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1 Trajetória da dislexia e seus efeitos sobre o indivíduo Luciana Gonçalves Paes Pessoa 1 RESUMO Esse artigo tem como objetivo principal descrever a trajetória da dislexia até os tempos atuais e suas implicações neuropsicológicas, pedagógicas e sociais. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o tema, no que se refere à história, definição, diagnóstico, interferência do ambiente nas formas de intervenção, com o objetivo de chamar a atenção para os aspectos emocionais decorrentes da falta de informação e compreensão sofridos pelos portadores desse transtorno e suas famílias. Palavras-chaves: Dislexia. Neuropsicologia. Transtorno específico de aprendizagem. Aspectos psicoemocionais da dislexia. SUMMARY The purpose of this article is to describe the trajectory of dyslexia to present time and its neuropsychological, pedagogical and social implications. In order to do so, a bibliographical review was made on the subject, regarding the history, definition, diagnosis, and interference of the environment in the forms of intervention, whose, goal leads to draw attention to the emotional aspects resulting from the lack of information and understanding suffered by the carriers of this disorder and their families. Key words: Dyslexia. Neuropsychology. Specific learning disorder. Psycho- emotional aspects of dyslexia. Breve histórico da dislexia No final do século XIX, médicos ingleses e escoceses escreveram sobre crianças que, apesar de inteligentes e motivadas, de pertencerem a famílias escolarizadas e de possuírem professores dedicados, não conseguiam aprender a ler 1 . Em 1896, o Dr. W. Pringle Morgan publicou um estudo no British Medical Journal, usando pela primeira vez o termo “cegueira verbal" ao expor o caso de 1 Luciana Gonçalves Paes Pessoa Psicóloga formada pela Universidade Filadélfia de Londrina UNIFIL em 2001. Especialista em Teoria Multifocal pela UNIFIL em 2004. Psicoterapeuta de crianças, adolescentes e família. Especializanda do curso de Neuropsicologia pelo CDN/UNIFESP 2017. E-mail [email protected]

Trajetória da dislexia e seus efeitos sobre o indivíduo · Para entender a dislexia, é necessário que haja anteriormente a compreensão do que é leitura, a saber, a ... O DSM-V

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Trajetória da dislexia e seus efeitos sobre o indivíduo

Luciana Gonçalves Paes Pessoa1

RESUMO

Esse artigo tem como objetivo principal descrever a trajetória da dislexia até os tempos atuais e suas implicações neuropsicológicas, pedagógicas e sociais. Para tanto, foi realizada uma revisão bibliográfica sobre o tema, no que se refere à história, definição, diagnóstico, interferência do ambiente nas formas de intervenção, com o objetivo de chamar a atenção para os aspectos emocionais decorrentes da falta de informação e compreensão sofridos pelos portadores desse transtorno e suas famílias.

Palavras-chaves: Dislexia. Neuropsicologia. Transtorno específico de aprendizagem. Aspectos psicoemocionais da dislexia.

SUMMARY

The purpose of this article is to describe the trajectory of dyslexia to present time and its neuropsychological, pedagogical and social implications. In order to do so, a bibliographical review was made on the subject, regarding the history, definition, diagnosis, and interference of the environment in the forms of intervention, whose, goal leads to draw attention to the emotional aspects resulting from the lack of information and understanding suffered by the carriers of this disorder and their families.

Key words: Dyslexia. Neuropsychology. Specific learning disorder. Psycho-emotional aspects of dyslexia.

Breve histórico da dislexia

No final do século XIX, médicos ingleses e escoceses escreveram sobre

crianças que, apesar de inteligentes e motivadas, de pertencerem a famílias

escolarizadas e de possuírem professores dedicados, não conseguiam aprender

a ler1.

