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1
ELIANA DA SILVA ARAUJO
TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS HUMANOS, E SEUS LIMITES TICO-JURDICOS EM DEFESA DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
MESTRADO EM DIREITO
UNIFIEO CENTRO UNIVERSITRIO FIEO
Osasco
2006
2
ELIANA DA SILVA ARAUJO
TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS HUMANOS, E SEUS LIMITES TICO-JURDICOS EM DEFESA DA
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Dissertao apresentada banca examinadora do Centro Universitrio FIEO, para obteno do ttulo de mestre em Direito, tendo como rea de concentrao Positivao e Concretizao Jurdica dos Direitos Humanos, dentro do projeto A Tutela da Dignidade da Pessoa Humana perante a Ordem Pblica, Social e Econmica, inserido na linha de pesquisa Direitos Fundamentais em sua Dimenso Material, sob orientao do Professor Doutor Eduardo Carlos Bianca Bittar.
UNIFIEO CENTRO UNIVERSITRIO FIEO
Osasco
2006
3
Dedico este trabalho ao meu orientador, o magnfico
mestre Doutor Eduardo Carlos B ianca B ittar, por seu
grande saber jurdico, pela intensa dedicao ao Direito e
compromisso com a Justia.
AGRADECIMENTOS
4
Agradeo a Deus pela oportunidade de conquistar mais esse ideal.
minha irm Nice pela riqussima sensibilidade, e incentivo.
minha me, expresso de coragem e abnegao.
Ao Leonardo e Nia pessoas que amo.
Presto ainda, meus agradecimentos especiais ao
ilustre mestre Doutor Domingos Svio Zainaghi pelo
incentivo e convivncia to enrequicedora.
5
6
Banca Examinadora:
_______________________
________________________
_______________________
7
RESUMO
Esta dissertao tem por finalidade examinar a importncia dos transplantes de rgos e tecidos humanos na atualidade, e demonstrar sua relevncia como mtodo cirrgico indispensvel a salvar vidas.
Nos ltimos tempos o milagre dos transplantes pode ser considerado como um dos avanos mais considerveis da medicina, porm, este tema sempre provocou inmeros questionamentos tico-jurdicos, perdurando at hoje.
Pode-se afirmar que atualmente os transplantes no so apenas curiosidade cientfica, nem mtodo isolado. Consistem, na maior parte do mundo, numa rotina cirrgica que salva milhares de vidas. Os transplantes tm como caracterstica nica, sendo este o seu maior diferencial, no tocante a outros mtodos cirrgicos, o fato de necessitar da existncia de rgos e tecidos provenientes de doadores vivos ou mortos.
Quando os tratamentos mdico-cirrgicos convencionais j no so mais eficazes para atender aos casos de doenas que ocasionem falncia completa de um rgo ou tecido, h como ultimo recurso o emprego do transplante. Entretanto, persiste a questo que os transplantes necessitam de doadores.
O emprego desta teraputica somente pode ser adotado quando no houver outros meios alternativos previstos pela medicina para o prolongamento ou melhora na condio de vida do indivduo.
O transplante de rgos, tecidos e partes do corpo humano, no um problema eminentemente tcnico-mdico, na medida que traz em si aspectos sociais de ordem tica e jurdica. Circundam dentro desses aspectos, entre outros: vedao de comercializao, estabelecimento de critrios seguros para determinao de morte, consentimento prvio e esclarecido do doador e receptor.
Ademais, toda interveno ou investigao mdica, como o caso dos transplantes, que envolve a vida e a dignidade humana primordial que a cincia jurdica se manifeste e regule o seu procedimento. O Legislador brasileiro cuidou do tema por meio de diversas Leis. Atualmente se encontra em vigor a Lei n. 9.434/97 regulamentada pelo Decreto n. 2.268 de 30 de junho de 1.997.
Enfim, grande o nmero de brasileiros que necessitam de transplantes. Todavia, preciso colocar esse avano mdico em favor da populao. Embora, em matria de transplantes a nossa legislao atual procure caminhar lado ao lado com a cincia-mdica, para uma melhor aceitao e eficcia devero existir campanhas de esclarecimentos para populao, e em conseqncia ampliar as perspectivas para o tratamento de diversas doenas.
8
S O M M A R I O
La presente tesi ha per oggetto esaminare limportanza raggiunta odiernamente dai
trapianti di organi e tessuti del corpo umano, nonch dismostrare la sua rilevanza come
metodo chirurgico indispensabile per salvare vite.
Negli ultimi tempi il miracolo dei trapianti pu essere considerato uno degli sviluppi
pi notevoli della medicina, nonostante abbia suscitato innumerevoli discussioni etico-
giuridiche che perdurano a tuttoggi.
Attualmente si pu affermare che i trapianti non rappresentano soltanto una curiosit
scientifica, neppure un metodo isolato. Ma, bens, che nella maggior parte del mondo
divennero una pratica chirurgica consueta che salva migliaia di vite. I trapianti hanno come
caratteristica unica - essendo questo il maggior differenziale che li distingue dagli altri
metodi chirurgici - , il fatto che dipendono dalla disponibilit di organi e tessuti provenienti da
donatori vivi o morti.
Quando le cure medico-chirurgiche convenzionali non sono pi efficaci per far fronte
a malattie che portano al fallimento di un organo o tessuto, lultimo ricorso il trapianto.
Persiste, per, la questione: i trapianti necessitano di donatori.
Luso di questa terapeutica pu essere adottato soltando quando non esistono altri
mezzi alternativi previsti dalla medicina per migliorare le condizioni di vita dellindividuo,
prolungandone lesistenza.
Il trapianto di organi, tessuti e parti del copo umano non si riduce ad un problema
tecnico-medico, poich porta con s aspetti sociali di ordine etica e giuridica, tra i quali: il
divieto di commercializzazione, lo stabilire criteri sicuri per certificare la morte, i
consentimenti previ del donatore e del recettore.
Inoltre, in ogni intervento o indagine medica, come nel caso dei trapianti che
coinvolgono la vita e la dignit umana, primordiale che la scienza giuridica ne regoli i
procedimenti. Il legislatore brasiliano disciplin il tema tramite diverse leggi. Attualmente in
vigore la Legge n. 9434 del 04 febbraio 1997, regolata dal Decreto n. 2268 del 30 giugno
dello stesso anno.
Finalmente, grande il numero di brasiliani che necessitano di trapianti.
Tuttavia, necessario far s che ci favorisca la popolazione. Malgrado la nostra
attuale legislazione cerchi di accompagnare gli sviluppi della scienza medica,
palese la necessit di promuovere campagne per chiarire la popolazione rendendo,
cos, pi ampie le prospettive di cura di molte infermit.
9
SUMRIO
INTRODUO................................................................................................ 11
1. MEDICINA E SADE...................................................................................
13
1.1. A influncia dos mitos e crenas no desenvolvimento da medicina..... 19
1.1.1. A medicina corretiva, preventiva e preditiva e seus aspectos
sociais e jurdicos.............................................................................................
25
1.2. A sade e a responsabilidade do Estado..............................................
29
1.2.1. O direito fundamental vida e a sade......................................
30
1.2.2. O direito integridade fsica como fundamento da sade e da
vida...................................................................................................................
34
1.2.3. A atuao do mdico como promotor da vida e da sade..........
36
1.3. Sade Pblica.......................................................................................
38
2. DA BIOTICA AO BIODIREITO...................................................................
40
2.2. tica.......................................................................................................
40
2.2.1. tica e moral............................................. ..................................
43
2.2.2. tica e normas jurdicas..............................................................
45
2.2.3. tica e normas deontolgicas.....................................................
46
2.3. Biotica..................................................................................................
49
2.3.1. Conceito de Biotica e seus aspectos histricos........................
51
2.3.2. Biotica e medicina.....................................................................
54
2.3.3. Princpios da Biotica .................................................................
56
2.4. Biodireito.............................................................................................. 61
2.4.1. Princpios do Biodireito...............................................................
63
2.4.2. Biodireito e os limites da cincia................................................
64
3. PRINCPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA..................................
72
3.3. A dignidade da pessoa humana frente aos direitos humanos...............
72
3.3.1. Dignidade da pessoa humana: Conceito e parte histrico-
filosfica............................................................................................................
81
10
3.3.2. O princpio da dignidade da pessoa humana na ordem jurdica..
89
3.3.3. O princpio da dignidade da pessoa humana como princpio
conformador.....................................................................................................
91
3.4. A dignidade da pessoa humana na Constituio Brasileira..................
92
3.5. Do princpio em questo........................................................................
94
4. TRANSPLANTES DE RGOS E TECIDOS HUMANOS..........................
97
4.1. Perodo mitolgico.................................................................................
98
4.4.1. Perodo cientfico.........................................................................
101
4.2. Conceito de Transplante.......................................................................
105
4.2.1. Definies: Transplante, enxerto e implante...............................
107
4.2.2. Classificaes dos transplantes de rgos e tecidos..................
108
4.2.3. Conceito de rgo.......................................................................
110
4.2.4. Conceito de tecido.......................................................................
111
4.3. Breve histrico dos transplantes no Brasil...........................................
113
4.4. Evoluo legislativa sobre transplantes e anlise crtica de sua
normatizao no Direito Brasileiro....................................................................
115
4.4.1. Lei n. 4.280/63............................................................................
116
4.4.2. Lei n. 5.479/68............................................................................
119
4.4.3. Constituio Federal de 1988.....................................................
125
4.4.4. Lei n. 8.489/92............................................................................
134
4.4.5. Lei n. 9.434/97............................................................................
139
4.5. Doao de rgos e as religies.......................................................... 159
4.6. Doao de rgos e tecidos humanos no direito francs e alemo..... 161
CONCLUSO................................................................................................... 171
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................
175
11
INTRODUO
Buscaremos por meio desta pesquisa, focalizar o tema de transplantes de
rgos e tecidos humanos, nos seus aspectos tico-jurdicos, cujo objeto est
intimamente relacionado com a dignidade da pessoa humana, e os direitos
fundamentais da sade e da vida.
Procuraremos demonstrar que os transplantes so uma tcnica mdica
valiosa na atualidade, por permitir que pessoas com doenas crnicas possam na
medida do possvel recuperar o irrenuncivel direito de viver.
sobre este tema to instigante que vamos tratar, por refletir tambm a
dinmica do ordenamento jurdico, revelando que as normas de direito se encontram
em constante mutao, para satisfazerem as diversas relaes sociais num dado
momento histrico, que se alteram no tempo e no espao em que esto inseridas.
