Criacao, Hybris e Transgressao Na Mitologia Heroica

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  • 5/10/2018 Criacao, Hybris e Transgressao Na Mitologia Heroica

    CRIA

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    2entanto, de outro, ela configura urna funyao renovadora, quando nao francamenteredentora.

    Iniciaremos nosso estudo sobre a hybris discutindo a respeito dos poderesdivinos que 0 her6i grego possui. A tradicao homerica, que chama os her6is de "semi-deuses", contribuiu para fixar a ideia vaga de que 0her6i e urna especie de deus. Mas aochamar os her6is de "semi-deuses", os poemas de Romero entendem que 0 her6i seja"semelhante aos deuses" em poder, coragem e virtudes, mas nao que seja igual a urndeus. Pois 0 her6i e, definitivamente, urn mortal, em oposicao aos deuses que saoimortais e vivem em etema beatitude.

    Todo her6i grego possui ascendencia divina - em algum ponto da arvoregeneal6gica do her6i existira urn deus-; mas isto nao 0 toma urn deus. Como mortal, 0her6i sera vulneravel, e vai percorrer 0 destino hurnano de erro, queda e sofrimento. Aascendencia divina do her6i vai assim se manifestar como uma especie de "faca de doisgumes": 0 her6i vai se aproximar demais dos deuses. Esta proximidade entrara emcontradicao com 0 seu destino hurnano e mortal, gerando certa duplicidade em seucarater, duplicidade esta que 0 tornara propenso ao descomedimento.

    Situando-se a meio caminho entre 0 divino e 0 hurnano, 0 her6i vai possuirurna personalidade ambigua, contradit6ria, por vezes ate marcadamente dissociada. Estapersonalidade contradit6ria vai levar 0 her6i a experimentar aventuras pontuadas deg16rias e de falhas, de vit6rias e fracassos. Ap6s alcancar vitorias sobre-hurnanas econquistas memoraveis, ele tambem esta condenado a falhar em algum ponto. Toda acarreira do her6i e ameacada por situacoes limitrofes e criticas. 0 her6i sera urn homempoderoso e virtuoso, mas tambem essencialmente voltado para 0descomedimento e paraa transgressao dos limites impostos aos mortais pelos deuses.

    A hybris vern a ser este processo de transgressao dos limites do homem - 0metron -,de que resulta uma perigosa proximidade entre 0 deus e 0 homem, e quemuitas vezes - nem sempre - atrai a colera divina. A palavra grega hybris literalmentesignifica injuria, insulto, blasfemia, ofens a 2. Mas, segundo Brandao (1987), 0 usodesta palavra na mitologia grega em geral vai designar urn ato de violencia fisica oumoral realizado pelo her6i, relacionado ao orgulho excessivo e Iiindole insolente de urnhomem dotado de poderes extraordinarios demais para a sua essencia hurnana: "Dotadode arete, mais perto dos deuses do que dos homens, 0 heroi esta sempre numa situaciio

    2 Diciondria Grego-Portugues, 1997, p. 749.

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    3limite, e a arete, a sua superioridade e excelencia, leva-o facilmente a transgredir oslimites impostos pelo metron, suscitando-lhe 0 orgulho desmedido e a insolencia, ahybris" (Brandao, 1987, p. 67)

    Por conta da dissociacao entre seu lado divino e seu lado hurnano, 0 her6ivai se tomar urna figura complexa e problematica. 0 heroi pode, por exemplo,temporariamente ser dominado por excessos de raiva ou ser possuido por paixoesviolentas, chegando ate a perder totalmente a lucidez. Muitos herois sao francamenteviolentos, outros sao malditos, ou descontrolados, ou desajustados. Aquiles, Heracles eEdipo sao exemplos de grandes herois que permanecem envoltos nas sombras damaldicao, da violencia e da transgressao em diversos niveis,

    Este e 0 processo por excelencia da hybris: 0 her6i possui urn poder que 0aproxima demais dos deuses, e acredita ter 0 direito de realizar plenamente toda ademanda de sua forca divina. Porem, nas maos hurnanas do heroi, esta forca se tomamuitas vezes incontrolavel, e as consequencias podem ser desastrosas e ate criminosas.Todos os herois, que sao normalmente generosos, benevolentes e bern intencionados,vao se deixar eventualmente dominar por excessos afetivos e por paixoes irracionais.

