6
Trechos retirados do COF (Curso Online de Filosofia) ministrado por Olavo de Carvalho 1. Aluno: O senhor também é autodidata em línguas? Olavo: Sem dúvida. Para mim, o único processo de aprendizado possível é o autodidatismo. Eu fico impaciente. Por exemplo, quando eu fui estudar alemão na Casa de Goethe, eles queriam que eu decorasse os nomes de quarenta tipos de salsichas. Bratwurst, Wienwurst. Eu fiquei revoltado com aquele negócio. O que eu fazia era pegar um livro e tentar ler . Eu tinha uma professora espetacular, a Daniela Caldas, então eu lia os negócios, fazia as traduções capengas e levava para ela corrigir e explicar onde eu tinha errado, e assim aprendi alguma coisinha de alemão. Só que até hoje eu tenho de ler alemão assim, traduzindo. Não consigo ler corrente, tenho que fazer a tradução de cada linha, senão não entendo. Tem gente que é capaz de aprender de outras maneiras, mas todos esses métodos que eles chamam de impregnação total, isto pra mim só me enlouquece, porque tudo isso foi feito para você aprender a falar. Agora, existe uma diferença enorme entre você aprender uma língua para falar e para ler . Tem um autor, acho que o Frederick Bodmer, que explica isso em uma frase. Ele diz que para falar você precisa saber um número limitado de palavras, mas que precisa estar na ponta da língua ; mas para ler, você precisa saber mal uma infinidade de palavras, pois você não terá de recordálas por si mesmo, você só vai recordar quando elas aparecerem . É um negócio que é mais vasto e de certo modo passivo. Eu nunca aprendi nada para falar, aprendi para ler e às vezes um pouco para escrever . Então esse negócio de conversação nunca me interessou, para mim é perda de tempo. Tanto que a primeira vez que vim aqui nos EUA, em 86, eu falava inglês, conversava com as pessoas, só que elas riam do meu jeito de falar, porque era muito pedante. Para pedir um cachorro-quente, falava aquilo em linguagem universitária, usando palavras de origem latina. Então eu perguntava se tinha falado alguma coisa errada e as pessoas diziam: “no, but it’s a little bizarre.” É o understatment, ou seja, completamente ridículo. Do mesmo modo quando eu cheguei na França. Quando fui fazer o teste na Aliança Francesa, eles já me colocaram no último ano; eu tinha aprendido do jeito que eu contei para vocês. Fui fazer o teste e me disseram: “não, mas o senhor já sabe muito francês, vamos colocá-lo logo no último ano”. Cheguei na França confiante dos meus poderes francófonos, e fui logo no prédio da UNESCO, onde tinha um senhor sentado na portaria. Eu disse “monsieur, s’il vous plâit, où est la delegacion brazilienne?”. Ele olha para mim e diz: “o senhor é português, não é?”.

Trechos do COF sobre Idiomas

  • Upload
    fulano

  • View
    254

  • Download
    5

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Trechos do COF sobre Idiomas

Trechos retirados do COF (Curso Online de Filosofia) ministrado por Olavo de Carvalho

1. Aluno: O senhor também é autodidata em línguas? Olavo: Sem dúvida. Para mim, o único processo de aprendizado possível é oautodidatismo. Eu fico impaciente. Por exemplo, quando eu fui estudaralemão na Casa de Goethe, eles queriam que eu decorasse os nomes dequarenta tipos de salsichas. Bratwurst, Wienwurst. Eu fiquei revoltado comaquele negócio. O que eu fazia era pegar um livro e tentar ler. Eu tinha umaprofessora espetacular, a Daniela Caldas, então eu lia os negócios, fazia astraduções capengas e levava para ela corrigir e explicar onde eu tinha errado,e assim aprendi alguma coisinha de alemão. Só que até hoje eu tenho de leralemão assim, traduzindo. Não consigo ler corrente, tenho que fazer atradução de cada linha, senão não entendo. Tem gente que é capaz deaprender de outras maneiras, mas todos esses métodos que eles chamam deimpregnação total, isto pra mim só me enlouquece, porque tudo isso foi feitopara você aprender a falar. Agora, existe uma diferença enorme entre vocêaprender uma língua para falar e para ler. Tem um autor, acho que oFrederick Bodmer, que explica isso em uma frase. Ele diz que para falar vocêprecisa saber um número limitado de palavras, mas que precisa estar naponta da língua; mas para ler, você precisa saber mal uma infinidade depalavras, pois você não terá de recordálas por si mesmo, você só vai recordarquando elas aparecerem. É um negócio que é mais vasto e de certo modopassivo. Eu nunca aprendi nada para falar, aprendi para ler e às vezes umpouco para escrever. Então esse negócio de conversação nunca me interessou,para mim é perda de tempo. Tanto que a primeira vez que vim aqui nos EUA,em 86, eu falava inglês, conversava com as pessoas, só que elas riam do meujeito de falar, porque era muito pedante. Para pedir um cachorro-quente,falava aquilo em linguagem universitária, usando palavras de origem latina.Então eu perguntava se tinha falado alguma coisa errada e as pessoas diziam:“no, but it’s a little bizarre.” É o understatment, ou seja, completamenteridículo.

