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Trecho do livro "Pensando bem"

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Apresentação

Pensar (o) bemAlexandre Werneck e

Luís Roberto Cardoso de Oliveira

Este livro é produto de três anos de debates no grupo Sociologia e

Antropologia da Moral, primeiramente na forma de Seminário Temático,

posteriormente como Grupo de Trabalho, no âmbito dos encontros anuais

da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais

(Anpocs). Tínhamos como objetivo nesses encontros estimular pesquisas

e discussões sobre as possibilidades de tomar a moral e a moralidade como

focos privilegiados de estudo pelas ciências sociais. Ao longo desse perío-

do, consolidou-se toda uma nova agenda de debates sobre como diferentes

dimensões da vida social podem ser lidas sob a ótica da questão da moral

ou de questões de ordem moral, no sentido amplo do termo, e de maneira

dissociada de perspectivas moralistas ou normativistas, orientadas por

parâmetros predefinidos sobre o dever ser.

Embora a moral sempre tenha sido um tema importante para a socio-

logia e para a antropologia ao longo da história dessas disciplinas, não tem

havido, no passado recente brasileiro, muitos esforços para a realização de

pesquisas empíricas nesta área, especialmente aquelas de caráter etnográfico

e/ou qualitativo, centradas na compreensão do fato moral como tal, no plano

fenomenológico, tendo como referência situações em que os atores se defron-

tam com os desafios propostos por uma vida cotidiana, ela própria moral.

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Assim, se olhamos para a sociologia, seja nos clássicos consagrados seja em autores mais contemporâneos, observamos movimentos como aquele que entende a moral como aparato de formatação dos indivíduos e a serviço das estruturas sociais, do poder, da dominação, seja essa leitura morfológica, como em Émile Durkheim, Norbert Elias ou no estruturalis-mo, seja crítica, como na perspectiva marxista, ou no pós-estruturalismo de um Michel Foucault ou um Pierre Bourdieu. Ou outro movimento, que compreende a moral como aparato relacional, imiscuído nas práticas e constitutivo de uma leitura de cada indivíduo sobre o outro, como em George Simmel ou Gabriel Tarde. Ou, ainda, em um movimento mais pró-ximo daquele buscado por nosso grupo, uma perspectiva que compreende a moral como elemento de preenchimento lógico das próprias ações ou situações sociais, como na Verstehenden (sociologia compreensiva) de Weber ou no interacionismo ou situacionismo pragmáticos de George Herbert Mead e seus seguidores, notadamente na chamada Escola de Chicago, ou nas perspectivas fenomenológicas posteriores ao turning point linguístico, como em Alfred Schütz, na etnometodologia ou na obra de C. Wright Mills. Além disso, e de forma bastante independente de abordagens li-gadas ao interesse e à decisão racional e de um renovado movimento (em especial nos EUA) em associar a moral à biologia, em especial à genética, perspectivas contemporâneas têm mostrado grande interesse na moral como elemento central da vida social na construção de grandes teorias da modernidade, com privilégio para, de um lado, a Teoria (mais filosófica do que propriamente sociológica, mas amplamente aceita como tal) da Ação Comunicativa, de Habermas, e seus desdobramentos na discussão sobre o reconhecimento em Axel Honneth, e, de outro lado, a chamada Socio-logia Pragmatista (da crítica), de Luc Boltanski e Laurent Thévenot, com sua discussão sobre as competências, em especial as críticas, dos atores sociais e na construção das justificações como elemento privilegiado da sociedade moderna.

Do lado da antropologia social, que em alguma medida não deixa de inspirar-se nos mesmos clássicos, os estudos sobre organização social sempre privilegiaram a apreensão das regras ou das normas vigentes em cada sociedade e, a partir de Malinowski, o fizeram com base em material colhido no campo, em pesquisas de caráter etnográfico, nas quais o pes-quisador convive com a sociedade ou grupo estudado durante períodos significativos de tempo. Entretanto, a perspectiva dominante sempre

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enfatizou uma atitude descritiva, pouco afeita à análise (crítica ou não) das justificativas apresentadas pelos sujeitos da pesquisa. Uma exceção signifi-cativa no universo dos clássicos seria a contribuição de Marcel Mauss, que soube cultivar o olhar etnográfico, mesmo sem fazer trabalho de campo, e nunca deixou de manter uma orientação crítica na compreensão do ponto de vista dos nativos – para usar uma expressão corrente na disciplina –, assim como na análise das instituições de sua própria sociedade. E ainda que Mauss seja um autor influente na antropologia brasileira, cuja tradição sempre cultivou orientações críticas de diferentes matizes, aqui também são raros, como na sociologia, os estudos sobre moral preocupados com a análise das justificativas ou dos esforços de fundamentação dos atores ao acionar normas e valores que orientam a ação.

