Transgressao-SubmissaofemininaemLuciolaeSenhora,DeJosedeAlencar

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Reflexão sobre imagens femininas na literatura.

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    Disporas, Diversidades, Deslocamentos 23 a 26 de agosto de 2010

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    TRANSGRESSO/SUBMISSO FEMININA EM LUCOLA E SENHORA, DE JOS DE ALENCAR

    Greiciellen Rodrigues Moreira1 Dr. Cludia de Jesus Maia 2

    O sculo XIX foi uma poca de grandes transformaes para o Brasil. A chegada e partida da famlia real portuguesa ao Rio de Janeiro, o Dia do fico, a proclamao da Independncia, a abolio da escravatura, e, finalmente, a proclamao da Repblica. No curto espao de cem anos, o Brasil passou de colnia a imprio e deste a repblica. Ainda, a literatura brasileira viveu na ltima metade do sculo o perodo mais rico de at ento. Os oitocentos veem o surgimento, ascenso e consolidao de um gnero at ento indito em terras tupiniquins, o romance.

    Este trabalho, em que se analisam duas obras-primas de um dos maiores escritores desse sculo, consagrado no cnone nacional, no podia iniciar-se sem antes relembrarem-se os supracitados fatos histricos. Para se estudar Jos de Alencar, assim como o Romantismo e seu projeto identitrio, no possvel ignorar o contexto em que se inserem. Conforme assinala Lcia Helena,

    [e]sse , portanto, um trabalho que parte de uma determinada compreenso da literatura como atividade que se encrava no cho da histria e se lana para a vida numa cumplicidade que, se no esquece que a literatura nasce da palavra, acredita que ela tambm no se esgota como um fazer de caracterstica apenas auto-referente.3

    Lucola (1862) e Senhora (1875) integram o conjunto da fico urbana de Alencar, ambos romances que se caracterizam por protagonistas transgressoras, mas que, ao final, tornam-se

    submissas. A fim de se entender o valor identitrio dessa transgresso/submisso dentro da tradio romntica, necessrio que, primeiramente, entenda-se a representao feminina dessas personagens na narrativa e sua relao tanto com o ideal romntico de mulher, quanto com a viso difundida pelos higienistas da poca.

    Comentando sobre o ideal feminino do Romantismo, Ruth Silviano Brando afirma que na literatura de fins do sculo XIX ideal a mulher que funciona como recusa da castrao, que reassegura o narcisismo masculino, que rplica da face da me, mxima figura flica, enquanto

    1 Mestranda na linha de pesquisa "Tradio e Modernidade" do Mestrado em Letras da Universidade Estadual de

    Montes Claros. [email protected]. 2 Doutora em Histria pela Universidade de Braslia e professora adjunta do Departamento de Histria e do Programa

    de Mestrado em Letras/Estudos Literrios da Universidade Estadual de Montes Claros. [email protected]. 3 HELENA, Lcia. A solido tropical: o Brasil de Alencar e da modernidade. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006. p.12.

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    completa com sua criana narcsica4, e acrescenta ainda que o ideal romntico da mulher passiva, mesmo que esse atributo seja conquistado como um ideal de feminilidade, persiste em textos diversos5. Essa mulher abstrata e imaginria, ser submisso que existe para reassegurar o narcisismo masculino, permeia diversos romances romnticos em que o homem sempre visto como heri, ser superior, e a mulher como objeto desejado, recompensa dos feitos heroicos, o que est to bem representado nas figuras de Peri e Ceci em O Guarani, primeiro grande sucesso de Alencar.

    Em Herosmo, o modelo da imaginao, presente no Dicionrio de Mitos Literrios, Philippe Sellier apresenta a relao da mulher com o heri dizendo que muitas vezes ela vista como uma ameaa para a consumao esplendorosa da obra heroica, pelo aconchego amolecedor do ninho: Muitas vezes a mulher no passa, portanto, de um repouso do guerreiro. Este, depois de atravessar junto dela um perodo de delcias que pode ser mais longo ou menos, abandona-a6. Dos sculos XII ao XVII, devido ao amor corts, ressaltou-se a figura da Dame que enviaria ao longe seu suspirante cavaleiro, a fim de que ele provasse seu valor e a recebesse como prmio.

