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UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Direito Disciplina: Tópicos de Direito Civil- Teoria Geral do Contrato Professor: Raphael Donato O princípio da função social dos contratos: olhares e implicações frente às inovações e conflitos da sociedade moderna Elisangela Pereira Coelho O “mundo” dos contratos não é recente, foram eles estruturados pelo Direito Romano e decerto à época detinham funções diferentes das que se apresentam na atual conjuntura. Com o passar dos anos, desenvolvimento das relações e atividades humanas suas atribuições se expandiram. Na atualidade, independentemente do grau de escolaridade ou condições financeiras, todos os indivíduos contratam, pois em oposição à concepção do senso comum, o contrato nada mais é do que um acordo de vontades de natureza patrimonial. Tão logo, conforme disposto no artigo 107 do Código Civil de 2002, em regra, os contratos não apresentam forma especial; estão eles presentes no cotidiano de todos os sujeitos, seja ao fazer um empréstimo de uma caneta, a aquisição de um produto no supermercado em uma padaria ou mesmo ao embarcar em um transporte coletivo. Segundo Caio Mário:

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UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro Faculdade de Direito

Disciplina: Tópicos de Direito Civil- Teoria Geral do Contrato Professor: Raphael Donato

O princípio da função social dos contratos: olhares e implicações frente às inovações

e conflitos da sociedade moderna

Elisangela Pereira Coelho

O “mundo” dos contratos não é recente, foram eles estruturados pelo Direito

Romano e decerto à época detinham funções diferentes das que se apresentam na atual

conjuntura. Com o passar dos anos, desenvolvimento das relações e atividades humanas

suas atribuições se expandiram.

Na atualidade, independentemente do grau de escolaridade ou condições

financeiras, todos os indivíduos contratam, pois em oposição à concepção do senso

comum, o contrato nada mais é do que um acordo de vontades de natureza patrimonial.

Tão logo, conforme disposto no artigo 107 do Código Civil de 2002, em regra, os

contratos não apresentam forma especial; estão eles presentes no cotidiano de todos os

sujeitos, seja ao fazer um empréstimo de uma caneta, a aquisição de um produto no

supermercado em uma padaria ou mesmo ao embarcar em um transporte coletivo.

Segundo Caio Mário:

O mundo moderno é o mundo do contrato. E a vida moderna o é também, e em tão alta escala que, se fizesse abstração por um momento do fenômeno contratual na civilização de nosso tempo, a consequência seria a estagnação da vida social. (...) é o contrato que proporciona a subsistência de toda a gente. Sem ele, a vida individual regrediria, a atividade do homem limitar-se-ia aos momentos primários. (SILVA PEREIRA, 2003, p. 17)

Nesse contexto, o contrato passa a ser visto como parte integrante de um todo,

com capacidade de alterá-lo, o que, por conseguinte possibilita afirmar que não somente

as partes contratantes podem ser atingidas pelos seus efeitos.

As regras relativas aos contratos presentes no atual Código Civil são as mesmas

que se apresentavam no Código Civil de 1916, porém as relações contratuais, sem

duvidas se diferem em demasiado. Diferentemente do que ocorre, por exemplo, no

caso do princípio da boa fé, a função social do contrato recebeu positivação

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infraconstitucional. No Código Civil de 2002 tal princípio está regulado no artigo 421:

A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do

contrato. (BRASIL, 2002)

Embora, o termo função social presente na redação do artigo refira-se à

liberdade de contratar, no sentido de tornar inválido contratos que não a cumpram, cabe

aqui ressaltar que, a interpretação a ser feita do dispositivo deve manter a ideia de que o

princípio da liberdade contratual é exercido em virtude da autonomia da vontade das

partes.

