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  • PERSPECTIVAS DA TRANSFORMAO CONSCIENTE DA VIDA QUOTIDIANA Guy Debord Esta exposio foi apresentada em 17 de maio de 1961 em fita magntica diante do Grupo de Investigaes sobre a vida quotidiana, reunido por H. Lefebrve no Centre d'tudes sociologiques del C.N.R.S.. Foi publicado no nmero 6 de Internacionalle Situationiste (agosto-1961). Traduo para o espanhol de Eduardo Subirats - publicada no caderno Textos situacionistas sobre arte e urbanismo (Anagrama, 1973) e na internet pelo Archivo Situacionista Hispano. Traduzido do espanhol. ............................................................................. Estudar a vida quotidiana seria uma empresa perfeitamente ridcula e, alm disso, condenada desde o princpio a perder de vista seu prprio objeto, se no se propusesse explicitamente o estudo dessa vida quotidiana com o fim de transform-la. A prpria conferncia, a exposio de determinadas consideraes intelectuais diante de um auditrio, como forma extremamente banal de relaes humanas em um setor bastante amplo da sociedade, tambm ela se insere na crtica da vida quotidiana. Os socilogos, por exemplo, tendem a se separar da vida quotidiana e lanar paras as esferas chamadas superiores tudo que lhes acontece a cada instante. o hbito, comeando pelo de manejar certos conceitos profissionais - produzidos pela diviso do trabalho - que sob todas as suas formas mascara assim a realidade por trs das condies privilegiadas. Por conseguinte, oportuno mostrar que se deslocamos ligeiramente as frmulas correntes descobrimos aqui mesmo a vida quotidiana. claro que a difuso destas palavras mediante um toca-fitas no pretende precisamente ilustrar a integrao das tcnicas a esta vida quotidiana que est margem do mundo tcnico, mas de aproveitar a ocasio mais simples para romper com as aparncias de pseudocolaborao, de dilogo fictcio, que se instituem entre o conferente "de corpo presente" e seus espectadores. Esta pequena ruptura do conforto rotineiro pode servir para trazer esta mesma conferncia diretamente para o campo da crtica da vida quotidiana (crtica que de outro modo resultaria completamente abstrata), como tantas outras disposies do emprego do tempo e das coisas, que, fora de consider-las "normais", j no se discernem e que, fundamentalmente, nos condicionam. A propsito desse detalhe, como a propsito do conjunto mesmo da vida quotidiana, a modificao constitui sempre a condio necessria e suficiente para fazer aparecer experimentalmente o objeto de nosso estudo, cuja ausncia o converteria em algo duvidoso, e ao qual se no trata apenas de estudar, mas de modificar Acabo de dizer que a realidade de um conjunto observvel que se designaria pelo termo "vida quotidiana" corre o risco de ser hipottica para muitas pessoas. Com efeito, desde que se constituiu este grupo de investigao, o trao mais destacvel no evidentemente que ainda no haja descoberto nada, mas que desde o primeiro momento se tenha estabelecido a questo da prpria existncia da vida quotidiana, e no tenha deixado de nela se aprofundar de sesso em sesso. A maioria das intervenes que at agora se puderam escutar nesta discusso procediam de pessoas nada convencidas de que a vida quotidiana exista, pois no a encontraram em nenhum lugar. Um grupo de investigao sobre a vida quotidiana, animado com semelhante esprito comparvel em todos os seus aspectos a um grupo que partisse em busca do abominvel homem das neves e cuja investigao poderia desembocar perfeitamente na concluso de que na realidade no se tratava mais que de uma piada folclrica. Entretanto, todo mundo est de acordo em que determinados gestos repetidos cada dia,