O primeiro captulo dedicado ao estudo da histria da medicina, e da
definio do conceito de sade e da sua importncia no contexto social.
No segundo captulo faremos uma abordagem sobre a disciplina Biodireito,
ocasio em que salientaremos primeiramente que a Biotica tem como fundamento
cuidar dos aspectos mdico-cientficos na esfera da tica e da moral, no que se
refere a toda interveno e manipulao com seres humanos.
Por outro lado, demonstraremos que o Biodireito, em face dos avanos, cuida
de tutelar as relaes desencadeadas pelas novidades tecnolgicas com o objetivo
de evitar e controlar eventuais abusos, buscando com isso o equilbrio entre direito e
realidade social, tendo como pressuposto garantir a proteo do ser humano desde
a concepo at a morte.
12
Considerando que o tema de transplantes vincula-se dignidade da pessoa,
direcionaremos o terceiro captulo para fazer consideraes sobre esse princpio.
A acelerao alcanada pela cincia tem impulsionado o Direito a manter
igual estgio de desenvolvimento. Assim, para tornar vivel a realizao de
transplante de rgos e tecidos, e acompanhar o avano da medicina, o legislador
ptrio criou vrias leis, decretos, e medidas provisrias, sobre as quais
discorreremos no captulo quarto.
Porm, iniciaremos o captulo quarto, tratando dos aspectos histricos e
cientficos, conceitos e definies bsicas para a compreenso do tema, e ainda
procuraremos demonstrar a evoluo mdico-cientfica, e todas as suas tentativas,
para salvar vidas e prolongar a sade por meio dos transplantes.
E, num segundo momento, analisaremos a evoluo histrica e legislativa, e
os pontos mais relevantes e crticos de todos os diplomas que trataram da questo
sobre os transplantes de rgos e tecidos no Brasil.
Por fim, procuraremos, na medida do possvel, demonstrar que o emprego
dos transplantes constitui uma interveno mdica de grande importncia, por
propiciar a expectativa de que aqueles que se encontram quase sem vida possam
renascer.
13
1. MEDICINA E SADE
A medicina uma profisso de tempos longnquos. A histria registra que sua
origem remonta ao incio do sofrimento e luta do homem no combate s doenas.
Sua importncia indubitvel como fonte de valorizao da pessoa. Ao mdico
sempre coube o papel de ajudar a combater as doenas, minorando as dores da
espcie humana.
Para Jlio Csar Meirelles Gomes: A medicina uma profisso erudita
comprometida com a busca da verdade, sendo o ato mdico um consrcio de
atitudes, tcnicas e conhecimentos/habilidades voltados para a promoo da sade
em carter individual ou coletivo at o limite das prticas invasivas de alto risco ou
aes sanitrias de grande envergadura, com graves responsabilidades sobre a vida
e a sade pblica.1
E continua:
A medicina a nica entre as profisses de sade capaz de invadir o
templo da vida emergente, desvendar os segredos da concepo e abrir as
portas do universo, violar os limites da vida, promover estados de morte
virtual em defesa da vida natural. Enfim, uma profisso que vai do
nascimento morte e s vezes, numa ousadia capaz de afrontar os deuses,
em sentido inverso.2
Os primeiros praticantes da medicina foram os feiticeiros-curandeiros. Era
baseada em supersties e mitos. A medicina fundamentada na racionalidade
atribuda aos gregos. Por volta da metade do sculo V os mdicos gregos j haviam
desenvolvido teorias para explicar o funcionamento do corpo humano e o
1 GOMES, Conceito de ato mdico luz da Biotica, In: Medicina, Conselho Federal, Braslia: ano XVI, n. 130, setembro de 2001, p. 9. 2 Idem.
14
mecanismo das doenas. Suas idias eram erradas, porm extremamente
consistentes com os conhecimentos cientficos da poca. Os princpios de higiene,
alimentao e exerccios que utilizavam no tratamento dos doentes, no entanto,
eram corretos em grande parte e so vlidos at o presente.3
Porm a medicina s comeou a sair da esfera da magia e a entrar no
domnio da cincia no final do sculo VI, quando surgiram os primeiros indivduos
dedicados exclusivamente arte da cura. A Medicina j era uma profisso
respeitada, todos os sofrimentos do corpo eram da alada do mdico, inclusive os
problemas odontolgicos; alm de tratamentos clnicos, geralmente base de
plantas e laxativos, cirurgias rudimentares j eram praticadas com relativo sucesso.4
A medicina posta a servio do homem, como quando se empenha a utilizar
os meios necessrios para o alvio e cura das doenas.5 No h como falar em vida
digna sem sade. Conseqentemente a sade um requisito mnimo para uma vida
satisfatria.6
Neste aspecto esclarecem James Drane e Leo Pessini: Da perspectiva da
pessoa que sofre, a doena uma deficincia que faz a pessoa inteira clamar por
ajuda. E ainda: A doena fere o mago dos seres humanos e diminui a vida no que
3 http://pt.wikipedia.org./wiki> Acessado em: 16.01.2006 4 Idem. 5 Artigo 1 A medicina uma profisso a servio da sade do ser humano e da coletividade e deve ser exercida sem discriminao de qualquer natureza Art. 2 O alvo de toda a ateno do mdico a sade do ser humano, em benefcio da qual dever agir com o mximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional (Cdigo de tica Mdica, Resoluo n. 1246/88, do Conselho Federal de Medicina). 6 Declarao Universal dos Direitos Humanos, 1948 Artigo XXV: Toda pessoa tem direito a um padro de vida capaz de assegurar a si e a sua famlia sade e bem-estar, inclusive alimentao, vesturio, habitao, cuidados mdicos (...)
http://pt.wikipedia.org./wiki>
15
essa tem de peculiarmente espiritual, tico e social. A doena grave um grande
insulto prpria integridade do ser humano.7
Desde os primrdios da humanidade houve a busca pela sade. A sua
valorizao externa uma preocupao com a vida. Atravs da medicina sempre
vislumbrou-se amenizar os males que afligiam e afligem o ser humano. Contudo, ao
homem no foi dado o dom de suplantar a morte, mesmo com todo o
desenvolvimento mdico-cientfico. Porm, fato, que prolongou a vida humana,
alcanou a cura de doenas tidas como incurveis, mas ainda h muito que fazer
nesta seara.
A doena compromete o bem estar fsico e emocional do homem. Na maioria
das vezes invadido por sentimentos de medo e tristeza. As pessoas doentes
tornam-se assustadas e impotentes, em razo das sbitas mudanas em seu
trabalho e em todas as suas atividades.
Como conseqncia da doena as pessoas ficam desmotivadas em buscar
seus objetivos, perdem o humor, o desejo de brincar, e at amar. Em sntese a
dignidade humana fica na sua essncia comprometida e diminuda.
Hodiernamente os transplantes de rgos e tecidos humanos podem ser
considerados como a mais notvel conquista da medicina. Sua tcnica pode salvar
vidas e restaurar a sade de muitas pessoas. um procedimento mdico-cirrgico
empregado em casos de doenas graves e irreversveis que atingem o
funcionamento normal do organismo. Assim, visa recuperao da sade, e
preservao da vida.
7 DRANE & PESSINI, Biotica, Medicina e Tecnologia: Desafios ticos na fronteira do conhecimento humano, 2005, pp. 56-57.
16
Os transplantes de rgos apresentam-se como uma alternativa para eliminar
a doena, recuperar a qualidade de vida e a longevidade do homem. Como j
colocamos, os problemas crnicos de sade levam solido, insegurana, ao
medo e morte.
Na Constituio de 1988 encontramos que a sade um direito social (artigo
6), direito de todos e dever do Estado (artigo 196). Na Constituio, sade significa
polticas sociais e econmicas que visem reduo do risco de doenas e de
outros agravos e ao acesso universal igualitrio s aes e servios para sua
promoo, proteo e recuperao" (artigo 196). Para a efetivao desse preceito,
entende-se por necessrio que haja "atendimento integral, com prioridade para as
atividades preventivas, sem prejuzo dos servios assistenciais" com "participao
da comunidade" (artigo 198, incisos II e III).
Assim, de uma forma mais atual e dinmica, a questo da sade abandona o
critrio curativo em prol do preventivo. No se atm a minorar o sofrimento, mas
busca evit-lo. Nesse sentido so de grande valia as explicaes de Germano
Schwartz:
Quando fala em recuperao, a CF/88 est conectada ao que se
convencionou chamar de sade curativa; os termos reduo do risco de
doena e proteo esto claramente ligados sade preventiva, e a
promoo a qualidade de vida, posteriormente explicitada pelo artigo
225 da Carta Magna.8
Nota-se que, de acordo com a Carta Magna e os novos conceitos doutrinrios
adotados, a qualidade de vida faz parte da sade. Em torno dessa idia
apresentamos a elaborada por Francisco Carlos Duarte:
8 SCHWARTZ, Direito Sade: Efetivao em uma Perspectiva Sistmica, 2001, p. 27.
17
O direito sade integra o conceito de qualidade de vida, porque as
pessoas em bom estado de sade no so as que recebem bons cuidados
mdicos, mas sim aquelas que moram em casas salubres, comem comida
sadia, em um meio que lhes permite dar luz, crescer, trabalhar e morrer.9
Nos dizeres de Germano Schwartz: a sade condio de desenvolvimento
de um povo, assim como a educao. Qualquer plano de desenvolvimento estatal
tem na sade um de seus pontos bsicos, (...). At por esse motivo que se fala
que um Estado mnimo deve garantir to somente educao e sade (...).10
A sade compreendida como direito humano de segunda gerao, assim
como a educao. Entretanto, simples declaraes de direitos tornam-se
insuficientes perante a realidade da vida.
Referente ao direito sade, leciona Elida Sguin que:
A sade um direito bsico do homem includo no rol dos Direitos Humanos
e dos Direitos Fundamentais agasalhados na Constituio, como forma de
atender aos princpios densificadores do Estado Democrtico.11
No se pode restringir as questes de sade e seus efeitos ao campo do
saber e atuao dos profissionais de medicina. Trata-se de uma questo de
preservao de dignidade da pessoa humana, e isso compete ao Direito tambm.