    Desse modo, as mulheres, em sua relao com o heri, so seres passivos, lugar de repouso e prazeres, objeto de desejo, prmio pelos feitos heroicos. Essa clara distino no tratamento de homens e mulheres abordada nos manuais de medicina do sculo XIX. Jurandir Freire Costa diz que para os higienistas do penltimo sculo, a mulher amava mais que o homem. Devia, alm do mais, ser passiva, submissa, coquette, caprichosa, doce, meiga, devotada, etc. O homem devia ser mais seco, racional, autoritrio, altivo, menos amoroso, mais duro, etc7. Para os mdicos oitocentistas,

    [o] processo demonstrativo dessas diferenas era sempre o mesmo. Constatava-se que a mulher era mais frgil fisicamente que o homem. Dessa fragilidade, inferia-se a delicadeza e a debilidade de sua constituio moral, com a ajuda dos esteretipos correntes sobre a personalidade feminina. Procedimento semelhante era usado na descrio da natureza masculina. A fora e o vigor migravam do fsico ao moral, marcando os traos scio-sentimentais da personalidade do homem. O amor, colocado no vrtice de confluncia das caractersticas fsicas e morais, servia de referncia distino entre os sexos.8

    Ainda que essa seja a viso da poca, amplamente difundida pela tradio romntica, percebe-se em Lucola e Senhora o que seria uma insubordinao contra essa tradio. Alencar representa as protagonistas como seres ativos, que recebem o homem amado como prmio por

    4 BRANDO, Ruth Silviano. Mulher ao p da letra: a personagem feminina na literatura. Belo Horizonte: UFMG,

    2006. p. 30. 5 BRANDO, Ruth Silviano. Mulher ao p da letra: a personagem feminina na literatura. Belo Horizonte: UFMG,

    2006. p. 32. 6 SELLIER, Philippe. Herosmo (o modelo da imaginao). In: BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionrio de Mitos

    Literrios. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1998. p. 470. 7 COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1999. p. 237.

    8 COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1999. p. 235.

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    suas atitudes heroicas contra os costumes injustos da sociedade, em defesa de seu amor. Lcia e Aurlia rompem com o modelo de donzela romntica ao assumirem uma conduta transgressora na narrativa. Elas so as detentoras do poder sobre seu homem, seja por t-lo comprado com dinheiro, seja por t-lo enredado em sua complexidade.

    Maria da Glria tornou-se prostituta para salvar sua famlia, que havia sido assolada pela febre amarela. Expulsa de casa pelo pai, morre para o mundo, assume identidade de amiga falecida e torna-se Lcia, o maior objeto de desejo da corte carioca. Apaixona-se por Paulo, mas enquanto prostituta, permanece sua postura transgressora. Ela domina totalmente a narrativa, entrega-se com furor quase masoquista quando deseja, e quando necessrio, a fim de que o verdadeiro amor concretize-se, recusa-se. Astutamente, aprende a sustent-lo sem ofender seus brios masculinos. Ela a detentora do conhecimento mais importante do enredo, o conhecimento de sua prpria histria. Interessante ressaltar a relao existente entre esse saber e a futura submisso da personagem.

    Enquanto Lcia era a nica que conhecia sua histria, sua postura manteve-se transgressora,

    ainda que j tivesse comeado a recusar seu corpo a Paulo, fato importante para sua redeno em Maria da Glria. Todavia, quando conta sua vida a Paulo, nesse momento em que ele tambm passa a ser detentor desse conhecimento, a submisso da personagem tem seu incio definitivo. Ela abandona a vida mundana e o luxo, vai morar em uma casinha modesta com a irm Ana e reassume seu nome de batismo.