Desse modo, os trabalhos apresentados nas sessões que coordenamos nesses últimos anos de encontros da Anpocs, em sintonia com nossa proposta por uma antropologia ou sociologia da moral e das moralidades, mantiveram a ênfase na compreensão de material empírico e na discus-são de suas implicações, conservando ao mesmo tempo uma distância saudável de movimentos em direção a uma disciplina moral. Da mesma forma, também procuramos evitar abordagens meramente descritivas, conformadas por um relativismo acrítico, que privilegiem a perspectiva do observador externo, e que não se engajem no esforço de compreensão das justificativas dos atores, prestações de conta essas que operam para conferir sentido a suas práticas e sustentação a suas pretensões de legi-timidade e efetividade.

No que concerne à temática mais ampla do seminário, procurou-se contemplar tanto pesquisas voltadas para a compreensão das ideias de correção normativa e noções de justiça – que caracterizam o liberalismo político ou o republicanismo – como aquelas que privilegiam o estudo dos ideais do bem viver ou da “vida boa”, cultivadas na contemporaneidade por abordagens identificadas como comunitaristas, e preocupadas com questões de solidariedade ou com o caráter local dos valores. Interroga-ções analíticas em torno de como atores individuais e coletivos diversos concreta e diariamente configuram princípios avaliativos e a compreensão de seus sentidos e efeitos na produção da vida social foram sistematica-mente discutidos.

Assim, procuramos dar conta de uma série ampla de pesquisas, privi-legiando formas de ultrapassar a dicotomia entre abordagens preocupadas

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com o correto ou justo, de um lado, e aquelas preocupadas com o bom, de outro. Na mesma direção, os trabalhos apresentados puderam explorar e refletir sobre situações nas quais os atores confrontaram moralidades distintas, ou nas quais se engajaram em conflitos que ressaltaram visões diversas sobre as dimensões normativa e valorativa da eticidade. Além disso, foram igualmente bem-vindos trabalhos que analisaram modos e práticas de engajamento moral e seus fundamentos e repercussões, bem como os dilemas e possíveis tensões implicadas na sua constituição nos diversos âmbitos em que atuam, como políticas, movimentos sociais, atuações profissionais, vida cotidiana, dimensão religiosa, esferas cria-tivas etc.

E também nos empenhamos em colidir e colocar em diálogo perspec-tivas preocupadas em “desnaturalizar” a moral ou o universo das morali-dades, com ênfase no ponto de vista dos atores ou em sua orientação, mas com abordagens igualmente críticas ao etnocentrismo e ao niilismo moral. Tal preocupação teve repercussão tanto no plano teórico-conceitual de nossas discussões, como em termos das agendas de pesquisa empírica e de debates públicos, que permearam as apresentações abordando o en-frentamento de dilemas morais. Esse foi o caso das contribuições sobre temas polêmicos e de grande repercussão social, como aqueles voltados para a discussão de políticas públicas que têm mobilizado o cidadão: se-gurança pública, tratamento igualitário, universalização de direitos etc.

Os resultados obtidos demonstram que o universo de questões e a diversidade de situações empíricas nas quais uma abordagem qualitativa, etnográfica ou fenomenológica da moral iluminam nossa compreensão da vida social são aparentemente inesgotáveis.

Os textos efetivamente aqui reunidos representam apenas uma par-cela dos trabalhos apresentados nos encontros da Anpocs de 2010 a 2013 e foram selecionados com o objetivo de oferecer uma ideia da amplitude de temas e situações abordados em nossas discussões. Os autores não apenas aceitaram nosso desafio de empreender pesquisas individuais sobre moral, nos termos indicados anteriormente, mas se engajaram no esforço coletivo de contribuir para o desenvolvimento de abordagens ou para a construção de modelos que permitam pensar a moral como objeto das ciências sociais. A nosso ver, o resultado não poderia ter sido mais produtivo: o experimento de dar ênfase à dimensão moral em campos

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tão distintos quanto os que aqui aparecem permitiu enxergar pontos de contato e possibilidades de saltos de abstração de riqueza inestimável.

