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JANEIRO | FEVEREIRO 2016 50 Nesta entrevista de abertura de “Li- vros”, o presidente do Instituto de Pes- quisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé Souza, faz um convite à reflexão sobre os velhos paradigmas norteadores da sociedade brasileira, explicados em sua última obra. E também apresenta o an- damento da mais recente pesquisa do Instituto. RUMOS – O que a “Radiografia do Bra- sil contemporâneo” trará de novo sobre a sociedade brasileira? Em qual mo- mento a pesquisa se encontra? JESSÉ SOUZA A pesquisa reflete essa tentativa de termos acesso à po- pulação brasileira, especialmente a po- pulação que é menos conhecida, que é menos privilegiada. São cerca de 70% da população do Brasil que estão abaixo da classe média real. São eles que queremos conhecer melhor; por exemplo, existem privilégios que são moldados dentro da instituição familiar, que parecem na- turais, mas não são, como a capacidade de concentração. Ela é um privilégio de classe, a classe média tem. E boa parte da população brasileira mais carente não tem. E, talvez, a ausência dela seja uma das causas mais importantes para que ainda hoje uma porção significativa dos pobres saia da escola como analfabe- tos funcionais, porque se precisa dessa capacidade de concentração para poder aprender efetivamente. Então, estamos tentando entender melhor essa relação, da socialização familiar, entre a escola e o mercado de trabalho. RUMOS – E em que momento nós esta- mos da pesquisa? Já é possível adiantar? SOUZA A pesquisa está avançada. Ela tem duas fases. A primeira é de um levantamento geral do Brasil inteiro so- bre todas as classes e as extrações destes aspectos que iremos examinar. E essa TRAZER LUZ AOS VELHOS PARADIGMAS LIVROS primeira fase está em dia, fico muito contente com os resultados, que estão espetaculares. Essa é uma pesquisa extraordinária que está acontecendo e vamos tê-la pronta em março. Na segunda fase, ela vai ter outros focos. RUMOS – A próxima questão é pensar que ter um banco de dados, esse rol de informações, irá auxi- liar no desenho de novas políticas ou na reorien- tação delas. É fundamental ter informações nesse grau de profundidade e confiabilidade para orien- tar esse momento pós-ajuste fiscal? SOUZA Sem dúvida. Até porque é exatamente o tipo de conhecimento que é necessário agora, pois, por exemplo, os programas sociais têm uma especificidade muito grande. E essa especificida- de significa que não pode só ser medida em termos monetários. Além da transparência de renda, os programas implicaram em expansão de horizontes familiares. Há indicativos de que as famílias mais pobres passaram em investir mais em educação, o que é um item muito importante porque o capital econômico é concentrado em todos os lugares, mas o que vai mudar os países, ou seja, se eles vão ser mais igualitários, ou mais desiguais, como o nosso, é o fato de que o capital cultural vai ser democrati- zado ou não. O que o capitalismo consegue demo- cratizar nunca é o capital econômico, isso fica sem- Estamos tentando entender melhor essa relação, da socialização familiar, entre a escola e o mercado de trabalho. Divulgação

TRAZER LUZ AOS VELHOS PARADIGMAS€¦ · Nesta entrevista de abertura de “Li-vros”, o presidente do Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé Souza, faz um convite

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JANEIRO | FEVEREIRO 201650

Nesta entrevista de abertura de “Li-vros”, o presidente do Instituto de Pes-quisa Econômica Aplicada (Ipea), Jessé Souza, faz um convite à reflexão sobre os velhos paradigmas norteadores da sociedade brasileira, explicados em sua última obra. E também apresenta o an-damento da mais recente pesquisa do Instituto.

RUMOS – O que a “Radiografia do Bra-sil contemporâneo” trará de novo sobre a sociedade brasileira? Em qual mo-mento a pesquisa se encontra? JESSÉ SOUZA – A pesquisa reflete essa tentativa de termos acesso à po-pulação brasileira, especialmente a po-pulação que é menos conhecida, que é menos privilegiada. São cerca de 70% da população do Brasil que estão abaixo da classe média real. São eles que queremos conhecer melhor; por exemplo, existem privilégios que são moldados dentro da instituição familiar, que parecem na-turais, mas não são, como a capacidade de concentração. Ela é um privilégio de classe, a classe média tem. E boa parte da população brasileira mais carente não tem. E, talvez, a ausência dela seja uma das causas mais importantes para que ainda hoje uma porção significativa dos pobres saia da escola como analfabe-tos funcionais, porque se precisa dessa capacidade de concentração para poder aprender efetivamente. Então, estamos tentando entender melhor essa relação, da socialização familiar, entre a escola e o mercado de trabalho.

