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IV – TRAIÇÃO James Hillman (do livro “Estudos de Psicologia Arquetípica) Ed. achiamé É corrente entre os judeus uma história, uma dessas anedotas comuns de judeus, que diz a seguinte: um pai estava ensinando seu filho a ser menos medroso, a ter mais coragem, fazenda-a pular de uma escadaria. Colocou o menino no segundo degrau e disse: "Pule que eu seguro você". E a menino pulou. O pai então colocou o garoto no terceiro degrau, dizendo.: "Pule que eu seguro você". Apesar de estar com medo, o menino confiou no pai, fez a que ele mandou e pulou em seus braços. Daí então o pai colocou-o no degrau seguinte, depois na seguinte, cada vez dizendo: "Pule que eu seguro você" , e todas as vezes o menino pulou e a pai segurou. E assim foram indo. Aí então o garoto pulou de um degrau bem alto, da mesma forma que antes; mas desta vez a pai recuou e o menino foi direto com a cara no chão. Quando conseguiu levantar-se, machucado e chorando, o pai falou: "Isto vai lhe ensinar: nunca confie num judeu, mesmo que ele seja seu pai". Essa história - com todo seu questionável anti-semitismo sugere outras conotações mais, principalmente porque muito provavelmente foi inventada pelos próprios judeus. Acredito que tenha alguma coisa referente ao nosso tema - traição. Por exemplo: por que se deveria ensinar um menino a não confiar? E a não confiar num judeu? E a não confiar em seu próprio pai? Que significa ser traído pelo próprio pai, ou por alguém muito chegado? Que significa para um pai, para um homem, trair alguém que confia nele? Qual a finalidade da traição na vida psicológica? Estas são. as questões que levantamos. I Devemos tentar começar por algum lugar. Prefiro neste caso começar "no começo", com a Bíblia, mesmo que, como psicólogo, possa estar invadindo o terreno da teologia. Apesar de ser psicólogo não desejo, no entanto começar como os psicólogos em geral começam, com aquela outra teologia, aquele outro jardim do Éden: a criança e sua mãe. Quando, pela tarde, Adão saia a passear com Deus, confiança e deslealdade não surgiam como temas de suas conversas. A imagem do jardim do paraíso com estádio inicial da condição humana apresenta aquilo que poderíamos chamar de "confiança primordial", ou como chamou Santayana, "fé animal"; uma certeza fundamental - a despeito da angústia, do medo, da dúvida'- de que o chão encontra-se ali mesmo, embaixo dos pés, e que não vai sumir quando dermos o próximo passo, de que amanhã o sol vai nascer outra vez, de que o céu não vai cair sobre nossas cabeças e de que Deus de fato fez o mundo para o homem. Esta situação de "confiança primordial", apresentada como a imagem arquetípica do Éden, repete- se nas vidas individuais de filhos e pais. Assim como Adão, com fé animal, no começo confia em Deus, da mesrna forma o menino no começo confia em seu pai. Em ambos, Deus e Pai, encontra-se a imagem paternal: confiável, firme, estável, justa, aquela Rocha Eterna cuia palavra firma a aliança. Essa imagem paterna pode ser expressa também pelo conceito do Logos, pelo poder imutável e pela sacralidade da palavra masculina. Mas já não estamos mais naquele Jardim, Eva colocou um ponto final naquela dignidade nua. Desde a expulsão, a Bíblia registra uma história de 1

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IV – TRAIÇÃO James Hillman (do livro “Estudos de Psicologia Arquetípica) Ed. achiamé

É corrente entre os judeus uma história, uma dessas anedotas comuns de judeus, que diz a seguinte: um pai estava ensinando seu filho a ser menos medroso, a ter mais coragem, fazenda-a pular de uma escadaria. Colocou o menino no segundo degrau e disse: "Pule que eu seguro você". E a menino pulou. O pai então colocou o garoto no terceiro degrau, dizendo.: "Pule que eu seguro você". Apesar de estar com medo, o menino confiou no pai, fez a que ele mandou e pulou em seus braços. Daí então o pai colocou-o no degrau seguinte, depois na seguinte, cada vez dizendo: "Pule que eu seguro você" , e todas as vezes o menino pulou e a pai segurou. E assim foram indo. Aí então o garoto pulou de um degrau bem alto, da mesma forma que antes; mas desta vez a pai recuou e o menino foi direto com a cara no chão. Quando conseguiu levantar-se, machucado e chorando, o pai falou: "Isto vai lhe ensinar: nunca confie num judeu, mesmo que ele seja seu pai".

Essa história - com todo seu questionável anti-semitismo sugere outras conotações mais, principalmente porque muito provavelmente foi inventada pelos próprios judeus. Acredito que tenha alguma coisa referente ao nosso tema - traição. Por exemplo: por que se deveria ensinar um menino a não confiar? E a não confiar num judeu? E a não confiar em seu próprio pai? Que significa ser traído pelo próprio pai, ou por alguém muito chegado? Que significa para um pai, para um homem, trair alguém que confia nele? Qual a finalidade da traição na vida psicológica? Estas são. as questões que levantamos.

I

Devemos tentar começar por algum lugar. Prefiro neste caso começar "no começo", com a Bíblia, mesmo que, como psicólogo, possa estar invadindo o terreno da teologia. Apesar de ser psicólogo não desejo, no entanto começar como os psicólogos em geral começam, com aquela outra teologia, aquele outro jardim do Éden: a criança e sua mãe.

Quando, pela tarde, Adão saia a passear com Deus, confiança e deslealdade não surgiam como temas de suas conversas. A imagem do jardim do paraíso com estádio inicial da condição humana apresenta aquilo que poderíamos chamar de "confiança primordial", ou como chamou Santayana, "fé animal"; uma certeza fundamental - a despeito da angústia, do medo, da dúvida'- de que o chão encontra-se ali mesmo, embaixo dos pés, e que não vai sumir quando dermos o próximo passo, de que amanhã o sol vai nascer outra vez, de que o céu não vai cair sobre nossas cabeças e de que Deus de fato fez o mundo para o homem. Esta situação de "confiança primordial", apresentada como a imagem arquetípica do Éden, repete-se nas vidas individuais de filhos e pais. Assim como Adão, com fé animal, no começo confia em Deus, da mesrna forma o menino no começo confia em seu pai. Em ambos, Deus e Pai, encontra-se a imagem paternal: confiável, fir-me, estável, justa, aquela Rocha Eterna cuia palavra firma a aliança. Essa imagem paterna pode ser expressa também pelo conceito do Logos, pelo poder imutável e pela sacralidade da palavra masculina.

Mas já não estamos mais naquele Jardim, Eva colocou um ponto final naquela dignidade nua. Desde a expulsão, a Bíblia registra uma história de traições de todo tipo: Caim e Abel, Jacó e Esaú, Labão, José vendido por seus irmãos e seu pai enganado, as promessas não cumpridas do Faraó, a adoração do bezerro pelas costas de Moisés, Saul, Sansão, Jó, a ira de Deus e a quase anulação da criação – mais e mais, culminando no mito central da nossa cultura: a traição de Jesus.