    Em Senhora, livro publicado dois anos antes da morte de Alencar, a maturidade literria do romancista evidente. Seu enredo o que possui a construo mais complexa entre os perfis de mulher escritos pelo autor, e a protagonista, assim como Lcia, uma mulher transgressora.

    Aurlia uma moa pobre, que enriquece graas a uma herana inesperada, ento, rica, compra seu marido, ex-noivo que a trocara no passado por mulher mais abastada. Dita desse modo, a narrativa parece frvola e banal e difcil compreender a gravidade da transgresso cometida pela personagem. Isso, no entanto, seria grande equvoco. A transgresso de Aurlia , de certo modo, at mais grave e complexa do que a de Lcia.

    A prostituta uma figura claramente transgressora, no sendo necessrio grande esforo para se compreender a razo. Contudo, Aurlia no se vende, mantm a decncia e o decoro em toda a narrativa e casa-se conforme a sociedade exige. Onde estaria, ento, a transgresso? Diferentemente de Lucola, em Senhora a transgresso no claramente mostrada, excetuando-se o fato de Aurlia ter comprado seu marido, mas os vrios indcios deixados na textura narrativa permitem que se enxergue o que caracteriza tal personagem como transgressora.

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    Aurlia dispe de uma posio especial, rf milionria, ela decide seu futuro e escolhe seu marido. A participao ativa que tem nas negociaes de seu casamento, escolhendo o pretendente e at definindo a quantia do dote, constitui uma transgresso aos costumes da poca, uma vez que, como assinala Tania Quintaneiro, no Brasil, assim como na Europa de cultura latina, o acordo matrimonial ainda estava nas mos do pai da moa e obedecia aos interesses familiares9.

    Segundo Luis Filipe Ribeiro, [o] normal seria que isto dependesse de um pai, pois, afinal, o casamento, nessa poca e nessa classe social, era um negcio entre homens. Em outras sociedades e em tempos diferenciados, segundo a antropologia, cabia tambm aos homens decidir, entre si, a troca de mulheres. Enfim, s mulheres cabe um bem pequeno papel na articulao do casamento. O habitual era um pai a oferecer um dote e, com ele, uma filha e um noivo a aceitar os dois. A noiva s entra na histria depois de selado o contrato e como objeto material da transao.10

    Como se nota, Aurlia passa da categoria de objeto de transao a ser ativo que negocia seu prprio destino. O objeto, neste caso, Fernando Seixas, seu marido, a quem compra por 100 contos de ris. Entretanto, pode-se ingenuamente acreditar que essa liberdade da personagem s possvel devido a sua condio de orfandade. Isso, porm, seria sua condenao e no libertao. rf, o habitual seria que um tutor ou parente tomasse posse de sua fortuna, deixando-a presa a uma situao de submisso mais desoladora do que a das moas cujos pais controlam o destino. graas inteligncia da personagem, que ela consegue gerenciar sua fortuna atravs da figura necessria do tutor.

    Demonstrando conhecimento econmico e jurdico e em posse de uma carta comprometedora em que Lemos tentava alici-la a prostituio, Aurlia consegue fazer com que seu tutor obedea todas suas vontades. ele quem negocia com Fernando no espao pblico, mas sua figura funciona apenas como um fantoche exigido pelos preceitos morais da sociedade, pois Aurlia quem na verdade manipula as linhas que controlam suas aes, j que, como Ribeiro postula, uma mulher nunca poderia ser parte atuante num contrato comercial, principalmente deste tipo. Atuava, clandestinamente e por interposta pessoa, sem abrir mo de todas as decises11.

    A astcia demonstrada por Aurlia no meio encontrado para assumir seu capital um dos fatores que comprovam a assertiva de Ribeiro de que a personagem assume uma posio masculina no romance: Todo o enredo, daqui para a frente, estar marcado pelo fato de Aurlia haver assumido uma posio claramente masculina, na ordem econmica e jurdica, mantendo intocada a 9 QUINTANEIRO, Tania. Retratos de Mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob o olhar de viageiros do sculo XIX.