Como nos lembra Caio Mário:

Como princípio novo, a função social do contrato não se limita a justapor aos demais, pelo contrário, vem desafiar os princípios clássicos, tais como a autonomia da vontade, da força obrigatória, da relatividade dos efeitos. A função social vem desafiá-los e em certas situações impedir que prevaleçam, diante do interesse social maior. (SILVA PEREIRA, 2003, p. 19)

Aludindo também ao pensamento de Antônio Junqueira de Azevedo -combinado

aos demais princípios-, o princípio da função social importa redefinir o alcance

daqueles outros princípios da teoria clássica, constituindo-se em um condicionamento

adicional imposto à liberdade contratual. (AZEVEDO, in NEGREIROS, 2006, p.208)

Sendo assim, os contratos continuam sendo celebrados com o intuito de

satisfazer os interesses entre os contratantes. Ninguém pode tornar-se credor ou devedor

contra a vontade se dela depende o nascimento do crédito ou da dívida. (GOMES, in

NEGREIROS, 2006, p. 211)

Conforme aponta Judith Martins-Costa, a redação do artigo 421

(...) não representa apenas uma restrição à liberdade contratual, pois tem um peso específico, que é o de entender a eventual restrição à liberdade contratual não mais como uma “exceção” a um direito absoluto, mas como expressão da função metaindividual que integra aquele direito. Há, portanto, aduz, um valor operativo, regulador da disciplina contratual, que deve ser utilizado não apenas na interpretação dos contratos, mas, por igual, na integração e na concretização das normas contratuais particularmente consideradas. (MARTINS COSTA, in GONÇALVES, 2.012, p.29)

Para Caio Mário, uma decorrência natural da função social do contrato é o

princípio de sua obrigatoriedade, sendo ilícito às partes, arrependerem-se, salvo em

ocasiões onde há consentimento mútuo.

A ordem jurídica oferece a cada um a liberdade de contratar e de escolher os termos de avença segundo a sua preferência. Concluída a convenção, recebe da ordem jurídica o condão de sujeitar, em definitivo, os agentes. Foram as partes que escolheram os termos de sua vinculação e assumiram todos os riscos. (SILVA PEREIRA, 2003, p. 19)

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Infere-se, portanto, que o contrato apresenta duas vertentes: interna e externa.

Em âmbito interno ele impõe a observância de direitos e garantias da pessoa humana,

que embora sejam assegurados na Constituição Federal no tocante às relações entre o

civil e o Estado, no mundo contemporâneo são incorporados nas relações particulares

entre civis, inserindo-se nos contratos acertados por estes. Desse modo, certos direitos

previstos na Carta Constitucional de 1988- dentre os quais podemos citar como

exemplos: a dignidade da pessoa humana, a cidadania e o pluralismo político-,

começam a ser introduzidos pelo Direito Civil em um universo até pouco tempo

exclusivamente ocupado pelas intenções de particulares que se comprometiam em uma

relação obrigacional.

Nessa perspectiva, em caráter ilustrativo, se hipoteticamente imaginássemos a

inexistência da Súmula 25 do Supremo Tribunal de Justiça que declara ilícita a prisão

civil do depositário infiel, qualquer que seja a modalidade de depósito; seria possível

considerar tal punição como um modo vexatório de cobrança que fere, sem duvidas o

princípio da dignidade da pessoa humana.

O princípio da função social do contrato obedece a uma relação direta com a

mitigação do pacto sunt servanda, ou seja, se fará lei entre os contratantes desde que

seja atendida a sua função social. Considera o Código, numa regra de caráter transitório,

prevista no parágrafo único do artigo 2035 que nenhuma convenção prevalecerá se

contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para

assegurar a função social da propriedade e dos contratos. (BRASIL, 2002)

As partes podem e devem celebrar os contratos com ampla liberdade, desde que,

em observância às exigências da ordem pública- como é o caso das cláusulas gerais-.

