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16 Introdução Nascida e criada no Rio de Janeiro as desigualdades sociais e as diferenças sempre me rodearam, seja no subúrbio ou na Zona Sul. Neta de trabalhadores rurais e filha de professores assisti a reabertura política do país na década de 1980, vivenciando as dificuldades econômicas dos meus pais, como também a do país, que tentava se reorganizar à uma nova ordem política. Fui inserida ao mundo do trabalho já na adolescência, aos 16 anos comecei a trabalhar na maior rede de lanchonetes fast food do mundo, trabalhava com uns amigos durante quatro horas fixas “ na carteira” e outras horas extras que nos deixávamos cheios de fome. Posso dizer que nela, aprendi sofisticados nomes de gerenciamento que otimizam o tempo e geram lucro, fazendo com que o sistema econômico continue a funcionar. Aprendi também que deveria tirar do salão os menos afortunados e moradores de rua que procuravam um resto de comida ou daqueles que utilizavam o banheiro da lanchonete para a sua higiene básica. Desde então comecei a ter questionamentos bem simples como o porquê de tanta desigualdade? Porque me incomodava tanto saber que uns podiam consumir e outros não. Talvez pela própria incerteza sobre o futuro e pelo comentário constante das outras pessoas que não haveria mudanças. Após alguns meses realmente as coisas não mudavam, apenas novos amigos passavam a participar da mesma realidade, quando enfim, adquiri uma lesão por esforço repetitivo (LER) no braço direito, resultado do modelo fordista seguido pela lanchonete. O afastamento da atividade produtiva veio de encontro com a reflexão sobre o trabalho. Após cinco anos, o ingresso na Universidade resultado do incentivo direto dos meus pais permitiu uma nova visão sobre a realidade, e foi dentro desta experiência que descobri que enquanto lutava por simples reinclusão no mercado de trabalho, milhões de trabalhadores eram recrutados para trabalhar como peões nas lavouras do interior do Brasil sob condições análogas a de escravidão. O que significou que a forma degradante de trabalho conhecida por mim nas grandes cidades não chegava perto da degradação vivida por esses trabalhadores rurais. Aos amigos que perguntam qual o tema da minha dissertação não êxito em dizer ao mesmo tempo em que com paixão pelo tema e com certo incômodo, que estudo

Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

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Page 1: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

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Introdução

Nascida e criada no Rio de Janeiro as desigualdades sociais e as diferenças

sempre me rodearam, seja no subúrbio ou na Zona Sul. Neta de trabalhadores rurais e

filha de professores assisti a reabertura política do país na década de 1980, vivenciando

as dificuldades econômicas dos meus pais, como também a do país, que tentava se

reorganizar à uma nova ordem política. Fui inserida ao mundo do trabalho já na

adolescência, aos 16 anos comecei a trabalhar na maior rede de lanchonetes fast food do

mundo, trabalhava com uns amigos durante quatro horas fixas “ na carteira” e outras

horas extras que nos deixávamos cheios de fome. Posso dizer que nela, aprendi

sofisticados nomes de gerenciamento que otimizam o tempo e geram lucro, fazendo

com que o sistema econômico continue a funcionar. Aprendi também que deveria tirar

do salão os menos afortunados e moradores de rua que procuravam um resto de comida

ou daqueles que utilizavam o banheiro da lanchonete para a sua higiene básica. Desde

então comecei a ter questionamentos bem simples como o porquê de tanta

desigualdade? Porque me incomodava tanto saber que uns podiam consumir e outros

não. Talvez pela própria incerteza sobre o futuro e pelo comentário constante das outras

pessoas que não haveria mudanças. Após alguns meses realmente as coisas não

mudavam, apenas novos amigos passavam a participar da mesma realidade, quando

enfim, adquiri uma lesão por esforço repetitivo (LER) no braço direito, resultado do

modelo fordista seguido pela lanchonete. O afastamento da atividade produtiva veio de

encontro com a reflexão sobre o trabalho.

Após cinco anos, o ingresso na Universidade – resultado do incentivo direto dos

meus pais – permitiu uma nova visão sobre a realidade, e foi dentro desta experiência

que descobri que enquanto lutava por simples reinclusão no mercado de trabalho,

milhões de trabalhadores eram recrutados para trabalhar como peões nas lavouras do

interior do Brasil sob condições análogas a de escravidão. O que significou que a forma

degradante de trabalho conhecida por mim nas grandes cidades não chegava perto da

degradação vivida por esses trabalhadores rurais.

Aos amigos que perguntam qual o tema da minha dissertação não êxito em dizer

ao mesmo tempo em que com paixão pelo tema e com certo incômodo, que estudo

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escravidão contemporânea. A primeira reação do ouvinte, sempre é o interesse pelo

tema, seguida pela recomendação de muitos livros sobre a história da escravidão do

período colonial. Em seguida retifico, interessante, mas eu estou tratando da escravidão

dos dias de hoje, que está acontecendo agora, por exemplo, em algum lugar do Brasil.

Em seguida, presencio um momento de muita surpresa, ou encontro um certo ar de

descrédito, pois a escravidão para muitos terminou em 1888; e de certa forma algo de

insano ou descabido eu estaria fazendo.

Ao soar aos ouvidos o termo escravidão, se torna comum fazer um elo com o

passado. A escravidão no Brasil a qual, a princesa Isabel, tivera “o mérito” de assinar a

abolição - carregando consigo um estigma de abolicionista - muito questionado pelos

historiadores - teria assim, se extinguido em 1888 no Brasil.

Diferente da escravidão colonial, a escravidão contemporânea não escolhe cor

ou raça, nem idade. Encontrada na Constituição pelo termo “condição análoga à

escravidão”, essa atividade perpetua no interior do Brasil principalmente pela condição

fundiária arcaica e desigual, conforme será tratada na primeira parte desse estudo.

No Brasil a passagem do trabalho escravo para o trabalho assalariado se fez sob

a égide de relações políticas que acompanhavam o sistema econômico global. E a

formação do território brasileiro foi resultado dessas relações contraditórias da

sociedade.

Desde 1858, o imigrante Thomaz Davatz1, relatou o sistema de escravidão por

dívida na fazenda do senador Nicolau Vergueiro, pioneiro no recrutamento de

imigrantes para substituição de escravos africanos onde cerca de mil imigrantes suíços,

alemães e portugueses trabalhavam na plantação de café, e que após aportar no Brasil

tinham que pagar a dívida com trabalho pelo menos por quatro anos. Outros casos

semelhantes, também já foram citados no início do século XX em algumas regiões

1 Davatz liderou, em 1856, uma insurreição contra esse sistema, que ficou conhecido como a

“Revolta dos Parceiros”, que conseguiu inibir o fluxo de migração. Publicou o Livro “Memórias de um

colono no Brasil” (Observatório Social em Revista, 2004).

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interioranas do Brasil, o que leva ao entendimento que a escravidão após 1888 foi

reinventada.

A escravidão contemporânea é encontrada em diversas regiões do planeta. No

Brasil pode-se caracterizá-la como de curta duração, ilegal, não é fruto de uma guerra e

nem é motivada por um seqüestro2, possui formas de endividamento e utiliza a violência

como forma de coerção. Suas vítimas são homens, mulheres e crianças, mas em sua

maioria homens jovens, sem documentos, sem estudos, que saem em busca de emprego

para regiões conhecidas por recrutar trabalhadores com esse perfil.

O trabalho escravo contemporâneo também está associado com: o tráfico de

pessoas, tráfico ligado à exploração sexual, tráfico de crianças; estas formas são

recorrentes no estudo internacional relacionado para a questão dos direitos humanos.

Ligados a alguma rede de mafiosos ou não, exploram imigrantes, agem em redes e são

altamente lucrativas, segundo a Organização das Nações Unidas (ONU):

As redes criminosas que traficam seres humanos lucram até US$ 30 mil por

pessoa aliciada. No ano, o montante chega a US$ 9 Hoje, o tráfico de seres

humanos só perde em rentabilidade para o comércio ilegal de drogas e armas,

porém, o estudo afirma que a venda de seres humanos é geralmente

administrada por criminosos associados aos entorpecentes, segundo o

UNODC.(http://www.onu-brasil.org.br/view_news.php?id=58consulta

agosto2007)

Segundo a Comissão Pastoral da Terra (CPT) entre 1995 a 2008, foram

libertados 32.405 trabalhadores somente no campo. A escravidão contemporânea é

noticiada pela mesma instituição desde 1973. Na área urbana, já se observa entre artigos

acadêmicos o caso de bolivianos trabalhando para chineses em fábricas de tecido em

São Paulo.

2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será

apresentado posteriormente.

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Alguns casos são também conhecidos na América Latina, como no Paraguai e

no norte e nordeste do Brasil, como a venda de crianças ou negociações que utilizam

estas como mercadorias, principalmente em áreas consideradas bolsões de miséria,

como o Piauí.

Na verdade, não se pode afirmar se o que existe é um aumento nos casos de

escravidão ou se esses dados sempre existiram, mas nunca ganharam tanta repercussão.

No Brasil, a grande responsável por esse movimento tem sido a CPT, que passou a

divulgá-los sistematicamente a partir de 1985, de fato, é a partir da década de 1990, que

existe uma maior circulação de informações sobre as condições de trabalhadores nessa

condição; resultado da facilidade de comunicação via internet e do trabalho de

organizações civis, como a dedicação da Organização Internacional do Trabalho, que

juntamente com a CPT auxiliou a inserção do debate sobre trabalho escravo

contemporâneo na agenda pública. Um outro fator que pode ser constatado é uma maior

organização nos dados sobre o tema pelo Ministério do Trabalho e por Universidades.

Ao apurar o estudo das relações inseridas na escravidão, Ricardo Figueira(2004)

esclarece que uma das definições encontradas relacionadas sobre a escravidão é o fato

de que ser escravo é estar sujeito a um senhor como mercadoria(2004). ao conceder

legitimidade do senhor vender ou comprar o escravo, permite que a dominação seja feita

através da negociação que por conseqüência garante direitos de usufruir sobre esta

“mercadoria, mesmo relacionada a uma definição jurídica pois seguindo este raciocínio,

o direito de propriedade passa a ser legitimado, e é exatamente sobre este viés que se

desenvolve o pensamento crítico dos estudiosos da escravidão colonial. Segundo

Figueira 2004(apud Gorender 1978 :60-61) exemplificando que a característica

essencial do escravo na escravidão legal “ reside na sua condição de (ser) propriedade

de outro ser humano”. O que difere bastante da situação atual por não haver esta relação

de propriedade legalizada. Segundo Meillassoux(1995:9-10) também é resgatado no

trabalho de Figueira(2004:39-40) por negar o tratamento do escravo, mesmo que legal,

como mercadoria afirma o autor:

[...]Na perspectiva de sua exploração, a comparação de um ser humano a um

objeto, ou mesmo a um animal, é uma ficção contraditória e insustentável.

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Se, na prática, o escravo fosse tratado como tal, a escravidão não teria

nenhuma superioridade sobre o uso de instrumentos materiais ou sobre a

criação de gado. Na prática, os escravos não são utilizados como objetos ou

animais, aos quais essa ficção ideológica tenta rebaixá-los. Em todas as suas

tarefas – até o transporte de cargas- apela-se a sua razão, por pouca que seja,

e sua produtividade ou utilidade aumenta na proporção desse apelo sua

inteligência.(ibidem1995:9)

Em contraste, Mose Finley considera “fútil” as contestações dos que, como

Meillassoux, alegam que por ser pessoa, o escravo, não pode ser uma mercadoria. E

afirma que “o fato de o escravo ser humano é irrelevante para a questão de ser ou não

uma propriedade; apenas revela que é uma propriedade peculiar” (FINLEY apud

FIGUEIRA 2004:40)

Na escravidão contemporânea o trabalhador disponibiliza no mercado

sua força de trabalho entendida aqui exatamente como Marx apresenta: “conjunto de

faculdades físicas e mentais, existentes no corpo e na personalidade viva de um ser

humano, as quais ele põe em ação toda a vez que produz valores de uso de qualquer

espécie. (MARX 1980: 187) O trabalhador negocia sua capacidade de trabalho, porém

ao se submeter a uma relação que o coíbe da liberdade de ir e vir através da violência

transforma-se em uma “mercadoria” descartável. Ao deixar perder o valor de sua força

de trabalho, deixa assim de ser vendedor de mercadoria e infelizmente diante a

determinados graus de violência não possui nem mais o direito de reproduzir valores de

uso ou mesmo o direito a vida. Dessa forma, estamos diante de uma forma de

escravidão tão violenta quanto a colonial, tão perversa quanto a escravidão antiga, pois

descarta os seres humanos como uma mercadoria que já foi utilizada.

Em suma, o trabalho escravo neste estudo será entendido através das definições

do Ministério Público do trabalho como toda modalidade de exploração do trabalhador

em que este esteja impedido, moral, psicológica e/ou fisicamente, de abandonar o

serviço, no momento e pelas razões que entender apropriados, a despeito de haver,

inicialmente, ajustado livremente a prestação de serviços, sendo similar a trabalho

forçado, termo utilizado por alguns órgãos internacionais e nacionais, para definir a

situação de coerção.

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Este trabalho, no entanto, tem por objetivo estudar a geografia da escravidão no

campo no Brasil, no período de 1985 a 2006 através do banco de dados histórico da

Comissão Pastoral da Terra (CPT). O interesse pelo tema surgiu após a realização de

pesquisas no Laboratório de Estudos de Movimentos Sociais e Territorialidades

(LEMTO), no ano de 2003, junto a CPT. E para entender melhor como esse evento se

apresenta no país, este trabalho se inicia através de um breve estudo sobre a escravidão,

a fim de eliminar problemas de interpretação quando se refere à escravidão

contemporânea. Procurando entender como o banco de dados da Comissão Pastoral da

Terra pode contribuir para uma leitura que implique pensar a escravidão contemporânea

como manifestação de desigualdades sociais provocadas por relações de poderes que se

confrontam e se impõem no espaço.

No primeiro capítulo, será abordado como essa relação de trabalho surge ao

mesmo tempo em que a sua própria afirmação está inserida entre enfrentamentos de

diferentes setores da sociedade. A conceituação da escravidão contemporânea perpassa

por diversos setores da sociedade que se preocupam politicamente com a construção do

que venha a ser a escravidão. No segundo capítulo, é feita uma breve análise sobre a

constituição da luta pela terra e pelo trabalho no campo brasileiro, apresentando como

vem se constituindo a luta contra o trabalho escravo protagonizada pelos movimentos

sociais.

No terceiro capítulo, será utilizado como base empírica para análise o banco de

dados da Comissão Pastoral da Terra (CPT), na tentativa de entender como o evento

vem se apresentando ao longo desses 22 anos. Para isso, foi necessário um estudo de

como vem se constituindo a questão do trabalho escravo como luta social. Essa leitura

só foi permitida através do estudo das transformações que aconteceram no campo que

permitiram ao trabalhador rural a sua construção enquanto sujeito.

E por último, espero ter contribuído com mais um instrumento de luta contra

escravidão ao mesmo tempo em que pautamos assim a necessidade de discussão na

academia e na geografia, sabemos que a geografia pode-se constituir enquanto prática

social e se prestar a um entendimento do mundo juntamente com os outros saberes.

Apresentando o último capítulo como uma leitura geográfica sobre o trabalho escravo

contemporâneo e a constituição deste lembrando os ensinamentos de Porto-Gonçalves,

que todo ponto de vista é sempre a vista de um ponto, sabemos que a geografia pode-se

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constituir enquanto prática social e se prestar a um entendimento do mundo juntamente

com os outros saberes.

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Capítulo I - A Escravidão.

Para que se faça um estudo da escravidão contemporânea no Brasil faz-se

necessário que se explicite o que é a escravidão. É importante lembrar, que o termo

escravo e seus derivados acompanham a história mundial com formas bem

diferenciadas de acordo com cada época-lugar o que contribuirá para que haja inúmeras

definições sobre o assunto.

Muitos são os pesquisadores, nas ciências humanas que vêm trabalhando com o

tema escravidão, especialmente na história, na antropologia, e na sociologia. Na

geografia, o tema é abordado em poucos trabalhos3. Alguns destes estudos estão

relacionados às experiências de pesquisadores na Amazônia na década de 70, se

referindo ao sistema do barracão e à peonagem. Sendo assim, raros foram os materiais

que relacionaram o estudo da escravidão contemporânea - de forma aprofundada – nos

estudos geográficos.

Gladyson Pereira (2007), historiador, que realizou um profundo estudo sobre a

etimologia da palavra escravidão, reafirma a posição de que devemos ficar atentos à

sociedade que circunscreve o momento em que a escravidão está posta. Originariamente

o termo escravidão não correspondia à representação que temos hoje quando a palavra

encontra-se impregnada de concepções negativas.

“ A origem primeira é a palavra “slav” (eslavo) que designa um importante e

numeroso grupo étnico da Europa Central e Oriental. Na língua dos povos

eslavos o termo pode ser traduzido por “os ilustres”, “os brilhantes”. Entre

os eslavos já existia a prática do que nós hoje chamamos de “escravidão”, ou

seja, “cativeiro”, mas o termo utilizado para essa condição era “rab”.(...) A

trajetória etimológica do termo “slav” e sua radical transmutação de

3 Talvez, pelo fato da própria história da ciência geográfica ter se colocado na perspectiva do Estado

realizando o reconhecimento do território e auxiliando com análises que servissem para o planejamento

estatal. Somente após a renovação da geografia da década de setenta é que a geografia passou a se

interessar de modo mais consistente com as questões sociais.

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significado estão ligadas ao processo, ocorrido na alta idade média, da

formação do império franco e do império bizantino. Esse processo de

expansão e dominação se baseou largamente na conquista de povos eslavos.

No caso do império franco coube às tribos germânicas que invadiram e

ocuparam a Gália, os Francos - primeiramente Carlos Magno (747-814 d.C.)

e depois seus sucessores, notadamente Otão, o grande (século X d.C.) - a

liquidação dos povos eslavos da região hoje conhecida como Balcãs e a

submissão ao cativeiro daqueles que sobreviveram a esse enfrentamento.

Com o correr do tempo e a generalizada submissão desses eslavos ao

cativeiro, tomou-se o nome dessa etnia, “slav”, como sinônimo da condição

social a que fora submetida.

[...]Com o passar do tempo o termo “slav” foi se descolando de sua origem

étnica e sofrendo alterações lingüísticas que deram origem a diferentes

grafias em diferentes línguas, mas mantendo o sentido de “cativo” ou

“propriedade”. Assim, do latim medieval, slavus ou sclavus, mais o grego

bizantino, sklabos, surgem as diferentes variações: Em italiano scliavo

(veneziano schiavo), em alemão sklave, em francês esclave e em inglês

slave; documentados desde os sécs. XI e XII com acepção contemporânea.

Nas línguas ibéricas os termos derivados de sclavus (espanhol, esclavo e

português, escravo) só ocorrem a partir do século XV; essa ocorrência tardia

é devida, provavelmente, à concorrência com o termo “cativo” derivado do

latim “captivus”, ou seja, “prisioneiro”, o qual já se documentava nestes

idiomas, com as mesmas acepções, de escravo, em época muito anterior

(desde o século XIII).

Mesmo no Brasil, do século XV ao XIX, o termo “escravo” sofria

concorrência com o termo “negro” ou “preto” para designar a condição de

propriedade ou de inferioridade.”(PEREIRA.2007:4-5)

Destaquemos que a mudança de significado da palavra escravo está relacionada

aos conflitos seguidos da condição de prisioneiro e não necessariamente cor ou gênero,

pois tal associação só veio acontecer após o século XV.

Para Ricardo Figueira (2004), o debate acerca da conceituação da escravidão

contemporânea também perpassa pelo debate da escravidão ao longo da história

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realizada por antropólogos, filósofos, membros do Estado, organizações religiosas e de

direitos humanos. Esses debates, muitas das vezes, influenciaram os governos a realizar

modificações nas suas estruturas legais.

Esse diálogo, entre os governos e os estudiosos da questão, merece destaque por

representar um momento que viabiliza a integração entre a ciência e a ação política,

como é o caso que será tratado da Comissão Pastoral da Terra, no Brasil. No entanto,

esse diálogo e as efetivas realizações dos tratados e convenções do Séc. XX não foram

suficientes para garantir o fim da escravidão, pois ainda existem governos que utilizam

formas análogas à escravidão.

Sendo assim, ao procurar entender o conceito da escravidão contemporânea cabe

uma melhor compreensão do que representou então a escravidão antiga (Grega e

Romana) e a moderna, por entender que existem coincidências desses eventos com a

escravidão que está sendo tratada nesta dissertação.

1.1 - A Escravidão ao longo do tempo.

A primeira distinção que se faz necessária é entre as formas de escravidão. A

escravidão antiga é caracterizada pela escravidão na Grécia e em Roma. Na Grécia,

segundo Mário Maestri ( 1987) e já no período micênico, ao passar de uma organização

aldeã-familiar para dar origem a sociedades organizadas sobre a posse individual e

privada da terra, é que a produção escravista se constituía. Pouco se sabe, no entanto,

sobre a escravidão neste período, mas segundo o autor, a existência de escravos

“divinos” e “privados” já pressupunha duas “classes” distintas de escravo. Na Grécia

helênica, a descoberta da metalurgia altera os hábitos, mudando as formas de trabalho,

expandindo as áreas de floresta e inserindo o trabalho escravo nas atividades

camponesas. A importância do escravo para a continuação do Oikos, adquiriu um

caráter patriarcal, em que a escravidão é algo do cotidiano, não excluindo até mesmo os

laços familiares. “Nas cidades, dependendo da função, alguns escravos gozavam de

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liberdade de movimento e iniciativa e podiam, até mesmo, morar

independentemente”.(MAESTRI.1987:22). Alguns possuíam direitos, podendo até

recorrer à justiça representado pelo amo. A atividade que esse escravo ocupava,

portanto, faria total diferença em sua relação. E seu modo de vida não era muito

diferente de outros gregos pobres (ibdem:23).

Em Roma, após a queda da monarquia (por volta do século V a.n.e.), o

expansionismo republicano promoveu muitas disputas sobre o território, o que resultou

em um grande número de plebeus empobrecidos que vieram a se tornar escravos em

razão de seus endividamentos, e a submissão como única forma de pagamento.

(...)Os camponeses que se endividavam caíam em verdadeira servidão. Um

inadimplento de 30 dias, permitia que o devedor fosse mantido, por dois

meses, acorrentado, na casa do credor. Se não aparecesse um fiador ou a divida não fosse selada, o infeliz, depois de ser oferecido por três vezes ao

mercado local, podia ser vendido no estrangeiro. Um devedor ou um seu

familiar podia ser obrigado a trabalhar até a extinção de uma dívida, que era

acrescida com os gastos de “manutenção”do trabalhador.(Maestri.1987:30)

É dessa forma que em Roma a consolidação das unidades agrícolas consagra a

escravidão inscrita por muitas formas, fortalecida assim com a combinação do latifúndio

com a escravidão.

Na escravidão moderna, é entre o séc.XV e o XVII que se inicia uma profunda

mudança histórico-geográfica. A América e a África viriam cumprir um papel relevante,

fruto da expansão e cobiça da burguesia comercial européia liderados pelas monarquias

de Portugal e Espanha. Os navios negreiros deixariam de ser apenas um transporte de

mercadorias para se transformar em uma peça-chave do comércio ultramarino. Desde a

preparação do navio à embarcação dos escravos, as rotas passavam por ilhas que eram

entrepostas aos continentes transformando o oceano Atlântico em um espaço de

encontro, em que permitia um acontecer cotidiano. Os escravos tratados como

mercadoria valiosíssima, além de estarem submetidos à violência da escravidão, se

preparavam nesse trajeto para conviver com pessoas diferentes de sua classe ou crença,

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para enfim, desembarcar em um continente desconhecido. Esse escravo, que

possivelmente foi capturado no seu próprio país muitas das vezes não possui relação

com os outros escravos, e acaba por transformar sua origem e as experiências pós

embarque um fator para a construção de uma nova identidade.

De acordo com as atividades econômicas ligadas a escravidão a cana de açúcar

foi a primeira atividade econômica de grande porte no Novo Mundo, esta teve sua

origem no mediterrâneo em quantidades pequenas; havia pouca tecnologia quando

comparado ao que seria implementado no Brasil e ainda não estava consolidada como

um grande sistema agrícola . Produziam-se outros produtos, junto à cana, a mão-de-obra

era basicamente serva e camponesa. Assim, os produtores de açúcar do velho mundo

dependiam cada vez mais dos impostos que cobravam dos moradores para gerar a

tecnologia inovadora e assim poder transportar a agroindústria para o novo mundo

(MILLER.J. C. 1997). Desta forma, a produção de açúcar européia, não antecipou o

complexo açucareiro posteriormente instaurado nas Américas. O avanço do plantio só

irá acontecer quando comerciantes e agricultores partem para o Novo Mundo.

(STUWART.2005). Contudo, no caso específico do complexo industrial da cana, a

análise de Miller enfoca a questão como resultado de um lento processo de 400 anos de

uma dinâmica que consegue se constituir no séc. XVII iniciado sem o uso do trabalho

escravo, sem monocultura, e sem as condições ambientais encontrada nas Américas.

Posteriormente, no Novo Mundo, condicionados à geografia local, a plantation

ganha força e transformações espaciais profundas se estabelecem no território. A

relação com a terra e seus habitantes começa a responder sob a ótica de um capitalismo

embrionário; e a nova América transforma-se em ponto estratégico para a economia.

Enquanto isso a política de concessão de terras, conhecida como sesmarias ia

reestruturando o território e transformava no Brasil, pequenos camponeses em fidalgos,

índios em recurso e homens em mercadorias.

Toda essa contextualização do que na verdade pode ter significado esse arranjo

espacial do Século XV ao XVIII, como também algumas observações sobre a

escravidão antiga, concentra-se na expectativa de quebrar alguns estereótipos de que se

tem realizado sobre a escravidão e seus atores. Para diferenciar a escravidão antiga da

atual é importante realçar que a sociedade escravocrata, não pode e nem deve ser vista

de forma a pensar o escravo de forma monolítica. O fato de o escravo estar associado à

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sua força de trabalho desde o momento em que é adquirido pelo seu proprietário, pode

ser visto de maneira empobrecedora por não valorizar as estratégias de adaptação dos

escravos a uma nova ordem. Tanto como foram observados na forma antiga e moderna

de escravidão, existem muitas singularidades em cada período histórico.

Através dos trabalhos realizados pelos historiadores brasilianistas, Stuart

Schwartz (2005) e Russell Wood (2005) podemos acompanhar a sociedade escravocrata

por meio das relações sociais e de poder existentes no Brasil colônia. Russell-Wood

procurou trabalhar um pouco da característica existente na população escrava, que para

a sua manutenção construía diferentes estratégias de adaptação como: as irmandades, a

prostituição, o escravo de ganho, o casamento, o batismo, a procura por alguma arte que

o diferenciasse dos demais que podem ser vistos tanto como ferramentas utilizadas para

conseguir a manumissão4. Além de ser mercadoria, é propriedade, é vendido junto com

a sua força de trabalho, e não pode negociar o uso da força, porém, encontram-se casos

em que esta mão de obra é “super explorada”, pois além de ter sua relação direta com o

proprietário como mercadoria ainda encontra meios para exercer uma segunda função, a

fim de obter a compra de sua liberdade.

Sendo assim, o processo de adaptação dos escravos parece não estar dissociado

do seu contexto sócio-espacial como aparecem nos diferentes períodos do tráfego de

escravos para o Brasil. Em seu trabalho, o autor destaca aspectos singulares das

populações afro-descendentes, não apresentando essa população como um agente

passivo, por ser escrava, mas como um forte protagonista quebrando mais um dos

estereótipos formados sobre a escravidão no Brasil.

Em síntese, acredito que esses fatores auxiliam no entendimento da contribuição

da população submetida à escravidão para a formação sócio-espacial brasileira. Por não

pensar nesses trabalhadores apenas como uma mão-de-obra alienada, e passiva de se

tornar liberta, mas os apresentam como detentores de sabedorias capazes de construir

meios que os concedem possibilidades de torná-los livres. Os escravos no Brasil não

podem ser separados de características “humanas” escondendo o desejo, a sabedoria, a

racionalidade. A flexibilidade em se adaptar e reconstruir sua vida na colônia

4 Alforria

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29

portuguesa junto as características pessoais de cada escravo - que carregava consigo os

valores e a representações de outra cultura e de outro lugar - não podem ser deixados de

lado. Portanto, não convém tratar de forma generalizada essas estratégias de adaptação,

muito menos o fato de serem mercadoria, elementos descartados pelos dois autores para

compreender a realidade naquela sociedade e a própria escravidão. A escravidão, então,

irá se configurar de forma distinta em cada região brasileira, pois as origens do escravo,

a transformação deste, principalmente, de seus valores nos navios negreiros, a adaptação

na nova terra e as estratégias de alforria, permitirão uma configuração diferenciada da

escravidão e da formação sócioespacial.

Contudo, esta breve contextualização das situações existentes tem como objetivo

mostrar que a escravidão moderna esconde na verdade singularidades que não devem

ser simplificadas na existência de um sistema escravocrata.

A imagem do negro, acorrentado, sofrendo violências desumanas tornou-se lugar

comum no imaginário da sociedade brasileira, sociedade essa que demorou a enxergar

tal violência com o outro - diante do fato do Brasil ser um dos últimos países da

América do Sul a declarar o fim da escravidão. A sociedade que se constitui pós-

abolição foi construída com padrões de pensamento eurocêntrico, com características

machistas, racistas além da forte dependência econômica. Em nenhum momento foi

dada dignamente a oportunidade desses ex-escravos se inserirem em posições sociais

dignas na sociedade. Um pequeno exemplo pode ser dado através das manifestações

culturais e religiosas, que ainda hoje sofrem com preconceito.

A idéia de que a escravidão contemporânea no Brasil foi consentida pela

sociedade pós- abolição, pós independência é algo que precisa ser melhor debatido, e é

o que está sendo proposto nesta análise. A própria construção de um estereótipo de

escravidão pode ser considerada como um discurso para que se encubram as relações

sociais do mundo atual.

No entanto, os aspectos diferenciais da escravidão devem ficar bem definidos

como demonstra o quadro 1.05:

5 Tabela adaptada do Relatório Global – OIT. 2005.

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30

Quadro 1: Comparação da Escravidão Antiga, Moderna e Contemporânea

Escravidão Escravidão Antiga Escravidão Moderna Escravidão Contemporânea

Propriedade legal Permitida Permitida Proibida

Custo da Mão – de - Obra Não havia. A não ser de

forma indireta como

alimentação.

Alto. A riqueza de uma

pessoa podia ser medida pela

quantidade de escravos

Muito Baixo. Não há compra e,

muitas vezes, gasta apenas o

transporte. *Exceto quando se

refere ao tráfico de pessoas.

Lucros Indireta, no uso da mão –

de – obra escrava para a

expansão de propriedades.

Mesmo havendo custos com a

manutenção os lucros eram

altos. O trabalhador era um

investimento.

Altos. Se alguém fica doente,

pode ser mandado embora sem

direitos. *O empregador se

beneficia do trabalhador sem

responsabilidades.

Mão –de - Obra Não era cidadão. Negado o

direito fundamental à

Polis, à Política.

Escassa. Dependia de tráfico

negreiro, prisão de índios ou

reprodução.

Descartável. Um grande

contingente de trabalhadores

desempregados.

Relacionamento Variável, dependendo do

período em que se

inscreveu.

Longo período. A vida inteira

do escravo e a de seus

descendentes

Curto Período. Terminando o

serviço não é mais necessário

prover sustento*existindo

algumas exceções.

Diferenças étnicas Povos conquistados Relevantes e até

condicionantes

Pouco relevantes. Pobres

Mudança na Ordem Mudanças de

relacionamento após

mudança de poder político

Ameaças, violência física,

violência psicológica, coerção

física, punições exemplares

,assassinatos

Ameaças, violência física,

violência psicológica, coerção

física, punições exemplares

,assassinatos

De acordo com o quadro à cima o baixo custo da mão - de - obra faz com que

exista um sucessivo processo de substituição desta, tornando os trabalhadores

“descartáveis” se não cumprem com os “acordos” iniciais. O curto período, exceto em

algumas exceções, denunciam a atividade que está relacionada a maioria dos casos, com

as grandes empreitadas que necessitam da limpeza rápida da área para a expansão da

propriedade. O que também irá contribuir para a ocorrência de algumas reincidências.

Quanto às diferenças étnicas, estas são pouco relevantes nesta fase atual da escravidão,

pois o fator principal se torna a condição econômica. Já a relação de violência, pouco se

difere da escravidão antiga e Moderna acentuando apenas o fato de neste momento ser

proibido por lei e serem considerados crime.

Outro fator não mencionado no quadro 1.0, mas que complementa a escravidão

contemporânea em relação ao trabalho escravo no campo brasileiro é o isolamento

geográfico. É comum encontrar a utilização do difícil acesso as propriedades como

meio para a escravidão.

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Sendo assim, a escravidão contemporânea é constituída por indivíduos, homens,

mulheres e crianças que estão à margem da sociedade, desprovidos de condições

econômicas e sociais; o que contribui para o aumento da coerção sobre os trabalhadores.

1.2 - Como o fenômeno se apresenta.