    Urn exemplo fascinante de hybris que se manifesta como urn excesso depoder incontrolavel e apresentado no mito do her6i Perseu, tal como este e contado porApolodoro-'. Ap6s ter matado a terrivel G6rgona, cujo olhar tern 0poder petrificador damorte, Perseu levou consigo a cabeca da monstra e foi percorrer 0mundo em busca deurna esposa. Apaixonado pela princesa Andromeda, 0her6i matou outro monstro - destavez urna serpente marinha enviada pelo deus Poseidon - para ter 0 direito de se casarcom a jovem. Porem foi traido pelo pai de Andromeda, 0 rei Cefeu, que a ofereceu emcasamento ao irmao dele, Fineu. Furioso com esta traicao, Perseu lutou contra Fineu eseu exercito usando a cabeca da G6rgona. Assim 0heroi transformou mais de duzentaspessoas em pedra, inclusive 0rival Fineu e 0 futuro sogro, Cefeu.

    o carater ambivalente e descomedido do heroi grego foi preservado, demodo muito significativo, nos herois ocidentais contemporaneos. Como os her6isgregos, 0 heroi contemporaneo sera jogado em situacoes limites e se vera sempredividido entre urn objetivo inequivocamente benefice e os meios duvidosos, ou atemesmo nefastos, de alcancar este objetivo. Herois como 0Batman, os X-Men, 0 Super-Homem, 0 Homem-Aranha ou 0 Jack Bauer do seriado televisivo "24 Horas" estao3 Apolodoro, TheLibrary of Greek Mythology, , Livro II, 2-2, 1997.

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    permanentemente imersos em duvidas existenciais, em estados de culpa e melancolia.Pois eles sabem que, para alcancar seus her6icos objetivos, eles terao que passar porcima das leis e ate mesmo de seus mais caros valores e amigos. Eles acabam realizandoseus objetivos, mas nao sem deixar atras de si urn rastro de excessiva destruicao,

    Junito Brandao chama de complexio oppositorum ao conjunto de aspectoscontradit6rios que envolve a vida e a personalidade do her6i pelo fato de ele ser meiohomem, meio deus. 0 autor nos apresenta urna bela reflexao sobre esta ambiguidadefundamental do her6i:

    "Observando-a mais de perto (a personagem heroica), nota-se que a belezae a bravura de um Aquiles podem ser empanadas fisica e moralmente por caracteresmonstruosos. (...) 0 heroi parece sempre estar sujeito a violencia sanguinaria, aloucura, ao ardil, ao furto, a astucia criminosa, ao sacrilegio, ao adulterio, ao incesto;em resumo, a uma continua transgressiio do metron, vale dizer, dos limites impostospelos deuses aos seres mortais (...). 0 que se deseja acentuar e a ambivalencia destacriatura singular. Suas inumeras qualidades e services extraordindrios em favor dacomunidade, mas tambem suas fraudes, roubos, crimes, violencias e monstruosidadesniio se aplicam a este ou aquele tipo de heroi, mas, em maior ou menor escala, seaplica ao todo deste vasto complexio oppositorum que faz parte integrante da vivenciaheroica". (Brandao, op. cit., p. 53)

    o carater contradit6rio do her6i se manifesta no mito em VaTIOS niveis e dediversas maneiras, levando-o a transgredir os limites do homem. Porem aqui chamamosa atencao para urn primeiro aspecto ambivalente da hybris: se 0 her6i e criminoso ouenlouquecido, ele nao deixa de possuir as mais elevadas virtudes, ele nao deixa de serurn homem moral e fisicamente superior ao comurn dos mortais. Apesar da hybris, oujustamente por causa dela, ele acaba realizando sua missao her6ica e trazendobeneficios para a sua comunidade.

    Urn exemplo interessante de hybris se encontra no mito de Heracles talcomo este e narrado por Apolodoro+, Este mito esclarece como a hybris naocompromete a elevada moral do her6i, e se torna, ela mesma, a pr6pria razao de ser dasfacanhas her6icas. Heracles, ja urn tanto descomedido desde nenem por ser filho deZeus, e perseguido pela sombra de a~oes violentas por quase todo 0 seu percurso de

    4 Apolodoro, op. Cit., Livro II, 5-1. Sobre 0 mito de Heracles, ver tambem Brandiio, op. cit., cap. "Heracles e os Doze Trabalhos", p. 89.

