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Capítulo 1 Podemos Mudar? Desafiando o Dogma do Cérebro de Composição Fixa D D haramsala, distrito do norte da Índia, é composto de duas cidades, Baixa Dharamsala e Alta Dharamsala. Os picos enevoados dos Dhauladhar (“cimo branco”) abraçam as cidades como uma comprida almofada na cama de um gigante, enquanto o vale Kangra, descrito por um funcionário da colônia britânica como “o retrato do encanto e da tranqüilidade rural”, estende-se ao longe. A Baixa Dharamsala também é conhecida como McLeod Ganj. Fundada no século XIX como uma estância nas colinas, durante o domínio colonial britânico, o pequeno e agitado vilarejo (assim chamado devido ao vice-governador britânico de Punjab na época, David McLeod) fica sobre um despenhadeiro, onde percorrer o íngreme caminho de terra entre uma hospedaria e outra exige a habilidade de uma cabra e um planejamento sufi- cientemente astucioso para que, quando cai a noite, não se torça um tornozelo nem se arrisque uma queda na perigosa ravina. Vacas pastam nos cruzamentos, vendedores ambulantes se agacham atrás de panos sobre os quais empilham legumes e grãos, e os táxis desafiam o tráfego vindo no sentido oposto, brincando para ver quem freia ou desvia por último na pista estreita que é a única estrada de verdade na cidade. A estrada sinuosa é cheia de pedintes e religiosos andrajosos que parecem estar sem comer há uma semana, mas cujos sofrimentos são cuidadosamente descritos numa folha impressa de computador que eles entregam esperançosos a qualquer caminhante Treine Sua Mente-Reformatado.ind19 19 Treine Sua Mente-Reformatado.ind19 19 16/5/2008 16:53:48 16/5/2008 16:53:48

Treine Sua Mente-Reformatado · Espera-se que as preces sejam levadas pelo vento, e quando você as vê, pensa: ... neuroplasticidade com ele e outros estudiosos budistas no encontro

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C a p í t u l o 1

Podemos Mudar?

Desafiando o Dogma do Cérebro de Composição Fixa

DDharamsala, distrito do norte da Índia, é composto de duas cidades, Baixa Dharamsala e Alta Dharamsala. Os picos enevoados dos Dhauladhar (“cimo branco”) abraçam as cidades como uma comprida

almofada na cama de um gigante, enquanto o vale Kangra, descrito por um funcionário da colônia britânica como “o retrato do encanto e da tranqüilidade rural”, estende-se ao longe. A Baixa Dharamsala também é conhecida como McLeod Ganj. Fundada no século XIX como uma estância nas colinas, durante o domínio colonial britânico, o pequeno e agitado vilarejo (assim chamado devido ao vice-governador britânico de Punjab na época, David McLeod) fi ca sobre um despenhadeiro, onde percorrer o íngreme caminho de terra entre uma hospedaria e outra exige a habilidade de uma cabra e um planejamento sufi -cientemente astucioso para que, quando cai a noite, não se torça um tornozelo nem se arrisque uma queda na perigosa ravina.

Vacas pastam nos cruzamentos, vendedores ambulantes se agacham atrás de panos sobre os quais empilham legumes e grãos, e os táxis desafi am o tráfego vindo no sentido oposto, brincando para ver quem freia ou desvia por último na pista estreita que é a única estrada de verdade na cidade. A estrada sinuosa é cheia de pedintes e religiosos andrajosos que parecem estar sem comer há uma semana, mas cujos sofrimentos são cuidadosamente descritos numa folha impressa de computador que eles entregam esperançosos a qualquer caminhante

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que reduza o passo. Crianças descalças aparecem correndo do nada quando vêem um ocidental e pedem: “Madame, por favor, bebê com fome, bebê com fome”, apontando na direção das barracas de feirantes que se aglomeram na beira da estrada.