RUMOS – E em que momento nós esta-mos da pesquisa? Já é possível adiantar?SOUZA – A pesquisa está avançada. Ela tem duas fases. A primeira é de um levantamento geral do Brasil inteiro so-bre todas as classes e as extrações destes aspectos que iremos examinar. E essa

TRAZER LUZ AOS VELHOS PARADIGMAS

LIVROS

primeira fase está em dia, fico muito contente com os resultados, que estão espetaculares. Essa é uma pesquisa extraordinária que está acontecendo e vamos tê-la pronta em março. Na segunda fase, ela vai ter outros focos.

RUMOS – A próxima questão é pensar que ter um banco de dados, esse rol de informações, irá auxi-liar no desenho de novas políticas ou na reorien-tação delas. É fundamental ter informações nesse grau de profundidade e confiabilidade para orien-tar esse momento pós-ajuste fiscal? SOUZA – Sem dúvida. Até porque é exatamente o tipo de conhecimento que é necessário agora, pois, por exemplo, os programas sociais têm uma especificidade muito grande. E essa especificida-de significa que não pode só ser medida em termos monetários. Além da transparência de renda, os programas implicaram em expansão de horizontes familiares. Há indicativos de que as famílias mais pobres passaram em investir mais em educação, o que é um item muito importante porque o capital econômico é concentrado em todos os lugares, mas o que vai mudar os países, ou seja, se eles vão ser mais igualitários, ou mais desiguais, como o nosso, é o fato de que o capital cultural vai ser democrati-zado ou não. O que o capitalismo consegue demo-cratizar nunca é o capital econômico, isso fica sem-

Estamos tentando entender melhor essa relação, da socialização familiar, entre a escola e o mercado de trabalho.

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pre em poucas mãos, mas ele pode democratizar o capital cultural. Então, poderemos avaliar esses programas por esse lado: de que maneira essa ação está transformando o horizonte das famí-lias mais pobres, ou seja, elas estão percebendo o mundo e o seu lugar nele de outro modo. Isso é muito mais do que ter dinheiro.

RUMOS – No livro, o senhor propõe uma leitu-ra que está separada do que tradicionalmente é dito e feito dos paradigmas do pensamento social brasileiro. E o senhor mostra que esses conceitos estão incorporados no dia a dia das pessoas, que as repetem de forma irrefletida. De que forma esse paradigma que saiu do campo da academia não ficou restrito lá, influiu no desenho das polí-ticas públicas e no processo de desenvolvimento do Brasil até agora? SOUZA – Ele influiu muito, bastante. Isso é ou-tra coisa que não se percebe normalmente por-que as ideias normalmente ficam invisíveis, o que estimula, digamos assim, uma cegueira ge-ral. As ideias são muito importantes, no fundo. As ideias não são importantes aqui, mas elas ga-rantem a compra dos interesses poderosos. Nor-malmente, pensamos que o dinheiro é tudo, mas no fundo são as ideias dominantes que dizem a forma como você vai usar o dinheiro. Então, as ideias são fundamentais nisso. Elas são muito específicas e singulares, ou seja, o jornalista está no jornal, ele pode ter até uma opinião pessoal, mas ela vai ser uma variação sobre aquilo que já é, sobre aquela ideia que já é dominante naquele tema, então o jornalista repete no fundo as ideias dominantes, como o professor na universidade, o juiz na sua causa. O que aconteceu é que temos no Brasil uma luta de classes que é muito escondi-da, porque é encoberta. Nós somos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. Mas a sociedade se acomodou, acha isso normal. Essa questão é muito assustadora: que a desigualdade não seja obviamente a grande questão a ser com-batida no Brasil.

Com isso se monta um mundo que só existe na ideia com nenhuma relação com o real para que se possa manipular o resto da sociedade. No fun-

Nós somos um dos países com a pior distribuição de renda do mundo. Mas, a sociedade se acomodou, acha isso normal. Essa questão é muito assustadora: que a desigualdade não seja obviamente a grande questão a ser combatida no Brasil.

A Tolice da Inteligência BrasileiraJessé SouzaCasa da Palavra, 272p., 2015. .

do, há uma luta de classes que está des-conhecida. A classe média, por exem-plo, corresponde há 20% da população, no máximo. No fundo, a classe média é explorada sobre todos os modos, por mecanismos estatais, ou por mecanis-mos de mercado por essa meia dúzia de ricos, mas ela não percebe isso, ela vê, considera que o mal está no Estado.