Nos ensinamentos de Celso Antonio Pacheco Fiorillo existe o que denominou
de piso vital mnimo. Pelo seu sentido entendemos que sem a sua observncia no
h como falar que o homem possua vida digna, encontrando-se inserido neste
conceito o direito sade, colocando:
9 DUARTE, Qualidade de Vida: A Funo Social do Estado, Revista da Procuradoria do Estado de So Paulo, n. 41, junho/1994, p. 173. 10 SCHWARTZ, op. cit., p. 193. 11 SGUIN, Biodireito, 4 edio, Revista e Atualizada, 2005, p. 60.
18
Uma vida com dignidade reclama a satisfao dos valores (mnimos)
fundamentais descritos no art 6 da Constituio Federal, de forma a exigir
do Estado que sejam assegurados, mediante o recolhimento dos tributos,
educao, sade, trabalho, moradia, segurana, lazer, entre outros direitos
bsicos, indispensveis ao desfrute de uma vida digna12.
Em concordncia com a posio alinhavada, encontramos a do
constitucionalista Manoel Gonalves Ferreira Filho, que a este respeito assim se
manifesta:
Como da tradio de nosso direito desde 1934, a Constituio consagra
direitos sociais. So estes direitos a prestaes positivas por parte do
Estado, vistos como necessrios para o estabelecimento de condies
mnimas de vida digna para todos os seres humanos. Costumam ser
apontados como a segunda gerao dos direitos fundamentais. So eles
enunciados no art. 6. Tal enunciao , porm, de carter exemplificativo.
Entre os direitos sociais enumerados, j estavam na redao primitiva da
Constituio o direito educao, sade, ao trabalho, ao lazer,
segurana e previdncia social, proteo maternidade e infncia,
assistncia aos desamparados. A eles a Emenda n. 26/2000 acrescentou o
direito moradia.13
No mesmo sentido, e de forma elucidativa assinala Eduardo Carlos Bianca
Bittar:
A quebra da dignidade corresponde violao da pauta de reivindicaes
calcadas nos direitos humanos, pois, em verdade, qualquer plano poltico,
qualquer meta governamental, qualquer sistema poltico tem ampla
liberdade de ao, desde que respeitados certos patamares mnimos de
condies que faam a mquina governamental e estatal proteger valores
mnimos ao desenvolvimento da pessoa humana com dignidade, o que
importa dizer, com sade, trabalho, estrutura social etc.14
12 FIORILLO, Curso de Direito Ambiental Brasileiro, 5 edio-ampliada, 2004, pp. 55-56. 13 FERREIRA FILHO, Curso de Direito Constitucional, 30 edio, revista e atualizada, 2003, p. 310. 14 BITTAR, tica, Educao, Cidadania e Direitos Humanos, 2004, p. 123.
19
No entanto, se em questes bsicas de sade pblica, demonstra-se a
insuficincia de nossa legislao para contra-atacar as afrontas dignidade de
cidados que tm direito ao amparo da sociedade num momento de grande
dificuldade - como ocorre em caso de doenas, pior ainda quando nos referimos a
questes mais novas, face s descobertas cientficas e tecnolgicas de nosso
tempo.
No Brasil, apesar de termos uma Constituio bastante avanada no tocante
preservao da dignidade humana, ainda ocorrem muitos casos de desrespeito
aos direitos fundamentais mais bsicos, como o direito vida e sade.
Quanto sade, no entanto, no se trata de um direito individual apenas, mas
tambm de um direito difuso, pois quando uma pessoa adquire uma doena infecto-
contagiosa, por exemplo, poder transmit-la a um incontvel nmero de pessoas.
Dada a sua importncia, o direito sade pode ser considerado como elemento
bsico para um desenvolvimento harmonioso e uma ordem social mais justa e
solidria.
1.1. A influncia dos mitos e das crenas no desenvolvimento da Medicina
A cada dia surgem novas doenas que desafiam os profissionais da sade,
que se vm, muitas vezes, diante do desconhecido, do mistrio. Volta-se a um
sentimento que h muito vigia, denotando um carter mstico s doenas, como uma
manifestao do sobrenatural, chegando a serem consideradas uma punio por
pecados cometidos.
Na lio de Elida Sguin:
20
A tarefa de curar, sob esta tica, primeiro foi atribuda a sacerdotes,
feiticeiros, xams, pajs, que cuidavam dos males do corpo atravs do
merecimento da alma, dependendo a cura das culpas do doente ou de seus
familiares, bem como da boa vontade dos deuses, nunca da competncia
daquele agente de sade.15
Temos como realidade a busca pela sade. Nas sociedades primitivas, como
vimos a cura dos males que afetavam os seres humanos era realizada por
invocaes mgicas. Consideravam que a doena era fruto de pecados.
No livro do Deuteronmio (Bblia Sagrada), captulo 28, versculos 58-59,
encontra-se uma clara relao de causa e efeito das enfermidades: Se no
guardares e no cumprires as palavras da Lei e se no tiveres temor ao nome
glorioso e terrvel do Senhor teu Deus, Ele te castigar, e a teus filhos, com a praga,
demonstrando que a doena uma punio pelo mau comportamento.16
Embora muito tempo tenha passado at aqui, ainda permanece, mesmo de
uma forma mais sutil, este pensamento, quando se depara com os males do
presente sculo. Nota-se que permanecem os preconceitos, apesar da evoluo da
humanidade, desencadeando, tambm questes jurdicas e ticas.
A evoluo cientfica deu lugar tambm relatividade e temporalidade das
verdades cientficas. Tais questes so rotineiramente publicadas pelos meios de
comunicao, gerando ainda maior confuso na mente da populao. Um dia se
ouve que correr faz bem sade, noutro que a caminhada muito melhor ao
corao. Outro exemplo referente aos hormnios, quando os mdicos receitam
para mulheres em fase de menopausa, depois passam a defender que tal
15 SGUIN, op. cit. p. 08. 16 Idem.
21
medicao cancergena. Nas questes alimentares tambm ocorrem essas
inconstantes posies.
como se a medicina fosse movida por modismos, fato bem ilustrado por
Paulo Coelho em sua Breve Histria da Medicina.17 No mais novidade o fato de
certas verdades mdicas serem rapidamente modificadas e, o que pior, depois de
trazer conseqncias muitas vezes irreparveis.
Hoje sabemos que a medicina j era praticada desde a antiguidade. No
entanto, foram os gregos os pioneiros no estudo dos sintomas das doenas.
Eles tiveram como mestre Hipcrates (considerado at hoje o pai da
medicina).
Ficou clebre o discurso do juramento de Hipcrates quanto prtica da
medicina, que demonstra uma preocupao com a tica e a dignidade do ser
humano. O Juramento de Hipcrates traa um caminho tico a ser adotado pelo
mdico, que se depara com questes para as quais a cincia no fornece respostas.
Hipcrates entendia que a doena estava ligada realidade e ao cotidiano do
indivduo. Com sua racionalidade, trocou os preceitos religiosos pela tica. Essa
concepo aplicada modernamente.
A propsito vale trazer a baila os ensinamentos de Germano Schwartz:
Hipcrates referia que a cidade e o tipo de vida influenciavam a sade dos
17 COELHO, Jornal O Globo, 26.07.98, p. 18: 500 d.C. Venha at aqui e coma esta raiz ; 1000 Esta raiz coisa de ateu, faa esta orao ao Deus que est no cu; 1792 O Deus no est no cu, quem reina a razo. Venha at aqui e beba esta poo; 1917 Esta poo para enganar o oprimido, sugiro que voc tome um comprimido; - 1960 Este comprimido antigo e extico. Chegou o momento de tomar antibitico; 1998 Antibitico te deixa fraco e infeliz. Eis um ovo tratamento: coma esta raiz.
22
habitantes. Para ele, as doenas deveriam ser tratadas de acordo com as
particularidades locais.18
Atravessou os sculos o pensamento de Hipcrates, sendo observado
inclusive na atualidade. Confirmando a sentena posta, nos valeremos da lio de
Elida Sguin:
A medicina hipocrtica, considerada a primeira a buscar uma conotao de
cincia, teve como grande divulgador Galeno, da cidade de Prgamo na
sia Menor, famosa pelo templo ao deus Esculpio, por sua escola de
Medicina e pela sua biblioteca. Aquele saber mdico estava baseado em
trs princpios bsicos: 1) favorecer ou, pelo menos, no prejudicar o
doente; 2) abster-se do impossvel, portanto, no atuar, quando a doena
letal; e, 3) atacar a causa do dano.19
No perodo da idade mdia, intitulada era das trevas, sabe-se que os
conhecimentos mdicos tiveram pouco ou quase nenhum avano, em razo de
diversos fatores, entre os quais a forte influncia exercida pela igreja, que
condenava as pesquisas cientficas. Somente aps este tempo que a medicina
buscou explicar as doenas por meio de estudos cientficos.
No sculo XVII, Willian Harvey fez uma descoberta importante: o sistema
circulatrio do sangue. A partir da, os homens passaram a compreender melhor a
anatomia e a fisiologia.20 .
Aps a inveno do microscpio acromtico, no sculo XIX todo
conhecimento ficou mais apurado. Com esta inveno, Louis Pasteur conseguiu um
18 SCHWARTZ, op. cit. p. 30. 19 SGUIN, op.cit. p. 13. 20 McGALLIAN, Dante, A (re) humanizao da medicina. www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm. Acessado em 06.01.2006.
http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm
23
enorme avano para a medicina, ao descobrir que as bactrias so as responsveis
por grande parte das doenas.21
Assim, com o passar dos sculos a medicina foi marcada por uma atuao
mais segura e eficaz. Passou por profundas transformaes desencadeadas por
importantes descobertas. Dentre as quais a penicilina, e diversas vacinas,
acarretando uma verdadeira revoluo nesta rea, em prol da humanidade.
A formao e a prtica mdica foi se modificando, de forma a acompanhar
todos os avanos tecnolgicos que emergem no tempo. Com o desenvolvimento
tecnolgico ocorrido nas ltimas dcadas, principalmente na rea da biologia celular
e molecular, e com as pesquisas do genoma humano, nos leva a uma concepo
errnea ou correta, de que definitivamente o grande mistrio foi desvendado, e que
a chave de todo o conhecimento mdico est nas cincias experimentais.