Embora não estejamos mais naquele Jardim, podemos a ele retomar cada vez que nos colocamos numa situação de relacionamento profundo, por exemplo, o amor, a amizade, a análise, em que se reconstitui a situação de confiança primordial. Uma outra forma diferente de designa-la é chamá-la de temenos, o vaso analítico, a simbiose mãe-filho. Aqui se tem de novo a segurança do Éden. Mas essa segurança - ou pelo menos o tipo de temenos a que estou me referindo - é masculina, dada pelo Logos, através de uma promessa, um pacto, uma palavra. Não se trata de uma confiança primordial envolvendo seios, alimento e calor epidérmico; é similar, mas diferente e acredito ser importante assumir que não temos de recorrer sempre à mãe para nossos modelos de tudo quanto é básico na vida- humana.

Nesta segurança, baseada não na carne, mas no verbo, a confiança primordial é restabelecida e assim o

mundo primordial pode emergir em segurança - a fraqueza e a sombra, o desamparo nu de Adão, o mais primitivo dos homens em nosso interior mesmo. Nele, de alguma maneira ficamos entregues à nossa natureza mais simples, que contém a melhor e a menor porção de nós mesmos, o passado de milhões de anos e as idéias germinais do futuro.

A necessidade de segurança, em que o mundo primordial da pessoa pode emergir, onde é possível

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expressar-se sem ser destruído, é básica e evidente na análise. Essa necessidade de segurança pode refletir carência de cuidados maternos, mas a partir do padrão paterno de que estamos falando, a necessidade é de uma aproximação a Deus, como a que Adão, Abraão, Moisés e os patriarcas conheceram. O que se aspira é ser contido perfeitamente por um outro que jamais possa trair. Isso transcende a confiança e a deslealdade do outro numa relação. O que se almeja é uma situação na qual a pessoa esteja protegida das PROPRIAS traições e ambivalências, de sua própria Eva. Em outras palavras, confiança primordial na palavra paterna significa estar no Paraíso com Deus e com todas as coisas, exceto Eva.O mundo primevo é prévio ao surgimento de Eva e do mal. Estar unido a Deus por uma confiança primordial oferece proteção contra próprias ambivalências. Não sê pode estragar coisas, desejar, enganar, seduzir, tentar, fraudar, culpar, confundir, ocultar, fugir, roubar, mentir, expropriar a criação usando a própria natureza feminina, trair por sua própria má-fé na traição da anima, que é a fonte do mal no Éden e da ambivalência em todo Adão daí por diante. Queremos a segurança do Logos, onde a palavra é Verdade e não sofre abalos.

É claro que a aspiração de uma fé primordial, de ser um só com o Velho Sábio, situação em que Eu e o Pai somos uma só pessoa, sem interferência da anima, é facilmente reconhecível como típica do puer aeternus que está por trás de toda puerilidade. Ele nunca aceita ser expulso do paraíso, pois aí sabe o nome de todas as coisas da criação, aí os frutos crescem nas árvores e podem ser colhidos, não existe fadiga e pode-se manter discussões interessantes no frescor da tarde.

E não apenas compreender: espera ser compreendido, totalmente, como se toda a onisciência de Deus se concentrasse nele. Esse conhecimento perfeito, este sentimento de estar sendo totalmente compreendido, confirmado, reconhecido, abençoado pelo que se é, patente a si mesmo e conhecido a Deus, por Deus e em Deus, repete-se toda vez que ocorre uma situação de confiança primordial, quando a pessoa sente que apenas o melhor amigo, a esposa, o analista, realmente a entende completamente, Se não o fazem, se não captam direito ou deixam de reconhecer a essência da pessoa (que deve sempre revelar-se na vida e não ocultar-se e fechar-se em si mesma), isto é considerado alta traição.

Poderia parecer, pelo relato bíblico, que Deus reconheceu não ser Ele um amparo suficiente para o homem, que seria necessário encontrar para o homem algo mais que o próprio Deus. Eva tinha de ser criada, chamada à vida, extraída do próprio homem, o que conduziu à quebra da confiança primordial pela traição. Era o fim do Éden; a vida começava.

Essa maneira de interpretar o conto implica que a situação de confiança não é viável toda a vida. Deus e a criação não bastavam para' Adão; era preciso Eva, o que vale dizer, a traição era necessária. Poderia parecer que a única forma de sair desse Paraíso era sendo traído e expulso, como se o vaso que contém a fé não pudesse de forma alguma ser alterado a não ser com unia traição. Chegamos a uma verdade essencial sobre a fé e a traição; elas se contêm uma à outra. Não se pode ter confiança sem a possibilidade da traição. E a mulher quem trai seu marido e o marido quem engana sua mulher; parceiros e amigos mentem, a amante usa seu amor para obter poder, o analista desvenda os segredos de seu paciente, o pai deixa seu filho cair. Não se mantêm as promessas quebra-se a palavra dada, a confiança vira traição.

Somos atraiçoados nas mesmas situações de relacionamento profundo em que a confiança primordial é possível. Só podemos ser realmente traídos quando realmente confiamos: em irmãos, amantes, esposas, maridos; não em inimigos, não em estranhos. Quanto maior o amor e a lealdade, o envolvimento e o compromisso, maior a traição. A confiança contém em si a semente da traição; a serpente estava no Paraíso desde o começo, da mesma forma que Eva já se encontrava préformada na estrutura que envolvia o coração de Adão. A confiança e a possibilidade de traí-Ia vieram ao mundo no mesmo momento. Onde quer que exista confiança em uma união O risco de traição torna-se uma possibilidade real. E a traição, como uma possibilidade com que se deve sempre contar, é parte integrante da confiança, da mesma forma que a dúvida integra uma fé viva.

Se tomarmos essa narrativa como modelo de progresso na vida desde "o começo de tudo", então pode-se esperar que a confiança primordial deva ser quebrada se se quiser que haja progresso nos relacionamentos; e, mais que isso, que nunca haverá amadurecimento para essa confiança primordial. A crise sobrevirá, uma quebra caracterizada por traição, que, de acordo com a lenda, é o sine qua non para a expulsão do Éden para o mundo "real" da consciência e responsabilidade humanas.

Pois devemos estar convencidos de que viver ou amar apenas em situações em que se pode confiar, onde há segurança e contenção, onde não se pode ser ferido ou atraiçoado, em que toda palavra empenhada está para sempre comprometida, significa estar realmente a salvo, mas por outro lado também alienado da vida real. E não importa qual seja o continente da confiança - análise, casamento, Igreja ou lei, ou qualquer

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relação humana. Sim, poderia dizer até mesmo o relacionamento com o divino. Mesmo nesse caso confiança primordial poderia parecer não ser o que Deus quer. Lembremos do Eden, de Jó, da proibição de Moisés entrar na Terra Prometida, lembremos do recente destroçamento do Seu "Povo Escolhido", que depositou Nele sua fé total e exclusiva.

