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Tradução - BLOG DA EDITORA UNDERWORLD · Eu me encolho para dentro dos cobertores com ... Só existe uma única opção além ... aqui tem um almoço pra você. Nada que vá fazer

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T r a d u ç ã oF á b i o F e r n a n d e s

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É A S S I M Q U E

O M U N D O T E R M I N A

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N ÃO C O M U M A E X P L O S ÃO

M A S C O M U M GE M I D O .

T . S . E L I O T , “ O S H O M E N S O C O S ”

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EU AGUA R D O . Ele nos mantém no escuro por tanto tempo que perdemos a sensação das nossas pálpebras. Dormimos todas juntas amontoadas como ratos, olhando para fora, e sonhamos que nossos corpos balançam.

Eu sei quando uma das garotas atinge uma parede. Ela começa a esmurrar e gritar – o som é de metal – mas nenhuma de nós a ajuda. Ficamos tempo demais sem falar, e tudo o que fazemos é nos enterrar ainda mais na escuridão.

As portas se abrem. A luz é assustadora. É a luz do mundo entrando pelo canal

vaginal quando nascemos, e ao mesmo tempo o túnel ofuscante que vem com a morte. Eu me encolho para dentro dos cobertores com as outras garotas, horrorizada; não quero nem o princípio nem o fim.

Quando eles nos deixam sair, tropeçamos; tínhamos esquecido de como usar nossas pernas. Quanto tempo havia se passado – dias? Horas? O céu imenso e aberto está onde sempre esteve.

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Eu fico na fila com as outras garotas, e homens de casaco cinza nos estudam.

Já tinha ouvido dizer que isso acontecia. De onde eu venho, garotas andam desaparecendo há um bom tempo. Elas somem de suas camas ou da beira da estrada. Aconteceu com uma garota da minha vizinhança. A família inteira dela desapareceu depois disso, se mudou, ou para encontrá-la ou porque sabiam que ela nunca mais voltaria para eles.

Agora é minha vez. Eu sei que garotas desaparecem, mas muita coisa pode acontecer depois disso. Será que vou ser assassinada e abandonada? Vendida para me tornar uma prostituta? Esse tipo de coisa acontece. Só existe uma única opção além dessas. Eu poderia me tornar uma noiva. Eu já as vi na televisão, de braços dados com um homem rico que está chegando à idade fatal de vinte e cinco anos.

As outras garotas nunca chegam a aparecer nas telas de TV. Garotas que não passam na inspeção são enviadas para um bordel nos distritos escarlates. Algumas nós encontramos assassinadas nas beiras das estradas, apodrecendo, encarando o sol escaldante porque os Coletores não queriam se dar ao trabalho de cuidar delas. Algumas garotas somem para sempre, e tudo o que as famílias delas podem fazer é imaginar o que aconteceu.

As garotas são levadas com a idade mínima de treze anos, quando seus corpos já estão maduros o bastante para ter filhos, e o vírus mata todas as mulheres de nossa geração aos vinte anos.

Nossos quadris são medidos para determinar força, nossos lábios são abertos para que os homens possam julgar nossa saúde pelos nossos dentes. Uma das garotas vomita. Ela pode ser a garota que gritou. Ela limpa a boca, tremendo, aterrorizada. Eu permaneço firme, determinada a ser anônima, sem levantar um dedo para ajudar.

Eu me sinto viva demais nesta fileira de garotas moribundas com os olhos semicerrados. Eu sinto que os corações delas mal estão batendo, enquanto o meu parece que quer arrebentar dentro do peito. Depois de tanto tempo na escuridão do caminhão, nós todas nos fundimos umas nas outras. Somos uma única coisa sem nome

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compartilhando este estranho inferno. Não quero me destacar. Não quero me destacar.

Mas não faz diferença. Alguém reparou em mim. Um homem anda à frente da nossa fila. Ele deixa que nós sejamos espetadas por homens de casacos cinza que nos examinam. Ele parece pensativo e satisfeito.

Seus olhos, verdes, iguais a dois pontos de exclamação, encon-tram os meus. Ele sorri. Há um brilho de ouro nos seus dentes, o que indica riqueza. Isso é incomum, porque ele é jovem demais para estar perdendo os dentes. Ele continua caminhando, e eu olho para meus sapatos. Estúpida! Eu nunca deveria ter olhado para cima. A cor estranha dos meus olhos é a primeira coisa que alguém repara.

Ele diz alguma coisa para os homens de casaco cinza. Eles olham para todas nós, e então parecem chegar a um acordo. O homem de dentes de ouro sorri na minha direção mais uma vez, depois é levado para outro carro que espirra pedrinhas de cascalho para todo lado quando dá ré de volta para a estrada e sai em disparada.

A garota que vomitou é levada de volta para o caminhão, e uma dúzia de outras garotas com ela; um homem de casaco cinza vai junto. Sobram três de nós, o espaço das outras garotas ainda entre nós. Os homens falam uns com os outros mais uma vez, e depois para nós. — Vão – eles dizem, e nós obedecemos. Não há lugar nenhum para ir a não ser a parte de trás de uma limusine aberta estacionada no chão de cascalho. Estamos em algum ponto fora da estrada, não muito longe da rodovia. Consigo ouvir os sons distantes do tráfego. Consigo ver as luzes da cidade à noite começando a aparecer na neblina púrpura distante. Não é nenhum lugar que eu consiga reconhecer; uma estrada assim desolada fica longe das ruas cheias de gente lá em casa.

