Tragante, Christiane a. - O Desenho Na Pesquisa Com Crianças: Reflexōes a Partir Da Educaçāo Em Arte

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Tragante, Christiane a. - O Desenho Na Pesquisa Com Crianças: Reflexōes a Partir Da Educaçāo Em Arte.

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    O desenho na pesquisa com crianas: reflexes a partir da educao em arte.

    Christiane A. Tragante

    No de hoje que os desenhos das crianas so utilizados como fontes de importantes anlises nas pesquisas que as tomam como objetos de estudos em campos diversos. Muitas dessas pesquisas, principalmente aquelas dos campos da psicologia, psicanlise e pedagogia, fizeram e ainda fazem uso dos desenhos como mtodo para a compreenso do desenvolvimento infantil, numa perspectiva progressiva que entende a criana como um ser em desenvolvimento para a fase adulta (Luquet, 1969; Lowenfeld, 1977; Piaget; Inhelder, 1994; Vygotsky, 1987). A despeito das contribuies destes estudos, neste contexto, os desenhos quase sempre servem determinada classificao que tipifica a condio da criana por partir de uma anlise que foca na existncia de certas regularidades do desenho infantil, mas desliga-se das condies socioculturais de sua produo (Sarmento, 2011, p. 35).

    Uma virada epistemolgica, contudo, mudou os modos de ver a criana e a infncia, passando a enxerg-la (no mais o adulto) em sua especificidade. Pesquisas de reas como a sociologia da infncia, a antropologia da criana e at algumas vertentes da psicologia, passaram a dar maior visibilidade s relaes sociais que as crianas constroem, aos seus modos de ser e se comportar, ou seja, as culturas da criana e as mltiplas infncias. Apesar de algumas discordncias tericas e conceituais que procedem do fato de ser este um campo relativamente novo, duas afirmaes so enfatizadas nesses estudos: a desconstruo da infncia como categoria universal e biolgica e o papel da criana como ator social pleno.

    A primeira afirmativa devedora do trabalho de Philippe Aris (1962) que nos mostra como a ideia de infncia, tal qual a concebemos como um sentimento que separa a experincia adulta da experincia da criana, uma construo moderna scio-histrica ocidental. A segunda afirmativa questiona o papel da socializao das crianas. Durkheim (1955), um dos primeiros socilogos a estudar as crianas sob a perspectiva da socializao, as via como um projeto de adulto, uma vez que entendia os processos educacionais de forma vertical, ou seja, uma ao das geraes mais velhas sobre as mais novas.

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    Esses estudos colocam em xeque a maneira como as crianas so concebidas no processo de socializao um vir a ser adulto e a posicionam como protagonistas, agentes em seu prprio processo de socializao e produtoras de cultura; buscam entender as crianas de forma particular e no como meras reprodutoras e consumidoras da cultura dos adultos (Sarmento; Pinto, 1997; Corsaro, 2002; James; Prout, 2004; Cohn, 2000; Calaf, 2007 ).

    Partindo desta perspectiva, a criana passa a ser entendida por meio daquilo que lhe peculiar em suas relaes interdependentes com os outros, sejam esses outros as prprias crianas, os adultos ou os objetos. E o que lhe peculiar seno suas concepes sobre as mais diversas questes, seus modos particulares de entender, experimentar, se relacionar e fazer as coisas, inclusive a arte? Mais adequado nos parece, desta forma, estudar a infncia como um campo de intersubjetividades, de modo que a nfase se encontre nas relaes (PIRES, 2007). Enfatizar as relaes uma forma de escapar ao pensamento dualista: nem somente adultos, nem somente crianas, mas as relaes entre eles, as relaes entre as crianas e a arte, entre

    os professores e as crianas, entre os objetos e as pessoas; as relaes de afeco. A produo plstica infantil, a partir de ento, toma outro significado: menos etapista e mais interpretativa, ela passa a ser um dos meios para que ns, adultos, possamos ouvir aquilo que as crianas tm a dizer sobre si, sobre nossa relao com elas, bem como sobre o mundo no qual esto inseridas.