Pois quatro são as principais frentes dessa abstração aqui represen-tadas, em um vasto manancial de possibilidades sugerido por esta área ainda tão recentemente renovada e por isso mesmo tão fértil.

A primeira delas, a seção “Debates”, constitui um corpo de reflexões mais gerais e abstratas sobre a moral como objeto de pesquisa em ciências sociais, promovidas por pesquisadores que ocuparam o lugar de debatedor nas sessões do grupo. Dessa maneira, embora estejam sempre assentados nas pesquisas empíricas de seus autores, esses textos também são produto da observação dos trabalhos dos colegas e das tentativas de traçar sínteses e pontos de contato – em diálogo justamente com aqueles seus trabalhos. Assim, enquanto Luís Roberto Cardoso de Oliveira demonstra, por meio de uma discussão sobre a relação entre a filosofia e a antropologia, o papel central da necessidade de compreensão das condições de inteligibilidade das práticas dos atores, promovendo uma discussão sobre como observar o outro – seja do ponto de vista analítico, seja do ponto de vista nativo –, sempre remete para uma filosofização do olhar. Alexandre Werneck propõe uma leitura sociológica da moral centrada em sua compreensão não como sistema de limitações e sim como substância mesma das po-tencializações da agência social, mostrando como, no final das contas, a sociologia da moral é uma sociologia da agência. No primeiro caso, Cardoso de Oliveira chama atenção ainda para a centralidade da noção de dignidade na compreensão das pretensões de correção normativa dos atores envolvidos em conflitos nos quais a qualidade da relação entre as partes ganha o primeiro plano. No outro, Werneck aponta para a criati-vidade como elemento chave de uma vida social na qual os atores sociais se observam, julgam e valoram mutuamente o tempo todo.

Da mesma maneira, vemos, no plano da antropologia, Patrice Schuch explorar ao mesmo tempo as possibilidades de feitura de uma análise da moral/das moralidades pela antropologia – isto é, em seus moldes espe-cíficos, sobretudo a partir da etnografia e da comparação – e as possibi-lidades abertas por essa análise para a própria antropologia, e Gabriel D. Noel mergulha em formas como inventariar possibilidades de desenho de quadros de referência morais no plano da disciplina. A primeira, subli-nhando o caráter analítico e não moralista de uma disciplina como essa, tudo isso animado por seu valioso trabalho a respeito das tecnologias

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morais de governo dos atores, em especial a partir da observação de si-tuações envolvendo adolescentes em conflito com a lei. O segundo, por meio de uma crítica a imagens tradicionais como “cultura” e “código” e propondo se aproximar mais de termos como “repertório”.

E, no plano da sociologia, de uma forma mais próxima da constru-ção de memoriais, cada um a sua maneira, Leonardo Sá e Jussara Freire constroem leituras particulares de como se aproximar da moral sociolo-gicamente. Ele, reconstituindo a maneira como o tema da moral tomou forma em seu percurso de pesquisa, centrado incialmente nas questões da violência e da segurança pública, e como o recurso a ferramentas como competência, dispositivo ou regimes morais abriu novas portas de interpre-tação de pesquisa, ao mesmo tempo que o contato com formas de reflexão próprias da sociologia da moral – notadamente o recurso à compreensão de como os atores constroem suas gramáticas de moralidade – ilumina os estudos sobre conflitos sociais. E ela descrevendo como seu percurso, centrado na descrição dos processos de construção dos problemas públicos nas cidades do estado do Rio de Janeiro, permitiu uma bricolagem, um mix de abordagens sociológicas – notadamente de inclinação pragmática – que pretendem dar conta do acesso ao espaço público por meio de re-cortes analíticos não universalizáveis, mas processuais e compreensivos. A saber, a sociologia dos problemas públicos de Gusfield, o “situacionismo metodológico” e o modelo pragmatista de Bolstanski e Thévenot.