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    aventuras. Nao podemos aqui relatar todas as imimeras transgressoes realizadas pelofilho de Alcmena. Vamos lembrar apenas urn de seus mais series ataques de hybris. 0her6i atrai 0 6dio da ciurnenta deusa Hera, esposa legitima de Zeus. Esta deusachatissima e poderosa, para punir 0her6i, urn dia fez com que Heracles fosse possuidopor urn furor violento, urn verdadeiro ataque de loucura assassina - a lyssa. 0 pobreher6i acaba matando involuntariamente sua esposa Megara e seus filhos pequenosquando, por ocasiao de urn sacrificio, os confunde com as vitimas animais.

    Quando volta a si, Heracles se desespera. Ele vai ate 0 Oraculo de Delfosem busca de urna purificacao para seu horroroso crime. A Pithia - a sacerdotisa deApolo que responde as consultas no templo de Delfos - responde que ele deve realizardoze trabalhos a service do rei de Tirinto, Euristeu, para se purificar. Eis as palavras daPithia segundo Apolodoro: "Ela (a Pithia) disse a ele que se estabelecesse em Tirinto aservice do rei Euristeu por doze anos, e que cumprisse os doze trabalhos que the fossemimpostos; e en tao, disse ela, depois de realizados os trabalhos, ele adquiriria fama e setornaria imortal. "5

    Heracles sofre muito para executar estes trabalhos, que envolveram 0 her6iem urn percurso de intensa humilhacao e de contato com as sombras e as impurezasmais nefastas. Mas as palavras da Pithia, segundo Apolodoro, sao significativas parapercebermos que a hybris do her6i, se por urn lado gerou urna necessidade de punicao,por outro lado veio a confirmar a sua elevacao espiritual e suas virtudes morais. Maisainda: a hybris de Heracles cria urn percurso de redencao justamente porque houve 0erro. 0 her6i vai se tomar imortal ap6s a sua punicao,

    o crime toma Heracles impuro, porem esta impureza nao impede a suadignificacao, nem bloqueia 0 seu acesso ao Olimpo. Pelo contrario, a hybris abrecaminho para a eleicao divina. 0 descomedimento do her6i gera urna necessidade depunicao que se transforma, automaticamente, em urna condicao de redencao, E toda acriatividade que 0 her6i disponibiliza para os homens atraves de seus trabalhos seorigina, entao, deste estado de erro inicial.

    Uma observacao se faz necessaria agora. 0 fato de a deusa Hera ter enviadoa lyssa para 0 her6i nao atenua a impureza do crime de Heracles. Muitos her6is agem,para 0 bem ou para 0 mal, por conta de urna interferencia direta dos deuses em suasvidas. Muitas vezes 0her6i vai incorrer em hybris por influencia ou inspiracao de algum

    5 Apolodoro, op. Cit. , Livro II, 5-12.

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    6deus. 0 deus age, no mito, como urn duplo do heroi, Existe sempre urn deus por tras doheroi, ora protegendo-o, ora tornando a sua vida urn inferno.

    o "convenio" entre 0heroi e 0deus se relaciona, por urn lado, it ausencia deurn conceito de subjetividade e de arbitrio individual na cultura grega arcaica, tema queja foi fartamente discutido por Dodds (1984), por Snell (2001) e por Fernandes (2000).Por outro lado, a onipresenca do deus ao lado do heroi se relaciona it etica aristocraticada epoca homeric a e arcaica. Os deuses sao os ancestrais e as entidades tutelares deimportantes familias reais. Assim, a parceria entre 0deus e 0heroi encontra fundamentonurna estrutura social que justifica a realeza pela sua relacao com 0 divino. Nasociedade grega, 0heroi e eleito pelos deuses porque ele sera urn rei ou 0 senhor de urnaregiao. E ele sera rei ou senhor porque e 0 representante de urn poder divino no mundohurnano. 0 heroi traz para os homens urn numen divino por sua posicao social.