Foi através das sucessivas convenções e protocolos internacionais que o tema

vem sendo consagrado no cenário internacional. Segundo Thiago Poggio, no que diz

respeito ao acompanhamento jurídico do Direito Internacional Público. A mobilização

política em prol de leis que abolissem definitivamente formas de escravidão pode ser

identificada nas primeiras décadas do século XX, quando a Liga das Nações, em 1926, e

a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1919, assumiram a campanha contra

a escravidão e seus análogos no lugar de agentes missionários e grupos de pressão

[“abolicionistas”] humanitários. (COOPER, 2005). “Entre 1926 e 1930 a Liga das

Nações e a Organização Internacional do Trabalho chegaram ao entendimento de que o

trabalho forçado, fosse para ganho privado, fosse com propósitos públicos, criava

“condições análogas à escravidão” (COOPER, 2005)

A Convenção de 1930, foi estabelecida ainda com muitas oposições devido a

preocupação de alguns Estados em manter o controle de suas colônias. Segundo

Frederick Cooper:

A Conferencia Internacional do Trabalho de 1930 aprovou a versão final por 93 votos a favor e 63 abstenções, entre as quais França, Bélgica e

Portugal.Os opositores tinham como princípio que tratavam com indivíduos

“e m diferentes estágios de civilização”, e os governos locais precisavam de

flexibilidade para garantir que fosse realizado o trabalho necessário para o

bem do próprio povo; além disso, o povo se beneficiaria com “ um período

para habituar-se e educar-se” As iniciativas para retardar a implementação e

isentar as empresas privadas que trabalhavam em projetos e obras públicas

foram vigorosamente discutidas e derrotadas .(ibdem2005:245)

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Por mais que um grupo representativo de países ainda se opusesse, o poder de

definir os termos do debate sobre questões internacionais não foi igualitário, os

movimentos antiescravista, anticolonial e contra o apartheid [foram importantes para

impor] mudanças profundas ao processo político que seguia as normas universalistas e

[como também] aos que não as seguiam (COOPER.2005).

Observando a tabela a seguir podemos constatar a evolução do termo na política

internacional:

Quadro 2. Evolução dos pactos, declarações e acordos sobre escravidão

ANO Pactos, tratados, declarações e

Organizações Internacionais.

Proposta Objetivos

1919 Organização Internacional do Trabalho

(OIT)

Objetivo principal da

organização

Harmonizar os direitos do trabalho,

através de convenções e declarações.

1926 Liga das Nações Art. N 1 e 2 Convenção sobre a escravatura, recomendava eliminar das colônias os vestígios de escravidão e comércio de escravos

1930 Convenção do Trabalho Forçado. Organização Internacional do Trabalho (OIT)6

Resultado de investigações sobre formas análogas pedidas pela Liga das Nações

Supressão do trabalho forçado e compulsório em todas as suas formas no período mais curto possível.

1957 Convenção suplementar Convenção N° 105 Abolição do trabalho forçado e todas as suas formas

1966 Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos

ONU Proíbe a escravidão, a servidão e o tráfico de escravos.

1991 Fundo Fiduciário contra Formas de Escravidão

ONU Assessorar organizações não governamentais que tratem do assunto a participar das deliberações do Grupo de Trabalho,promovendo auxilio financeiro e humanitário às vitimas de trabalho escravo

1969 Convenção Americana sobre Direitos

Humanos - OEA

Ratificada pelo Brasil em

1992

Trata da escravidão e da servidão.

admitindo o trabalho forçado legal, de acordo com a convenção 105 da OIT.

6 A Conferencia Internacional do Trabalho de 1930 aprovou a versão final por 93 votos a favor e 63

abstenções, entre as quais França, Bélgica e Portugal (COOPER.2005:244).

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1998 Declaração Sócio Laboral - MERCOSUL

Art. 5.Proibição do trabalho forcado

Traz a proteção contra a escravidão no âmbito do Mercosul

1999 Convenção sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil,1999(n.182)

(n°.182) Proíbe a Servidão infantil

Adaptado do texto de Thiago Poggio e Relatório Global (2005)

Ou seja, o primeiro tratado internacional que proíbe a escravidão data de 1926 e

anteriormente a essa data somente algumas medidas de alguns países propunham a

discussão na sociedade sobre as formas de escravidão. É o caso do Bill Aberdeen7 -

Slave Trade Suppression Act , medida imposta pela Inglaterra, em 1845, que proíbe o

comércio de escravos entre a África e as Américas. Sendo que , em 1807 a Inglaterra já

tinha abolido a escravidão, no entanto, nas suas colônias apenas isso só aconteceu 26

anos depois.

“Os britânicos insistiam em que tinham horror ao trabalho forçado, mas ainda

assim praticaram-no nas primeiras décadas do século em minas da Costa do Ouro e da

Rodésia e reviveram-no extensamente durante a Segunda Guerra Mundial.

Empregavam cuidadosamente pelas palavras como “recrutamento”, mas os africanos da

Rodésia não se deixaram enganar: usavam a palavra “chibaro”, que significa “escravo”

nos idiomas locais(COOPER.2005:242)

Essa contradição entre a liberdade na metrópole e manutenção da escravidão nas

colônias foi vivenciada por muitas outras potencias econômicas da época, por mais que

tomassem medidas que internacionalizam a luta contra a escravidão8. No Brasil, por

exemplo, desde 1831, a Lei Feijó libertava os escravos introduzidos no país a partir

dessa data, no entanto, ficou conhecida mais popularmente como “lei para Inglês ver” .

7 O que viria causar inúmeras mortes de escravos nas fiscalizações dos navios negreiros que

desrespeitavam o tratado

8 Segundo a Revista da Biblioteca Nacional(2008)

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Na perspectiva global sobre o trabalho escravo, o estudo mais apurado

encontrado durante a pesquisa foi o relatório feito pela OIT, que configura um quadro

amplo das relações do trabalho. A OIT utiliza em suas convenções o termo trabalho

forçado, devido a diversas formas que se perpetuam após a abolição da escravidão. O

termo trabalho forçado é descrito através de duas formas: trabalho ou serviço imposto

sob a ameaça de punição9 e aquele executado involuntariamente (OIT 2006:5). Sem

contar o fato que assume múltiplas formas, tais como:

Quadro 3 - Identificação de Trabalho Forçado na Prática

Falta de Consentimento (natureza

involuntária do trabalho)

(“itinerário” do trabalho forçado)

Ameaça de Punição (meios de

manter alguém em regime de

trabalho forçado)

Escravidão por nascimento ou por

descendência de escravo/ servidão

por dívida

Violência física contra o

trabalhador ou sua família ou

pessoas próximas

Rapto ou Seqüestro Violência sexual

Venda de pessoa a outra (ameaças) de represálias

sobrenaturais

Confinamento no local de trabalho

– em prisão ou cárcere privado

Prisão ou confinamento

Coação psicológica, isto é, ordem

para trabalhar apoiada em ameaça

real de punição por desobediência.

Punições financeiras

Dívida induzida (por falsificação

de contas, preços inflacionados,

redução do valor de bens ou serviços produzidos, taxas de juros

exorbitantes, etc)

Denúncia a autoridade (polícia,

autoridades de imigração, etc) e

deportação.

Demissão do emprego atual

Exclusão de empregos futuros

Exclusão da comunidade e da vida

social

9 A punição não necessariamente vem na forma de sanções penais, mas pode representar a perda de

direitos e privilégios

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Engano ou falsas promessas sobre

tipos e condições de trabalho

Supressão de direitos ou privilégios

Retenção ou não pagamento dos

salários

Privação de alimento, habitação ou

outras necessidades

Retenção de documentos de

identidade ou de pertence pessoais

de valor

Mudança para condições de

trabalho ainda piores

Perda de status social

FONTE: Relatório Global.2006:6

A OIT faz algumas ressalvas a trabalhos de emergência como guerras, incêndios,

serviço militar e penitenciário. Dessa forma, o trabalho forçado é nomeado para as

diferentes formas de escravidão contemporânea. No entanto, os Estados possuem

autonomia de trabalhar com termos diferenciados de acordo com a realidade de cada

local. “No Brasil, a expressão preferida para práticas coercitivas de recrutamento e

emprego em regiões remotas é “trabalho escravo”, todas as situações cobertas por essa

expressão parecem enquadrar-se no contexto das convenções da OIT sobre Trabalho

Forçado “( OIT,2005:8).

No Brasil, o termo trabalho escravo, portanto, é reconhecido desde 1995,

resgatando uma idéia de escravidão já vivenciada, provocando estranhamento a quem o

escuta, e ao mesmo tempo somando forças aos movimentos que procuram dar um fim a

essas práticas.

Segundo o Relatório Global da OIT, em 2006, os principais aspectos do trabalho

forçado no mundo contemporâneo se caracterizam por quatro focos:

Estar mais facilmente imposto por agentes privados do que diretamente

pelo Estado;

O endividamento induzido que favorece a coerção, reforçado pelas

ameaças de violência;

A situação legal de inúmeros trabalhadores migrantes vulneráveis à

coação devido às ameaças a divulgação de sua situação;

As falhas legislativas que dificultam o combate.

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Esses quatro aspectos estão acompanhados de problemas como a definição

precisa do conceito de trabalho forçado que dificulta a identificação e punição;

dificultando a possibilidade de movimentar processos nos casos existentes. (OIT,2006)

O fato de o Brasil assumir o emprego do termo trabalho escravo em suas

campanhas, por órgãos do governo e ser reconhecido pela sociedade civil, colabora para

que a analogia à escravidão moderna intimide as grandes empresas de estarem

associadas a essa atividade. No entanto, o termo mantido no código penal “reduzir

alguém à condição de análoga a de escravo” não foi modificado, para condição de

trabalho escravo, o termo analogia no caso pode estar sendo utilizado como uma relação

de semelhança, deixando em aberto para interpretações se é de fato ou não. Este termo

pode ser interpretado por alguns agentes como estratégia de amenizar as verdadeiras

condições encontradas na realidade, com finalidade de prevalecer futuras punições.

Dentro desta perspectiva, torna-se importante a busca por melhores definições seja junto

à OIT, através do meio jurídico, com intuito de melhor definir este conceito e melhor

empregá-lo dificultando o favorecimento de certos grupos a existência de lacunas nas

leis e convenções.

A OIT e algumas organizações não-governamentais também abordam o termo

escravidão por dívida, por se tratar de uma situação encontrada na maioria dos casos de

escravidão contemporânea, onde se desenvolve uma relação em que o trabalhador se

torna impedido de se desvencilhar do seu local de trabalho devido a sua dívida com o

empregador e/ou agregado do empregador. Existem inúmeras formas de fazer o

empregado ficar sobre pressão do empregador, sendo as mais comuns a retenção da

carteira de trabalho; dívidas adquiridas pelo trabalhador desde o momento em que ele

decide acompanhar o aliciador (gato10

) fazendo com que ele apenas saia da área e da

produção após ter pago a viagem de ida, a estadia a alimentação; dívidas contraídas

durante o período de contato com o empregador . Outra característica comum, e não

muito imprevisível, que acompanha as situações de escravidão, são as infrações à

legislação trabalhista como as más condições de trabalho, falta de higiene e condições

precárias de equipamentos de segurança.

10 Este nome é dado exclusivamente aos aliciadores da área rural.

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“No caso brasileiro, a escravidão (atual) não se manifesta direta e

principalmente em más condições de vida ou em salários baixos ou

insuficientes. O núcleo dessa relação escravista está na violência em que se

baseia, nos mecanismos de coerção física e às vezes também nos

mecanismos de coerção moral utilizados por fazendeiros e capatazes para subjugar o trabalhador.(...) Isso não quer dizer, obviamente que todos os

casos em que o trabalhador não recebe seu salário sejam casos de

escravidão.o pesquisador deve estar atento ao seu ingrediente, que é a

coerção física e moral que cerceia a livre opção e a livre ação do

trabalhador. Nesse sentido, pode haver escravidão mesmo onde o

trabalhador não tem consciência dela.” (FIGUEIRA.1999:132-Figueira-39).

Foto: Alojamento de trabalhadores

Foto: João Ripper - www.humanosdireitos.org

A própria CPT realiza tal distinção em seu banco de dados, separando as

questões trabalhistas das relativas ao trabalho escravo, sendo comum encontrar no

mesmo ambiente crimes cumulativos somando-se ao ato do trabalho escravo11

como

precárias condições de alojamento, transporte ilegal de trabalhadores, desmatamento de

áreas sob proteção ambiental e grilagem.

11 O trabalho forçado e considerado crime grave. Como estabelecido pela Convenção da OIT sobre a

matéria, a imposição ilegal de trabalho forçado deverá ser punida como delito penal, e será dever de todo

o Estado-membro que ratificar a Convenção assegurar que as penalidades impostas pela lei sejam

realmente adequadas e rigorosamente aplicadas(art.25). Relatório Global 2006.

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Sendo os imigrantes ilegais alvo de máfias estrangeiras ou nacionais, facilmente

são relacionados com a superexploração capitalista. Em áreas rurais, a precariedade das

condições de vida como redução das pequenas produções agricultáveis ocupadas pelos

latifúndios e o aumento do custo da manutenção da roça favorecem a inserção de

homens e mulheres e até crianças, mas principalmente homens, a trabalharem como

escravos para os grandes latifúndios.

A escravidão contemporânea também se insere em espaços diferenciados, tanto

nos países desenvolvidos como subdesenvolvidos. Nas grandes cidades, geralmente

ocupam galpões ou casas residenciais, que de certa forma, chamam pouca atenção dos

habitantes, por estarem no meio de tantas outras informações.

No Brasil, a maioria dos trabalhadores encontrados em situação de escravidão

no campo possuem origem nos bolsões de miséria como o Vale do Jequitinhonha, em

Minas Gerais, em áreas pobres do Piauí e do Maranhão, por serem considerados os

Estados mais pobres do Brasil, segundo a UNESCO. A própria estrutura física, a

fazenda, localizada à quilômetros de distância das rodovias, contribuem para a

manutenção de inúmeras ilegalidades. Tornando a situação geográfica um problema

para a fiscalização e uma ferramenta para os proprietários. Como demonstram os

históricos a seguir12

:

Mato Grosso.1994.

"...outra operação foi realizada na Fazenda no município de Macondo - MT. Nesta fazenda, pouco se pode realizar, sabendo que são numerosos os homens que trabalham em regime escravo. Nesta fazenda encontramos muitas dificuldades, pois a fazenda conta com 90 mil ha de terra e está dividida em retiros. Além da sede central

possuir sub -sede , faz-se necessário 4 horas de barco pelo rio. A segunda sub-sede está' localizada a 65 km da sede central cujo acesso, geralmente é feito com trator. A terceira sub-sede o acesso se dá somente de avião ou por água. Em todas essas sub-sedes há denuncias de escravidão e que existem homens fortemente armados vigiando os trabalhadores. Ninguém pode sair e se ameaçarem fugir serão assassinados". Agente da CPT que participa de vistoria na Fazenda, junto com fiscais da DRT e agentes da Polícia Federal. Ministério do Trabalho, DRT, relato'rio de atividades de fiscalização, Brasília.

12 Todos os nomes das fazendas são fictícios assim como o nome dos trabalhadores afim de evitar a

exposição dos envolvidos, por mais que muitas referencias possuam fontes na mídia.(jornais, revistas)

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Rio de Janeiro. 1992.

À noite, os trabalhadores escravizados, João e José (menor) e Francisco conseguem

fugir da fazenda. O grupo e' liderado por João, este se armou com dois facões e conseguiu ultrapassar uma cerca de arame farpado. Sem destino, eles correm durante uma noite inteira... O Globo (RJ), 24/04/92

Rondonia.1994.

O trabalhador José denuncia a prática de trabalho escravo na Fazenda, de onde conseguiu fugir. A denúncia foi formulada ao Delegado Regional de Polícia de. O trabalhador[...] fugiu junto com mais 12 companheiros. Andaram cerca de 120 km

a pé pela mata, durante duas semanas. Alguns trabalhadores foram recapturados e

João acredita que foram baleados. José conta que foi contratado por um homem identificado apenas por Amarante para trabalhar na Fazenda, em trabalho de roçado. São contratados cerca de 40 pessoas, a maioria de Cuiabá e Várzea Grande, MT. Todos recebem o valor inicial de CR$ 30.000,00 (trinta mil cruzeiros reais) pela empreitada e posteriormente, segundo promessa do gato, receberiam CR$ 15.000,00 por alqueire roçado. Ao chegarem na fazenda, os peões descobrem que teriam que roçar em um banhado. A comida era pouca e as condições de higiene e habitação , nulas.

Logo no início dos trabalhos, três peões adoecem com malária. Ao tentar negociar por melhores condições e remuneração, José foi advertido pelo "gato" de que dificilmente conseguiria deixar a fazenda, por causa dos pistoleiros que a vigiavam.

José denuncia que dois filhos seus, menores de idade, continuam retidos na Fazenda.

O delegado alega que o crime denunciado acontece em Rondônia, e assim a polícia do Mato Grosso nada pode fazer.[ ] O peão é encaminhado `a OAB para repetir a denúncia.

Diário de Cuiabá 06/04/94.(grifos meus)

Segundo a OIT, o elo entre o tráfico e a pobreza pode ser relacionado não só no

Brasil, mas em outros países como mostra a tabela a seguir:

Tabela 1- Elo Entre a Pobreza e o tráfico

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Relatório Global.2005:63

A OIT vem atuando junto aos governos e tem levantado muitos casos

relacionados à rede, ligada ao tráfico de pessoas com incidências de servidão,

escravidão por dívida e prostituição infantil. O tráfico de pessoas é visto como:

Traficar refere-se a recrutamento, transporte, transferência, abrigo ou

acolhimento de uma pessoa por meio de ameaça ou uso da força ou outras

formas de coação, seqüestro, fraude ou engano “para fins de exploração”.

Por exploração entende-se, no mínimo, “a exploração da prostituição alheia ou outras formas de exploração sexual, trabalho ou serviço forçado,

escravidão ou práticas análogas à escravidão, servidão ou extração de

órgãos” (artigo 3º (a) do Protocolo). 13( OIT. 2005:7)

Para a OIT as atividades são classificadas por agentes, que se dividem em

formas de exploração e se são traficados ou não.

Organograma 1.0 – Agentes do Trabalho Escravo (segundo a OIT)

Adaptado. Relatório Global 2005

13 Protocolo sobre Tráfico, de 2000, Protocolo para Prevenir, Abolir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente de Mulheres e

Crianças, que complementa a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional

Trabalho Escravo

Agentes

Privado (64%) Estado (11%)

Imposto por grupos de

rebeldes – geralmente ligadas a áreas de

conflitos

Serviços Militares para

obras públicas

Páises pobres

Trabalho forçado em prisões –

diferentes situações

Exploração Sexual comercial

(11%)

Exploração Econômica

Homens (2%), Mulheres e

crianças (98%)

No campo , se concentram

homens e as vezes familias

Servidão, trabalhos

domésticos trabalho

forçado em zonas

rurais

Traficados e não Traficados

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Para a OIT, o evento se concentra em algumas regiões, mas, como diversifica a

sua modalidade e forma pode-se dizer que está distribuído por todo o globo. O trabalho

escravo pode estar relacionado à atividade do tráfico de pessoas, em geral imigrantes,

transformando sua condição em ilegal, e os submetendo a grupos mafiosos,

relacionados ao tráfico de drogas, armas e sexo.

Segundo o relatório global de 2006, a distribuição geográfica do trabalho

escravo no mundo contemporâneo apresenta o seguinte panorama:

Tabela 2. Distribuição Regional do Trabalho Forçado(OIT)

Distribuição Regional do Trabalho Forçado Número de Pessoas em Situação de

Trabalho Forçado

Ásia e Pacífico 9.490.000

América Latina e Caribe 1.320.000

África Subsaariana 660.000

Países industrializados 360.000

Oriente Médio e Norte da África 260.000

Países em transição 210.000

Mundo 12.300.00

Relatório global 2005.Pág 20

Na Ásia e no Pacífico o setor privado aparece com a servidão por dívida na

agricultura entre outras atividades. Vinte por cento fica por parte do Estado. Destaque

para o caso de alguns locais dessa região ser utilizado como referência de violação aos

direitos humanos. O mais conhecido é Mianmar, país marcado pela poder político

ditatorial, que é também conhecido pela intensa produção de heroína (onde se utiliza o

trabalho forçado para a colheita) e recentemente, pela violência aos monges budistas

que ocorreu em 2007. A China, mesmo com sua surpreendente economia em ascensão

foi recentemente alertada pelos órgãos internacionais por utilizar mão-de-obra escrava

na fabricação de brinquedos referentes a símbolos da Olimpíada de 2008. Outro caso

relatado pela mídia, foi a fabricação de artigos esportivos e de trabalho infantil, como

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resultado do intenso tráfico de pessoas que buscam melhorias de vida nas grandes

metrópoles.

No Oriente Médio e no Norte da África aparecem características semelhantes às

da Ásia, porém com menor participação do Estado. Na África subsaariana, na América

Latina e no Caribe se destaca o setor privado na exploração econômica.

Quando se refere ao trabalho escravo contemporâneo na região da África

subsaariana, o relatório da OIT aponta dificuldades na caracterização. A OIT realizou

uma breve análise das características principais em que surge a escravidão no continente

procurando informações em Estados que tenham uma melhor organização nos dados

requisitados a fim de traçar um panorama, dentre eles o Sudão, o Níger e a Mauritânia.

A pesquisa da OIT demonstra que o trabalho escravo se caracteriza aí por muitos

seqüestros, por discriminação étnica, servidão por dívida em áreas rurais, servidão a

chefes (líderes) tradicionais, servidão em exércitos realizados por crianças após

conflitos, entretanto, tratar de trabalho forçado na África torna-se um verdadeiro

desafio. É inimaginável, realizar tal estudo sem a contextualização dos fatores que

contribuem para a escravidão contemporânea no continente sem que a própria história

da sociedade ocidental, sobretudo no período imperialista, seja considerada14

. Vale

ressaltar que equívocos já foram realizados historicamente em relação aos povos

africanos, e cabe aos pesquisadores, a preocupação na forma com a qual se divulga as

informações a fim de não contribuir para uma leitura que oriente a compreender a

escravidão nessa região como foco da barbárie inata às populações. De forma a não

contribuir na manutenção de estereótipos construídos ao longo da história sobre essas

sociedades.

14 Como não é do interesse neste trabalho realizar uma análise sobre a forma que o relatório global

organiza os dados, mas sim incorporá-lo como obra que nos permita caracterizar aspectos importantes

sobre o tema, considerando as informações apenas como apontamentos sobre a região, caso seja do

interesse do leitor se informar sobre a escravidão contemporânea na África, vale como sugestão, estudar a

história, a cultura e a vida dessas sociedades. Afim de não tratar o tema da mesma forma que parte da

sociedade ocidental tratou e vem tratando até os dias atuais. O objetivo, não é duvidar da veracidade dos

dados e do trabalho da Organização, mas por considerar a singularidade de cada região africana e pelo

passado de mais de 300 anos escravidão. A mentalidade e as relações às quais se deram pós-comércio de

escravos podem ser bem distintas em relação aos países que seguiram o modelo tradicional de produção

capitalista.

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43

Um outro órgão que realiza um trabalho importante sobre a escravidão

contemporânea que pode nos ajudar na contextualização do tema é a organização Anti-

Slavery International(ASI), instituição abolicionista que procura estabelecer um

movimento em defesa dos trabalhadores junto aos governos, organizações e a sociedade

civil. Na perspectiva de denúncia e luta contra o trabalho escravo realizaram-se estudos

sobre algumas regiões que serão analisadas no ultimo capítulo.

1.3 - O Trabalho Escravo Contemporâneo na América Latina.

As situações dos países latino-americanos no que diz respeito às relações de

trabalho não são muito promissoras, após um histórico de extrema violência desde a

conquista por europeus, marcado pelo massacre das civilizações pré-colombianas, bem

como, em seus períodos ditatoriais. A recente redemocratização tem se tornado um

desafio, dificultado pela implementação de políticas neoliberais que não visam às

garantias sociais e precarizam os sistemas através dos processos de terceirização e

enfraquecimento de sindicatos.

Mesmo com casos de lutas pela libertação ou reconfiguração das relações de

submissão, como é o caso dos quilombolas, o reconhecimento da cultura negra e a

valorização desses movimentos como instrumentos de constituição do território, estão

distantes de por um fim às formas modernas de escravidão.

A organização abolicionista inglesa Anti-slavarery International trabalha desde

1839 para coibir formas de escravidão. Desde sua fundação trabalha na luta pelos

Direitos Humanos e atualmente a instituição estuda diferentes regiões do mundo na

tentativa de denunciar o desrespeito à dignidade humana e sendo identificados esses

desrespeitos busca promover medidas para erradicá-los.

Alguns países da América Latina foram selecionados através do trabalho

realizado pela ASI para tentar compreender como essas relações se distribuem e como

contribuem para uma leitura do que é uma geografia do trabalho escravo.

Page 29: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

44

1.3.1 Estudos de Caso: A Argentina, A Bolívia e o Paraguai

Ameaçada pela política econômica neoliberal fortalecida na década de 90, a

Argentina começa a sentir o peso por ter assumido os padrões econômicos do Banco

Mundial e da nova economia globalizada, sobretudo, na virada de século; sua moeda se

desvaloriza, e em 2001 a crise chega à tona causando problemas sociais gravíssimos. No

ano de 2003, 57,5% da população vivia abaixo da linha de pobreza (aproximadamente

20.000.000 pessoas) e 27,5% estava abaixo dos limites de extrema pobreza. (KAYE,

2006). Essa situação colaborou sobremaneira para que as pessoas buscassem trabalho

em terras estrangeiras. Dentro deste contexto, o tráfico de pessoas15

sofreu um aumento,

como também o número de pessoas exploradas nas relações de trabalho.

Um dos casos relatados nos documentos da ASI sobre a Argentina, foi o caso de

trabalhadores bolivianos entre 9 e 20 anos de idade que haviam sido sedados e

transportados para a Argentina e estavam sendo retidos em uma fábrica na região de

Matanza, forçados a trabalhar em fábricas clandestinas(KAYE, M.2006). Foram retidos

seus documentos, havia ameaça verbal e restrição de movimentação. Nem mesmo para

levar as crianças ao colégio ou médico os trabalhadores poderiam sair, pois seus

contratantes alegavam que esta ação poderia prejudicar a produção. A Defensoria dos

Povos na Argentina estima que poderia haver cerca de 10000 pessoas trabalhando em

situação similar em fábricas de Buenos Aires.16

A maioria dessas pessoas em situação de trabalho escravo se concentra em

fábricas têxtis que exploram também paraguaios e peruanos. O governo argentino

ratificou as convenções da OIT, mas não mexeu nas legislações que facilitam para que a

15 Vítimas do tráfico haviam sido identificadas em várias províncias Argentinas incluindo Buenos Aires,

Neuquén, La Rioja, Entre Ríos, Córdoba, Río Negro y Tucumán.

16 (KAYE,M.2006:7)

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impunidade continue. A corrupção, muitas vezes da própria polícia, e a falta de

assistência para as vítimas, não permite que a cadeia de exploração de pessoas seja

melhor fiscalizada e o problema erradicado.

Na Bolívia, o trabalho escravo se distribui de forma diferente, concentrado em

três atividades: as indústrias de cana-de-açúcar, em fazendas do Chaco e em empresas

brasileiras de castanhas (SHARMA.2006). Facilitadas pelo isolacionismo e dificuldades

de acesso.

A estimativa na indústria de cana-de-açúcar boliviana é de que existam 33 mil

pessoas trabalhando sob condições de escravidão nas fazendas de cana, onde 18.000 são

homens e 15.000 entre mulheres e crianças (onde 7.000 são crianças menores de 14 nos)

17. Em 2003 estimava-se 21mil trabalhadores escravizados incluindo homens e crianças

trabalhando na região de Santa Cruz. Recrutados em outras regiões onde os índices de

pobreza são ainda mais baixos, os trabalhadores são levados para Santa Cruz para

trabalhar em áreas aproximadamente de 90.000 hectares18

. As redes de recrutamento são

organizadas, existindo toda uma hierarquia em seu procedimento. A terceirização da

contratação facilita a impunidade dos verdadeiros contratadores. Esses intermediários

selecionam o empregado de acordo com a capacidade de produção e, a principal vítima

nesse caso é a população quéchua19

. Em Santa Cruz, estima-se que existam entre 250 e

270 contratadores nas áreas rurais. A maioria dos trabalhadores é coagida a viajar

confiando em promessas que posteriormente se transformam em escravidão por dívida.

Outra região do país onde há registro desse tipo de relação social é a Amazônia

boliviana nos departamentos de Pando e Beni, sendo os trabalhadores recrutados em

Guayaramirim, Riberalta e Cobija, outros são capturados em áreas rurais e nos centros

urbanos para trabalhar no campo (SHARMA. 2006)

17 International Labour Organization (ILO)(pag7. SHARMA. Bhavna.2006p.3)

18 Contemporary forms of slavery in Bolivia. Anti-slavery Internacional .Bhavna Sharma.2006

19 População originária indígena da Bolívia - The main indigenous populations are Quechua (30 per cent), Aymara (25 per cent)

and Guaraní (1 per cent) SHARMA. Bhavna.2006.p1.

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A indústria de castanhas exportadas da Bolívia pelo Brasil registrou, entre

1986 a 2003, um aumento de US$ 7 para US$ 34 milhões representando

2.4% do valor de todas as exportações da Bolívia. Especula-se que 31000

pessoas estejam trabalhando na colheita de castanhas onde,

aproximadamente 5000 a 6000 trabalhadores, continuam em dívidas após a

colheita e, assim, continuam sob o trabalho escravo. A média é de 69 kg de

castanhas (3 caixas) por dia, rendimento de 12 horas de trabalho, sem

alimentação, caso queira realizá-la é necessário comprar ou ser agraciado

pela natureza em fornecer-lhes frutos durante a colheita. O mesmo é feito

com os materiais utilizados na colheita. 20

No caso da região do Chaco21

, as fazendas privadas exploram originalmente os

povos guaranis na região de Santa Cruz, Chuquisaca e Tarija, principalmente na

produção de milho, pimenta e amendoim. O processo acontece devido à perda do

território guarani pela expansão da fronteira agrícola.

Estudo de Caso - ASI: Comunidade Casa Alta

[...] 18 famílias trabalharam para um fazendeiro durante 25 anos. Eles

tinham um acordo verbal em que aos homens seriam pagos 10 bolivianos

(1,28 dólares) e as mulheres 5 bolivianos (0,64 dólares) por dia, enquanto as

crianças que ajudavam seus pais nada ganhavam. Eles foram mandados

embora da fazenda em 1999, quando o fazendeiro ficou preocupado com os

inspetores do governo que poderiam achar (pessoas em situação de) trabalho

forçado em suas terras.

Os trabalhadores explicaram para os inspetores o sistema de débito a que

eram submetidos. Seu empregador lhes adiantava dinheiro e bens básicos. O

administrador anotava todos os adiantamentos num caderno ao qual

ninguém mais tinha acesso. No final de cada ano era feito o "balanço" com todo o salário servindo para pagar o débito. Assim, a cada ano o débito

aumentava.

Os trabalhadores reclamaram que eles eram proibidos de procurar outro

trabalho para cobrir a dívida, e seus débitos só aumentavam. Eles disseram

20 Contemporary forms of slavery in Bolivia. Anti-slavery Internacional .Bhavna Sharma.2006

21 Região que abrange Argentina, Paraguai, Brasil e Bolívia. Caracterizada pelo seu domínio

morfoclimático

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que havia sido difícil fazer tais denuncias anteriormente, dada a relação de

amizade entre o fazendeiro, as autoridades locais e o prefeito. 22

O governo Boliviano ratificou a convenção suplementar de 1956, a convenção

n° 182 sobre trabalho infantil de 1999; o protocolo de prevenção e punição sobre tráfico

de pessoas de 2000 entre outras, mas somente em 2005, a convenção n°29 de 1929. Pela

leitura de Sharma(2006) isso ocasionou lentidão no processo de combate às formas de

escravidão, pois elas devem unir a teoria à prática. Apenas um acompanhamento

político da situação não resolve o problema. Um plano de apoio às legislações e às

medidas de punição devem ser estabelecidas.

No caso Boliviano, o acesso à terra como os recursos extraídos da mesma estão

sendo questionados na reorganização do novo Estado após 2006. O fato de a Bolívia ser

o país mais pobre da América do Sul colabora para que sejam explorados os quéchuas,

os Guaranis e os mestiços de origem boliviana, não somente no seu país, mas também

em outros países da América Latina, como é o caso de bolivianos trabalhando na grande

São Paulo, recrutados na Grande La Paz ou nas fábricas argentinas.

O Paraguai, por sua vez, aderiu aos principais tratados internacionais que

proíbem formas semelhantes à escravidão, mas não ratificou a Convenção Suplementar

da ONU sobre a Abolição da Escravatura e Tráfico de Escravos e práticas análogas do

ano de 1956. O país também passou por um longo processo ditatorial de 35 anos e

22 Case Study: Casa Alta Community:

18 families worked for a ranch owner for 25 years. They had a verbal agreement that the men would be

paid 10 Bolivianos (US$1.28) and the women would be paid 5 Bolivianos (S$0.64) daily, whilst children

helping their parents received nothing. They were thrownoff the ranch in 1999 when the ranch owner was

worried that government inspectors would find the forced labourers on his land.

The workers explained to the Inspection Commission33 the system of debt that they were subjected to.

Their employer gave them advances of money and basic goods. The administrator took note of all

advances given in a private notebook that no one else had access to. At the end of every year the books

were “balanced” with all salary due going towards paying off the debt. In this way, every year the debt

steadily grew.

The workers complained that they were prohibited from seeking work else where to pay off what

they owed and their debts continued to rise. They said it had been difficult to file complaints earlier due to

the friendships between the rancher, the local authorities and the mayor.

