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Trecho do livro "O segredo da bastarda"

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A madrinha

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I maginava que ninguém me levaria a fazer uma viagem sem o meu consentimento porque, sendo quem sou, um desejo real não podia

ser mais importante do que a minha vontade. Não nego que por vezes a falta de luz me provoca uma nostalgia de águia e preciso me elevar às alturas para sentir a imensidão do céu. Porém, nesse momento estava mais inclinada a ficar onde estava.

Quando a mãe da recém-nascida me escolheu para ser madrinha de batismo, não cheguei a recusar o convite, porque frei Anselmo, senhor da casa onde eu morava, pensou que eu não demonstrava qualquer en-tusiasmo por excesso de modéstia. Nada de menos verdadeiro. O motivo que me levou a não querer aceitar tomar a meu cargo a pequena Eugê-nia era conhecer, melhor do que ninguém, os limites que me impuseram ao assumir as minhas funções. E, assim, frei Anselmo, orgulhoso de me terem escolhido, apressou-se a agradecer a honra que nos faziam, antes de eu poder, não digo falar, que a mudez não me permitia dizer de viva voz o que pensava, mas pelo menos manifestar de alguma maneira o meu descontentamento.

O consentimento foi interpretado como meu e provocou tanta ale-gria no palácio que as infantas se puseram a bordar o vestido que levei na cerimônia, falando dele como “as suas melhores vestes”, como se eu,

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se quisesse, não pudesse usar roupas celestiais. Um dia, me vestiram com aquelas sedas pesadas por serem enfeitadas a ouro, e frei Anselmo e o pa-jem Damasceno andaram durante duas horas à minha procura, suando pelo esforço de me encaixarem no banco da carruagem, obedecendo à ordem expressa das princesas de não me amarrotarem o dito vestido. Elas seguiam os preparativos através dos retângulos de vidro das janelas do Paço, andando na ponta dos pés e fazendo tanto alvoroço que, no fim, confundiram o meu cansaço com a paciência de uma santa.

Depois de encontrarem forma de me proteger, a mim e ao precioso traje, pensei que finalmente iríamos partir porque acabava o tempo para chegar na data marcada para o batizado. Mas não foi assim, o pajem e os cocheiros pediram licença para adiar a partida até a manhã seguinte por causa do calor, e passei a minha primeira noite “fora de casa”, ex-pressão que encontrou o pajem Damasceno para não dizer às infantas que eu ficaria ao relento.

Antes da madrugada, os dois cocheiros e o pajem atrelaram os ca-valos no maior dos silêncios e saímos lentamente do paço rodeados pela escolta, deixando atrás de nós um suave eco de cascos.

Eu, que sempre me sentira bem na minha casa, olhando pelo portão de entrada os telhados prolongarem-se até o rio, vi-me presa num cubículo de madeira sofrendo os solavancos do caminho que me levava a Guimarães, coberta com um pano de veludo leve para me proteger do pó que o vento levantava nas estradas e penetrava pelas fendas da carruagem.

A minha viagem fora longamente discutida na corte, porque cada proposta levantava novas questões e não se conseguia acordo sobre a me-lhor maneira de me fazerem chegar ao meu destino. Pessoalmente, eu teria preferido um meio de locomoção mais rápido, numa das barcaças que faziam o percurso entre a capital e o norte.

– Se os caminhos são longos e perigosos – argumentou alguém –, têm a vantagem de poder oferecer refúgio durante uma tormenta, en-quanto no mar o único recurso é rezar o terço. Quem pode assegurar-nos de que não vai ser engolida por uma onda?

Por decisão unânime, viajei por terra.Fizemos muitas horas de mau caminho, com poeira a entranhar-se

na pele e nas narinas, secando tanto as gargantas dos cocheiros, do pajem

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e dos soldados que, mal viam ao longe uma estalagem, a sede parecia au-mentar. Enquanto os tratadores secavam os cavalos suados, verificavam as ferraduras e os levavam para comer e descansar na sombra do telheiro das manjedouras, os meus transportadores bebiam, comiam e de noite dormiam o sono dos justos, ao qual pecadores como eles também tinham direito.