    A parceria entre deuses e homens no plano das acces do heroi revela que 0problema da hybris nao e, realmente, de facil resolucao. Se os proprios deuses sao,muitas vezes, a causa direta da transgressao do heroi, fica claro que a hybris nao pode,absolutamente, ser compreendida dentro de padroes redutores que a definem como urnpecado ou urna deformacao no carater heroico.

    A questao se complica ainda mais se lembrarmos de outro aspectoambivalente da hybris: muitas vezes 0 heroi transgride limites porque urn deus desejapuni-lo, como e 0 caso de Heracles; porem, muitas vezes, 0heroi e desmedido em suasa~oes com a ajuda de algum deus que deseja protege-lo. Neste caso, a hybris nao apenase inspirada, mas e tambem justificada pelo deus. Quando urn deus deseja destacar 0valor de urn heroi, ele pode "ajuda-lo" a cometer urna hybris. Pois 0codigo aristocraticodo mundo homerico confere ao heroi 0 direito a urn certo excesso em suas conquistas evmgancas,

    Vejamos urn exemplo. Todos sabem que 0massacre dos pretendentes peloheroi Odisseus, no canto XXII da Odisseia, de Romero, e urn dos mais sanguinariosquadros da mitologia grega. A vinganca de Odisseus contra os pretendentes que lhequeriam roubar 0 trono se apresenta, para os desavisados leitores contemporaneos,como urna das mais covardes e transgressoras atuacoes heroicas, Pois Odisseus mataseus rivais trancando-os no salao como ovelhas prontas para 0 abate, deixando-os semarmas e sem chances de luta. Mesmo para 0mundo homerico esta cena configura urnahybris: Romero destaca a violencia exagerada da matanca, que gerou urna impureza aponto de Odisseus ter que se purificar e compensar a morte de tantos homens.

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    Porem urn fato nos chama a atencao: sao os proprios deuses Atena e Zeusque ajudam Odisseus na matanca e justificam 0 massacre. Antes da luta, quandoOdisseus vai vergar 0 famoso arco que the outorgara a vitoria retumbante, por urnmomenta ele teme, sem saber se os deuses estariam do seu lado. Entao 0 proprio Zeustroveja alto e assustadoramente, satisfeito, mostrando ao heroi que ele, 0 deus dosdeuses, aprova totalmente a carnificina que Odisseus esta prestes a realizarv,

    Em seguida, no canto XXII, a matanca comeca, No meio do sangue e daconfusao, Odisseus vacila, com medo da dura ameaca de urn dos pretendentes, Agelau,que vern lembrar ao heroi os riscos do medonho crime que ele quer realizar. Diante daincerteza de Odisseus, a deusa Atena, que esta do seu lado disfarcada de Mentor, gritapara 0heroi que ele sera urn covarde se nao curnprir a sua vinganca, Entao 0poema nosesclarece que Atena apoiava Odisseus para honrar 0 nobre heroi e fazer justica:"Interessava-lhe provar 0 valor e a forca de Odisseus e de seu esplendente jilho".iOdisseia, XXII, 224-238).

    A violencia e legitima para 0 guerreiro nobre. Todo heroi, se possuirascendencia divina, ou se possuir urn reino e tesouros, detem incontestavelmente urndireito sagrado ao excesso, it vinganca, it conquista e it transgressao de limites em casosextremos - quando 0 seu reino, ou a sua honra, estao em jogo. 0 poder do heroiprovem de urn "direito divino" outorgado pelos deuses. Portanto, no episodic domassacre dos pretendentes, 0 crime cometido por Odisseus e imediatamente legitimadono dominio da vontade divina, para que a justica arcaica, privada e familiar, a Themis,seja realizada.