    Sob este vis, e ancorada nos estudos socioantropolgicos da criana e da infncia, este trabalho pretende apontar algumas contribuies de estudos, principalmente na rea da antropologia, que se utilizaram dos desenhos das crianas como parte da metodologia de trabalho. Em seguida, venho apresentar como seus desenhos foram contributivos para entender o que as crianas de duas turmas de 6os anos de escolas pblicas do interior de So Paulo entendiam por arte e o que tinham a dizer sobre a arte aprendida na sala de aula. Encontrei desenhos que no s responderam s minhas indagaes iniciais, como tambm se mostraram fundamentais para alargar nosso horizonte sobre questes muito caras educao e ao nosso sistema artstico e sua relao com as imagens.

    Contribuies metodolgicas dos desenhos pesquisa com crianas

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    O uso dos desenhos em pesquisas com crianas, apesar de bastante comum, tambm apresenta contradies no que se refere s formas de coletar e maneiras de interpretar, ou seja, no tocante aos procedimentos metodolgicos. s crianas deve ser direcionado um tema ou seria melhor deix-las livres para desenhar o que querem? Elas devem desenhar a ss, com o pesquisador ou em grupos? Quais materiais utilizar? Papel, lpis, lpis de cor? Em quais situaes e contextos? Como no temos respostas diretas a essas perguntas, torna-se interessante problematiz-las a partir de pesquisas j finalizadas. O trabalho de Luquet, Le Dessin Infantil, mesmo com uma perspectiva classificatria, oferece parmetros bastante interessantes para discusses metodolgicas sobre a utilizao dos desenhos das crianas. Um dos pontos para o qual Luquet chama a ateno sobre a importncia dos registros realizados enquanto a criana desenha. Sua pesquisa caracterizada por um entrelaamento entre desenho e relato verbal e, para tal, Luquet prope um estudo monogrfico, ou seja, o pesquisador deve estar junto da criana, anotando todas suas aes e verbalizaes enquanto desenha, configurando um estudo de caso individual. Segundo ele, o registro das aes importante, porque nem sempre possvel distinguir somente a partir dos desenhos prontos se a representao grfica uma generalidade ou uma especificidade. (LUQUET, 1976).

    Duarte (2009) aponta as contradies e divergncias sobre o estudo de caso e prope que a anlise do desenho da criana tenha como mtodo responder as questes Como, Porque e O que a criana desenha. Segundo ela, para responder as duas primeiras perguntas o acompanhamento individual essencial, porm, se o problema o que as crianas desenham, ento possvel que a coleta de dados seja feita em um mbito menos controlado, como em uma sala de aula. possvel responder a questes como essa realizando tanto uma pesquisa qualitativa, mais aprofundada e restrita, quanto uma pesquisa quantitativa, realmente abrangente (DUARTE, 2009, p. 6). Neste caso, os desenhos so coletados e datados, para que, posteriormente, seja realizada uma anlise.

    O interessante no trabalho de Duarte que ela prope modos combinados de investigao sobre o desenho infantil. Em sua pesquisa, que versa sobre o ensino de desenho para crianas cegas, ela combina dois tipos de estudo de caso e modos diversos de coletas de dados. Em um primeiro momento, ela coleta desenhos de um grande grupo de crianas no caso a sala de

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    aula sem a observao caso a caso. Em um segundo momento, ela destaca deste grupo um nmero reduzido de crianas para um estudo mais aprofundado (DUARTE, 2009, p. 7).

    Tambm em antropologia, os dados so frequentemente coletados por meios diversos de investigao variando conforme o campo e os objetivos do pesquisador. Margareth Mead, por exemplo, utilizou-se da observao das crianas manu em suas condies normais durante as brincadeiras e em suas casas junto de suas famlias (MEAD, 1990, p. 210). As crianas pesquisadas por Mead fizeram desenhos livres com lpis sobre papel e tambm interpretaram livremente algumas manchas de tinta que a antroploga lhes mostrava. J a maneira encontrada pela antroploga Christina Toren para saber o que as crianas pensavam sobre a hierarquia em Fiji (TOREN, 1990) foi pedir para que elas desenhassem e conversassem sobre desenhos j prontos. Em outra de suas pesquisas, sobre a religiosidade, Toren bastante rigorosa em relao produo dos desenhos: em sala de aula, ela separava as crianas para evitar as cpias, indicava o tema a ser desenhado, depois recolhia os desenhos e selecionava alguns deles, chamando seus autores para uma conversa individual, na qual fazia diversas questes e ia anotando as respostas (TOREN, 2003).