Segundo Nelson Nery, poderá o magistrado trazer à luz os significados do princípio da

função social, com valores sociais, morais, jurídicos e econômicos. (NERY, in

GONÇALVES, 2012)

Poderá, por exemplo, proclamar a inexistência do contrato por falta de objeto; declarar sua nulidade por fraude à lei imperativa (CC, 166, VI), porque a norma do art. 421 é de ordem pública (CC, art. 20.35, parágrafo único); convalidar o contrato anulável (CC, arts. 171 e 172); determinar a indenização da parte que desatendeu a função social do contrato etc. (GONÇALVES, 2012, p.30)

Nesse contexto, em sua vertente externa - conforme brevemente apresentado no

início desse estudo -, não basta que o contrato seja bom para ambas às partes; é

necessário que ele seja conveniente para a sociedade de um modo geral. Nessa

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perspectiva, torna-se conveniente discorrer, ainda que brevemente, sobre o princípio da

relatividade, segundo o qual um contrato não poderia surtir efeitos perante terceiros que

não se inserem na relação contratual. Como consequência da autonomia privada,

ninguém poderia tornar-se devedor de obrigação contratual por força da declaração

manifestada por outrem. COELHO, 2012. p.90 )

Contudo, segundo destaca Teresa Negreiros, o fundamento constitucional para a

função social do contrato encontra-se no princípio da solidariedade, e tendo em vista o

sentido de tal princípio, a visão egocêntrica e individualista de que não se deve admitir

que o direito de crédito seja desrespeitado por terceiros, sob o pretexto de ser este um

direito relativo, deve ser rompida. (NEGREIROS, 2006)

A cláusula geral da função social é uma expansão da relatividade, com vistas a impedir que possam ser afetados negativamente pelo contrato quaisquer interesse interesses públicos, coletivos ou difusos acerca dos quais não possam dispor os contratantes. ... Não atende à função social, assim, os contratos cuja execução possa sacrificar, comprometer ou lesar, de qualquer modo, interesses metaindividuais. (COELHO, 2012. p.90 )

A fim de elucidar ainda mais a questão, Fábio Ulhoa Coelho, em Curso de

Direito Civil: Contratos, aponta três exemplos de situações nas quais interesses

públicos são indiretamente afetados de modo negativo através de contratos que,

desatendem a função social exigida nos negócios contratuais:

É o caso, por exemplo, da empreitada, em que o dono de gleba de terra vizinha a um rio contrata a construção de edifício fabril com a derrubada da mata ciliar; do mandato, em que o anunciante incumbe à agência de propaganda a tarefa de produzir e providenciar a veiculação de publicidade abusiva; da locação de imóvel urbano tombado pelo patrimônio histórico, em que o locatário é autorizado a promover eventos que exponham a risco o bem a preservar, como ruidosas raves ou insalubres exposições de animais. (COELHO, 2012. p.91 )

Diferentemente do que ocorre nos casos de lesão ao princípio da boa fé - onde

descumprido o dever geral reproduzem-se efeitos restritivos aos contratantes através da

responsabilização civil -, nas situações de desrespeito ao princípio da função social do

contrato, essa consequência não é capaz de coibir a ilicitude. Desse modo, é necessário

invalidar o contrato a fim de reprimir completamente à ofensa à ordem pública, e como

expansão do resultado legal:

(...) se o contrato não atende a sua função social, é nulo; desse modo, o contratante inadimplente não pode ser judicialmente compelido pelo outro a cumprir as obrigações assumidas. O juiz, numa demanda entre contratantes de contrato que descumpre sua função social, não pode atender à pretensão do que busca a execução do negócio, por ser ela incompatível com a tutela dos interesses metaindividuais afetados; ao desacolher tal pretensão declarando a

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nulidade do contrato, deve o juiz determinar o envio ao Ministério Público de cópia das peças do processo, com vistas à adoção das providências tendentes à responsabilização dos contratantes. A grave consequência da nulidade do contrato é plenamente compatível com a seriedade com que deve ser tratada qualquer agressão aos valores prestigiados na cláusula geral da função social. (COELHO, 2012. p.92 )