H uma expectativa geral quanto ao descobrimento das verdadeiras causas
de todas ou pelo menos quase todas as doenas que assolam a humanidade.
Espera-se que, com o desenvolvimento das anlises laboratoriais, em nvel gentico,
microbiolgico e outros mtodos, possibilite mais precisos e eficazes diagnsticos e
tratamentos, podendo antever, reverter e principalmente prevenir grande parte das
doenas existentes.
Por este prisma, a preocupao humanstica se torna intrnseca, uma vez que
se busca a melhoria das condies de sade do homem. Esse processo fica ainda
mais reforado por outros aspectos que foram surgindo com as novas descobertas
da medicina, especialmente aquelas ligadas tica.
21 McGALLIAN, Dante, A (re) humanizao da medicina. www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm. Acessado em 06.01.2006.
http://www.unifesp.br/dpsiq/polbr/ppm/especial02a.htm
24
Mediante o panorama atual em que se encontra a medicina, volta-se a
questionar se as cincias humanas a histria, a filosofia, e a psicologia realmente
no tm mais nada a dizer no campo do diagnstico e do tratamento mdico.
Quando se trata de sade pblica, por exemplo, os enfoques sociolgicos e
antropolgicos so vistos como essenciais e indiscutveis, pois tais conhecimentos
ajudam na compreenso e soluo de muitos males.
Com a transformao da medicina em arte e tcnica, passa-se a exigir do
mdico a responsabilidade profissional, passando a fazer parte da histria da
medicina legislaes e punies aplicadas queles que no obtiverem um resultado
satisfatrio junto aos seus pacientes.
Dentro dessa perspectiva, a histria da medicina demonstra que as carncias,
erros e absurdos das teorias e procedimentos mdicos do passado, devido a
conhecimentos equivocados, passaram por uma lenta e difcil evoluo, para se
chegar verdade cientfica atual. O problema, entretanto, a falta de reflexo
crtica de tais verdades, no tocante s suas conseqncias ticas, sociais, culturais e
existenciais.
certo que a cincia e a tecnologia no podem resolver todos os problemas
da humanidade. A crena nas descobertas cientfico-tecnolgicas da atualidade por
um lado estimula a evoluo do conhecimento, mas por outro o bloqueia,
distorcendo certas dimenses da verdade em detrimento de outras. Tanto assim,
que, como j mencionamos, a cada dia surgem novas informaes, contradizendo
conceitos anteriores. As verdades acabam se tornando relativas.
Mesmo havendo o total desvendamento do cdigo gentico e com o
desenvolvimento das mais sofisticadas tcnicas de diagnstico e prognstico clnico,
25
os mdicos continuaro enfrentando limitaes e dificuldades, exigindo mais do que
o conhecimento cientfico-tecnolgico para serem superadas.
Felizmente, a medicina atual dispe de inmeras drogas capazes de curar,
controlar e at mesmo de evitar diversas doenas. Aparelhos eletrnicos sofisticados
so capazes de fazer um diagnstico apurado, passando informaes importantes
sobre o paciente. Os avanos nesta rea so rpidos e possibilitam uma vida cada
vez melhor para as pessoas. Porm, nunca como hoje se faz to necessrio
reflexo histrico-filosfica para que se possa reumanizar a medicina e as cincias
da sade em geral.
1.1.1. A medicina corretiva, preventiva e preditiva e seus aspectos sociais e
jurdicos
Atualmente, no se pensa somente na cura das doenas mas tambm, e
principalmente, na sua preveno, atravs da adoo de medidas promotoras da
boa sade. Assim, o conhecimento mdico adquirido no decorrer dos tempos, cada
vez mais, vem sendo transmitido populao, fornecendo recursos para que se
efetive um bom nvel de qualidade de vida, abrangendo o bem-estar fsico e mental
do ser humano.
Pensando nesse aspecto, a Constituio Federal de 1988, assim prev em
seu artigo 196:
A sade direito de todos e dever do Estado, garantido mediante polticas
sociais e econmicas que visem reduo do risco de doena e de outros
agravos e ao acesso universal e igualitrio s aes e servios para sua
promoo, proteo e recuperao.
26
Quando trata da reduo do risco de doenas, o citado artigo se refere s
medidas preventivas necessrias para tal, enquanto a recuperao se refere a uma
medida corretiva.
A Medicina Corretiva ocorre quando o problema j foi observado pelo
paciente, que, ento, procura o atendimento mdico, para diagnstico e tratamento.
A Medicina Preventiva refere-se s aes que possibilitem prevenir o
aparecimento ou evoluo das doenas. Nesse sentido, o Direito Internacional
Ambiental elevou categoria de princpios a preveno e a cautela, pois, tanto do
ponto de vista econmico, para o Estado e para o cidado, a medicina preventiva
vem ocupando lugar de destaque nas intervenes mdicas.
A medicina preventiva atua de diferentes formas: noes bsicas de higiene e
nutrio; realizao de exames para diagnosticar doenas enquanto as mesmas
possam ser tratadas e curadas; vacinao em massa; conscientizao sobre a
necessidade de prtica de exerccios fsicos e outros.
Esses aspectos da medicina preventiva tm como principal finalidade a
manuteno da boa qualidade de vida, atravs da adoo de hbitos saudveis.
Conforme Elida Sguin, possui trs classificaes:
1) primrios - educao da populao em relao sade, hbitos de vida
saudveis, influncia no desenvolvimento de determinada doena e
rastreamento populacional, 2) secundrios: aes destinadas fase inicial
da doena, para evitar ou diminuir a recorrncia e/ou complicaes e,
tercirios: procedimentos destinados s doenas crnicas, de tratamento e
reabilitao.22
E, ainda de acordo com Elida Sguin:
22 SGUIN, op cit. p. 16.
27
A sade do paciente precisa ser encarada na sua globalidade, ou seja,
fsica, psquica e social aplicando-se o Princpio Biotico da Beneficncia.
Qualquer procedimento preventivo deve ter a capacidade de melhorar a
qualidade de vida do indivduo. O diagnstico precoce implica
necessariamente em que o paciente seja informado e possa optar por um
tratamento antecipado. Muitas doenas cardiovasculares podem ser
evitadas pela preveno.23
Certamente no sculo XXI se buscar uma medicina mais personalizada e
especialmente mais preventiva. Os mdicos, ao que tudo indica, tero sua
disposio notveis tratamentos para diversos males, revolucionando a histria da
medicina.
J a Medicina Preditiva tem a marca do nosso tempo, por recorrer a
diagnsticos muito mais avanados, de forma a avaliar a predisposio biolgica do
indivduo para desenvolver doenas, formulando probabilidades. Tem como
finalidade antever o surgimento de patologias de acordo com predisposies
genticas individuais, recomendando as melhores formas de preveno e
tratamento, sempre que possvel.
Entretanto, a medicina preditiva tem sido muito contestada, por ter maior
margem de erro, podendo levar a falsas idias de doena, alm de suscitar questes
ticas. O indivduo muitas vezes encontra dificuldades de avaliar se o diagnstico
que lhe dado aceitvel, ficando sem possibilidade de questionar os meios de
preveno propostos, limitando-se ao exerccio de sua autonomia e o seu direito de
ser informado.
Observa Elida Sguin, que:
23 SGUIN, op. cit. p. 16.
28
A medicina preditiva carrega consigo um potencial iatrognico importante
que merece cuidadosa avaliao para se determinar o saldo, positivo ou
negativo, da sua aplicao. Ser possvel, com a evoluo da gentica,
tratar os embries em tero de sndromes de hipercolesterolemia gentica e
prevenir um infarto aos cinqenta anos, poupando-se pessoas de muita
morbidade e sofrimento, mas tambm surgiro problemas de discriminao
e preconceito com os que forem portadores assintomticos de propenso a
doenas.24
Questes que surgem a respeito da medicina preditiva, se referem tica no
tocante discriminao e ao preconceito. Seria possvel at mesmo que empresas
exigissem testes genticos para admisso de seus funcionrios, assim como as
companhias seguradoras tambm procurariam se beneficiar desse conhecimento.
Necessrio uma educao pblica eficaz evitando-se a formao de preconceitos
em prejuzo do ser humano.
Um trabalho de ampla divulgao e conscientizao, alm de medidas
preventivas contra abusos, tendo como fundamento a tica, so de crucial
importncia nesse novo sculo que, sem dvida, tem novas marcas, atravs da
medicina genmica.
No se deve impedir o desenvolvimento tecnolgico nesta rea, que tem
como objetivo encontrar a cura para diversas enfermidades, at aqui consideradas
incurveis. Uma possibilidade parece despontar como uma luz no final do tnel,
gerando esperana para muitos que padecem com enfermidades incurveis, sendo
necessrio que sejam preservados os direitos dessas pessoas. Como exemplo
citamos o daqueles que esperam por anos na fila para conseguirem um transplante
de rgos e tecidos, almejando a to sonhada cura, para que tenham uma vida
normal no trabalho, no seio familiar e na sociedade como um todo.
24 SGUIN, op. cit. p. 18.
29
Como j mencionado, a medicina vem sendo exercida desde os tempos mais
remotos, embora de forma bastante distinta, mas sempre buscando minimizar o
sofrimento humano. A profisso de mdico deve ser exercida conforme os preceitos
ticos inerentes a funo, e com observncia das cautelas necessrias ao bem estar
da populao.
1.2. A sade e a responsabilidade do Estado
A sade insere-se no rol dos Direitos Humanos a serem preservados pelo
Poder Pblico. Ao Estado cabe prestar servios de sade de forma satisfatria,
facilitando o acesso aos meios que garantam uma condio de bem-estar coletivo.
seu dever zelar preventivamente pela sade pblica.
cedio que sade direito pblico subjetivo, integrante dos direitos
fundamentais. Representa bem jurdico constitucionalmente tutelado e inerente ao
princpio da dignidade humana.
A Constituio de 1988 reconhece que o indivduo credor desse direito e o
Estado o seu devedor. Diante do enunciado dos seus artigos 6 e 196, presume-se
que ao Estado cabe garantir no somente servios pblicos de promoo, proteo
e recuperao da sade, mas compete-lhe tambm, adotar critrios que garantam a
melhoria nas condies de vida do indivduo, evitando-se, assim, o risco de adoecer.