Vão. As duas outras garotas escolhidas se mexem antes de mim, e eu sou a última a entrar na limusine. Há uma janela de vidro escuro que nos separa do motorista. Logo antes de alguém fechar a porta, ouço uma coisa dentro da van para onde as garotas restantes foram conduzidas.

É o primeiro do que sei que serão mais doze tiros.

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Acordo numa cama de cetim, enjoada e latejando de suor. Meu pri-meiro movimento consciente é me forçar até a beirada do colchão, onde me inclino e vomito no carpete vermelho luxuoso. Ainda estou cuspindo e tossindo quando alguém começa a limpar a sujeira com um pano de chão.

— Cada uma reage ao gás sonífero de modo diferente – ele diz suavemente.

— Gás sonífero? – eu engasgo ao falar, e antes que possa limpar a boca na minha manga de renda branca, ele me dá um guardanapo de tecido – também de um vermelho luxuoso.

— Ele é liberado pelas entradas de ventilação da limusine – ele diz. — para vocês não saberem para onde estão indo.

Eu me lembro da vidraça nos separando da frente do carro. Hermeticamente fechado, eu suponho. Lembro-me vagamente do barulhinho do ar passando por entradas de ventilação nas paredes.

— Uma das outras garotas – diz o rapaz enquanto borrifa es-puma branca no lugar onde eu vomitei – ela quase se jogou da janela do quarto, de tão desorientada que estava. A janela está trancada, é claro. Inquebrável. – Apesar das coisas terríveis que ele está dizendo, sua voz é suave, possivelmente até mesmo simpática.

Olho para a janela atrás de mim. Bem fechada. O mundo brilha com tons intensos de azul e verde para além dela, mais intensos que na minha casa, onde só existe terra e os restos do jardim da minha mãe que não consegui ressuscitar.

Em algum lugar corredor abaixo, uma mulher grita. O rapaz fica tenso por um momento. Então ele volta a esfregar a espuma.

— Eu posso ajudar – me ofereço. Há um instante atrás eu não sentia culpa por estragar nada neste lugar; eu sei que estou aqui contra minha vontade. Mas também sei que a culpa não é do rapaz. Ele não pode ser um dos Coletores de cinza que me trouxeram para cá. Talvez ele também tenha sido trazido para cá contra a sua vontade. Não ouvi falar de rapazes desaparecendo, mas até cinquenta anos atrás, quando o vírus foi descoberto, as garotas também estavam seguras. Todo mundo estava seguro.

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— Não precisa. Já terminei – ele diz. E quando ele retira o pano, não há sequer uma mancha. Ele puxa uma alavanca na parede, e uma calha se abre; ele joga os panos dentro, solta a alavanca e a calha se fecha. Ele enfia a lata de espuma branca no bolso do seu avental e volta ao que estava fazendo. Pega uma bandeja de prata de onde a havia colocado no chão, e a leva até minha mesa de cabeceira. — Se estiver se sentindo melhor, aqui tem um almoço pra você. Nada que vá fazer você dormir de novo, juro. – Ele tem cara de quem tem vontade de dar um sorriso. Mas mantém um olhar concentrado ao levantar a tampa metálica de uma tigela de sopa e outra de um pra-tinho de legumes fumegantes e purê de batata cercando um lago de molho. Eu posso ter sido roubada, drogada e trancafiada neste lugar, mas estão me servindo uma refeição de gourmet. O sentimento é tão repulsivo que eu quase sinto vontade de vomitar de novo.

— Aquela outra garota… a que tentou se jogar da janela… o que aconteceu com ela? – pergunto. Não ouso perguntar sobre a mulher gritando corredor abaixo. Não quero saber sobre ela.

— Ela se acalmou um pouco.— E a outra garota?— Acordou hoje de manhã. Acho que o Governador da Casa

levou ela para fazer um passeio pelos jardins.Governador da Casa. Eu me lembro do meu desespero e desabo

contra os travesseiros. Governadores de Casas possuem mansões. Eles compram noivas de Coletores, que patrulham as ruas procu-rando candidatas ideais para seqüestrar. Os misericordiosos vendem as rejeitadas para prostituição, mas os que encontrei as conduziram para dentro da van e fuzilaram todas. Eu não parava de ouvir o som daquele primeiro tiro nos meus sonhos medicados.

— Há quanto tempo eu estou aqui? – pergunto.— Dois dias – responde o rapaz. Ele me entrega uma xícara

fumegante, e eu estou quase recusando quando vejo o saquinho de chá pendurado do lado e sinto o cheiro de especiarias. Chá. Meu irmão, Rowan, e eu, tomávamos chá no café da manhã todo dia, e toda noite no jantar. Tem cheiro de casa. Minha mãe cantarolava enquanto esperava a água ferver ao lado do fogão.

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Exausta, eu me sento e pego o chá. Seguro-o perto do meu rosto e inspiro bem o vapor. Faço o máximo que posso para não explodir em choro. O rapaz deve estar percebendo que o impacto total do que aconteceu está começando a me atingir. Deve perceber que eu estou à beira de fazer alguma coisa drástica do tipo chorar ou tentar me jogar pela janela igual àquela outra garota, porque ele já está indo na direção da porta. Quieto, sem olhar para trás, ele me deixa sozinha com minha tristeza. Mas em vez de lágrimas, quando aperto meu rosto contra o travesseiro, o que sai de mim é um hor-rível grito primal. É diferente de tudo o que eu achava que era capaz de fazer. Uma fúria diferente de tudo o que eu já havia conhecido.