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FAJE – Faculdade Jesuíta – Belo horizonte MG Faculdade de Teologia CURSO: ÉTICA TEOLÓGICA SOCIAL – 1/2013 Prof. Élio Estanislau Gasda (Texto «ad usum privatum») TRADIÇÃO PATRÍSTICA A história da Ética Teológica Social cristã se inicia com a Sagrada Escritura e continua através das exortações do cristianismo primitivo e da Patrística. Como apoio indispensável para a construção da reflexão, o Vaticano II pede uma revalorização da Patrística: “A Igreja... procura compreender cada vez mais profundamente a Escritura para alimentar seus filhos com a Palavra de Deus; por isso fomenta o estudo dos Padres da Igreja” (DV, 23). Os Santos Padres são os primeiros depositários da fé da Igreja recebida dos Apóstolos. Sua importância se estende ao campo da ética de forma muito significativa, apesar de não terem elaborado uma doutrina sistemática. Suas alusões à questão social aparecem nas homilias, cartas, exortações, etc. Os historiadores da Igreja dividem o período em duas etapas: anterior a Constantino e a que seguiu após o reconhecimento do Cristianismo como religião oficial do Império até sua queda (476). 1. Relação com a sociedade Até o século IV os cristãos vivem principalmente nas cidades e integrados na cultura local: 1

Tradição Patrística

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FAJE – Faculdade Jesuíta – Belo horizonte MGFaculdade de Teologia

CURSO: ÉTICA TEOLÓGICA SOCIAL – 1/2013Prof. Élio Estanislau Gasda(Texto «ad usum privatum»)

TRADIÇÃO PATRÍSTICA

A história da Ética Teológica Social cristã se inicia com a Sagrada Escritura e continua através das exortações do cristianismo primitivo e da Patrística. Como apoio indispensável para a construção da reflexão, o Vaticano II pede uma revalorização da Patrística: “A Igreja... procura compreender cada vez mais profundamente a Escritura para alimentar seus filhos com a Palavra de Deus; por isso fomenta o estudo dos Padres da Igreja” (DV, 23).

Os Santos Padres são os primeiros depositários da fé da Igreja recebida dos Apóstolos. Sua importância se estende ao campo da ética de forma muito significativa, apesar de não terem elaborado uma doutrina sistemática. Suas alusões à questão social aparecem nas homilias, cartas, exortações, etc.

Os historiadores da Igreja dividem o período em duas etapas: anterior a Constantino e a que seguiu após o reconhecimento do Cristianismo como religião oficial do Império até sua queda (476).

1. Relação com a sociedade

Até o século IV os cristãos vivem principalmente nas cidades e integrados na cultura local:

“Vivemos como os demais, tomamos o mesmo alimento, usamos as mesmas roupas. Não somos brahmanes da India. Frequentamos vossas praças, vosso mercado, vossos banhos, vossas lojas, vossas feiras e hospedarias. Habitamos neste mundo como vocês. Trabalhamos a terra, nos dedicamos ao comércio; intercambiamos nossos produtos e nosso trabalho” (Tertuliano, Apologeticum XLII, 42. PL 1, 554-555). Tertuliano, no mesmo texto, marca duas diferenças a respeito da vida dos não cristãos: “Eu não vou ao banho ao amanhecer, ás Saturnais, para não perder a noite e o dia; vou na hora conveniente. Eu não como nas calçadas durante a festa de Líber, mas me alimento em outro lugar”.

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“A respeito dos tributos e contribuições, nós procuramos paga-los antes que os outros, conforme haveis ordenado em todas as partes” (Justino, Apologia 1, 18, 1).

O comportamento público moral dos cristãos aparece de forma explícita na Epístola a Diogneto: “Os cristãos não se distinguem dos demais nem pelo lugar em que vivem, nem por sua linguagem, nem pelo seu modo de vida... Vivem em cidades gregas e bárbaras, seguem os costumes dos habitantes do país tanto no vestir como no estilo de vida... habitam em sua própria pátria, mas como forasteiros; participam em tudo como cidadãos, mas suportam tudo como estrangeiros, toda terra estranha é pátria, mas estão em toda pátria como em terra estranha... se casam e geram filhos como todos, mas não os abandonam (...). Compartem mesa, mas não o leito (...), obedecem as leis estabelecidas, mas as superam pelo seu modo de vida... amam a todos..., são pobres mas enriquecem a muitos...” (Discurso V, 5-13).

“A regra do cristianismo é buscar o bem comum. Por mais que jejues, por mais que durmas sobre o chão duro, si não olhas por teu próximo, nada de grande fizestes” (João Crisóstomo, Homilia in I ad Cor, XXV, 3. PG 61, 208-209).

2. Práxis

Austeridade

Clemente de Alexandria: “Se deve rejeitar a quantidade de utensílios, os vasos de ouro e prata e o grande número de escravos; ao contrário, deve aceitar os belos e admiráveis companheiros que nos oferece o Pedagogo que são o trabalho de nossas mãos e a frugalidade” (Pedagogo III, 7. PG 8, 608).

“Se temos necessidade de uma enxada e de um arado para lavrar, não forjaremos uma enxada de prata nem um arado de ouro, mas empregaremos instrumentos próprios para trabalhar a terra. Apliquemos mesmo critério aos utensílios domésticos: que sua medida seja a utilidade. Diga-me: a faca que se põem na mesa não corta se não está adornada com cravos prateados ou de marfim? O Senhor se serviu de um prato muito simples, seus discípulos dormiram no chão sobre a grama, e lhes lavou os pés usando um avental. Deus, o Deus sem fausto e Senhor de todas as coisas não trouxe do céu um utensílio de prata. Pediu de beber à samaritana em uma vasilha de barro, sem

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pedir uma taça de ouro e ensinou que se aplaca a sede da mesma forma. A necessidade é o fim, e a faustuosidade é inútil (...). O Senhor não exigia utensílio de ouro e prata quando comia e bebia nas festas. Em fim, é preciso que os alimentos, o vestuário, a mobília, e tudo o que há em casa esteja conforme nossa qualidade de cristãos (...). As coisas úteis são sempre as melhores, as coisas simples valem mais que as ricas. A riqueza que não é administrada com retidão é fortaleza da maldade. A maior parte não chega ao Reino porque está cega por ela, pois foram atacadas pelo grande mal deste mundo e vivem orgulhosamente por causa das riquezas” (Clemente de Alexandria, Pedagogo II, 3, 37-38).