Portanto, o direito sade deve ser assegurado mediante polticas pblicas,
sociais e econmicas, de forma a minimizar o risco de doenas e de outros agravos,
e garantir o acesso igualitrio e universal s aes e aos servios, para sua
promoo, proteo e recuperao.
Assim, no tocante ao Estado, o atendimento deve ocorrer junto comunidade,
abrangendo critrios mdicos e sociais. O atendimento deve democratizar-se,
30
garantindo populao servios de sade, preventivos e curativos. Educao para
a sade e polticas de incentivo solidariedade, so medidas importantes esperadas
nas aes governamentais.
Vivenciamos um novo tempo na rea do Direito, quando a defesa social
requer o reconhecimento dos direitos individuais, sociais e difusos. Ao Estado cabe
preservar a sade e a vida da populao.
1.2.1. O direito fundamental vida e a sade
O direito vida o mais importante dos direitos fundamentais previstos pela
Carta Magna, sendo papel do Estado promov-lo, assegurando, ainda, a dignidade e
subsistncia do ser humano. A Constituio Federal proclama no caput do artigo 5,
que o direito vida inviolvel.25
A palavra vida, do latim vita, de vivere (viver, existir), designa propriamente a
fora interna substancial, que anima, ou d ao prpria aos seres organizados,
revelando o estado de atividade dos mesmos seres.26
Por entendermos importante definir o sentido da palavra vida no contexto
mdico-biolgico, nos valeremos para este aspecto do conceito que nos oferece
Daisy Gogliano27, extrado da lio do Professor Wasserman, Chefe do
25 Embora afirmado na sua maior amplitude pela Constituio Federal, o direito vida tambm foi consagrado na Conveno Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San Jos da Costa Rica, ratificada pelo Brasil em 25 de setembro de 1992, e que preconiza no seu artigo 4 o direito vida, estabelecendo no inciso I: Toda pessoa tem o direito de que se respeite a sua vida. Esse direito deve ser protegido pela lei e, em geral, desde o momento da concepo. Ningum pode ser privado da vida arbitrariamente. 26 SILVA, De Plcido e. Vocabulrio Jurdico, v. 4, 7 edio, 1982, p. 490. 27 GOGLIANO, O Direito ao Transplante de rgos e Tecidos Humanos, Tese de Doutorado defendida na Universidade de So Paulo, 1986 (no publicada), p. 311.
31
Departamento de Medicina interna do Karl Brener Hospital da Universidade de
Stellenbosch da frica do Sul:
(...) vida a atividade biolgica, sociolgica e psicolgica, manifestada por
um dinamismo mantido por processos intrnsecos ao organismo
elementos naturais e sustentada por outros fatores extrnsecos adquiridos
pelo prprio homem cultura.
De acordo com Jos Afonso da Silva, pode-se conceituar o vocbulo vida,
como: ser que objeto de direito fundamental. Quanto questo do direito vida,
reconhecendo a dificuldade de apresentar uma definio abrangente, observa que:
"No intentaremos dar uma definio disto que se chama vida, porque aqui que se
corre o risco de ingressar no campo da metafsica supra-real, que no nos levar a
nada".28
Mesmo assim, o autor apresenta a seguinte definio:
Vida, no texto constitucional (art. 5o, caput) no ser considerada apenas no
seu sentido biolgico de incessante auto-atividade funcional, peculiar
matria orgnica, mas na sua acepo biogrfica mais compreensiva. Sua
riqueza significativa de difcil apreenso porque algo dinmico, que se
transforma incessantemente sem perder sua prpria identidade. mais um
processo (processo vital), que se instaura com a concepo (ou germinao
vegetal), transforma-se, progride, mantendo sua identidade, at que muda
de qualidade, deixando ento de ser vida para ser morte. Tudo que interfere
em prejuzo deste fluir espontneo e incessante contraria a vida. 29
Desta forma, existindo vida, automaticamente existir a necessidade de
regul-la e proteg-la, afirmando Jos Afonso da Silva que a vida a "fonte primria
de todos os outros bens jurdicos".30
28 SILVA, Curso de Direito Constitucional Positivo, 23 edio, revista e atualizada, 2004, p. 196. 29 Idem. 30 Ibidem, p. 197.
32
Independentemente de uma definio, inegvel que o primeiro e mais
importante de todos os direitos fundamentais o direito vida. Condiciona todos os
demais direitos. Deve ser respeitado e rigorosamente tutelado. Como sabemos o
direito vida inato e absoluto, bem maior no criado por lei, mas apenas
reconhecido pelo Estado.31
Sendo o direito vida considerado como o mais fundamental dos direitos,
dele derivando todos os demais direitos, pressupe-se, ento, que regido pelas
premissas constitucionais da inviolabilidade e irrenunciabilidade. Assim sendo, o
direito vida no pode ser desrespeitado por terceiros, tampouco pelo Estado.
A sade tem verdadeira correspondncia com o direito vida. Neste aspecto
so de grande valia os ensinamentos de Germano Schwartz:
A sade faz parte do sistema social sobre o qual nos encontramos, e, se
quisermos ir mais adiante, faz parte do sistema da vida que tambm um
sistema social. Ela (sade) um sistema dentro de um sistema maior (a
vida), e com tal sistema interage.32
Nos seus dizeres: A sade , seno o primeiro, um dos principais
componentes da vida, seja como pressuposto indispensvel para a sua existncia,
seja como elemento agregado sua qualidade. Assim, a sade se conecta ao direito
vida.33
31 Como bem esclarece Antnio Chaves, em lio lapidar: Existe um conjunto de normas que podem ser rastreadas em todas as legislaes, quando no explcitas, nelas contidas implicitamente e que so to essenciais que mal concebem separadas do prprio conceito de civilizao e de acatamento pessoa humana. O respeito vida e aos demais direitos correlatos, decorre de um dever absoluto, por sua prpria natureza, ao qual a ningum lcito desobedecer. (Tratado de Direito Civil, Parte Geral, Vol. I, tomo I, 1 edio, 1982, p. 435.) 32 SCHWARTZ, op. cit. p. 37. 33 Idem.
33
Ao Poder Pblico incumbe proteger a pessoa humana, especialmente o
hipossuficiente, alm da prestao de servios de sade adequados e eficientes,
deve garantir atendimento digno.
A questo concernente vida, tambm tutelada no mbito do Direito Penal,
no captulo que trata dos crimes contra a vida, previsto no artigo 121, sob diversos
aspectos e graduao (homicdio simples e qualificado); o induzimento, instigao
ou auxlio ao suicdio, cuja previso encontra-se no artigo 122; o infanticdio (artigo
123); e o aborto, nas suas diversas verses (artigos 124 a 128). E ainda no contexto
da conservao da vida, h que se fazer referncia ao ponto de vista do Direito Civil,
que prev nos artigos 944 a 951 do Cdigo de 2002, indenizao no caso de dano e
homicdio, resultante de atos ilcitos.
Os direitos sade e vida, so fundamentais do homem, so intrnsecos um
ao outro, podendo assim ser entendido: vida-sade, sade-vida. A vida um direito
absoluto em nossa cultura jurdica, portanto, deve o direito a sade ter tratamento
igualitrio, pois para existncia de um h de ser observado o outro. inequvoca a
idia de que o direito vida indissocivel do direito sade.
Devemos entender que esse direito no se encontra restrito aos atos de
agresso fsica ou psquica pessoa. Trata-se de um processo mais abrangente,
entre eles, a preservao da sade por meio de terapias empregadas pela medicina.
Dentro dessas terapias, convm enfatizar a questo dos transplantes de rgos e
tecidos humanos. uma interveno mdico-cirrgica utilizada quando o tratamento
convencional para algumas doenas no surte mais efeito. Pode ser considerado
como mtodo empregado em prol da proteo da sade, e garantia da vida, como
veremos no transcorrer desta pesquisa.
34
1.2.2. O Direito integridade fsica como fundamento da sade e da vida
O direito integridade corporal interliga-se ao direito vida e sade, e
destes faz parte integrante. O direito vida, consoante j vimos, diz respeito
prpria existncia do indivduo, sendo indissocivel do direito sade. Por sua vez a
integridade fsica consiste na incolumidade fsica e psquica da pessoa.
Integridade, que significa caracterstica do que est inteiro, e ainda, estado do
que no foi atingido ou agredido.34 Ainda, integridade fsica uma expresso
sinnima do termo incolumidade fsica, pois inclume quer dizer sem leso ou
ferimento, que permanece igual; inalterado.35 Em resumo representa o que est
ntegro, sem reduo, comprometimento ou diminuio.
A integridade fsica encontra-se pari passu com o bem mais sublime, a vida.
Por seu turno, a vida consiste na existncia do ser e a integridade fsica irradia
efeitos sobre a mesma, na medida em que sobrevenha um infortnio que retire da
pessoa a sua condio de ileso, o que a rigor, gerar agravos na sua sade e muitas
vezes ceifar a sua vida.
Como no poderia deixar de ser, a integridade fsica encontra-se agasalhada
em nossa Constituio, dentre os direitos fundamentais, junto aos incisos III e XLVII
do artigo 5, com a finalidade de impedir a tortura, o tratamento desumano ou
degradante, e abolir as penas cruis e excessivas.
A lei brasileira categrica no sentido de preservar a integridade fsica do ser
humano. As agresses, que eventualmente possam ocorrer, so passveis de
punio na esfera penal e de indenizaes na cvel. Destarte, a proteo jurdica
34 HOUAISS, Dicionrio da Lngua Portuguesa, 2 edio revista e aumentada, 2004, p.422. 35 Ibidem, p. 408.
35
tem como objetivo precpuo, evitar o prejuzo sade e vida, caracterizado por
dano fsico ou perturbaes mentais.
Como figura delituosa principal na legislao penal, encontramos a de leses
corporais. Este delito consolida-se por meio de aes que causam ofensa
integridade corporal ou sade de outrem, cuja previso se d no artigo 129.