Em se tratando de normas de ordem pública poderá o juiz aplicar,

independentemente de pedido da parte, a cláusula geral em qualquer ação judicial. O

que implica em dizer que, mesmo não tendo o autor de ação de revisão contratual

pedido na petição inicial algo à respeito da cláusula geral, poderá o juiz, agir de ofício

alterando cláusula de percentual de juros, se assim entender ser adequado à função

social do contrato. Assim agindo, autorizado pela cláusula geral expressamente

prevista na lei, o juiz poderá ajustar o contrato e dar-lhe a sua própria noção de

equilíbrio, sem ser tachado de arbitrário. (GONÇALVES, 2012, p.31)

Vale destacar que, para alguns autores, a função social do contrato não se

restringe à tutela dos interesses metaindividuais arriscados pelas partes, mas também, ao

equilíbrio contratual. Logo, retomando a análise à vertente interna dos contratos, seria

possível inserirmos a questão do equilíbrio contratual: um contrato é considerado

conveniente quando é eficiente para ambos os contratantes, por isso, eventuais

desequilíbrios precisariam ser atenuados pela força da lei. O artigo 478 do Código Civil

de 2002 trata o tema através da seguinte redação:

Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação. (BRASIL, 2002)

Considerando o disposto no texto legal, cabe salientar que como regra, o

princípio da força obrigatória do contrato pressupõe em sua essência que as obrigações

prometidas são irreversíveis, portanto, não é lícito ao juiz alterar um contrato ainda que

mediante a justificativa de tornar as condições mais humanas para as partes

contratantes. Não é posto em duvida o princípio da obrigatoriedade, de aceitação

universal, muito embora se lhe ponham obstáculos, em nome da ordem pública.

(SILVA PEREIRA, 2003, p.20)

Como afirma COELHO (2012), a proteção ao contratante vulnerável e a

recuperação do equilíbrio contratual submetem-se a regras específicas e bem definidas.

A expansão da cláusula geral deve, portanto, ser desprestigiada, já que implicaria na

distorção do princípio da função social do contrato.

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Logo, para o autor:

O equilíbrio dos contratantes e do contrato devem continuar sujeitos à disciplina específica, em consonância com o modelo reliberalizante da evolução do direito dos contratos. E a cláusula geral da função social do contrato, por sua vez, deve ser reforçada em sua importantíssima dimensão de amparo aos interesses metaindividuais estranhos aos contratantes. (COELHO, 2002. p.94)

Por fim, é correto afirmar que, de todos os novos princípios a serem

considerados na atualidade, é a função social do contrato sem dúvidas o gerador de

maiores incertezas entre os doutrinadores. Há defensores de que não se trata de um

princípio que produza efeitos próprios; outros que o consideram um contraponto à

relatividade dos efeitos e ainda há aqueles que afirmam que deve ser o mesmo aplicado

somente nos casos onde ocorram prejuízos aos interesses coletivos. Frente a tantos

olhares que caminham em concomitância com mudanças e novos conflitos, o que no

presente momento podemos considerar é que, mesmo aliado aos princípios tradicionais,

não pode o intérprete deixar de observar a função social na aplicação dos contratos.

Referências bibliográficas:

BRASIL. Lei N o   10.406, de 10 de janeiro de 2002 . Institui o Código Civil, Brasília, Congresso Nacional.

COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, 3 :contratos. 5. ed. São Paulo :Saraiva, 2012.

GONÇALVES, Carlos Roberto. Direito civil brasileiro, volume 3 : contratos e atosunilaterais . 9.ed. São Paulo : Saraiva, 2012.

NEGREIROS, Teresa. Teoria do Contrato: novos paradigmas. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006.

SILVA PEREIRA, Caio Mário. Instituições de Direito Civil. Volume III- Contratos. Rio de Janeiro; 2.003.