    Petrpolis: Vozes, 1995. p. 103. 10

    RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginrio em Jos de Alencar e Machado de Assis. Niteri: EDUFF, 1996. p. 152. 11

    RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginrio em Jos de Alencar e Machado de Assis. Niteri: EDUFF, 1996. p. 169.

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    aparncia social12. Partindo-se do pressuposto de que ao homem pertence o domnio do capital e as virtudes da razo, assim como mulher cabem os desgnios da emoo, Alencar assim caracteriza a mulher: o corao, e ainda mais o da mulher que toda ela, representa o caos do mundo moral13. Observe-se como essa afirmao ressoa o pensamento dos manuais mdicos do sculo XIX: Constatava-se que a mulher era mais frgil fisicamente que o homem. Dessa fragilidade, inferia-se a delicadeza e a debilidade de sua constituio moral14. Agora, atente-se para o momento em que Aurlia conversa com Lemos sobre seu casamento:

    Quem observasse Aurlia naquele momento, no deixaria de notar a nova fisionomia que tomara o seu belo semblante e que influa em toda a sua pessoa. Era uma expresso fria, pausada, inflexvel, que jaspeava sua beleza, dando-lhe quase a gelidez da esttua. Mas no lampejo de seus grandes olhos pardos brilhavam as irradiaes da inteligncia. Operava-se nela uma revoluo. O princpio vital da mulher abandonava seu foco natural, o corao, para concentrar-se no crebro, onde residem as faculdades especulativas do homem.15

    Assim, quando Aurlia assume seu capital e faz uso das faculdades da razo, ela passa a ocupar um lugar masculino econmico e juridicamente na narrativa. Todavia, do mesmo modo como ocorreu em Lucola, ao trmino do romance, quando Fernando consegue quitar sua dvida devolvendo todo o dote recebido para Aurlia, a personagem se submete, jogando-se de joelhos aos ps do seu marido e, a partir daquele momento, seu senhor.

    Percebe-se que, ainda que trilhem um percurso transgressor, tanto Lcia quanto Aurlia assumem uma postura submissa em determinado ponto da narrativa. Ressalta-se, entretanto, que isso no objetiva apenas chegar-se ao tpico final feliz romntico, mas possui importante funo simblica. Alencar, ao construir essas personagens transgressoras, que rompem com o esteretipo de mulher ideal da poca, no se insubordina contra a tradio romntica, mas a corrobora, pois a transgresso/submisso dessas personagens insere-se em seu projeto identitrio.

    Como estabelece Eugnia Tavares Martins, Jos de Alencar cumpre o papel de ditador de regras comportamentais que visem ao equilbrio nessa nova sociedade que se quer harmnica e justa, por funcionar como um elo de identidade de uma nao emergente16. Desse modo, a submisso necessria para que se mantenha a ordem do mundo ideal, regido por valores burgueses, criado pelo autor cearense. Ordem, essa, que reflete, e ao mesmo tempo institui valores

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    RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginrio em Jos de Alencar e Machado de Assis. Niteri: EDUFF, 1996. p. 183. 13

    ALENCAR, Jos de. Senhora. So Paulo: Martin Claret, 2008. p. 106. 14

    COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1999. p. 235. 15

    ALENCAR, Jos de. Senhora. 2. ed. So Paulo: Martin Claret, 2008. p. 28. Grifos nossos. 16

    MARTINS, Eugnia Tavares. Iracema: a alegoria da me genti(o)l. Natal, 2007. 211 p. Dissertao. (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007. p. 195.

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    da sociedade brasileira do sculo XIX. Alencar no defende a sociedade de seu tempo tal como ela se apresenta, mas a sociedade como poderia e deveria ser.