Destacamos tambm, como crimes que expem ao perigo a vida ou a sade
de outrem, os tipificados nos artigos 130 a 136 do Cdigo Penal, a saber: contgio
de molstia venrea ou grave; abandono de incapaz; omisso de socorro. De igual
modo, pune-se tambm a participao ao delito intitulado por rixa (artigo 137 do CP),
com agravo das sanes em caso de leso ou morte.
imprescindvel apontar que a proteo da integridade ou incolumidade fsica
da pessoa humana, alm de dar-se na esfera penal e cvel, como j vimos, no
exceo na seara mdica.36
A sua preservao deve ser observada pelo Estado, Sociedade Civil e
Mdica. Em sntese, automaticamente, quando se ocasiona um mal ao corpo
humano, se est agredindo ao mesmo tempo a sade e a vida. So situaes
intrnsecas em todos os sentidos.
Ressaltamos que no aprofundaremos muito este tema, considerando que o
campo de abrangncia do direito integridade fsica muito mais amplo do que o
36 O Cdigo de tica Mdica (Resoluo n. 1.246/88) veda ao mdico a prtica de qualquer ato atentatrio incolumidade fsica do ser humano, conforme previso nos seguintes artigos: 49. defeso ao mdico participar da prtica de tortura, ou outras formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruis, ser conivente com tais prticas e no as denunciar quando delas tiver conhecimento, 50. proibido ao mdico fornecer meios, instrumentos, substncias ou conhecimentos que facilitem a prtica de tortura ou outras formas de procedimento degradantes, desumanas ou cruis, em relao pessoa; 53. Desrespeitar o interesse e a integridade de paciente, ao exercer a profisso em qualquer instituio na qual o mesmo esteja recolhido independentemente da prpria vontade.
36
apresentado. Mas a inteno primordial apresentar de forma sinttica a ntima
ligao do direito integridade fsica com o direito sade e vida.
Por sua vez, de suma importncia no que tange matria relativa aos
transplantes, em especial quando realizados com doador vivo. Os transplantes de
rgos e tecidos humanos constituem ato mdico considerado de carter
excepcional. Contudo, o mdico deve agir com cautela e prudncia. Suas atitudes
devem estar embasadas dentro dos mais altos critrios humanos, tico-mdicos e
legais, sob pena de responder pela integridade fsica e morte do paciente.
1.2.3. A atuao do mdico como promotor da vida e da sade
A garantia individual do direito sade inicia-se na atuao do mdico,
cabendo ao operador do direito, junto com o jurista, fornecer o arcabouo legal desta
proteo. Porm, o descaso de alguns profissionais agravado pelas pssimas
condies de trabalho, acaba por gerar diversos problemas na rea de sade que,
infelizmente, tm sido enfrentados pela populao desde remotas eras, como
observa Elida Sguin:
Acredita-se que o ser humano esteja sobre a terra h aproximadamente
70.000.000 a.C., tendo surgido na era mesozica. A histria surge por volta
do ano 3.500 de anos, quando, entre os rios Tigre e Eufrates, ele se tornou
citadino. Com a histria do homem surge o registro de sua peregrinao em
busca da sade.37
Como visto, o ser humano sempre se preocupou com sua vida, isto
demonstrado por sua intensa ateno com a prpria sade. Infelizmente, incontveis
so os exemplos de descaso dos governos, em diversas partes do mundo, com
relao sade da populao.
37 SGUIN, op. cit. p. 05.
37
Independentemente deste cenrio h necessidade de que o mdico pratique
o seu mister com autenticidade, virtude e respeito que a profisso requer. Deve
embasar os seus atos nos preceitos morais e ticos, assegurando o respeito
dignidade do homem, repudiando-se qualquer possibilidade de trat-lo como um
objeto material que possa trazer vantagens para finalidades obscuras.
A atividade mdica na maioria das vezes ocorre em situaes que envolvem
risco para a vida humana, devendo ser realizada com o mximo de segurana. de
sua competncia, entre outras, transplantar rgos e tecidos humanos, questo cuja
anlise ser abordada no decorrer desta pesquisa.
Conforme ressalta Matilde Carone Slaibi Conti: Cuida o mdico dos
momentos extremos e dramticos da vida como nascer e morrer.38
Nos seus dizeres:
O ato mdico mais enaltecedor do profissional que reconhece as suas
prprias limitaes ou a dos equipamentos de que dispe para a conduo
do caso e encaminha o paciente para um servio mais bem aparelhado em
recursos humanos e tcnicos, que possa proporcionar-lhe o que de melhor
a medicina possa oferecer-lhe.39
Entende que: O mdico um ser humano, por vezes impotente diante da
doena, todavia, obriga-se a agir com o mximo de zelo e o melhor de sua
capacidade profissional.40
O ato mdico s se justifica quando representa, em sua plenitude, um gesto
de solidariedade e de apreo vida e sade. A profisso de mdico deve ser
38 CONTI, Biodireito: a norma da vida, 1 edio, 2004, p. 10. 39 Ibidem, p. 11. 40 Ibidem, p. 9.
38
exercida conforme os preceitos ticos inerentes funo, e com observncia das
cautelas necessrias ao bem-estar das pessoas.
1.3. Sade Pblica
Na definio da Organizao Mundial de Sade (OMS), sade se refere ao
completo bem-estar fsico, mental, social e poltico, e no apenas ausncia de
doena.
A fim de viabilizar as condies plenas do direito sade, destacamos nesse
sentido a Lei n. 8.080/90 organiza e estrutura o funcionamento dos servios de
sade, denominada Lei Orgnica da Sade, em seu art. 3, assim diz:
A sade tem como fatores determinantes e condicionantes, entre outros, a
alimentao, a moradia, o saneamento bsico, o meio ambiente, o trabalho,
a renda, a educao, o transporte, o lazer e o acesso a bens e servios
essenciais: os nveis de sade da populao expressam a organizao
social e econmica do Pas.
Mediante tal definio, a sade no apenas a ausncia de doena, mas o
resultado de adequadas condies de alimentao, habitao, saneamento,
educao, renda, meio ambiente, transporte, trabalho, emprego, lazer e acesso a
servios de sade.
A medicina atua enfocando o indivduo, enquanto as medidas estatais na rea
da Sade Pblica visam promoo e proteo da sade individual e coletiva. Sua
atuao global, por meio de campanhas de vacinao em massa da populao
infantil e idosa, saneamento bsico e campanhas de educao ambiental.
39
O atendimento s necessidades da populao em sade encontra seu ponto
culminante na dignidade da pessoa humana. No sendo aceitvel que seja ultrajada
e desrespeitada, sob o argumento de limites oramentrios entre outros.
Compreende-se que ao Estado cabe disponibilizar todos os servios de sade
existentes, inclusive os do campo da assistncia teraputica, tecnolgica e cientfica,
e ainda o fornecimento de medicamentos. Por outro lado, entretanto, a funo
principal do mdico curar ou prevenir doenas, valendo-se das mais diversas
tcnicas disponveis. E, exatamente a que surgem questes que colocam em
xeque a tica. At que ponto so vlidos todos os mtodos para que o mdico
consiga atender satisfatoriamente s necessidades de seu paciente?
Atualmente, tm sido comum debates sobre questes originadas da evoluo
cientfico-tecnolgica, especialmente no tocante tica e dignidade do ser
humano, como ser visto no captulo a seguir.
40
2. DA BIOTICA AO BIODIREITO
No se pode falar de Biodireito sem discutir as questes ticas que envolvem
a maioria dos problemas que surgem dentro, e fora das relaes teraputicas. Os
direitos dos pacientes devem ser na tica do melhor e mais adequado procedimento
mdico-cientfico.
H necessidade de adequar o sistema jurdico s descobertas cientficas e s
alteraes sociais, valendo-se de uma nova ordem jurdica, coerente com o
momento atual da cincia Biomdica.
Assim, para conceituarmos Biodireito, devemos antes dar uma idia do que
seja Biotica, o que, por sua vez, exige a explanao da concepo de tica, e
ainda, a distino do termo moral, se faz necessrio.
2.2. tica
A tica considerada a cincia do comportamento dos homens. Regula as
relaes sociais e profissionais. Atuando como instrumento que baliza a conduta
humana, dita o que certo e errado para voc e o outro. Tem como princpios o bem
comum e a justia distributiva.
Atualmente, os valores ticos esto em evidncia, como expressado por
Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos41: A tica est na moda. E no sem razo.
tica na poltica, movimentos pela tica. Cdigos de tica, Biotica, em toda parte
nota-se uma presso em favor da tica .
41 SANTOS, O Equilbrio de um Pndulo - Biotica e a Lei: Implicaes Mdico-Legais, 1998. p. 20.
41
Quanto sua etimologia42, a palavra tica vem do grego ethikos, a partir de
ethos, que significa costume. Na concepo de Gabriel Chalita: parte da
filosofia que estuda a conduta humana para se atingir o bem comum. Ela tambm
chamada de filosofia da moral, ou simplesmente moral43.
A tica no campo de atuao da filosofia preocupa-se com o estudo de
valores e atos humanos; busca estabelecer os princpios e a conduta justos.44
Encontramos diversas definies para o sentido da palavra tica: Trata-se de
um conjunto de preceitos sobre o que moralmente certo, ou errado. Faz parte da
filosofia dedicada aos princpios que orientam o comportamento humano.45
Eduardo Carlos Bianca Bittar46, divide a tica em dois grandes ramos dando-
nos uma viso didtica de suma importncia, como segue:
tica geral: aquela que se detm na anlise e no estudo das normas
sociais, aquelas que atingem a toda coletividade, e que possui lineamentos
os mais abrangentes possveis, correspondendo ao conjunto de preceitos
aceitos numa determinada cultura, poca e local no pelo consenso da
populao, mas sim pela maioria predominante. A tica geral incumbir-se-ia,
portanto, de tratar dos temas gerais de interesses ligados moralidade.
Essa faceta da tica seria a mais aberta, e, por conseqncia, a mais
abrangente, lidando com os interesses sociais de um modo geral.
tica aplicada: esta segunda deter-se-ia na apreciao de normas morais e
cdigos de tica especificamente localizveis na sociedade, uma vez que
estes estariam relacionados ao comportamento de grupos, coletividades,
categorias de pessoas, no possuindo a abrangncia da primeira. Essa
faceta da tica, chamada tica aplicada, deter-se-ia no estudo qualificado
(por um interesse especfico por ramos de atividade, grupo de pessoas
envolvido...) de questes tico-sociais. So desdobramentos da tica
42 Estudo da ORIGEM e da evoluo das palavras, HOUAISS, Antonio. Dicionrio da Lngua Portuguesa, 2 edio, revista e aumentada, 2004, p. 320. 43 CHALITA, Vivendo a Filosofia, 2 edio - ampliada, 2004, p. 65. 44 Ibidem, p. 6. 45 HOUAISS, op. cit. p. 319. 46 BITTAR, Curso de tica Jurdica: tica Geral e Profissional, 2002, pp. 16-17.