Estou, afirmando, implicitamente, que a confiança primordial do judeu em Deus foi traída pela experiência nazista, sendo necessária uma reorientação radical da atitude judaica, da teologia judaica, em termos de anima, um reconhecimento do ambivalente componente feminino existente tanto em Deus como no homem.

Se alguém pode sempre dar-se com a certeza de que no fim sairá ileso, ou talvez até melhor, o que então é de fato dado? Se alguém salta apenas quando existem braços para segurá-Io, então não se pode realmente falar de salto. Todo o risco de escalada fica anulado – no entanto, para sentir a emoção de estar voando pelos ares, não há diferença entre segundo degrau, sétimo, décimo, ou dez mil metros de altura. A confiança primordial leva o puer a voar tão alto. Pai e filho são uma só pessoa. E todas as virtudes masculinas de habilidade, de risco calculado, de coragem, perdem a importância: Deus, ou então Papi vai segurá-lo ao pé da escala. Mas não se pode saber isto de antemão. Não é possível ser avisado antecipadamente: "Desta vez não vou segurá-lo". Um homem prevenido vale por dois e então ou não se pula ou se pula sem emoção, um pseudo-risco. Acontece que chega o momento em que, apesar da promessa, a vida simplesmente intervém, acontece o acidente e dá-se com a cara no chão. A promessa quebrada é uma intromissão da vida no mundo seguro de Logos, em que a ordem de todas as coisas fica sob sua dependência, e o passado garante o futuro. A promessa não mantida ou a confiança abalada são ao mesmo tempo uma -intromissão em outro nível de consciência, o que veremos logo a seguir.

Voltemos, porém antes à nossa história e a nossas questões. O pai despertou a consciência, jogou o menino para fora do jardim, brutalmente, com sofrimento. Fez a iniciação de seu filho. Esta iniciação em uma nova consciência da realidade ocorre através da traição, pela omissão do, pai, pela promessa quebrada. O pai intencionalmente afasta-se do compromisso essencial do ego de manter sua palavra, de não dar falso testemunho e não mentir para seu filho, de ser responsável e digno de confiança aconteça o que acontecer. Abandona sua posição deliberadamente, permitindo manifestar-se o lado sombrio nele e através dele. De forma que é uma traição com moral. Pois nossa história é uma fábula moral, como o são todas as boas histórias dos judeus. Não é uma fábula existencialista descrevendo um acte gratuit; nem uma lenda Zen que leva a um esclarecimento libertador. É um sermão, uma lição, uma parte importante da vida. O pai demonstra existir em sua própria pessoa a possibilidade de traição, mesmo numa situação de máxima confiança. Revela sua própria deslealdade, posta-se diante do filho em sua nua humanidade, revelando uma verdade a respeito da paternidade e da humanidade: eu, um pai, um homem, não mereço confiança. O homem é traiçoeiro. A palavra não é mais forte que a vida.

E diz também: "Não confie nunca num judeu" de modo que a lição diz mais coisas ainda. Torna implícito que sua paternidade segue o padrão de paternidade de Javé, que uma iniciação judaica significa igualmente uma iniciação ao conhecimento da natureza de Deus, este Senhor tão pouco digno de confiança que precisa ser continuamente louvado com salmos e orações como sendo paciente, confiável, justo, e propiciado com epítetos de estabilidade - por ser tão arbitrário, emocional e imprevisível. O pai diz, em resumo, eu traí você da mesma forma como são todos na traição da vida criada por Deus. A iniciação do garoto na vida é a iniciação à tragédia adulta.

II

A experiência da traição é, para algumas pessoas, tão humilhante quanto a do ciúme e a do fracasso. Para Gabriel Marcel, traição é a essência da maldade (1). Para Jean Genet, segundo Sartre, traição é a maldade maior, como "a maldade que causa mal a si mesma" (2). Quando as experiências adquirem esse aspecto, assumimos um contexto arquetípico, algo humano demais. Admitimos que provavelmente encontraremos um mito fundamental e um padrão de comportamento com que a experiência possa ser amplificada. Creio que esse contexto arquetípico é a traição de Jesus, o que pode nos dar maior compreensão da experiência do ponto de vista do traído.

Estou hesitando em falar da traição de Jesus. São tantas as ilações que se podem fazer. Mas é nisso justamente que consiste o valor de um símbolo vivo: pode-se extrair dele um fluxo contínuo de significados. E é como um psicólogo em busca de significados psicológicos que outra vez atravesso as fronteiras teológicas.

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Na história de Jesus o tema da traição logo nos impressiona. O fato de ocorrer por três vezes (Judas, os discípulos que dormiram, Pedro) - repetido pela tripla traição de Pedro - indica uma fatalidade, a traição como essencial para a dinâmica do clímax da história de Jesus, o que coloca a traição em posição central no mistério cristão. A tristeza na última ceia, a agonia no horto e o grito na cruz parecem repetir um mesmo padrão, reafirmações de um mesmo tema, num tom cada vez mais alto, de que um destino está sendo realizado, de que uma transformação está se impondo a Jesus. Em cada uma dessas traições ele vê-se forçado ao terrível reconhecimento de ter sido traído, abandonado e deixado só. Seu amor foi recusado, sua mensagem mal entendida, seu chamado negligenciado e seu destino proclamado.

Acho que há pontos em comum entre nossa anedota banal de judeus e esse grande símbolo. O primeiro ato da traição de Judas já era conhecido antecipadamente. Sabedor disto, Jesus podia aceitar submeter-se a esse tipo de sacrifício para a glorificação de Deus. O impacto assim não deve ter sido tão devastador, para Jesus, mas Judas acabou se enforcando. Também a negação de Pedro foi conhecida previamente, e da mesma forma Pedro é que acabou chorando amargamente. Durante a última semana a confiança de Jesus estava depositada no Senhor. "Homem da aflição", sim, mas sua confiança primordial não se abalara. Como o garoto na escadaria, Jesus podia contar com seu Pai e até mesmo pedir-lhe o perdão para seus carrascos até o último instante era um só com o Pai, até aquele momento da verdade em que foi traído, negado e abandonado por seus seguidores, entregue nas mãos de seus inimigos, perdida a confiança em Deus, atrelado a circunstâncias irreversíveis; nesse momento, sentindo na sua carne humana a realidade da traição e a brutalidade de Javé e de sua criação, bradou o salmo 22, aquela longa lamentação em torno da confiança em Deus-Pai:

Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?

Por que deixastes de me socorrer e vos afastastes de minhas súplicas? Oh, meu Deus, clamo por vós de dia e vós não me ouvis; e à noite... E, no entanto sois justo.... Nossos pais confiaram em vós. Confiaram e vós os salvastes... Confiaram em vós e não foram confundidos... Vós sois aquele que me tirastes do. berço.: fizestes-me confiar quando ainda estava no seio da minha mãe. Estou diante de vós desde o. meu nascimento: Vós sois meu Deus desde o ventre da minha mãe. Não vos afasteis de mim, pois o tormento está próximo, pois não há ninguém para me socorrer...