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apenas em 1989 se restabeleceu a democracia com intuito de por fim à corrupção e à

crise econômica, objetivos que não foram alcançados colaborando dessa forma para o

aumento da pobreza e da desigualdade social, devido à inserção do processo neoliberal

na economia.

O Paraguai se constitui de 25 diferentes etnias indígenas, sendo que as 15 que

vivem no Chaco paraguaio são as que mais sofrem com o trabalho escravo. A população

é composta por 5.800.000 pessoas onde 87.099 são indígenas.(KAYE, 2006: 02)

Em relação à estrutura fundiária a maioria da terra indígena foi vendida a

especuladores estrangeiros pelo governo paraguaio em 1885:

[...]Somente 45% das comunidades indígenas no Paraguay possuem terras,

apesar de ser um direito garantido pela constituição( a metade de deles não

tem terras e a outra metade não tem títulos de propriedades). Não obstante,

incluindo aqueles que tem terra carecem de capital e de acesso a credito para

usar-las comercialmente, ou não podem viver delas porque o que possuem não é o suficiente, a terra fértil não é fértil, ou não tem acesso a água(

KAYE, 2006: 003)23

No estudo realizado por Kaye(2006), esta desigual organização do campo

paraguaio resultou em muito desemprego, trabalho temporário e servidão por dívida. É

comum encontrar trabalhadores ganhando um salário bem inferior ao salário mínimo

local ou mesmo não recebendo nenhum salário. Alguns casos relatam mulheres

trabalhando como domésticas em fazendas, não sendo permitido nenhum dia livre e

ainda sofrendo abuso sexual. O isolacionismo é um dos fatores que colaboram para

dificultar a comunicação sobre a situação e a não liberdade de ir e vir.

23 Sólo 45% de las comunidades indígenas en Paraguay poseen tierras, a pesar de que es un derecho

garantizado por la constitución (la mitad de ellos no tienen tierras y la otra mitad no tienen los títulos de

propiedad). Sin embargo, incluso aquellos que tienen tierras carecen de capital o de acceso a créditos para

usarlas comercialmente, o no pueden vivir de ellas porque lo que poseen no es suficiente, la tierra no es

fértil, o no tienen acceso al agua. KAYE, 2006: 003)

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Por mais que a Constituição Nacional e o Código do Trabalho proíbam o

pagamento de baixos salários, na prática, as fazendas não a respeitam. Segundo Kaye,

há uma interpretação do governo em que os trabalhadores indígenas não vêm sendo

enquadrados na preferência das fazendas. Fato que realmente tem acontecido a ponto

dos indígenas reconhecerem alguns de seus direitos e acionarem seus empregadores

requisitando e reintegração de posse da terra. Além do mais, o episódio pode se tornar

extremamente delicado, pois caso ocorresse um melhor reconhecimento dos seus

direitos quanto à situação, implicaria na denúncia feita em algum posto de fiscalização

ou vigilância, que geralmente não existe. Até o ano de 2005, não existia nenhum posto

no Chaco do Instituto Nacional do Indígena (INDI), representante do Ministério do

Trabalho.

O tráfico de pessoas, principalmente mulheres e crianças paraguaias, também é

constante, enviadas que são para a Argentina e Espanha, entre outros países. Já o

trabalho infantil se subdivide em dois casos: os que trabalham para terceiros e recebem

algum pagamento e outro chamado criadazgo24

, no qual as crianças trabalham pelas

suas necessidades básicas. A ASI denuncia como uma nova forma de escravidão por se

tratar de crianças que não têm controle sobre seu trabalho e sobre as formas que

deveriam ser tratados

Estudos do Centro de Documentação e Estudos (CDE), em 2002, sobre

trabalho doméstico infantil e criadagem, mostram que em cerca de

60% destes casos o trabalhador tinha 13 anos de idade ou menos, mas que

apenas 8% vivia com um ou ambos dos seus pais. Cerca de 50% dos

entrevistados morava com os seus empregadores ou pessoas que não eram parentes, indicando que a maioria dos trabalhadores infantis domésticos são

separados das suas famílias muito jovens. A separação física de um menor

da sua família não apenas o deixa vulnerável à exploração, como também ao

tratamento cruel e degradante. No estudo do CDE, muitas crianças relataram

sofrer maus-tratos dos seus empregadores, dentre estes insultos (33%), ter

que comer sobras (20%), violência física (12%) ou abusos sexuais (5%)

(KAYE, 2006: 26)

24 criadagem

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Outro evento que ocorre no Paraguai é o caso de trabalho forçado no serviço

militar. Por mais que o serviço seja obrigatório para maiores de 18 anos, torna-se

constante o número de crianças entre 12 e 17 anos que são persuadidos a prestarem

serviço.

O Paraguai registrou 52 casos de trabalho forçado entre 1991 e 1998, dentro dos quais se encontravam pelo menos 643 soldados. O SERPAJ –Paraguai também documentou 110 casos de indivíduos com idades entre 12 e 20 anos que morreram

durante o serviço militar, entre 1989 e 2005. Alguns destes casos estão sendo analisados pela Corte Interamericana de Direitos Humanos.(KAYE, 2006: 30)25

O governo alega ter recrutado essas crianças devido ao fato de estarem sob muita

pobreza, fato que contradiz as próprias leis do Estado.

O isolacionismo geográfico de algumas propriedades é um fator relevante tanto

na região do Chaco como na Amazônia, tornando difícil o trabalho de órgãos e

instituições quês fiscalizam esse tipo de atividade.

De acordo com a leitura realizada, pode-se apontar duas questões de base

estrutural que se tornam presentes nesses países: a estrutura fundiária e as cadeias de

recrutamento organizadas. A primeira questão pode ser relacionada principalmente ao

Paraguai e à Bolívia pela ausência de uma estrutura no campo que permita que os

trabalhadores e populações tradicionais vivam da própria organização do trabalho

agrícola, submetendo famílias à extrema exploração. No Paraguai a banalização da

exploração passa pelo Estado que justifica o trabalho forçado por questões estruturais.

Na Bolívia, além das fragilidades políticas na Região do Chaco, representadas por uma

elite local de produtores rurais que constantemente entram em confronto com o altiplano

boliviano por disputas políticas de controle do território. Há indícios de uma rede de

25 Paraguay registró 52 casos de trabajo forzoso en los que se encontraban por lo menos 643 soldados

entre 1991 e1998. SERPAJ –Paraguay también documentó 110 casos de indivíduos de edades entre 12 y

20 años que murieron mientras hacían su servicio militar entre 1989 y 200571. Algunos de estos casos

están siendo tratados actualmente en la Corte Interamericana de Derechos Humanos.(KAYE, 2006: 30).

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recrutamento organizada que já se preocupa com a não identificação de seus

proprietários, realizando a terceirização do serviço de recrutamento. Em La Paz, capital

da Bolívia, alguns trabalhadores denunciam o recrutamento de bolivianos para trabalhar

em São Paulo26

, através de promessas de melhores condições de vida, existindo assim;

dois pólos: os capturados na capital para outras grandes capitais e os das regiões rurais

para serem utilizados em regiões próximas para trabalho no campo. O que transforma o

país mais pobre da América do Sul em um território fonte de distribuição de mão-de-

obra escrava.

Na Argentina, o tráfico de pessoas se mostrou mais presente relacionado com a

privação do direito de ir e vir, através da retenção de documentos e ameaças. A falta de

fiscalização também foi denunciada como fator que corrobora para a permanência do

evento, por mais que tais nações tenham aderidos a tratados internacionais de combate

ao trabalho escravo, na prática, dentro de seus territórios esta realidade está longe de ser

solucionada.

De acordo com os casos apresentados na América Latina, pode-se dizer que a

maioria dos casos encontrados geralmente resulta de empregadores originados do poder

privado, ou pelo poder público contrariando suas próprias leis, o que ocorre também nas

zonas rurais.

Nas grandes cidades tem sido constante o relato pela mídia de trabalhadores

bolivianos sendo encontrados em galpões da grande São Paulo. Sabe-se que os

trabalhadores encontrados em São Paulo, são de origem paraguaia e boliviana vinda em

busca de melhores condições de trabalho.

Segundo estimativas da Pastoral dos Migrantes Latino-Americana, a

comunidade boliviana da cidade de São Paulo reúne cerca de 100mil pessoas, embora o

consulado dessa capital reconheça a existência de 50 a 70 mil imigrantes clandestinos.

(CACCIAMALI e AZEVEDO .2006)

26 Essa referencia foi dada após a conversa com dois bolivianos em La Paz, em 2006, que afirmavam ter

conhecido São Paulo e possuíam familiares nesta condição.

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Geralmente são interceptados nas grandes capitais, que sofrem de pobreza e

desigualdades sociais, sendo subjugados às promessas de retorno a um valor superior a

ser alcançado nas suas cidades, tornando-se a proposta irrecusável. No caso específico

da Bolívia vale a pena ressaltar dois pontos importantes: a moeda boliviana é uma das

mais desvalorizada na América do Sul e a representação do Brasil, para os bolivianos, é

encarada como uma “potência” latino americana.

Ao iniciar o trabalho logo se encontram impedidos de regressar à sua cidade

natal.

O perfil característico desses imigrantes, que foi sendo construído desde os

anos 1980, mostra que eles são, em sua maioria, jovens, de ambos os sexos,

solteiros, de escolaridade média, e vieram atraídos principalmente pelas

promessas de bons salários feitas pelos empregadores coreanos, bolivianos

ou brasileiros da indústria da confecção. Oriundos de várias partes da

Bolívia, porém com uma predominância dos pacenhos e cochabambinos

(isto é, provenientes de La Paz e Cochabamba, respectivamente), esses

imigrantes passaram a apostar tudo na atividade da costura, alimentando,

assim, sonhos de uma vida melhor para si mesmos e seus familiares que lá

ficaram. Sidney Antonio da Silva. Estudos Avançados.Print ISSN 0103-4014.Estudo. av. vol.20 no.57 São Paulo May/Aug. 2006 doi:

10.1590/S0103-40142006000200012 .www.scielo.br

Trabalhadores bolivianos também foram citados como mão-de-obra utilizada em

fábricas de costura na periferia de São Paulo27

. A Polícia Federal, contabiliza 18.408 em

todo o Estado, já o Consulado boliviano, possui em seu cadastro aproximadamente 15

mil, porém estima-se em 60 mil, apenas na capital paulista, o número de imigrantes. O

27 Do ponto de vista da localização, os(as) bolivianos(as) estão concentrados em bairros da

Zona Central da cidade, como Bom Retiro, Brás, Pari, Barra Funda, Cambuci, Mooca, entre

outros. Entretanto, há também uma significativa presença deles em bairros da Zona Leste,

como Belém, Tatuapé, Penha, Itaquera, Cangaíba, Engenheiro Goulart, Ermelino Matarazzo,

Guaianases, São Mateus, e em bairros da Zona Norte, como Vila Maria, Vila Guilherme,

Casa Verde, Cachoeirinha, entre outros. Entretanto, nos últimos anos, a presença de

bolivianos extrapolou os limites do município de São Paulo, podendo ser encontrada em

cidades como Guarulhos, Osasco, Santo André, Diadema e em outras cidades do interior

paulista, como Jundiaí, Campinas, Americana, entre outras.

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Centro de Estudos Migratórios chega a considerar de 60 a 80 mil bolivianos na grande

São Paulo28

.

Figura II - Feira de Cultura Boliviana em São Paulo

A existência de um bairro de imigrantes bolivianos traduz espacialmente a

existência destes em São Paulo. Infelizmente sem perspectiva de retorno à Bolívia,

muitos bolivianos acabam se sujeitando ao trabalho escravo, já que as repreensões e

custos para se legalizar inviabilizam qualquer iniciativa neste sentido.

Segundo o relatório da OIT existe um número estimado de 360 mil pessoas

presas ao trabalho escravo em países industrializados, de um total de 12,3 milhões em

todo o mundo. O trabalho escravo em países industrializados é principalmente uma

conseqüência do tráfico de pessoas. O tráfico é um crime global que pode ser

caracterizado como o lado obscuro da globalização (OIT, 2005).

28 (Carlos Juliano Barros. Pertencente ao site Repórter Brasil: http://www.reporterbrasil.com.br

Festa em Bairro Boliviano em São Paulo Fotos: João Monteiro

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Capítulo II – Formas da escravidão contemporânea: A peonagem, o

barracão, e a escravidão por dívida.

“ O Marreteiro”29

O marreteiro não nos dá muita mercadoria

Só pouca mercadoria

Engana os kulina

Só nos dá tabaco, sabão, linha, agulha, perfume

Mais do que isso ele não dá

Faz a troca dos produtos como se estivesse certo

Mente que nós ficamos devendo

Como não entendemos, ficamos pensando na volta:

- Será que é verdade que ficamos devendo?

Então pensamos:

Como vamos pagar o marreteiro?

Naodisa Dsomaji-madija Representatante Kulina

( Madijadenico Ima.1983 – Acre)

No final do Séc. XIX surge no Brasil sob influência das idéias liberais um

conjunto de iniciativas que culminaria no movimento abolicionista. A primeira Lei que

trata da libertação dos escravos data de 30 de setembro de 1831, que declarava livres os

escravos desembarcados no Brasil. O tráfico de escravos perdurou até a promulgação da

proibição da comercialização através da Lei Eusébio de Queiroz, em 1850. Todavia, a

comercialização de escravos dentro do território não cessou. Em 1871, tivemos a Lei do

29 O marreteiro era o atravessador do sistema de aviamento, hoje em dia pode ser substituído pelo regatão

hoje estima-se a existência de mais de 10 000 regatões.

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Ventre Livre, que libertava os filhos de escravos que até 28 de setembro se

encontrassem no ventre materno. A Lei dos Sexagenários -1886, garantindo a liberdade

aos escravos que atingissem 65 anos de idade, e apenas em 1888, é promulgada a Lei

Áurea, que declarava extinta a escravidão legalizada no Brasil.

Por volta de 1822, foram suspensas as concessões de terra e o processo de

apossamento acaba por se intensificar após a independência. Em 1850, também surge a

Lei de Terras, que acompanha esse período pré-abolição, colaborando assim, para uma

manutenção do status quo da parte da classe proprietária de terras no Brasil, que

anteriormente era caracterizada por doações desde o período das capitanias hereditárias,

e das sesmarias. Esta lei delimita que as terras somente poderiam ser compradas,

leiloadas ou regularizadas nos cartórios mediante pagamento. Em uma sociedade

escravista, a compra das terras, portanto, torna-se inatingível para a maioria dos

trabalhadores.

O trabalhador escravo após 1888 tornou-se só formalmente livre. Poucas foram

as alternativas para que este se reintegrasse na sociedade sem se submeter a condições

análogas à escravidão. A saída encontrada por muitos, nas circunstâncias adversas, foi

oferecer sua força de trabalho para os donos da terra, donos de engenhos, donos de

minérios, barões do café; donos dos meios de produção. Os donos da terra continuaram

a ser donos da força de trabalho, mas agora sem a documentação de propriedade sobre a

força de trabalho, permitindo dessa forma, que o consumo na parte interna das fazendas

e a situação de parceria norteassem a nova relação, fato este que para alguns estudiosos

se confundiu com uma relação feudal. Tornar o trabalhador devedor através de moradia

ou alimentação, de certa forma o transformava em cativo à fazenda e submisso aos

fazendeiros.

Posteriormente, a queda da monarquia e a implantação de uma república

oligárquica naturalmente retardaram as medidas agrárias sugeridas e

defendidas pelos grupos políticos mais avançados, fazendo com que surgissem em vários pontos do país, formas de exploração dos trabalhadores

agrícolas - formados em grande parte por ex escravos – (...) daí os vários

sistemas de exploração – a meação, o arrendamento, a prestação de serviços

gratuitos – em troca do uso de pequenas porções de

terra(ANDRADE,1991:9)

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A escravidão contemporânea no Brasil ganhou destaque em diferentes

momentos e situações. Alguns termos como peonagem, o sistema do barracão, o

colonato, escravidão por dívida; já foram mencionados em alguns trabalhos e obras

literárias como termos análogos à escravidão. Esses termos, de certa forma,

compartilham situações em que a lógica da subordinação e da imobilidade da mão – de

– obra está presente. A analogia à escravidão era feita, porém , por existir diferenças

geográficas nas situações em cada região a escravidão contemporânea pós abolição

ficou conhecida de uma forma, logo, não existia uma unidade do conceito.

2.1.1 - O Barracão.

Para entender o “sistema do barracão”, torna-se inevitável uma menção ao

momento político e econômico em que o Brasil vivenciava nos períodos de prática do

tal sistema. Praticado principalmente na região Norte da Amazônia, o barracão era parte

do processo produtivo do sistema de aviamento que será explicado adiante.

A participação do país na divisão internacional do trabalho, promoveu um

reordenamento da mão-de-obra, através da combinação do aumento dos mercados nos

Estados Unidos e na Europa. Somados aos problemas climáticos no nordeste – a famosa

seca dos três setes 1877-78 -, favoreceu a concentração dos trabalhadores na região

norte do Brasil.

A extração da borracha na Amazônia se dava através do sistema de “aviamento”,

que consistia em um sistema de adiantamento de mercadorias a crédito. O sistema

possuía três pilares para a sua manutenção : o seringueiro, o barracão e o regatão30

. O

30 Comerciante que fornece mantimentos básicos para os seringueiros através de uma barco.

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sistema atinge seu auge entre 1890 e 1910. Para o geógrafo Orlando Valverde, o

barracão vende a sua produção para as firmas “aviadoras” com sede em Manaus e

Belém. Essas empresas são companhias atacadistas que exportam a borracha e, ao

mesmo tempo, abastecem os seringais de gêneros, utensílios, fazendas, etc.

(“aviamentos”) por intermédio dos vapores que navegam o Amazonas e afluentes

(VALVERDE. 1964).

De certa forma, é esse sistema que por muito tempo irá estruturar a construção

das cidades, porém, com suas contradições.

Na base da pirâmide social está o seringueiro, que vegeta numa vida miserável,

isolado da selva. Lá estava ele, longe da família, sujeito aos ataques das

doenças tropicais, sobretudo a malária, e da carência, como beribéri, bem

como as emboscadas dos índios.

O barracão, que detinha o monopólio do comercio, explorava-o

extorsivamente. Logo ao ser admitido no seringal, era-lhe debitada na conta

uma quantia enorme (cerca de dois conto de réis, no principio do século),

relativa a roupas, rifle,terçado, balde, tijelinhas, alimentos, pólvora etc., e o

seringueiro só podia deixar o seringal um vez saldadas as suas contas no

barracão.

Era uma verdadeira escravidão econômica. Se o seringueiro tentasse fugir,

era caçado a dente de cão ou pelos “capangas” do administrador. Cada

seringal tinha sua “justiça própria, com prisão, jejuns e surras com

espinha de pirarucu. (grifos meus)

[...]Como se não bastassem esses tormentos, havia também outra fonte de

exploração, representada pelo “regatão”, espécie de armarinho flutuante,

geralmente dirigidos por sírios –libaneses.(VALVERDE.1964.278)

O impedimento do poder de ir e vir, tal como a punição e a dívida construída

desde o aliciamento até a produção permite a uma análise em que se pode assemelhar as

formas análogas à escravidão descritas atualmente. Em um outro momento o mesmo

autor reafirma que no “barracão” „o seringueiro entrega a borracha extraída durante a

semana e recebe víveres e “aviamentos” para a semana seguinte, fazendo um encontro

de contas do qual ele nunca recebe dinheiro. Confirmando assim a escravidão pela

dívida´. (VALVERDE. 1964)

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Caio Prado Júnior ao descrever o processo de comercialização da borracha

também comenta as relações de trabalho na Amazônia.

O trabalhador construirá sua choupana na boca da estrada, e cada manhã

sairá a percorrê-la e colher a goma. Permanecerá aí isolado durante várias

semanas a espera do transporte fluvial que lhe traz os gêneros de consumo necessário e que levará o produto. As poucas folgas, largamente espaçadas

serão aproveitadas para uma visita ao “centro”, núcleo e sede da

propriedade, onde reside o seringalista (dono da exploração), ou mais

comumente apenas o administrador. Ele encontrará aí a única diversão que

oferece o desolamento da selva: a “venda” com bebidas alcoólicas. Aí

dissipará o magro salário adquirido.

Este pronto desembolso do salário faz parte do sistema de exploração da

borracha; é preciso impedir que o trabalhador acumule reservas e faça

economias que o tornem independente. Nesta região semideserta de escassa

mão –de –obra, a estabilidade do trabalho tem sua maior garantia no

endividamento do empregado. As dívidas começam logo ao ser contratado:

ele adquire a crédito os instrumentos que utilizará, e que embora muito

rudimentares (o machado, a faca, as tigelas onde recolhe a goma), estão

acima de suas posses, em regras nulas. Frequentemente estará devendo as

despesas de passagem desde sua terra nativa até o seringal. Estas dívidas iniciais nunca se saldarão porque sempre haverá meios de fazer despesas do

trabalhador ultrapassarem seus magros salários. Gêneros caros (somente o

proprietário pode fornecê-los porque os centros urbanos estão longe), a

aguardente.[...]Enquanto isto ainda não basta, um hábil jogo de contas que a

ignorância do seringueiro analfabeto não pode perceber, completará a

manobra.

Enquanto deve, o trabalhador não pode abandonar seu patrão, credos; existe

entre os proprietários um compromisso sagrado de não aceitarem a seu

serviço empregados com dívidas para com outro e não saldadas. Aliás, a lei

(Código Civil Brasileiro. art1230) vem sancionar este compromisso porque

responsabiliza o patrão que contrata um trabalhador pelas dívidas deste. E

quando tudo isto não basta para reter o empregado endividado, existe o

recurso da força. Embora à margem da lei, ninguém contesta ao proprietário

o direito de empregá-la.( História Econômica do Brasil,Brasiliense

1978.21°edição 238)

Essas passagens escolhidas deflagram a situação a qual eram expostos os

trabalhadores levados ao endividamento. A agricultura também era proibida, com

propósito de não contribuir para uma possível acumulação. Para Gonçalves é

exatamente nesse sistema que se baseia a organização dos seringais.

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Se todos tivessem saldo conquistariam a liberdade e o sucesso de cada um

seria a razão da falência de todos, pois não permitiria a reprodução do

seringal como tal. Assim, a dívida é que mantém o seringal por meio da

esperança do saldo.Tanto o patrão como o seringueiro querem saldo nas suas

contas correntes. Vêm para ganhar dinheiro. (PORTO GONÇALVES,2003)

Encontrada em diferentes períodos na Amazônia, a situação de clientelismo dos

seringueiros com o sistema de aviamento (seringalistas) faz com que muitos cientistas e

escritores na década de 60 e 70 tratem as relações do sistema do barracão - sinônimo da

escravidão por dívida - em seus relatos e romances. E como o emprego no seringal está

associado aos diferentes processos de imigração na região, essa relação pode ser

facilmente confundida por uma servidão voluntária, como uma troca de favores entre

aqueles que procuram se territorializar.

Na década de 80, os ruralistas responderam às reivindicações dos seringueiros

com a morte do líder Chico Mendes que utiliza o momento não apenas para reivindicar

os meios de produção, mas também para denunciar ao mundo o problema ambiental

vivenciado pela Amazônia. No entanto, diante de tal perplexidade, em que as

instituições públicas tal como a mídia internacional cobriram a questão, o desmatamento

na Amazônia ganhou muito mais repercussão do que as relações de trabalho, e a

violência cometida à natureza e aos povos da florestas se transformaram em um marco

desastroso para que se possa entender as relações de poder existentes na região.

2.1.2 - A peonagem.

[...] há o dito popular na região: “peão não é gente!

D. Pedro Casaldáliga.1973.

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A peonagem é um termo que surge no Brasil, principalmente no período da

ditadura militar. Caracterizado pelo trabalhador que vem de fora contratado para uma

empreitada segundo Figueira(2004) o peão31

é definido como:

Trabalhador rural em atividade braçal, levado para os empreendimentos

agropecuários na Amazônia, onde deve executar trabalhos pesados, de baixa

qualificação profissional, em geral sob coerção. O termo também utilizado

para identificar pessoas em atividades de desflorestamento, feitura e

conservação de pastos e cercas aliciadas pelo fazendeiro, empreiteiro ou por um seu preposto. Portanto, ligado diretamente à abertura de novas áreas

bem característica dos planejamentos.(Figueira.2004:18)

Uma análise fiel do que representa este personagem, foi realizada por Neide

Esterci(1987), em seu trabalho sobre os Conflitos de Terra no Araguaia:

[...] O termo peões podia ser utilizado pare referir-se tanto a trabalhadores

diretos como indiretos(peões, propriamente empreiteiros), desde que

contratados por empreita, remunerados à base da produção, dedicados a

tarefas tais como derrubadas, demarcação de limites, abertura de estradas,

sem vinculo empregatício juridicamente reconhecido pela empresa e

sujeitos a uma alta rotatividade, circulando de uma empresa para outra por

toda a região(ESTERCI. 1987:137). (grifos meus)

A mesma autora ressalta uma associação feita por Marx do termo peonagem

com relação às formas de subordinação surgidas em outras circunstâncias históricas32

:

31 Peão: amansador de cavalos burros e bestas. 2. bras.condutor de tropa(...)3.bras. Trabalhador rural.4.

bras. Amaz. Indivíduo geral recrutado em outros estados, como mão- de- obra para as grandes empresas

radicadas na Amazônia. 5. bras. Serviçal de estância; conchavando, índio. (1289)

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[...] Em diversos países notadamente no México (...), a escravatura se oculta

sob a forma de peonagem. Por meio de adiantamentos resgatáveis em

trabalho e transmitindo-se a obrigação de resgate de geração em geração,

torna-se não só o trabalhador individual mas também sua família

propriedade, de fato, de outras pessoas e das respectivas famílias.(

Marx.1980:188) (grifos meus)

Dessa forma, a autora enfoca que o que está em jogo, num caso como nos

outros, é a perda, por parte do trabalhador, da condição de livre possuídos de sua força

de trabalho. Através da instituição da dívida, ele passa de “livre a escravo, de possuidor

de uma mercadoria a mercadoria” (Marx. 121 apud Esterci. 1987:140)

Outras relações de trabalho também são citadas no seu trabalho como o

mensalista, estes também são empregados, porém diferente dos peões estão sujeitos a

menores rotatividades, recebem mensalmente e são identificados como trabalhadores

“fixos”. Entre os mensalistas havia os chamados empregados que, do ponto de vista dos

peões(assim como dos posseiros) se supunha representarem, mais fortemente os

interesses das empresas. Incluíam-se entre os empregados, fundamentalmente os

gerentes e os fiscais. (ESTERCI,1987).

Duas características marcantes da peonagem - referida por Neide Esterci – que

permite atualmente assemelhar peonagem ao trabalho escravo contemporâneo são

endividamento e a coerção reproduzida nessa relação. O endividamento da peonagem

era garantido pelo “ abono”, quantia cedida pelo peão no ato de recrutamento e

despendida por ele fora do local de trabalho(ESTERCI 1987); as despesas de viagem, na

medida que o recrutamento era feito longe dos locais de serviço, eram o outro item que

se incluía nas despesas do trabalhador: referia-se a gastos de transporte, alimentação e

outros(ESTERCI 1987) e o fornecimento, referente a aquisições feitas pelo trabalhador

32 Essa passagem se assemelha as leis regidas no Estado de Goiás citadas anteriormente (lei de

20 de julho de 1882 – página - ) . Contribuindo para que se entenda a relação de subordinação

denominada como peonagem como elemento de freqüente ocorrência na história.

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no período de trabalho em função de sua realização. Dependendo do tipo de contrato

estabelecido com o empreiteiro.( ibidem 1987:146)

[...] o contrato de trabalho “livre” implicava que o empreiteiro assumisse as

despesas de alimentação dos trabalhadores no período de realização da tarefa

contratada, sendo abatidas do saldo somente as despesas “extras” tais como roupas, cigarros e remédios; o contrato de trabalho tipo “cativo‟ implicava

que do saldo devido aos trabalhadores deveria ser abatidas todas as despesas

inclusive aquelas referentes à alimentação e ferramentas de

trabalho.(ESTERCI.1987: 147)

A coerção irá surgir derivada dessas relações. Após a dívida estabelecida sem

esclarecimento prévio de sua criação ela pode ser repassada a um intermediário ( patrão

, dono de pensão, gato). Este então, passa a ser responsável por quitar a dívida ou de

controlar a relação até que esta seja paga. Sendo assim, o endividamento possibilita a

imobilização da mão - de - obra, pois não possui mais o controle da sua força de

trabalho. Apontam para um mecanismo de cerceamento do trabalhador enquanto livre

vendedor de sua força de trabalho, o que caracterizaria a relação tipicamente capitalista.

[...](ESTERCI.1987)

Atualmente, a peonagem como foi referida acima, pode não possuir muitas

distinções entre os segmentos da força de trabalho, e está muito mais fortalecida pela

forma de recrutamento - aliciamento –; e formas de contrato – focados no

endividamento -. Outros termos como bóia- fria, peão de trecho, podem se assemelhar à

peonagem, no entanto, quanto à relação de período, podem se diferenciar.

A opção por trabalho escravo contemporâneo se torna uma opção baseada na

idéia de que o termo peonagem está ligado à caracterização da relação de subordinação

que evidenciava-se na década de 60. Como o peão está inserido em uma forma de

trabalho que não é legal33

, por não possuir garantias, de certa forma, retrata a parte da

33 Até a década de 80. O Estatuto do Trabalhador Rural não considera o trabalho volante em regime de

tarefas por empreitada como uma forma de emprego assalariado, ficando este sistema de trabalho

semproteção legal específica. Disto decorre que os empresários agrícolas ficam liberados dos encargos

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própria visão de como o trabalhador rural se vê e como é visto. Dom Pedro Casaldáliga

no relatório da CPI da terra declarava:

Esse tipo de assalariado, em geral subempregado, arrancado de suas origens

e abandonado a própria sorte, passa a ser reconhecido só com o nome de

“peão”. Reduzido a esta condição, é explorado no trabalho, no barracão. Não tem documentação, nem contrato de trabalho e, por conseqüência, nem

proteção da legislação trabalhista rural, ficando relegado a condição de sub-

homem. Por isto, há o dito popular na região: “peão não é gente...”.

(CASALDÁLIGA.1977:21)

Um outro ponto a ser trabalhado, é o fato da utilização do trabalhador que está

em constante movimentação, em busca de emprego, rodando como um “peão” e

atuando em várias funções o que pode sugerir que algum problema existe no seu local

de origem para que este se submeta ao desenraizamento em busca de novas alternativas.

Além do fato de áreas de expansão serem áreas de atração de mão – de – obra, os

fatores de repulsão geralmente são a miséria e falta de políticas mais aprofundadas

sobre as migrações. Na década de 60 a Amazônia se tornou em “ Terras sem homens

para homens sem terras” e não resolveu o problema agrário para a maioria da

população. Nos anos 80, mais uma vez a tentativa de ocupação de terras “vazias”

promove a ocupação da região do cerrado por pequenos produtores do sul do país.

Em pleno século XXI a expansão da fronteira agrícola continua a atrair os netos

e bisnetos dos miseráveis do Nordeste e dos bolsões de miséria do país. A possibilidade

de ressurgimento de antigas áreas já flagradas com a relação de subordinação permite

que a peonagem, caracterizada pelo recrutamento e pelas formas de contrato se

restabeleçam, porém não há como continuar denominando - a como um evento do

passado, pois se é constante a reestruturação do capitalismo, também será constante as

reestruturações de suas contradições intrínsecas ao sistema.

trabalhistas o que lhes faculta, conseqüente, maiores rendas(BASTOS. MAIA INES e GONZALES

N.ELBIO. 32. o TRABALHO VOLANTE NA AGRICULTURA BRASILEIRA. Capital e Trabalho no

campo.Hucitec. SP.1979)

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2.1.3 - A problemática conceituação do que é o trabalho escravo contemporâneo

É inconcebível que mesmo após a sua abolição formal em 1888 a escravidão

ainda persista no Brasil. Por aqui a escravidão foi responsável pelo processo de

formação do país, e recebeu um dos maiores contingentes de escravos africanos.

Segundo Mariza Soares34

, estima-se 3 milhões e meio de africanos ao longo do século

XVI, XVII e XVIII. Cabendo ao século XVIII um total de 1.700.000 escravos. Nesse

século, o Brasil é o destino das embarcações que saem de duas grandes áreas

fornecedoras: a costa ocidental (conhecida como costa da Mina) que para cá envia em

torno de 600 mil escravos e a costa centro-ocidental (chamada Angola) que transporta,

aproximadamente, 1.100.000 escravos. (SOARES.2000) .

Pensar na possibilidade de uma relação de trabalho similar à escravidão colonial

provoca estranhamento em muitas pessoas da sociedade, ainda que esta mesma

sociedade esteja permeada de práticas sociais de longa duração, como, por exemplo, o

racismo. Algumas questões, como veremos adiante, acabam por problematizar a

compreensão e a formação de um conceito de escravidão contemporânea. Dentre eles

podemos caracterizar aqueles que dizem respeito a um plano conjuntural como:

34 A autora se baseou na obra de Maurício Goulart. A escravidão africana no Brasil: das origens à extinção do tráfico. Prefácio de Sérgio Buarque de Holanda. 38 edição revista. São Paulo. Editora Alfa-Omega. 1975. op. cito p. 279; CURTIN, P. The Atlantic slave trade: a census. Madison. Wisconsin University Press. 1969. p. 268. importante esclarecer que dados mais recentes do que os aqui apresentados têm sido produzidos. Entretanto, são números

parciais, de difícil compatibilização com os totais disponíveis.N o Brasil, o livro de PierreV erger,F luxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos, publicado inicialmente na França, em 1968, fornece novos números sobre o tráfico entre a Bahia e o Golfo do Benim, não incorporados por Curtin. Em 1995, Manolo Florentino lança Em costas negras, uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África (especialmente Angola) e o Rio de Janeiro( séculos X VIII e XIX) que analisa o tráfico entre a África e o Rio de Janeiro entre 1790 e 1835. (SOARES.2000:71)

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A associação a outras formas de escravidão, sendo importante relembrar que

o termo nos remete a outras formas de escravidão como a antiga e a moderna-

colonial. E o imaginário que se tem sobre a escravidão como um sistema que

transformava homens em mercadorias acaba por encobrir relações existentes

no sistema, tal como a forma com que a sociedade se relacionou com esse

evento, criando suas representações, contribuindo para uma idéia sobre a

escravidão que não necessariamente interpreta todas as formas de escravidão

existentes naquele período( como pode ser observado na parte I deste trabalho)

podendo trazer problemas de interpretação quando se pretende realizar um

resgate do termo escravidão nos dias de hoje.