A fé não se acomoda ao luxo: “Não admitais, queridas irmãs, vestidos e ornamentos ostentosos... mostrai a moderação que pede a sabedoria cristã” (Tertuliano, Sobre o adorno das mulheres cristãs 2, 10).

3. Cuidado dos pobres“Nossa congregação é um corpo de membros unidos pelo conhecimento de Deus, com a união em torno a uma doutrina e uma esperança... rogamos também pelos imperadores, por seus ministros, pela situação da sociedade civil, pela paz (...). Se na arca é depositado algum dinheiro, não é tributo de honra, nem é o preço a pagar pelo prestígio, mas é uma doação voluntária; cada um da uma moedinha por mês, ou quando puder. Esta soma é depósito de piedade e dele se saca não para gastos em banquetes e bebedeiras desordenadas, mas para sustentar e enterrar os pobres, para alimentar as crianças órfãos de pai e de recursos, para os anciãos que não podem sair de casa, para os náufragos, para os presos, para os exilados nas ilhas e para os condenados nas minas por causa da fé. Todos estes são nossos afilhados na fé porque sua confissão os sustenta (...). É desta forma que mantemos unidos nossos corações e nossas almas, não recusamos unir e partilhar nossos bens” (Tertuliano, Apologia contra os gentios).

“O Senhor emprestou aos pobres sua própria pessoa (...). Os pobres são os dispensadores dos bens que esperamos, são os porteiros do céu... duros acusadores e excelentes defensores” (Gregorio de Nissa, Discurso sobre os pobres, 1).

“A mão do pobre é o seio de Abraão... a arca do tesouro do céu... Oferece uma moeda para que recebas o reino” (Pedro Crisólogo, Sermão 8).

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“Não me digais que é impossível cuidar dos outros. Sois cristãos, é impossível que não cuideis. O partilhar radica na natureza do cristão (...). Para o cristão ajudar ao próximo é como uma necessidade física” (João Crisóstomo, Homilian in Apost, PG 60, 162).

“... A caridade é o primeiro e maior dos mandamentos... e sua parte principal é o amor aos pobres, e a misericórdia e compaixão para com nossos semelhantes. Não existe culto melhor que possa oferecer a Deus que a misericórdia...” (Gregorio Nazianzeno, Discurso 14, amor aos pobres, 5).

“Não pensemos que basta para nossa salvação trazer para a igreja um cálice de ouro e pedraria depois de haver despojado a viúvas e órfãos. Se queres honrar o sacrifício de Cruz, apresenta tua alma pelo que foi oferecido. Esta é que deve ser de ouro. Não nos contentemos de trazer dinheiro à igreja, mas observemos se procede de justo trabalho. Mais precioso que o ouro é aquilo que não é cúmplice da avareza. A igreja não é um museu de ouro e prata, mas uma reunião de anjos... O sacramento não necessita preciosas toalhas, mas almas puras. Os pobres, ao contrário, necessitam muito cuidado. Aprendamos pois a pensar com discernimento e a honrar a Cristo como ele quer ser honrado (...). Porque Deus não tem necessidade de cálices de ouro, mas de almas de ouro. Que importa ao Senhor que sua mesa esteja cheia de objetos de ouro se ele se consome de fome? Saciai primeiro sua fome e logo, se sobra, adornai também sua mesa. Ou vais fazer um cálice de ouro e depois negar-lhe um copo de água? (...). Então, aplica tudo isso em Cristo. Ele anda sem teto e peregrino. E tu, que não lhe acolhes, te distrais em adornar o pavimento, as paredes e os capitéis das colunas (...). Não é minha intenção proibir que se façam oferendas. Peço apenas que, junto com elas, e antes delas, se faça caridade.”(João Crisóstomo, Homilia sobre Mt, 50, 30. PG 58, 508-509).

“Tal como és não podes esperar que a Igreja tenha apreço de ti. Teus olhos, obscurecidos pelas trevas e cobertos pela noite, não vêem ao indigente. Tu, rico e poderoso, vens ao templo sem nenhuma oferenda, que tomas parte do sacrifício oferecido pelo pobre, crês celebrar dignamente o sacrifício do Senhor. Contempla no Evangelho aquela viúva que tinha boa memória dos mandamentos de Deus” (Cipriano, De boas obras e esmola, 15).

“Aquele que enviou sem ouro aos apóstolos (Mt 10, 9) fundou a Igreja sem ouro. A Igreja possui ouro não para guardá-lo, mas para socorrer o pobre. Que necessidade há de reservar aquilo que se guarda se não é útil para nada?

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Acaso não nos dirá o Senhor: Por que vocês permitiram que tantos pobres morressem de fome?” (Ambrosio, De Oficiis 2, 28, 137).

“Alguns empregam sua fortuna em edificar igrejas e revestir os muros de alto relevo de mármore, levantam colunas imensas e decoram seus capitéis com adornos preciosos, enriquecem as portas com prata e marfim, e fazem que em seus altares brilhe o ouro e as pedras preciosas (...). Melhor é fazer isto que amontoar riquezas. Porém te proponho outro caminho: vestir a Cristo no pobre, visitar os enfermos, dar de comer aos que tem fome, hospedar os peregrinos, auxiliar os monastérios, e cuidar dos servos de Deus que servem ao Senhor dia e noite” (Jerônimo, Epistola 130).

4. Dimensão Crítica

a. Incompatibilidade com determinadas leis do Estado

A convivência com o mundo do império romano oferecia muitos impasses à consciência cristã. Por ex., no exercício de certas profissões estava implícita a idolatria porque as distintas associações estavam sob a proteção de alguma divindade. Boa parte do artesanato estava dirigido á fabricação de objetos de culto. Semelhante dificuldade oferecia o comercio em matérias relacionadas com os ídolos.

Hipólito de Roma (S. III) aponta as profissões proibidas aos cristãos: gladiador, escultor de ídolos, carrasco, proprietário de prostíbulo, ator de teatro, soldado, feiticeiro, astrólogo, concubina, etc. E sugere que se faça uma investigação sobre a atividade laboral dos catecúmenos. Em algumas situações os cristãos eram considerados maus cidadãos pelo fato de negar-se a desempenhar determinados serviços e ofícios públicos: “Ao soldado que serve ao governo está proibido de matar. Se recebe a ordem de matar, que não o faça. Se aceita, que seja excluído” ((Tradit Apost, XVI).