E eis que surgem as imagens de uma brutalização por forças bestiais

Estou cercado pelos touros, fortes touros que me sitiam. Mostram-me suas imensas fauces como se fossem leões... os cães me rodearam. Estou preso no meio de malfeitores: furam-me.as mãos e os pés...

Esta passagem extraordinária afirma que a confiança primordial está depositada no poder paterno, que ó pedido de resgate não é pedido de proteção materna, mas que a experiência da traição integra o mistério masculino.

É impossível deixar de notar o acúmulo de simbolismo da anima constelado junto com o tema da traição. À medida que o drama da traição vai-se desenrolando e intensificando, o feminino vai-se tornando mais e mais evidente. Resumidamente posso referir-me ao lavapés na última ceia e ao mandamento do amor; ao beijo e às moedas de prata, à agonia no Getsêmani - um horto, à noite, o suor salgado porejando como gotas de sangue; à orelha ferida, à imagem das mulheres estéreis no caminho do Gólgota; à advertência do sonho da mulher de Pilatos, à degradação e ao sofrimento, à esponja de vinagre e fel, à nudez e à fragilidade, à escuridão da nona hora e ao grande número de Marias - e referir-me de modo especial à ferida no flanco no instante irremediável da morte, lembrando a maneira como Eva foi arrancada do flanco de Adão. E finalmente ao encontro do Cristo ressuscitado, vestido de branco, por mulheres.

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Poderia parecer que a mensagem de amor, a missão de Eros de Jesus ganha sua força final só quando ocorre a traição e a crucifixão. Pois no momento em que Deus o abandona, Jesus se torna realmente humano, sofrendo a tragédia humana, com seu flanco ferido e perfurado, de onde corre sangue e água, a fonte não represada da vida, do sentimento, da emoção. (O simbolismo do sangue foi extensivamente amplificado no trabalho de Emma Jung e M. L.von Franz sobre o Graal) (3). A marca do puer, a condição de segurança destemerosa do pregador miraculoso, terminou. O Deus puer morre quando se perde a confiança primordial, e nasce o homem. E o homem só nasce quando nele nasce o feminino. Deus e homem, pai e filho, não são mais uma só pessoa. E uma mudança radical no cosmos masculino. Depois que Eva nasceu do flanco adormecido de Adão, o mal tornou-se possível; depois que o flanco de Jesus, traído e moribundo, foi perfurado, o amor tornou-se possível.

III

O momento crítico da "grande traição", quando se é crucificado pela própria fé, é um momento perigosíssimo daquilo que Frances Wickes chamaria "escolha”.(4). Ao levantar-se do chão o garoto, a questão pode encaminhar-se para qualquer direção; sua ressurreição fica pendente na balança. Pode mostrar-se incapaz de perdoar e assim manter uma fixação no trauma, tornar-se vingativo, ressentido, cego a toda, compreensão e afastado do amor. Ou pode vo1tar-se para a direção que tentarei descrever no restante destas minhas considerações.

Mas antes de dirigirmos nossa atenção para as possíveis conseqüências aproveitáveis da traição, vamo-nos deter um pouco nas opções estéreis, nos perigos que sucedem à traição.

O primeiro desses perigos é o espírito de vinganca. Olho por olho; mal por mal; dor por dor. Para alguns vingança é algo natural, imediato, sem contestação. Se executada diretamente como um ato de verdade emocional pode ser purificadora. Deve acertar as contas sem, é claro, produzir mais conseqüências. Vingança não leva a nada a não ser contravingança e inamistosidade. Psicologicamente não é produtiva porque permite apenas a abreação da tensão. Quando a vingança é adiada e vai-se transformando em intriga, dissimulação e espera do dia da caça, começa a cheirar a perversidade, a alimentar fantasias de crueldade e rancor. Vingança adiada, vingança refinada por métodos indiretos pode tornar-se obsessiva, reduzindo o foco que abarcava todo o evento da traição e seu significado, para a pessoa do traidor e para sua sombra. Por isso S. Tomás de Aquino justifica a vingança apenas quando ela se dirige de forma abrangente contra o mal e não contra o perpetrador do mal. O pior da vingança é, psicologicamente, sua perspectiva medíocre e mesquinha, seu efeito redutor sobre a consciência.

. Esses perigos, desvios errôneos se bem que naturais, continuam no mecanismo de defesa da negacão. Se uma pessoa é traída em um relacionamento, sente-se tentada a negar o valor da outra pessoa; a ver, instantaneamente, a sombra do outro, uma vasta couraça de demônios viciosos que, é claro, simplesmente não estavam presentes quando ainda existia a confiança primordial. Esses aspectos hediondos do outro subitamente revelados são todos compensações, uma enantiodromia, de idealizações prévias. O choque da revelação súbita indica o quanto era grosseira a inconsciência prévia da anima. Pois devemos admitir que sempre que há um lamento amargo por uma traição, é porque existiu um contexto de confiança primordial, de inconsciente inocência infantil, em que se reprimiu a ambivalência. Eva ainda não tinha entrado em cena, ainda não fora reconhecida como parte da situação, estava reprimida. .

Quero dizer com isto que os aspectos emocionais do envolvimento especialmente os julgamentos de valor, essa corrente contínua de avaliações que flui no interior de toda conexão - não eram admitidos. Antes da traição o relacionamento negava o componente da anima. Um envolvimento que é inconsciente da anima ou é precipuamente uma projeção, como num caso amoroso, ou precipuamente uma repressão, como na muitíssimo masculina amizade de idéias e de "trabalho em comum". Nessas circunstâncias a anima só pode chamar a atenção sobre si criando problemas. A inconsciência grosseira da anima consiste em considerar a parte emocional de um relacionamento como um dado de certeza, com fé animal, uma confiança primordial de que não há problemas, de que é suficiente o que se diz, o que se crê, o que se "tem em mente", de que as coisas caminham, ça va tout seul. Se a pessoa falha ao tentar honestamente trazer para o interior de um relacionamento a esperança, a necessidade de crescer junto e com reciprocidade - o que se constela como possibilidade última em qualquer relacionamento íntimo - aí então se muda de rumo e se nega por completo as esperanças e as expectativas.

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Mas a passagem súbita do estado de inconsciência grosseira para um estado de consciência também grosseira integra todo momento de fé e é até evidente. De modo que não é esse o perigo maior.