Uma outra questão, a de que a escravidão se extinguiu com a Lei

Áurea, incentiva a idéia de que através da implementação dessa lei e da

afirmação formal do negro como um homem livre, os problemas tenham sido

resolvidos; tornando-se descartadas formas análogas à escravidão. Vale

ressaltar, que o fato da promulgação da lei, não ocasionou uma nova organização dos trabalhadores do campo como também não promoveu o fim

das desigualdades sociais. A falta de apoio do próprio Estado aos recém

libertos, não propondo iniciativas de qualificação, como também a Lei de

Terras, deixa o liberto à deriva. Além disso, as representações sociais que se

faziam sobre o negro como sinônimo de escravo e que pós-abolição apenas

passam a tratar o negro como sinônimo de ex- escravo, favoreceram o

enquadramento deste nas relações de trabalho submetidas ao favor.

E por fim exige atenção na definição do conceito de escravidão

contemporânea por se assemelhar às relações de trabalho no mundo

contemporâneo, que baseadas na superexploração do trabalhador colaboram

para a interpretação da escravidão como metáfora. Por exemplo, os professores

e profissionais de educação física do Rio de Janeiro que têm como piso salarial

sugerido pelo próprio sindicato de R$ 2,31(!)35 e lançam a campanha

“Movimento Contra o Trabalho Escravo nas Academias”36 ou mesmo outros

profissionais que questionam como o mercado trata as suas profissões, como

os médicos. A superexploração do trabalhador somada a precariedade das

formas e relações de trabalho contribuem para que os trabalhadores se

enxerguem como “escravos”, contribuindo para que ocorra uma analogia à escravidão colonial com profissionais assalariados nas grandes cidades. Essa

superexploração do trabalhador não deixa de ser mais uma forma de

exploração do sistema capitalista. No entanto, é diferente do trabalho escravo

contemporâneo que ocorre no campo. A escravidão no campo, possui na

maioria dos casos coerção da liberdade dos empregados por parte dos

empregadores ou de seus dirigentes através de ameaças armadas, retenção de

documentos e endividamento.

35 A passagem de ônibus no Rio de Janeiro custa R$ 2,40.

36 Para saber mais : www.cref1.org.br/img/jornal_cref/Jornal.pdf

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Esses fatores indicam que estamos tratando de um fenômeno extremamente

complexo. E conceituá-lo é ao mesmo tempo aprisioná-lo em um tempo e espaço

atribuídos de diferentes valores sociais.

A caracterização e definição do que é a escravidão contemporânea no campo

brasileiro pode ser problematizada através do ponto de vista estrutural, quando órgãos

públicos, leis e a ciência passam a se preocupar em definir o que é a escravidão

contemporânea.

No meio científico, existe uma maior preocupação com o tema por aqueles que

estudam os direitos humanos, mas ainda é comum encontrar resistência ao termo dentro

da academia. Principalmente, por ser visto como um conceito já estabelecido,

caracterizado sociologicamente, e de certa forma, aprisionado em um tempo-espaço

evitando a utilização do conceito como termo científico e sim como político. A

escravidão contemporânea recebe sinônimos de escravidão- branca37

, escravidão por

dívida ou peonagem. Essa postura, da academia, serve para entender como a

conceituação do que estamos chamando de escravidão contemporânea é estabelecida

dentro de espaços conflitantes38

.

A dificuldade em se aceitar um termo constituído politicamente e empiricamente

colabora para aqueles que não têm interesse na erradicação continuem a negar a

existência da escravidão tal como ela se apresenta.

No meio jurídico, os casos de escravidão contemporânea não contribuem muito

para uma definição mais clara de um conceito ou definição legal para a jurisprudência

sobre qual escravidão estamos tratando. O artigo 149 da CLT vem sendo retificado, com

esse objetivo, mas infelizmente a realidade pode não se ajustar à exata forma da lei.

37 Dicionário da Terra. Marcia Motta.2005

38 Uma certa vez, foi demandado para o sociólogo José de Souza Martins, que acompanhava o trabalho da

CPT por muitos anos e por ter se deparado com o problema em muitos casos após sua vivencia em

estudos na Amazônia, uma definição da escravidão contemporânea. Este preferiu não se responsabilizar

pela definição e apontou os muitos problemas os quais citados anteriormente por este trabalho.

Apontando o compromisso em aprisionar o tema, ao mesmo tempo esquivou-se de uma afirmação dentro

da academia da escravidão contemporânea no Brasil.

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Trabalho degradante não pode ser tratado como sinônimo de escravidão, por mais que

essas situações estejam agregadas. Infelizmente é tratado com normalidade a

degradação do trabalho na sociedade capitalista ( falta de infra-esturtura, alimentação,

materiais de equipamentos precários, trabalho sem garantias) que temos que diferenciá-

la de uma pior forma de submissão que não permite nem o direito de ir e vir do

trabalhador.

Uma outra dificuldade na área do direito é o embate sobre qual instância possui

autoridade sobre os casos, principalmente pelo fato de muito dos casos serem

combinados com outros tipos de infração, como crimes ambientais, desrespeito

trabalhista, homicídios. Como exemplos serão apresentados dois casos do ano de 1985:

Caso 1 - Município Macondo: Mato Grosso

Denúncias foram feitas contra a exploração de peões na fazenda, burla da

legislação trabalhista e crimes contra a pessoa. Dois trabalhadores foram

mortos ao fugir da fazenda onde eram aliciados. João e Francisco, esse

último menor de idade, foram mortos com tiros na cabeça por pistoleiros

empregados na fazenda [...]. Os corpos ficariam insepultos. Eles estavam

com malária há dias e não tinham como se tratar no local, além de deverem

na cantina, onde compravam mantimentos por preços acima do mercado. O

Juiz Federal de Belém, indeferiu o pedido de prisão preventiva dos três homens acusados. Há um processo criminal em andamento na Justiça

Federal de[...]. (indeferido pedido de prisão:paraupebas. O Liberal, Belém, 3

de maio 1985.)

Caso 2 – Município X – Pará

João, 29 anos, [...] largou a mulher e dois filhos em Crato, no Estado do

Ceará e veio aventurar-se em busca de trabalho em fazendas. Foi contratado

com boas promessas de dinheiro por alqueire desmatado, mas, após meses

sem receber, resolveu fugir da fazenda, onde era espancado com facão e

trabalhava de domingo a domingo, alimentava-se parcamente de arroz,

feijão e farinha, era constantemente espancado e ameaçado de morte. Sua

fuga se deu sob tiros de revólveres dos jagunços que policiavam a fazenda.

Embrenhando-se na mata, conseguiu chegar até a Transamazônica e foi

ajudado por um caminhoneiro. Analfabeto e sem nenhum documento, João pediu ajuda para voltar para o Ceará. (Trabalhador surrado denuncia

escravidão. O Liberal, Belém, 6 de setembro de 1985).

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Nos casos acima podemos observar a existência de outros crimes relacionados à

escravidão contemporânea, ocasionando uma maior complexidade na caracterização e

até na própria execução das leis. Um outro problema é o fato das relações entre patrões

e empregados estarem inseridas em uma dinâmica que muitas das vezes favorece a

manutenção do crime devido à insegurança dos empregados de darem seus

depoimentos, como o caso apresentado por Neide Esterci em Escravos da Desigualdade.

A autora apresenta casos em que em um primeiro momento os trabalhadores

confirmaram condições de miséria e precariedade nas condições de trabalho e num

segundo momento, mesmo após feita a denúncia e aberto o processo, os trabalhadores

voltaram atrás no seu depoimento para não desgastar a relação com o empregador para o

qual já trabalhavam por algum tempo.

2.1.4.- Definição, afirmação e confronto.

O ato de definir o que é a escravidão contemporânea envolve portanto diferentes

vertentes. Para aqueles que têm a consciência de que a escravidão não terminou após a

abolição, a luta para a erradicação se torna um objetivo, enquanto que para outra parte

da mesma sociedade é muito comum, a negação da escravidão contemporânea pela

possibilidade de caracterização e posterior punição econômica e moral, que pode vir a

trazer a substituição nas relações de poder de que participam.

Em 2007, após o resgate de mais de 106439

(um mil e sessenta e quatro)

trabalhadores na fazenda Pagrisa40

em Ulionópolis, no Pará, alguns parlamentares

promoveram a desqualificação da atividade do Grupo Especial de Fiscalização Móvel ,

39 Nos jornais as notícias traziam 1108 trabalhadores

40 A empresa Pagrisa foi multada em R$1.8 milhões somente com as recisões, superando R$ 600 mil por

desrespeito trabalhista. Segundo a ONG Repórter Brasil.(2007) Resgatados da Pagrisa Relatam vida na

“Prisão”. http://www.reporterbrasil.com.br.

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resultando na paralisação (cerca de 20 dias) das atividades do Grupo Móvel. Essa ação

levantou novamente no Senado a discussão, evitada pela bancada ruralista, sobre a

aprovação da Proposta de Emenda Constitucional - PEC 438/2001, que prevê a

expropriação de propriedades onde forem encontrados Trabalho Escravo, que precisou

retornar ao Senado, pois sofreu modificações após a votação em primeiro turno de 2004

, pela Câmera Federal. A PEC 438 foi apresentada pela primeira vez em 1995 pelo

deputado Paulo Rocha(PT – PA) na Câmara dos Deputados, posteriormente o senador

Ademir Andrade(PSB-PA) a apresentou para o Senado em 1999. Após dois anos

recebeu a primeira aprovação no Senado Federal em 2001 sem nenhum voto contra. No

mesmo ano a proposta do deputado e do senador se transformaram na PEC 438/2001,

esta permaneceu até 2004 estagnada na Câmara dos Deputados, sendo aprovada41

em

primeiro turno após o assassinato de três auditores fiscais do Ministério do Trabalho e

Emprego, em Unaí(MG), em uma fiscalização. A PEC /438-2001 é considerada pelos

órgãos governamentais, sociedade civil e movimentos sociais como um dos principais

instrumentos para a coibir a escravidão contemporânea. Com a finalidade de protestar o

direito de propriedade através da expropriação e não da desapropriação a PEC resgata a

discussão sobre a propriedade da terra e sua função social entrando em confronto com a

bancada ruralista. Os deputados representantes da bancada ruralista propuseram a

adição da expropriação de imóveis urbanos ao texto da PEC 438/2001, desfocando- o do

campo e do problema da concentração de terra e diluindo o problema em outras

situações que podem possuir maior dificuldade de caracterização devido à terceirização

e precariedade nas relações de trabalho. Essa proposta de mudança no texto fez com que

novamente a PEC voltasse à votação no Senado.

Segundo levantamento da ONG Repórter Brasil, em março de 2008, havia 16

projetos de lei relacionados ao tema tramitando no Senado(7) e na Câmara(9),

estagnados há mais de dois anos. Beatriz Camargo e Iberê Thenório(2008) apontam

que:

41 Sim: 326; Não: 10; Abstenções: 8; Total: 345. 18 votos a mais do que o necessário. Ementas

constitucionais exigem a anuência de 3/5 do total de 513 deputados federais(observatório social.org.br)

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A mais antiga das propostas em tramitação é de 1997, de autoria de Paulo

Rocha (PT-PA). O PL inclui na definição de trabalho escravo - descrito no

Art. 149 do Código Penal - a exploração de mão-de-obra infantil. Está

parado desde 2003 na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado.

Outros três PLs que tratam do assunto também estão na mesma CCJ.[...]Na

Câmara, há cinco projetos atualmente na Comissão de Constituição e Justiça

e de Cidadania (CCJC). Três deles estão empacados desde 2004. O

presidente da comissão em 2007 foi o deputado Leonardo Picciani (PMDB-

RJ), sócio da empresa Agrovás, que já esteve na "lista suja" do trabalho escravo. Na semana passada, a CCJC escolheu um novo presidente: Eduardo

Cunha (PMDB-RJ).(THENÓRIO.I e CAMARGO.B.2008)

Em 2008, a sociedade civil e parlamentares criam o Movimento Nacional pela

Aprovação da PEC do Trabalho Escravo principalmente após o caso Pagrisa, citado

anteriormente. A proposta é levá-la à votação novamente, já que estrategicamente esta é

a proposta mais avançada e incentiva a reforma da estrutura fundiária no Brasil.

De tal forma que definir o que é a escravidão contemporânea é ao mesmo tempo,

denunciar relações estabelecidas pós- abolição e lutar contra relações de poder

constituídas entre trabalhadores e patrões.

Para analisar como essas relações foram feitas ao longo da história do país

podemos citar como exemplo o caso da lei estadual em Goiás de 20 de julho de 1892,

sobre locação de serviços sancionada pelo vice-presidente do Estado, tenente-coronel

Antonio José Caiado42

citados por Sérgio Moreyra(1999).

O artigo 9° da lei continha a seguinte descrição:

Findo o tempo estipulado[pelo contrato] o locador, ainda que esteja devendo

ao locatário, poderá despedir-se pagando a dívida; não o fazendo, será

obrigado a continuar a servir o locatário por tanto tempo, nunca mais de

três anos, quanto seja necessário para pagá-las com duas terças partes do

salário estipulado, sendo-lhe entregue mensalmente a outra parte

42 A família Caiado representando a elite latifundiária, desde já, anunciava sua proposta política que

infelizmente co-habitam na vida política brasileira até os dias atuais.

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O artigo 10 estabelecia que as contas correntes deviam ser registradas em

livro próprio pelo fazendeiro, que ficava obrigado a exibi-lo em juízo

quando o trabalhador reclamasse.

- O art. 11 estabelecia que no final do contrato o fazendeiro deveria passar(ou

não passar) atestado de idoneidade ao trabalhador informando como

trabalhou e se ainda devia. Neste caso, se alguém se interessasse em contratá-

lo ficaria obrigado a pagar a dívida, sob pena de nulidade do novo contrato.

-art. 18 autorizavam o locador a despedir o locatário por doença prolongada

que o impedisse de trabalhar;(Algo muito comum visto nos depoimentos

dos trabalhadores tratando-o assim como algo descartável – grifos meus)

- art. 44 prescrevia de 10 a 20 dias de cadeia para quem saísse da propriedade

sem motivo justo ou se recusasse a trabalhar . O artigo seguinte estabelecia a

duplicação em caso de reincidência;

- e o art. 49, determinava que os que impedissem os outros trabalhadores de

trabalhar seriam presos e remetidos ao juiz distrital para serem processados

criminalmente.

Neste caso, mesmo após a abolição, se sobrepôs os códigos e leis federais

regularizando uma relação comercial entre contratantes (locador e locatário), que

deveria ser registrada cartorialmente. Trazia disperso em seu texto os elementos

fundamentais para a legalização das relações de sobreexploração definidas e

consolidadas ao longo de mais um século de trato entre agregados e camaradas.

Essas medidas perpetuaram -se até 1930 mesmo com a entrada do novo governo

e com muitos protestos da elite política local, comprovando a normalidade com o qual a

exploração do trabalhador era tratada pelo Estado.

Ao tentar entender o que cerca a dificuldade de definição sobre a conceituação

da escravidão contemporânea, se torna inevitável procurar entender algumas relações de

poder que ainda estão presente na estrutura agrária brasileira. O patrimonialismo

configurado através da política dos “coronéis” acentua uma estrutura de poder com a

qual a definição e a conceituação sobre o que é escravidão se confrontam, sendo

inevitável comentar a relação de trabalho existente por muito tempo na história do país,

marcada pela política dos Coronéis.

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A política dos “coronéis” surge com a criação da Guarda Nacional. Para

Martins(1990):

[...] É na República que a Guarda Nacional acabou tendo um papel essencial.

Seus integrantes eram graduados segundo uma hierarquia militar sendo

denominados “coronéis”, “majores”, “capitães.etc. Os Chefes políticos municipais ou regionais acabaram sendo conhecidos como “coronéis” e o

fenômeno político que marcaram com sua presença ficou conhecido como

coronelismo. O coronelismo se caracterizou pelo rígido controle dos chefes

políticos sobre os votos do eleitorado, constituindo os “ currais eleitorais” e

produzindo o chamado “voto cabresto”. Isto é, o eleitor e o seu voto ficavam

sob tutela dos coronéis, que eles dispunham como coisa sua.

(Martins.1990.46)

Criada em 1831, era através do valor da renda anual que a Guarda Nacional

nomeava seus representantes (200 mil réis nas grandes cidades e 100 mil reis nas

cidades menores), tal como a escolha de chefes políticos municipais, que só garantiam o

poder de voto aos que recebessem 100 mil-réis.43

A Guarda Nacional possuí um forte

caráter de controle local, pois a cada município possuí um regimento. Seus oficiais, não

podiam ser presos nos cárceres comuns, apenas sob custódia, na chamada “sala livre” da

cadeia pública da localidade a qual pertenciam.

Durante quase um século, em cada um dos nossos municípios existia um

regimento da Guarda Nacional. O posto de “coronel” era geralmente

concedido ao chefe político da comuna. Ele e os outros oficiais, uma vez

inteirados das respectivas nomeações, tratavam logo de obter as patentes,

pagando-lhes os emolumentos e averbações, para que pudessem elas produzir

os seus efeitos legais [...] Eram, de ordinário,os mais opulentos fazendeiros ou

os comerciantes e industriais mais abastados , os que exerciam, em cada

município, o comando-em–chefe da Guarda Nacional, ao mesmo tempo que a

direção política, quase ditatorial, senão patriarcal, que lhes confiava o governo

provincial” (MAGALHAES Apud LEAL,1975.p.21)

43 Para saber

mais:ww.tse.gov.br/institucional/biblioteca/site_novo/historia_das_eleicoes/capitulos/eleicoes_brasil/eleic

oes.htm. Acesso em out 2008

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Ademais, mesmo com a extinção da Guarda Nacional em 1918 Basílio

Magalhães complementa “ mas o sistema ficou arraigado de tal modo na mentalidade

sertaneja, que até hoje recebem popularmente o tratamento de “coronéis” os que tem em

mãos o bastão de comando da política edilícia ou os chefes de partido de maior

influência na comuna” (MAGALHAES,Apud LEAL,1949.p.21).

Victor Leal sintetiza:

[...] concebemos o “coronelismo” como resultado da superposição de formas

desenvolvidas do regime representativo a uma estrutura econômica e social

inadequada. Não é, pois, mera sobrevivência do poder privado, ou seja, uma

adaptação em virtude da qual resíduos do nosso antigo e exorbitante poder

privado têm conseguido coexistir com um regime político de extensa base

representativa.

Por isso mesmo, o “coronelismo” é sobretudo um compromisso, uma troca de

proveitos entre o poder público, progressivamente fortalecido, e a decadente

influência social dos chefes locais, notadamente dos senhores de terras. Não

é possível, pois, compreender o fenômeno sem referência a nossa estrutura

agrária, que fornece a base de sustentação das manifestações de poder

privado ainda tão visíveis no interior do Brasil.( LEAL,1975:20)

Victor Leal(1975) complementa que era através da concessão de financiamentos

públicos que os coronéis conseguiam prestígios ante a população, que passava a ter por

referência a pessoa do coronel como detentor de poder financeiro, promovendo o

reconhecimento pelos moradores (sem crédito e serviços básicos), na esfera municipal,

assistindo à população rural nos seus mais íntimos problemas, preenchendo a ausência

do Estado no que se refere ao necessário para a manutenção da produção agrícola e da

família, gerando assim, um forte paternalismo.

Uma outra faceta mencionada pelo mesmo autor é o aproveitamento da

desordem municipal. Os “coronéis” tirvam proveito para agregar técnicos, funcionários,

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quando lhes eram concedidos cargos públicos. Transitando assim entre o legal e o ilegal

os chefes políticos aumentava o controle dos territórios, estendiam também o seu

controle às funções policiais, utilizando seus agregados - “capangas” - para imprimir a

ordem e promoviam assim a apropriação do espaço através da violência. É através do

uso do território que se estabelecem as relações de poder, sendo assim, os coronéis são a

tradução de como o poder privado se estabelece como coisa pública, sem deixar de ser

concebido como algo privado.

Com base nessa estrutura política de base municipal, passaram-se vinte anos de

ditadura marcados por extremos momentos de violência, repressão e censura. Não

contribuindo para que muito dos problemas sociais como a escravidão contemporânea

fossem resolvidos, e pelo contrário, fossem tratados com naturalidade.

Ao tentar entender as relações de poder estabelecidas é inevitável analisar

através da política de ocupação e uso da Amazônia. O período de desenvolvimento da

Amazônia durante a ditadura promoveu um intenso reordenamento da região. A

transformação espacial feita pelo governo militar através dos Planos de Integração

Nacional reorganizaram o território brasileiro, através de propostas de ocupação daquilo

que chamavam de “vazio”44

, principalmente as regiões, Norte e Centro-Oeste, atraindo

o capital nacional e internacional através dos incentivos fiscais.

A continuação do coronelismo pelo governo militar marcava seu território

através dos projetos de desenvolvimento da Amazônia e dava nome a suas conquistas. A

geografia do coronelismo na Amazônia promovia a emancipação de alguns municípios

como Curionópolis (Major Curíó, envolvido na Guerrilha do Araguaia e que controlava

a mineração na região), Altamira(o maior município do mundo);Bannach( nome de uma

família que possuía uma serraria, pioneira na Região); Abel Figueiredo(1964);

Medicilândia (devido ao Presidente militar daquele período); Como também marcada

pela própria violência o Município de Tailândia45

, comparada com a luta pela terra na

Tailândia, país asiático que vivenciava um conflito próximo ao que estava ocorrendo no

período de 1977 na região.

44 A região possuía grande parte da população indígena, como outras comunidades de camponeses.

45 http://www.famep.com.br/famep/municipio/historia.asp?iIdMun=100115131.

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Se essa ocupação e controle do território foi marcada realmente pela esfera

municipal, seria interessante entender o aumento do número de municípios nessa região.

Em 1985 o Brasil possuía 4116 municípios em 2006 eram 5564, crescendo 35%

segundo a pesquisa do perfil de municípios Brasileiros realizadas pelo IBGE em 200146

.

Na região Norte observa-se um aumento de 84% no número de municípios,

considerados os casos da implementação do Estado de Tocantins e a separação do Mato

Grosso.

Não se pode deixar de considerar que o controle sobre o território também se faz

através da demarcação de áreas em que o poder possa estar ameaçado. Entendendo o

território como um conjunto das relações sociais, seria preciso uma pesquisa muito mais

aprofundada para mostrar o interesse nas emancipações municipais existentes nessas

regiões, para entender se as bases municipais estão conectadas com a violência exercida

através da escravidão contemporânea. No entanto, é essa região que coincidentemente é

conhecida pela impunidade e violência com a natureza e seus trabalhadores.

A conscientização da população quanto aos problemas no campo, fundados no

percurso histórico do país, que até então não possibilitou formas democráticas de acesso

à terra, provoca uma mobilização da cidade e do campo, transparecendo assim, em

várias esferas, que o país tinha se definhado em problemas sociais. Para não pensar que

com o fim da ditadura o problema do coronelismo se estancou vale lembrar que no ano

de 1985 surge a União Democrática Rural (UDR) preocupada em defender a

propriedade privada em resposta ao I Plano Nacional de Reforma Agrária. Ao articular-

se no Congresso Nacional, ganhou espaço na Constituinte de 1988 e nas eleições de

1989. Na década de 90, já se configura a política neoliberal, que através do discurso da

democracia elege seus “ novos coronéis”.

Os responsáveis pela escravidão de hoje não possuem o mesmo perfil da década

de 50. Não necessariamente terão o perfil de morador do meio rural, possivelmente

moram em grandes cidades, como São Paulo, Rio de Janeiro, Cuiabá. Utilizam-se de

meios de comunicação e de produção modernos, e até possuem nível superior, alguns

possuem identidade política na região. Segundo a pesquisa em andamento, realizada por

46 http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/12112003munic2001html.shtm. Consultado em outubro 2008

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Regina Bruno47

“Perfil dos empregadores envolvidos com o trabalho escravo

contemporâneo”, estudando os agentes envolvidos na “lista suja”, a maioria dos

fazendeiros envolvidos circulam pelo país administrando seus negócios e moram no

Sudeste. Outro fato relevante foi a visão dos fazendeiros sobre a legislação trabalhista

apontando que “a legislação acabou com a amizade entre o patrão e o empregado”

O trabalho de Victor Leal teve sua primeira publicação em 1949 e infelizmente

essa realidade ainda se torna presente. Vale ressaltar, que alguns aspectos principais

sobre o trabalho escravo fazem parte de problemas estruturais de alguns países. No

Brasil, onde o patrimonialismo das relações sociais e de poder conforma relações

íntimas entre o poder privado e o que seria o poder público, torna-se extremamente

complexo avaliar as ações deste setor, por não se tratar apenas de uma questão de

antigos coronelismos sendo revisitados, mas do uso da política pública para

beneficiamento pessoal ou de corporações.

A bancada ruralista não é a única que atua contra a luta dos trabalhadores. Uma

antiga organização católica48

intitulada Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição,

Família e Propriedade (TFP) lançou em 2004, após o assassinato dos fiscais do

Ministério do Trabalho, o livro: “Trabalho Escravo, nova arma contra a sociedade”.

Nesse trabalho os membros da TFP, chamam a atenção para o absurdo da

implementação da PEC 438, que ganhou força na mídia para ser aprovada, após a

violência cometida contra os fiscais. O trabalho passou a fazer parte da coleção “Em

defesa do Agronegócio” dentro da campanha organizada pela mesma entidade. Essa

organização acusa a CPT e o MST de fazerem perseguição à propriedade, com as

notícias de escravidão contemporânea com o fim de alimentar a Reforma Agrária, cujo

tema é condenado pelos membros da TFP desde a formação da organização. Atualmente

possuem uma Comissão de Estudos Agrários onde elaboram materiais que condenam

qualquer medida que ameace o direito de propriedade.

47 Informação adquirida na Reunião Científica sobre trabalho escravo e questões correlatas.RJ 2008.

48 A sociedade formada em 1960 se diz católica, porém faz restrições ao Concílio do Vaticano II. A

CNBB, reage com estranhamento as suas ações. A organização também tem como marco a luta contra o

comunismo e a defesa da propriedade. Após a morte de seu fundador Plínio Correia de Oliveira em 1995,

dessidentes da antiga direção formaram novas correntes, mas não deixou de existir.

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Em artigo publicado pela Conferência Internacional sobre Reforma Agrária e

Desenvolvimento Rural49

, os membros da TFP elaboraram um documento onde

descreviam as ciladas sobre o discurso do trabalho escravo. Primeiramente provocam o

leitor a pensar que o fantasma da escravidão, foi ressuscitado pelos movimentos sociais

e pela mídia de forma completamente descabida, apresentando que “Na verdade, trata-

se de novo golpe contra a propriedade privada e que ameaça efetivar-se através de

reforma da Constituição, fundamentada numa noção ambígua de “trabalho escravo”

(BARRETO.2006:2). Parte do mesmo documento é a desqualificação do trabalho

daqueles que procuram reconhecer o tema:

Em pleno Século XXI, assistimos a uma cena inversa. O Brasil, através de um

embaixador, foi o primeiro e único país a reconhecer, em reunião oficial da

ONU, a existência de “formas contemporâneas de escravidão”. Uma vergonha

anunciada e proclamada no fórum internacional. Espanto geral. Nem os países

africanos que ainda tem a escravidão legalizada fazem dela tal alarde. Muito

menos a China e os países comunistas, que mantêm os trabalhadores do povo

em regime forçado, reconhecem- no como escravidão! Coube o governo

brasileiro fazer mais essa propaganda negativa.(BARRETO.2006:2)(grifos

meus)

De acordo com o trecho, logo se percebe que o discurso se faz sobre a

preocupação de uma propaganda negativa para o Brasil, conforme o título do trabalho:

“O fantasma do trabalho escravo, novo Risco Brasil”. Esta expressão “Risco Brasil” ou

“Risco País” é uma expressão utilizada pelos jornalistas e economistas para indicar os

riscos de investimento em determinado país50

. Sendo assim, destacamos que o

49 Conferencia organizada por instituições internacionais(com apoio da FAO e do Governo Brasileiro).

http://www.icarrd.org.

50 “ O risco-país foi criado em 1992, pelo banco JP Morgan. Nos anos 90, alguns países emergentes

começaram a ser possibilidades de investimento e, para o investidor, era difícil avaliar quais eram as

opções menos “perigosas” do mercado global. Nesse cenário, o risco-país foi criado para servir como

medida e tornar possível a comparação entre os países.Ligia Guimarães 04/07 - 14h22 - Atualizado em

09/04/07 - 19h44 http://g1.globo.com/Noticias/Economia_Negocios/

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reconhecimento da escravidão contemporânea no Brasil recebeu apoio internacional, na

luta pelos Direitos Humanos, como também, antecipou os planos de ação para sua

erradicação.

Uma outra concepção embutida no trecho acima que causa perturbação para

quem lê, é quando a TFP se refere à omissão quanto ao trabalho escravo nos países

africanos, como se pudesse justificar a ausência de alarde pelo fato de estarem na

África, continente historicamente dominado, controlado e violado, definindo que a

entidade supracitada se preocupa mais com os direitos de propriedade que os Direitos

Humanos, o que contraría, a meu ver, os princípios postulados pela igreja católica.

O documento segue apresentando argumentos, demonstrando que a luta dos

movimentos sociais atrapalham o Brasil que “dá certo”, onde as armadilhas se

concentrariam na interpretação das leis trabalhistas que estariam desatualizadas:

Nas relações de trabalho, seja ele urbano ou rural, existem situações não

previstas na legislação, mas que não configuram injustiça. No campo, por

exemplo, a sazonalidade exige quase sempre mão-de-obra temporária.

Assumidas as condições de trabalho entre patrão e empregado, tais situações não deveriam levantar celeuma, em servir de pretexto à luta de classes. No

máximo, dever-se ia atuar para evitar abusos, sempre possíveis – aliás, de

ambas as partes – onde quer que haja relações humanas.

[...] O mesmo trabalho informal sempre existiu no campo. A CLT, elaborada

para servir primordialmente as relações de trabalho urbano, além de

ultrapassada é inadequada ao campo, não levando em consideração diferenças

regionais, como a existentes nas fronteiras agrícolas, nos territórios

indígenas, nas populações ribeirinhas da Amazônia, em zonas densamente

povoadas ou em fase de desbravamento. Nada disso está previsto na CLT.

Mas os ativistas de esquerda se aproveitam dos erros e da inadequação de

nossa legislação ao meio rural, para qualificar o trabalho informal de “trabalho

escravo”.(grifos meus)(referencia)

Curiosamente as áreas grifadas a qual o autor se refere são as áreas onde se

concentram o maior número de trabalhadores encontrados nesta situação. O fato de

existir uma nova exploração na área, não justifica o emprego ilegal dos trabalhadores,

nem a violação dos direitos humanos. O princípio é não acreditar que em determinadas

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regiões se aceite formas de trabalho ilegais, mas sim conceber a existência da

regulamentação das situações de relações de trabalho antigas e atuais, sem contarmos o

fato em que o arcaísmo na relação de trabalho, imposto nessas regiões, contradiz

argumentos existentes numa CLT defasada(1943). Entretanto, o que mais chama a

atenção no discurso proferido pelo membro da FTP é a análise feita sobre o que vem

sendo chamado de escravidão o que observa-se em quatro pontos sendo: A falta da

carteira de trabalho assinada: aponta que a legislação trabalhista dificulta e onera a

formalização de emprego; A falta de carteira de trabalho assinada é muito comum entre

os trabalhadores que não possuem sequer, um documento de identificação. Segundo

pesquisa realizada pelo jornal O Globo51

baseadas nos dados do IBGE, em 2005, 21.6%

dos nascidos vivos em 2003 não foram registrados. Por lei o registro de nascimento é

gratuito desde 1997, quem não tem registro não pode tirar identidade, CPF e nem

carteira de trabalho, não vota e não tem conta em banco. Sendo alto o número de sub-

registros(pessoas que se registram muito tempo depois de nascidas). A taxa do Brasil é

de 22.5%, nos países industrializados, 2%, na África subsaariana 55%, na América

Latina 14%. Essas pessoas não registradas são facilmente alvos do tráfico humano e do

trabalho escravo.

Quando possuem documentos, é comum ocorrer casos em que a retenção das

carteiras de trabalho se transforma no meio de controlar o trabalhador, como se vê nos

relatórios a seguir:

Piauí.1993

Um grupo de 40 trabalhadores rurais, fogem da fazenda, eles denunciam que

as condições de trabalho são precárias e o salário recebido não dava para

pagar a estadia no barracão. A empresa prendeu seus documentos e a fuga só

foi possível a noite por ter segurança na empresa que os impedem de sair. &

Piauí - Diário do Povo, 27/08/93

Mato Grosso .1995

51 O Globo, O país, o Brasileiro sem nome. 29, de maio de 2005

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[...]O advogado do proprietário da Fazenda faz contato telefônico com o STR

de Vila Rica, mostrando disposição em pagar os direitos trabalhistas.