Em 1896, o Dr. W. Pringle Morgan publicou um estudo no British Medical

Journal, usando pela primeira vez o termo “cegueira verbal" ao expor o caso de

1 Luciana Gonçalves Paes Pessoa – Psicóloga formada pela Universidade Filadélfia de Londrina

– UNIFIL em 2001. Especialista em Teoria Multifocal pela UNIFIL em 2004. Psicoterapeuta de crianças, adolescentes e família. Especializanda do curso de Neuropsicologia pelo CDN/UNIFESP 2017. E-mail – [email protected]

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um adolescente que, embora apresentasse inteligência normal ou até mesmo

superior à dos colegas de escola, dizia que as palavras impressas ou escritas

não tinham significado para ele. Mesmo com "todo o equipamento intelectual e

sensorial necessário para a leitura", não conseguia ler. Morgan captou aspectos

básicos do que chamamos hoje de dislexia do desenvolvimento, uma disfunção

que ocorre em crianças saudáveis.1

Talvez o caso mais antigo de "cegueira verbal" tenha sido descrito em

1676, pelo Dr. Johann Schmidt, quando apresenta o caso de um homem de 65

anos que perdeu a capacidade de ler após um derrame. O interesse na literatura

médica crescia por pessoas que, após derrame, tumor ou lesão cerebral,

perdiam a capacidade de ler, no que se denominou "alexia adquirida”1.

Adolf Kussmaul, em 1877, considerou a existência de uma total cegueira

de texto, condição que afetava apenas o reconhecimento de palavras e a leitura

de textos, ainda que a acuidade visual, a expressão e a compreensão da

linguagem permanecessem intactas. Com isso, dava continuidade ao

acompanhamento de "casos de lesões na parte posterior do cérebro, ao redor

do giro angular esquerdo.”1

Houve ainda uma publicação, no prestigiado periódico médico The

Lancet, de um caso muito importante descrito por Hinshelwood, em 1896, que

relatou o caso de um homem de 58 anos, professor de francês e alemão que,

numa determinada manhã, não conseguia ler o exercício que um aluno havia lhe

dado para corrigir. Embora pudesse ver todas as letras com clareza,

independentemente do tamanho delas, os caracteres não tinham significado

algum para ele, que não apresentava nenhum problema mental. Esse relato foi

de suma importância, por sua clareza na descrição clínica da dificuldade

adquirida da leitura, na ausência de problemas oftalmológicos ou de acuidade

visual, para que Morgan, em 1896, mencionasse seu primeiro caso de "cegueira

verbal" de origem congênita1.

Na "cegueira verbal" adquirida, havia uma perda súbita da capacidade de

ler, que ocorria após lesão cerebral, que afetava em geral a parte esquerda do

cérebro e podia provocar outros prejuízos como fraqueza muscular do lado

direito do corpo e dificuldades de pronúncia de palavras. Por seu turno, a

“cegueira verbal” congênita apresentava evolução à medida que as exigências

escolares aumentavam, sem afetar a capacidade muscular do paciente1.

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“De uma perspectiva neurológica, a diferença nas duas formas de

disfunção está no momento em que se dá o rompimento dos sistemas neurais

no cérebro. Na forma congênita, há como que uma queda de energia nas

conexões cerebrais durante o desenvolvimento embrionário, ficando esse

problema nas conexões neurais confinado a um determinado sistema neural

(utilizado para a leitura). Nos casos em que o problema é adquirido, uma lesão

bloqueia um sistema neural que já está em funcionamento, podendo também

estender seu impacto a outros sistemas”1.

A descrição de casos de "cegueira verbal" congênita chamou a atenção

dos estudos de Hinshelwood, quando este, por volta de 1912, relatou a forma

como crianças de excelente desempenho intelectual e capacidade de memorizar

informações, oralmente expressas e ágeis em disposição mental eram

incapazes de ler. Dedicou-se também às questões emocionais devidas às tais

dificuldades, salientando a necessidade de apoio e paciência para com a

criança. Menciona o caso de um garoto de 7 anos: “ele sequer conhece todas as

letras do alfabeto, mas quando falamos com delicadeza e damos-lhe tempo, em

geral, ele consegue identificar todas as letras corretamente. E sabe repetir as

letras do alfabeto decoradas e com rapidez.

