao de faz-lo, mas

    produzir outra coisa, era banausikos, palavra talvez melhor traduzida como filisteu,

    conotando a vulgaridade de pensar e agir em termos de utilitarismo.

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    3.1. Animal laborans

    Do ponto de vista do homo faber, inteiramente dependente dos instrumentos

    primordiais que so as suas mos, o homem , como define Arendt (2007), um fazedor

    de utenslios. Os mesmos instrumentos que apenas aliviam a carga e mecanizam o

    labor do animal laborans so projetados e inventados pelo homo faber para a

    construo de um mundo feito de coisas; a convenincia e a preciso desses

    instrumentos so ditadas pelos fins objetivos que ele inventa a seu bel-prazer, e no

    por necessidades ou carncias subjetivas. Instrumentos e ferramentas so objetos to

    intensamente mundanos que chegam a servir de critrios para a classificao de

    civilizaes inteiras. Mas esse carter mundano nunca to evidente como quando eles

    so usados nos processos de labor, nos quais constituem realmente as nicas coisas

    tangveis que sobrevivem ao labor e o prprio processo de consumo. Portanto, Arendt

    (2007) relata que para o animal laborans, sujeito aos processos devoradores da vida e

    constantemente ocupado com eles, a durabilidade e a estabilidade do mundo so

    basicamente representadas pelos instrumentos e ferramentas que utiliza; e, numa

    sociedade de operrios, os instrumentos podem perfeitamente assumir carter ou

    funo mais que meramente instrumental.

    As freqentes queixas que ouve-se quanto perverso de meios e fins na

    sociedade moderna, de homens que se tornam escravos das mquinas que eles mesmos

    construram e so adaptados s necessidades dessas mquinas, ao invs de us-las

    como instrumentos para a satisfao das necessidades e carncias humanas, tm suas

    razes na situao fatual do labor. Nesta situao, Arendt (2007) explica que, na qual a

    produo consiste basicamente no preparo para o consumo, a prpria distino entre

    meios e fins, to tpica das atividades do homo faber, simplesmente deixa de ter

    sentido; e, portanto, os instrumentos que o homo faber inventou e com os quais veio

    em auxlio do animal laborans perdem seu carter instrumental assim que so usados

    por este ltimo. Dentro do prprio processo vital, do qual o labor permanece como

    parte integrante e ao qual jamais transcende, ocioso, conforme entende Arendt

    (2007) fazer perguntas que pressupem categorias de meios e fins como, por

    exemplo, se os homens vivem e consomem para ter foras para trabalhar ou se

    trabalham para ter os meios de consumo.

    Se considerar-se em termos de comportamento humano esta perda da

    faculdade de distinguir claramente entre meios e fins, pode-se dizer que a livre

    disposio e uso de instrumentos para a fabricao de um produto final especfico so

    substitudos pela unificao rtmica do corpo e do seu instrumento, na qual o prprio

    movimento de laborar age como fora unificadora. O labor, mas no o trabalho,

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    requer, segundo Arendt (2007), para melhores resultados, uma execuo ritmicamente

    ordenada e, quando muitos operrios se renem, exige uma coordenao rtmica de

    todos os movimentos individuais. Aqui, tem-se que evidenciar que, conforme Arendt

    (2007), a conhecida compilao feita por Karl Bcher, em 1897, de canes rtmicas de

    trabalhadores, foi seguida de volumosa literatura de carter mais cientfico. Uma dos

    melhores estudos ressalta que o fato de que no existem canes de trabalho, mas

    somente canes de labor. As canes dos artfices so sociais e cantadas aps o

    trabalho. O fato , naturalmente, que no existe nenhum ritmo natural pra o trabalho.

    Nota-se vezes a surpreendente semelhana entre o ritmo natural inerente a toda

    operao de labor e o ritmo das mquinas, a despeito de repetidas queixas de que as

    mquinas impem ao operrio um ritmo artificial. tpico que essas queixas sejam

    relativamente raras entre os prprios operrios que, ao contrrio, parecem encontrar o

    mesmo prazer no trabalho mecnico repetitivo que em outras atividades repetitivas do

    labor. Isto vem confirmar observaes feitas no comeo deste sculo nas fbricas da

    Ford, no qual acreditava-se que o trabalho rtmico um trabalho altamente espiritual.

    Pois, segundo Arendt (2007), embora a velocidade da mquina seja sem dvida muito

    maior e mais repetitiva que a do labor natural e espontneo, a execuo rtmica em si

    torna o labor mecnico e o labor pr-industrial mais semelhante entre si do que o ao

    trabalho. Todas essas teorias parecem para Arendt (2007) altamente discutveis em

    vista do fato de que os prprios trabalhadores apresentam razo inteiramente diferente

    para sua preferncia pelo trabalho repetitivo. Preferem-no porque mecnico e no

    requer ateno, de sorte que, ao execut-lo, podem pensar em outra coisa.

    O fato que nada pode ser mais facilmente e menos artificialmente

    mecanizado que o ritmo do processo do labor que, por sua vez, corresponde ao ritmo

    repetitivo do processo vital, igualmente automtico, e do metabolismo da vida com a

    natureza. Precisamente por no utilizar instrumentos e ferramentas para construir um

    mundo, mas para atenuar os labores de seu prprio processo vital, o animal laborans

    tem vivido literalmente num mundo de mquinas desde que a Revoluo Industrial e a

    emancipao do trabalho substituram quase todas as ferramentas manuais por

    mquinas que, de uma forma ou de outra, suplantaram o labor power humano com o

    poder superior das foras naturais.