Os peões aguardam o fazendeiro na sede do STR para o acerto. A maioria não

tem documentos e todos estão sem dinheiro ate' mesmo para comer. &

Requerimento de liberdade provisória mediante arbitramento de fiança, São

Felix do Araguaia, 24/07/95; Folha do Estado 25/07/95.7

Um segundo ponto seria o aliciamento de trabalhadores em outros estados:

comenta o fato da migração ser indispensável para o progresso do país. “Trata- se de

uma troca amistosa de bons ofícios entre patrões e empregados, que acaba

beneficiando o país”(2006:5). A migração no Brasil é historicamente um agente de

constituição do território. Essa ação sempre se relacionou com a força de trabalho. Os

períodos migratórios no Brasil denunciam, portanto, a necessidade de emprego em

regiões que sempre funcionaram como pólo de repulsão. Como bem lembra

Figueira(2004):

A migração é temporária ou não, individual, familiar, ou coletiva; é

conseqüência de uma ação política governamental deliberada de longa duração

ou pode ser ocasionada por fatos imprevistos e fulminantes. No caso que

estudamos, a migração se faz pela ação combinada de atos e fatos imprevistos, como a seca, e programados, como as decisões de uma política traçada pelos

governos militares e civis, tanto em relação ao Nordeste quanto ao Norte e

Centro –Oeste do Brasil. Mas há também razoes pessoais e familiares.

(FIGUEIRA.2004:102)

[...]Uma pesquisa realizada para a OIT, pela agente de pastoral da CPT Ana de

Souza e pela antropóloga Maria Antonieta Vieira, confirma a regra de que

aquele que é levado para as fazendas do sul e do sudeste do Pará para as

atividades de empreita vem majoritariamente de fora do município ou do

próprio estado onde trabalha. Dizem as autoras que, conforme os dados

disponíveis em 16 relatórios de operações realizadas pelo GEFM entre 1997 e

2002, “ a maioria absoluta é migrante(91,5%) apenas 8.5% são naturais do

estado do Pará.( FIGUEIRA 2004:111)

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Outro ponto destacado por Figueira(2004) é a condição de “estrangeiro” do

migrante, que por não possuir laços profundos com a região é facilmente submetido a

condições degradantes. Neste caso os trabalhadores recrutados em outros estados são

alimentados pela possibilidade de mudança de vida, que infelizmente não existe.

Exemplificando :

[...] Augusto e Francisco, ambos de 19 anos, fogem de Fazenda Cobral e

denunciam trabalho escravo na Delegacia Regional do Trabalho, em Cuiabá'.

Os trabalhadores foram aliciados em Jangada, MT, e iludidos com boas

propostas. Ao chegarem na fazenda, o trabalho era muito mais pesado do que o

combinado e os trabalhadores submetidos a espancamentos diários.

Mato Grosso - Dia'rio de Cuiabá' 15/08/91.

Dessa forma, podemos até denominar a migração como um dos fatores que

caracterizam a escravidão contemporânea.

Um terceiro fator seria o não pagamento de salário ou servidão por dívidas:

esse argumento é combatido pela organização que salienta que o Ministério confunde o

adiantamento dado pelo serviço que será prestado e que tal ação sempre fez parte das

relações de trabalho. No entanto, é constante a denúncia dos trabalhadores, de casos em

que o salário é retido ou subtraído dos possíveis “adiantamentos”, sugerido pelos

patrões, em geral para compra de alimentos básicos, remédios, equipamentos de

proteção para o trabalho e de construção de barracões(alojamentos), como demonstram

os exemplos a seguir:

Rio de Janeiro, 1999.

[...]36 trabalhadores que eram coagidos a permanecer no local, trabalhando no

corte de cana.

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82

Eles foram aliciados em Brasília de Minas, sertão de Minas Gerais, com a

promessa de um salário de R$ 600,00 por mês . Chegando à fazenda, o salário

era menos da metade do combinado, e eram coagidos a permanecer

trabalhando.

O trabalhador52 de, 23 anos, conta que no final de 30 dias recebeu como

pagamento R$ 0,18. Descontaram-lhe dez dias que não trabalhou por estar

doente, e cortaram também a comida.(Banco de dados CPT)

Pará, 1998.

A Delegacia de Polícia Federal de Marabá realiza, no período de 19 a

21/08/1998, fiscalização na Fazenda, onde constata-se 33 trabalhadores em condições precárias de vida, saúde e trabalho. Alojados em barracas de lona

plástica e palha, sem as mínimas condições de higiene.Sem local adequado

para preparo e consumo de alimentos. A água para beber é a mesma que o

gado toma. Sem instalações sanitárias. É constatada a presença de três grupos

de empregados, que desenvolvem a atividade de roço de juquira, sob as ordens

dos seguintes "gatos"(...)

Os trabalhadores hospedam-se em hotéis na cidade de Xinguara/PA onde são

recrutados pelos "gatos", que assumem as dívidas do hotel em troca de

trabalho, começando a desencadear uma rede de dívidas que não acabam

nunca.

O intermediário de mão-de-obra Aureliano, ameaçava, armado de "espingarda

calibre 20", de agressão e morte quem ousasse tentar fugir. São lavrados 3

autos de infração, bem como, os termos de interdição. Relatório de

Fiscalização 21/08/1998

A Província do Pará 03/09, 05/09/1998. Diário do Pará 04/09/1998. O

Liberal/PA 06/09/1998

Pará 1997

[...] Segundo a secretaria de Fiscalização do Ministério, Ruth Beatriz Vilela,

os peões trabalhavam por "endividamento", isto e' pegavam mantimentos no

armazém da fazenda e pagavam com trabalho. "Este tipo de dívida não tem

fim. Você trabalha, trabalha, e a di'vida vai crescendo". Constatou-se

condições degradantes de trabalho na fazenda, descumprimento generalizado

da legislação trabalhista e vigilantes armados para tomar conta das pessoas.

Os fiscais do ministério encontraram na fazenda os chamados "cadernos de

di'vida", controle das di'vidas dos trabalhadores feito pelos gatos. A

operação de retirada dos trabalhadores foi bastante tensa devido a presença de

52 Referencias pessoais contidas

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83

pistoleiros armados. Ministério do Trabalho, Operação São Félix do Xingu,

volume I, setembro/97; FSP 10/09/97.( Banco de dados CPT)

O quarto e último ponto seria o impedimento do direito de ir e vir: chamam a

atenção para não confundir o crime de cárcere privado com as circunstâncias de regiões

ou lugares de difícil acesso. A situação geográfica da região pode vir a favorecer a ser

mais um obstáculo na resistência dos trabalhadores, porém, não é a determinação

natural que coibe o trabalhador, mas a presença constante de guardas armados; a

violência feita aos trabalhadores como espécie de demonstração dos tipos de repressão e

até o endividamento como forma de coerção, é que fará o controle dos corpos.

Mato Grosso, 1995.(...) Depoimentos prestados por peões confirmam as

denúncias: "...que ninguém'm podia sair de lá pois eram proibidos pelos três

(Josué, João e Elias), pois para sair teria que enfrentar as suas armas e ninguém

queria levar o primeiro tiro, que quando estava indo para a fazenda viu e ouviu

Antonio comentar que haviam fugido alguns homens, que para trazê-los de

volta pagava R$ 500,00 por cabeça(...)"ninguém podia sair daquela fazenda a não ser depois que acabasse o serviço, ficando todos com medo devido `as

ameaças de espancamento" (...) "que tudo que era consumido pelas pessoas

que lá estavam trabalhando, tinha que ser pago, e com isso aumentava o saldo

negativo, motivo pelo qual todo mundo devia para o gato e o gato não devia

nada pra ninguém " (...) " que durante todo o tempo em que esteve naquela

fazenda, nunca lhe foi permitido sair daquele local" (...) "que durante o tempo

em que esteve lá não conheceu ninguém que tivesse recebido qualquer quantia

em dinheiro do gato

Mato Grosso,1990.

Um trabalhador, junto com mais 3 companheiros, foge da fazenda, por volta

das 11 da noite. Na fuga, passam nas fazendas Luz e, onde recebem guarita.

Os pistoleiros continuam o tempo todo atrás dos fugitivos, que ficam "oito dias

perdidos se alimentando de palmito de açaí'". Na fuga, um trabalhador se perde

dos demais companheiros, e caminha muitos dias mais ate' chegar a Sao Jose'

do Xingu.São Jose' do Xingu, 06/04/90.

Rondônia,1994.

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Segundo a fonte policial, os pistoleiros não precisavam de muito trabalho para

impedir fugas dos trabalhadores, que não conheciam a região e teriam que

atravessar a mata fechada para chegar a algum povoado. "A selva servia como

uma verdadeira prisão". & O Estada 10/07/94, 12/07/94; A Província do Para'

14/07/94.&

Mato Grosso, 1994.

Agente da CPT RO participa de vistoria na Fazenda Buendía, junto com fiscais

da DRT RO e agentes da Polícia Federal. Eis o relato: "Dia 31 de maio, outra

operação foi realizada na Fazenda no município de Macondo - MT. Nesta

fazenda, pouco se pode realizar, sabendo que são numerosos os homens que trabalham em regime escravo. Nesta fazenda, encontramos muitas

dificuldades, pois a fazenda conta com 90 mil há de terra e esta' dividida em

retiros. Além da sede central possuir sub-sede, faz-se necessário 4 horas de

barco pelo rio. A segunda sub-sede está localizada a 65 km da sede central

cujo acesso, geralmente é feito com trator. A terceira sub- sede o acesso se dá

somente de avião ou por água Em todas essas sub- sedes há denuncias de

escravidão branca e que existem homens fortemente armados vigiando os

trabalhadores. Ninguém pode sair e se ameaçarem fugir serão assassinados".

DRT RO, CPT RO, Ji-Parana', 13/07/94 (ver esta fonte em TR Geral RO);

Ministério do Trabalho, DRT RO, relato'rio de atividades de fiscalização,

Brasília, 12/05/94.

Esses quatro pontos elucidam as formas pelas quais os conservadores ainda se

baseiam para negar a escravidão. Não se torna tão simples contra-argumentar esses

pontos diante de uma sociedade que produz grandes desigualdades sociais e mesmo

assim o conservadorismo continua prevalecendo no poder. No entanto, podemos

lembrar alguns indícios que também ilustram a complexidade inserida na questão.

O incômodo da possibilidade de aprovação da PEC, e a ameaça à propriedade

levam a TFP a questionar porquê as relações informais de trabalho no ambiente urbano,

são consideradas de forma diferenciadas das relações do campo. O porquê dar o nome

de trabalho ilegal para a informalidade existente nas relações de trabalho das grandes

cidades, como no caso das empregadas domésticas que não possuem carteira assinada,

enquanto o trabalho informal no campo é denominado “trabalho escravo.” A indefinição

do que seja trabalho escravo é acusada pelos conservadores como instrumento para

confundir os desavisados que se apegam ao emprego emocional do conceito.

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É constante as tentativas tanto do Ministério do Trabalho quanto dos

movimentos sociais em não contribuir para certos tipos de discurso que fragilizam a luta

contra a escravidão. Exatamente por isso o Brasil vem se preocupando em adequar as

situações vivenciadas nas leis vigentes. O artigo 149 do Código Penal foi modificado

em 2003 visando ampliar as explicações sobre alguns casos possíveis de situações

análogas a escravidão, como também a Lei 10.803/03:

A redação original do artigo 149 descrevia a prática simplesmente como

“reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, deixando ao exclusivo alvedrio dos juízes dizer se determinada conduta era, ou não, análoga à

escravidão. Em conseqüência, entretanto, do já aventado caráter restritivo da

interpretação da lei penal em desfavor do réu, o número de condenações pelo

delito de plágio costumava ser surpreendentemente baixo quando comparado à

quantidade de ações penais propostas pelo Ministério Público. O laconismo do

tipo penal acabava por impedir a formação de um entendimento consistente

sobre o que, de fato, significava “reduzir alguém a condição análoga à de

escravo” e permitia que exploradores do trabalho escravo fossem facilmente

absolvidos da acusação daquele crime. As alterações introduzidas no artigo

149 do Código Penal vieram especificar a definição do crime, removendo a

excessiva subjetividade de que era dotado. Desse modo, facilitou a aplicação

da lei pelos juízes e estimulou o combate ao trabalho escravo pela vertente da

repressão.

A Lei nº 10.803/03, além de haver inserido dois parágrafos ao mencionado

tipo penal, também estendeu seu caput ao introduzir-lhe um rol de ações

típicas cuja prática consubstancia-se como criminosa. O artigo 149 passou,

assim, a viger com a seguinte redação:

Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o

a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção

em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto:

Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à

violência.

§ 1º Nas mesmas penas incorre quem:

I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com

o fim de retê-lo no local de trabalho;

II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de

documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local

de trabalho.

§ 2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido:

I – contra criança ou adolescente;

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II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem.235

A nova redação do artigo 149, dentro do contexto do Plano Nacional para a

Erradicação do Trabalho Escravo, amoldou a definição criminal de

escravidão contemporânea à realidade do problema no Brasil, com o intuito de

afastar entendimentos de juízes que, na prática, não a reconheciam, por

insistirem em compará-la com suas formas tradicionais(...). A Lei nº 10.803/03

veio estabelecer, definitivamente, um novo paradigma conceitual para a

escravidão no século XXI.” (POGGIO. 2006:137)

Diante disso, a precisão em torno da definição sobre Trabalho Escravo

Contemporâneo no campo brasileiro, deve estar atenta aos contextos históricos e as

sociedades que dele participam, com visões diferenciadas sobre essas relações de

trabalho. Ao declarar , afirmar e definir a existência de trabalho escravo estaremos

estabelecendo uma verdade que irá se confrontar com forças políticas. Não podemos

esquecer que tais forças políticas estão longe de querer a erradicação dessas relações de

trabalho, e procuram de forma análoga combater o problema, dando uma definição e

também uma verdade para poder exercer seu poder e continuar sobre o controle das

relações de trabalho e das relações políticas. As forças que negam a escravidão

contemporânea não se importam com os trabalhadores e sim com o controle que

exercem sobre estes, enfatizando suas relações de poder para se favorecer.

Deveríamos questionar se realmente necessitamos da precisão e da definição do

que seja trabalho escravo a fim de construir uma verdade ou se devemos continuar

atentos aos enfrentamentos políticos que consiste a discussão.

Michel Foucault (2005)certa vez alertou para a seguinte questão:

Quero dizer o seguinte: numa sociedade como a nossa – mas,afinal de contas,

em qualquer sociedade – múltiplas relações de poder perpassam, caracterizam,

constituem o corpo social; elas não podem dissociar-se, nem estabelecer-se,

nem funcionar sem uma produção, uma acumulação, um funcionamento do

discurso verdadeiro. Não há exercício do poder sem uma certa economia dos

discursos de verdade que funcionam nesse poder, a partir e através dele. Somos submetidos pelo poder à produção da verdade e só podemos exercer o

poder mediante a produção da verdade. Isso é verdadeiro em toda sociedade,

mas acho que na nossa essa relação entre poder, direito e verdade se organiza

de um modo muito particular.

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[...] somo forçados a produzir a verdade pelo poder que exige essa verdade e

que necessita dela para funcionar; temos de dizer a verdade, somos coagidos,

somos condenados a confessar a verdade ou a encontrá-la.(...) somos

igualmente submetidos à verdade, no sentido de que a verdade é a norma; é o

discurso verdadeiro que, ao menos em parte, decide; ele veicula, ele próprio

propulsa efeitos de poder (FOUCAULT. 2005:28-29)

Além de procurar entender o que seria uma geografia da escravidão

contemporânea, um grande e novo desafio se encontra em tentarmos transformar uma

mobilização política, firmada no compromisso social com o outro, em algo científico.

Não é apenas o fato de sabermos que enquanto ser social, existe o compromisso

com a sociedade que construímos, mas, fazer com que essa existência ganhe sentido, e

sua essência ganhe corpo e espaço. Referindo-se novamente a Foucault, o objetivo deste

trabalho consiste em compreender:

Como as práticas sociais podem chegar a gerar domínios de saber que não só

fazem aparecer novos objetos, conceitos e técnicas, senão que fazem surgir

ademais, formas totalmente novas de sujeitos e sujeitos de conhecimento. O

mesmo sujeito, de conhecimento possui uma história, de relação de sujeito

com o objeto;o, mais claramente a verdade mesma tem uma

história.(FOUCAULT.2005).

E é nessa perspectiva que a geografia pode vir a contribuir nas leituras do

mundo que construímos e representamos. As representações , os discursos e as verdades

constituídas até o momento sobre o que venha ser o trabalho escravo contemporâneo e a

possível constituição dessa verdade será comprometida com todo esse histórico de

enfretamento de forças políticas. Dessa maneira estudar as “práticas sócias” de 21 anos

da CPT, significa também compreender como novos sujeitos se apresentam e permitem

uma diferente leitura do espaço. Se este saber se constituirá como ciência ou como

discurso científico, pode vir a ser uma conseqüência das forças constituintes, no entanto,

o importante aqui é permitir uma leitura que interprete essas forças.

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2.2 – A luta por melhores relações de trabalho no campo.

A questão fundiária no Brasil sempre esteve interligada com as formas de

organizações políticas e territoriais das classes representantes da sociedade.

Tencionadas por uma política econômica que visava os padrões externos, o território se

constituiu entre as forças que se impuseram no espaço. Representadas por personagens

que se reconstituíram ao longo da história - como o colonizador, o coronel, o

fazendeiro, e hoje representadas pelas grandes empresas – a disputa pelo território

também trazia outros protagonistas como os indígenas, quilombolas, foreiros, posseiros

que aos poucos foram deixando sua marca no espaço e contribuíram para a formação do

território brasileiro. Na constituição desse território fortemente marcado pelas disputas

de poder é inevitável encontrarmos situações que são verdadeiras provas do desrespeito

à população.

A escravidão é uma boa prova dessa desigualdade social e da assimetria das

relações de poder que resultaram da formação contraditória do sistema mundo moderno-

colonial. De certo modo, a aceitação da escravidão contemporânea problematiza o que a

humanidade pensa de si e sobre si.

A lógica de submissão, da hierarquia, do favor, que se impõe sobre a lógica do

direito à vida, se perpetua sob múltiplas faces entre nós. O Brasil, como uma das últimas

nações das Américas a abolir a escravidão53

, reconhece o compromisso internacional,

desde 1888, mesmo assim, está longe de acabar com as formas sinuosas com as quais as

relações análogas a de escravidão ganharam presença no seu território.

Diante dessa realidade, a sociedade civil vem se organizando para reestruturar

um espaço menos desigual exigindo do poder público e do privado uma postura diante

dessa iniqüidade.

A luta contra a escravidão contemporânea no campo dentro do território

brasileiro, se insere na dinâmica da luta pela terra e pode ser analisada através da

53 Do ponto de vista mundial. A Mauritânia foi um dos últimos a abolir a escravidão por volta da década

de 80

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emergência de uma luta pelos direitos políticos e sociais no campo por vias legais, luta

esta que se relaciona diretamente com os acontecimentos do meio urbano.

Principalmente, pelo fato da não extensão dos direitos trabalhistas para os trabalhadores

do campo durante o governo de Getúlio Vargas, como também pela conjuntura política

mundial, que apontava novas ideologias políticas e econômicas marcadas pelo pós-

guerra concentrando grandes modificações na cidade, como foi apresentado por

Medeiros.

[...] As oligarquias agrárias “conseguiram manter, até 1963, os trabalhadores

rurais à margem de uma série de direitos sociais e políticos conquistados pelos

operários urbanos na década de 30 e mesmo durante o Estado Novo. É o caso

da Legislação trabalhista e do direito a sindicalização. (...) Posteriormente (...)

É nesse panorama de mudanças muito rápidas de conjuntura de grande instabilidade política, mas desenvolvimento econômico e de consolidação de

um projeto industrializante para o país que os trabalhadores rurais emergiram

como atores políticos, reivindicando direitos que colocavam em jogo as formas

tradicionais de mando e que questionavam as alianças políticas que

sustentavam o poder.(MEDEIROS.1989: 17-18)

Para abordar o tema trabalho escravo contemporâneo no Brasil no âmbito rural,

se torna imprescindível discutir as políticas agrárias e sociais que regeram o país neste

setor. É importante que fique claro que a emergência da luta contra a escravidão

contemporânea é fruto de um processo histórico de pessoas e entidades que se

mobilizaram contra as desigualdades sociais e desrespeito aos direitos humanos

desafiando hierarquias de poder e propondo mudanças estruturais da sociedade. Neste

capítulo serão apresentados os atores que compõem a luta no campo e como estes

assumem um papel importante na construção do espaço geográfico através da luta pela

erradicação do trabalho escravo.

Após a pesquisa bibliográfica realizada sobre o tema, fundamentadas nas obras

de alguns autores como Leonilde Medeiros (1989) Maria Gloria Gohn (2004), Darlene

Ferreira (2001) entre outros a fim de compreender a genealogia das lutas sociais no

campo - realizamos uma sistematização do estudo que será apresentada através de duas

vertentes que considero importantes para compreender a construção da luta social no

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campo em torno da geografia do Trabalho Escravo. A primeira delas é o momento em

que as relações de trabalho no campo passam a ser questionadas. Historicamente pode-

se pensar que isso já tenha sido feito no meio rural desde 1850 com a chegada dos

imigrantes e posteriormente com a abolição, mas menciono o momento em que a

sociedade passa a ver com estranhamento as condições de trabalho no campo, e as lutas

dos trabalhadores rurais ganham uma maior repercussão e ultrapassam o limite rural. É

nesse período que os conflitos aparecem com mais destaque em resultado até mesmo

dos primeiros movimentos sociais nacionais como também a repercussão internacional

de lutas camponesas. Permitindo observar as conflitividades insurgentes. A segunda

situação que contribuiria para o entender o movimento político sobre as relações de

trabalho no campo seria o momento de criação de entidades como a Comissão Pastoral

da Terra, e outros movimentos sociais de luta pela terra (e de melhoria nas condições de

trabalho e respeito aos direitos humanos) que se formaram em momentos turbulentos da

história recente do Brasil, e que consegue até os dias atuais se manter no campo dessas

lutas.

A luta contra o trabalho Escravo, portanto, não pode ser vista separadamente da

luta pela terra, sendo tratada neste trabalho como parte da mobilização que constituiu

um elemento concreto de luta sobre a escravidão contemporânea. Até porque em

nenhum momento de construção da luta contra o trabalho escravo pela CPT, a qual se

concentra a base empírica deste trabalho, faz concessões sobre a discussão da estrutura

fundiária e sobre a Reforma Agrária.

2.3. As transformações no campo e a luta pela terra.

Ao falar em trabalho escravo no campo torna-se inevitável realizar um estudo

das conjunturas e ações políticas que influenciam a estrutura fundiária no Brasil, que

contribuíram ou não para a democratização das terras no campo e para a precarização

das relações de trabalho. Mas, neste momento o objetivo é discutir quando de fato se

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inicia a construção de um processo de mobilização capaz de influenciar a luta contra o

trabalho escravo contemporâneo 54

.

Ao darmos início aos estudos sobre o tema do trabalho escravo contemporâneo,

vimos observando nos últimos anos, uma maior repercussão e divulgação na mídia, no

meio acadêmico e nas instituições internacionais. Principalmente pela articulação da

internacionalização de alguns casos, como a divulgação internacional de trabalhadores

encontrados em situação de escravidão na fazenda da Volkswagen (anexo II)55

, no Pará;

e do “caso Zé Pereira”56

, levado a OEA(Organização dos Estados Americanos), ainda

esperando julgamento(anexo III)57

.

Esse movimento direciona o estudo a repensar sobre quais mudanças ocorreram,

para que somente no século XX o problema se tornasse público - mesmo com o fim da

escravidão clássica declarada no Século XIX.

Numa sociedade em que a propriedade sobre mercadorias e logo, a produção e o

consumo de mercadorias são sinônimos de poder, as subjugações da terra e do

trabalhador se tornam elementos importantes para a continuação dessas relações. Dessa

forma, as relações pessoais entre os grupos como também as relações com a natureza, e

54 Para esta análise a contribuição dos povos quilombolas e indígenas, anteriores o século XX não será levada em consideração, no entanto vale destacar a importância desses movimentos historicamente

constituídos e que retomam o debate posteriormente em um novo processo de redemocratização onde

surgem para somar aos movimentos sociais.

55 Denunciado por Ricardo Resende em 83 e se tornado público na década de 90. Ricardo comenta que procurou a mídia jornais brasileira para divulgação mas que estes não se mostraram muito interessados,

dedicando apenas uma pequena nota. Diferente dos jornais internacionais que deram foco na notícia.

56 O caso Zé Pereira ficou reconhecido em 1989 quando um rapaz de 17 anos ao fugir da fazenda onde era

mal tratado e ameaçado levou um tiro na cabeça, durante a fuga seu colega morreu na hora, e ele

sobreviveu por se fingir de morto. (http://www.oitbrasil.org.br/news/artigos/ler_artigos.)

57 “Em setembro de 1989, aos 17 anos, o trabalhador rural José Pereira Ferreira foi atingido por uma bala

no rosto por funcionários da fazenda Espírito Santo quando tentava escapar do trabalho escravo. A propriedade era de Benedito Mutran Filho, na cidade de Sapucaia, Sul do Pará. O caso, que não recebeu

uma resposta das autoridades brasileiras, foi levado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da

Organização dos Estados Americanos (OEA). Para não ser condenado por omissão, o governo brasileiro

teve que fazer um acordo em que se comprometia a adotar uma série de medidas para combater o trabalho

escravo e a indenizar José Pereira pela omissão do Estado. Em novembro de 2003, o Congresso Nacional

aprovou um pagamento de R$ 52 mil.Por Leonardo

Sakamoto://colunistas.ig.com.br/sakamoto/2008/07/25/dantas-compra-fazenda-que-foi-palco-de-trabalho-

escravo/

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com a terra, são pontos estratégicos para compreender de que forma certa sociedade

compreende o mundo.

Os diferentes interesses das classes urbanas burguesas que emergiam na década

de 30 não transformaram a antiga estrutura fundiária e continuaram a ter a posse da terra

ainda como o instrumento de base do poder político.

O projeto de industrialização e as mudanças acompanhadas, neste período,

conseguiram tirar de foco os acontecimentos no campo, tornando a cidade um modelo;

trazendo novos desafios à economia. Realizando assim, uma nova reflexão sobre as

relações no campo. É exatamente na fase de conflito entre o desejo de industrialização

versus o “abandono” das estruturas oligárquicas rurais (fases de transição da economia)

que os questionamentos sobre o mundo rural se tornam presentes.

“A redemocratização do país em 1945, foi acompanhada por referencias

mais sistemáticas, na imprensa, a conflitos no campo e a uma incipiente

organização dos trabalhadores rurais. É difícil afirmar se é nesse processo

que as lutas passam a existir ou se, em virtude de uma conjuntura política

mais favorável, elas começaram a vir a público, tornar-se mais conhecidas e

ampliar suas possibilidades”(MEDEIROS. 1989:18).

A partir da década de 1950, o desenvolvimento do sistema urbano-industrial e a

concretização da divisão social do trabalho colocaram a cidade e a indústria como

precursores de uma nova realidade econômica. As complexidades de relações que se

estabeleceram levaram a necessidade de definição de novos campos e a agricultura, de

hegemônica passou a ser coadjuvante, num sistema econômico constituído por muitos

elementos ou partes.

É possível observar no final da década de 40 (mais precisamente em 1949),

trabalhadores, arrendatários e posseiros iniciando greves por reivindicações trabalhistas.

Essa mobilização se tornou constante por toda a década de 50. É exatamente neste

período que os movimentos sociais no campo ganham espaço na sociedade,

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principalmente com a ação da Liga Camponesa58

e da CONTAG. Na década de 60 (até

1964) foi possível constatar os benefícios dos esforços despendidos por esses atores.

Analisando o trabalho de Medeiros (1989) verificou-se que entre 1949 e 196459

das 100 greves registradas em diversos Municípios, 72 eram reivindicações de

trabalhadores rurais por questões trabalhistas como: aumento do salário, pagamento do

salário mínimo e outras garantias60

. Os trabalhadores encontrados nas notícias eram

colonos, trabalhadores envolvidos com o corte de cana, café e camponeses (tabela 1.0).

A maioria dos “grevistas” se tinham como camponeses, colonos ou apenas

trabalhadores rurais. Muitas das relações de trabalho no campo ainda não estavam

objetivamente concebidas, ou definidas, podendo ser observada pela própria

representação que os trabalhadores têm de si. Mas a mobilização começa a garantir uma

melhor definição nas relações de trabalho, principalmente devido os constantes

problemas apresentados que se configuravam em diversos municípios. A concentração

das greves era em sua maioria no sudeste, precisamente em São Paulo, e no Nordeste,

na Paraíba e em Pernambuco. Não apresentaram eventos nem no Norte, e nem no

centro-oeste.

58 Outro fato relevante desse período estudado de maior mobilização dos movimentos é o termo camponês

que passa a ser usado como categoria política específica. A aproximação e participação do PCB(Partido

Comunista Brasileiro) no campo, com seus ideais marxistas e o objetivos políticos foram de encontro as

insatisfações do trabalhador que inicia seus primeiros encontros Nacionais como o I Encontro Nacional

de Trabalhadores Agrícolas em 1953, e em seguida a Conferencia Nacional dos Lavradores, em 1954.

Nestes encontros foram discutidos diversos temas, entre eles, o direito de organização em associações e

sindicatos, direito de greve e como pano de fundo a reforma agrária. “É para a Reforma Agrária que

convergiriam, de alguma maneira, as diferentes lutas que se travam no campo que tinham a terra por seu

eixo. É através dela que, no final dos anos 50 e início dos anos 60, ganharia significado social e sentido

político a categoria camponês. ( MEDEIROS.1989.p. 33)

59 Análise feita sobre as greves ocorridas de 1949 até 1964 sobre a fonte dos Jornais Voz Operária,

Imprensa Popular, Terra Livre, Noticias de Hoje e Novos Rumos encontradas em Leonilde.1989.p33

60 19 greves não foram possíveis de serem detectadas o verdadeiro motivo da manifestação e 9 foram

excluídas por não possuírem ligações diretas por questões trabalhistas

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Tabela III – Relação de Trabalhadores encontrados entre 1949 e 1964

Entre 1950 e 1960 os conflitos no campo também aumentam de intensidade em

muitas regiões de colônias agrícolas onde posseiros e arrendatários se tornam vítimas de

grileiros que procuram expansão da fronteira. Por volta de 1955-56 “a formação das

Ligas Camponesas promove uma maior repercussão dos problemas no mundo rural

realizando sucessivas mobilizações e construiu-se um corpo integrado de demandas que

incluíam a extinção do cambão, do barracão e a luta contra o aumento excessivo do

foro61

. Acoplando-se a luta pela reforma agrária”. (MEDEIROS.1989). O fato de que

certas leis garantiam alguns direitos aos trabalhadores da cidade, mas não para o campo,

promove um verdadeiro contraste. Para Octavio Ianni (2005) “A sociedade agrícola e

pecuária dos plantadores de Pernambuco se transforma na “liga camponesas da

Galiléia”, devido ao processo de realização de seus objetivos. Essa transição representa

a formação do camponês em proletário, rural, como nova categoria política.(

IANNI.2005). Para ele a sindicalização foi o último fato importante no processo de

transformação do camponês em proletário. No período de 1955 e 1961 foram

registrados 21 encontros de trabalhadores de escala estadual. A Conferência Nacional

dos Lavradores e Trabalhadores Agrícolas (1956) e o Congresso Camponês de Belo

Horizonte(1961) são referenciais, pois conseguem atravessar as fronteiras do rural com

o reconhecimento social e político dos camponeses. Posteriormente nos anos em que se

61 Em Pernambuco, os trabalhadores dos engenhos recebiam além da casa pra morar, um pequeno lote

onde podiam plantar alimentos. Em troca, tinham que garantir dois dias de trabalho semanais gratuitos

para o proprietário. Só o que ultrapassasse isso era remunerado. Era o chamado morador de condição. Em

algumas situações, podiam também receber um sítio, lote onde podiam plantar além do roçado, arvores, o

que lhes garantiam uma ligação mais permanente com a propriedade. Segundo Sigaud, o foreiro seria um

variante do morador. Neste caso, teria uma maior independência em relação ao proprietário. Não havia a

obrigação de trabalhar para ele semanalmente, mas somente de pagar uma quantia anual, o foro, além do

cambão, cerca de vinte dias de trabalho gratuito por ano.(MEDEIROS.P46.1989)

Categoria Entre as 72 notícias

classificadas

Camponeses 20

Colonos 14

Trabalhadores agrícolas 10

Assalariados 7

Trabalhadores de cana 5

Outros 7

Sem Informação 14

Camaradas, Lavradores, tarefeiros e bananeiros.

Fonte: MEDEIROS, Leonilde. 1989.

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95

segue de 1962 e 1963 alguns acontecimentos importantes aconteceram como a extensão

da Legislação Trabalhista62

, a SUPRA(Superintendência de Política Agrária), a

regulamentação da sindicalização rural e a aprovação do Estatuto do Trabalhador

Rural63

, a criação da Confederação Nacional dos Trabalhadores Agrícolas (CONTAG),

e algumas ações estaduais foram a prova que estas mobilizações obtiveram êxito em

algumas reivindicações. É importante assinalar que somente a partir de 1963, com o

Estatuto do Trabalhador Rural, se sistematizam as condições de contrato de trabalho e a

sindicalização na sociedade agrária brasileira.