    Essa transgresso/submisso vista pelo vis alegrico ganha ainda uma significao maior. Tomando-se a mulher como alegoria de Brasil e o homem, alegoria das naes estrangeiras, essa submisso passaria a ter um carter inconcebivelmente negativo para um pas recm-independente, que busca a constituio de uma identidade prpria. Os autores romnticos tinham o papel de construir a identidade nacional. Sendo assim, tal leitura alegrica seria impossvel, pois incoerente com o projeto identitrio no qual Alencar tanto se engajou. Contudo, tal leitura no s possvel como bastante pertinente, considerando-se a situao do Brasil naquela ltima metade de sculo. Para que se compreenda melhor, faz-se necessrio que se discuta o processo de Independncia do Brasil e as mudanas no pas dele decorridas.

    Primeiramente, vale notar que o significado da palavra Independncia no esteve sempre ligado a uma separao completa e definitiva de Portugal, como assinala Emlia Viotti da Costa:

    Observando-se os textos de 1822 percebe-se que a palavra Independncia nem sempre esteve associada ideia de separao completa da metrpole. Refere-se frequentemente apenas independncia administrativa. Com exceo de uma minoria radical, os elementos mais chegados a D. Pedro pareciam desejar, at o ltimo momento, a monarquia dual. A ideia de Independncia completa e definitiva s se apresentou no ltimo momento, imposta pelos atos recolonizadores das Cortes portuguesas.17

    Como se v pela citao, essa to ufanada Independncia do Brasil sequer iniciou-se com a inteno de total separao da metrpole. E se a inteno inicial no era essa, pode-se pensar que em algum lugar na alma dessa nao incipiente, seus laos com o estrangeiro no tenham sido completamente rompidos. Consequentemente, junto com a to sonhada Independncia no ocorre uma grande mudana no modus operandi da nao. Conforme assertiva de Antonio Carlos Mazzeo, a independncia no alterou em nada a estrutura produtiva e, consequentemente, as relaes sociais de produo. Reproduziram-se as formas polticas metropolitanas18. Certamente, no se desejava uma ligao com Portugal, que nos queria ainda como colnia, mas o modelo de vida dos outros pases da Europa civilizada de modo algum seria mal-visto na mentalidade daqueles que almejavam para o Brasil a mesma prosperidade europeia.

    Para Alencar, o contato com outras naes do mundo no seria nocivo para a constituio da identidade nacional, mas enriquecedor. O que se almejava da Europa civilizada era precisamente esse ideal de civilizao burgus, como se nota pelo prefcio de Sonhos dOuro:

    17 COSTA, Emlia Viotti da. Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995. p. 101. 18 MAZZEO, Antonio Carlos. Burguesia e capitalismo no Brasil. So Paulo: tica, 1988. p. 19.

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    A literatura nacional que outra coisa seno a alma da ptria, que transmigrou para este solo virgem com uma raa ilustre, aqui impregnou-se da seiva americana desta terra que lhe serviu de regao; e cada dia se enriquece ao contato com outros povos e ao influxo da civilizao? (...) A importao contnua de ideias e costumes estranhos, que dia por dia nos trazem todos os povos do mundo, devem por fora de comover uma sociedade nascente, naturalmente inclinada a receber o influxo de mais adiantada civilizao.19

    importante ressaltar que no Brasil escravocrata e latifundirio do sculo XIX, ainda no havia uma classe burguesa claramente estabelecida, mas se ainda no estava consolidada, os vestgios de seu surgimento j eram bem visveis. De acordo com Nelson Werneck Sodr,

    [a] vida urbana se modificava, estava cada vez mais distante daquela fisionomia fixada nas gravuras de Rugendas e Debret. Gabriac, representante francs no Rio, informa que nesse pas de grandes massas de escravos e de imensas propriedades, ao lado dessas simplicidades secundrias, eleva-se, como na Hungria, na Rssia etc., uma classe to rica quanto vaidosa. (...) a poca em que se destaca, na Corte, a rua do Ouvidor, em que se concentra o comrcio francs de luxo, influindo decisivamente na moda feminina.20