    A hybris se manifesta como urna intimidade criada entre 0 deus e 0homem.o heroi cai em hybris porque ele se faz portador de urn numen. 0 heroi vern canalizar,para os homens, urna energia divina. Como e que urn homem com esta perigosa e dificilmissao pode nao incorrer, de vez em quando, na desmedida? Odisseus em hybris ecomparado a urna forca da natureza. Ele esta impuro, envolto em miasmas. Mas estaimpureza the confere urna especie de sacralidade. Ele se toma quase divino. Por isso asua transgressao nao vai gerar a necessidade de punicao, embora exija urna purificacao eurna compensacao, Odisseus tera que se purificar com fogo e enxofre, e sera obrigado apagar caros presentes aos pais dos pretendentes mortos:

    6 Homero, Odisseia, XXI, 413-415.

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    "A ama encontrou Odisseus cercado de corpos. 0 guerreiro, sujo desangue, parecia urn ledo que acabara de devorar urn bezerro, com 0 peito e asmandibulas rubras. Apavora a visdo de uma fera ensangiientada. (..) Foi entdo queOdisseus dirigiu-se a Euricleia: 'Quero que me tragasfogo e enxofre, remedio para osmiasmas. (..) Odisseus purificou tudo sem omissiies: a sala, a casa e 0 patio. "(Odisseia, XXII, 401-405 /480-494).

    Como vimos pelo exemplo acima, ha urna estreita relacao entre a hybris e acrete - a excelencia do her6i grego, a virtude maxima do guerreiro aristocrata. Pois 0her6i vern ao mundo com duas virtudes "naturais", dons divinos que os mortais comunsnao possuem: a arete, a superioridade em relacao aos outros homens, e a time, ahonorabilidade e 0 orgulho pessoais. Estes dons conferem ao her6i virtudes quasesobrenaturais, pois ele descende de deuses ou de ancestrais poderosos. Por outro lado,estes dons sao fontes constantes de transgressoes e de excessos de todos os tipos.

    A arete do her6i marca a proximidade entre deuses e homens. Se estademasiada proximidade e perigosa, no entanto ela tambem se manifesta como urnabencao, Como vimos no exemplo de Odisseus, a hybris ocorre porque 0homem entrouem conexao com poderes divinos. Por isso ele perde 0 controle sobre si mesmo, ja queentrou em contato com forcas devastadoras, misteriosas e nurninosas. A hybris eresultado de urna identificacao temporaria entre homens e deuses. Se esta identificacaotraz impurezas, ela tambem se torna urna fonte de renovacao e de criatividade pelapossibilidade de transferencia de urn poder divino para 0mundo hurnano.

    Gracas a hybris de Odisseus, urna situacao de caos foi restaurada. AOdisseia e a representacao de urn dihrvio que marca 0 final dos tempos. A obra deRomero simboliza a morte iniciatica de urna civilizacao e de urn homem afastado desuas fontes afetivas. 0 retorno a Itaca representa, entao, a criacao de urna nova era, 0retorno a urn estado de fartura primordial. E a hybris de Odisseus curnpre a importantefuncao de detonar urna imagem de fim e de recomeco,

    No canto XVIII da lliada Romero nos oferece urn belo exemplo de hybrisassociada a arete de Aquiles. Este canto des c reve como Aquiles, mesmo totalmentedesarmado - as suas armas foram roubadas pelo inimigo, Heitor -, e capaz de matar dozetroianos apenas pelo fato de surgir, com sua figura e sua voz magnificas, diante dasfileiras inimigas:

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    "Da cabeca de Aquiles, assim, ao ceu etereo subia alta radidncia (..)Estatico, bramiu; e em resposta urrou Palas Atena. Tumultuam as hostes troianas!Como 0 nitido som da trompa clarinante de inimigos que cercam uma urbe, assim ecoaa voz do Edcide, brdnzeo-clarissima. Ouvindo-a, 0coraciio dos troicos se enturvou (..)tres vezes, por sobre 0fosso, alta voz, 0 Peleide gritou; tres vezes os troicos e aliadosretremeram. Doze, dos melhores, das proprias lancas, sobre os carros, pereceram. "(Iliada, XVIII, 213-229)

    A citacao de Homero revela urn aspecto significativo da figura de Aquiles: 0heroi e, de per si, urna bomba potencial, ele e urna hybris viva, urna transgressaoambulante. Ele so precisa aparecer e gritar para matar doze dos melhores troianos. E adeusa Atena esta ao lado dele, ''urrando'', dando forca a toda esta desmedida, comovimos na citacao, Com tanto poder, Aquiles vern a ser 0 exemplo maximo de arete. Noentanto, toda esta "bencao" pode se transformar, a qualquer momento, em maldicao etransgressao, Pois 0"Peleide" incorrera diversas vezes em hybris, como todos sabem.