O que se pretende aqui ao trazer os acontecimentos no campo, anteriores ao

recorte estabelecido por este presente trabalho (de 1985 a 2006) é chamar a atenção das

ocorrências de insatisfação dos trabalhadores rurais quanto à questão das relações de

trabalho. Apresentando que a constituição dos movimentos sociais desde a década de

40, além de estar insatisfeita com a estrutura fundiária (pelo fato de nunca ter sido feito

uma melhor redistribuição de terras e consecutivamente de rendas), as relações de

trabalho no campo eram o foco da maioria dos casos. Talvez, nesse período, a questão

da escravidão contemporânea poderia estar diluída em diversas outras formas de

exploração que fosse ainda difícil caracterizá-la como trabalho escravo. Até mesmo pelo

pouco conhecimento das pessoas quanto a sua condição de empregado, e de seus

direitos.

A criação do Estatuto da Terra em 1964, somados as instituições criadas pelo

governo militar como o IBRA(Instituto Brasileiro de Reforma Agrária) e o INDA

(Instituto Nacional de Desenvolvimento Agrário) sistematizariam as condições

necessárias para a constituição da Reforma Agrária. No entanto, a atenção foi

resguardada aos ajustes necessários para a garantia de uma segurança e continuação do

cenário conservador no campo. Ao mesmo tempo em que o assunto era tratado como

62 . “A consolidação das Leis do Trabalho, de 1943, não tinha nenhuma preocupação com o trabalhador

agrícola.(...)Somente vinte anos depois, devido ao agravamento dos antagonismos sociais e políticos no

campo que os poderes Legislativo e Executivo começaram a formalizar as condições do contrato de

trabalho no campo”.(IANNI.2005:142)

63 Lei .Nº 4.214 - DE 2 DE MARÇO DE 1963 - DOU DE 22/03/63. Dispõe sobre o "Estatuto do

Trabalhador Rural".

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compromisso social, o conteúdo do Estatuto da Terra acabou por impor aos

trabalhadores rurais um determinado campo de luta pela reforma agrária.

(MEDEIROS,1989)

Dentro dessa perspectiva, o Estatuto da Terra de 1964 permite apontar as

relações de trabalho como algo a ser comprido:

Art. 2° É assegurada a todos a oportunidade de acesso à propriedade da

terra, condicionada pela sua função social, na forma prevista nesta Lei.

1° A propriedade da terra desempenha integralmente a sua função social

quando, simultaneamente:

a) favorece o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores que nela

labutam, assim como de suas famílias;

b) mantém níveis satisfatórios de produtividade;

c) assegura a conservação dos recursos naturais;

d) observa as disposições legais que regulam as justas relações de

trabalho64

entre os que a possuem e a cultivem.

Sendo assim, além de entender que a abolição da escravidão moderno-colonial

aconteceu em 1888; os Direitos Humanos foram proclamados em 1948; somados aos

tratados internacionais assinados pelo Brasil desde 1926, o Estatuto da Terra vem a

reafirmar que o Trabalho Escravo deve ser evitado. Porém, infelizmente, o que se

conferiu foi a repressão se intensificando sobre os trabalhadores rurais.

Diante das modificações ocorridas na América Latina, em concordância com a

geopolítica mundial da guerra-fria, a repressão aumentou destacando-se entre outros

com a instituição do Ato Institucional número cinco (AI-5), que polia a liberdade de

expressão . Os sindicatos foram se tornando engessados e a desmobilização política era

resultado das limitações impostas. Enquanto isso os Planos de Integração Nacional e

64 Grifos meus

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mega-projetos de hidrelétricas, rodovias entre outros continuavam a promover a

violência através de despejos, expulsões, prisões e assassinatos. É nesse período que

muitas empresas multinacionais são atraídas a comprar terras no Brasil, incentivadas

pela Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia (SUDAM)

2.4 A História da luta contra o trabalho escravo contemporâneo no campo

Perseguidos pelo regime e com a liberdade de expressão e organização

proibidas, é nesse contexto que os trabalhadores encontram um apoio nas entidades

ligadas à Igreja, mesmo com a participação prévia pelos círculos operários, é na década

de 70 que entidades se organizam com o objetivo específico de ajuda aos pobres da

terra. Para Moreira (2006) a contribuição da Igreja com as questões agrárias, são bem

anteriores as CEB (Comunidades Eclesiais de Base), segundo uma leitura teológica. A

relação da religião com a terra pode ser estudada mesmo antes da existência das

instituições religiosas65

.

Segundo esse mesmo autor, internamente, dentro das disputas políticas da Igreja

o catolicismo popular e o Catolicismo Romano66

já haviam iniciado suas disputas sobre

suas influências políticas e ideológicas nas relações sociais do homem com o campo no

período de 1870 a 1950, principalmente, por parte da mudança na função da Igreja no

Brasil, atrelada no período Brasil-colônia a ter uma importância maior perante o Estado

quanto ao surgimento de uma classe burguesa industrial, apesar da burguesia industrial

e a elite agrária, em questões religiosas, não se contradizerem.

65 Para aprofundar o tema é interessante entrar em contato na obra de Alberto da Silva Moreira como um

todo.

66 “Este catolicismo tradicional (se referindo ao popular) era basicamente de caráter familiar, comunitário,

leigo, rural, festivo e devocional, enquanto o catolicismo “romanizado” era calcado na fé do indivíduo e

na devoção pessoal.( privatizante). O novo catolicismo romanizado era, além disso, marcadamente clerical: estava centrado nas cidades e nas paróquias, insistia na catequese e introduziu novas devoções

com o fim de superar as antigas”.(Moreira.105)

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Segundo Oliveira(1991), elas continuam ainda se utilizando do aparato religioso

da Igreja Católica para assegurar sua hegemonia sobre os trabalhadores do campo e da

cidade (MOREYRA.1999). No entanto, mesmo encontrando algumas resistência por

parte da mesma Igreja que defendia a propriedade privada como direito natural

ilimitado, de origem divina (MOREYRA,1999) uma outra parcela da Igreja contribuía

através da Ação Popular e o “sindicalismo cristão” ser a base para formação da

CONTAG.

Para Gohn (2004), fortalecidos após o encontro de Medelin(1968) e Puebla

alguns movimentos em dioceses latinas americanas se formaram. Ademais, apoiados na

Teologia da Libertação surge a Comissão Pastoral da Terra. “O surgimento da CPT

ligou-se diretamente aos efeitos da política de ocupação na Amazônia empreendida nos

governos militares.”(MEDEIROS.1989).O Trabalho da CPT se unia as Comunidades

Eclesiais de Base (CEB).

O ambiente de ampla repressão policial, militar e política, durante a ditadura,

transformou a Igreja num refúgio dos desvalidos, também e principalmente

dos trabalhadores rurais perseguidos e expulsos da terra, vitimas da violência

do latifúndio e da polícia. As posições meramente doutrinárias presentes em

várias decisões da igreja, que vem dos anos 50, ganharam consistência e

sentido no momento em que a igreja foi confrontada com a realidade da violência no campo, quando trabalhadores ameaçados de morte, jogados com

suas famílias na estrada, casas e roças incendiadas, sem alternativa, forma

bater à porta do bispo ou padre[...] Com a Pastoral da Terra, com as

Comunidades Eclesiais de Base os trabalhadores rurais ganharam um espaço

significativo dentro da igreja, como ganharam, também apoios importantes na

hierarquia, dos bispos ao Papa. Esse ganho representa, de fato, uma aliado

fundamental no confronto com o Estado. O apoio da igreja dá consistência

doutrinária à “economia moral” dos pobres da terra, a suas avaliações morais a

respeito do poder do capital. Além disso, dá substância institucional ao

confronto com o Estado, já que os partidos são relutantes na adesão às teses e

lutas dos trabalhadores rurais. (MARTINS67 apud MOREYRA.1999)

Com o apoio da CPT criaram-se sindicatos em algumas áreas onde eles antes

não existiam, e principalmente, desenvolveu-se em muitos locais a crítica da prática

67 A chegada do Estranho.in Trabalho Escravo no Brasil Contemporâneo.1999:80.

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social existente, gerando o aparecimento de chapas de oposição, que traziam em seu

bojo propostas alternativas de trabalho com bases e de encaminhamento das

lutas(MEDEIROS 1989)

A CPT, junto ao Conselho Indígenista Missionário (CIMI), foi uma das

primeiras a denunciar o trabalho escravo no Brasil, bem mesmo antes do fim da

ditadura. Declarados em documentos como o relatório da CPI da Terra de 1977:

A relação de trabalho estabelecida entre peão e fazenda passou a ser

caracterizada como escravidão branca [...] Já em 1970, em Santa Terezinha

uma intervenção da Policia Federal na fazenda Codeara retirou mais de 500

trabalhadores que desejavam sair de lá, mas eram sempre barrados pelos

famosos “gatos” (empreiteiros de derrubadas), que os mantinham num

regime de endividamento permanente, ameaças, espancamento e até

mortes(doc.37)

Outro caso que chegou a opinião pública foi o caso da Fazenda Jarí, na

divisa do Pará-Amapá, do bilionário norte-americano Daniel Keith Ludwig.

Quando da visita do Presidente Médici à fazenda, há poucos anos, os trabalhadores se apresentaram carregando um cartaz que dizia: “Queremos

nossa Liberdade!”. [...]

Dom Pedro Casaldáliga relata a situação de seis fazendas que no ano de 1976

presenciavam a situação de escravidão, no relatório da CPI da Terra, onde se

destacavam a Fazenda Monte Aprazível, em Luciara- MT, a Fazenda São Cristóvão em

Barra do Garças, a Fazenda Tucurumã em Santa Terezinha – PA e a Fazenda Bridão

Brasileiro em Luciara – MT. Ocorriam casos em que os trabalhadores eram ameaçados,

não recebiam assistência médica em casos de acidentes de trabalho e estavam

endividados, além da dificuldade em reaver seus direitos. Como exemplo vale citar o

caso da fazenda Monte Aprazível que em 1976, contratou um trabalhador sobre regime

de empreitada, que trabalhou durante 8 meses sem receber. O funcionário teve que

andar, junto a sua família a pé, 292 km (num total de 10 dias de viagem, pois o acesso à

fazenda era feito por avião) a procura de algum órgão que pudesse lhe ajudar a receber o

trabalhado. O empregador acusava o funcionário de ter gasto com sua alimentação.

Após passar por uma Delegacia de polícia onde não encontrou o delegado, seguiu em

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frente e foi até Barra do Garças para fazer uma declaração ao juiz , que disse que nada

poderia fazer, por falta de documentos. Foi então até o quartel de Aragarças, onde o

capitão após ouvi-lo respondeu que só poderia encaminhar processos com o

encaminhamento do juiz (e este havia dito que nada poderia fazer). O funcionário

seguiu até Goiânia atrás da Federação dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais

(FETAGRI) que conseguiram construir um ofício encaminhando para a FETAGRI em

Cuiabá, já que a questão era do Estado do Mato Grosso e a região não possui sindicato.

A FETAGRI, encaminha-o para o Promotor Público de Barra do Garças que diz que não

tem nada a ver com o ofício da FETAGRI e manda o trabalhador falar com o defensor

público, que por sua vez pede para ir buscar na fazenda uma declaração de serviços

prestados. O trabalhador impossibilitado de ir de avião pegar o documento vai até o

Ministério Público e consegue intimar o empregador que nega a acusação e lhe oferece

uma quantia para quitar a dívida, o representante do Ministério do Trabalho aconselha

então o trabalhador a aceitar um valor inferior ao justo e em discordância o trabalhador

não aceita.(CASALDÁLIGA.1977.)

Com essa passagem, é possível perceber a dificuldade dos trabalhadores em

encontrar um apoio para realizar suas denúncias, seja pela burocracia seja pela falta de

compromisso com os trabalhadores rurais, que encontram na CPT o espaço para

dialogar e denunciar as condições de exploração a que são submetidos.

Aprovado pela 18ª assembléia da CNBB de 14 de fevereiro de 1980, o

documento(2005)“ A Igreja e os Problemas da Terra” , denunciava através dos dados

do IBGE a situação de desigualdade social presente no campo, realizando uma forte

crítica em plena ditadura, a política de incentivos fiscais e as Superintendências de

desenvolvimento tal como a concentração de terra e a degradação dos trabalhadores. Em

alguns casos chegou a ganhar repercussão na imprensa como mostram os anexos 1 e

2.Baseados na idéia do que seria terra de trabalho e terra de negócio, sistematizaram em

107 itens onde os principais temas:

A terra de todos como terra de poucos

– A concentração da propriedade de terra no Brasil

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– O modelo político a serviço da grande empresa

– A questão das terras dos povos indígenas

– Migrações e violência no campo.

Responsabilidade pela situação.

– concentração do capital e concentração do poder

– Acumulação e degradação

Fundamentação doutrinal

– A terra é um dom de Deus a todos os homens

– Terra de exploração e terra de trabalho

Nosso Compromisso Pastoral

Conclusão.

No segundo item do documento, no eixo Acumulação e Degradação se iniciava

tratando do desrespeito a questões trabalhistas.

49. Mais grave ainda é a situação dos peões na Amazônia Legal. São

trabalhadores sem terra, recrutados pelos “gatos” e Goiás, no Nordeste e

mesmo em São Paulo e depois vendidos como uma mercadoria qualquer aos

empreiteiros encarregados do desmatamento.

50. O “gato”, com é conhecido em amplas regiões, opera como um agenciador

de trabalhadores. Geralmente, possui ou aluga um caminhão para transportar

os peões, recrutando-os sobre promessas de salários e regalias que não serão

cumpridas. Como não há nenhuma fiscalização, quanto mais o trabalhador se aproxima do local de trabalho, mais longe fica de qualquer proteção ou

garantia quanto aos seus direitos trabalhistas. Não é diferente a situação de

muitos trabalhadores rurais nas outras regiões do pais quanto a esses direitos.

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51. Justifica-se a venda de peões pelas dívidas que o trabalhador é obrigado a

contrair, durante a viagem, com a alimentação e o próprio transporte. A dívida

é transferida do “gato”ao empreiteiro que, em nome dela, escraviza o peão

enquanto necessitar. Os policiais, os donos de “bolichos” e os donos de

pensões nos povoados sertanejos estão quase sempre envolvidos nesse tráfico

humano. Quando o trabalhador tenta fugir é quase sempre castigado ou

assassinado em nome do principio de que se trata de um ladrão - esta tentando

fugir com o que já pertence ao empreiteiro que o comprou: sua forca de

trabalho.

O documento (2005)“ Igreja e Problemas da Terra” é um marco no que diz

respeito à relação da Igreja com as questões sociais no campo. Além da intensa

sensibilidade, o documento é uma verdadeira denúncia para tratar os problemas gerados

pela expansão capitalista no campo, como também, reafirma seu compromisso diante as

classes pobres.

Dessa Forma, a CPT insere no debate político do país o tema da escravidão

contemporânea através de sua militância e organização, onde em nenhum momento

abandona as questões correlatas como reforma agrária, direito dos povos indígenas e

atenção sobre a violência no campo. Em 1991, após o assassinato do trabalhador rural

Expedito, no sul do Pará, em razão dos conflitos na disputa pela posse da

terra.(MORAES.2007) foi criado o Fórum Nacional Permanente contra a violência no

campo, onde pautaram em especial, o trabalho escravo. Segundo Moraes(2007), é nesse

momento que se inicia a discussão dos aspectos jurídicos da questão como a tipificação

da competência penal para investigação, processo e julgamento entre outras medidas.

Em 1993, a CPT estava à frente de denúncias à polícia Federal quanto a omissão

da apuração dos casos de Trabalho Escravo, como conta o documento abaixo:

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Em 1994, O Fórum Nacional sobre a Violência no Campo, promove o Primeiro

Seminário Nacional sobre o Trabalho Escravo na Câmara dos Deputados, em Brasília.

No mesmo ano o caso José Pereira ganha repercussão internacional através da CPT,

CEJIL e o American Watch. Em 1995 por fim, o governo federal reconhece o Trabalho

Escravo Contemporâneo no Brasil e se compromete a combatê-lo.

Contudo, a CPT consegue, através de seus militantes, que passam a orientar sua

vida em prol do combate ao trabalho escravo, como Dom Pedro Casaldáliga , Dom

Thomaz Balduíno, Frei Henri Roziers, Frei Xavier , Padre Ricardo Rezende e todos os

seus assessores e companheiros de luta, colocando na pauta política do país novas

medidas de combate à escravidão.

Em 1995 acontece o primeiro avanço com a criação do Grupo Executivo de

Repressão ao Trabalho Forçado (GERTRAF) - , do Ministério do Trabalho, para

auxiliar especificadamente sobre o trabalho escravo. Mesmo com muitas deficiências,

quanto as suas ações, o grupo móvel, continuou suas atividades. Segundo a pesquisa

feita nos primeiros relatórios de fiscalização, as ações ainda estavam pouco

estruturadas, nos documentos nota-se uma falta de unidade nas informações das

diferentes fiscalizações, uma melhor sistematização vem a acontecendo nos relatórios

mais recentes.

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Em 1997, a CPT lança a campanha “ De Olho Aberto para Não Virar Escravo!”,

onde realizam um trabalho didático voltado para os trabalhadores, para que fiquem

sabendo de seus direitos.

Figura: Campanha CPT

Em 2002, é criada uma Comissão Especial para combater a violência no campo,

o trabalho forçado e escravo e infantil, esta comissão estava inserida no Conselho de

Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), do Ministério da Justiça. Em 2003 é

instituída a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo (CONATRAE),

com vários representantes da sociedade, a fim de combater o trabalho escravo. Para

Moraes (2007) a CONTARAE é o resultado de todas as iniciativas e ações (individuais

e coletivas), para a erradicação da escravidão. Após a criação desta comissão, alguns

resultados podem ser enxergados como a alteração do Código Penal, o artigo 149; o

Cadastro de Empregadores, do Ministério do Trabalho; a Lista Suja e as Campanhas da

CPT, OIT e das Ongs como a Repórter Brasil.

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CAPÍTULO III – A geografia do Trabalho Escravo Contemporâneo no

Brasil ( através do Estudo do Banco de Dados da Comissão Pastoral da

Terra ) entre 1985 a 2006:

É a partir de 1995 que a escravidão contemporânea é admitida pelo governo

brasileiro68

- mesmo com a CPT, ONGs, a mídia e os movimentos sociais apontando a

existência desde a década de 70. A afirmação e a posterior criação de meios que

facilitassem o combate à escravidão (como a criação do Grupo Móvel) permitiu a

utilização de documentos que comprovam as situações de escravidão. Mesmo assim,

ainda é muito difícil mensurar o número exato de pessoas submetidas a essa situação.

Segundo Sakamoto(2004) para o trabalho dos grupos de fiscalização móvel do governo

federal ser efetuado as denúncias dependem que :

[...] 1°O trabalhador tenha consciência de que está em uma situação irregular

– muitos acreditam que devem ao patrão. 2° consiga uma forma de sair da

fazenda. 3°consiga levar as denúncias as autoridades corretas –

considerando que algumas fazendas estão a dias de caminhada do povoado

mais próximo e que há casos de endividamento de autoridades locais,

regionais e nacionais com fazendeiros criminosos, é possível afirmar que

muitos trabalhadores sem situação de escravidão nunca farão suas

denúncias. (SAKAMOTO.2007.50)

Segundo pesquisa deste mesmo autor existem três fontes de dados sobre a

escravidão contemporânea sendo sistematizadas: a do Poder Executivo (que se constitui

em informações sobre as operações do Grupo Móvel, sendo padronizadas a partir de

2001) a do poder Judiciário e do Ministério Público que possuem a mesma fonte do

poder executivo (informando as ações civis públicas e coletivas referente a esses

68 Como conseqüência de todos esses anos de denúncias e pressão, o Presidente da Republica reconhece a

existência do trabalho escravo no Brasil, se compromete a combatê-lo e cria o Grupo Móvel e o

GERTRAF. Discurso de FHC de 07.06.1995( Material Frei Henri Roziers)

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crimes) e os bancos construídos pela Sociedade Civil (CPT, Grupo de Pesquisa sobre

Trabalho Escravo Contemporâneo - GPTEC). Dessa forma, o tema passa a ser tratado

com mais seriedade, principalmente pelos órgãos públicos. No entanto, a maioria desses

dados estão organizados e coletados a partir de 1995, com exceção do banco da CPT e

do GPTEC que possuem um trabalho mais aprofundado por cruzarem muitas

informações pessoais dos trabalhadores, como idade, gênero, atividade envolvida,

trajeto de aliciamento, redes constituídas ao longo do período que foi empregado; como

também dados sobre os estabelecimentos e a origem dos trabalhadores. Em síntese,

fatores externos e internos que apontam que o trabalho escravo está inserido em

relações complexas e que pertencem a estruturas sócio-espaciais formadas em diferentes

escalas69

.

A opção pelo uso do banco de dados da CPT não foi realizada em comparação

aos bancos citados anteriormente, esta escolha partiu de um encontro da pesquisadora

com o tema ao trabalhar em uma pesquisa no LEMTO em cooperação com a CPT, na

elaboração dos Cadernos de Conflitos no Campo. Aprofundar o trabalho feito pela CPT

tornou-se um desafio buscando entender o porquê da escravidão em determinadas áreas

do território brasileiro.

Além de entender que é a partir do movimento organizado pela CPT que o tema

passa a ser pautado na agenda política do país, sendo impossível pensar em qualquer

fonte organizada sobre a escravidão contemporânea que não perpasse o trabalho da

pastoral. Segundo Sakamoto(2007):

[...] a instituição é a principal responsável por coletar e enviar aos grupos de

fiscalização as denúncias de trabalhadores. Entre 2002 e novembro de 2006,

a CPT representou 66% do total delas.Entre 2003 e novembro de 2006, a

base de dados da Comissão Pastoral da Terra registrou 28308 trabalhadores rurais envolvidos em denuncias de trabalho forçado, incluindo suas

denuncias e a de outros atores. Desses, segundo ela, 16493 foram libertados.

(SAKAMOTO.2007:53)

69 Seria muito interessante o cruzamento dos bancos a fim de que se tornasse disponível o acesso dos

dados, no entanto são contextos diferentes entre a formulação de cada um destes.

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Desde sua formação em 1975, a CPT luta para o estabelecimento do processo

democrático no país. E através de seu trabalho sobre a violência no campo que muitos

setores da sociedade entraram em contato com a situação vivida pelo trabalhador rural.

As denúncias apontavam as contradições existentes em projetos políticos e de

desenvolvimento concedidos pelo Estado, principalmente na Amazônia.

Para a CPT o motivo de se fazer a documentação dos dados sobre questão

agrária possui uma dimensão teológica, ética, política, pedagógica, histórica e científica.

De acordo com os Cadernos de Conflitos no Campo podemos observar:

[...]Científica - porque o rigor, os procedimentos metodológicos e o

referencial teórico permitem sistematizar os dados de forma coerente e

explícita. A preocupação de dar um caráter científico à publicação existe não

em si mesma, ela existe para que o acesso a estes dados possa alimentar e

reforçar a luta dos próprios trabalhadores, contra o latifúndio. Não se

trata simplesmente de produzir meros dados estatísticos. Trata-se de registrar

a história de luta de uma classe que secularmente foi explorada, excluída,

violentada.” (Cadernos da CPT, 2006-9)

Ultimamente a aproximação dos agentes da CPT com os pesquisadores de

Universidades tem contribuído para repensar e reorganizar algumas questões sobre o

trabalho, entretanto, vale ressaltar que o motivo de se fazer o banco no seu início, pode

ser diferente do que é o banco de dados se tornou hoje. Principalmente se for analisado

a forma com o qual foram se organizando os dados, através de seus agentes, que

pertencem a diferentes localidades.

Se limitarmos a antiga idéia de que se fazer ciência é trazer a verdade não

podemos dissociar a ciência das relações de poder e por conseguinte das relações

sociais. Se quem possui a verdade também possui o poder, e é exatamente por aí que são

constituídos os discursos, se torna possível entender que o embate exposto entre a

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cientificidade ou não do trabalho da CPT perpassa uma relação política dos atores

relacionados. ,

Desta forma, a pesquisa objetiva uma análise sobre as espacialidades propostas

pelos dados históricos reunidos pela pastoral. Tendo em vista que a história e a

geografia se modificam ocasionando verdades com temporalidades diferenciadas.

A própria sociedade já aponta para o que venha a ser o trabalho escravo, mesmo

assim existem novos paradigmas a ser quebrado dentro do tema, como a melhor forma

de ação, erradicar as reincidências entre outros.

Desse modo, através de uma parceria com membros da CPT nacional,

responsável pelo setor de documentação que disponibilizaram todas as informações

pertencentes ao banco de dados ao LEMTO que pela primeira vez sairia de sua

instituição.

3.1 Considerações Metodológicas

A pesquisa foi feita através de uma parceria com membros da CPT nacional,

responsável pelo setor de documentação que disponibilizaram todas as informações

pertencentes ao banco de dados ao LEMTO. Ao entrar em contato com o banco, iniciou-

se um longo processo de organização e sistematização dos dados da década de 70. É a

partir de 1985 que a CPT começa a registrar seus dados recolhidos pelos agentes da

pastoral que estão distribuídos pelo território nacional, organizando-o em um banco de

dados e os publicando anualmente o Caderno de Conflitos no Campo. Dessa forma,

pretende-se nesse capítulo oferecer uma análise sobre os dados no período de 1985 a

2006.

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3.1.1 Estrutura da pesquisa

Os dados foram organizados referentes a trabalho escravo de acordo com os

critérios pré-estabelecidos pela CPT. Os dados apresentados nas publicações e que

constituem o banco são obtidos através de pesquisas primárias e secundárias. A fonte

desse material é oriunda de um levantamento de informações publicadas em jornais de

circulação local, estadual e nacional; boletins e publicações; declarações e cartas;

boletins de ocorrência além dos dados levantados pelas Regionais ( 21unidades

contando com 87 equipes distribuídas pelo território nacional70

). Esses dados são

pesquisados e apurados para que não ocorram duplicação da publicação dos dados.

Essas informações e dados são organizados por meio de formulários temáticos do

Datacpt – Banco de Dados Conflitos no Campo71

.

Ao utilizar o termo conflito a CPT traz um conceito bastante trabalhado pelas

ciências sociais. Segundo o dicionário de políticas (BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI,

Nicola; PASQUINO, Gianfranco.2004), conflito é a interação entre indivíduos, grupos,

organizações e coletividades que implicam choques para o acesso e a distribuição de

recursos escassos. Assim, o conflito é entendido como enfrentamento de duas partes

distintas sobre o território.

Na geografia o conceito vem sendo trabalhado por alguns autores através da

compreensão da dinâmica dos movimentos sociais como, por exemplo, a proposta do

LEMTO e do grupo GEOAGRÁRIA expresso através das palavras de Porto-Gonçalves

e Alentejano(2008):

70 Além das Regionais AC,AP,AM(+1 equipe),Araguaia- Tocantins, BA(11),CE(5), ES(1), GO(5),

MA(7), MT,MS(3),MG(16), PA(10),PR(3), PI, RS(8),RO(1), RR(16), SC(4), SP(3). A regional Nordeste

possui 9 equipes além das já citadas anteriormente.

71 A CPT entende por conflito: “ações de resistência e enfrentamento que acontecem em diferentes

contextos sociais no âmbito rural envolvendo a luta pela terra, água, direitos e pelos meios de trabalho ou

produção. Estes conflitos acontecem entre trabalhadores ou por casa da ausência ou má gestão de

políticas publicas.”( cadernos da CPT, 2006-10)

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110

A compreensão da geograficidade dos movimentos sociais está associada a

uma visão que trata os conflitos não como disfunção social, mas como algo

aberto, contraditório e historicamente indeterminado. Para nós o conflito social

é expressão das tensões e contradições da ordem social em permanente

transformação. Consideramos que o conflito social é a manifestação concreta

dos antagonismos de grupos e classes e por meio dele se evidencia a

experiência concreta de construção de sujeitos sociais, onde se configura a

construção de identidades coletivas, de motivações e interesses

compartilhados, estratégias de luta, assim como formas de organização e manifestação. Assim, o conflito não é externo às relações sociais, mas, parte

constitutiva delas. O conflito evidencia, portanto, a formação das classes e

grupos sociais e, dessa forma, permite a identificação empírica da classe

concreta e não da classe teórica ou classe no papel, como tão bem criticara

Pierre Bourdieu. A classe social deixa de ser vista, aqui, como uma substância

– uma coisa – que teria uma essência e passa a ser vista como formação. Na

expressão luta de classes a palavra forte é luta, pois é por meio dela que as

classes podem se constituir, conforme nos ensina o historiador inglês E.

Thompson. (ALENTEJANO et all, 2008)

Os conflitos são assim organizados pela CPT por temas: Conflitos por terra;

ocupações; acampamentos; conflitos trabalhistas; conflitos pela água; conflitos em

tempos de seca; conflitos sindicais; conflitos em área de garimpo.

A CPT reúne na base dos Conflitos Trabalhistas a categoria trabalho escravo e

as situações de superexploração. No entanto, nessa pesquisa apenas os casos de

trabalho escravo72

foram considerados. Para a CPT p trabalho escravo é definido

como:

Trabalho escravo que tem como elemento essencial a central sujeição do

trabalhador, que pode ser física e ou psicológica. A dívida crescente e

impagável tem sido um dois meios mais utilizados para tornar o trabalhador cativo. Em geral, ela começa com a contratação pelo “gato”, que paga a

dívida do trabalhador na pensão e deixa um adiantamento para a família. A

dívida aumenta durante o deslocamento até o local de trabalho, uma vez que

o “gato” paga a condução e a alimentação durante os dias de viagem. Ao

chegar, o peão é obrigado a comprar seus instrumentos de trabalho. No

estabelecimento, quase sempre, vigora o “sistema do barracão”:

obrigatoriamente o peão tem que comprar alimentos e objetos no armazém

da empresa, onde vigoram preços exorbitantes. Não recebe em espécie, mas

em vales a serem descontados no armazém. A quebra da palavra com

referência ao valor da remuneração e das condições de trabalho, combinados

72 Grifos meus

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111

no ato da contratação (quase sempre verbal) eleva consideravelmente a

dívida inicial em termos de horas a trabalhar. A situação descrita já

caracteriza suficientemente o trabalho escravo. Porém, existem situações

agudas, onde se verifica a presença de pistoleiros ou vigias armados que

impedem a saída ou mesmo a fuga dos trabalhadores dos estabelecimentos.

Há ainda maus-tratos, ameaças implícitas ou veladas, jornadas

excessivas de trabalho, alimentação de péssima qualidade e insuficiente

para repor as energias de um trabalhador adulto. Na maioria dos casos

falta assistência médica (chegando ao cúmulo de terem que trabalhar doentes), e o local de trabalho está isolado, e ocorre a apreensão de

documentos pessoais. ( Cadernos da CPT, 2006-11-13)

Por entender que é comprovado que todas essas características consideradas pela

CPT como maus tratos, ameaças, jornadas excessivas , colaboram para a manutenção do

crime, no entanto, o conceito trabalhado por essa pesquisa será o utilizado pelo

Ministério Público do Trabalho, supracitados, como:

toda a modalidade de exploração do trabalhador em que esteja impedido ,

moral , psicológica e/ou fisicamente, de abandonar o serviço, no momento e

pelas razões que entender apropriados, a despeito de haver, inicialmente,

ajustado livremente a prestação de serviços, sendo similar a trabalho forçado,

termo utilizado por alguns órgãos internacionais, para definir a situação de

coerção.

Por acreditar que desta forma não se sujeita a associações ao trabalho

degradante, por mais que este esteja associado na maioria dos casos.

Seguindo os dados utilizados pela CPT, segue abaixo uma pequena

demonstração dos registros no banco feito pelos agentes:

Registro 1 - Mato Grosso

- 25 trabalhadores fugiram porque tratados como animais, vigiados por pistoleiros

armados, 10 horas de trabalho por dia, alimentação fraca e alojamento ruim. (29-12-

1985) Campanha Nacional& Reforma Agrária Informa no.9 jan/mar/85; Jornal de

Brasília Fonte: Banco de Dados da CPT.

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112

Esses casos são coletados, recebidos, checados e analisados pelos agentes, como

foi apresentado anteriormente; muita das vezes o material é acompanhado do

depoimento de um dos trabalhadores que realizam a denúncia e que estavam na situação

de escravidão. Cada caso possui uma pasta que inicia a formação de um arquivo

formando algo similar a um dossiê.

Após a organização dos dados observou-se que para entender um pouco da

geograficidade do tema seria necessário entender não apenas onde se materializavam

tais situações mas outras informações como quais eram os tipos de atividade envolvida,

de onde viriam essas pessoas; porque a reincidência. E para a continuação desse

trabalho foi então necessário a leitura de todos os dossiês feitos pela CPT, que

acompanham cada caso de trabalho escravo. Alguns casos foram suprimidos porque

possuíam informações desencontradas73

, podendo assim existir um número diferenciado

do total de trabalhadores no arquivo de outras pesquisas sobre o mesmo banco74

.

Feita a leitura das atividades envolvidas que foram possíveis de serem

identificadas, os dados foram inseridos em uma planilha, como também alguns dados de

origens dos trabalhadores. Em seguida, chegou-se a um primeiro resultado quantitativo

quanto ao número de trabalhadores envolvidos e o número de ocorrências (casos), esse

resultado orientou a organização dos dados em períodos os quais se estabeleceram um

padrão.