  • como abrir as portas ou encher os vasos, so plenamente reais; mas estes gestos se encontram em um nvel to trivial da realidade que com razo se pe em dvida seu possvel interesse para justificar uma nova especializao da investigao sociolgica. E certo nmero de socilogos parece pouco inclinado a imaginar outros aspectos da vida quotidiana a partir da definio proposta por Henri Lefebvre, isto , "o que subsiste quando se subtrai do vivido todas as atividades especializadas". Aqui descobrimos que a maioria dos socilogos - e j sabemos a satisfao que sentem em suas atividades especializadas, justamente, e o quanto de ordinrio lhe consagram uma f cega - a maioria dos socilogos, digo, reconhecem atividades especializadas em todos os lugares, e a vida quotidiana em lugar nenhum. A vida quotidiana se encontra sempre em outra parte, entre os outros, e em todo caso, entre as classes no-socilogas da populao. Algum disse aqui que os trabalhadores constituam um interessante objeto de estudo, por se tratarem de cobaias provavelmente inoculadas com esse vrus da vida quotidiana, pois no tendo acesso s atividades especializadas, tampouco podem viver outra coisa que a vida quotidiana. No deixa de ser surpreendente esta maneira de pegar o povo em busca de um longnquo primitivismo do quotidiano e, sobretudo, esta complacncia declarada e sem rodeios, esta ingnua arrogncia de participar de uma cultura cuja categrica decadncia, bem como sua incapacidade radical de compreender o mundo que a produz, ningum pode ocultar. Existe uma vontade manifesta de abrigar-se por baixo de uma formao do pensamento baseada na separao artificial de campos fragmentrios, a fim de recusar o conceito intil, vulgar e nojento de "vida quotidiana". Semelhante conceito encobre um resduo da realidade catalogada e classificada com o qual alguns no desejam enfrentar, pois constitui, ao mesmo tempo, o ponto de vista da totalidade e implicaria a necessidade de um juzo global, de uma poltica. Certos intelectuais parecem se vangloriar assim de uma ilusria participao pessoal no setor dominante da sociedade, atravs da possesso de uma ou mais especializaes culturais, o que os situa na melhor posio para se dar conta de que o conjunto desta cultura dominante est sensivelmente desgastado. Mas qualquer que seja o juzo que se pronuncie sobre a coerncia dessa cultura ou sobre o interesse de seus aspectos, a alienao que ela imps aos intelectuais em questo consiste em faz-los crer, desde sua privilegiada posio sociolgica, que se encontram completamente fora da vida quotidiana de qualquer povo, ou situados num lugar por demais elevado na escala dos poderes humanos, como se eles mesmos no fossem igualmente pobres. No h dvida de que as atividades especializadas tm uma existncia; em uma dada poca adquirem inclusive um uso geral que deve reconhecer-se sempre de uma forma desmistificada. A vida quotidiana no o totalmente. Certamente, existe uma osmose entre esta e as atividades especializadas, e at o extremo que, desde determinado ponto de vista, nunca nos encontramos fora da vida quotidiana. Mas caso se recorra fcil imagem de uma representao espacial das atividades, a vida quotidiana deve se situar, alm do mais, no centro de tudo. Cada projeto em parte e cada realizao tomam dela sua nova significao e sobre ela a projetam. A vida quotidiana a medida de todas as coisas: do cumprimento, ou melhor, do descumprimento das relaes humanas, do uso do tempo vivido, das buscas da arte, da poltica revolucionria. No basta recordar que o tipo de velha imagem de Epinal*, cientfica, do observador desinteressado, falaz em todos os casos. Deve-se sublinhar que a observao desinteressada ainda menos factvel aqui que em qualquer outro lugar. E a dificuldade inclusive de reconhecer um terreno da vida quotidiana no reside unicamente em que este constituiria o ponto de convergncia de uma sociologia emprica e de uma elaborao conceitual, mas tambm no fato de que esse mesmo momento suporia a atualizao de toda renovao revolucionria da cultura e da poltica.