    No canto XXII tambem da Iliada, Aquiles mata seu inimigo, 0heroi troianoHeitor, apos urna luta admiravel descrita de forma dramatica por Homero. Depois davitoria, Aquiles nao devolve 0 cadaver do pobre Heitor it sua familia, para que fossesepultado com as honras devidas a urn heroi. 0 Peleide arrasta 0 corpo do troiano emvolta do nimulo de seu amigo Patroclo, amarrando-o ao eixo de seu carro. Aposdespedacar desta forma cruel 0 cadaver de Heitor, Aquiles 0 conserva em seuacampamento para que 0 corpo permanecesse insepulto e apodrecesse. Terrivel destinopara urn heroi, ter 0 corpo bela e jovem decomposto e comido pelos caes! Trata- se deurna das piores ofensas aos deuses que se pode imaginar.

    Porem, para espanto de todos os leitores contemporaneos da lliada, osdeuses nao punem Aquiles. Esta hybris de Aquiles e "compreensivel", embora nao sejustifique como a hybris de Odisseus. Ela nao atrai a colera dos deuses, como seria deesperar. Os olimpicos sabem que, de certa forma, 0 heroi tinha direito a esta vingancaporque ele e 0protegido de Atena, ele e 0 filho da deusa Tetis, ele e 0herdeiro do tronoda cidade de FHa. Todos os deuses ficam tristes e preocupados com 0 cadaver deHeitor. Mas 0maximo que Zeus faz e pedir ao deus Hermes para descer dos ceus eresolver a situacao. Hermes e 0 deus que abre as vias e transpoe os portais. Ele conduz,sem ninguem ver, 0pai de Heitor, 0 velho rei de Troia, Priamo, ate 0 acampamento deAquiles. Desta forma, 0rei troiano consegue convencer Aquiles a devolver 0cadaver doseu querido filho.

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    De novo, aqui, percebe-se que a hybris de Aquiles cria urn cenario de crise ede impureza que engendra urna necessidade de compensacao e de purificacao, mas naoexatamente de punicao. E como se a hybris fosse necessaria para ativar a funcaosimb6lica da katharsis - a purificacao. Na Iliada, ap6s a cena da devolucao do cadaverde Heitor aos pais, simbolos de purificacao e de renovacao se seguem ao caosinstaurado. 0 corpo de Heitor e enterrado com honras, e 0 fogo da pira funeraria seergue redimindo toda a transgressao anterior.

    Augras (1987)7 pode nos ajudar a ampliar a nossa reflexao sobre a hybris.Discutindo as respeito da dinamica dos espacos sagrados no Candornble, a autora fazurna associacao entre transgressao e expiacao no plano do imaginario religioso. Espacosinterditados sao erguidos para serem transpostos. A transgressao e urn comportamentoesperavel e eficaz, e nao urn erro casual. Ela existe para que 0homem possa sofrer urnaexpiacao e urna reparacao e, assim, aproximar-se mais e mais da divindade. Acomunicacao entre deuses e homens so pode ser mantida segundo a dialetica entretransgressao e reparacao, Somente atraves do excesso e da transgressao 0 homem sedeixa "invadir" pelo deus e se toma intimo de urna forca sagrada.

    "A transgressiio se afigura indispensdvel por prom over, necessariamente, areparacdo. Exu, 0 grande cobrador das faltas, e tambem 0 grande motivador dastransgressiies. Na economia do sistema, a reparaciio e sempre oferenda. E dareparaciio e da oferenda que se alimentam os deuses. Contribui para a distribuiciio daforca sagrada e estabelece novosfluxos de comunicacdo." (Augras, 1987, p. 120).