Do mesmo modo quando eu cheguei na França. Quando fui fazer o teste naAliança Francesa, eles já me colocaram no último ano; eu tinha aprendido dojeito que eu contei para vocês. Fui fazer o teste e me disseram: “não, mas osenhor já sabe muito francês, vamos colocá-lo logo no último ano”. Chegueina França confiante dos meus poderes francófonos, e fui logo no prédio daUNESCO, onde tinha um senhor sentado na portaria. Eu disse “monsieur, s’ilvous plâit, où est la delegacion brazilienne?”. Ele olha para mim e diz: “osenhor é português, não é?”.

Page 2: Trechos do COF sobre Idiomas

2. Na assimilação da literatura estrangeira, vai acontecer um problemagravíssimo: você vai incorporar das suas leituras não somente os elementosimaginários, mas também os elementos lingüísticos, sobretudo se você lê nooriginal. E na hora em que você assimila esses elementos lingüísticos, vocêquase instintivamente vai querer imitá-los no seu uso do português, e tentarádizer coisas similares de modo que dê o mesmo efeito em português. Aí vocêpode se dar muito mal, e é exatamente isso que acontece hoje.

Durante a maior parte da existência da literatura brasileira a influênciafundamental era francesa. Os camaradas aprendiam a escrever em primeirainstância com os bons escritores brasileiros, em segunda com os portuguesese em terceira com os franceses. Portugal tem uns três ou quatro escritoresmaravilhosos, que você precisa mesmo assimilar: Camilo Castelo Branco, Eçade Queiroz, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, e muitos mais. Mas não dápara comparar Portugal com a França, e sobretudo com a Inglaterra nodomínio da ficção. Ocorre que, quando a influência dominante no Brasildeixou de ser francesa e passou a ser inglesa, começou-se a copiar o modoanglosaxônico de falar e escrever — e isso é absolutamente incompatível coma estrutura da nossa língua.

Seria preciso fazer um esforço de transposição, mas isso é muito complexo.Não conseguindo, então, fazer a transposição —ou seja, não conseguindo criarequivalentes expressivos idênticos ou equivalentes aos da língua inglesa —, oscamaradas imitam os próprios recursos expressivos da própria língua inglesa.Em inglês você pode colocar cinco adjetivos um atrás do outro. Se você fizerisso em português não funciona, fica horroroso, e no entanto as pessoas fazemisso hoje. Em inglês você pode pegar um adjetivo, antecedido de um advérbio,e colocar tudo antes do substantivo. Isso é normal em inglês, mas emportuguês fica horroroso, e no entanto hoje em dia está todo o mundoescrevendo assim, porque se aprende a escrever sobretudo pela internet (nãoé nem com os grandes escritores, mas com um inglês de terceira ou quartamão). Então acontece o seguinte: você perde a sensibilidade auditiva, perde amúsica do idioma.

Se você perde a música do idioma, você perde um dos principais elementosexpressivos. E quando acontece isso — ou seja, quando você está falando umacoisa mas não percebe que aquilo soa mal — é claro que você está encobrindoas suas experiências reais. Você está encobrindo a experiência real da qualvocê está falando porque você está encobrindo a experiência real de estarfalando. Se na produção da sua fala você não está presente com totalconsciência, incluindo a sensibilidade auditiva, o conteúdo do que você falatambém fica deslocado. Eu não posso, por exemplo, dar a imagem de umpersonagem sincero, se eu mesmo não estou sendo sincero ao descrevê-lo.Isso acontece com uma freqüência extraordinária. Ontem mesmo eu estava

Page 3: Trechos do COF sobre Idiomas

lendo uma tradução que um sujeito fez de uma matéria inglesa. Eu nãolembro exatamente as palavras, mas vou tentar criar um equivalente aqui: “Ahorrivelmente hipócrita sociedade britânica”. Isso não é português; isso éinglês com palavras brasileiras. Em português você não pode fazer isso. Vocênão pode anteceder um advérbio, um adjetivo e depois um substantivo,porque não funciona. No entanto, o número de pessoas que escreve assimhoje é enorme. Então nós vamos ter que colocar entre parênteses as nossas influências anglo-saxônicas durante um certo tempo, e recuperar influências de línguas latinasque são mais próximas à nossa, como o francês, o espanhol, o italiano, quesão mais facilmente assimiláveis sem estragar a nossa língua. E a inglesa? Ainglesa pode ser assimilada, mas não pode ser assimilada assim como está.Você tem de fazer um manejo, você tem de usar paráfrases, achar umequivalente semântico, que não será um equivalente sintático em hipótesealguma.