Algumas destas questões foram parcialmente aliviadas com o reconhecimento oficial do Cristianismo e, progressivamente foram introduzidas algumas normas no Império menos contraditórias com o Evangelho. No Código Teodosiano (429-439) foram incluídas leis que aliviavam o tratamento aos encarcerados: proibição de deixá-los morrer de fome, e obrigação de oferecer-lhes banhos de sol aos domingos. Outros códigos legislativos proíbem o infanticídio (374) e as lutas de gladiadores (438).

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b. Desigualdades sociais

Os pobres, uma realidade

“Ao vir para vossa reunião, atravessando a praça e os becos, pude ver a muitos estendidos nas praças, uns mutilados, outros cegos, outros em carne viva... a falta de trabalho é outro problema: seu corpo é sua fonte de ingressos. Durante o verão ainda existe algum, mas no inverno, ninguém lhes contrata...” (João Crisóstomo, Sobre a esmola, 1).

“Saímos da igreja e contemplamos verdadeiras e longas muralhas de pobres de ambos os lados. E passamos por eles sem nos comovermos como se víssemos colunas e não corpos humanos... E o pobre estará aí em pé, até que o dia termine...” (João Crisóstomo, Sobre o Genesis. PG 54, 602-604).

“Estão chegando nestes dias uma multidão de desamparados. Uma multidão de cativos está chamando em nossas portas. Não faltam estrangeiros e refugiados, e por todas as partes podemos ver mãos estendidas. A casa desta gente é o céu aberto. Seu teto são os pórticos e as encruzilhadas dos caminhos e os rincões mais escondidos das nossas praças. Se albergam em buracos como se fossem morcegos. Suas roupas são farrapos, sua colheita a esmola, sua comida são migalhas que caem das mesas, sua bebida a fonte pública, seu copo a palma da mão, sua mesa os joelhos encolhidos, o chão é seu leito, no rio é seu banho... levam esta vida errante e árida, não porque a escolheram, mas por imposição das calamidades e da necessidade (...). Não desprezes a estes que jazem estendidos como se não valessem nada. Considera quem são e descobrirás sua identidade: eles representam a pessoa do Salvador... Medi, pois, vossas necessidades. Não penseis que tudo é vosso. Que haja uma parte para os pobres e amigos de Deus, Pai Universal. E nós somos seus irmãos de mesma linhagem (...). Se alguém quer apoderar-se absolutamente de tudo e exclui a seus irmãos até da terceira e quarta parte, é considerado um ditador tirânico, um bárbaro implacável, uma fera insaciável que quer banquetear-se sozinho. É a fera de todas as feras... e enquanto há todos esses luxos dentro de casa, na porta estão mil Lázaros cujos clamores não são ouvidos, pois o som da orquestra e os coros de cantos e as estrondosas gargalhadas não permitem; porém se chegam a incomodar um pouco mais, são expulsos... E assim, os amigos de Cristo devem ir embora, levando como gorjeta insultos e agressões sem haver conseguido sequer um pedaço de pão, eles que são o resumo dos mandamentos. Nesta casa indecente se cometeu um duplo pecado: a gula e a

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luxuria, e o desprezo do pobre enxotado da sua porta” (Gregorio de Nissa, Homilia sobre o amor aos pobres. PG 46, 455-468).

Causas das desigualdades sociais

“Alguns oprimiram o pobre, lhe roubaram as terras e modificaram as iniquamente as divisas, lhe roubou e tiranizou, amontoou casas e mais casas, campos e campos, afastou o vizinho como se habitasse sozinho toda a terra. Outro contaminou a terra com usura, recolhendo onde não plantou, e ceifando onde não semeou; não cultivando a terra, mas explorando a miséria dos necessitados...” (Gregorio Nissa, Discurso 16, 18).

“Dizei-me, por favor: De onde procedem vossas riquezas? De quem haveis recebido? «Dos meus avós, através de meus pais». Mas, sois capazes de ir remontando em seus antepassados e provar que vossas posses são justas? Não. O principio e a raiz da vossa riqueza necessariamente é a injustiça. Porque ao principio Deus não fez rico a um e pobre ao outro, nem deu apenas a um grandes reservas de ouro, privando a outro. Deus disponibilizou a mesma terra para todos. Porém, como sendo a terra comum, possuis hectares e mais hectares e o outro nem um lote?” (João Crisóstomo, Homilia 1 Tim, 11, 3. PG 62, 562-563).

“Todas as riquezas não tem outra origem que a injustiça e não é possível ser dono delas sem que haja outro que as tenha perdido. Os ricos são ricos por sua própria injustiça ou por herança de bens adquiridos injustamente” (São Jerônimo, Epistola CXX, ad Hedidiam, I. PL 22, 984).

“Quais coisas, dizes, são tuas? Pegastes em alguma parte e nascestes com elas? (...). Não saístes completamente nu do ventre da sua mãe? Não voltarás nu ao seio da terra? Qual a origem de tudo o que possuis? Se confessas que tudo procede de Deus, dá-nos a razão pela qual recebestes (...). Quem é o avarento? Aquele que não se contenta com as coisas supérfluas. Quem é o ladrão? Aquele que toma para si o que pertence ao outro. Não és um avarento e um ladrão quando te aproprias do que recebestes para administrar? Como haveremos de chamar ao ladrão que desnuda ao pobre, haverá que dar outro nome a quem não veste ao esfarrapado quando este pode fazer? Do faminto é o pão que tu reténs; do esfarrapado é o manto que guardas em teus armários, do descalço é o calçado que apodrece em tua casa (Basilio, Homilia Contra a avareza, 3).

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“Possuis muitas riquezas, mas qual sua origem? Preferes desfrutar sozinho delas que socorrer aos necessitados. Isto é claríssimo. Na medida em que aumentam tuas riquezas diminui tua misericórdia. Se amaras teu próximo, há muito tempo já te haverias desprendido de tanta riqueza. Mas teu dinheiro está mais colado a ti que os membros de teu próprio corpo e te dói muito mais desprender-se do teu dinheiro que cortar teus membros mais importantes. Os fatos estão aí.... Se tivesses partilhado tuas riquezas não seria doloroso afastar-se delas (...). Em que irás empregar tuas riquezas? O diabo se encarrega de dar aos ricos bons pretextos para gastar, de forma que se busca o inútil como necessário, e nada lhes basta para saciar suas necessidades imaginárias...” (Basilio, Homilia contra os ricos, PG 31, 324).