Conceituou a dislexia do desenvolvimento como uma dificuldade na

leitura, com “caráter isolado e circunscrito”, pois “uma cirança disléxica precisa

apresentar pontos fortes no que diz respeito à cognição, e não apenas

problemas nas funções de leitura”¹.

Collins, um cirurgião ocular inglês, concluiu que os principais sintomas da

dislexia “ [...] eram frequentemente negligenciados, sendo classificados como

mera burrice, ou algum erro de refração, o que prejudicava muito o indivíduo,

que era em geral culpado, intimidado e ridicularizado por um defeito pelo qual

não tinha culpa, mas sim o azar de possuir”1.

No início do século XX, Hinshelwood já chamava a atenção sobre a

identificação precoce da dislexia: “é uma questão da maior importância identificar

tão cedo quanto possível a verdadeira natureza deste problema, quando uma

criança o tem, pois isso ajudará muito a não perder nosso precioso tempo e a

impedir que a criança sofra e passe por um tratamento cruel. Quando uma

criança manifesta grande dificuldade em aprender a ler e não consegue

acompanhar seus colegas, a causa é geralmente atribuída a burrice ou preguiça,

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e nenhum método sistemático é aplicado no treinamento dela. Um pouco de

conhecimento e uma análise do caso em pouco tempo deixaria claro que a

dificuldade se deve a um defeito na memória visual que se tem das palavras e

das letras; a criança seria assim avaliada corretamente como alguém que tem

um defeito congênito em uma determinada área do cérebro, um defeito que,

contudo, pode em geral ser tratado com perseverança e persistência. Quanto

mais cedo se identifica a natureza do problema, maiores são as chances de a

criança melhorar”1.

Preocupado com que recebessem ensino adequado, fez recomendações

para que crianças disléxicas não fossem forçadas a aprender em sala de aula.

Diferentemente das demais, essas crianças deveriam receber aulas particulares

de leitura, suas lições não deveriam ser longas, mas repetidas em intervalos

durante o dia, "visando refrescar e fortalecer as impressões visuais" da lição.

Também não se deveria expor o aluno à leitura diante dos colegas de classe,

pois "seus erros e dificuldades despertavam a ridicularização", o que poderia

gerar prejuízos e piora1.

Esse histórico mostra o quanto as observações sobre a dislexia do

desenvolvimento foram valiosas e o quanto seus relatos convergem de forma

precisa com o conhecimento atual.

Definição de dislexia

Para entender a dislexia, é necessário que haja anteriormente a

compreensão do que é leitura, a saber, a interpretação de sinais gráficos feita

pelos órgãos dos sentidos, levada ao pensamento para concepção de novas

ideias e resolução de problemas, tudo isso associado a dados extraídos de um

texto lido. "É portanto, uma forma de dar sentido ao que está escrito e não de

decodificar a palavra em sons”2 .

A associação internacional de dislexia considera que a dislexia do

desenvolvimento “[...] caracteriza-se por dificuldades significativas no

reconhecimento fluente e/ou preciso de palavras (leitura) e por fraco

desempenho em provas de ditado (escrita) e decodificação, em indivíduos que

apresentam um nível de inteligência dentro da média e uma motivação

necessária. Essa atualização enfatiza que a maior dificuldade não se restringe à

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decodificação de 'uma só palavra', mas sim à falta de desenvolvimento de uma

leitura fluente, sendo o esforço e a lentidão uma das características que

persistem na adolescência e na idade adulta...apesar de o distúrbio ser

específico de leitura, as dificuldades mais frequentes abrangem também o

espectro da escrita e da ortografia”3.