  • A vida quotidiana no criticada implica neste momento a prolongao das formas atuais, profundamente degradadas, da cultura e da poltica, formas cuja crise extremamente avanada, sobretudo nos pases mais modernos, se traduz em uma despolitizao e um neo-analfabetismo generalizados. Pelo contrrio, a crtica radical, atuando sobre a vida quotidiana dada pode levar a uma superao da cultura e da poltica no sentido tradicional, isto , em um nvel superior de interveno na vida. No obstante, se dir: Como que a importncia da vida quotidiana, que para mim constitui a nica vida real, pode ser to completa e imediatamente desprezada por pessoas que no tm, apesar de tudo, nenhum interesse direto em faz-lo, e se muitas delas no so nada hostis a qualquer renovao do movimento revolucionrio? Creio que isso devido ao fato de que a vida quotidiana est organizada dentro dos limites de uma pobreza escandalosa. E, sobretudo, porque essa pobreza da vida quotidiana no tem nada de acidental: uma pobreza imposta em cada instante pela fora e a violncia de uma sociedade dividida em classes; uma pobreza historicamente organizada de acordo com as necessidades histricas da explorao. O uso da vida quotidiana, no sentido de um consumo do tempo vivido est condenado pelo reino da carncia : carncia de tempo livre; e carncia dos possveis usos deste tempo livre. Assim como a histria de nossa poca a histria da acumulao da industrializao, tambm o atraso da vida quotidiana, sua tendncia ao imobilismo, so os produtos das leis e interesses que presidiram essa industrializao. Efetivamente, a vida quotidiana apresenta, at nossos dias, uma resistncia ao histrico. Isso pe em questo, em primeiro lugar, o histrico mesmo, enquanto herana e projeto de uma sociedade exploradora. A pobreza extrema da organizao consciente, da criatividade das pessoas na vida quotidiana, traduz a necessidade fundamental da inconscincia e da mistificao em uma sociedade exploradora, em uma sociedade de alienao. Neste ponto, Henri Lefebvre aplicou extensamente o conceito de desenvolvimento desigual para caracterizar a vida quotidiana, desatada mas no desgarrada da historicidade, como um setor atrasado. Creio que inclusive pode-se qualificar este nvel da vida quotidiana como setor colonizado. Na escala da economia mundial, se comprovou que o subdesenvolvimento e a colonizao so dois fatores em interao. Pois bem, tudo nos faz pensar que no nvel da formao econmico-social, da prxis, vem a acontecer o mesmo. A vida quotidiana, mistificada por todos os meios e controlada policialmente, uma espcie de reserva para os bons selvagens que, sem sab-lo, fazem marchar a sociedade moderna no compasso do rpido crescimento dos poderes tcnicos e da expanso forada de seu mercado. A histria - isto , a transformao do real - no pode ser utilizada atualmente na vida quotidiana uma vez que o homem da vida quotidiana produto de uma histria sobre a qual no tem nenhum controle. Evidentemente, ele mesmo que faz esta histria, mas no livremente. A sociedade moderna est constituda por fragmentos especializados, mais ou menos intransmissveis, e a vida quotidiana, onde todas as questes correm o risco de serem postas de uma maneira unitria, por isso mesmo o domnio da ignorncia. Atravs de sua produo industrial, esta sociedade usurpou todo sentido dos gestos do trabalho. E no existe nenhum modelo de conduta humana que conservou uma verdadeira atualidade no quotidiano.