Mais perigoso é o cinismo. Decepção amorosa, desapontamento com uma causa política, com uma organização, com um amigo, um superior ou um analista, conduz a uma mudança de atitude na pessoa traída, que não só passa a negar o valor daquela pessoa particular e do relacionamento, como também todo amor passa a ser considerado Falsidade; as causas são para os Ingênuos; as organizações, Armadilhas; as hierarquias, Mal e a análise nada menos que prostituição, lavagem cerebral e fraude. Seja inteligente, fique alerta. Apanhe o outro antes que ele o apanhe. Melhor sozinho. Tudo bem comigo, José - o verniz para esconder as cicatrizes de uma confiança perdida. Com os restos desfeitos de idealismo improvisa-se a filosofia agressiva do cinismo. .

É bem possível que encontremos este cinismo - especialmeme entre os jovens - por não ter sido dada atenção suficiente ao significado da traição, principalmente na transformação do puer aeternus. Como analistas não elaboramos a sua significatividade no desenvolvimento da vida sentimental; como um dado final em si, de onde fênix alguma poderia renascer. Assim, a pessoa traída jura nunca mais subir tão alto na escada. Vai ficar grudada no chão, no mesmo nível do cão, kynis, cínico. Essa postura cínica, como dispensa o trabalho de elaboração de um significado positivo da traição, forma um círculo vicioso, o cão perseguindo a própria cauda. O cinismo, esse zombar do próprio destino, é uma traição dos próprios ideais, uma traição das mais elevadas ambições pessoais encerradas no arquétipo do puer. Quando este entra em colapso, tudo que tem a ver com ele é rejeitado. O que leva ao quarto e, acredito, maior perigo: à autotraição.

A traição de si mesmo é talvez o que mais realmente nos angustia. E uma das maneiras disto acontecer é como conseqüência de alguém nos ter traído. Na situação de confiança, na ligação amorosa, ou com um amigo, um parente, um parceiro, um analista, alguma coisa sempre fica em aberto. Alguma coisa que tinha estado lá dentro vem para fora: "Nunca contei isto antes em toda a minha vida". Uma confissão, um poema, uma carta de amor, uma invenção ou esquema fantástico, um segredo, um sonho de terror infantil - algo que contém os valores mais profundos da pessoa. No instante da traição, essas pequenas pérolas, tão delicadas e sensíveis, transformam-se em nada mais que pó, grãos de areia. A carta de amor torna-se um amontoado de asneiras sentimentais, e o poema, o terror, o sonho, a ambição, tudo fica reduzido ao ridículo, exposto à zombaria grosseira, tratado em linguagem grossa como merde, uma bosta. Reverte-se o processo alquímico: o ouro volta a ser excremento, a pérola lançada aos porcos. Porque os porcos não são os outros, de quem se deve esconder os valores sagrados, e sim as explicações materialistas grosseiras, as reduções às simplicidades obtusas do instinto sexual e da sofreguidão, que devora tudo indiscriminadamente; a própria insistência obstinada em achar que o melhor era realmente o pior, o refugo onde se arrojam os mais preciosos valores.

É uma experiência estranha perceber alguém traindo a si mesmo, voltando-se contra as próprias experiências ao atribuir-Ihes os valores negativos da sombra e ao agir contrariamente às próprias intenções e sistema de valores. No colapso de uma amizade, de uma parceira, de um casamento, de uma ligação amorosa, de repente o que há de pior e de mais sujo vem à tona e a pessoa se surpreende agindo da mesma maneira cega e sórdida que atribui ao outro, e justificando as próprias ações com um sistema de valores Que não é seu. A pessoa é realmente traída, entregue ao inimigo interior. E os porcos avançam e despedaçam.

O distanciamento de si mesmo após a traição é em grande parte para se proteger. Não se quer ser ferido de novo, e já que a ferida resultou justamente da revelação daquilo que se é, começa-se a evitar viver de novo experiências assim. De modo que se evita, trai-se a si mesmo, deixando-se de viver uma etapa da vida (um divorciado de meia-idade sem ninguém para amar) ou a própria sexualidade (não quero mais saber de homens e vou passar a ser tão cruel quanto eles) ou o próprio tipo psicológico (meu sentimento, minha intuição ou fosse lá o que fosse, estava errado), ou a própria vocação (a psicoterapia é mesmo um negócio sujo). Porque foi justamente pela confiança nesses marcos fundamentais da própria natureza que se foi atraiçoado. Assim, recusamos ser o que somos, começamos a ludibriar a nós mesmos com desculpas e evasivas, transformando-se a autotraição em nada menos que a definição de Jung para neurose como uneigentlich leiden, sofrimento inautêntico. Deixa-se de viver a experiência pessoal de sofrimento para, por mauvaise foi, por falta de coragem de ser, trair-se a si mesmo.

Isto é, em última análise, suponho, um problema religioso, e mais parecemos Judas ou Pedro ao trair o essencial, a exigência essencial de que se assuma e se carregue o próprio sofrimento e de que se seja o que se é não importa quanto isso possa doer.

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Ao lado da vingança, negação, cinismo e autotraição, existe ainda um outro perigo, um outro desvio negativo, que chamaremos de paranóide. É, mais uma vez, uma medida de proteção contra novas traições, por meio da elaboração de um relacionamento perfeito. Relacionamentos desse tipo exigem um juramento de fidelidade, não toleram riscos à segurança. "Você não deve me trair jamais" - é o lema. A traição deve ser exorcizada por votos de confiança, declarações de fidelidade eterna, provas de dedicação, juras secretas. Não pode haver nem um arranhão; a traição tem de ser excluída.

Mas se a traição está contida na interior da confiança, como a semente antinômica encerrada nela, então essa exigência paranóide de um relacionamento sem possibilidade de traição não pode na verdade estar baseada na confiança. É mais uma convenção arquitetada para excluir riscos. Como tal tem a ver menos com o amor do que com o poder. É um recuo para um lacionamento baseado no logos, imposto pela palavra e não sustentado pelo amor.

É impossível restabelecer-se a confiança primordial depois que se deixou o Éden. Agora se sabe que as promessas mantêm-se apenas até certo ponto. A vida é que toma a seu cargo os juramentas, cumprindo-os ou quebrando-os. E os novos relacianamentos após a experiência da traição têm de começar por algum outro ponto totalmente diferente. A distorção paranóide dos assuntos humanos é algo muito sério. Quando um analista (ou marido, amante, discípulo ou amiga) tenta preencher os requisitos de um relacionamento paranóide, fornecendo garantias de lealdade, exconjurando a traição, certamente estará afastando-se do amar. Pois como já vimos e tornaremos a ver, amor e traição procedem de um mesmo lado: o esquerdo.

IV

Gostaria agora de encerrar a questão do que significa a traição para o filho, o traído, a fim de voltar-me para a.outra das nossas questões iniciais: Que pode a traição significar para o pai? O que significa para Deus deixar Seu filho morrer na cruz é algo que não nos foi dito. O que significou para Abraão levar seu filho para o sacrifício, também isso não nos foi dito. Mas eles fizeram essas coisas. Eram capazes de trair, da mesma forma que Jacó, o patriarca, que adquiriu o seu status traindo o irmão. Será que a capacidade de trair é inerente à paternidade? Vamos examinar melhor esta questão.