“Qual a origem de tanta desigualdade? Da avareza e arrogância dos ricos” (João Crisóstomo, Homilia João 15, 3. PG 59, 102). “Se os ricos fossem castigados na terra os cárceres estariam lotados” (João Crisóstomo, Homilia Hebreus 2, 5).

“A avareza faz com que os depósitos de uns poucos estejam abarrotados de trigo e o estômago de muitos esteja vazio e a subida dos preços seja pior que a escassez do produto (...). Glorie-se quem queira desta injustiça; saiba que quem se enriquece às custas da miséria alheia é o mais miserável dos homens” (Zenon de Verona, Sobre a Justiça, 3, 5).

“Nenhuma descriminação entre os homens está fundada na natureza ou em Deus... todas são invenção da cobiça e da soberba de alguns homens” (Cirilo de Alexandria, Homilias pascais 11, 5).

“Deus criou o gênero humano para a comunhão e comunicação de uns para com os outros, e reparte o que é seu a todos. Logo, tudo é comum, e não pretendam os ricos possuir mais que os outros. Assim, isso de “tenho e me sobra, porque não desfrutar?” Não é humano e nem próprio da comunhão de bens. Mais próprio da caridade é dizer: “tenho. Porque não partilhar com os necessitados? Este é o verdadeiro desfrutar, este é o luxo que vale a pena guardar. Porém, os gastos em desejos inúteis são pura perdição (...). Sei muito bem que Deus no deu a faculdade de uso, mas só do necessário, e quer, por outra parte, que o uso seja comum. É um verdadeiro absurdo que somente um vive entre deleites, mentiras, e todo s os demais estejam na miséria” (Clemente de Alexandria, Pedagogo, II, 120).

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“A sociedade dos mortais, estendida por toda a terra e nos mais diversos lugares, não obstante unida pela comunhão de uma mesma natureza, se divide com freqüência contra si mesma, e a parte vencedora oprime a derrotada. Isto se deve porque cada um busca seu próprio interesse e satisfação, e o bem que encontram nunca é suficiente porque não é o bem em si mesmo” (Agostinho, Cidade de Deus, XVIII, 1. PL 41, 560).

“O mal não é o vinho, mas a embriaguez; o mal não é a riqueza, mas a avareza, o amor ao dinheiro. O avarento não é rico, mas um necessitado de muitas coisas. O avarento não é dono, mas escravo do seu dinheiro. Prefere cortar sua própria carne que dar do seu ouro (...). Não existe demônio mais violento que a cobiça pelo dinheiro. Os idólatras se fazem de surdos em muitas coisas; mas cedem em tudo que a avareza ordena: seja inimigo do gênero humano! ignore a natureza, despreze a Deus e sacrifica-te a ti mesmo!” (João Crisóstomo, Homilia ao povo de Antioquia, 2, 5, 65, 3). “A avareza é a raiz de todos os males: guerras, inimizades, suspeitas, injurias, mentiras, homicídios, furtos, e até as profanações dos sepulcros” (João Crisóstomo, Homilia da carta aos Romanos, 11, 5).

“Que juízo mais severo te espera, ó rico. O povo sente fome e tu fechas teus depósitos; o povo implora e tu exibes tuas jóias... as pedras de teu anel poderiam haver salvado as vidas de todo um povo” (Ambrosio, Livro de Naboth, 56).

“A avareza não é o vicio do ouro, mas de homens perversos que amam o ouro, abandonando a justiça, que, sem comparação alguma, deve ser sempre preferida ao ouro” (Agostinho, Cidade de Deus, 12, 8).

“Não há nenhum vestígio de justiça no coração onde habita a avareza (....). Se deve aconselhar aos avarentos para que tomem consciência da injuria que fazem a Deus, pois recebendo tudo Dele, não devolvem nenhuma oferenda de misericórdia” (Gregorio Magno, Regra Pastoral, 3, 20.21).

“O pior dos pecados é a avareza e o amor às riquezas... A cobiça é a mãe de todos os crimes” (Isidoro, Sentenças, 2, 3); “Não sejas avarento nem ladrão” (Didaque II, 2, 6).

“Quem não se afasta da avareza cai na idolatria... A cobiça é a raiz de todos os males” (Policarpo, Carta aos Filipenses, II, 1, 2).

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“Não está proibido buscar a riqueza; o que proibimos é buscá-la sem avareza, sem rapina nem violência ante todos” (João Crisóstomo, Homilia 1 Cor, 11, 5. PG 61, 94).

“A paixão é funesta e não é possível enriquecer-se sem cometer mil iniqüidades” (João Crisóstomo, Homilia 1 Tim, 12, 4, 3. PG 62, 562).

“Não vendas por altos preços aproveitando-se da necessidade alheia. Não esperas a falta do pão para abrir tuas reservas. Não espere por amor ao ouro, que venha a fome, nem para fazer da indigência um negocio privado. Não sejas um traficante das calamidades humanas. Não abras inda mais as feridas dos atribulados. Miras ao ouro e não ao teu irmão: reconheces o cunho da moeda e discernes a verdadeira da falsa, mas ignoras totalmente a teu irmão em tempos de necessidade” (Basílio, Homilia Contra a avareza, 3. PG 31, 268). (Homilia sobre Lc 12, 9).

“Que responderás ao Juiz, tu que revestes as paredes e deixas sem roupas ao homem; tu que adornas os cavalos e não te atreves a olhar teu irmão coberto de farrapos; tu que deixa apodrecendo o trigo e não alimentas aos famintos; tu que escondes ouro e desprezas ao que morre na miséria? (Basilio, Homilia in divites. PL 31, 277-304).

“Quem pode remediar o mal e por avareza esconde o remédio, com razão pode ser condenado como homicida” (Basilio, Homilia em tempos de fome, 7. PG 31, 322.

“Se ensoberbeceu com tantas riquezas (o filho pródigo) e prazeres e desprezou a pobreza de Lázaro. Não teve em conta os sofrimentos dos pobres nem os direitos comuns da humanidade, porque é necessário que o homem não se desentenda do humano e se compadeça das calamidades alheias daqueles que são de sua condição” (São Jerônimo, Homilia Ez 9. PL 25, 758).