A segunda parte do livro, “Gramáticas, sentidos e dispositivos mo-rais”, diz respeito a estudos que dão conta dos processos de construção de moralidades, isto é, da lógica particular segundo a qual se constroem línguas morais e gramáticas de moralidade associadas a variadas formas de recorte do mundo, explorando justamente a sistematização dessa gra-maticalidade e sua torção sobre as faculdades e capacidades cognitivas dos atores. Assim, vemos Heloisa Buarque de Almeida promover, por meio da observação de episódios do seriado de TV brasileiro Malu mulher, popular na virada da década de 1970 para a de 1980, uma reflexão sobre as construções de gênero nessa produção televisiva, como manifestação cultural e artística de grande repercussão em nossa sociedade. A autora mostra como, em suas próprias palavras, “Malu faz parte de um movi-mento de mudança de construções simbólicas sobre o feminino na TV brasileira, descolando-se de ‘heroínas’ melodramáticas mais tradicio-nais, e buscando constituir imagens de uma mulher relativamente mais

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‘moderna’ e menos submissa”. Ao mesmo tempo, observamos como John Comerford analisa os diversos repertórios morais que desenham o cotidiano dos residentes e trabalhadores do Alto Parnaíba, em Minas Gerais, para mostrar como a transformação da região, iniciada na década de 1970 com o projeto de incentivo do governo à agricultura moderna, e, por conseguinte, a chegada de novos atores sociais levaram a um rear-ranjo na sociabilidade local. Ao se debruçar sobre as moralidades que atravessam as interações e relações sociais na região, ele constrói pares contrastantes de categorias nativas utilizadas nas apresentações morais de si, das famílias e nos julgamentos morais, especialmente entre pes-soas de classes, ocupações e origens geográficas diferentes – como os “mineiros” e os “paranaenses” –, gramáticas que refletem relações de trabalho e de poder.

Por outro lado, a outra dimensão dessa discussão se encontra na ma-neira como as gramáticas morais dialogam, emulam e até assumem o papel de subculturas e/ou de procedimentos ritualizados e/ou imiscuí-dos na rotina. Nessa chave, o trabalho dos pesquisadores Kelson Gérison Oliveira Chaves e Marcos Alexandre de Souza Queiroz é revelador. Eles tratam de uma prática religiosa ou mágica enormemente recorrente, os chamados trabalhos de amor, praticados nos terreiros de umbanda vi-sando à conquista da pessoa amada e objetivos relacionados. A partir de uma longa etnografia em terreiros de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará, os autores descrevem como variadas concepções de moralidade, seus conflitos e polêmicas permeiam essa experiência, considerando uma complexa rede de significados da ideia de bem e de seu direcionamento – como, por exemplo, na avaliação sobre o que é o bem do outro, o “amado”, que é objeto do trabalho. Práticas deste tipo defrontam-se sempre com dilemas de ordem moral, entre a capacidade de encantar para persuadir e iluminar o interlocutor, de um lado, e o esforço de encantar para inibir a crítica e/ou a avaliação de alternativas, impedindo a autorreflexão e a autonomia do interlocutor, de outro.

Igualmente, Priscila Gomes de Azevedo faz uma alentada etnografia das formas morais e costumeiras por meio das quais as pessoas da Zona da Mata Mineira reconhecem filhos de criação – que se inserem nas famílias como filhos de tratamento distinto dos “de sangue” e desempenham um papel como trabalhadores domésticos para os pais, atividade identificada por eles como “missão” – e estabelecem o imaginário dos princípios e

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regras de um código que lhes desenha o perfil da própria identidade e a gramática dos relacionamentos com a família e com a comunidade. Sua contribuição sugere reflexões interessantes sobre em que medida essa duplicidade de formas de tratamento não implicaria uma desvaloriza-ção da identidade dos filhos de criação e, portanto, uma negação de sua dignidade. Como essa diferença é vivida pelos atores? Até que ponto as justificativas apresentadas encontram respaldo nas normas vigentes e permitem uma afirmação positiva ou o resgate da identidade dos filhos de criação?

E, talvez na contramão desse estabelecimento da rotina, práticas de uma rotina em transição também se prestam à mesma compreensão. Laura Moutinho, por exemplo, coloca em perspectiva os novos regimes de verdade autorizadores de sujeitos e identidades na África do Sul pós--apartheid, a partir de um acompanhamento das narrativas de três jovens mulheres de diferentes raças e origens sociais do país, no contexto em que ideias como forgiveness e national solidarity tornaram-se palavras-chave. Em sua narrativa, o feminino se articula com novos marcadores sociais da diferença em novas hierarquias de poder, gênero, raça e religião, e com as várias dimensões do reconhecimento – tema também explorado, aliás, por Cardoso de Oliveira em seu texto.