A dislexia do desenvolvimento é considerada um transtorno específico de

aprendizagem (TEA) e, para caracterizá-lo, é necessário que se levem em

consideração vários domínios: a neurobiologia; a discrepância entre potencial de

aprendizagem e desempenho acadêmico, excluindo-se déficits sensoriais,

deficiência intelectual e experiências pedagógicas inadequadas; a interferência

do distúrbio de aprendizagem no ambiente escolar e de vida diária que requerem

habilidade de leitura4.

Border, em 1973, caracterizou pela primeira vez a dislexia em subtipos,

categorização confirmada por Galaburda e Cestnick, em 2003, por meio de

estudos de neuroimagem: “[...] dislexia auditiva ou fonológica (caracterizada

por dificuldade na leitura oral de palavras pouco familiares, que se encontra na

conversão letra-som, normalmente associada a uma disfunção do lobo

temporal); dislexia visual ou diseidética (caracterizada por dificuldade na

leitura relacionada a um problema visual, ou seja, inabilidade de reconhecer

palavras como um todo - decorrente de déficit no processamento visual e de

disfunções do lobo occipital); e dislexia mista (caracterizada por leitores que

apresentam problemas dos dois subtipos, associados às disfunções dos lobos

pré-frontal, frontal, occipital e temporal)”4.

O disléxico apresenta leitura oral lenta e vacilante, omissões, distorções

e substituições de palavras, além de ter comprometida a compreensão da leitura.

A dislexia é considerada um distúrbio neurológico, de origem congênita que afeta

indivíduos portadores de aparato cognitivo normal para desempenhar a tarefa

de leitura e/ou escrita, embora não o façam2.

O Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais - DSM-V

(2014) - indica que os transtornos específicos de aprendizagem (TEAs) são

diagnosticados quando o desempenho dos domínios avaliados por meio de

instrumentos psicométricos padronizados para cada habilidade específica

estiver, significativamente, abaixo do esperado em relação à idade, nível de

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escolaridade e inteligência; podendo-se detectar atraso acadêmico de dois anos

letivos5.

Compreender a correlação clínico-neurológica tem sido desafiador para a

neurociência, a neuropsicologia e a neurobiologia. As contribuições desses

domínios são de que a dislexia tem seu desenvolvimento no período

embrionário, no qual ocorre a anomalia funcional, gerando dano neurológico, não

sendo assim resultado de problemas ambientais e sociais6.

Etiologia

O DSM-V define a dislexia como um transtorno do neurodesenvolvimento

onde a origem biológica (interação de fatores genéticos, epigenéticos e

ambientais) seria a base da anormalidade do desempenho cognitivo, associada

às manifestações comportamentais. Esse quadro influencia "a capacidade do

cérebro de perceber ou processar informações verbais e não verbais com

eficiência e exatidão”2.

De acordo com DSM-V, a dislexia tem uma prevalência em 5 a 15% das

crianças em idade pré-escolar. Seus sintomas são crônicos e as consequências

interferem não apenas no desempenho escolar, mas também influenciam a vida

social.

Estudos mostram que há uma predominância "do sexo masculino, o que

pode ser atribuído a fatores genéticos anatômicos, de especialização

hemisférica ou mesmo sociais […]”3 . Demonstram ainda que a dislexia é

altamente familiar e genética, mas a forma de ser transmitida ainda não foi

definida3.

O histórico familiar ainda é considerado o maior dos fatores de risco,

ocorrendo que, em algumas famílias, a dislexia é, dominantemente, transmitida:

“esses casos podem ser explicados por um modo de transmissão dominante e

autossômico influenciado pelo sexo onde a dislexia tem uma probabilidade de

incidência em 100% dos indivíduos do sexo masculino. Dessa forma, todo

indivíduo do sexo masculino que herda gene para dislexia desenvolve o

transtorno. O mesmo ocorre em torno de 65% das mulheres portadoras”2.

Pelo exposto, evidencia-se que os estudos apontam para a dislexia como

"uma situação ainda não resolvida”2.