  • Esta sociedade tende a atomizar as pessoas convertendo-as em consumidores isolados, e a impedir toda comunicao. A vida quotidiana se torna vida privada, domnio da separao e do espetculo. Desse modo, a vida quotidiana se torna tambm a esfera da demisso dos especialistas. da, por exemplo, que um dos poucos indivduos capazes de compreender a mais recente imagem cientfica do universo, se converte num estpido, e pondera longamente sobre as teorias artsticas de Alain Robbe-Grillet, ou ento manda peties ao presidente da repblica com a pretenso de mudar sua poltica. a esfera do desarme, do reconhecimento da incapacidade de viver. Por conseguinte, o subdesenvolvimento da vida quotidiana no pode se caracterizar somente por sua relativa incapacidade de integrar algumas tcnicas. Este trao um produto importante, mas ainda parcial, do conjunto da alienao quotidiana que se poderia definir como a incapacidade de inventar uma tcnica de libertao do quotidiano. E de fato, existem muitas tcnicas que modificam mais ou menos nitidamente certos aspectos da vida quotidiana: as artes domsticas, como j se disse aqui, mas tambm o telefone, a televiso, a gravao musical em discos de vinil, as viagens areas populares, etc. Estes elementos intervm anarquicamente, ao acaso, sem que ningum tenha previsto nem suas conexes nem suas conseqncias. Mas no h dvida de que, em seu conjunto, este movimento de introduo de certas tcnicas no interior da vida quotidiana, estando em ltima instncia marcado pela racionalidade do capitalismo moderno burocratizado, adquire mais precisamente o sentido de uma limitao da independncia e da criatividade das pessoas. Assim, as novas cidades de nossos dias demonstram claramente a tendncia totalitria de organizao da vida pelo capitalismo moderno: nelas os indivduos isolados (geralmente isolados na estrutura da clula familiar) vem suas vidas se reduzirem pura trivialidade do repetitivo, combinada com a absoro obrigatria de um espetculo igualmente repetitivo. Devemos acreditar, por conseguinte, que a censura que as pessoas exercem sobre as questes relativas a sua prpria vida quotidiana se explica pela conscincia de sua insustentvel misria, e ao mesmo tempo, pela sensao, talvez inconfessa, mas inevitavelmente experimentada algum dia, de que todas as possibilidades verdadeiras, todos os desejos bloqueados pelo funcionamento da vida social, residiam precisamente nela, e de modo nenhum nas atividades ou distraes especializadas. Isto , o conhecimento da riqueza profunda, da energia abandonada na vida quotidiana inseparvel do conhecimento da misria da organizao dominante desta vida: s a existncia perceptvel dessa riqueza inexplorada leva a definir, por contraste, a vida cotidiana como misria e como priso; portanto, em um mesmo movimento, nos leva a negar o problema. Nestas condies, mascarar a questo poltica que a misria da vida quotidiana estabelece significa mascarar a profundeza das reivindicaes da riqueza possvel desta vida; reivindicaes que levariam a nada menos que reinveno da revoluo. claro que eludir uma poltica a este nvel no de modo algum contraditrio com o fato de militar no Partido Socialista Unificado, por exemplo, ou de ler LHumanit inocentemente. Efetivamente, tudo depende do nvel em que se coloca o seguinte problema: como se vive? Como algum se satisfaz? Como no se satisfaz? E isso sem se deixar intimidar nem por um nico instante pelos diversos anncios que pretendem nos persuadir de que se pode ser feliz graas existncia de Deus, do creme dental Colgate ou do Centro Nacional de Pesquisa Cientfica**.

  • Considero que o termo "crtica da vida quotidiana" tambm poderia ou deveria ser entendido com a seguinte inverso: a crtica que a vida quotidiana exercer soberanamente a tudo o que lhe seja exterior. O problema do emprego dos meios tcnicos, tanto na vida quotidiana como fora dela, no nada mais que um problema poltico (e entre todos os meios tcnicos utilizveis, s se ps em prtica aqueles que foram autenticamente selecionados conforme o objetivo de conservar o domnio de uma classe). Quando se considera a hiptese de um futuro, tal como se admite na literatura de fico cientfica, onde as aventuras interestrelares coexistiriam com um