“Os bens supérfluos dos ricos são necessários ao pobre. Possuis o alheio quando possuis o supérfluo” (Agostinho, Ennar. Sl 147, 12. PL 37, 1922).

“Deus nos manda pedir o pão, não o luxo e as riquezas” (Gregório de Nissa, Discurso sobre o Pai Nosso, 4).

“Me direis: Já estás outra vez metendo-te com os ricos? Porém eu vos digo: Já estais outra vez contra os pobres! Uma vez mais atacas aos rapaces? Uma vez mais os colocais contra as vítimas da rapina! Se vós não os cansais de devorar

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e engolir os pobres, eu não me canso de lançar-vos na cara... Afastai-vos das minhas ovelhas. Não destruais meu rebanho. Se eu fosse pastor de ovelhas, me acusarias de não perseguir ao lobo que ataca meu rebanho? (...) Mas eu não persigo com pedras, mas com palavras. Mas não te persigo, mas te convido: entra no rebanho. Por que devastas meu rebanho? Eu não te persigo. Persigo ao lobo que está em ti. Se te convertestes em lobo, te acusas a ti mesmo. Por tanto, eu não estou contra os ricos mas a favor. Sim, porque te livro do pecado, te liberto da rapina, te faço amigo dos pobres. E isto te incomoda? Tu me aborreces, mas eu te amo. Que outra pessoa te dirá estas coisas? As autoridades? Tua mulher só se ocupa de adornos e jóias, teus filhos só pensam em tua herança. Teus parasitas só querem saber de banquetes... Todos temem a ti, mas eu não, e, em quanto és como és, te desprezo:desprezo tua paixão” (João Crisóstomo, Homilia Ev. Jo. PG 55, 500, 503-505).

Exploração do trabalhador

“Pode haver alguém mais iníquo que estes (proprietários)? Se observas como tratam a seus pobres lavradores, verás que são mais cruéis que os bárbaros. Impõem exigências contínuas e obrigam aos mais duros trabalhos a homens consumidos pela fome que passam a vida trabalhando. Acreditam que possuem um corpo de cavalos e não lhes concedem nem um momento de descanso (...). Que espetáculo lastimável! Após haver trabalhado todo o inverno e de haver sofrido nas nevascas, chuvas e noites em vela, agora devem retirar-se com as mãos vazias e afogados em dívidas. Pela fome, temem e tremem os desgraçados ante as torturas dos administradores, as ameaças dos tribunais e as cargas pesadas que se lhes impõem. Quem poderia calcular os negócios que se realizam com eles, os trabalhos desumanos a que são submetidos a fim de que os proprietários encham seus campos e silos às custas dos esforços e do suor daqueles infelizes, em quanto que não lhes está permitido levar a casa nem uma mínima parte? Toda a produção deve preencher os depósitos da iniqüidade... (João Crisóstomo, Homilia sobre Mt, 61, 3. PG 58, 591-592).

“Paga ao trabalhador, não o enganes em seu salário... Não desprezes ao pobre que ganha sua vida através do trabalho e se sustenta com seu salário. É um homicídio negar ao trabalhador o salário necessário a sua vida” (Ambrosio, Tb 91).

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O ser humano não é uma mercadoria: “Quem se apropria do que pertence a Deus, atribuindo a sua linhagem tal poder que se considera a si mesmo como proprietário de homens e mulheres... condenas o ser humano à servidão cuja natureza é livre e independente, e te opões à lei de Deus. A este que foi criado para ser o dono da terra e destinado ao domínio tu o submetes ao jugo da servidão” (Gregorio Naziazeno, Homilia, 4).

Elementos éticos

1. Igualdade fundamental, condição para a justiça

Os Padres insistem no ensinamento da Sagrada Escritura da igualdade radical de todos os seres humanos e na universalidade do projeto salvador de Deus. A razão última da dimensão social da existência humana, tal como a interpretam os Padres, parte do núcleo do cristianismo. Pelo mistério da encarnação do Verbo, Jesus de Nazaré não apenas assume um corpo humano mas, mediante sua encarnação, assume a toda a humanidade: A encarnação não foi uma simples corporatio, mas uma verdadeira concorporatio com toda a humanidade: Concorporatio Verbi Dei (Hilario, Mat I, 6,c.1. PL 9, 951).

Lactancio (+317): “É necessário que pratiquemos sempre a virtude da humanidade se queremos ser realmente homens não só de nome. Observar esta virtude, que outra coisa pode ser se não o amor aos homens por que são homens e são da nossa mesma natureza?” (Lactancio, Instituições Divinas 7 VI, 11. PL 6, 671).

“A humanidade é vínculo máximo que une os homens entre si, e quem o viola deve ser considerado ímpio e parricida” (Lactancio, Instituições Divinas V, 15. PL 6, 596-597).

“Chamo equidade não a virtude de julgar retamente, que é muito louvável, mas a virtude de sentir-se igual aos demais (...). Deus que criou e deu a vida a todos os homens, quis que todos fossem iguais (...). Pois se é Pai de todos, com igual direito todos somos seus filhos (...). Esta é a razão pela qual não podia existir a justiça entre os romanos e os gregos. Permitiram uma grande diversidade de condições e graus: pobres e ricos, humildes e poderosos. Não existe equidade onde não são todos iguais. Esta desigualdade exclui a justiça, cuja força consiste em tornar iguais aos que com igual arte vieram ao mundo” (Lactancio, Instituições Divinas 7 V, 15. PL 6, 596-597).

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Ambrosio (+397) e a dimensão universal da justiça: “A justiça se refere à sociedade e à comunidade do gênero humano. O fundamento da sociedade é duplo: justiça e bondade” (Ex officiis ministrorum, I, XXIII, 130. PL 16, 66-67). A prioridade da justiça é o bem comum sobre o bem privado: “Nenhuma virtude produz mais frutos que a equidade e a justiça, pois aproveita mais a outro que a si mesmo e antepõem os interesses pessoais sobre a utilidade própria” (Liber de paradiso, III, 18. PL 14, 298).

2. Amor ao próximo“... o próximo para o ser humano, não é outro que todo animal racional, submetido às mesmas paixões humanas, que é o homem” (Justino, Diálogo com Trifão, 93, 3).

Para Santo Agostinho “não há ninguém no gênero humano a quem não se deva amar, se não for por mutua reciprocidade, que seja pela participação da mesma natureza” (Agostinho, Epistola, 130, 13).