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Diagnóstico

A avaliação neurológica nos transtornos específicos de aprendizagem

tem início na queixa principal da percepção familiar sobre a dificuldade que o

indivíduo apresenta na aprendizagem da leitura e/ou escrita, com aparente falta

de interesse nessas atividades, embora se mostre disponível e capaz para

outras, o que a princípio é entendido como falta de atenção. Ocorre, no entanto,

que, pela dificuldade encontrada, ele perde o interesse2.

“Ao lado das queixas específicas para ler e escrever, muitas vezes é mais

evidenciada a repercussão comportamental que esses fracassos produzem na

criança em idade escolar. Muitas vezes, as queixas de ansiedade,

agressividade, depressão ou hiperatividade e desatenção, inclusive, são

predominantes. Junto com essas queixas, frequentemente está embutido o

medo que os pais carregam de que o filho tenha algum grau de deficiência

intelectual”2.

O problema se torna realmente nítido por volta do terceiro ano do ensino

fundamental, quando se exige um maior nível de abstração e as dificuldades não

podem mais ser consideradas como variantes do desenvolvimento normal2.

A história familiar tem peso relevante sobre o diagnóstico da dislexia,

razão por que deve ser analisada, exaustivamente, além do conhecimento a

respeito dos períodos pré, peri e pós-natal, do desenvolvimento neuropsicomotor

e do desenvolvimento da linguagem, em que esta última, é nítida na disfasia da

gênese e evolução da dislexia. O relacionamento interpessoal também é

importante, pois demonstra como o disléxico administra suas dificuldades. Em

seguida, deve-se fazer uma avaliação textual, com observação de cadernos

escolares e escrita espontânea, tratando-se dos seguintes aspectos2:

Leitura e escrita, muitas vezes incompreensíveis;

Confusões de letras com diferente orientação espacial (p/q; b/d);

Confusões de letras com sons semelhantes (b/p; d/t; g/j);

Inversões de sílabas ou palavras (par/pra; lata/alta);

Substituições de palavras com estrutura semelhante (contribuiu/construiu);

Supressão ou adição de letras ou de sílabas (caalo/cavalo; berla/bela);

Repetição de sílabas ou palavras (eu jogo jogo bola; bolo de chococolate);

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Fragmentação incorreta (querojogarbola/ quero jogar bola);

Dificuldade para entender o texto lido.

Segue-se então o exame clínico-neurológico, avaliando-se a visão e a

audição. No caso de haver quaisquer tipos de comprometimentos, deve-se fazer

o encaminhamento do indivíduo aos profissionais especializados, para se

complementar a avaliação das acuidades visuais e auditivas. Geralmente, o

exame neurológico tradicional apresenta resultado normal, enquanto que o

exame neurológico evolutivo pode apresentar alterações na lateralidade, mesmo

que se pondere a existência de controvérsias sobre a gênese da lateralidade

esquerda na dislexia. É importante ainda ressaltar que, quando há um

comprometimento na noção de esquema corporal, isto é, noção de direita e

esquerda, isso pode acarretar a inversão de letras ou sílabas2.

“[...] parece haver uma maior possibilidade de relação quando a criança

tem lateralidade mal estabelecida. De acordo com Rotta et al. 2, segundo Galifret

e Ajuriguerra, entre os disléxicos, não há um percentual maior de canhotos, mas

sim de crianças com lateralidade mal estabelecida”2.

Embora o diagnóstico da dislexia seja clínico-neurológico,

psicopedagógico e fonoaudiológico, muitas vezes é necessária a realização de

exames complementares, como eletroencefalograma e potenciais evocados de

longa latência auditivos e visuais. Por seu turno, os testes psicológicos, que

avaliam aspectos cognitivos e afetivos, podem trazer maiores informações ou

observar comorbidades2.