Page 4: Trechos do COF sobre Idiomas

3. O francês é muito bom para você aprender a escrever em português,porque muitos escritores brasileiros aprenderam com os franceses — Eça deQueiros é quase um escritor francês — e porque a língua francesaliterariamente é muito bem trabalhada — o que os caras fazem no francês émaravilhoso. O espanhol, que está bem perto de nós, tem de saber e, se puder,o italiano também. Você vai ter que ler um pouquinho em cada uma dessaslínguas. Capriche no inglês, mas não porque você vai aprender a escrever eminglês. A pior coisa que você pode fazer é tentar aprender a escrever em inglêspara passar para o português, como o pessoal faz hoje e só sai merda. Inglês émuito diferente do português. Aprenda o inglês como acesso a fontes deinformação, porque eles traduzem tudo e as traduções são muito boas. E,sobretudo, é a língua de trabalhos acadêmicos — o que você procurar aí detrabalho acadêmico, sempre tem no inglês. O que não tem no inglês, nãoexiste pro mundo de informações acadêmicas. Então, é fundamental paraisso, não para aprender a escrever. Esse pessoal que lê muito escritoramericano e tenta fazer a mesma coisa em português, só faz porcaria. Vocêtem de aprender com línguas que sejam afins à sua: o espanhol, o francês, oitaliano, e o latim evidentemente. Se aprender latim e ler os discursos deCícero, você nunca vai perder. Eu não sei quem dizia: “Você quer aprender aescrever? Leia Cícero” — eu acho que é verdade, porque é uma coisa de umaclareza, de uma força muito grande. Mas não vamos falar nisso agora,continua treinando lá com o Napoleão Mendes de Almeida, mais tarde você lêo seu Cícero.

Page 5: Trechos do COF sobre Idiomas

4. Aluno: As aulas estão cada vez melhores, muito obrigado por tudo. Tenhouma dúvida de ordem prática. Verifiquei logo de imediato ser necessárioadquirir conhecimento de língua estrangeira para o estudo. Comecei aaprender inglês sozinho, buscando somente aprender a ler, é o que mebastava. Mas vejo também a necessidade de aprender o francês. Minhadúvida é a qual dessas duas línguas eu devo dar preferência.

Olavo: O francês é mais fácil, a estrutura dele é bem parecida com a doportuguês e houve uma influência muito grande na cultura portuguesa ebrasileira. Através do francês você tem acesso a praticamente toda abibliografia universal mais importante. Mas, na esfera dos estudosacadêmicos mais recentes, aí tem de ser o inglês mesmo, porque ainda nãodeu tempo de traduzir essas coisas para o francês. Então, para a formaçãogeral, o francês; para a atualização com estudos acadêmicos, o inglês. Francêsprimeiro e inglês logo depois, mas tem de caprichar nos dois. A bibliografiaacadêmica em inglês é um dos grandes feitos da humanidade, é um negócioabsolutamente impressionante o que eles fizeram. Você tem informação sobretudo o que quiser. Eu estou fazendo essa pesquisa sobre a menterevolucionária faz anos. Praticamente não há questão (a gente vai buscando aexplicação histórica e de repente surgem certos enigmas) para a qual você nãoencontre resposta em estudos acadêmicos em inglês. É uma verdadeiramaravilha.

Page 6: Trechos do COF sobre Idiomas

5. Aluno: Quero aprender francês sozinho.

Olavo: Muito bem. O francês é bom para você aprender porque a gramática éparecida com a nossa até certo ponto. O primeiro livro que eu li em francês foiLe Noeud de Vipère (O Nó das Víboras), de François Mauriac. Sugiro essemesmo livro porque é um livro que você não consegue largar, quer saber oque vai acontecer. O problema é que ele é tão atraente que você quer pular aspalavras e ir para a página seguinte. Não faça isso, refreie o [impulso]. Sepular [alguma parte], vai perder o melhor; então leia linha por linha, e anotetodas as palavras que você não conhece. Se você percebe: “Estou lendo essapalavra de novo, eu sabia, agora já esqueci”, [consulte] o dicionárionovamente. Não diga: “Depois eu lembro”, [consulte] o dicionário vinte vezes,[se necessário]. Eu [consultava] vinte vezes: “De novo! Esqueci de novo amesma palavra!”, ficava revoltado com a minha burrice, mas eu ia lá eanotava de novo, de novo e de novo. Quando terminei de ler o livro, eu sabiafrancês. Então você vai criando aquela intimidade profunda com o texto, euacho que é a melhor maneira.