vida quotidiana conservada nesta terra sob a mesma indigncia material e o mesmo moralismo arcaico, subentende-se com isso, exatamente, que continuaria existindo uma classe de dirigentes especializados mantendo a seu servio as massas proletrias das fbricas e escritrios; e que as aventuras interestrelares no seriam nada mais que a empresa escolhida por estes dirigentes, a melhor maneira que teriam encontrado para desenvolver sua economia irracional, o auge da atividade especializada. Nos perguntam: a vida privada est privada de que? Muito simples: da vida, que est cruelmente ausente. A gente est privada de comunicao e da realizao de si mesmos at os limites do possvel. Deveria-se dizer: privada de fazer pessoalmente sua prpria histria. As hipteses que pretendem responder positivamente questo sobre a natureza da privao no poderiam ser enunciadas, por conseguinte, seno sob a forma de projetos de enriquecimento; projeto de outro estilo de vida; em fim, de um estilo... Ou melhor, caso se considere que a vida quotidiana se encontra nos limites entre o setor dominado e o setor no-dominado da vida, ou seja, no lugar do aleatrio, ser preciso chegar a substituir o gueto atual por alguns limites constantemente mveis; trabalhar permanentemente na organizao de novas possibilidades. A questo da intensidade do vivido se coloca atualmente, a propsito, por exemplo, do uso dos estupefacientes, nos termos em que a sociedade da alienao capaz de colocar qualquer questo: quero dizer, nos termos do falso reconhecimento de um projeto falsificado, em termos de fixao e de petrificao. Tambm convm recalcar at que ponto a imagem do amor elaborada e difundida nesta sociedade se assemelha com a droga. Nela, a paixo reconhecida em primeiro como recusa de todas as demais paixes, mas s para impedi-la posteriormente, at que por fim j no se a reencontre mais a no ser nas compensaes do espetculo reinante. La Rochefoucauld escreveu: "O que freqentemente nos impede de abandonar um nico vcio que temos vrios". Eis aqui uma constatao muito positiva se, descartando seus pressupostos moralistas, a colocamos sobre seus ps, como base de um programa de realizao das capacidades humanas. Todos esses problemas esto na ordem do dia em uma poca claramente dominada pela apario do projeto - cujo porta-voz a classe trabalhadora - de abolir toda a sociedade de classes e comear a histria humana; e dominada, como corolrio, pela encarniada resistncia a este projeto, e pelas distores e fracassos que tem sofrido at os nossos dias. A crise atual da vida quotidiana se inscreve nas novas formas de crises do capitalismo, formas que passam desapercebidas por quem se obstina em calcular em funo do vencimento clssico das prximas crises cclicas da economia. A desapario de todos os antigos valores, de todas as referncias da comunicao anterior ao capitalismo desenvolvido, e a impossibilidade de substitu-los por outros, quaisquer que sejam, sem conseguir previamente o domnio racional, tanto na vida quotidiana como em qualquer outro lugar, das novas foras industriais que cada vez mais escapam mais a nosso controle; estes fatos no s engendram a insatisfao quase oficial de nossa poca, insatisfao

  • particularmente aguda na juventude, mas ainda mais no movimento de auto-negao da arte. A atividade artstica sempre foi a nica que prestou contas dos problemas clandestinos da vida quotidiana, mas de uma maneira oculta, deformada, parcialmente ilusria. Diante de nossos olhos, j existe o testemunho de uma destruio de toda expresso artstica: a arte moderna. Se consideramos em toda sua extenso a crise da sociedade contempornea, no parece que o tempo de cio pode ser considerado ainda como uma negao do quotidiano. Admitiu-se aqui a necessidade de "estudar o tempo perdido". Mas vejamos o movimento recente dessa idia de tempo perdido. Para o capitalismo clssico, o tempo perdido o tempo exterior produo, acumulao e economia. A moral laica que se ensina nas escolas da burguesia implantou essa norma de vida. Entretanto por um ardil inesperado, o capitalismo moderno necessita acrescentar o consumo, "elevar o nvel de vida" (tendo em mente que esta expresso carece rigorosamente de sentido). E dado que, ao mesmo tempo, as