Acreditava-se que, por problemas no sistema visual, os disléxicos faziam

inversões de letras, motivo por que eram encaminhados para treinamento ocular

para corrigir defeitos visuais. Estudos posteriores demonstraram que a leitura de

trás para frente estava ligada a um problema de natureza linguística e não visual.

As substituições de letras eram consideradas de ordem fonológica e a inversão

ainda era estudada como "migração de letras", "talvez resultante do movimento

ocular e da representação sequencial espacial do cérebro”1.

Existe uma tendência em subestimar a capacidade intelectual dos

disléxicos. Contudo, embora apresentem problemas com a leitura, desconforto

e constrangimento quando solicitados a fazerem leitura em voz alta, dificuldade

de soletração e de encontrar palavras ideais, palavras mal pronunciadas, e

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dificuldade para usar a memória automática , não apresentam prejuízos em seu

pensamento, razão e compreensão. Tal constatação gera o paradoxo da

dislexia: "dificuldades profundas e persistentes experimentadas por algumas

pessoas muito inteligentes ao aprender a ler”1. A dislexia é uma dificuldade

específica em relação à leitura; portanto, não atinge a capacidade de raciocinar

do indivíduo.

Para fins de diagnóstico, pressupõe-se ainda que haja discrepância de

um ou dois desvios-padrão da média em medidas padronizadas entre

rendimento escolar e coeficiente de inteligência. Desse modo, exclui-se a

deficiência intelectual, pois o déficit específico não prejudica o desempenho

cognitivo global do indivíduo disléxico3,5.

O DSM-V estabelece como premissas para o critério-diagnóstico do

transtorno específico de aprendizagem da leitura e da escrita e uso de

habilidades acadêmicas:

“A. Dificuldades para a aprendizagem, conforme o indicado em pelo

menos um dos sintomas a seguir e que tenha persistido pelo menos por seis

meses:

1. Leitura de palavras de forma imprecisa ou lenta e com escorço (p ex.:

lê palavras isoladas, em voz alta, de forma incorreta ou hesitante,

frequentemente adivinha as palavras e tem dificuldade para soletrar);

2. Dificuldade para compreender o sentido do que é lido (p. ex.: pode ler

o texto com precisão, mas não compreende a sequência, as relações, as

inferências, ou o sentido mais profundo do que é lido);

3. Dificuldades para ortografar (ou escrever ortograficamente) (p. ex.:

adicionar, omitir, substituir vogais e consoantes);

4. Dificuldades com a expressão escrita (p. ex.: comete muitos erros de

gramática ou pontuação nas frases; emprega organização inadequada de

parágrafos; expressão escrita das ideias sem clareza).

B. As habilidades acadêmicas estão substancial e quantitativamente

abaixo do esperado para a idade cronológica do indivíduo, causando

interferência quantitativamente significativa no desempenho acadêmico ou

profissional ou nas atividades cotidianas, confirmada por meio de medidas de

desempenho padronizadas administradas individualmente e por avaliação

clínica abrangente.

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C. As dificuldades de aprendizagem iniciam-se durante os anos escolares,

mas podem se manifestar completamente até que as exigências pelas

habilidades acadêmicas afetadas excedam textos complexos longos e com

prazo curto, em alta sobrecarga de exigências acadêmicas.

D. As dificuldades de aprendizagem não podem ser explicadas por

deficiências intelectuais, acuidade visual e/ou auditiva não corrigida, outros

transtornos mentais ou neurológicos, adversidade psicossocial, falta de

proficiência na língua de instrução acadêmica ou instrução educacional

inadequada”2.