“Deus mesmo é amor. Em quanto a seu ser inefável, Deus é Pai; mas em quanto a sua compaixão por nós, Deus é Mãe. Por amor o Pai se faz mulher, e o sinal principal é que engendrou-se a si mesmo pois quem nasce do amor é amor. Por amor descendeu ao mundo, se encarnou e sofreu todo humano; assim, medida nossa debilidade, e porque nos amou, nos medirá segundo seu poder” (Clemente de Alexandria, Salvação dos ricos, 37); “Quem ama ao próximo procura conseguir sempre a saúde do corpo e da alma” (Agostinho, Costumes da Igreja 1, 27-52) .

“Se este mandamento se cumprisse com perfeição, não haveria nem escravo nem livre, nem superior nem súdito, nem rico nem pobre, nem pequeno nem grande, nem o diabo apareceria em nenhuma parte... mil e cem mil como ele, nada podem onde está a misericórdia” (João Crisóstomo, H. 1 Cor 32, 6).

“Se devemos nossa alma a nossos irmãos segundo o pacto com o Salvador, vamos fechar em nossos depósitos os bens deste mundo, o miserável e alheio? Vamos a excluir-nos uns a outros de coisas que em breve serão pasto para o fogo?” (Clemente de Alexandria, Salvação dos ricos, 37).

3. Destino universal dos bens“Até onde pretendeis levar, oh ricos, vossas cobiça insensata? Acaso sois os únicos habitantes da terra? Porque expulsais de suas posses aos que tem a mesma natureza e vindicais somente para vós a posse de toda terra? A terra

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foi criada para todos; então por que arrogais o direito exclusivo do solo?” (Ambrosio, Livro de Naboth, II).

“Deus entregou a terra em comum a todos os homens a fim de que todos desfrutassem dos bens que se produzem, e não para que cada um, com sua avareza furiosa, reivindique para si todas as coisas, nem para que alguém se visse privado dos produtos da terra” (Lactancio, Instituições divinas 5, 5).

“Aqui estão as propriedades. Que direito alegais a elas? Divino ou humano? O divino está nas Escrituras, e humano nas leis dos reis... Logo, direis esta casa é minha, este escravo é meu, por direito humano, dos imperadores...” (Agostinho, Sobre o Evangelho de João 6, 1, 25).

“Os bens em propriedade pertencem à Deus. Não posso menos que admirar aqueles que falam em meu campo, minha propriedade. Com uma sílaba vã se apropriam daquilo que não lhes pertence e com três letras (mou) abraçam o que não é deles. Acontece o mesmo com a máscara dos atores, que as utilizam para representar um drama ou uma comédia”(Astério, Homilia I De divite el Lazaro. PG 40, 183).

A origem da propriedade: “Depois que se introduziram na vida a inveja e as contendas e a astuta tirania da serpente nos foi atraindo com a isca do prazer e levantou os fortes contra os fracos, o que era de mesma linhagem e rompeu e se dividiu numa variedade de nomes; e a avareza cortou aquilo que havia de nobre na natureza, servindo-se da lei como apoio de seu poder. Tu, porém, deves olhar a igualdade primitiva, não a distinção posterior, não a lei dos poderosos, mas a lei do criador. Ajude a natureza com tuas forças, honra a liberdade primitiva, respeita-te a ti mesmo, socorre a enfermidade da tua linhagem e ajuda a indigência dos teus semelhantes” (Gregoria Naziazeno, Oratio XIV. De pauperum amore, 25-26. PG 35, 890-891).

“Os bens terrenos não são de posse ou domínio; são de uso. Como falar em possessão quando, uma vez que expires, outros se apoderarão de todos os bens, e estes a sua vez, darão a outros (...). A propriedade não é mais que um nome, em realidade somos todos donos dos bens alheios” (João Crisóstomo, Homilia XI, in Ep I ad Tim, III, 2. PG 62, 555).

Finalidade da propriedade: “Quem está seriamente preocupado com sua salvação deve ter como principio que toda propriedade de bens se nos confere por razão de seu uso (Clemente de Alexandria, Pedagogo 2, 3).

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“Que cada um de vocês seja consciente que é apenas um administrador de um bem alheio; cada um arranque de sua alma toda arrogância de proprietário e toma a atitude de humildade e cautela que convém a todo súdito. Não passas de um inquilino...”(Asterio, Homilia II de oeconomo iniquitatis, I, 5. PG 40, 180).

“Quem possui bens, ouro e prata e casas como dons de Deus, e através deles serve a Deus que os fez para a saúde da humanidade; aquele que sabe que possui tudo isso para o bem de seus irmãos, e não se deixa dominar pelos bens, este não é escravo das riquezas, mas trabalha constantemente em alguma obra boa e divina” (Clemente de Alexandria, Quis dives salvetur, 13. PG 9, 618).

“Nossos bens se tornam mais propriamente nossos quando não os possuímos para nós, mas quando os colocamos a disposição dos pobres” (João Crisóstomo, In Genesim Sermo, I, 4. PG 54, 586).

“Demonstrastes como recebestes coisas que não te pertencem. Vejamos como o que é te mandaram administrá-las: dar de comer a quem tem fome, vestir aos nus, cuidar dos enfermos, aproximar-se dos indigentes abandonados pelos caminhos” (Asterio, Homilia II de oeconomo inquitatis. PG 40, 187).

“Somente se possui justamente aquilo que se usa justamente” (Agostinho, Epístola 153, 26). “Quem não usa justamente, não possui legitimamente’ (Agostinho, Sermão 50, 4). “O mal não consiste em possuir, mas no modo injusto de possuir” (Hilario de Poitiers, Mt 19, 9).

“A propriedade deve ser do proprietário, não o proprietário da propriedade. Todo aquele que não usa de seu patrimônio como proprietário, que não sabe ser generoso na partilha com os pobres, é servo e não senhor da suas posses, porque guarda as riquezas alheias como criado e não usa delas como senhor” (Ambrosio, Livro de Naboth, XV, 63. PL 14, 787). “A riqueza em si mesma não é pecado. O pecado está em não repartir com os pobres. A riqueza deve solucionar o problema da pobreza” (João Crisóstomo, Homilia in Epist. I Cor, XIII, 5. PG 61, 113).