A carruagem tinha as armas reais pintadas em cada porta e a mi-nha escolta sentia-se segura nesses caminhos de Deus e de ninguém, por onde, além das cobras e de algum rebanho de ovelhas, também passavam salteadores que, ao reconhecerem o brasão, mudavam de rumo. Não era por estarem atentos que durante a viagem os homens falavam pouco, mas por respeito à minha pessoa; e eu preferia que assim fosse, ainda que nunca tivesse dado a entender, para poder cochilar embalada pelo chiar das rodas e o passo dos 22 cavalos.

Antes de chegarmos ao Porto, as colinas começaram a dificultar o bom andamento da carruagem e obrigaram os cocheiros a seguir um percurso mais tortuoso para as contornar. Mais a norte, para evitar os enormes pe-nhascos, o caminho começou a estreitar em alguns trechos, mas o vento do fim da tarde soprou de repente com força, levantando a terra seca e às ve-zes cegando o cocheiro. O homem, num gesto espontâneo para proteger os olhos, deu sem querer um puxão nas rédeas que descontrolou os cavalos, fazendo com que a roda traseira batesse num bloco de granito. O eixo cedeu e a carruagem deteve-se de repente, caindo bruscamente do lado esquerdo da beira, sem apoio. Enquanto os homens maldiziam a sorte com palavras pouco próprias aos ouvidos de uma dama, o pajem debruçou-se no interior do meu compartimento para ver se tudo estava em ordem, como lhe tinham recomendado mil vezes as infantas.

Eu continuava bem encaixada no meu lugar; a única coisa que tinha saído do lugar era a pasta que continha os envelopes com as pro-curações passadas pelo infante D. Pedro, convidado para padrinho de Eugênia, que, por não poder deslocar-se, transmitira ao tio dela a honra de o representar, pois, sendo este eclesiástico, estaria à altura de um en-cargo tão importante. Damasceno resolveu deixar a pasta onde caíra e aproximar-se dos cocheiros para os ajudar a consertar a roda, chegando no preciso momento em que o homem mais velho dizia:

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– Isto não é bom sinal, eu lhe garanto. Partir uma roda transpor-tando a imagem da Nossa Senhora da Madre de Deus é um mau pres-ságio. Para quem, não sei, mas que daqui não vem nada de bom, isso eu lhe garanto. Só vou ficar descansado quando regressarmos a Lisboa sem ter acontecido mais nada. Nem parece que levamos uma santa!

– Alto aí, que já começa a blasfemar e, se não fosse seu amigo e não estivéssemos num lugar deserto onde ninguém nos ouve, ia parar na fogueira.

– Olhem o sol querendo nos queimar vivos – disse Damasceno, que falava pouco e gostava de gracejar para arrefecer os ânimos.

Ouvi o riso dos três que, tirando as casacas e arregaçando as man-gas, se puseram a trabalhar. A escolta aproveitou o imprevisto para des-montar, descansar as pernas e esfregar as partes doloridas do corpo, dei-xando que os cavalos comessem algumas ervas sem lhes soltar as rédeas, porque não convinha que se dispersassem, não fosse alguma quadrilha de salteadores ignorar as insígnias da casa real e aproveitar o momento para cair sobre eles.

Algumas horas mais tarde, prosseguimos a viagem, guiados por uma lua clara e algumas estrelas que foram aparecendo, uma a uma ou em grupos, como se tivessem estado à espera do sinal para entrar no céu como faziam todas as noites. Os cavalos desconheciam o caminho, mas seguiam o seu instinto para evitar novos acidentes, tentando adivinhar os perigos entre as sombras da noite.

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A afilhada

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N a casa do arco, em Guimarães, trabalhava-se para o batizado. As moças do campo, levadas à vila para aprenderem o ofício de

servir quando mal deixavam de ser crianças, andavam de um lado para o outro bem eretas pelo hábito de carregarem tudo sobre a ca-beça. Enquanto umas passavam a ferro pela última vez a toalha de linho estendida sobre a mesa grande da casa de jantar, outras esco-lhiam dos cestos as flores e tufos de folhas para enfeitar o oratório, fazer o centro de mesa e os arranjos da entrada. Encheram os cantos escuros da casa com ramos de cores e cheiros variados, porque os pais queriam celebrar não só o batizado, mas também a chegada da primeira menina, depois de três rapazes, nascida em 9 de março de 1775: Eugênia.