    Seguindo a mesma linha de Toren, com bastante preciso e cautela, Flvia Pires (2007), em sua pesquisa sobre religiosidade em Catingueira, semirido nordestino, fez uso dos desenhos, dentre outros mtodos, como redaes e at dirios. Quanto aos desenhos, Pires fez uso de modos combinados de investigao. As crianas desenhavam, explicavam sobre os desenhos, escreviam frases nos desenhos e ainda faziam redaes. A antroploga lhes fornecia papis e lpis para colorir, ora indicando-lhes um tema a seguir, ora deixando que desenhassem livremente. Pires tambm fez pesquisa nas escolas e, portanto, tambm recolheu desenhos nas salas de aula.

    Clarice Cohn, por sua vez, em pesquisa com os Xikrin do Bacaj, sempre mantinha um tanto de papel e giz de cera que eram distribudos quando requisitados nas mais diversas situaes: as crianas por vezes, em grupo ou sozinhas, lhe pediam para desenhar, ou quando a viam mexer com seus prprios papis. Cohn no hesitava em lhes fornecer material, bem como, nessas situaes, as deixava livre para escolher os temas. Tambm foram recolhidos desenhos nas escolas e, neste caso, os temas eram direcionados, (COHN, 2005).

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    Em todas as pesquisas citadas, parece ter ficado manifesto que os desenhos podem confirmar ou no as hipteses de pesquisa, fornecer novos dados e ainda, como colocou Cohn, provendo as crianas de um lugar para a experimentao e reflexo de sua prpria produo e atuao no mundo. ...os desenhos so reveladores do modo como a criana v sua insero no mundo, a ao mundo em que se insere (COHN, 2005). Quanto s maneiras de colet-los, vimos que so muitas. Parece ter havido consenso entre pesquisadores de reas diferentes, educadores, psiclogos e antroplogos, sobre a necessidade do registro de relatos a respeito do prprio desenho. Os relatos enriquecem os desenhos e contribuem com a coleta, seja ela realizada em contextos controlados ou no. Para Cohn, a grande contribuio dos desenhos est em revelar o universo da criana, independente do local e forma de como foi coletado.

    Parece-me que a questo no decidir se uma pesquisa em antropologia ganharia mais se tratasse desenhos de crianas produzidos em um ambiente mais ou menos controlado. Ao contrrio, parece-me que as experincias j realizadas permitem concluir que todas essas possibilidades inclusive aquela em que professores impem um tema e os meios de sua realizao podem ser reveladoras ao antroplogo do modo como a criana elabora e concebe o seu mundo (COHN, 2005).

    A maneira de coletar, bem como sua categorizao, parece ser importante na medida em que ditar parte da pesquisa, da mesma forma como ocorre, por exemplo, com entrevistas. Contudo, o que parece ser realmente importante segundo Cohn (2005) o pressuposto analtico: o antroplogo dever aproveitar-se do desenho da perspectiva daquele que o desenhou, ou seja, do ponto de vista das crianas, sobre o mundo em que ela vive. claro que para que isso ocorra, s a coleta de desenhos, sem a observao participante, no tem tanto valor. De qualquer forma, se se partir do ponto de vista daquele que desenha, e se o desenho for visto como revelador daquilo que dirige sua ao no mundo, ento, para Cohn, j se prova sua eficcia interpretativa e seu valor.

    A arte na escola e seus desenhos

    Para minha pesquisa de mestrado1 coletei desenhos das crianas nas duas escolas em que realizei trabalho de campo. Por realizar uma pesquisa com crianas/alunos em sala de aula, o acesso aos desenhos se deu no mbito da prpria escola, onde foram realizados desenhos 1 Ver TRAGANTE, 2011.

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    temticos, em um contexto controlado. Contudo, tambm fiz uso de desenhos que as crianas realizavam livremente e guardavam consigo. Recolhi um total de setenta e trs desenhos, sendo quarenta e cinco deles realizados pelas crianas da escola que doravante denominarei E1 e vinte e oito referentes escola E2. Nas duas escolas, pedi para que as crianas desenhassem primeiramente a partir do tema Onde esta a arte? e depois A minha arte. Para este trabalho apresento principalmente as consideraes levantadas a partir dos desenhos relativos ao primeiro tema e de desenhos livres realizados pelas crianas.