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“As riquezas levam este nome devido ao uso que se faz delas, e não do senhorio o propriedade sobre ela, as possessões são de uso, não de domínio” (João Crisóstomo, Homilia in Epist. I Tim, XI, 3. PG 62, 555).

“Cada um, efetivamente, deve empregar o que tem para proveito comum. Se tem sabedoria, poder, riqueza, ou qualquer outra coisa, não deve empregar-se para prejudicar aos demais e nem levar a própria perdição” (João Crisóstomo, Homilia, in Math, 3).

“Em plano terreno ninguém vive apenas para si. O artesão, o lavrador, o comerciante, todos sem exceção, contribuem ao bem comum e ao proveito do próximo. Quem vive apenas para si e despreza aos demais, é um inútil, não é homem, não pertence á nossa linhagem” (J. Crisóstomo, Homilia in Math, 6).

“Os bens temporais devem ser usados e os bens espirituais devem ser desfrutados. Os malvados querem desfrutar do dinheiro e usar a Deus, porque não gastam dinheiro por Deus, mas dão culto a Deus por causa do dinheiro. Segundo o modo de falar, usamos dos frutos e desfrutamos dos usos” (Agostinho, De civit Dei, XI, 25. PL 41, 339).

“Dirás que também és pobre (...). Dá tu um pedaço de pão, outro, um copo de vinho; outro, uma roupa, e assim, com a colaboração de muitos, se alivia a calamidade de um só (...). Não vês como a moedinha da viúva ultrapassou as ofertas dos ricos?” (Gregorio de Nissa, De pauperum amore).

4. Misericórdia e perdão dos pecados“Quanto menor é a fortuna de alguém, mais livre está do pecado” (Isidoro, 3, 59).

“Deus prefere a misericórdia aos sacrifícios. Nada como a misericórdia caracteriza o cristão” (João Crisóstomo, Homilia carta aos Hebreus, 32, 4); “a misericórdia nos assemelha a Deus” (João Crisóstomo, Homilia 2 Tim 6, 3).

“Sem misericórdia as demais virtudes são inúteis” (Leão Magno, Sermão 10, 2).

“O Espírito Santo afirma e as Escrituras confirmam: os pecados se limpam com esmolas e a fé (Prov 16, 6)... como a água apaga o fogo, assim também a esmola o pecado (Ecle 3, 33)... assim como o banho nas águas do batismo apaga o fogo do inferno, por meio da esmola e das boas obras se apagam as

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chamas dos pecados. E porque no batismo só se perdoam os pecados uma vez, a prática da misericórdia nos reconcilia com Deus a imitação do batismo” (Cipriano, Cartas. Sobre a esmola, 3). “Satisfazer a Deus com obras de justiça e purgar seus pecados com a misericórdia” (Cipriano, Sobre a esmola 2).

“Existem na Escritura muitos testemunhos que comprovam o poder da misericórdia para apagar os pecados. Por isso no dia do juízo o Senhor levará em conta as obras de misericórdia: (...), entrai no Reino, pois tive fome e me destes de comer. Por tanto, não iremos ao Reino porque não pecamos, mas porque nossas obras de misericórdia redimiram nossos pecados” (Agostinho, Sermo LX, 10. PL 38,407).

“O sacrifício do cristão é a esmola ao pobre. Assim, Deus nos será propício” (Agostinho, Sermão 42, 1).

“Quem permanece nas virtudes cumpre os preceitos da justiça e, com a ajuda da misericórdia, está afastado do pecado” (Policarpo).

Orígenes identifica sete formas de receber o perdão dos pecados: Batismo, martírio, esmola, perdoar ao próximo, converter alguém, misericórdia (amor), penitencia-confissão (Orígenes, Lev 2, 4).

5. Aspectos políticosOs Padres em geral não possuem uma doutrina moral sistemática sobre a política de seu tempo. Simplesmente aceitam o governo constituído e exortam aos cristãos que respeitem as autoridades públicas. Recomendam aos governantes o exercício justo do poder.

“Nem aqueles que exercem o poder político e nem aqueles que mandam na Igreja poderiam cumprir devidamente seu objetivo se antes não mandam em si mesmos e não guardam com maior atenção as leis que a todos se referem” (João Crisóstomo, In Ep ad Cor Homilia XV, 4. PG 61, 508).

“Todos os que exercem alguma autoridade devem examinar se não cometeram abuso de poder, se o rei cuidou da justiça, se atuou com equidade, se foi moderado no poder, se não omitiu a misericórdia... se procurou o bem comum, se garantiu a paz aos cidadãos, se controlou os impostos que não faltara aos militares o suficiente nem arruinara os contribuintes” (Pedro Crisólogo, Sermo XXVI. PL 52, 274).

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“Existe algo mais poderoso que o império? Não obstante, investiga os palácios e encontrarás muitas coisas que serviram aos corpos de muitos imperadores. O mesmo se aplica a coroa, a faixa, herança inconstante, uso comum. Que dizer de todo o aparato dos cônsules, de seus carros de prata e cetros de ouro? Como a tumba recebe seus cadáveres, as insígnias de poder passam de mão em mão...efêmeros, gente de um dia... ”(Asterio, Sobre o mordomo iníquo).

“...Se excluímos o governo das cidades viveremos como feras, devorando-nos uns aos outros, o rico ao pobre, o forte ao débil e o sem-vergonha ao homem honrado... Os governos são como pilares da sociedade. Se retiramos os pilares das paredes, elas cairão uma sobre as outras: do mesmo modo, se tiramos da terra aos governantes, casas, cidades e nações cairão umas sobre as outras com a maior facilidade, pois não haverá nada que as impeça e contenha...” (João Crisóstomo, Homilia ao povo de Antioquia, 6, 1); “A autoridade é ministro de Deus para ajudar-nos para o bem (Rom 13, 4). Se tens nela um colaborador e recompensador, porque não obedecê-la?” (João Crisóstomo, Homilia ao povo de Antioquia, 6, 1).

“É honesto buscar o poder se com ele se quer alcançar o bem dos súditos, não o poder em si mesmo, mas pelo bem que se pode fazer por meio dele; mas, não é honesto buscar o poder por vaidade, para alcançar orgulho, ou pomposidade supérflua e néscia” (Agostinho, Epistola 130, 12).