O pai naquela história não mostra apenas sua imperfeição humana, quer dizer, não é que apenas não segura o filho. Não é apenas fraqueza e erro. Conscientemente ele resolveu deixá-lo cair e causar-lhe dor e humilhação. Mostra como é brutal. A mesma brutalidade que aparece no tratamento que Jesus recebe desde a captura até a crucifixão, e nos preparativos feitos por Abraão. O que acontece com Esaú e com Jó é nada menos que brutalidade. A brutalidade aparece de novo na pele de animal que Jacó veste para trair Esaú, e nas grandes bestas que Deus revela a Jó como justificativas de seus tormentos. Da mesma forma, nas imagens do Salmo 22, como vimos acima.

A imagem paterna - esta figura justa, sábia e tolerante - recusa de qualquer maneira intervir para minorar o sofrimento que ele próprio ocasionou. Recusa também justificar sua conduta. A recusa de explicações significa que a explicação, se afinal de contas houver uma, deve proceder da parte ofendida. Depois de uma traição não se está em posição de ouvir de forma alguma explicações do outro! Isto é, creio eu, um estímulo criativo na traição. É o traído quem de alguma forma deve cuidar da própria ressurreição, dar o passo adiante, por meio de sua própria interpretação do que aconteceu. Mas isso só será criativo se a pessoa não sucumbir aos perigos que mencionamos acima.

Naquela nossa história o pai explica. Nossa história é mais que tudo uma lição e a própria ação é educativa enquanto iniciação, ao passo que nas lendas arquetípicas e em muitas situações da vida diária, o traidor não explica a traição ao traído, pois a traição procede do lado autônomo, esquerdo, incosciente. Apesar das explicações, nossa história ainda exibe brutalidade. O uso consciente da brutalidade poderia parecer um traço comum das figuras paternas. O pai injusto reflete a injustiça da vida. Quando se mostra inacessível ao grito de socorro e às necessidades do outro, ou admite que sua promessa é falível, está reconhecendo que o poder da palavra pode ser transcendido pelas forças da vida. Este conhecimento das suas limitações masculinas e esta insensibilidade implicam em um alto grau de diferenciação do lado fraco, esquerdo. Diferenciação do lado esquerdo poderia significar a capacidade de suportar tensão sem ação, de prosseguir no erro sem tentar corrigir as coisas, deixando os fatos determinarem os princípios. Significa também que a pessoa deve, em al-guma medida, superar este desconfortável sentimento de culpa que impede a realização plenamente consciente de atos necessários, ainda que brutais. (Com brutalidade consciente não me refiro nem à bru-talidade deliberadamente perversa destinada a arruinar o outro! Nem à brutalidade sentimental, tal como às

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vezes a encontramos na literatura, nos filmes e nos códigos dos soldados).

A culpa incômoda e a pusilanimidade conferem aos atos um caráter ambíguo - o que não é tarefa muito adequada para a anima. Mas a aspereza do pai não dá margem a ambigüidade alguma. Não é que ele seja cruel de um lado e compassivo de outro. Não é que ele traia e em seguida levante o filho do chão dizendo "pobre garoto, isto me feriu mais que a você".

Na análise, como em todas as situações de confiança, somos às vezes levados a situações em que alguma coisa ocorre que requer uma ação conscientemente brutal, uma traição da confiança do outro. Quebramos uma promessa, omitimo-nos quando nossa presença seria necessária, atraiçoamos o outro, alienamos uma afeição, traímos um segredo. Não damos explicações de nossas ações, não aliviamos o outro de sua cruz, nem sequer o erguemos do chão ao pé-da-escada. São brutalidades - e nós as fazemos com mais ou menos consciência. E temos de permiti-Ias e assumi-Ias, caso contrário a anima faz nossos atos inconsistentes, indiferentes e cruéis.

Essa insensibilidade aponta para uma integração da brutalidade, com isso aproximando o indivíduo da natureza - que não dá explicações de si mesma. As explicações têm de ser arrancadas dela. Essa disposição para ser um traidor aproxima-nos da condição primitiva em que somos não tanto os protegidos de um Deus supostamente moral e de um Demônio imoral, e sim de uma natureza amoral. E assim somos reconduzidos ao nosso tema da integração da anima, que tem na insensibilidade e nos lábios selados semelhança com Eva e a serpente, cuja sabedoria está também próxima da traição da natureza. Isto me leva a perguntar se a integração da anima não pode mostrar-se de maneira distinta da usual - vitalidade, relacionamento, amor, imaginação, sutileza e assim por diante - ou seja, assemelhando-se à natureza: menos confiável, como água que corre pelo caminho que oferecer menor resistência, mudando as respostas com o vento, falando uma linguagem dúbia - ambigüidade consciente, mais que ambivalência inconsciente. Supostamente, o sábio ou mestre, a fim de ser o psicopompo que guia as almas através da confusão da criação, onde existe uma falha em cada pedra e os caminhos não são diretos, exibe uma sagacidade hermética e uma frieza que é tão impessoal quanto a própria natureza. (5).

Em outras palavras, nossa conclusão para a questão: "O que significa a traição para o pai?" resulta nisto - a capacidade de trair outros está relacionada com a capacidade de conduzir outros. A paternidade integral possui ambas. Na medida em que a orientação psicológica tem por objetivo a auto-ajuda e a autoconfiança, o outro terá, de alguma forma, em algum ponto, que ser abandonado ou cair em seu próprio nivel, isto é, afastado do auxílio humano, (a)traido para o interior de si mesmo, onde é deixado só.

Como diz Jung em Psicologia e Alquimia (págs. 27-8):

Sei por experiência que toda coerção - seja ela sugestão, insinuação, ou qualquer outro método de persuasão - no final das contas acaba sendo apenas um obstáculo para a mais elevada e decisiva experiência de todas, que é estar sozinho com o próprio Sel,. ou com o que quer que se chame a objetividade da psique. O paciente deve ficar sozinho se for para encontrar aquilo que o sustém quando não pode mais suportar a si mesmo. Só essa experiência pode lhe dar uma base indestrutível.

V

O que então é digno de confiança no bom pai ou no psicopompo? Com relação a isso, qual a diferença entre o mago da magia branca e o da magia negra? O que separa o sábio do selvagem? Não poderíamos, através daquilo que venho apresentando, justificar toda brutalidade e traição que um homem possa cometer como um sinal de sua "integração da anima", como um sinal de sua chegada à "plena paternidade"?

Não sei como responder a essa questão a não ser referindo-me às mesmas histórias já mencionadas. Em todas elas encontramos duas coisas: o tema do amor e/ou do sentido da necessidade. A interpretação cristã diz que Deus abandonou Jesus na cruz porque amou tanto o mundo que deu Seu próprio Filho pela sua redenção. Sua traição era necessária, perfazia o seu destino. Abraão amava tanto a Deus que se preparou para imolar Isaac em oferenda. A traição de Esaú por Jacob era uma necessidade já anunciada no momento do nascimento. O pai naquela nossa história deve ter amado tanto seu filho que podia arriscar quebrar-lhe os ossos, desfazer sua confiança e denegrir a própria imagem aos olhos do filho.