    Talvez o melhor exemplo da diferena fundamental entre ferramentas e

    mquinas seja a discusso, aparentemente infindvel, de se o homem deve ajustar-se

    mquina ou se as mquinas devem ajustar-se natureza do homem. Nunca houve

    dvida, na viso de Arendt (2007) de que o se ajustava ou precisava se ajuste especial

    s ferramentas que utilizava, da mesma forma como uma pessoa se ajusta s prprias

    mos. O caso das mquinas diferente. Ao contrrio das ferramentas de artesanato,

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    que em parte alguma do processo de trabalho deixam de ser servas da mo, as

    mquinas exigem que o operrio as sirva, que ajuste o ritmo natural do seu corpo ao

    movimento mecnico que lhes prprio. Certamente isto no implica que os homens,

    em tal caso, se ajustem ou se tornem servos de suas mquinas; mas significa que,

    enquanto dura o trabalho com as mquinas, o processo mecnico substitui o ritmo do

    corpo humano.

    Como freqentemente ocorre com os eventos histricos, parece que as

    verdadeiras implicaes da tecnologia, isto , da substituio de instrumentos e

    utenslios por mquinas, s vieram luz em seu derradeiro estgio, com o advento da

    automao. til lembrar os principais estgios do desenvolvimento da tecnologia

    desde o incio da era moderna. O primeiro estgio, segundo Arendt (2007), a inveno

    da mquina a vapor, que levou Revoluo Industrial, era ainda caracterizado pela

    imitao de processos naturais e pelo uso das foras naturais para finalidades humanas

    que, em princpio, ainda no diferia do antigo uso das foras da gua e do vento. O

    segundo estgio foi caracterizado principalmente pelo uso da eletricidade e realmente

    a eletricidade continua a determinar a fase atual de desenvolvimento tcnico. Esta fase,

    na viso de Arendt (2007) j no pode ser descrita em termos de enorme ampliao e

    continuao de antigos ofcios e artes; e somente a este mundo que as categorias do

    homo faber, para quem todo instrumento um meio de atingir um fim prescrito, j no

    se aplicam.

    Arendt (2007) alerta que neste movimento, os instrumentos perdem seu

    carter instrumental, e desaparece a clara distino entre o homem e os seus utenslios.

    O que preside o processo de labor e todos os processos de trabalho executados

    maneira do labor no o esforo intencional do homem nem o produto e o ritmo que

    este impe aos operrios. Os utenslios do labor aderem a este ritmo at que o corpo e o

    instrumento passam a agitar-se no mesmo movimento repetitivo, isto , at que, no uso

    das mquinas que, entre todos os utenslio, melhor se adaptam performance do

    animal laborans j no o movimento do corpo de determina o movimento do

    utenslio, mas sim o movimento da mquina que impe os movimentos ao corpo. Deve-

    se ainda mencionar que ao contrrio do animal laborans, cuja vida gregria e alheia

    ao mundo e que, para Arendt (2007) incapaz de construir ou habitar uma esfera

    pblica e mundana, o homo faber perfeitamente capaz de ter a sua prpria esfera

    pblica, embora no uma esfera pblica propriamente dita. A esfera pblica do homo

    faber o mercado de trocas, no qual ele pode exigir os produtos de sua mo e receber a

    estima que merece. Mais ainda, Arendt (2007) defende que o homo faber realmente

    amo e senhor, no apenas porque o senhor ou se arrogou o papel de senhor de toda a

    natureza, mas porque senhor de toda a natureza, mas porque senhor de si mesmo e

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    de seus atos. Isto no se aplica ao animal laborans, sujeito s necessidades de sua

    existncia, nem ao homem de ao, que sempre depende de seus semelhantes.

    Consideraes finais

    O trabalho permitiu observar que o labor, o trabalho e a ao, so atividades

    relativas vida do homem. O labor deve ser visto sob o prisma de que garante no

    somente a sobrevivncia do homem, mas a continuidade da espcie; j o trabalho, tem

    como produto os artefatos abrolhados pelo homem. Por sua vez, a ao, seria algo

    dispensvel, uma interferncia das normas gerais que ditam o comportamento do

    homem. No tocante a evoluo do trabalho, apresentou-se que o findar do trabalho a

    construo de uma coisa, um produto, exigindo determinadas habilidades humanas, e

    que nasce diante de uma necessidade; o ofcio uma evoluo do trabalho. Frisou-se as

    alteraes do trabalho no que se refere ao seu lugar na sociedade: se na Grcia e Roma

    trabalho era um fardo e algo degradante, no perodo que se seguiu ao advento da Igreja

    Catlica no comando de vrias instituies que comandam a sociedade, o trabalho

    passou a ter uma relevncia muito grande e se tornou a alavanca impulsionadora dos

    membros da coletividade. Discutindo-se sobre o home faber e o animal laborans,

    destacou-se que o primeiro um mero fabricador de coisas e que acredita que os meios

    e os fins, advm de sua atividade de trabalho. Assim, homo faber fabrica objetos;

    entende que tudo tem seu uso; as ferramentas que este utiliza, servem para amortecer

    a carga de trabalho do animal laborans.

    Neste sentido, evidenciou-se que para o animal laborans, sujeito aos processos

    vorazes da vida diria e fixamente tomado por eles, a solidez e o equilbrio do mundo

    so basicamente representadas pelos instrumentos e ferramentas que ele emprega; e,

    numa coletividade de proletariados, os instrumentos podem assumir carter ou funo

    mais que meramente instrumental

    Referncias bibliogrficas

    ARENDT, Hannah.A condio humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2007.ARON, Raymond. O marxismo de Marx. So Paulo: Arx, 2003.BIANCHI, Ana Maria.A pr-histria da economia: de Maquiavel a Adam Smith. So Paulo:Hucitec, 1988.