    A transgressao do her6i e , pois, urn movimento tipico do sagrado. Atransgressao, com toda a impureza que ela suscita, vai ativar a sensacao do erro, e esta,por sua vez, motiva a necessidade de catarse e de redencao. 0 ceme da experiencia dosagrado, em todas as religioes, se baseia neste movimento de transgressao, reparacao,redencao, Este circuito permite ao homem entrar em contato com forcas nurninosas etraze-las - nao sem riscos e sofrimento - para 0 beneficio dos homens. Em nenhurntexto religioso conhecido, a redencao do homem pode existir sem que haja antes atransgressao,

    7 Augras, M. 1987. "Quizilas e Preceitos- Transgressao, Reparacao e Organizacao Dinamica do Mundo".

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    Urn dos mais claros exemplos de certa leitura redutora da hybris heroicaocorre com 0 mais incompreendido dos herois gregos, Edipo. Ao matar Laio - porlegitima defesa, e sem saber que se tratava de seu pai - em urn acesso de furia descabidanurna encruzilhada, Edipo de fato comete urna terrivel hybris8 . E na cena da tragedia deSofocles em que 0heroi se defronta com Tiresias ele incorre de novo em hybris: Edipose comporta de forma grosseira e agressiva com 0velho profeta cego, que 0 acusa de sero assassino de Laio. Edipo, orgulhoso e nervoso, de inicio se recusa a enxergar averdade. Cego para 0 seu proprio estado de erro, ele projeta furiosamente em Tiresias asombra de seus males. Mas aos poucos Edipo vai desvelando a verdade, e nestepercurso demonstra toda a sua lucidez e 0 seu carater moralmente elevado.

    Parricida e incestuoso, Edipo carrega 0 fardo negro da maldicao familiar,que 0 empurra, de forma cega e involuntaria'', para a transgressao de limites. Noentanto, por duas vezes 0heroi salvou a cidade de Tebas: quando decifrou 0 enigma daEsfinge devoradora de jovens, e quando aceitou ser 0 seu proprio juiz e algoz,investigando sem medo a verdade sobre si mesmo e infringindo em si mesmo a punicaopor crimes absolutamente involuntarios, Maldito e bendito ao mesmo tempo, inocente eculpado, Edipo vai cair em hybris e cometer crimes terriveis; mas tambem vai libertar 0seu povo da monstruosa Esfinge, vai ser urn excelente rei e vai purificar a peste deTebas com a sua coragem e 0 seu auto-sacrificio.

    o mito de Edipo vern sendo contaminado por visoes redutoras que acabampor apagar toda a sua forca heroica, Neste sentido, 0 heroi se toma urn exemplo decegueira, de neurose e de deformacao psiquica, Mas aquele que leu com cuidado atragedia de Sofocles nao sera contaminado por tal visao. Quem acompanhou os passosresolutos de Edipo em busca da verdade sabe que ele nao e , absolutamente, urn heroicom desvios de carater ou com anomalias animicas,

    Edipo foi, como todos os herois, colocado diante de urna situacao limiteinsuportavel, E nas situacoes limites 0heroi cai em hybris; mas e justamente a hybris deEdipo que 0 levou ao autoconhecimento. Sem a hybris, Edipo nao teria acesso a urnaforca sobre-hurnana que the conferiu coragem para desvelar a sombra que se ocultavadentro dele mesmo. Portanto, apesar de ser urn parricida e urn incestuoso maldito, Edipoe urn heroi de carater e dignidade Impar, urn modelo hurnano de sofrimento e lucidez.

    8SOfoc1es , Edipo-Rei, 1990.9 Grifo n0880.

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    A hybris se manifesta como urn motor ambiguo, que pode levar 0 heroitanto a urn destino tragico de sofrimento e morte, como tambem- e por vezes ao mesmotempo- a vitoria e ao auto-conhecimento. Neste sentido, a hybris consiste nurna falhahurnana que se manifesta ora como descomedimento destrutivo, ora como audacia ecoragem criativas. Alguns herois, quando possuidos pela hybris, sao capazes de rompervelhos tabus e preconceitos, renovando assim uma tradicao cultural esclerosada.

    Para finalizar nossa reflexao, cabe aqui urna digressao teorica que pode nosajudar a compreender a hybris em toda a sua duplicidade. Traremos a tona, entao, 0estudo de Vemant a respeito da ambivalencia dos conceitos de pureza e de impureza nareligiao e na mitologia gregal". Segundo Vemant, no espaco do mito e da religiao, 0sagrado possui duas categorias intercambiaveis: 0puro e 0 impuro.