Alterações neurais na dislexia

Por meio do mapeamento cerebral de leitores hábeis, pode-se observar

que a “neurobiologia da leitura implica na ativação e no deslocamento da

informação em diferentes áreas cerebrais”. Exames de neuroimagem funcional

mostram uma ativação do sistema posterior cerebral (occipto-temporal e

parietal), durante o processamento de informações quando a entrada visual das

letras pelas vias sensoriais é direcionada ao córtex occipital sendo projetada

após para o giro angular, que é a região onde as formas visuais das letras são

reconhecidas como palavras. Paralelamente a esta via, o lobo temporal superior

posterior ligado às vias auditivas (área de Wernicke), processa as informações

que são enviadas ao giro frontal inferior (área de Broca), responsável pela

expressão motora da fala e da leitura3,7.

Em muitos casos, a dislexia não vem acompanhada de prejuízos

neurológicos graves, condições em que as alterações genéticas acarretam má-

formação de algumas estruturas cerebrais, podendo o sujeito apresentar nível

de inteligência médio ou até mesmo superior. Nesse sentido, os disléxicos

possuem padrões diferenciados de estrutura e funcionamento cerebral que

causam as dificuldades no processo de leitura, não interferindo na capacidade

cognitiva global7.

Confirmando as dificuldades fonológicas, o disléxico apresenta menor

ativação cerebral nas regiões relacionadas ao processamento linguístico e da

leitura. Ressalta-se ainda que a ativação cerebral em disléxicos sofre alterações

com a idade, passando a ocorrer maior ativação da área de Broca, pois de forma

compensatória utilizam mais a região frontal para a leitura, dado que “um dos

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meios de compensar a dificuldade de leitura é subvocalizar (pronunciar as

palavras em voz baixa) enquanto se lê, processo que utiliza a área de Broca”3.

“Outra região que tem padrão de ativação diferenciado entre disléxicos e

bons leitores é o córtex pré-frontal dorsolateral esquerdo, que é associado à

habilidade de memória operacional verbal. Já os giros do lobo temporal e

superior medial estão associados à recepção de estímulos da linguagem oral e

escrita”7.

Em um estudo realizado com crianças disléxicas que receberam

intervenção fônica, em 2008, na Universidade do Texas, nos Estados Unidos,

baseado no ensino do som das letras e em habilidades de consciência

fonológica, foi possível verificar uma reorganização cerebral em tarefas de leitura

que foram associadas à intervenção terapêutica na dislexia. Após intervenção,

observou-se um aumento da ativação do hemisfério esquerdo nas áreas dos

lobos frontais inferiores, lobo temporal superior, lobo parietal inferior e giro

fusiforme esquerdo. Além disso, foi verificado um aumento na ativação de áreas

do hemisfério direito como lobo frontal inferior direito, podendo ser entendida

como uma estratégia compensatória para o desenvolvimento da leitura7.

É importante ressaltar que mesmo a dislexia sendo um transtorno de

origem genética que afeta a formação cerebral, existem possibilidades de

intervenção cognitiva que reduzem, significativamente, os prejuízos e as

dificuldades encontradas pelos disléxicos nas tarefas de leitura.

Consequências psicoemocionais e sociais da dislexia

Com frequência, desde muito cedo, a criança disléxica se percebe

diferente dos demais quanto à sua capacidade de aprender, assim como é

comum encontrar adultos disléxicos que se esforçam em evitar situações

públicas que envolvam ler, escrever, soletrar ou falar em voz alta, ou tentem

burlar essas atividades sociais, quase sempre inevitáveis durante o decorrer da

vida. A percepção de seu transtorno, somado ao esforço despendido para

esconder ou fugir de suas dificuldades, gera sofrimento que, normalmente, vem

acompanhado de um buquê de sentimentos geradores de grande estresse.

O sentimento de medo de não se adaptar, que normalmente aflige todas

as crianças no curso normal do desenvolvimento, torna-se um medo constante

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nas crianças com dislexia, que precisam de ajuda e apoio para enfrentá-lo sem

causar maiores danos psicoemocionais.

A carga emocional causada pelo medo e a vergonha de se sentir incapaz

pode gerar uma enorme pressão, uma vez que o disléxico se vê em situações

nas quais as pessoas a sua volta não têm conhecimento de sua dificuldade. Ser

descoberto pode significar um grande embaraço podendo o indivíduo ser visto

como “anormal”8.