Os faqueiros e as travessas de prata tinham sido tirados das estantes e gavetões e já estavam sendo areados, e também as louças finas e os copos de cristal guardados para os dias de festa nos armários eram limpos com panos gastos para que não pegassem poeira e até ficarem brilhando. Nas cozinhas sombrias, quatro mulheres vestidas de preto com toucas e aventais brancos andavam em volta dos fo-gões: uma atiçando o fogo; outra batendo gemas para o arroz-doce; a terceira vigiando as peças de carne postas no forno de lenha que

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assavam lentamente e que, depois de algumas horas, ficavam tão tenrinhas que se desfaziam na boca; a última polvilhando de açúcar e canela as filhós acabadas de fritar.

No pátio, os criados tinham montado um espeto de ferro apoia-do em outros que acabavam em forma de forquilha, onde douravam dois leitões mortos na véspera. Já o cordeiro tivera um tratamento diferente, requintes como descansar dois dias e duas noites dentro de uma calda de vinha-d’alhos, para depois ser aberto e posto com as patas esticadas apontando os cantos da grade, fazendo crepitar os pedaços de lenha do carvão com a gordura.

– Grelhar a carne é trabalho de homem sábio. Mulher cozinha bem, mas só no aconchego do fogão, onde é rainha – repetia o velho escravo Teseu, que não era insensível aos aromas que lhe passavam ren-te às largas narinas, enquanto lustrava as botas, cintos e fivelas.

Alheia a tudo o que acontecia por sua causa, Eugênia dormia num berço de pau-santo, forrado de rendas engomadas, entre len-çóis suaves de cambraia. Estava longe de imaginar que o cheiro dos bolos e doces que pareciam prometer felicidade eterna fossem, na realidade, ilusões e lágrimas mascaradas com quilos de açúcar.

O pajem Damasceno, os dois cocheiros e os homens da escolta lavaram o rosto e as mãos no chafariz da vila depois de terem escova-do os cavalos e tirado a terra acumulada durante a viagem nas portas, assentos e janelas da carruagem.

À hora anunciada, a carruagem que transportava a madrinha sagrada subia a rua de Santa Maria e brilhava como se fosse nova e tivesse acabado de sair do paço. Nossa Senhora, desembaraçada do pano de veludo de seda que a cobria, mostrava o esplendor dos seus paramentos bordados a ouro e prata através dos vidros sem pó. Os habitantes de Guimarães, pouco habituados a tanto movimento, foram logo alertados pelo ruído de muitos cascos de cavalos pisando na calçada e, adivinhando quem chegava, correram à rua principal para vê-la passar. Um silêncio de recolhimento prendeu as pessoas aos seus lugares, como se tivessem sido hipnotizadas pelo brilho do cortejo e um sentimento redobrado de fé as fizesse se sentir cheias de luz.

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A madrinha

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A s pessoas saíram às ruas para me receber, ajoelhando-se e ben-zendo-se à minha passagem, exceto os mais velhos e as crianças

de colo, que me davam as boas-vindas das varandas. Quando passei por baixo da pequena janela no meio do arco que atravessava a rua unindo as duas partes da casa, todos os que lá viviam, desde o senhor até o aprendiz de criado, interromperam o que estavam fazendo para me prestar homenagem: não era todos os dias que uma santa de Lisboa percorria meio Portugal para ir ao batizado de uma menina.

Maria José, primogênita de Cavalleiros, senhora da Casa do Arco e mãe da minha afilhada, ficara órfã aos 6 anos e, provavelmente por se sentir só, por vontade do meu filho, ou porque a juventude a fazia gerar uma prole numerosa, tivera uma criança quase todos os verões desde que se casara, aos 16 anos, com o filho mais novo do marquês de Marialva, Rodrigo de Meneses, que contava 19 anos no dia em que se tornara seu marido.