    O autor comenta ainda o testemunho do deputado Joaquim Nabuco, que aps quatorze anos de ausncia, regressava ao Rio de Janeiro e se deparava com uma cidade muito diferente da que deixara quando menino. Segundo Sodr,

    [a] verdade que os costumes se transformavam. Nabuco refere-se a uma camada antiga, cerne da classe senhorial, que resistia ainda s transformaes, mantendo os padres tradicionais; mas no se esquece de indicar a mudana, os novos costumes, os valores recentes, entre eles os da atividade comercial.21

    Na busca desse ideal de civilizao no qual a identidade brasileira deveria se fundar, Alencar, ao descrever os costumes da sociedade oitocentista em seus romances urbanos, institui nas narrativas de Lucola e Senhora valores burgueses. O valor do matrimnio, do trabalho e do homem de bem so retratados nos romances de forma positiva. Todavia, para que se discuta o ideal burgus apresentado nos romances, antes necessrio que se conceitue o que seria o homem de bem segundo esse ideal. Rgine Pernoud, falando sobre as origens da burguesia, diz que

    forma-se um tipo de ideal moral, o do homem de bem, cuja regra essencial a moderao que impede o excesso das paixes, seja para bem, seja para mal (na definio de Mnage). um tipo espalhado entre os grandes negociantes mas mais vulgar entre os altos magistrados, juristas ou funcionrios. Pratica o trabalho e a poupana, leva com a sua famlia uma vida ordenada, voluntariamente austera; evita as distraes, mesmo legtimas, e principalmente as distraes desportivas, que abandona nobreza e ao povo.22

    Em Senhora mostra-se evidente o valor do trabalho, da poupana e do carter austero e comedido do homem de bem na revoluo moral que atinge Fernando aps o casamento e sua descoberta como vendido:

    19 ALENCAR, Jos de. Sonhos dOuro. S.l.: Domnio Pblico, 1872. Grifos nossos. 20 SODR, Nelson Werneck. Histria da burguesia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967. p. 82. 21 SODR, Nelson Werneck. Histria da burguesia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967. p. 84. 22 PERNOUD, Rgine. As origens da burguesia. 2. ed. S.l.: Publicaes Europa-Amrica, 1973. p. 110.

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    Grande foi pois a surpresa que produziu a assiduidade de Seixas na repartio. Entrava pontualmente s 9 horas da manh e saa s 3 da tarde; todo esse tempo dedicava-o ao trabalho; apesar das contnuas tentaes dos companheiros, no consumia como costumava outrora a maior parte dele na palestra e no fumatrio. Olha, Seixas, que isto meio de vida e no de morte! Dizia-lhe um camarada repetindo pela vigsima vez esta banalidade. Vivi muitos anos custa do Estado, meu amigo; justo que tambm ele viva um tanto minha custa. Outra mudana notava-se em Seixas. Era a gravidade que sem desvanecer a afabilidade de suas maneiras sempre distintas, imprimia-lhe mais nobreza e elevao. Ainda seus lbios se ornavam de um sorriso frequente; mas esse trazia o reflexo da meditao e no era como dantes um sestro de galanteria. O casamento geralmente considerado como a iniciao do mancebo na realidade da vida. Ele prepara a famlia, a maior e mais sria de todas as responsabilidades. Atualmente esse ato solene tem perdido muito de sua importncia; indivduo h que se casa com a mesma conscincia e serenidade, com que o viajante aposenta-se em uma hospedaria.23

    Veem-se no trecho as caractersticas do homem de bem burgus, a gravidade, a meditao, o trabalho srio. Fernando tambm passou a ser um poupador, uma vez que necessitava juntar a quantia do dote que Aurlia tinha-lhe antecipado, a fim de devolv-la para reaver sua liberdade. Essa grande transformao apenas foi possvel graas instituio burguesa do casamento, que se encontrava desvalorizada, uma vez que se casava como se aposentava em uma hospedaria. Desse modo, depreende-se que a crtica desenvolvida no romance no contra o matrimnio em si, mas contra a banalizao do casamento. O que Alencar pretende , ao mesmo tempo, denunciar a hipocrisia dos interesses envolvidos no contrato matrimonial e resgatar o valor burgus dessa unio entre indivduos de bem.