O sentimento de frustração pode surgir diante de situações que

demandem interação e desempenho escolar e social, uma vez que os disléxicos

apresentam uma maior dificuldade na lembrança de palavras e normalmente

requerem um maior tempo para a execução de tarefas8.

A desorganização que algumas pessoas disléxicas vivenciam pode levar

a um sentimento de confusão e desespero, quando ela não consegue se

concentrar ou terminar uma tarefa simples antes de iniciar outra8.

Uma profunda sensação de isolamento e solidão é comum em crianças

com dislexia, visto que as dificuldades para compreender determinadas

atividades que outras crianças apreciam é tão grande que normalmente é mais

fácil desistir8.

Diante das dificuldades enfrentadas pelas crianças disléxicas no ambiente

escolar, pode-se considerar o alto risco do desenvolvimento de uma depressão

infantil, caso essa criança não receba apoio emocional e familiar para o

enfrentamento de todos os sentimentos gerados pelo transtorno de

aprendizagem. Cruvinel e Boruchovitch9 dizem que dificuldades escolares com

baixo rendimento estão entre as primeiras causas de depressão na infância. No

contexto escolar, os baixos rendimentos seguidos de repetidos fracassos em

tarefas escolares, além das dificuldades no relacionamento com professores e

colegas, podem desencadear sintomasdepressivos na criança.

Portanto, pais e professores devem ter como objetivo principal a

preservação da autoestima da criança, uma vez que esse é o maior setor de

vulnerabilidade dos portadores de dislexia.As altas expectativas pelo rendimento

acadêmico em sujeitos com transtornos de aprendizagem, normalmente geram

grande frustração nos cuidadores, que acabam acusando essas crianças de falta

de esforço, desmotivação ou falta de capacidade intelectual, acarretando

sentimento de incapacidade e menos valia pelo esforço não reconhecido para

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manter-se no mesmo nível dos colegas. Nesse sentido, é fundamental que pais,

professores e, principalmente, a criança, entendam a natureza do problema de

leitura para que ela própria desenvolva uma opinião positiva sobre si mesma:

“todos os disléxicos de sucesso tiveram em comum o amor e o apoio incansável

de seus pais ou, ocasionalmente, de um companheiro ou de um professor”1.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O conhecimento neuropsicológico é fundamental para os profissionais

que lidam com problemas de aprendizagem, pois, a partir desse ponto, é

possível retirar a culpa do sujeito pela falha na aprendizagem, determinar

estratégias de apoio e a escolha de métodos e estratégias de ensino. É

importante também perceber o vínculo do indivíduo com a aprendizagem,

lembrando que essa questão revela, primeiramente, um sujeito, uma pessoa,

com uma percepção de seus impedimentos e sentimentos, por vezes

impossibilitada pela falta de compreensão de sua dificuldade de encontrar meios

de experimentar suas facilidades e pontos fortes.

Não se pode deixar de considerar a forma como se processa o ensino nos

disléxicos, uma vez que, pela falta de conhecimento, indisponibilidade ou rigidez

pela escolha de um método de ensino, pode-se gerar o fracasso escolar, baixa

autoestima, assim como a perpetuação das dificuldades de aprendizagem. A

escola e a família são responsáveis pelo desenvolvimento das potencialidades

e podem influenciar ricamente na reversão das possibilidades do sujeito, se o

processo for conduzido com entendimento e compreensão.

É importante ressaltar que, mesmo a dislexia sendo um transtorno de

origem genética que afeta a formação cerebral, existem possibilidades de

intervenção cognitiva que reduzem, significativamente, os prejuízos e as

dificuldades encontradas pelos disléxicos nas tarefas de leitura.

REFERÊNCIAS

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todos os níveis de problemas de leitura. Porto Alegre: Artmed; 2003.

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