A seguir, os dados foram organizados por regiões que deflagraram certa

constância de algumas atividades e de ocorrências do trabalho escravo. Essa

organização permitiu uma leitura desses dados agregados em comparação a outras

regiões e a outros períodos.

Ao agregar um período tão longo muitas análises podem ser perdidas,

principalmente um aprofundamento mais especifico que contextualize e comprove de

73 Todo esse trabalho foi co-orientado pelo setor de documentação da CPT nacional, no entanto o critério

para a retirada do evento partiu da própria pesquisadora.

74 O Frei Xavier Plassat responsável pela campanha de combate ao trabalho escravo realizado pela CPT

possui um banco de dados que utiliza a mesma fonte.

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113

forma mais individual a comprovação do porque da existência de cada caso. Vale

lembrar, que o tema escolhido é complexo e para uma análise mais individual de cada

caso deve aproximar-se da vida desses trabalhadores para entender melhor as relações

vividas.

No entanto, ao realizar a pesquisa por um prisma que indica uma representação

do evento sobre todo o território, o pesquisador pode assim obter diferentes perspectivas

sobre o tema. Assim, alguns casos que indicavam um diferencial para o entendimento

do dado estatístico, foram feitas análises separadas tentando se aproximar da realidade.

Outro aspecto sobre esta metodologia se refere ao trabalho da CPT. É natural, ao

falarmos de uma instituição que tem como proposta reunir informações sobre as

questões no campo de um território tão extenso como o Brasil, que ocorra uma maior

informação nos locais aonde seus agentes existem por mais tempo. Pode se acusar assim

que os dados podem estar espacialmente limitados, espacialmente a CPT pode estar

limitada por não conseguir instalar postos em todos os Estados e locais75

, porém quanto

as suas ações não está limitada76

. Vale ressaltar que os números se tornam alarmantes

para uma cobertura tão pequena de casos, sendo os dados subestimados e não

superestimados.

3.2 – Escravidão Contemporânea no Campo no Brasil (1985 – 2006) – o que dizem

os dados da CPT:

De acordo com o que foi exposto, o próximo passo após a organização dos

dados foi a representação desses através de mapas e gráficos. Diante das inúmeras

75 A própria OIT não consegue estabelecer relações tão profundas com todos seus países membros.

76 A organização dos seus agentes e a representação criada pelos trabalhadores sobre seu trabalho

demonstrou maior facilidade encontrada no acesso a denúncia. Muitos até preferem pelo fato de muita

das vezes os sindicatos estarem ligados ao patrão e não serem tão confiáveis

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114

possibilidades de trabalho com o banco a idéia inicial é realizar algumas exposições e

posterior descrições sobre os dados e em seguida uma análise mais geral.

O primeiro mapa a ser apresentado se refere ao número de ocorrências (casos)

de trabalho escravo de 1985 a 2006. Ao longo desses 22 anos o número de casos de

escravidão contemporânea distribuídos pelo território somou 1614 ocorrências

envolvendo 144.714 trabalhadores em situação de escravidão. As ocorrências denotam o

número de casos registrados pelo banco de dados, conforme a metodologia utilizada

pela pastoral mencionada anteriormente.

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115

Mapa 1: Intensidade de casos de Trabalho Escravo 1985 – 2006

Como neste primeiro mapa os períodos estão agregados, compreende-se que o

evento não é exclusividade de uma determinada região, podendo se apresentar por todo

o território. Algumas concentrações são evidenciadas, em algumas áreas como na região

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116

Norte, principalmente na região conhecida como “Bico do Papagaio”77

, entre Maranhão,

Tocantins e Pará. Além da forte concentração no Sudeste e no Centro-Oeste.

Se organizarmos os dados de ocorrência por Macroregião, algumas áreas, não

aparecem com muitas ocorrências, como centro-oeste da região Norte, o Sertão

Nordestino e o Oeste da Região Sul.

77 66 municípios – 25no Pará, 16 no Maranhão e 25 no Tocantins – distribuídos em oito microrregiões,

com área total de 140.109,5 km2 e com população de 1.436.788 habitantes.(Ministério da Integração

Nacional – PROMESO.

Page 102: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

117

Mapa 2: Intensidade de Trabalho Escravo por Macroregiao – 1985 – 2006

Na tentativa de entender o porquê dessas ausências e também das áreas de

concentração, optou-se pelo cruzamento dos dados com a malha ferroviária e

hidroviária, como confere o mapa abaixo:

Page 103: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

118

Mapa 3: Intensidade de Trabalho Escravo com Rede Ferroviária e Hidroviária –

1985 – 2006

Com esses cruzamento, três regiões chamam a atenção pela sua concentração de

casos, o caminho da estrada de Ferro Carajás de encontro com a Ferrovia Norte-sul . Na

Page 104: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

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região Centro-Oeste, todo o caminho pela Ferronorte e no Sudeste o eixo da Ferrovia

Sul-Americana até a MRS Logística. É interessante observar que os casos acontecem

em municípios que são próximos a redes de trasnportes.

Na Ferronorte além de casos próximo a rede ferroviária muitas ocorrências estão

isoladas o que pode contribuir para uma diferente análise quanto as estratégias

diferenciadas da privação da liberdade, já que o isolacionismo geográfico é um fator

presente, o distanciamento do trabalhador das vias de circulação se tornam importantes

para a manutenção dos casos.

Na ferrovia Norte Sul que praticamente corta todo o estado do Tocantins, é onde

se observa a maior concentração de casos, principalmente no encontro desta com a

ferrovia Carajás. Existindo oito eixos com ocorrências. Sendo a área de maior

preocupação.

Determinadas regiões como Norte e Nordeste possuem uma baixa concentração

de ocorrências não se torna algo tão simples. No Norte, alguns fatores como, falta de

informação e o próprio acesso à região, pode ser um determinante para a não atração da

mão - de - obra, para esses lugares. No entanto se comparado à região Nordeste e Sul, as

hidrovias e ferrovias cruzam as regiões, e, apesar disso, não possuem ocorrências. De

forma que, as áreas com ausência de ocorrência no Norte podem ser diferentes das

ausências do Nordeste.

Se limitar às condições físicas da região também não se torna o melhor caminho,

até porque, a dificuldade de acesso é muita das vezes um fator determinante para

exercer o poder de forma ilegal.

Entretanto, não se pode esquecer que um dos objetivos de permanência da

escravidão contemporânea é o lucro sobre as formas de produção e meios que facilitem

o custo-benefício das operações produtivas podem favorecer o exercício de alguns

casos.

Com o objetivo de pensar o comportamento desses casos, a seguir serão

apresentados quatro gráficos que demonstram como o evento se apresentou ao longo

desses períodos.

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120

Gráfico 3.2 – Número de Ocorrências 1985-2006

Número de Ocorrência de Trabalho Escravo

422 24 17 16 14 28 18 29 29 22 19 17 16 16 20

47

150

226 237274 261

0

50

100

150

200

250

300

1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: CPT

As ocorrências significam os casos de trabalho escravo, sendo que a média de

ocorrências por ano(desses 22 anos) foi de 68, sendo ultrapassada a partir do ano de

2002. Esse aumento pode ser explicado pela melhor sistematização dos dados e maior

transparência da situação com a publicação do Plano Nacional de Erradicação do

Trabalho Escravo elaborado pela Comissão Especial do Conselho de Defesa dos

Direitos da Pessoa Humana (CDDPH).

Dessa forma, para não haver tantas disparidades foi isolado o período de 2002 à

2006 e foi feito o cálculo da média dos 17 anos anteriores a 2001. De acordo com o

gráfico considerando esses 17 anos a média seria de 21, superada nos anos de 1986,

1987, 1991, 1993, 1994, 1995 e 2001.

O número de casos pode ser conferido de maneira mais homogênea de 1985 a

2000. Ao analisar o gráfico 3.2.1 de ocorrências por estado, dos 22 anos, destacam- se

os estados do Maranhão e Pará que são historicamente conhecidos por apresentarem tais

atividades, existindo um eixo de migração entre esses dois estados. E o Mato Grosso e

Tocantins que participam da expansão da fronteira agrícola.

Os estados do Pará e Maranhão são historicamente conhecidos por apresentarem

tais atividades, existindo um eixo de migração

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121

Gráfico 3.2.1 – Número de Ocorrências(casos) de Situação de Escravidão

por Estado – 1985-2006

Número de Ocorrências de Trabalho Escravo 1985-2006

6 3 4 2 42 2 12 49144

39 26

168

757

1 6 11 21 1 25 11 6 28

142

0

200

400

600

800

AC AL AM AP BA CE ES GO MA MG MS MT PA PE PI PR RJ RN RO RS SC SP TO

Fonte: CPT

Quanto ao número de trabalhadores envolvidos em situação de escravidão que

pode ser observado no gráfico abaixo, a soma é de 144.714, e a média é de 6578, sendo

superada nos anos de 1992, 1993, 1994, 1995 e posteriormente nos anos de 2003, 2004,

2005 e 2006.

Gráfico 3.3 – Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão no Brasil

1985 – 2006.

Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão

143 383 2921 2085 957 16874600

1623818903

2719326041

2487 872 426 1092 454 25365964

90446115 7645 6928

0

10000

20000

30000

1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: CPT

Observando o gráfico, dois períodos se destacam em relação à quantidade de

trabalhadores, sendo eles de 1992 a 1995 e de 2001 a 2006. Comparando com o gráfico

de ocorrências apenas o segundo período de 2001 a 2006 coincide com a elevação do

número de trabalhadores. A suposição do que pode ter ocorrido para que existam esses

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períodos em destaque, é no primeiro período a criação do GERTRAF e no segundo

período o aumento da mobilização contra o trabalho escravo cristalizadas no Plano

Nacional de Erradicação e na organização dos dados segundo agentes já supracitados.

Mapa 4: Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão – 1985 – 2006

Page 108: Trabalho escravo contemporâneo no Brasil - Inicial - GPTEC · 2 Em algumas regiões como na Ásia ainda se configuram alguns casos com o seqüestro, como será apresentado posteriormente

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Neste mapa, as denúncias foram mantidas pelo fato de existir o registro no banco

da CPT que essa localidade possui trabalhadores mantidos na condição análoga a de

escravo, porém não existe a informação quanto a quantidade de trabalhadores

envolvidos, sendo diferente de localidades que não possuem nenhum registro, que seria

igual a zero.

Ao analisar o mapa com o número de trabalhadores por estado de acordo com o

gráfico abaixo, Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Pará e São Paulo se

destacam. Esse valor é diferente ao expresso pelo mapa, pelo fato de que no mapa os

valores estão agregados, com o objetivo de conter um número menor de faixas que

favoreça a visualização, já que a maioria dos casos possui um número pequeno de

trabalhadores. Sendo assim a representação do numero de trabalhadores do mapa será

diferente do representado no gráfico.

Os estados encontrados em destaque pelo gráfico abaixo, estão acima da média

de 6292, configurando áreas com maior concentração do número de trabalhadores por

estado, no entanto, se comparar com os dados de casos de trabalho escravo os únicos

estados que surgem acima da média e coincidem com o número de trabalhadores é Mato

Grosso, Pará, Tocantins e Maranhão ( gráfico 3.2.1).

No gráfico abaixo Minas Gerais e Mato Grosso do Sul surgem com maior

quantidade de trabalhadores, o que deve se relacionar com as atividades exploradas

como o carvão, o café, o eucalipto e a cana – de –açúcar.

Gráfico 3.3.1 – Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão no Brasil

por Estado 1985 – 2006.

Número de trabalhadores em Situação de Escravidao por Estado - 1985 - 2006

2236 71 104 57

5515

882800 2397 4242

28536

40019

13555

25569

60 151 901 1561 29 20974635

162

67583171

0

10000

20000

30000

40000

50000

AC AL AM AP BA CE ES GO MA MG MS MT PA PE PI PR RJ RN RO RS SC SP TO

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Quanto ao número de trabalhadores encontrados em situação de escravidão

analisando mais detalhadamente através do gráfico 3.3 é possível interpretar quatro

diferentes momentos, de 1985 a 1990, de 1991 a 1995; de 1996 a 2001; 2002 a 2006.

O segundo período possui um elevado número de casos em comparação com os

períodos restantes, principalmente nos Estados de Minas Gerais e Mato Grosso do Sul.

Segundo a consulta feita ao Professor Ricardo Rezende, esse aumento no número de

trabalhadores se referem a casos de carvoarias, em Minas Gerais e no Mato Grosso do

Sul, onde foi realizado um estudo pela CPT e a Comissão Permanente de Fiscalização,

através do número de fornos existentes na fazenda. Essa conduta, pode implicar em

forte crítica à publicação da CPT, por estar superestimando os casos por não se ter ao

certo o número de trabalhadores envolvidos. No entanto, vale ressaltar, que esta foi à

única atividade que fizeram tal análise pela própria estrutura física das carvoarias, sendo

extremamente complicado realizar uma estimativa em outros setores, como por

exemplo, como calcular o tempo de serviço e o número de trabalhadores capazes de

realizarem uma empreitada, se cada região possuirá uma vegetação diferenciada.

Se levarmos em consideração os depoimentos dos trabalhadores carvoeiros, fica

claro que não é apenas para trabalhar no forno que eles são contratados. Uma fazenda de

carvão vegetal, necessita de homens para fazerem a coleta da madeira, no caso

operadores de motosserra, motoqueiros, homens para a preparação da madeira para

entrar no forno como também para fazer a limpeza e enchimento dos fornos. Sem contar

os casos em que a fazenda também atua coma pecuária, ou outras culturas. Segundo o

Caderno de Conflitos (1995), o IBAMA não tem o controle de quantas carvoarias

existem nos estados, por isso através da Comissão Permanente de Fiscalização

conseguiram um helicóptero que realizou o trabalho de aerofotogrametria no municípios

do Mato Grosso do Sul para localizar os fornos da região, onde foi contado o número de

fornos dessas unidades produtivas. Diante da repercussão desses casos a Assembléia

Legislativa reiniciou as atividades que apuravam de casos de trabalho escravo, atrás da

chamada “Máfia do Carvão”. Em seguida foi realizada uma CPI, porém, infelizmente

essa pesquisa não encontrou resultados que acompanhassem tal iniciativa.

Em síntese, diante das informações expostas prevaleceu a permanência dos casos

das carvoarias na análise do período, até porque se retirarmos os casos de carvoaria dos

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anos de 1992 a 1995 o período continuará se destacando dos restantes, com exceção dos

anos de 1994:

Gráfico 3.3.2 – Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão no Brasil

por ano sem as carvoarias 1985 – 2006.

Número de Trabalhadores em Situações de Escravidao II (sem estimativas de Carvoarias)

143 383

29212085

9571687

4600

8238

10903

5193

10041

2487

872 4261092 454

2536

5964

9044

6115

76456928

0

2000

4000

6000

8000

10000

12000

1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: CPT

Gráfico 3.3.3 – Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão no Brasil

por Estado sem carvoarias - 1985 – 2006.

Número de Trabalhadores em Situaçao de Escravidão por Estado( sem estimativas de carvoarias)

2236 71 104 57

5515

882800 2397 4242

8536 1001913555

25569

60 151 901 1561 29 20974635

1622758 3171

0

10000

20000

30000

AC AL AM AP BA CE ES GO MA MG MS MT PA PE PI PR RJ RN RO RS SC SP TO

Fonte: CPT

Num possível ranking dos Estados com maior número de trabalhadores

encontrados os estados de Minas Gerais e Mato Grosso do sul ficariam em terceiro e

quarto lugar, atrás do Pará e do Mato Grosso.

Ainda de acordo com o gráfico de trabalhadores em situação de escravidão, com

as carvoarias, em 1996 ocorre uma significativa diminuição no número de trabalhadores

envolvidos que se estende até o ano de 2001. De acordo com os dados do Caderno de

Conflitos de 1996, essa retração no número de dados se deve às repercussões da

formação da CPI formada em Minas Gerais e a ação, mesmo que tímida do GERTRAF,

ao número de fiscalizações do trabalho.

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De acordo com os períodos indicados temos por período:

Tabela IV -

Quanto ao número trabalhadores em situação de escravidão o primeiro período

se aproxima de terceiro período e o segundo período é maior que o dobro do quarto

período e quanto às ocorrências os dados se apresentam de forma crescente.

Segundo os períodos indicados no gráfico de número de trabalhadores suas

médias por período também se diferenciam quando se compara o número de

trabalhadores com o número de ocorrências , onde se destacam o segundo e quarto

período na média de trabalhadores e apenas o quarto período fica destacado na média

dos casos, indo de encontro ao resultado do primeiro gráfico de ocorrências.

Gráficos 3.4 – Média do Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão no

Brasil e média de ocorrências de trabalho escravo por período

Média do Número de Trabalhadores por Período

0

5000

10000

15000

20000

1° Período

1985 - 1990

2° Período

1991 - 1995

3° Período

1996 - 2001

4° Período

2001 - 2006

Média de Ocorrências de Trabalho Escravo

por Período

0

50

100

150

200

250

1° Período

1985 - 1990

2° Período

1991 - 1995

3° Período

1996 - 2001

4° Período

2001 - 2006

Número de Trabalhadores por Período

1° Período 1985 - 1990 8176

2° Período 1991 - 1995 92975

3° Período 1996 - 2001 7867

4° Período 2001 - 2006 35696

Número de Ocorrências por Período

1° Período 1985 - 1990 97

2° Período 1991 - 1995 126

3° Período 1996 - 2001 135

4° Período 2001 - 2006 1148

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127

Uma outra análise pode ser feita de acordo com a regionalização feita pelo

IBGE, ao avaliarmos os períodos de acordo com as regiões do IBGE expostas no

gráfico abaixo teremos:

Gráfico 3.5 - Número de ocorrências de trabalho escravo por Região e por

Períodos.

Número de Ocorrências de Trabalho Escravo por Região do IBGE e por Períodos

52 3777

770

4 10 15

170

20 38 22

163

19 29 18 342 12 3 110

100

200

300

400

500

600

700

800

900

1985 - 1990 1991 - 1995 1996 - 2001 2002-2006

N

NE

CO

SE

S

Temos no primeiro período as regiões Norte e Centro-Oeste se destacando. No

segundo período a região Norte, Sudeste e Centro- Oeste. No terceiro período Norte e

Centro- Oeste e no último período Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Ao compararmos ao número de trabalhadores por região, como apresenta o

gráfico abaixo percebe-se que a região Centro-Oeste se destaca em todos os períodos.

Gráfico 3.5.1 - Número de Trabalhadores em Situação de Escravidão Por

Região e por Períodos.

Número de Trabalhadores por Região do IBGE e por Período

30545088 3867

20775

793743

788

55462393

45241

1324

7013

2192

33743

1583 21378

5160

305 225

0

10000

20000

30000

40000

50000

1985 - 1990 1991 - 1995 1996 - 2001 2002-2006

N

NE

CO

SE

S

Fonte: CPT

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128

O banco de dados também permitiu uma organização quanto às atividades

encontradas com trabalho escravo. Para isso, foram lidos todos os históricos de cada

ocorrência de 1985 a 1999, e posteriormente complementado pelo banco da CPT até

2006, que já possuía as informações referentes às atividades.

Os que estamos chamando aqui de atividade incluem a produção e a função que

exercem os trabalhadores encontrados. A opção por usar o termo atividade composta

pelas funções exercidas e atividades produtivas, ao invés de separá-la, é feita pelo fato

de acreditar que toda produção necessita do homem para se tornar parte da economia.

Para uma melhor compreensão dos gráficos e mapas a seguir, vale destacar a

metodologia utilizada na denominação das categorias apresentadas como atividades, que

foram expostas de acordo com o dado encontrado em cada registro, algumas atividades

foram agregadas para melhor entendimento e exposição expostas na tabela abaixo:

Quadro 4: Lista de Atividades Encontradas no Banco de Dados CPT

Atividade Denominação segundo os arquivos

Empreitada Derrubada+Desmatamento+Roçado +Retirada

de madeira, Roço, roçagem, Roço da Juquira,

Roçagem e Pasto, capina, cata de raiz, roçado e

carvão, Roçagem de pé de cerca. Derrubada;

derrubada de acácias.

Extrativismo Aproveitamento de babaçu, cipó de Jatobá,

Cipó de Ititica, Resineiros, Extração e Palmito,

açaí*;

Madeira Serrarias, bater , empilhar e amontoar a madeira

, atividades ligadas a extração de madeiras para

serrarias, como extração de madeira de lei

Pecuária Gado, Vaqueiros, criação de gado

Polivalente Construção de cercas e roçado;

trator;doméstico, aceiro de cercas; Serviço

Geral, peão, trabalhador rural, lavradores. E em

geral um grupo de mais de três atividades

denominadas pelos trabalhadores.

Soja Carpa de soja e girassol, soja combinada com

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129

milho, algodão e arroz, soja e cata de raiz.

* Apenas um caso foi encontrado com a extração de Palmito e Açaí

Os dados sem informação foram retirados da análise dos mapas de atividades, a seguir

segue o primeiro mapa referente ao primeiro período. (próxima página)

Mapa 5: Atividades Relacionadas ao Trabalho Escravo 1° Período – 1985 –

1990

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130

Como demonstra o primeiro período, a empreita e a cana foram os que entraram

em maior evidência, estando distribuídos os casos na região oeste e sul. Na direção para

onde se expande a fronteira agrícola entre os limites dos Estados do Mato Groso e do

Pará, a empreitada é presenciada ainda no estado do Mato Grosso. A cana- de açúcar,

concentra-se desde o Rio de Janeiro até o oeste do Mato Grosso do Sul, como também

no nordeste.

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131

Mapa 6: Atividades Relacionadas ao Trabalho Escravo – 2° Período – 1991 – 1995

Nesta fase a empreitada e a cana continuam dominantes pelo território, no

entanto, um número maior de atividades é identificado pelo banco o que pode ser

resultado do próprio processo de organização da CPT. A região do bico do papagaio e a

região sudeste apresentam concentração das atividades a partir deste período.

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Mapa 7: Atividades Relacionadas ao Trabalho Escravo – 3° Período – 1996 – 2001

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133

O terceiro período se destaca dos demais pela ausência de informação

exatamente no período em que o Grupo Móvel entra em ação, concentram-se as

atividades no Centro-Oeste em direção ao norte e no Sudeste do litoral para o oeste.

Mapa 8: Atividades Relacionadas ao Trabalho Escravo – 4° Período – 2002 – 2006

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134

E por último, o quarto período, que participa de uma maior integração das

informações. A cana e a empreitada voltam a se destacar e a região do Centro-Oeste

juntamente com o Norte em direção ao “ Bico do Papagaio” , um número grande de

casos permanecem nessa região. O carvão , enunciado desde o segundo período, recebe

uma maior dimensão na ultima fase.

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135

Análise comparativa dos quatro períodos:

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136

Mapa 9: Atividades Relacionadas ao Trabalho Escravo por Macroregiao –

1985 – 2006

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137

A atividade de empreita que neste caso foi a mais encontrada, foram enquadrada

conforme foi citada anteriormente. O roço, como é conhecido pelos trabalhadores ,

neste caso, acumulou não somente os casos em que os próprios trabalhadores

denominam como função mas também outros eventos que caracterizam-se por fim a

atividade da roçagem, como por exemplo: O roço da Juquira(a juquira é o nome dado à

roçagem , principalmente na Amazônia, quando este trabalhador , tem como função a

retirada da mata que se encontra após a derrubada); Roçagem de pasto, Capina e cata de

raiz, roçado , roço). Diante disso, o número de casos relacionados à empreitada

encontrado nessa região durante o período de 1985 a 2006 foi de 220 ocorrências. O

que demonstra que a principal atividade onde esses trabalhadores são empregados é na

abertura de áreas, possivelmente ligados a expansão da fronteira agrícola. Muitos

trabalhadores são contratados para realizarem a roçagem e fazerem cercas, palavra

citadas por 51 casos durante esse período analisado.

Outra questão que surgiu ao estudar os dados do banco é quanto à origem dos

trabalhadores. De acordo com a limitação de algumas fontes do banco de dados foi feita

uma pequena amostragem para tentar entender a origem dos trabalhadores encontrados

em situação de escravidão, como demonstra o mapa abaixo. A escolha da amostragem

se deu pelo fato de muitas informações sobre a origem dos trabalhadores não terem sido

inseridas no banco (próxima página)

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138

Mapa 10: Origem dos Trabalhadores – 1985 - 2006.

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139

A maior dispersão é notada pelos trabalhadores do Maranhão e do Piauí. O

Tocantins o Mato Grosso e a Bahia fornecem trabalhadores para o seu próprio

território. Vale ressaltar como o fato do trabalhador ser de outro lugar e não possuir

raízes com o local de trabalho, se torna um condicionante para a prática da dominação

pelos empregadores. Segundo Figueira(2004) ser um imigrante

Um outro caso que chama a atenção são as reincidências de fazendas onde foi

encontrado trabalho escravo. Reincidência significa a repetição do evento na mesma

localidade(fazenda) e mesmo município. Podendo existir casos de reincidência mais de

uma vez por ano em datas diferentes, ou em diferentes anos. A média do número de

casos reincidentes foi de 18.5, ultrapassada apenas nos anos de 1989, 1995, 1998, 1999,

2001, 2002, 2003, 2004 e 2005. Um outro aspecto interessante, que vale ser observado é

a semelhança entre os períodos de transição dos governos que se destacam do restante

do período em que estão inseridos.

Gráfico 3.6 - Reincidências em Trabalho Escravo de 1985-2006

Nos casos de Reincidências por Estado explícitos no gráfico abaixo, Goiás,

Mato Grosso e Pará são as unidades de federação que estão acima da média encontrada

que foi de 24.3.

Número de Casos Reincidentes em Escravidão de 1985-2006

2

10 12 11

22

1418 16 15 13

20

8

16

24

31

3

19

27

34

2218

34

0

10

20

30

40

1985 1986 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: CPT

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140

Gráfico 3.7. - Reincidências em Trabalho Escravo por Estado de 1985-2006

Número de Casos Reincidentes em Escravidão por Estado 1985-2006

2 2 2 629 22 20 18

48

184

619

7 2 121

0

50

100

150

200

AM AP BA ES GO MA MG MS MT PA PI RJ RO SC SP TO

Fonte: CPT

De acordo com o mapa abaixo, as regiões do Sudeste, Centro-Oeste e Norte ( na

concentração do bico do papagaio) são as regiões que apresentam a permanência do

evento em mais de um período. O que implica em questionar porque essa espacialidade

vem se repetindo.

Se considerarmos a proposição da CPT, de conceber o trabalho escravo como

um conflito trabalhista e somarmos a concepção de conflito, apresentada por Alantejano

(2008) Onde “o conflito social é expressão das tensões e contradições da ordem social

em permanente transformação”(2008). Pode-se entender que no caso do trabalho

escravo grupos ou classes estão se materializando nesses espaços, através do uso da

violência por mais de duas décadas.

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141

Mapa 12: Reincidências de Trabalho Escravo por Município – 1985 - 2006.

Se Realizarmos a análise das Reincidências de Escravidão por período onde

aparece maior número de trabalhadores, teremos no primeiro período cinco (5) estados

reincidentes em seis anos. No Segundo período, em que temos cinco anos o número de

estados envolvidos dobra, atingindo dez (10) estados. No terceiro período de quatro

anos, quatro (4) estados permanecem num total de oito (8) estados envolvidos. E por

último, em seis anos, três estados permanecem entre cinco casos. Os estados do Pará e

do Mato Grosso, são os únicos onde houve reincidência nos quatro períodos

apresentados.

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142

Gráfico 3.8 - Reincidências em Trabalho Escravo por período 1985-2006

3.8.1

Número de Casos Reincidentes em

Escravidão - 1° Período 1985-1990

2

7

11

4

19

8

0

5

10

15

20

1985 1986 1987 1988 1989 1990

Fonte: CPT

Número de Casos Reincidentes em

Escravidão por Estado

1° Período 1985-1990

2

12

30

52

0

10

20

30

40

MG MT PA RJ RO

Fonte: CPT

3.8.2

12

16

9 10

20

0

5

10

15

20

25

1991 1992 1993 1994 1995

Número de Casos Reincidentes em Escravidão

2° Período 1995-2000

Número Casos Reincidentes em Escravidão por Estado

2° Período - 1991 - 1995

24

10

15

9 10

68

2 1

0

5

10

15

20

BA GO MG MS MT PA PI RJ SC SP

Fonte: CPT

3.8.3

Número de Casos Reincidentes em Escravidão

3° Período 1995-2000

4

11

18

28

0

5

10

15

20

25

30

1996 1997 1998 1999Fonte: CPT

2 3

23

4 5

15

5 4

0

5

10

15

20

25

AP ES GO MG MT PA RO TO

Número de casos Reincidentes em Escravidão

Por Estado 3° Período 1995-2000

Fonte: CPT

3.8.4

Número de Casos Reincidentes em Escravidão

4° Período - 2001- 2006

14

24

30

21

30

16

0

10

20

30

40

2001 2002 2003 2004 2005 2006

Fonte: CPT

Número de casos Reincidentes em Escravidão por Estado -

4° Período 2001-2006

22

4

90

2

17

0

20

40

60

80

100

MA MT PA RJ TO

Fonte: CPT

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143

O que vai de encontro com a análise de ocorrências e atividades dos mapas, onde

estes dois estados aparecem em todos os períodos. A existência da reincidência

estabelece uma possível reflexão sobre o que favorece a permanência da impunidade

nesses municípios. Por mais que o maior número de trabalhadores encontrados se

localize no Sudeste de acordo com o mapa 5, é no Centro Oeste e no Norte que a

impunidade e a violação aos direitos humanos tem se tornado presentes há mais de 20

anos. Vale associar esses municípios aos poderes locais privados já que é iniciativa do

poder privado a coerção e dominação dos trabalhadores, como também, o poder público

local deve ser investigado para saber se existem relações com os setores produtivos.

Em síntese, foram apresentados os dados na tentativa de pensar a espacialidade

do trabalho escravo no campo ao longo desses 22 anos. Através da distribuição dos

casos, pode-se perceber que o evento não é exclusividade de regiões com baixo poder

aquisitivo, e infelizmente se realiza por boa parte do território, que pode levar a pensar

até em todo o território.

A região que comporta a ferrovia Norte-sul é conhecida desde a década de 60,

pela introdução dos investimentos do governo militar. O caminho da Rodovia Belém-

Brasília e da ferrovia Norte-sul, vão de encontro ao fluxo, ao norte, trazido pela

Ferrovia Carajás. Essa mesorregião conhecida como Bico do Papagaio, concentrou na

década de 60, projetos de ocupação do governo Militar, que por inserir a cobiça de

grandes empreendimentos produziram muitos conflitos no campo. Essa mesorregião

concentra o maior número de ocorrência, o maior número de reincidências, e também

um pólo de atração de migrantes.

O embate entre posseiros, grileiros, e povos originários está longe de chegar ao

seu fim, pois as racionalidades são muito distintas, frente à falta de mudança estrutural

que modifique o modelo fundiário de concentração de terras.

O Centro-Oeste, também possui uma dinâmica particular quanto à ocorrência de

escravidão. A distribuição no território se assemelha bastante com o traço da linha

ferroviária, no entanto, se torna prematuro afirmar o elo entre essas semelhanças. O que

não pode ser deixado de lado é o fato de essa região ter se transformado após a evolução

tecnológica, na nova área de produção agrícola do Brasil, concentrando o modelo do

Agronegócio. O que permite pensar tal contradição, já que este modelo é baseado em

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144

tecnologia de ponta e procura mão-de-obra qualificada para o manuseio desta. Talvez

exatamente, por possuir esse perfil, algumas empresas escondam os artifícios usados

para atingir tão facilmente o mercado mundial, inserindo o produto a baixo-custo e

apoiados pela política governamental da bancada ruralista.

O comportamento homogêneo das ocorrências até 2001, também pode ser

relacionado ao surgimento Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo

(CONATRAE). Constituída por representantes do poder público e de organizações, esta

tem por objetivo prevenir e combater a prática do trabalho escravo e realiza o

lançamento do Plano Nacional de Erradicação contra o Trabalho Escravo78

. A luta para

a erradicação ganha força desde a década de 90. Segundo Moraes(2007) o tema é usado

pela primeira vez como campanha, em 1994, a partir da iniciativa do Fórum Nacional

Permanente Contra a Violência no Campo, que resulta em 1995 da criação do

GERTRAF, podendo agir de forma mais ampla sobre o território. Dessa forma,

podemos então perceber que se os números da CPT eram acusados de serem

superestimada, essa acusação se torna equivocada, pois a partir de 2003 os dados

assumem novo padrão(dobram) o que possivelmente corresponde à ação integrada com

o Ministério do Trabalho e a ação de inspeção da Secretaria de Inspeção do Trabalho. E

se tornam bem superiores ao trabalho individual da CPT.

Os dados sobre o número de trabalhadores evidenciam o segundo e o quarto

período como fases em que o número de trabalhadores nessa situação foi intensificado.

Infelizmente a dificuldade em se obter um controle sobre o número e função de

trabalhadores nas áreas de produção, não auxiliam que o número de trabalhadores seja

mensurado de forma mais qualitativa. Se não fosse os esforços da CPT e do Ministério

do Trabalho em denunciar publicamente o quanto é alarmante a relação de trabalho no

campo, certamente, seria difícil contabilizar a existências desses trabalhadores.

Uma iniciativa, foi realizada em Cosmópolis, interior de São Paulo, através do

mapeamento e controle do peso da produção no corte de cana. Essa medida só foi

78 Em 2008 foi lançado a segunda versão do Plano Nacional de Erradicação do Trabalho

Escravo.