    Seguindo algumas consideraes sobre a coleta de desenhos, tais como a apontada por Luquet (1976) sobre a importncia dos relatos das crianas em relao sua prpria produo, pedi que elas escrevessem uma frase no verso da folha ou mesmo abaixo do desenho, explicando os motivos que as haviam levado ao desenho especfico. Praticamente todos os alunos atenderam a meu pedido e as frases contriburam muito na compreenso dos desenhos.

    Na escola E1 realizei cerca de seis meses de trabalho de campo e acompanhei as aulas no atelier de atividades artsticas. A professora havia trabalhado intensamente com a vida e obra do pintor Pablo Picasso em um projeto junto ao professor de espanhol. As crianas haviam

    conhecido a obra do artista, realizado desenhos, esculturas cubistas, pintura com nanquim, instalaes e at mosaicos, sempre

    com a produo de Picasso como referncia. Por tal, eu esperava que as crianas

    apontassem que a arte se situaria na esfera

    institucional. Contudo, houve desenhos de museus, quadros e instituies, porm elas tambm apontaram que a arte estava na cabea, no crebro, na mente e no pensamento das pessoas. Estava tambm na natureza, nas mos e em todos os lugares do mundo!

    Por meio da etnografia e da coleta de desenhos foi possvel notar que a relao entre as crianas da E1 com a arte e a professora era uma relao que se dava principalmente na esfera

    Figura 1. S/ nome. O crebro. Fonte: acervo pessoal da autora.

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    do fazer. As crianas da E1 conheciam as obras de arte observando reprodues delas, mas tambm manipulando as imagens: recortavam, colavam, pintavam. A experimentao se dava tambm em relao aos materiais, que iam desde lpis de cor e caneta hidrogrfica, s tintas, nanquim, lantejoulas e materiais reciclveis como plsticos, tampinhas, papelo e alguns retalhos de tecido. No havia uma forte institucionalizao do ensino de arte, at mesmo porque na E1 acompanhei as oficinas de atividades artsticas no atelier e no as aulas regulares. As oficinas permitiram que a professora tivesse mais liberdade de escolher o que e como os alunos iriam aprender. Os contedos estavam sempre relacionados com as aulas de arte, contudo, eram mais diversificados indo desde pintura e artesanato, at construo de slidos geomtricos e teatro.

    Os desenhos das crianas da E1 enfatizaram que, para este grupo, a arte poderia ser muita coisa. A arte estava nas pessoas e chegava a constitu-las, estando nas partes delas, como mo, crebro e corao, mas principalmente se encontrava em todas as partes e na natureza. O conceito de arte das crianas da E1 me pareceu mais fluido e diludo. As crianas sabiam que a arte estava nos quadros e nos museus, mas esses ambientes no eram limtrofes. Na E1, a arte pde ser romantizada porque ao trabalhar com o fazer, a professora no estabeleceu as muitas regras da arte. A arte instituda ficou latente. Neste contexto foi possvel conjugar arte moderna e contempornea com artesanato, sem que elas fossem trabalhadas em seus prprios termos, permitindo que a arte pudesse ser mais coisas e estivesse em mais lugares.

    Diferentemente do atelier de arte da E1, as crianas da E2 tinham aulas em salas convencionais e a professora seguia o material didtico disponibilizado pela Secretaria da Educao do Estado de So Paulo. Neste contexto, boa parte das aulas se dava por meio de atividades tericas, como responder questionrios, completar caa-palavras e quadros de sistematizao. O material didtico enfatizava a arte enquanto linguagem e, neste sentido, os alunos deveriam se apropriar dos termos dessa linguagem. Os conceitos e contedos artsticos no se davam por meio da experimentao, mas no prprio exerccio de discorrer sobre a arte e apreend-la em seus termos. O conceito de arte apresentado pelo material didtico era o de arte institucional, de onde temos a viso de que aprender Arte viver uma processualidade que se nutre pela prpria Arte (SO PAULO, 2009, p. 13), ou poderamos dizer, que se nutre pelo prprio discurso da arte que faz parte do campo artstico (BOURDIEU, 1974).