Esse contexto mais amplo de necessidade ou amor leva-me a acreditar que a traição - voltar atrás de uma promessa, recusar ajuda, revelar um segredo, enganar no amor - é uma experiência por demais trágica

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para ser justificada em termos pessoais de mecanismos e motivações psicológicas. Não basta psicologia pessoal; análises e explicações não resolvem. Deve-se procurar o contexto maior do amor e do destino. Mas quem pode ter certeza da presença do amor? E quem pode dizer que a traição foi uma necessidade, foi o destino, foi um chamamento do Self?

De certo, uma parte do amor é necessidade; é igualmente interesse, envolvimento, identificações - mas talvez uma maneira ainda mais certa de se dizer se a pessoa está mais próxima do selvagem ou do sábio é examinando o oposto do amor: o poder. Se a traição é perpetrada principalmente para obter-se vantagem pessoal (sair de uma situação difícil, ferir ou usar, salvar a própria pele, aplacar um desejo ou satisfazer uma necessidade, defender os próprios interesses) então pode-se estar seguro de que o predomínio não é tanto do amor e sim da brutalidade, do poder.

O contexto mais amplo do amor e da necessidade é dado pelos arquétipos míticos. Quando se coloca o evento sob esta perspectiva, o padrão pode tornar-se outra vez significante. O ato mesmo de tentar compreendê-Io nesse contexto mais amplo é terapêutico. Infelizmente o evento pode não revelar seu significado por muito, muito tempo, enquanto jaz sob o selo do absurdo ou apodrece no ressentimento. Mas a luta para colocá-Io dentro do contexto mais amplo, as lides com interpretação e integração, esse é o caminho para fazer andar. Pareceme que apenas isto pode conduzir através dos estágios da diferenciação da anima, há tanto já delineado, e mesmo levar a um passo adiante; na direção do mais elevado dos sentimentos religiosos: o perdão.

Devemos deixar bem claro que perdão não é assunto fácil. Se o ego errou, o ego não pode perdoar, só porque "deveria", sem consideração pelo contexto mais amplo de amor e destino. O ego consegue manter-se vital devido a seu amor-próprio, seu orgulho e sua honra. Mesmo quando se quer perdoar, vê-se que simplesmente não se pode, porque o perdão não provém do ego. Não posso perdoar diretamente, posso apenas pedir, ou rezar, para que esses pecados sejam perdoados. Desejar que o perdão venha e esperar por ele talvez seja tudo o que se pode fazer.

O perdão, como a humildade, é apenas um termo até que pessoa tenha sido realmente humilhada ou realmente enganada. Perdão só tem sentido Quando não se pode nem perdoar nem esquecer. E nossos sonhos não nos permitem perdoar (esquecer). Qualquer um pode perdoar um insulto banal, uma afronta pessoal. Mas se alguém é levado, passo a passo, a um envolvimento cuja substância é a própria confiança, desnuda a própria alma, e então é profundamente traído, no sentido de ser entregue às mãos de seus inimigos, exteriores ou interiores (aqueles valores da sombra descritos acima, situações em que as chances de uma nova confiança amorosa ficam permanentemente comprometidas por defesas paranóicas, pela autotraição, pelo cinismo), então aí o perdão assume grande significado. Pode bem ser Que a traição não tenha nenhum outro produto positivo além do perdão, e que a experiência do perdão seja possível apenas se alguém tiver sido traído. Tal perdão é um perdoar que não é um esquecer, mas a lembrança do erro, que se transforma, quando inserido em um contexto mais amplo, ou nos termos em que Jung coloca, o sal da amargura transformado no sal da sabedoria.

A sabedoria, como Sofia, é de novo uma contribuição feminina à masculinidade. e poderia fornecer o contexto mais amplo que a vontade não pode providenciar por si mesma. Gostaria de considerar aqui a Sabedoria como a união do amor com a necessidade, da qual finalmente brota o fluxo livre do sentimento para o interior do próprio destino, reconciliando-nos com um acontecimento.

Da mesma forma que a confiança contém em si a semente da traição, a traição contém em si a semente do perdão. Esta poderia ser a resposta à última de nossas questões iniciais: "Que posição ocupa a traição na vida psicológica em geral?" Nem a confiança nem o perdão podem ser corretamente imaginados sem a traição. A traição é o lado sombrio de ambos, a ambos dando sentido, tornando ambos possíveis. Talvez isso nos explique um pouco por que a traição é um tema tão forte em nossas religiões. É talvez a passagem humana para as experiências religiosas tão elevadas do perdão e da reconciliação com este labirinto silencioso, a criação.

Mas o perdão é tão difícil que provavelmente necessita da ajuda de outra pessoa. Quero dizer com isto que a falta, se não for lembrada por ambas as partes - e lembrar como falta - recai inteiramente sobre o traído. O contexto mais amplo no interior do qual ocorreu a tragédia poderia parecer reclamar sentimentos paralelos de parte a parte. Ambos encontram-se ainda em uma relação, agora como traidor e traído. Se só o traído percebe o crime, enquanto o outro o contorna com racionalizações, então a traição prossegue - e até mesmo

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aumentada. Esta ilusão com respeito ao que realmente aconteceu é, para o traído, a mais aberta de todas as chagas. O perdão vem com mais dificuldade; os ressentimentos crescem porque o traidor não está carregando sua culpa e o ato não é honestamente consciente. Jung disse que o sentido de nossos pecados é que nós os carreguemos, o que significa não lançá-Ios sobre os ombros de outrem, esperando que este os carregue para nós. Para carregar os próprios pecados é preciso primeiro reconhecê-los e reconhecer sua brutalidade.

Psicologicamente, carregar um pecado significa simplesmente reconhecê-Io, lembrar-se dele. Todas as emoções ligadas à experiência da traição em ambas as partes -- remorso e arrependimento no traidor, ressentimento e rancor no traído - insistem no mesmo ponto: a lembrança. O ressentimento, em especial, é uma aflição emocional da memória que o esquecimento não pode jamais reprimir completamente. Sendo assim, não é melhor lembrar de um erro do que oscilar entre o esquecimento e o ressentimento? Estas emoções poderiam parecer ter como objetivo evitar que uma experiência se dissolvesse no inconsciente. São o sal que preserva o evento da decomposição. Amargamente, forçam-nos a manter a fé ao lado do pecado. Em outras palavras, o paradoxo da traição é a fidelidade que ambos, traidor e traído, guardam, após o evento, ao seu amargor.