42
aplicada: a tica ecolgica, a tica profissional, a tica familiar, a tica
empresarial.
Vivemos tempos de concepes pluralistas, havendo diferentes
interpretaes sobre os princpios e valores tico-sociais, no sendo mais aceitas
idias absolutas. Tudo relativo, ocasionando crises de grandes dimenses.
Na dico de Eduardo Carlos Bianca Bittar:
(...) tica deve ser uma atitude reflexiva de vida, algo impregnado
dimenso da razo deliberativa, em constante confronto com as inquiries,
dificuldades, os desafios e problemas inerentes existncia em si. -se
freqentemente interrogado pela existncia acerca dos modos de agir.
Perceber isto perceber que est-se permanentemente revisando os
modos como se intervm sobre a realidade, em geral, e sobre a realidade
do outro, mais especificamente.47
Cabe assinalar, ademais, nas palavras de Matilde Carone Slaibi Conti: tica
o estudo do comportamento do homem em sociedade. o combustvel que
abastece a sobrevivncia humana no planeta, com o senso de dignidade e da
responsabilidade de uns para com os outros.48
Fortes discusses vm ocorrendo na rea da sade decorrentes dos avanos
mdico-cientficos, que tm sido to rpidos que o nmero de testes genticos
disponveis, tanto para caractersticas normais como patolgicas, esto aumentando
a cada dia. Enquanto questes ticas a ela relacionadas esto sendo debatidas no
mbito acadmico, os laboratrios esto disputando a possibilidade de desenvolver
e aplicar testes de DNA, pois do ponto de vista comercial os interesses so
enormes.
47 BITTAR, tica, Educao,... p.4. 48 CONTI, op. cit. p. 3.
43
O progresso baseado nos avanos tecnolgicos no deve cooperar para
aprofundar as desigualdades sociais, menos ainda, servir de elemento para
degradao do homem.
Apesar dos aspectos positivos apresentados pelo desenvolvimento
tecnolgico a sociedade no se sente segura de que o progresso cientfico possa
resolver os problemas que resistem ao tempo. Desta forma, nunca foi to importante
como atualmente, refletir e despertar para as questes e valores ticos essenciais,
de modo a assegurar de maneira digna a plenitude do direito vida e a sade.
2.2.1. tica e moral
A idia do correto proceder como vimos recebe a denominao de tica. Seus
conceitos so mutveis, variando de acordo com o contexto em que est inserido
num dado momento.
Quanto distino de tica e moral, podemos dizer que a primeira expressa
uma ao do homem em suas relaes pessoais e sociais. Nesse desiderato, moral
pode ser denominada como conjunto de regras de conduta desejveis num grupo
social.49
Na sociedade atual observa-se que coexistem diferentes morais baseadas em
princpios diversos. Apesar de ambas as palavras serem originariamente
semelhantes, foram adquirindo diferentes significados e compreenses.
Historicamente a palavra tica sempre foi relacionada com a moral, em todas
as suas manifestaes, como na cincia, e na arte. Os seus conceitos so variveis,
e exterioriza-se de acordo com o tempo e o espao social.
49 HOUAISS, op. cit. p. 505.
44
H doutrinadores que no distinguem o conceito e aplicao da tica e moral,
e ainda colocam que a primeira atua na esfera terica e a segunda no campo
prtico. Porm de acordo com o magistrio de Maria Celeste Cordeiro Santos, ao
fazer uma abordagem desses termos expressa-se desta forma:
tica e moral no so considerados perfeitamente sinnimos. Por moral
entende-se um sistema de normas de conduta que visam regular a ao
humana. Do latim mos, moris, que tambm significa uso, costume, maneira
de viver. J a palavra tica, de origem grega, procede de ethos, que
significa onde se habita, morada. Aponta esta palavra para a concepo de
lugar privilegiado que tem o homem e que o distingue e qualifica. Nas
lnguas latinas, no possumos um termo especfico para nos referir a esse
sacrrio que cobia a moralidade. Utilizamos a idia de conscincia que no
representa totalmente o mesmo. Posteriormente, a palavra ethos adquiriu a
concepo de modo de ser, de carter.50
Ainda na lio de Maria Celeste Cordeiro Santos: tica em sentido restrito
a cincia do dever moral. Ela no um ideal a ser alcanado por um sujeito ideal.
Est sujeita s leis da cultura e da moral.51
Os atos ticos so inerentes ao ser humano. Podem ser livres, voluntrios e
conscientes, sendo caracterizados pela forma como afetam as pessoas, o meio
ambiente e/ou a coletividade.
Quando se fala de tica e moral a diferena consiste, na medida em que a
moral muitas vezes ligada a preceitos religiosos, comportamentos moralistas e
normativos, que influenciam as relaes do homem com a sociedade.
Conforme comenta Zygmunt Bauman
50 SANTOS, O equilibrio..., pp. 30-31. 51 Idem.
45
De muitas coisas podemos afirmar que quanto mais delas se necessita
tanto menos facilmente esto disponveis. Essa afirmao vale com certeza
com respeito a normas ticas comumente acordadas, de que tambm
podemos esperar que sejam comumente observadas: essas normas podem
guiar nossa conduta em nossas relaes mtuas nosso relacionamento
para com os outros e, simultaneamente, dos outros para conosco de sorte
que possamos nos sentir seguros em nossa presena recproca, ajudar-nos
uns aos outros, cooperar pacificamente e derivar de nossa presena mtua
prazer no corrompido pelo medo ou pela suspeio.52
Assim sendo, uma reflexo tica tem carter filosfico, religioso e
sociolgico. Mantm uma perspectiva humanista e autnoma. Busca ver o homem
em sua globalidade.
2.2.2. tica e normas jurdicas
Em cada sociedade, podemos encontrar diversas vises e correntes ticas e
morais, no entanto apenas as normas jurdicas mantm uma unicidade, devendo,
mesmo assim, disciplinar uma sociedade com tantas distines.
Nas palavras de Paulo Nader53: O Direito no o nico instrumento
responsvel pela harmonia da vida social. A Moral, Religio e Regras de Trato
Social so outros processos normativos que condicionam a vivncia do homem na
sociedade.
Em sentido semelhante, conforme Joo Maurcio Adeodato54: Uma
observao fenomenolgica da conduta humana em sociedade revela a existncia
de quatro ordens normativas bsicas: a religio, a moral, os usos sociais e o direito.
52 BAUMAN, tica Ps-Moderna, 2 edio, 2003, p. 23. 53 NADER, Introduo ao estudo do direito, 24 edio-Revista e atualizada de acordo como novo Cdigo Civil, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, 2004, p. 29. 54 ADEODATO, tica e Retrica: para uma teoria da dogmtica jurdica, 2002, p. 23.
46
Atualmente, vivenciamos grandes polmicas quanto tica envolvida na
biotecnologia. Embora no haja ilegalidade no desenvolvimento da cincia, h um
dilema tico, especialmente envolvendo os profissionais da sade. A deciso a ser
tomada pelos mesmos dever ser baseada nos valores e princpios ticos, avaliando
os riscos e os benefcios que envolvem cada caso.
2.2.3. tica e normas deontolgicas
A deontologia pode ser entendida como o tratado do dever ou o conjunto de
deveres, princpios e normas adotadas por um determinado grupo profissional. A
deontologia uma disciplina especial da tica, destinada ao exerccio de uma
profisso. denominada normalmente de tica profissional.
Existem diversos cdigos de deontologia, sendo esta codificao da
responsabilidade de associaes ou ordens profissionais. Em geral, os cdigos
deontolgicos fundamentam-se nas grandes declaraes universais e buscam
traduzir o sentimento tico expresso nestas, adequando-os s particularidades de
cada pas e de cada grupo profissional, prevendo sanes, segundo princpios e
procedimentos explcitos, para os infratores do mesmo. Alguns cdigos no
apresentam funes normativas e vinculativas, oferecendo apenas uma funo
reguladora.
No Brasil55, h diversas categorias profissionais, especialmente na rea da
sade, que esto submetidas a normas deontolgicas, contidas em seus cdigos de
55 Foram elaborados trs Cdigos de tica Mdica. O primeiro, de 1965, dava bastante nfase relao mdico-paciente e, particularmente, relao mdico-mdico. Esse Cdigo foi substitudo, em 1984, pelo Cdigo Brasileiro de Deontologia Mdica, que teve pouca vigncia e enfrentou grandes resistncias, pois era dotado de forte orientao paternalista. O atual Cdigo de tica Mdica (Resoluo CFM N. 1.246/88) teve sua publicao no Dirio Oficial da Unio em 26 de janeiro de 1988. (Marconi do Cato, Biodireito: Transplante de rgos Humanos e Direitos de Personalidade, p. 37).
47
tica. Tais normas padronizam a conduta para os profissionais em suas relaes
com membros de sua prpria categoria, como tambm de outras, alm da sociedade
em geral. No entanto, pode haver divergncias entre o cdigo tico de uma
categoria com outras.
Como leciona Paulo Antonio de Carvalho Fortes:
Diferentemente do que ocorre em outros pases, como os Estados Unidos
da Amrica, em que as normas deontolgicas so apenas orientaes
diretivas para os profissionais de sade, pois estes no so obrigados a se
filiarem s associaes de classe que as emitem, no Brasil as normas
emanadas dos Conselhos de tica Profissionais tm poder coercitivo,
estabelecem sanes quando de sua violao, sanes garantidas pelo
poder estatal.56
Embora os cdigos tenham como finalidade assegurar uma reserva moral ou
uma garantia conforme com os Direitos Humanos, pode ocorrer perigo de
monopolizao de uma determinada rea, grupo ou conjunto de profissionais, sobre
questes relativas a toda a sociedade.
Os conselhos de tica da rea da sade tm como objetivo preservar o
desempenho tcnico e moral de seus afiliados. No Brasil obrigatria a inscrio do
profissional de sade no rgo regional da categoria para regulamentar seu
exerccio profissional.