condies de produo, compartimentada e cronometrada at um grau extremo, se tornaram completamente insustentveis, a moral que j abriu passagem na publicidade, na propaganda e em formas do espetculo dominante, admite francamente que o tempo perdido o tempo de trabalho, que j unicamente se justifica pelos diversos graus de lucro que procura, o qual permite comprar o repouso, o consumo, o tempo de cio - ou seja, uma passividade quotidiana fabricada e controlada pelo capitalismo. Se agora consideramos a artificialidade das necessidades de consumo que cria e estimula incessantemente a indstria moderna - caso se conhea o vazio do cio e a impossibilidade do repouso -, podemos colocar a questo em termos mais realistas: Que no seria o tempo perdido? Dito de outro modo: O desenvolvimento da sociedade da abundncia deveria desembocar na abundncia de qu? Evidentemente, isto pode servir como pedra de toque para muitos pontos de vistas. Por exemplo, num dos jornais que do mostra da inconsistncia terica dessas pessoas as quais se chama intelectuais de esquerda - me refiro ao France-Observateur -, se anuncia algo assim como "O automvel utilitrio no assalto ao socialismo", para encabear um artigo em que se diz que nestes tempos, os russos j perseguem individualmente um consumo privado de bens no estilo americano, comeando naturalmente, pelos automveis; quando lemos coisas deste estilo no podemos evitar a reflexo de que no necessrio ter assimilado, depois de Hegel, toda a obra de Marx, para advertir pelo menos que um socialismo que retrocede diante da invaso do mercado por automveis utilitrios no de modo algum o socialismo pelo qual o movimento dos trabalhadores luta. Desse modo, a oposio contra a burocracia dirigente da Rssia no deve partir de uma anlise qualquer de sua ttica ou de seu dogmatismo, mas sim do princpio de que o sentido da vida dos indivduos realmente no mudou. E no se trata aqui da obscura fatalidade da vida quotidiana, destinada a permanecer sendo reacionria. uma fatalidade imposta desde o exterior da vida quotidiana pela esfera reacionria dos dirigentes especializados, qualquer que seja a etiqueta sob a qual a planificam a misria, em todos os seus aspectos. Por isso a despolitizao atual de muitos dos antigos militantes da esquerda, seu abandono de uma certa alienao para cair nos braos de outra, a da vida privada, no tem o sentido de um retorno privacidade como um refgio contra as "responsabilidades da historicidade", mas sim o de um alheamento do setor poltico especializado, e, por conseguinte, sempre manipulado por outros, em que a nica responsabilidade que se assume verdadeiramente com isso a de abandonar todas as responsabilidades a chefes incontrolados. a que se burlou e se escamoteou o projeto comunista. No se pode opor em bloco a vida privada vida pblica sem se perguntar: o que vida privada? O que vida pblica? (pois a vida privada carrega os fatores de sua prpria negao e superao, assim como a ao revolucionria coletiva pde

  • alimentar os fatores de sua degenerao). Mas do mesmo modo seria um erro fazer o balano de uma alienao dos indivduos na poltica revolucionria, quando do que se tratava era da alienao da poltica revolucionria. Dialetizar o problema da alienao, assinalar as possibilidades de alienao que constantemente aparecem no seio da mesma luta contra a alienao, tudo isso constitui uma tarefa legtima, mas devemos sublinhar, ao mesmo tempo, que semelhante tarefa deve ser levada a cabo no nvel mais elevado da investigao (por exemplo, na filosofia da alienao em seu conjunto), e no no plano do stalinismo, cuja explicao, desgraadamente, mais grosseira. Em nenhum lugar se superou ainda a civilizao capitalista, embora ela mesma continue a engendrar seus inimigos. A prxima ascenso do movimento revolucionrio, radicalizado pela experincia das derrotas precedentes, dever enriquecer seu programa reivindicativo at o nvel dos poderes prticos da sociedade moderna, poderes que a partir do presente constituem virtualmente a base material que faltava s correntes do socialismo chamadas utpicas; esta prxima tentativa de contestao total do capitalismo saber inventar e propor um uso distinto da vida quotidiana, e se apoiar imediatamente nas