E essa fidelidade é guardada da mesma forma pelo traidor. Porque se sou incapaz de admitir Que traí alguém, ou se tento esquecê-lo, permaneço enclausurado numa brutalidade inconsciente. Nesse caso perde-se o contexto mais amplo do amor e o contexto mais amplo do destino, da minha ação e de todo o evento. Não somente continuo enganando o outro, como me engano a mim mesmo, pois cortei a possibilidade de me autoperdoar. Não posso tornar-me mais sábio nem tenho nada com que reconciliar.

Por essas razões creio que o perdão de um requer a reparação do outro. A expiação consiste na adoção do comportamento silencioso do pai, conforme o descrevemos anteriormente. O pai carrega sua culpa e seu sofrimento. Embora tenha perfeita noção do seu ato, não dá explicações dele ao outro, o que implica em expiá-lo, isto é, em autorelacionar-se. Reparação implica também numa submissão à traição como tal, à sua realidade fatal transpessoal. Ao curvar-me à vergonha,da minha incapacidade de manter a palavra, sou forçado a admitir humildemente tanto a minha fraqueza pessoal como a realidade de poderes impessoais.No entanto é preciso verificar bem se essa reparação não é apenas para apaziguar a mente ou só circunstancial. Não dev tragédia poderia parecer reclamar sentimentos paralelos de parte a parte. Ambos encontram-se ainda em uma relação, agora como traidor e traído. Se só o traído percebe o crime, enquanto o outro o contorna com racionalizações, então a traição prossegue - e até mesmo aumentada. Esta ilusão com respeito ao que realmente aconteceu é, para o traído, a mais aberta de todas as chagas. O perdão vem com mais dificuldade; os ressentimentos crescem porque o traidor não está carregando sua culpa e o ato não é honestamente consciente. Jung disse que o sentido de nossos pecados é que nós os carreguemos, o que significa não lançá-Ios sobre os ombros de outrem, esperando que este os carregue para nós. Para carregar os próprios pecados é preciso primeiro reconhecê-los e reconhecer sua brutalidade.

Psicologicamente, carregar um pecado significa simplesmente reconhecê-Io, lembrar-se dele. Todas as emoções ligadas à experiência da traição em ambas as partes -- remorso e arrependimento no traidor, ressentimento e rancor no traído - insistem no mesmo ponto: a lembrança. O ressentimento, em especial, é uma aflição emocional da memória que o esquecimento não pode jamais reprimir completamente. Sendo assim, não é melhor lembrar de um erro do que oscilar entre o esquecimento e o ressentimento? Estas emoções poderiam parecer ter como objetivo evitar que uma experiência se dissolvesse no inconsciente. São o sal que preserva o evento da decomposição. Amargamente, forçam-nos a manter a fé ao lado do pecado. Em outras palavras, o paradoxo da traição é a fidelidade que ambos, traidor e traído, guardam, após o evento, ao seu amargor.

E essa fidelidade é guardada da mesma forma pelo traidor. Porque se sou incapaz de admitir Que traí alguém, ou se tento esquecê-lo, permaneço enclausurado numa brutalidade inconsciente. Nesse caso perde-se o contexto mais amplo do amor e o contexto mais amplo do destino, da minha ação e de todo o evento. Não somente continuo enganando o outro, como me engano a mim mesmo, pois cortei a possibilidade de me autoperdoar. Não posso tornar-me mais sábio nem tenho nada com que reconciliar.

Por essas razões creio que o perdão de um requer a reparação do outro. A expiação consiste na adoção do comportamento silencioso do pai, conforme o descrevemos anteriormente. O pai carrega sua culpa e seu sofrimento. Embora tenha perfeita noção do seu ato, não dá explicações dele ao outro, o que implica em expiá-lo, isto é, em autorelacionar-se. Reparação implica também numa submissão à traição como tal, à sua realidade fatal transpessoal. Ao curvar-me à vergonha,da minha incapacidade de manter a palavra, sou forçado a admitir humildemente tanto a minha fraqueza pessoal como a realidade de poderes impessoais.

No entanto é preciso verificar bem se essa reparação não é apenas para apaziguar a mente ou só

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circunstancial. Não deve ela reconhecer a outra pessoa? Creio que este ponto não pode ser exagerado, pois vivemos em um mundo humano, mesmo quando somos as vítimas de temas cósmicos, como a tragédia, a traição, o destino. Traição pode integrar um contexto mais amplo e ser um tema cósmico, mas é sempre no interior de relacionamentos individuais, através de outra pessoa muito próxima, de uma intimamente imediata, que estas coisas nos atingem. Se os outros são instrumentos dos deuses para nos trazer tragédias, são também o caminho pelo qual a nossa expiação chega aos deuses. As condições se transformam no interior do mesmo tipo de situação pessoal em que ocorreram. É suficiente oferecer reparação apenas aos deuses? Dá-se com isso por encerrada a questão? A tradição não conjuga a sabedoria à humildade? A expiacão, como o arrependimento, não precisa ser expressis verbis, mas é provavelmente mais efetiva se ocorre em alguma forma de contato com o outro, com o reconhecimento integral do outro. E, afinal, o que é esse reco-nhecimento pleno do outro senão o amor?

VI

Tentarei resumir. Os desdobramentos, por sucessivos estágios, da confiança, através da traição, até o perdão, representam uma modificação da consciência. A condição inicial de confiança primordial é em boa parte inconsciente e pré-anima. Segue-se a traição, em que a palavra dada é quebrada pela vida. Apesar de toda sua negatividade, a traição representa ainda um avanço em relação à confiança primordial porque conduz à "morte" do puer através da experiência de anima do sofrimento. Isto pode então levar, se não for bloqueado pelas vicissitudes negativas da vingança, da negação, cinismo, autotraição e defesas paranóides, a uma paternidade mais firme, em que o traído pode, por seu turno, trair outros de forma menos inconsciente, implicando isto na integração de uma natureza humana pouco digna de confiança. A integração final da experiência pode resultar no perdão pelo traído, expiação pelo traidor e uma reconciliação - não neces-sariamente de um com o outro - mas a reconciliação de cada um com o fato ocorrido. Cada uma destas fases de amargos conflitos e de experiências sofridas que podem consumir longos anos de fidelidade ao lado sombrio da psique, é também uma fase do desenvolvimento da anima e foi, apesar de minha ênfase sobre o masculino, o tema principal deste trabalho.

NOTAS

I. Being and Having, (ed. Fontana), Londres, 1965, pág. 47.2. Saint Genet: Actor and Martyr, (ed. Mentor), NewYork, 1964, pág. 191. 3. The Grail Legend; New Yórk, 1971.4. The Inner World of Choice, New York, 1963.

5. "O Céu e a Terra não são humanosPois encaram todas as coisas como cães. O sábio não é humanoPois encara todas as pessoas como cães". - Tao- Te King, nº 5.

Do Grêmio de Psicologia Pastoral: conferência n. o 128, 1964, 1966, 1971, Londres, e também Spring 1965, págs. 57-76.Conferência proferida em 2 de outubro de 1964, em Londres.

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