RUMOS – Seria o caso de pensar num novo paradigma para entender o Bra-sil? Como construir, ou como abrir esse caminho para essa reflexão ampla des-ses mitos que estão incorporados? SOUZA – A dúvida é essa. O meu ca-minho é pensar que devemos pôr a luz àquilo que estava escondido. Então, todas essas estruturas de dominação precisam ser explicitadas. Na minha visão, esse aspecto é o mais importan-te. A questão central entre nós é a desi-gualdade. Por que todos os problemas centrais que temos advêm dela: a inse-gurança, a má qualidade dos serviços, a baixa produtividade. E essa é a questão econômica, social e política mais im-portante, não tem nenhuma outra.

RUMOS – O senhor acredita, agora à frente do Ipea, que existe algum instru-mento que permita ao instituto mudar o modo como o Estado brasileiro é vis-to? Este é um papel que cabe ao Ipea? SOUZA – O Ipea tem que assessorar o governo. Ele atua do melhor modo possível e tem a função institucional de promover os seus debates importan-tes para o desenvolvimento brasileiro. E esse desenvolvimento brasileiro é em todos os níveis: desenvolvimen-to social, político e econômico. É com o aprofundamento dessa agenda que o país deve e pode se debruçar. Es-sas questões mais essenciais são uma agenda fundamental.

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Guerra dos lugaresRaquel RolnikBoitempo Editorial, 424 p., 2015.

UM LUGAR NO MUNDOCom o instigante título, Guerra dos lugares, a nova obra da urbanista Ra-quel Rolnik, reúne as reflexões pos-teriores ao mandato da autora como relatora para o Direito à Moradia Adequada da ONU. No livro, ela abor-da o processo global de financeiri-zação das cidades e seu impacto so-bre os direitos à terra e à moradia dos mais pobres e vulneráveis.

Dividido em três partes, Rolnik, no início, descreve e analisa as trans-formações recentes nas políticas ha-bitacionais e fundiárias em vários países do mundo, no marco da ex-pansão de uma economia neoliberal globalizada, controlada pelo sistema financeiro, que provocaram um pro-cesso global de insegurança da pos-se. Na terceira, a urbanista explora a

mesma questão, com foco no Brasil.A originalidade da obra reside no enfo-que global do fenômeno, investigado a partir da vivência direta de uma autora brasileira olhando as condições de mo-radia no mundo. A leitura da evolução recente das políticas habitacionais e ur-banas no Brasil – inclusive na era Lula – à luz desses processos globais ajuda a pensar as especificidades e as diferenças da crise urbana no país.

Também é original o entrelaçamen-to entre as políticas habitacionais e a política urbana, articuladas pela auto-ra através da construção da hegemonia da propriedade individual e da trans-mutação dos imóveis em ativos. Ainda sobre essa temática, Rolnik escreveu O que é cidade e A cidade e a Lei, dentre outras obras.

China em TransformaçãoMarcos Antonio Macedo Cintra, Edison Benedito da Silva Filho e Eduardo Costa Pinto (orgs.) Ipea, 602 p., 2015.

O NASCIMENTO DE UMA POTÊNCIA O que fez a China se tornar a segunda maior economia do mundo? As varia-das transformações ocorridas naquele país são examinadas em detalhes por professores de diversas universidades brasileiras, sob a coordenação de Mar-cos Antonio Macedo Cintra, Edison Benedito da Silva Filho e Eduardo Cos-ta Pinto e publicação do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É uma obra robusta que aborda desde questões referentes à industrialização, à inserção nas cadeias produtivas glo-bais, à gestão da moeda e do crédito, passando pelo aparato modernizante.

Ao escrever sobre o livro, o profes-sor associado do Instituto de Econo-mia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IE/UFRJ), Ernani Teixeira Torres Filho, destaca que o texto “es-timula o debate sobre as principais

características do modelo de desen-volvimento chinês e as céleres trans-formações ocorridas no socialismo de mercado, ou uma das formas existen-tes de organização do capitalismo na China contemporânea. Este debate entre funcionários públicos, formula-dores de políticas, empresários, sindi-catos, partidos políticos, acadêmicos, jornalistas e estudantes pode ser fru-tífero para alimentar a discussão sobre um novo desenho de desenvolvimento para o Brasil, projeto que deverá impli-car mudanças na inserção internacio-nal do nosso país, nas dimensões co-mercial, produtiva e financeira.”

A obra foi publicada em versão digital e está disponível na internet para download gratuito por meio do endereço eletrônico do Ipea: http://migre.me/t8S9h.