    Em Lucola, quando Lcia abandona a prostituio e muda-se para uma casa mais simples, ela e Paulo passam a viver uma vida ordenada e austera. O tempo de Paulo, que era quase todo dedicado aos prazeres com a amada e com os amigos, agora deve ser compartilhado com os deveres do trabalho:

    Continuei a visit-las todos os dias, mas ao cair do dia. Fora Lcia quem regulara estas visitas. Tens agora o teu escritrio, e eu preciso trabalhar para viver; alm disso quero ensinar a Ana o pouco que sei. No podemos estar todo o dia juntos. Vem ver-me tarde, hora da ave-maria. Passaremos as noites no jardim, ou passeando. No domingo porm jantars sempre comigo; se no vieres, sei que no terei fome.24

    Interessante notar que em ambas as narrativas, os personagens masculinos passam a assumir uma conduta mais voltada ao ideal do homem de bem burgus durante o processo em que as mulheres transgressoras encaminham-se para a submisso. Sendo assim, s quando o homem encarna o ideal de civilizao burgus que as mulheres se submetem. nesse sentido que, alegoricamente, torna-se positiva a submisso das mulheres aos homens de bem, assim como positivo ao Brasil submeter-se ao padro estrangeiro da Europa civilizada, a fim de se constituir no

    23

    ALENCAR, Jos de. Senhora. 2. ed. So Paulo: Martin Claret, 2008. p. 146-147. Grifos nossos. 24

    ALENCAR, Jos de. Lucola. 5. ed. So Paulo: FTD, 1999. p. 123.

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    uma identidade qualquer, mas uma identidade que remontaria um ideal de prosperidade e civilizao.

    Bibliografia

    ALENCAR, Jos de. Senhora. 2. ed. So Paulo: Martin Claret, 2008.

    ALENCAR, Jos de. Lucola. 5. ed. So Paulo: FTD, 1999.

    ALENCAR, Jos de. Sonhos dOuro. S.l.: Domnio Pblico, 1872.

    BRANDO, Ruth Junqueira Silviano. Mulher ao p da letra: a personagem feminina na literatura. 2. ed. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

    BRUNEL, Pierre (Org.). Dicionrio de Mitos Literrios. Trad. de Carlos Sussekind et al. 2. ed. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1998.

    COSTA, Jurandir Freire. Ordem mdica e norma familiar. Rio de Janeiro: Edies Graal, 1999. COSTA, Emlia Viotti da. Brasil em Perspectiva. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1995.

    HELENA, Lcia. A Solido Tropical. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2006.

    MAZZEO, Antonio Carlos. Burguesia e capitalismo no Brasil. So Paulo: tica, 1988. MARTINS, Eugnia Tavares. Iracema: a alegoria da me genti(o)l. Orientadora: Joselita Bezerra da Silva Lino. Natal, 2007. 211 p. Dissertao. (Mestrado em Letras). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2007.

    PERNOUD, Rgine. As origens da burguesia. 2. ed. S.l.: Publicaes Europa-Amrica, 1973.

    QUINTANEIRO, Tania. Retratos de Mulher: o cotidiano feminino no Brasil sob o olhar de viageiros do sculo XIX. Petrpolis: Vozes, 1995.

    RIBEIRO, Luis Filipe. Mulheres de papel: um estudo do imaginrio em Jos de Alencar e Machado de Assis. Niteri: EDUFF, 1996.

    SODR, Nelson Werneck. Histria da burguesia brasileira. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1967.