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    Os desenhos das crianas da E2 confirmaram aquilo que j havia sido vislumbrado por meio da etnografia, apontando para uma arte mais institucionalizada. Enquanto as crianas da E1 viam a arte por toda parte, os desenhos da E2 mostravam que a arte estava principalmente nos quadros. Dos dezessete desenhos com o tema Onde est a arte? coletados, quinze apontavam que a arte poderia ser encontrada em seu prprio campo, como nos museus, no teatro e na dana. Desses quinze desenhos, onze representam a arte por meio de quadros, sendo oito pinturas abstratas e trs pinturas figurativas.

    A relao entre as

    crianas e a arte,

    assim como a

    relao entre as

    crianas e professora

    na E2 sofreu forte

    influncia do material didtico que tinha como objetivo o enculcamento das regras do campo

    artstico por meio de linguagem escrita e do

    discurso artstico; as crianas aprendiam a linguagem da arte para posteriormente discorrer sobre ela. E aprenderam, com isso, que a arte se encontrava na prpria arte: no teatro, na dana, na msica, na escultura, nos museus e principalmente nos quadros.

    Para alm dos desenhos coletados, em minha anlise na E2, fiz uso de outros desenhos realizados pelas crianas de maneira espontnea. Em meio ao trabalho de campo notei que as crianas, principalmente as meninas, tinham por costume colecionar desenhos em pastas catlogos ou tinham para si dois cadernos de arte, sendo um dedicado disciplina e outro especialmente para os desenhos livres. Estas pastas estavam repletas de reprodues do universo miditico, tais como as princesas da Disney, Meninas Superpoderosas, Mickey e Minnie, Turma da Mnica, dentre outros personagens do universo imagtico voltado s

    Figura 2. Desenho do aluno Jlio Csar. A arte faz parte da nossa vida. Ela est em museus, quadros, etc. Fonte: acervo pessoal da autora.

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    crianas. As meninas gostavam de imprimir essas imagens para que pudessem pintar e posteriormente trocar desenhos umas com as outras. Quanto aos cadernos, o hbito era outro: nestes, elas desenhavam, com auxlio de carbono, papel manteiga ou seda, vrias imagens de bichinhos animados, tais como coelhos, flores, frutas, sinos, charges e personagens famosos como Mnica e Cebolinha.

    Mesmo no sendo desenhos realizados a pedido da pesquisa e nem previamente projetados para compor a metodologia do trabalho, no havia como deix-los a parte da anlise. A partir desses dados, a questo que se imps versava sobre os significados desses desenhos para as crianas e para a docncia, no contexto das aulas de arte. O que seria possvel dizer a respeito da predileo das meninas em produzir tais imagens? O que esses desenhos estereotipados poderia nos comunicar sobre a educao em arte e sobre nosso sistema artstico?

    Em um primeiro momento, seria possvel apontar que as crianas s estariam reproduzindo aquilo que lhes chegava por meio da televiso, da internet e dos muitos objetos que as cercam. Contudo, sabemos que as crianas no so meras reprodutoras da cultura da qual participam, mas elas tambm produzem cultura ao atriburem sentidos e construrem formas de se relacionar com as outras crianas, a professora e os objetos da arte. Se levarmos em considerao que na E2, s crianas no era ofertado um espao para que produzissem arte, como ocorria no atelier da E1, possvel que elas estivessem criando seu prprio momento no qual pudessem manipular e fabricar imagens. Colecionar desenhos era uma forma das meninas se colocarem como agentes de uma produo imagtica, porm produzir, naquele contexto, no estava necessariamente relacionado com criao e transformao. necessrio aqui nos lembrarmos de que conceitos como os de inovao e criatividade tiveram peso na produo artstica moderna e no Modernismo em Arte Educao (BARBOSA, 1978), tradio na qual muitos de ns foi educado e conceitos os quais muitas vezes tendemos a reproduzir sem reflexo.

    Penso que o fazer e a produo de imagens sejam conceitos importantes para que possamos refletir acerca de nosso sistema artstico e da educao em arte. Parece existir uma necessidade de produzir, manipular e criar imagens e, neste contexto, razovel que a produo tenha como referncia a reproduo fiel de seu original aspecto quase intrnseco a

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    nosso sistema de educao que, desde a educao infantil, preza pelos modelos copiados e pelos desenhos bem feitos (CUNHA, 2005). Por outro lado, quando essas crianas crescem um pouco mais, como neste caso que trata de crianas no to pequenas, lhes cobrado criatividade, inovao e que passem, inclusive, por um processo de des-estereotipizao (VIANNA, 1995). Esta situao, um tanto quanto iconoclasta, nos aponta para uma guerra de imagens que dispe, em campos opostos, os desenhos estereotipados e a produo artstica mais consagrada. Tantas vezes vimos professoras e professores de arte literalmente declarando guerra Mickeys e Cebolinhas, em razo de Abaporus e Girassis!