De acordo com Marco Segre e Cludio Cohen:
a deontologia um estudo dos deveres de mdico (...) poderamos chamar a
Deontologia Mdica de moral mdica, isto , o elenco das obrigaes que o
mdico tem, porque assumiu, com o seu mundo profissional: o paciente, a
famlia do paciente, a sociedade em geral, o colega, o Estado. (...)
56 FORTES, tica e Sade. Questes ticas, deontolgicas e legais. 1998, p. 30.
48
Deceologia dikeos, em grego, significa direito ser a moral dos direitos.
(...) a Deontologia a codificao dos direitos profissionais.57
As crticas a esta forma de regulamentao da tica ocorre especialmente
devido a normas deontolgicas, no raramente, privilegiarem apenas a parte do
profissional, contrariando os anseios do cliente (ou paciente). Exemplo disso a
omisso do mdico em informar ao paciente de seu real estado de sade, sob a
alegao de que tal informao poderia causar danos ou prejuzos psicolgicos ao
mesmo. H tambm quem acuse tais cdigos de tica de ocultarem
comportamentos inadequados de seus afiliados, em prejuzo a toda sociedade.
Apesar das dificuldades em se definir o que realmente pode ser adequado
para o paciente, deve prevalecer o bom senso. E, no campo da sade, prudente
observar, ainda, as recomendaes de Paulo Antonio de Carvalho Fortes.
Quando so defrontadas duas opes, dever-se-ia pesar cada uma delas e
escolher aquela que trouxesse mais benefcios ao maior nmero de
pessoas e na qual fossem eliminados, evitados ou minimizados os danos, o
sofrimento, a dor das pessoas envolvidas, ou seja, o que for considerado
em oposio ao bem. Quando as conseqncias das alternativas
possveis se equivalem no balano entre o bem sobre o mal, o agente
tico tem direito moral de escolher entre qualquer uma delas.58
Para os utilitaristas, o ato tico deve buscar o maior benefcio para o
indivduo, o grupo ou a sociedade, muito embora nem sempre o que benfico para
a maioria das pessoas, o seja para todas. Sempre haver excees.
Nesse ponto, pode-se afirmar que medidas radicais dificilmente atendero ao
princpio bsico da tica, pois tudo deve ser visto pelo prisma da relatividade. Os
indivduos tm caractersticas fsicas, psicolgicas e sociais diferenciadas, devendo
57 SEGRE & COHEN, Biotica, 2002, p. 31. 58 FORTES, op. cit. p. 32.
49
ser tratadas tambm de formas distintas, sempre visando ao bem-estar e
preservao da sua dignidade.
Os cdigos de tica mdica, adotados no Brasil, segundo Gabriel Oselka
caracterizam-se por representar uma mescla de cdigo de moral que de alguma
forma amplia e define a doutrina hipocrtica com o cdigo administrativo que
regula com preciso muitos aspectos prticos da profisso.59
Assim, as questes relacionadas com a tica, tem sido nas ltimas dcadas
discutidas de forma calorosa nos diversos setores da sociedade. E, em especial na
rea da sade, em razo das transformaes que passa o mundo, desencadeando
no homem um temor de que ocorra uma fragilidade junto a valores tico-sociais, em
razo dos grandes avanos cientficos e tecnolgicos que estamos vivenciando.
Instaurou-se um debate no mundo no tocante questo cincia versus tica.
Destarte, com a fuso da tica, e a intitulada cincia da vida, originou-se a
Biotica. Responde pela integrao da cultura humanstica e das tcnicas cientficas.
2.3. Biotica
Atualmente utiliza-se muito o termo Biotica, palavra que possui um
significado amplo, mas em sntese, definida por diversos doutrinadores como o
estudo do comportamento moral do homem em relao s cincias da vida. Trata-
se basicamente de uma aproximao entre a tica, medicina e a biotecnologia.
59 OSELKA, O Cdigo de tica Mdica. In: SEGRE & COHEN, (orgs.), 2002, p. 63.
50
A Biotica ocupa-se dos aspectos ticos relativos vida e morte do homem.
Tenta hierarquizar valores sociais, religiosos, mdicos, e legais na soluo de
eventuais conflitos. Num sentido estrito significa a tica aplicada s cincias da vida.
O direito vida, e morte digna uma abordagem presente desde o
momento em que o homem consegue valorizar sua existncia e temer o seu fim.
Assim tem a Biotica como campo de preocupao as intervenes mdico-
cientficas; para tanto, estabelece limites ticos e morais dentro da ao cientfica,
tendo sempre como paradigma a dignidade da pessoa humana, em todos os seus
ciclos: concepo, nascimento e morte.
Para Eduardo Carlos Bianca Bittar:
A biotica , portanto, uma resposta a essas necessidades hodiernas,
consistindo na avaliao crtico-moral dos avanos mdico-tcnico-
cientfico, pode-se dizer que se constitui numa reao com vistas a
estabelecer o compasso reflexivo e dialgico ao avano de tcnicas
aplicadas e experimentais que sacrificam valores e conceitos humanos
preexistentes ou recentemente adquiridos.60
Dessa forma, a Biotica uma resposta tica nas questes suscitadas pelo
desenvolvimento mdico-cientfico. Possui incidncia, especialmente nas cincias
biomdicas. Trata de questes como clonagem, aborto, eutansia, transplantes,
biossegurana e outras.
Neste contexto examinaremos as questes pertinentes ao seu conceito,
surgimento, caractersticas, e princpios, bem como passaremos brevemente pela
sua diviso clssica em macrobiotica e microbiotica.
60 BITTAR, Curso de tica...p. 94.
51
2.3.1. Conceito de Biotica e seus aspectos histricos
O primeiro postulado tico-moral em cincia mdica surgiu com o
pensamento hipocrtico, que apesar de no estar assentado em fundamentos
jurdicos, tornou-se historicamente dogmtico no exerccio da medicina.
A Biotica, filosoficamente, tem seus princpios baseados na autonomia do
indivduo, na beneficncia, na no-maleficncia e na justia.
Conforme assevera Marco Segre, a Biotica a parte da tica, ramo da
filosofia, que enfoca as questes referentes vida humana (e, portanto, sade). A
Biotica, tendo a vida como objeto de estudo, trata tambm da morte (inerente
vida).61
Historicamente a nomenclatura deste termo Biotica, atribuda ao
oncologista e bilogo norte-americano Van Rensselder Potter, da Universidade de
Winsconsin, em Madison, que a utilizou pela primeira vez em sua obra, intitulada
Bioethics: bridge to the future (Biotica: uma ponte para o futuro), publicada no ano
de 1971, dando-lhe inicialmente um sentido ecolgico. Para ele era importante criar
um elo entre cincias biolgicas e valores morais.
Mas conforme colocado por James Drane e Leo Pessini, para uma melhor
compreenso do conceito de Biotica, necessrio se faz usarmos como referencial
as definies contidas na Encyclopdia of Bioethics (Enciclopdia de Biotica), que
assim dispe:
61 SEGRE & COHEN, op. cit. p. 27.
52
1 edio 1978 como: O estudo sistemtico da conduta humana no
mbito das cincias da vida e da sade, enquanto essa conduta
examinada luz de valores e princpios morais. J na 2 edio - 1995,
composta por cinco volumes, afirma-se que a biotica um neologismo
derivado das palavras gregas bios (vida) e ethike (tica). Pode-se defini-la
como o estudo sistemtico das dimenses morais incluindo viso,
deciso, conduta e normas morais -, da cincias da vida e da sade,
utilizando uma variedade de metodologias ticas num contexto
interdisciplinar. E, por fim na 3 edio - 2004, biotica foi definida como o
exame moral interdisciplinar e tico das dimenses da conduta humana nas
reas das cincias da vida e da sade.62
De acordo com o magistrio de Maria Helena Diniz:
A biotica seria, em sentido amplo, uma resposta tica s novas situaes
oriundas da cincia no mbito da sade, ocupando-se no s dos
problemas ticos, provocados pelas tecnocincias biomdicas e alusivos ao
incio e fim da vida humana (...), mas, constituiria numa vigorosa resposta
aos riscos inerentes prtica tecnocientfica e biotecnocientfica (...), no
tocante s pesquisas em seres humanos, como eutansia, engenharia
gentica e outras.63
So considerados dois fatores como principais responsveis pelo
desenvolvimento da Biotica: a revoluo biolgica e o fortalecimento do movimento
dos direitos humanos, pois as questes com as quais se relaciona, dizem respeito
dignidade da pessoa, devendo ser a mesma o centro de todo e qualquer debate, por
ser ela que sofrer os efeitos tanto benficos como, se o caso, os malficos, no
podendo ser afastada de toda e qualquer deciso.
nesse sentido que Eduardo Carlos Bianca Bittar, coloca como sendo a
biotica uma resposta pragmtica a um contexto de mutaes em que o ser humano
se v exposto ganncia intelectual, tcnica e economica do prprio homem64.
62 DRANE & PESSINI, Biotica, Medicina e Tecnologia: Desafios ticos na fronteira do conhecimento humano, 2005, pp. 41-42. 63 DINIZ, O estado atual do biodireito, 2001, pp. 11-12. 64 BITTAR, Curso de tica...p. 94.
53
Quanto sua abrangncia, nas palavras de Marco Segre e Claudio Cohen, a
Biotica pode ser dividida em dois ramos.
Macrobiotica, que responsvel pela abordagem de matrias relativas
Ecologia, com a finalidade de preservar a espcie humana no planeta, ou
Medicina Sanitria, dirigida para a sade de determinadas comunidades ou
populaes, e Microbiotica, voltada basicamente para o relacionamento
entre os profissionais de sade e os pacientes, e entre as instituies
(governamentais ou privadas), os prprios pacientes, e, ainda, no interesse
deles, destas com relao aos profissionais de sade.65
Referente a sua classificao temtica Maria Helena Diniz assim considera:
a) biotica das situaes persistentes, se ocupar de temas cotidianos, que
persistem desde que o mundo mundo, como aborto, eutansia, racismo,
excluso social e discriminao; b) biotica das situaes emergentes, se
relativa aos conflitos originados pela contradio verificada entre o
progresso biomdico desenfreado dos ltimos anos e os limites da
cidadania e dos direitos humanos, como fecundao assistida, doao e
transplante de rgos e tecidos e engenheiramento gentico.66
A biotica, nos ensinamentos de Matilde Carone Slaibi Conti67, tem