A origem da autoridade pública: “A justiça de Deus ordenou de tal modo a vida humana que estabeleceu que governantes para refrear a liberdade de agir com maldade... Quem poderia proibir aos maus? Por isso as nações elegem reis e príncipes, para afastar do mal a seu povo e proclamar leis que conduzem a uma vida honesta (...). O Senhor julgará igualmente aos governantes e seus súditos” (Isidoro, Sentenças 3, 47, 1-2);

“Todo poder somente é proveitoso quando bem administrado... Portanto, o principado deve ser proveitoso para o povo, não pernicioso, e não deve oprimir o povo com seu poder” (Isidoro, Sentenças 3, 29, 3).

Santo Agostinho e Teologia Política: Cidade de Deus

1. Crítica à ideologia política do império romano

Agostinho é o primeiro teólogo a elaborar uma concepção cristã de sociedade política em que são contemplados determinados princípios éticos do cristianismo. A Cidade de Deus é a obra mais extensa e completa de

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Agostinho1. Para descobrir a unidade do conjunto da obra é necessário recordar que foi motivada pelos violentos ataques lançados pelos pagãos contra os cristãos devido à tomada de Roma por Alarico em 410, a saber, que o cristianismo era responsável por todas as desgraças que caíram sobre o império. Será quando o bispo de Hipona apresentará a crítica mais dura contra a cultura do Império Romano.

Agostinho recorre a Varrão para criticar a teologia civilis da cultura greco-romana que divinizava o poder público, fazendo-se objeto de culto2. Para ele a religião política dos romanos não possui verdade alguma. Existe, no entanto, uma verdade: a subordinação do homem aos costumes opostos à verdade que o entregam às forças contra-divinas, que a fé cristã chama de “demônios”. Neste sentido, a idolatria dos romanos não é simplesmente absurda, mas está a serviço dos “demônios”. Atrás dos ídolos cultuados está o poder demoníaco. Por sua parte, o cristianismo representa a vitória sobre este poder demoníaco presente na política que subjuga a verdade.

“Ipse dat regna terrena” – é o próprio Deus que distribui reinos terrestres. Também a política, com seus estados tão multiformes e opostos, não tem suas divindades próprias, mas depende do único Deus, autor da criação e da história3.

2. Amor: motor de transformação da história

O cristianismo oferece ao mundo a construção de uma sociedade fundada em valores humanos. Este modelo está representado na analogia das duas cidades (Cidade de Deus, 14, 27): Dois amores deram origem a duas cidades: o amor de si até o desprezo de Deus, a terrena; e o amor de Deus até o desprezo de si, a celestial... A primeira está dominada pela ambição de domínio em seus

1A situação do Império romano após o reinado de Constantino (306-337) se caracteriza por um influente cristianismo em contraposição ao desacreditado culto pagão, que conheceu apenas um breve intervalo de reivindicação sob o imperador Juliano. Porém, para o resto do s. IV, os imperadores foram consolidando o cristianismo como religião oficial do império. No final do s. IV Teodósio o Grande, traduziu em termos legais o combate ao paganismo de forma radical e intolerante que orientará a seus sucessores, proibindo os ritos pagãos e destruindo os santuários dedicados a culto pagão (Seraphis de Alexandría). Talvez por isso os pagãos acusaram os cristãos da responsabilidade pelas desgraças provocadas pela invasão de Alarico.2 Cf. Santo Agostinho, Cidade de Deus, S. Paulo: ed. Américas, 1973, p. 181-182. Agostinho mostra que Varrão o autor de Antiquitate distinguia três formas de teologia: mística, física e política. A primeira se refere à religião praticada pelos sacerdotes, a segunda se refere à especulação dos filósofos em torno das causas divinas do mundo, e a terceira é aquela que se refere ao Estado e os cidadãos e, especialmente os sacerdotes. Esta última determina quais deuses devem ser reconhecidos como úteis ao Estado, e através de quais ritos e sacrifícios são venerados.3 Cf. M. T. Ramos, A idéia de Estado na doutrina ético-política de Santo Agostinho, S. Paulo, ed. Loyola, 1984. Os elementos fundamentais da Teologia Política de Santo Agostinho estão bem desenvolvidos por este autor.

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príncipes ou nas nações que submete; na segunda se servem mutuamente na caridade dos superiores mandando e os súditos obedecendo...

3. O direito fundado na justiça: condição para a paz

A edificação da cidade de Deus abarca diversos níveis articulados: o âmbito ético-religioso, uma ordem de valores morais fundados na religião; âmbito jurídico e o âmbito sócio-político. A ordem das coisas humanas exige a aplicação de leis temporais (lex humana) condicionadas ao contexto histórico para a qual foram criadas. Porém, apenas serão justas se estão de acordo com a lei eterna universal (Livre Arbítrio). A lei humana deve garantir a justiça porque tudo o que é justo procede da lei eterna. A lei deve expressar a ordem da justiça que garante a paz.

Justiça: virtude que manda dar a cada um o que lhe pertence. Para determinar o que é de cada um, deve-se consultar a lei natural que revela o valor e a dignidade de cada individuo como pessoa.

Formas de vida social: in domo (família); in urbe (cidade); in orbe (sociedade); in mundo (humanidade e anjos). Em cada um destes âmbitos se coloca o tema do bem universal (Cidade de Deus). Quanto mais se amplia o âmbito, mais difícil definir e concretizar o bem.

Em toda sociedade deve haver um fim ao qual ela se orienta. Seu fim último é a paz. Seu caminho é a justiça. O “lugar” da justiça é a cidade, a res publica: “um grupo de seres racionais unidos pela aceitação do direito e por uma comunidade de interesses comuns”. “Onde não existe justiça tão há pouco reunião de homens fundada no consenso e no direito. Se não existem essa coisas, não existe povo, logo tão pouco existe república. E onde não existe povo não pode haver coisa do povo”. Deste ponto nasce sua célebre pergunta: “Desterrada a justiça, que são os reinos senão grandes piratas?” (Cidade de Deus).

A paz e a justiça “são elementos constitutivos da noção geral de Ordem. O poder civil existe para fomentá-los. Sendo a paz obra da justiça, não haverá paz verdadeira onde não há verdadeira justiça. O único fim que justifica uma guerra é a realização da paz e a necessidade de restabelecer a justiça quando estão esgotados todos os meios pacíficos de solução. Empreender uma guerra por cobiça “que outro nome pode ter que o de enorme pilhagem?”(Cidade de Deus).

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