novas prticas quotidianas, em novos tipos de relaes humanas (no mais ignorando que toda conservao no seio da prpria organizao revolucionria das relaes dominantes na sociedade existente conduz inevitavelmente restaurao, com diversas variantes, desta mesma sociedade). Assim como antigamente a burguesia, em sua fase ascendente, teve que liquidar implacavelmente tudo que estava alm da vida terrena (o cu, a eternidade), assim tambm o proletariado revolucionrio - que jamais pode reconhecer um passado ou um modelo, a menos que deixe de existir como tal - dever renunciar a tudo que exceda vida quotidiana. Ou melhor , a tudo que pretende exced-la: o espetculo, o gesto ou a frase "histricos", a "grandeza" dos dirigentes, o mistrio das especializaes, a "imortalidade" da arte e sua importncia exterior vida. O que quer dizer: renunciar a todos os subprodutos da eternidade que sobreviveram como armas do mundo dos dirigentes. A revoluo na vida quotidiana, na medida em que destri sua atual resistncia ao histrico (e a todo tipo de mudana), criar as condies que faro possvel "a dominao do presente sobre o passado", e nas quais a criatividade predominar sobre a repetio. Deve-se esperar, portanto, que o lado da vida quotidiana expresso pelos conceitos da ambigidade - mal-entendido, compromisso ou abuso - perca amplamente sua importncia em proveito de seus contrrios, a eleio consciente ou o risco. A atual critica artstica da linguagem, contempornea desta metalinguagem das mquinas que no outra coisa que a linguagem burocratizada da burocracia no poder, ser superada ento por formas superiores de comunicao. A noo presente de texto social decifrvel dever dar origem a novos procedimentos de escrita de tal texto social, seguindo a direo das investigaes atuais de meus companheiros situacionistas sobre o urbanismo unitrio e sobre o esboo de um comportamento experimental. A produo central de um trabalho industrial completamente transformado ser a criao de novas configuraes da vida quotidiana, a criao livre dos acontecimentos. A crtica e a recriao perptuas da totalidade da vida quotidiana, antes de ser efetuada de uma forma natural por todos os homens, deve ser empreendida sob as condies da opresso total, e com o objetivo de arruinar tal opresso. Entretanto, no um movimento cultural de vanguarda que pode cumprir semelhante programa, por maior que sejam suas simpatias revolucionrias. E tampouco pode realiz-lo um partido revolucionrio de molde tradicional, por muito que conceda um lugar primordial crtica da cultura (entendendo este termo como o conjunto de instrumentos artsticos ou

  • conceituais mediante os quais uma sociedade se explica a si mesma, estabelecendo objetivos para a vida). Uma e outra, esta cultura e esta poltica, j esto esgotadas, por isso no de se estranhar que a maior parte das pessoas se sintam indiferentes a elas. A transformao revolucionria da vida quotidiana, que no est reservada a um futuro vago, mas imediatamente posta nossa frente pelo desenvolvimento do capitalismo e seus insustentveis imperativos, no tendo outra alternativa seno a perpetuao da escravido moderna, esta transformao assinalar o fim de toda expresso artstica unilateral e armazenada sob a forma de mercadoria, ao mesmo tempo que o fim de toda poltica especializada. Esta ser a tarefa de uma nova organizao revolucionria, que comear a partir de sua prpria formao. 1961 * A "Imagem" est muitas vezes associada cidade de Epinal,onde se fazia o fabrico de imagens sculos atrs, embora hoje esta locuo familiar exprime quase sempre de um modo pejorativo uma situao ou uma idia simplista ou estereotipada. No entanto, durante o sculo XIX, as "imagens" de Epinal constituram o que certos historiadores chamam o 4 poder, pela sua faculdade de comunicao, de informao e de propaganda. No plano tcnico, a imagem impressa na horizontal por meio de uma prensa vertical chamada "Gutemberg", a partir de um clich gravado numa placa de madeira. Em 1914, comea o declnio de sua produo, com a guerra, a diminuio do analfabetismo e o aparecimento dos media (N. do Rizoma). ** C.N.R.S. (Centre National de la Recherche Scientifique) um centro de pesquisas em tecnologias muito importante na Frana (N. do Rizoma).