Da varanda azulejada da Casa Chonor, uma das hospedarias, toda a Dha-ramsala se estende diante de você. Logo que o sol se levanta, monges de túnicas cor-de-vinho seguem apressados para as orações, e religiosos curvados em becos nos fundos cantam om mani padme hum (“saudação à jóia do lótus”). Véus de oração tremulantes, presos a galhos de árvores, trazem as palavras tibetanas Que todos os seres sensíveis sejam felizes e livres de sofrimento. Espera-se que as preces sejam levadas pelo vento, e quando você as vê, pensa: Para onde quer que o vento sopre, que aqueles que elas tocarem se libertem de suas dores.

Embora a Baixa Dharamsala seja habitada principalmente por indianos, os moradores de McLeod Ganj são quase todos tibetanos (além de alguns expatriados ocidentais e turistas espirituais), refugiados que seguiram Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama, no exílio. Muitos dos que permanecem no Tibete, sem conseguirem escapar, atravessam clandestinamente seus bebês e até mesmo crianças maiores, pela fronteira com Dharamsala, para que eles sejam criados e educados na Vila das Crianças Tibetanas, a dez minutos da cidade. Para os pais, o preço de assegurar que seus fi lhos sejam educados na cultura e na história do Tibete — impedindo, portanto, que as tradições e a identidade de sua nação sejam apagadas pela ocupação chinesa — é nunca mais vê-los.

McLeod Ganj tem sido a casa do Dalai Lama em exílio e a sede do governo tibetano em exílio desde 1959, quando ele escapou de tropas chinesas comunis-tas que invadiram o Tibete oito anos antes. Seu complexo de prédios — perto do principal cruzamento onde passam ônibus e táxis esperam por passageiros — é protegido 24 horas por dia por soldados indianos armados de metralha-doras. A entrada é uma minúscula cabana cuja aparência é muito modesta; em contraste, os guardas são extremamente meticulosos. De sua ante-sala — com espaço sufi ciente para apenas um pequeno sofá, publicações surradas numa estante de madeira e uma pequena mesa de centro — passa-se por uma porta para chegar à sala de segurança, onde tudo o que se carrega (bolsas, blocos de anotação, máquinas fotográfi cas, gravadores) passa por um sistema de raios-X antes que se possa entrar numa pequena cabine, com cortinas dos dois lados, para ser revistado por guardas tibetanos.

Depois de liberado, segue-se por uma ladeira de asfalto, passando por outros guardas de segurança indianos com metralhadoras, descansando à sombra. O terreno em volta tem pinheiros e rododendros; vasos de cerâmica

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cheios de buganvílias roxas e cravos-de-defunto cercam os prédios afastados uns dos outros. A primeira estrutura à direita é um prédio de um andar que abriga o auditório do Dalai Lama, também protegido por um soldado indiano com uma arma automática. Logo depois fi cam a biblioteca e os arquivos tibetanos, e um pouco acima no morro, o prédio privado de dois andares do Dalai Lama, onde ele dorme, medita e faz a maioria de suas refeições. A grande estrutura à esquerda é o antigo palácio onde o Dalai Lama morava antes de sua atual residência ser construída. Usada principalmente para ordenações, sua ampla sala principal será nos próximos cinco dias a sede de um encontro extraordinário. Sob o patrocínio do Instituto Mente e Vida, importantes estudiosos tanto de budismo quanto das tradições científi cas ocidentais vão debater uma questão que há séculos intriga fi lósofos e cientistas: o cérebro tem capacidade para mudar? E qual é o poder da mente para mudá-lo?

Dogma de Composição Fixa

Há apenas alguns anos, neurocientistas sequer participariam dessa conversa, pois os livros escolares, os cursos de ciência e os estudos de vanguarda seguiam a mesma linha, assim como acontecia quase desde quando surgiu a ciência do cérebro.