Ambos me esperavam na soleira da porta. Ele era um homem alto, de rosto anguloso e nariz aquilino, com um porte que não deixava a ninguém dúvidas sobre o berço em que nascera; mas descobri, por detrás do seu ar soberbo de filho de Marialva, pelo cabelo preto que, insubor-dinado, saía da peruca, tendências para o teatro e as grandes ideias. Ela

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era um pouco mais baixa, em outros tons, tudo claro desde os olhos e a pele, que mal aparecia num vestido demasiado sóbrio para a idade, até o cabelo; as formas eram redondas, bem torneadas, com qualquer coisa de acolhedor nos braços que descansavam no colo e um sentido do dever desenhado no contorno da boca e do queixo. Não admira que tivessem se apaixonado depois do casamento, como acontecia quando era feliz a es-colha da família. No olhar de cada um – o dele, um castanho-escuro de ave sonhadora e o dela, um azul-água de uma transparência de riacho –, consegui ler as palavras que, por respeitarem as regras da etiqueta, não disseram em voz alta: “Que melhor madrinha poderíamos ter escolhido para a nossa primeira filha?” Devo reconhecer que na altura concordei que ninguém poderia protegê-la tão bem como eu da doença, da morte e de outras desgraças que espreitavam, vorazes, os berços dos recém-nas-cidos. Mesmo enfaixada e enfiada num vestido que parecia engoli-la, Eugênia não deixava de ser uma menina muito bonita e prometi velar por ela até se tornar mulher.

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O batismo

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A cerimônia do batismo teve a solenidade necessária para es-tar à altura dos ilustres padrinhos, sem, no entanto, fazer

uso da pompa da corte, porque a sobriedade era uma das virtudes de Maria José. A comida foi de tal abundância que alguns convidados olhavam com inveja os cães, enfartados com os restos, dormindo de-baixo das mesas ou lá fora, onde houvesse uma sombra. Dois dias e parte de uma noite foi o tempo que demoraram os amigos vindos de vilas e cidades próximas a festejar a pureza da alma da menina, limpa da carga milenar do pecado original. Duas noites e boa parte dos dias os criados da casa não pararam de levar, trazer, lavar, cozinhar e também comer, beber e rir com os serviçais dos vizinhos e alguns trabalhadores das quintas que haviam juntado para os ajudar, como era costume em ocasiões como aquelas.

No terceiro dia, o andor voltou a ser colocado no seu lugar dentro da carruagem que ia levar Nossa Senhora de Madre de Deus de volta a Lisboa, de onde não voltaria a sair. Antes de partir, o pajem Damasceno entregou como presente de despedi-da da madrinha uma réplica da santa em prata do tamanho do dedo mindinho da afilhada, que Maria José prendeu aos babados bordados que forravam o berço e que mais tarde Eugênia levaria

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sempre presa à roupa interior para que a protegesse das desgraças terrenas.

Os pais, de pé sob o arco, despediram-se da imagem e, mal os cavalos começaram a descer a rua de Santa Maria, o céu encheu-se de nuvens escuras e uma chuva espessa, primaveril, caiu de repente. A filha mais velha da Casa do Arco teve um arrepio, porque algo invisível lhe sussurrou ao ouvido: “Coitada da tua filha, que terrível destino!” Não precisou olhar em volta, sabia que ninguém, ninguém mesmo, além do seu marido, se aproximara dela. Era uma voz estra-nha, a voz premonitória, quase podia jurar que lhe faltava o som e talvez nem fizesse sentido.

Achou melhor não partilhar o mistério com o marido, para evitar angustiá-lo sem motivo e também porque não iria acreditar em coisas que pareciam vindas do demônio. A sua juventude fez com que esquecesse no dia seguinte o aviso da desgraça. E quando, na hora da morte, passaram por sua cabeça os momentos e as pessoas mais importantes da sua vida, entre as quais estavam os seus filhos, ao lembrar-se daquele sussurro esboçou um sorriso e disse a sua filha Eugênia: “Morro sossegada, sei que está bem e nada faz prever que o seu destino mude.”

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