E por fim, ainda no plano de uma lógica dos sentidos, os estudos sobre dispositivos morais, isto é, aparatos mobilizáveis pelos atores justamente para a construção, operacionalização e efetivo uso de suas morais, surgem com contribuições como a de Marta Cioccari, que analisa a honra, ou Pedro Paulo de Oliveira, que se dedica ao estudo da fofoca.

Cioccari aborda a maneira como a ideia de honra é construída pelos atores sociais a partir da distinção entre duas dimensões, assim como operada por trabalhadores de minas de carvão: a partir de etnografia realizada em Minas do Leão, no Rio Grande do Sul, e em Creutzwald, na Lorena Francesa, entre 2005 e 2010, ela trata da mobilização de uma “grande” e de uma “pequena” honras. A primeira, voltada para as imagens que figuram nas representações idealizadas do heroísmo mineiro; a outra, correspondente aos diversos pertencimentos locais e a suas insurgên-cias nas interações cotidianas, com suas tensões e conflitos internos. Tal configuração sugere indagações do tipo: como a linguagem da honra, nas duas dimensões apresentadas, contribui para a articulação de uma vida digna e confere conteúdo moral às relações estabelecidas?

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Já Oliveira, partindo da sociologia de Norbert Elias e de alguns pres-supostos sociológicos de autores que trabalham com as noções de ludi-cidade, tramas e narrativas sociais, promove uma análise extensa desse dispositivo que opera como veículo moralizador, produtor e reprodutor de valores hegemônicos, fundamental para a constituição de preconceitos, estigmas e práticas de discriminação. A fofoca é apresentada como con-dutora de narrativas da vida cotidiana, dotadas da peculiaridade de atuar como “fala falada”, isto é, como profecia que se autorrealiza: ela participa da constituição das ações, interações e relações sociais, assim como da criação e desenvolvimento de sentido da vida humana.

O terceiro movimento – e, em consequência, a terceira parte do li-vro – constitui uma dupla articulação de inversões lógicas: diz respeito à necessidade de reconhecer o caráter da peculiaridade (nativa) de uma determinada fenomenologia a fim de poder ser capaz de neutralizar (ana-liticamente) essa mesma peculiaridade e dar conta de um estudo da moral como objeto. Ora, é preciso reconhecer o peso adquirido no senso comum e na moral consagrada socialmente pela negativização das ideias de cri-me e violência, que do ponto de vista analítico seriam apenas atributos e adjetivos atrelados a ações e a atores por outros atores. Portanto, seria algo inegavelmente significativo na formação da lógica da vida cotidiana das sociedades modernas. A análise do peso dessa negativização seria importante para uma melhor compreensão da fenomenologia que por trás dele se oculta. Assim, “Violência, crime, moralidades relativas”, mais do que um conjunto de reflexões sobre a moralidade particular de recortes como “mundo do crime” ou da “violência urbana”, coloca sobre a mesa estudos em que essa dupla articulação é feita sem que nenhum polo de conteúdo moral seja adotado na análise, a fim de compreender justamente como aquela negativização é construída.

A começar pelo texto de Alba Zaluar, resultado de reflexões sobre diversas etnografias e diálogos com pensadores da antropologia e da so-ciologia do crime, da violência e de outras áreas feitos ao longo de sua carreira. Buscando compreender a criminalidade violenta entre homens jovens brasileiros sem reduzir a análise à teoria da estrutura de classes, a pesquisadora nos leva até a década de 1970 para apresentar os contextos e as formas assumidas pelo crime e pelo envolvimento desses jovens no que ela chama de “crime-negócio” no Brasil até hoje. O trabalho atenta para a importância de se considerar os significados múltiplos da criminalidade

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e lança luz sobre a globalização como um fator transformador de cultu-

ras e modos de sociabilidade. Partindo desse fenômeno, ela aposta que

a chave para viabilizar a aquisição por parte desses jovens vulneráveis

de “capital de personalidade” estaria no processo de “informalização”.

Assim, poderiam enfrentar os desafios da heterogeneidade cultural e os

conflitos intergeracionais.