William James, o pai da psicologia experimental nos Estados Unidos, foi o primeiro a introduzir a palavra “plasticidade” na ciência do cérebro, afi rman-do em 1890 que “a matéria orgânica, especialmente o tecido nervoso, parece provida de um extraordinário grau de plasticidade”. Com isso, ele se referiu a “uma estrutura fraca o sufi ciente para submeter-se a uma infl uência”. Mas James era “apenas” um psicólogo, e não um neurologista (um século atrás, não exis-tiam neurocientistas), e sua especulação não levou a lugar algum. Muito mais infl uente foi a opinião manifestada de maneira sucinta em 1913 por Santiago Ramón y Cajal, o grande neuroanatomista espanhol que ganhara o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina sete anos antes. Quase no fi nal de sua pesquisa sobre o sistema nervoso, ele declarou: “Em centros adultos, os caminhos dos nervos são algo fi xo, concluído e imutável.” Sua sombria estimativa de que os circuitos do cérebro em atividade são imutáveis, e de que suas estruturas e sua organização são quase tão estáticas e estacionárias quanto a do cérebro branco de um cadáver conservado em formol, continuou sendo o dogma prevalecente da neurociência durante quase um século. O conhecimento dos livros sustentava que o cérebro adulto teria uma composição fi xa, estático em forma e função

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de modo que ao alcançarmos a vida adulta, estamos completamente presos ao que temos.

Os conhecimentos convencionais da neurociência sustentavam que o cére-bro do mamífero adulto é fi xo em dois aspectos: nenhum neurônio novo nasce nele e as funções das estruturas que o formam são imutáveis, de modo que, se os genes e o desenvolvimento determinam que este feixe de neurônios vai processar sinais a partir do olho, e que este feixe vai mover os dedos da mão direita, então eles vão fazer isso e nada mais, aconteça o que acontecer. Havia bons motivos para que todos aqueles livros sobre cérebro extravagantemente ilustrados mostrassem a função, o tamanho e a localização das estruturas cerebrais como permanentes. Até o recente ano de 1999, cientistas que escreveram artigos para a prestigiada revista de ciências Science admitiam: “Ainda nos ensinam que faltam ao cérebro totalmente maduro os mecanismos intrínsecos necessários para repor neurônios e restabelecer redes neuroniais, depois de um ferimento sério ou em resposta à insidiosa perda de neurônios observada em doenças neurodegenerativas.”

Isso não quer dizer que os cientistas não conseguiram reconhecer que o cérebro passa por algumas mudanças ao longo da vida. Afi nal de contas, uma vez que o cérebro é o órgão do comportamento e o repositório do aprendizado e da memória, quando adquirimos um novo conhecimento ou uma nova capa-cidade, ou deixamos registradas lembranças, o cérebro muda de maneira real e física para que isso aconteça. Na verdade, pesquisadores sabem há décadas que o aprendizado e a memória encontram sua manifestação fi siológica na formação de novas sinapses (pontos de conexão entre neurônios) e no fortalecimento daquelas preexistentes; em 2000, os estudiosos de Estocolmo chegaram a ga-nhar o Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina pela descoberta dos suportes moleculares da memória.

Mas as mudanças que estão na base do aprendizado e da memória são pequenas — fortalecimento de poucas sinapses aqui e ali ou surgimento de alguns dendritos a mais, de modo que os neurônios possam conversar com um número maior de vizinhos, assim como uma casa que adquire uma linha de telefone a mais. Mudanças em grande escala, tais como expandir a região responsável por uma função mental em particular, ou alterar a rede que conecta uma região a outra, eram consideradas impossíveis.

O formato básico do cérebro também não podia ser nem um pouco dife-rente daquele representado nos respeitados diagramas dos livros de anatomia: o córtex visual estava estruturado na parte de trás para dar a percepção da visão, o córtex somatossensorial no alto do cérebro preparado para processar as sensações táteis, o córtex motor fora feito para garantir a quantidade precisa de nervos a

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cada músculo, e o córtex auditivo fora composto para abrigar as transmissões a partir dos ouvidos. Sacramentado desde a prática clínica até as monografi as acadêmicas, este princípio sustentava que, em contraste com a capacidade do cérebro em desenvolvimento de mudar de maneira signifi cativa, o cérebro adulto é fi xo, imutável. Perdeu a capacidade chamada de neuroplasticidade, a capacidade de mudar suas estruturas e funções de maneira fundamental.