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145

possível através da militância do sindicato de cortadores de cana que após sucessivas

greves, conseguiram uma balança e o mapeamento da área plantada sob seu controle a

qual nomeiam de “quadra-fechada” – essa história pode ser acompanhada pelo filme

Quadra-fechada, de José Roberto Novaes – pois eram enganados pelos patrões na hora

do peso e área de corte. Com a Quadra-Fechada os trabalhadores podem ter controle

sobre o seu trabalho e sobre a sua produção. Porém, esse trabalho só foi possível,

através da fidelidade do sindicato presente com os seus trabalhadores, experiência ainda

não vivida por muitas fazendas.

No século XXI, as tecnologias invadem os espaços mais remotos, a informação

via satélite, através dos GPS, já pode ser presenciada em alguns tratores no campo; a

alta tecnologia utilizada na biotecnologia para o melhoramento de sementes e

defensivos se mundializa a cada segundo. Portanto, se determinadas fazendas procuram

estabelecer a todo instante esse contato com a alta tecnologia, seria interessante se os

trabalhadores também pudessem possuir dessa tecnologia para controlar o seu trabalho,

e ter a “liberdade” de colocar sua força de trabalho a venda, sabendo que irão receber

por isto.

Ao pensar no fluxo de informação gerados por essas tecnologias informacionais,

vale ressaltar que o governo, poderia estar colaborando com políticas públicas para a

formação dos trabalhadores – ou até mesmo dispensando a tecnologia, pois a cartografia

existe antes mesmo da invenção do GPS – na perspectiva de controle das áreas

produzidas, ou pelo menos repassando através de informações oficiais, a dimensão

fundiária das propriedades nas quais esses trabalhadores estão inseridos. Informação

que vem sendo esperada através de censos agropecuários.

Quanto às atividades encontradas, a empreitada ganhou forte repercussão por

associar as diversas atividades de trabalho manual, declaradas pelos trabalhadores.

Mostrando que é na atividade rural de menor “qualificação”, que se inicia a relação de

dominação. O que pode ser associado com o perfil dos trabalhadores, geralmente

jovens, analfabetos que partem de regiões pobres para garantir um futuro melhor em

busca de um ofício. Ao partir deixam um futuro de esperança em seus familiares e

encontram um mundo de desencantos, onde perdem sua dignidade e coragem para

retornar para casa.

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146

O corte da cana também se enquadra no mesmo perfil da empreitada, devido às

empresas procurarem mão–de-obra braçal, que dê conta das 12 toneladas diárias

estipuladas pelos patrões. Mesmo com o advento de alta tecnologia para o corte da cana

que consegue medir através de um sensor a qualidade da cana cortada dentro do

caminhão como exposta na imagem abaixo, muitos empregadores preferem ainda

manter a mão-de-obra tradicional, injetando-lhes reforço nutricional para que rendam

mais por dia.

Esse retorno dos trabalhos nos canaviais, só foi possível pelo aumento do preço

do etanol no mercado mundial, que fez aquecer o mercado interno reativando muitas

usinas.

Figura IV -

Uma outra atividade que chama a atenção é a carvoaria, segundo revista do

Observatório Social:

A Amazônia brasileira produz o melhor ferro gusa do mundo, usado

principalmente na produção de peças automotivas. É um mercado que

movimenta 400 milhões de dólares anuais somente na região Norte – 2,2

milhões de toneladas/ano – e tem como principal compradora a indústria

siderúrgica dos Estados Unidos (2006)(...) As carvoarias da Amazônia são

Triminhão

sensor

Imagem: Andressa Lacerda.2008

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controladas por 13 siderúrgicas com sede no Maranhão e no Pará. Algumas

siderúrgicas são de propriedade de gigantes da economia, com atuação em

quase todo o território brasileiro e também no exterior. O grupo Queiroz

Galvão é dono da Simasa e da Pindaré. O grupo Gerdau controla a Margusa.

Simasa e Margusa são acusadas pelo Ministério Público do Trabalho de

usarem mão-de-obra escrava em carvoarias ilegais. Esse carvão é usado na

produção do ferro gusa exportado aos Estados Unidos para a produção de

aço, que por sua vez é matéria-prima de automóveis e diversos outros

produtos.( VERAS e CASARA 2004:12)

É exatamente no quarto período que o carvão se torna mais presente, não

necessariamente ocupando o Norte, mas o Sudeste e Centro –Oeste.:

O interesse das siderúrgicas pela Amazônia acontece porque a região tem

imensas reservas minerais e é muito atraente para quem busca produzir a

baixo custo: tem mão-de-obra barata e madeira em abundância. Em alguns

casos, essa mão-de-obra não custa praticamente nada. A madeira sai da floresta quase de graça, muitas vezes retirada ilegalmente e sem autorização

dos órgãos ambientais. Some-se a isso a brutal concorrência comercial entre

as empresas em escala global e tem-se um quadro de pressões crescentes

sobre o meio ambiente e as condições de trabalho.( VERAS e CASARA

2004:13)

Neste caso, se torna visível que a falta de fiscalização e o mercado mundial

transformam determinados territórios do país em sua “fábrica”. A impunidade também é

um fator importante na medida em que muitas dessas fazendas são reincidentes no

assunto.

O uso de trabalho escravo envolvendo siderúrgicas não é recente. Em 1995,

ano em que o Ministério do Trabalho criou o Grupo Especial de Fiscalização

Móvel, quatro siderúrgicas localizadas no Mato Grosso e em Minas Gerais

foram acusadas de manter trabalhadores escravos em carvoarias. No Mato

Grosso, a pequena cidade de Ribas do Rio Pardo se tornou uma espécie de

pólo escravagista, com denúncias em vários setores da economia. No ano seguinte surgiram pela primeira vez, nos relatórios do Grupo Móvel, os nomes

de siderúrgicas ligadas a grandes conglomerados econômicos. É o caso da

siderúrgica Pindaré, da Queiroz Galvão, com sede em Açailândia (MA). Ela

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148

aparece em relatórios do Grupo Móvel em 1996, 1997, 1998, 2002 e 2003. A

Simasa, também da Queiroz Galvão, aparece pela primeira vez em 2002,

tornando-se freqüente desde então. A Margusa, comprada pela Gerdau no dia 2

de dezembro de 2003, aparece em março de 2004. (VERAS e

CASARA:2004:13)

É necessário, portanto, conhecer em que tarefas o trabalho escravo é empregado

hoje, para poder, então, compreendê-lo como momento do processo do

capital(MARTINS.1997)

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149

3.3 - Uma Leitura Geográfica sobre o Trabalho Escravo Contemporâneo.

Saber fazer uma leitura do que é o mundo hoje e como se dão as relações sociais

no espaço, é fator fundamental para as ciências humanas. Principalmente pelo fato de

nenhuma sociedade se constituir fora do espaço é que devemos ficar atentos a esta

relação. Ao pensar em uma geografia do trabalho escravo contemporâneo temos um

território de conhecimento pouco trabalhado pela geografia, o que leva à construção de

um trabalho ainda com algumas defasagens sob o ponto de vista de superar alguns

limites encontrados pela formação acadêmica ainda contagiada pela delimitação dos

saberes.

A impossibilidade de compreender a realidade pela sua totalidade comprova que

sempre teremos uma linha de raciocínio para refletir sobre um determinado tema, neste

caso, é inconcebível pensar sobre a contemporaneidade das relações de trabalho no

campo sem questionar sobre em qual mundo essas relações estão inscritas,

principalmente quando falamos de um mundo globalizado. Sendo assim, a análise

espacial do trabalho escravo não pode estar desconectada das relações sociais, políticas

e econômicas. Se a geografia deseja interpretar o espaço como fato histórico que ele é,

somente a historia da sociedade mundial, aliada à da sociedade local, podem servir

como fundamentos à compreensão da realidade espacial e permitir sua transformação a

serviço do homem.

O material da CPT permite diferentes tipos de analise que possibilitam outros

tipos de estudos sobre seu banco de dados. Portanto, o material está longe de ser

analisado por completo. As formas de violência, como tortura; o uso de trabalho de

infantil; os casos de morte em conseqüência de trabalho excessivo, ou mesmo por

interesse da manutenção do controle sobre os trabalhadores; casos de envenenamento e

doenças em conseqüência do trabalho, também estão inseridos na dinâmica deste

histórico banco de dados.

De acordo com o proposto por este trabalho as diferentes escalas por onde se

apresentam o tema alerta para uma análise do local e do global como foco principal para

entender o fenômeno como um problema político, por estar relacionado à relações de

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150

poder que se inserem tanto no setor público como privado para a manutenção do seu

status quo, e econômico já que este é o objetivo pelo qual praticam tais políticas.

3.4 - Em busca de um entendimento global sobre o trabalho escravo.

Fortalecidos pelo processo tecnológico, o local e o global adquirem uma

conectividade que favorece a geografia a pensar nos eventos de diferentes formas. Para

refletir sobre um evento que concretiza a violação da dignidade humana, se torna vital

entender as relações pessoais e locais que se apresentam.

Contudo, perceber que esses eventos podem estar inseridos em uma dinâmica

internacional onde o resultado é a ação local se torna um ponto importante para pensar o

trabalho escravo ao longo desses 22 anos aqui pesquisados de forma mais abrangente.

Desse modo, a escala entendida como (CASTRO ,1995):

[...] a escala é a escolha de uma forma de dividir o espaço, definindo uma

realidade percebida/concebida, é uma forma de dar-lhe uma figuração, uma representação, um ponto de vista que modifica a percepção mesma da

natureza deste espaço, e, finalmente um conjunto de representações

coerentes e lógicas que substituem o espaço observado. As escalas, portanto,

definem modelos espaciais de totalidades sucessivas e classificadoras e não

uma progressão linear de medidas de aproximação sucessivas.

Desta forma, a escala pode ser utilizada como ferramenta que aproxima a

realidade percebida e concebida e ao mesmo tempo a transforma. É um instrumento que

permite entender a conexão do evento com realidades diferentes, que se inscrevem em

um tempo e espaço determinados.

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Outro artifício que não pode ser esquecido e que é fundamental para entender o

adensamento da conectividade é a disposição das redes. A partir do momento em que

temos uma divisão territorial do trabalho que é regida por esta disposição e a circulação

passa ser mais importante do que a produção, as redes se tornam o meio pelo qual os

poderes exercem suas forças, na idéia de que a própria estrutura do espaço constitui uma

condição fundamental ao exercício do poder e à natureza local ou regional desse poder79

(SANTOS 2002:271apud Taylor & Trift80

)

O trabalho local depende das infra-estruturas localmente existentes e do

processo nacional de divisão do trabalho nacional. Os segmentos locais da

configuração territorial do país condicionam o processo direto da produção, sua demanda em mão-de-obra, tempo, capital. O trabalho nacional, isto é, as

grandes escolhas produtivas e socioculturais, implica uma repartição

subordinada de recursos, oportunidades e competências e a submissão a

normas geradoras de relações internas e externas. (SANTOS 2002:272)

De acordo com essa perspectiva, o processo de globalização se torna essencial

para o entendimento da escravidão contemporânea sendo através deste processo que as

redes dão um novo sentido ao espaço .

Com o advento da globalização podemos compreender a complexidade do

mundo atual através de eventos locais tendo a compreensão de que tais fatos estão

conectados com ações em outras escalas. Essa possibilidade vem sendo favorecida pela

revolução técnica científica e informacional que nos permite produzir outra dimensão

do espaço-tempo e de se fazer e sentir o mundo.

79 A palavra poder deve ser aqui reconhecida no sentido que lhe dão Taylor &Thrift, isto é, a capacidade

de uma organização para controlar os recursos necessários ao funcionamento de uma outra organização.

(SANTOS 2002:27)

80 (Taylor & Trift 1982:1604)

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Junto com a unicidade das técnicas e a convergência dos momentos, a mais-

valia no nível global contribui para ampliar e aprofundar o processo de

internacionalização, que alcança um novo patamar. Agora, tudo se

mundializa: a produção, o produto, o dinheiro, o crédito, a dívida, o

consumo, a política e a cultura. Esse conjunto de mundializações, cada qual

sustentado, arrastando, ajudando a impor a outra, merece o nome de

globalização” (SANTOS. 2002:204).

Contudo, esta globalização não chegou a todos da mesma forma; as

verticalidades continuam se impondo e os cidadãos sofrem as conseqüências da

globalização desigual. O trabalho escravo contemporâneo é uma delas, encontrado em

diferentes “mundos”, rurais, urbanos em escalas nacionais e internacionais.

A ordem trazida pelos vetores da hegemonia cria, localmente, desordem, não

apenas porque conduz a mudanças funcionais e estruturais, mas, sobretudo,

porque essa ordem não é portadora de um sentido, já que seu objetivo – o

mercado global - é uma auto-referência, sua finalidade sendo o próprio

mercado global. Nesse sentido, a globalização, em seu estágio atual, é uma

globalização perversa para a maioria da Humanidade”. (SANTOS.2002:334)

A diferença regional do mundo contemporâneo estabelece uma divisão

internacional do trabalho que, juntamente com a globalização, permite um

reconhecimento diferente do globo. Para a produção capitalista conseguir manter

padrões da demanda internacional os sistemas de produção mantiveram a produção

tecnológica como sua aliada, no mesmo passo que se intensifica a exploração do

trabalhador. Uma vez incorporada à lógica capitalista, o sistema e suas reestruturações

vão se inserindo e se impondo como única realidade possível.

Ao pensar no campo brasileiro, observam-se mudanças de padrões das formas de

produção, consecutivamente na década de 50, 60 e 70 com o uso de tecnologias que

auxiliam na velocidade da produção e a estrutura física nas formas de armazenamento

dos produtos, o que promoveu um reordenamento nas relações de produção e de

trabalho.

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Segundo Denise Elias(2002) a reorganização do espaço agrário pode ser pensada

através de três momentos adjacentes: o primeiro momento em que os insumos eram em

sua maioria importados a partir da década de 50; um segundo momento em meados da

década de 60 quando as grandes corporações apropriam-se do processo de produção

agropecuária realizando uma industrialização na agricultura, marcada pela expansão dos

Complexos Agroindustriais(CAIs). E por último em meados da década de 70 com o

processo de integração de capitais, a partir da centralização de capitais industriais,

bancários etc.; expansão das sociedades anônimas, cooperativas agrícolas, empresas

integrais verticalmente(agroindústrias ou agrocomerciais), assim como a organização de

conglomerados empresarias holdings, cartéis e trustes.( ELIAS, 2002:26)

A nova configuração da produção portanto, está conectada com novas formas de

se pensar o espaço, que derruba muitos limites físicos para alcançar o mercado global,

como ressalta Ruy Moreira(2006)

[...]os produtos se difundem e se misturam nos diferentes continentes

formando com o tempo uma paisagem de culturas entrecruzadas na qual as

regiões antigas não se distinguem mais umas das outras pelos cultivos do

trigo, do café, do arroz, do milho, da batata, formando-se regiões novas com

essas culturas agora mundializadas.(MOREIRA 2006:161)

Sendo o eixo-reitor desse rearranjo, o desenvolvimento da divisão internacional

do trabalho e de trocas, em função de cujos propósitos os pedaços do espaço terrestre

vão se regionalizando por produto. (MOREIRA 2006)

Toda essa “padronização” da produção e integração dos capitais promovida após

a década de 50 só foi permitida pelo avanço tecnológico, pela inserção de uma nova

família de técnicas e pela informação, segundo Milton Santos(2000)

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[...]A técnica da informação assegura esse comércio, que antes não era

possível. Por outro lado, ela tem um papel determinante sobre o uso do tempo,

permitindo, em todos os lugares, a convergência dos momentos, assegurando a

simultaneidade das ações e, por conseguinte, acelerando o processo histórico.

(SANTOS 2000:25)

Convergindo assim para uma unicidade técnica, que colabora para uma

homogeneização das técnicas e do território e quem não a acompanha ou é excluído

dessas relações se torna um ator de menor importância, à disposição de um novo

enquadramento desse mercado, como pode ser observado pelos trabalhadores que

perdem suas propriedades por grilagem, ou pelos assentamentos de sem terra que estão

desprovidos de técnicas que promovam a inserção da sua produção no mercado.

Com a dinamização da produção, o espaço teve que assumir modificações para

dar suporte à nova dinâmica imposta, ou como relatam Milton Santos e Maria L.

Silveira (2001:55) a “renovação da materialidade do território”, promove uma nova

estrutura no campo.

Face a uma agricultura em acelerado processo de modernização e aumento da produtividade, o crescimento da capacidade de armazenagem no Brasil, a

partir de meados dos anos 80, foi extraordinário. Essa capacidade aumentou

1.374,4 vezes entre 1985 e 1995(o crescimento havia sido de 1,7 vez entre

1975 e 1985). Se a região sul lidera, em 1995, a capacidade de armazenagem

do país com 45,19% do total, o fenômeno mais importante é a expansão na

região Centro-Oeste,que hoje representa 29,14% do total

nacional.(SANTOS E SILVEIRA 2001:148)

Milton também afirma que a convergência dos momentos, ou “a existência da

confluência dos momentos como resposta àquilo que, do ponto de vista da física,

chama-se de tempo real, do ponto onde vista histórico, será chamado de

interdependência e solidariedade do acontecer”(SANTOS 2000) que permitirá o

acompanhamento da mais-valia global ou do “motor único”. Isso só é possível devido à

produção em escala mundial, por intermédio de empresas mundiais, que competem

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entre si segundo uma concorrência extremamente feroz, como jamais existiu as que

resistem e sobrevivem são aquelas que obtém a mais-valia maior, permitindo-se, assim a

continuar a proceder e competir(idem, 2000)

[...] A cada avanço de uma empresa, outra do mesmo ramo, solicita

inovações que lhe permitam passar à frente da que era antes campeã. Por

isso, tal mais-valia está sempre correndo, quer dizer, fugindo para frente.

Um corte no tempo é idealmente possível, mas está longe de expressar a

realidade atual cruelmente instável. Por isso não se pode, desse modo, medi-la, mas ela existe. Se ela pode parecer abstrata, a mais-valia agora universal

na verdade se impõe como um dado empírico, objetivo, quando utilizada no

processo da produção como resultado da competitividade. (2000)

E é essa necessidade de impor um ritmo de produção que se enquadre no

mercado mundial que o território brasileiro vai se transformando seja através das

relações de trabalho ou de produção.

A circulação através dos transportes também se reestruturou e passou a ser mais

integrada às áreas de produção, existindo uma reformulação nos eixos que facilitam a

circulação da produção, podendo ser observada desde o ciclo do café aos projetos mais

recentes como o da Rodovia Interoceânica que liga o país ao Pacífico ou pela estratégia

dos produtores de soja na utilização do Rio Madeira.

Dessa forma, o encurtamento das distâncias, acelerados pelo processo

tecnológico, e a nova configuração territorial imposta pelo capitalismo autoritário

acelera o processo de alienação dos espaços e dos homens constituindo novas

desigualdades.

Leonardo Sakamoto(2007) em sua tese analisa as redes de comercialização

envolvidas com trabalho escravo. A idéia foi estudar a cadeia produtiva e suas relações

comerciais que utilizam esse tipo de trabalho. Seu recorte foi o cadastro de

empregadores envolvidos com o trabalho escravo realizado pelo Ministério do Trabalho

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e Emprego, conhecido como “lista suja”. Essa lista81

foi iniciada em 2003 e implica o

corte de financiamentos por parte de alguns bancos como BNDS, Banco do Nordeste,

sendo atualizada a cada seis meses, consistindo em mais uma ferramenta de combate à

escravidão promovida pelo Estado. Este trabalho se torna essencial para o estudo e

compreensão deste tema, pois colabora para o entendimento do problema em diferentes

escalas.

Segundo Sakamoto o trabalho escravo vivenciado no campo corresponde a uma

pressão feita pelo mercado mundial sobre controle das commodities82

que por sua vez

possuem baixo valor agregado, fazendo com que subjuguem os trabalhadores para

produzirem a baixo custo (ou sem nenhum custo).

Outra constatação trazida por Sakamoto(2007) que leva a pensar o problema em

uma escala mais ampla, se deve aos padrões de comercialização das commodities nas

regiões encontradas, que apresentam como principais parceiros comerciais naquelas

localidades, atores economicamente relevantes, como tradings e

indústrias(SAKAMOTO 2007).

Os motivos encontrados pelo autor para esse relacionamento são grandes empresas que compram a produção antes mesmo de a lavoura ser plantada ou

do boi magro ser adquirido, financiando o fazendeiro. Um outro motivo é o

custo de transporte ser inferior se feito em grandes volumes de cada vez.

(SAKAMOTO 2007:87)

Alguns produtos relacionados à escravidão por Sakamoto(2007), coincidiram

com o encontrado por esta pesquisa no mapa de atividades envolvidas como a cana – de

– açúcar , tendo sua incidência atribuída pela elevação do preço do etanol, e o carvão

81 A Primeira lista possuía 52 registros entre pessoas e empresas.

http://www.oitbrasil.org.br/trabalho_forcado/brasil/iniciativas/lista_suja.pdf

82 Commoditties são entendidas pelo autor como mercadorias agropoecuarias padronizadas, com preço

mundial determinado por bolsas de mercadorias, como boi gordo,soja,algodão e café em grão.

(SAKAMOTO 2007:83)

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sendo pressionado pelas siderúrgicas e empresas de ferro-gusa que dominam na região

como focos do problema na Amazônia e do Sudeste ao Centro Oeste.

A principal atividade relacionada à lista suja foi à pecuária, que neste trabalho

não obteve um percentual tão grande ao ser apresentado cartograficamente, devido a

forma relatada no banco de dados, no entanto, vale lembrar que esta atividade está

relacionada diversas outras ações como a roçagem e o desmatamento apresentadas neste

trabalho como os principais responsáveis pela escravidão. Exemplificando, voltando ao

trabalho de Sakamoto(2007), os produtos pesquisados também possuem diversos

subprodutos, ao pegar como exemplo um desses produtos como a carne bovina foi

possível perceber como esta possui “uma rede de escoamento maior e mais imbricada

de todas, envolvendo produtores de estados do arco do desflorestamento: Rondônia,

Mato –Grosso, Tocantins, Pará e Maranhão”.(SAKAMOTO 2007)

As três maiores redes varejistas do país estão entre os mais importantes

atores dessa cadeia produtiva ( uma de capital francês, uma franco-brasileira

e outra norte americana).[...] Exportações anuais do país: US$ 3.046 bilhões

FOB(Free on Board). Participação nas exportações do país(2005): 2,6%.

Países que mais compram do Brasil: Alemanha, Arábia Saudita, Argélia,

Bilgária, Egito, Holanda, Itália, Líbia e Rússia. Itens mais vendidos nas

exportações: carne de boi in natura(79%), carne de boi industrializadas

(21%).( Sakamoto2007:90-91)

Por certo, essa nova dinâmica estrutural no campo é apresentada na pesquisa de

Sakamoto(2007) por alguns fatores que assessoram as organizações comerciais

envolvidas com trabalho escravo. Sendo essenciais para entender o comportamento da

cadeia produtiva no campo, como as formas e estruturas de armazenamento,

supracitadas como elementos transformantes do espaço a partir da década de 80, como

também o custo dos transportes e dinâmica espacial destes que facilite a circulação da

produção. Por conseguinte, para pensar o trabalho escravo a noção de espaço não pode

se distanciar dos sistemas-técnicos por tratar de elemento que se relaciona em rede.

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A geografia deve trabalhar com uma noção de espaço que nele veja uma

forma-conteúdo e considere os sistemas técnicos como uma união entre

tempo e matéria, entre estabilidade e história. Desse modo, superaremos as

dualidades que são, também, direta ou indiretamente, as matrizes da maior

parte das ambigüidades do discurso e do método da geografia. (SANTOS:

2000:279).

As relações políticas e sociais também são fatores que contribuem para as redes

de comercialização tal como os critérios geográficos83

, sem separar assim a técnica e a

política, como relembrado por Santos(2000:23).

Critérios geográficos também são importantes. O mercado de commodities

trabalha com preços de referencia internacional. A partir deles são calculados o

preço de referencia interno (normalmente pelas bolsas de mercadorias) e a

partir desse valor, os preços das mercadorias nas diferentes regiões produtoras.

Além de questões de seguro da produção e risco, uma das variáveis mais fortes

para explicar a diferença de cotações é o custo do transporte e os impostos,

principalmente o Imposto sobre circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS)

cobrados por cada estado de maneira diferente. Ou seja, por melhor que se

pague pela arroba de boi gordo em outra região, o custo do deslocamento da

mercadoria não vale a pena. A preferência é pela venda a silos, entrepostos e

frigoríficos não distantes da propriedade rural, fator considerado pela pesquisa.

(SAKAMOTO 2007:88)

Em síntese, o autor consegue demonstrar através da análise da cadeia produtiva

da lista suja que o trabalho escravo contemporâneo:

83 Não se pode desconsiderar que até mesmo a dinâmica internacional e a reestruturação capitalista

apresenta novos agentes, como a China, na disputa do mercado internacional. Exemplificando, a maior

siderúrgica chinesa está prestes a fechar negócio com a Vale do Rio Doce. A implementação seria no

Maranhão devido à posição estratégica do comércio internacional e da proximidade com a região de

Carajás, produtora de minério de ferro.

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[...] é um instrumento utilizado pelo próprio sistema para facilitar a

acumulação em seu processo de expansão. Esse mecanismo garante

competitividade aos produtores rurais de regiões e situações de expansão

agrícola, o que contribui para o aumento da oferta de mercadorias e, portanto,

a redução de sua cotação no mercado internacional – favorecendo o comércio e

indústria. (2007:178)

Desse modo, o trabalho escravo pode ser pensado como resultado de

territorialidades que se impõem sobre determinadas áreas com o objetivo de obter maior

controle sobre o território na tentativa de acompanhar o desenvolvimento capitalista

mesmo que para isso tenha que sujeitar o homem à condição de escravos. Essas

territorialidades se inscrevem no espaço e ao mesmo tempo o criam. Segundo Haesbaert

(2004).

A territorialidade pode ser entendida como “ a tentativa, por um individuo

ou grupo, de atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e

relacionamentos, pela delimitação e afirmação do controle sobre uma área

geográfica. Esta áreas será chamada de território de acordo com uma

temporalidade” ( HASBAERT 2004)

Logo se pode entender que o trabalho escravo é resultado de uma dinâmica mais

ampla que se inscreve no local através de forças globais

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CONCLUSÃO

A interpretação dos dados referentes ao banco de dados da CPT permitiu apontar

como determinadas medidas políticas influenciam na dinâmica das relações de trabalho.

A mudança mundial das formas de produção, o advento da tecnologia e da informática

desconcentrando os processos produtivos, permite apreender esse espaço como

resultado de ações econômicas e políticas cada vez mais integradas.

Muitas análises podem ser realizadas diante do que foi apresentado nos capítulos

anteriores, como por exemplo: uma análise mais próxima dos atores, de acordo com os

municípios e atividades exercidas; um estudo migratório diante dos dados de origem do

trabalhador; um estudo da cadeia produtiva de um determinado período, ou até mesmo o

cruzamento de um desses dados. No entanto, o caminho eleito por essa pesquisa foi

trabalhar com dados do banco histórico da CPT de forma a pensar períodos agregados,

esta opção, por mais que perca algumas singularidades dos atores, permite, por outro

lado, a análise do evento por todo o território a fim de uma possível configuração de

acordo com os períodos estipulados.

A princípio, é importante destacar que a pesquisa procurou dimensionar e

qualificar a questão, e para evitar equívocos de interpretação, fez-se necessário um

estudo da conjuntura que contribuiu para a constituição de uma linha de pesquisa que

melhor interpretasse os dados.

O debate sobre o trabalho escravo se torna complexo diante das singularidades

que estão impressas nesse evento por existirem forças políticas representadas pelos

setores públicos e privados. A discussão sobre a conceituação se faz presente,

justamente para tentar entender quem são essas forças que negam a existência da

escravidão contemporânea e por que fazem isso.

O planejamento político do desenvolvimento, principalmente da Amazônia,

transformou radicalmente o espaço. E transformou-o em um pólo constante de atração

de trabalhadores para trabalharem principalmente na transformação do espaço em

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161

unidades produtivas. O histórico patronato em algumas regiões, favoreceram que os

proprietários pudessem agir com o apoio do estado e os trabalhadores se inseriram em

um sistema de endividamento que os impossibilitaram de vender sua força de trabalho

se tornando escravos.

Com a mudança política e uma maior organização dos movimentos sociais, os

direitos trabalhistas no campo começam a ter reconhecimento público e atingem a esfera

política, transformando em medidas os questionamentos trazidos pelos movimentos. A

participação e constituição de movimentos sociais na luta pelos direitos são vitais para a

manutenção do questionamento sobre as relações humanas que constroem os territórios.

Dessa forma ao se pensar na política de ordenamento territorial, deve se estar

atento às dinâmicas populacionais84

, pelo fato de ao gerir o “desenvolvimento” não

perca a responsabilidade social das suas ações.

Hoje em dia o trabalho escravo contemporâneo luta contra poderes

estabelecidos a mais de 100 anos e que em nenhum momento se preocupou com a

participação dos trabalhadores na construção coletiva do território. Intensificando a

negação de qualquer instrumento que pudesse oferecer uma outra estrutura da

sociedade, como a reforma agrária, por exemplo.

A análise feita sobre os dados construídos pela CPT, permitem de uma forma

geral pensar que a escravidão no campo não e´ uma realidade exclusiva de áreas

arcaicas que não se desenvolveram economicamente, mas é comum em todo o território.

Apoiada por processos ideológicos e políticos, a dinâmica da exploração feita

sobre os trabalhadores se apresenta através de múltiplas faces. Encontrada em realidades

rurais e urbanas, em escalas nacionais e internacionais, a escravidão contemporânea se

apresenta como uma dessas faces - surpreendendo sociedades que aboliram a escravidão

há séculos atrás e estando presente em sociedades altamente desenvolvidas.

Sabendo da necessidade de circulação da economia capitalista, a produção

agrícola, busca a movimentação85

. Sem a circulação esse produto se limita e um

84 Desde movimentos migratórios aos índices de pobreza

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pequeno período de existência. A produção obtida necessita de movimentação , a fim de

permitir a acumulação do capital. Ao trabalhar com a idéia de que as redes são

instrumentos de poder a produção está submetida a capitais universais. O trabalhador

que produz em uma ordem local gera capital para corporações nacionais ou globais

através do mercado globalizado. E por isso o trabalho escravo ainda se torna

interessante.

No Brasil, até aonde se tem informação, a atividade não se prende a uma única

região nem a uma típica atividade. O trabalho tido como escravo no Brasil

contemporâneo se realiza em regiões que sofrem com um poder histórico. A atividade

mais encontrada segundo os dados analisados foi a empreita, que associada a outras

atividades se inscreve num mundo de ilegalidades ambientais e sociais, colaborando

para concentração de poder e capital de poucos.

A Divisão Internacional do Trabalho orienta que a produção brasileira deva ser feita

a baixo custo para entrar em competição internacional, transformando o agronegócio no

principal sujeito da política pública do país, como podemos verificar no conteúdo do

sítio do Ministério da Agricultura:

“MINISTÉRIO DA AGRICULTURA, UMA PARCERIA HISTÓRICA

COM O AGRONEGÓCIO”

Estimular o aumento da produção agropecuária e o desenvolvimento do

agronegócio, com o objetivo de atender o consumo interno e formar

excedentes para exportação. Essa é a missão institucional do Ministério da

Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), que tem como conseqüência a

geração de emprego e renda, a promoção da segurança alimentar, a inclusão

social e a redução das desigualdades sociais.

Para cumprir sua missão, o Mapa formula e executa políticas para o

desenvolvimento do agronegócio, integrando aspectos mercadológicos,

tecnológicos, científicos, organizacionais e ambientais, para atendimento dos

consumidores brasileiros e do mercado internacional. A atuação do ministério

baseia-se na busca de sanidade animal e vegetal, da organização da cadeia

produtiva do agronegócio, da modernização da política agrícola, do incentivo

às exportações, do uso sustentável dos recursos naturais e do bem-estar social.

(www.ministeriodaagricultura)

85 E de se inscrever em uma comunicação e circulação que gere demanda por mais produção

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163

Este trecho comprova que as políticas públicas estão inseridas em um paradoxo,

onde o mesmo Estado, ou melhor, governo, que combate a escravidão tem como ponto

de partida de sua política agrária o desenvolvimento e apoio ao Agronegócio, setor

representado pelas elites agrárias que têm muitos proprietários representantes dos

governos locais. Este fato pode ser comprovado pelo incomodo da criação da “Lista

Suja”(que impede o financiamento do estado às propriedades onde foram encontrado

trabalhadores em situação de escravidão) entre os parlamentares, tal como a atuação de

alguns deputados na tentativa de desqualificação do trabalho dos auditores fiscais na

fiscalização das fazendas.

A criação do Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) parece oferecer

uma atenção maior à questão agrária, no entanto, após um mandato cumprido o governo

Lula está longe de promover uma Reforma Agrária suficiente para suprir as demandas

da população que é tratada de forma criminosa pelo agronegócio. Essa relação distancia

medidas como a aprovação da PEC-438/2001 algo inatingível.

Estamos nos deparando com uma relação de trabalho que além de destituir o

trabalhador da venda da sua força de trabalho não o reconhece nem como humano. A

dignidade é violada distanciando ainda mais a discussão sobre os direitos.

Pensar uma geografia do trabalho escravo, é pensar como a divisão territorial do

trabalho produziu violência e como esta foi traçada ao longo dos 22 anos arquivados

pela CPT, e como continua a ser, através da impunidade.

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ANEXO I86 1973 - A IMPRENSA NOTICIA O TRABALHO ESCRAVO

86 (materiais cedidos pelo Frei Henri em visita ao GPTEC)

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Anexo II

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ANEXO III

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