Carolina Christoph Grillo faz uma análise das negociações de conflitos

mediadas por traficantes das favelas do Rio de Janeiro. Por meio de extensa

pesquisa etnográfica, realizada em áreas controladas pela facção do tráfico

de drogas intitulada Comando Vermelho, ela demonstra que a criminali-

dade e os arranjos locais de poder organizam-se antes por dispositivos de

moderação do uso da força do que por formas de sua deflagração. Assim,

como ilustrado por inúmeros exemplos retirados das experiências em

campo, relações de parentesco e amizade, avaliações sobre a trajetória

pessoal dos envolvidos nos conflitos e o conhecimento dos contextos são

fatores levados em conta na produção de verdade e juízo por esses atores,

assim como na aplicação ou não de punições.

Cesar Pinheiro Teixeira, por sua vez, parte da hipótese de que a

“violência urbana” é a representação de uma determinada ordem social,

proposta ao longo das últimas duas décadas por Luiz Antônio Machado

da Silva, para tentar compreender como são construídas as práticas e

moralidades que a constituem. Para tanto, ele analisa as representações

que se produzem e se reproduzem em torno da figura do “bandido”. Tei-

xeira mostra como três coletividades – Polícia (Civil e Militar), ONGs e

igrejas pentecostais – compreendem moralmente e desenvolvem soluções

para o “problema do bandido” operando com base em uma compreensão

nativa do que tem sido descrito analiticamente por Michel Misse como

“sujeição criminal”. Seu trabalho chama atenção para o fato de que es-

sas coletividades constituem “regiões morais” – noção emprestada de

Robert Park – formadoras de uma complexa rede de relações sociais e de

expectativas morais que dão forma à experiência da “violência urbana”

e ao ordenamento social no Rio de Janeiro.

O linchamento nos é apresentado por Danielle Rodrigues de Oliveira

como “cena” composta por personagens cujas ações ela se propõe a inter-

pretar. Essa prática dotada de visualidade e dramaturgia próprias, bem

como as técnicas operadas contra os linchados e o comportamento dos

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envolvidos – chamadas por Danielle de “práticas ritualísticas do lincha-

mento” – são minuciosamente analisadas pela pesquisadora, que faz uma

etnografia de vídeos amadores desses episódios difundidos pela internet

para pensar a moralidade das massas, a reificação de morais – neste caso,

as dos grupos que participam de linchamentos –, “acusação”, “incrimi-

nação” e “punição” no “processo de construção da indiscutibilidade da

negatividade moral do ato” de linchar.

Por fim, Ludmila Ribeiro promove uma densa investigação da forma

como é construída ao longo do tempo a categoria “policiamento comu-

nitário” pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, ao analisar como essa ex-

pressão e seu campo semântico são mobilizados como justificativas para

ações da PM nos boletins internos da corporação, documentação que,

circulando entre os agentes da mesma, serve como forma de difusão de

seu repertório.

Já na quarta parte do livro, “Direitos, política e vida pública”, é ata-

cada a questão de como as capacidades morais individuais alcançam a

generalidade de uma ordem social moderna atravessada pela formação de

arenas de discussão de direitos e deveres – isto é, formando uma política

da moral (a alimentar as morais da política). Fenômenos como a venda de

votos (no trabalho de César Barreira e Irlys Barreira), o aproveitamento de

cargos públicos para fins privados (com Gabriela de Lima Cuervo) se jun-

tam à maneira como direitos são reivindicados e negociados, seja no plano

da luta por reconhecimento de direitos por vias especiais (como mostra

Fábio Reis Mota), seja no plano da busca de direitos na Justiça (como no

trabalho de Luiz Eduardo Figueira e Regina Lúcia Teixera Mendes), ou,

ainda, na própria construção de uma esfera de discussão na vida pública

(como analisa Jussara Freire).

Barreira e Barreira se debruçam sobre a rede de significados que a

ideia de “ajuda” pode adquirir em um processo social intrincado como

o eleitoral. Para tanto, eles analisam os sentidos de pertencimento, re-

conhecimento e avaliações morais que emergem em uma situação de

concorrência de candidatos à Câmara Municipal de Aquiraz, municí-

pio praiano na Costa Leste do Ceará, durante o pleito eleitoral de 2008.

Trata-se de registrar a existência de uma economia simbólica formada de

práticas e percepções que influenciam a adesão a candidatos, construída

mais no campo das dádivas que no âmbito do direito.

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