    E impuro, no sentido grego, tudo aquilo que saiu da esfera do profano epenetrou na esfera do sagrado. Por isso 0 conceito de impureza, na religiao grega, nao seencaixa nos padroes moralistas cristaos, que definiriam 0 miasma como urn estado depecado e de dominio do mal. Na religiao grega, todo estado de anomalia, excesso edesvio do padrao configura urn estado de impureza e urna aproximacao do sagrado. 0puro e 0 impuro, entao, nao traduzem realidades opostas, mas complementares, pois 0imaginario mitico e religioso funciona pela logica da harmonia dos opostos, e nao pelalogica das antiteses.

    o grego considera urn miasma tudo aquilo 0 que se define como urn desviomars ou menos grave da vida normal. Uma impureza decorre de urna inesperadacomunicacao entre duas realidades que deveriam permanecer bem distintas, adosdeuses e ados homens. E quando ocorre esta subita ligacao entre deuses e homens,tomam-se imediatamente difusos e cambiaveis os limites entre 0puro e 0 impuro.

    "Ha, ao lado do sagrado essencialmente puro, um sagrado radicalmenteimpuro. Alias, niio ha deuses do sagrado puro, e outros do sagrado impuro. Os mesmosdeuses, segundo, as circunstdncias e os lugares, reinam sobre as maculas ou sobre asimpurezas (...) E 0mesmo Apolo quem cura e quem causa a doenca, quem purifica eque macula. Esse duplo aspecto (...) traduz a presenca, no divino, de duas qualidadesopostas, experimentadas como complementares ". (Vemant, 1999, p. 110).

    10 Vemant, 1999.

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    A partir da reflexao de Vernant podemos compreender que a hybris doher6i, tal como ocorreu com Edipo, e , ao mesmo tempo, a raiz de sua impureza e de suasacralidade. A cegueira de Edipo e a manifestacao de urna macula, ja que foi 0 fruto deurna punicao; mas tambem e urna forca religiosa que coloca 0 heroi acima dos outroshomens e 0qualifica com poderes extraordinarios: Edipo, ap6s ficar cego e ser expulsode Tebas, adquiriu 0poder de purificar 0 solo por onde ele passa e de tornar este soloinviolavel frente a qualquer inimigo.U

    o homem impuro vive em urn estado de desvio e de liminaridade. Mas noespaco mitico-religioso, 0 desvio e a liminaridade pertencem ao divino. Somente urnapessoa que conheceu os excessos pode voltar a viver nos limites hurnanos de formacriativa, e nao mais de forma mesquinha e estreita. Somente aqueles que tocaram asfronteiras terriveis do divino podem optar pelo verdadeiro retorno ao hurnano.

    A hybris e urna transgressao da norma, urna transposicao do cotidiano, urndesvio dos padroes culturais e individuais. Porem a verdadeira criacao so pode existirquando algo e quebrado, quando urn limite e superado. Nao existe criacao semtransgressao, Neste sentido, a hybris do heroi sempre traz urna mudanca de padrao naconsciencia individual ou coletiva.

    Nos mitos de criacao, nada de novo pode surgir se nao vier acompanhado deurna hybris. No mito de criacao grego, a Teogonia, de Hesiodo, os deuses s6 podemnascer e evoluir apos a hybris de Cronos ao castrar 0 pai.12 No mito do Genesis, ahybris de Adao e Eva resultou na sua expulsao do paraiso; porem 0homem adquiriu urnconhecimento divino que possibilitou a sua emancipacao em relacao a deus. Gracas ithybris, 0 homem adfunico saiu de urn estado de inconsciencia animal, teve acesso itconsciencia e aprendeu a ser livre: "A mulher, venda que 0 fruto da arvore era bompara comer, e mui apropriado para abrir a inteligencia, tomou dele, comeu, e 0ofereceu ao marido, que 0 comeu igualmente. Entiio seus olhos se abriram."(Genesis, 3 - 6)

    Todo poder de transformacao envolve urna paixao descomedida. 0autoconhecimento reside la onde 0 sujeito se perde de si mesmo, transborda a suahurnanidade e toea no numen dos arquetipos, transpondo assim os portais e renovandoos modelos de existencia,11 S6foc1es, Edipo em Colono, 1990.12 Hesiodo, Teogonia, 172-182.

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