    Uma exposio realizada na Alemanha em 2002, Iconoclash: Beyond The Image Wars in Science, Religion and Art, pode nos ajudar a pensar sobre esta guerra de imagens e as relaes que as pessoas estabelecem com as imagens. A exposio, que teve Bruno Latour como um dos curadores, discute a posio das imagens a partir de um vis construcionista. Latour apresenta imagens no mbito da religio e da cincia com intuito de questionar uma relao dualista para com os objetos (imagens): uma imagem sagrada ou vista como transcendental e, portanto, no pode revelar a mo humana ou, entende-se que foi produzida pelo homem e, portanto, no pode ser sacra; uma imagem cientfica tanto mais verdadeira quanto mais oculta for a interferncia humana. Essa postura dualista, que divide o mundo entre puro ou impuro, entre verdade e falsidade leva, inevitavelmente, a uma guerra entre os adoradores de imagens e os destruidores delas.

    No entanto, Latour aponta um terreno no qual, no restam dvidas, da visvel mo humana: o da arte contempornea.

    Ento por que ligar mediaes religiosas e cientficas arte contempornea? Porque aqui ao menos no h dvida de que pinturas, instalaes, happenings, eventos e museus so humanamente produzidos. A mo que trabalha visvel em todos os lugares (LATOUR, 2008, p. 121).

    A arte contempornea apresenta objetos e imagens que, como colocado por Latour, no somente revelam a mo humana, como descongelam a imagem, formando uma cascata delas. Essa a proposta da mostra: um tipo alternativo de iconofilia que no tem a pretenso de um mundo sem imagens como querem os iconoclastas, e nem de um mundo repleto de imagens transcendentais como desejam os adoradores; mas um mundo no qual as imagens no sejam

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    congeladas. A proposta por um mundo cheio de mediadores, por imagens que se conectem: uma cascata de imagens. Latour nos prope que possamos combater o congelamento das imagens, ou seja, evitarmos extrair uma imagem do fluxo e se tornar fascinado por ela, como se isso fosse suficiente, como se todo movimento tivesse parado (Latour, 2008, p. 130).

    Neste sentido, finalizo acatando a proposta de Latour e apontando que, mais interessante que a guerra de imagens em sala de aula, entre Mickeys e Abaporus, seria uma abordagem que desse conta de descongelar esses cones, por meio de produes que conectassem imagens com imagens, que trabalhassem com repetio e com reproduo, com distores que fizessem passar de uma imagem para outra.

    Assim, ao olhar mais atentamente para os desenhos das crianas, podemos buscar produes que nos auxiliem a descongelar tanto cones da indstria miditica, quanto aqueles que sustentam nossas prprias adoraes. A arte contempornea, neste contexto, poderia nos auxiliar com produes que no se apresentam como meros emblemas, mas como cadeias de imagens, tais como as produes da srie Assim , se lhe parece (2003), de Nelson Leiner ou Fetiche de Pregos (2010), de Vik Muniz, ou ainda como as produes de Nadin Ospina, Chac Mool (1999), por exemplo.

    Essas produes, podemos denominar de iconoclashs imagens que produzem desordens entre os gestos de iconoclastia e iconofilia. So imagens que nos aparecem como uma incgnita: quando no se sabe, quando se hesita, quando se perturbado por uma ao para a qual no h maneira de saber, sem uma investigao maior, se destrutiva ou construtiva (LATOUR, 2008, p. 113). Como nos exemplos citados, o caso de Nelson Leirner, que trabalha com gestos iconoclastas para com as imagens que remetem ao imperalismo americano ou ao sistema da arte, mas que, por outro lado, no deixa de produzir incansavelmente imagens que remetem a outras imagens. Ou ainda como no caso de Nadin Ospina que, ao criticar o tributo que a sociedade ocidental presta s imagens totmicas criadas pela Disney, o faz direcionando nossa ateno para as imagens da Amrica pr-colombiana.

    Referncias Bibliogrficas

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