Até certo ponto, o dogma era compreensível. Em primeiro lugar, o cére-bro humano é formado por tantos neurônios e tantas conexões — estima-se que 100 bilhões de neurônios façam um total de 100 trilhões de conexões — que mudá-lo ainda que levemente parecia ser uma tarefa arriscada, assim como abrir o disco rígido de um supercomputador e consertar um circuito ou dois da placa-mãe. Certamente isso não era o tipo de coisa que a natureza permitiria, e na verdade poderia levar a natureza a tomar algumas atitudes para impedir que acontecesse. Mas havia uma questão mais sutil. O cérebro contém a materialização física da personalidade e do conhecimento, do caráter e das emoções, das memórias e das crenças. Mesmo levando em conta a aquisição de conhecimento e lembranças durante uma vida, bem como o amadurecimento de uma personalidade ou um caráter, não parecia razoável que o cérebro mudasse ou pudesse mudar de maneira signifi cativa. O neurocientista Fred Gage, um dos pesquisadores convidados pelo Dalai Lama para discutir as implicações da neuroplasticidade com ele e outros estudiosos budistas no encontro de 2004, interpretou as objeções à idéia de um cérebro mutante desta forma: “Se o cére-bro fosse mutável, nós mudaríamos. E se o cérebro fi zesse mudanças erradas, mudaríamos de forma incorreta. Era mais fácil acreditar que não havia mudança alguma. Desta maneira, o indivíduo permaneceria bastante fi xo.”

A doutrina do cérebro humano imutável tem tido profundas ramifi cações, nenhuma delas muito otimista. Levou neurologistas a afi rmar que a reabilitação de adultos que sofreram danos cerebrais após um derrame era certamente uma perda de tempo. Indicou que tentar alterar a rede patológica de conexões cere-brais que constitui a base de doenças psiquiátricas — tais como o transtorno obsessivo-compulsivo (TOC) e a depressão — seria um erro tolo. E sugeriu que outras condições fi xas do cérebro — tais como o “set point”* de felicidade a que uma pessoa pode retornar depois de uma grande tragédia ou de uma grande alegria — são tão inalteráveis quanto a órbita da Terra.

Mas o dogma está errado. Nos últimos anos do século XX, alguns neurocientistas iconoclastas desafi aram o paradigma de que o cérebro adulto

* Nível normal para o indivíduo. (N. da E.)

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não muda e fi zeram descobertas e mais descobertas de que, ao contrário, ele mantém um impressionante poder de neuroplasticidade. O cérebro pode, de fato, ter seus circuitos alterados. Pode expandir a área conectada para mexer os dedos, formando novas conexões para sustentar a destreza de um exímio violinista. Pode ativar fi os condutores há muito tempo inativos e passar novos cabos, como um eletricista que reforma o sistema elétrico de uma velha casa, de modo que regiões que antes viam possam, em vez disso, sentir ou ouvir. Pode silenciar circuitos que antes crepitavam com as atividades aberrantes que caracterizam a depressão, e cortar conexões patológicas que mantêm o cérebro no estado de ó-meu-deus-há-algo-errado que caracteriza o transtorno obsessivo-compulsivo. Em resumo, o cérebro adulto mantém grande parte da plasticidade do cérebro em desenvolvimento, inclusive o poder de consertar regiões danifi cadas; de criar novos neurônios; de rearranjar regiões que antes desempenhavam determinada função, para assumirem uma nova tarefa; de mudar os circuitos que tecem neurônios para a rede que nos permite lembrar, perceber, sofrer, pensar, imaginar e sonhar. Sim, o cérebro de uma criança é incrivelmente maleável. Mas, diferentemente do que diziam Ramón y Cajal e a maioria dos neurocientistas, o cérebro pode mudar sua estrutura física e suas conexões por muito tempo durante a vida adulta.

A revolução em nossa compreensão sobre a capacidade do cérebro de mu-dar durante grande parte da vida adulta não acaba com o fato de que o cérebro pode mudar, e muda de fato. Igualmente revolucionária é a descoberta sobre como o cérebro muda. Nossas ações podem literalmente expandir ou contrair diferentes regiões do cérebro, derramar mais fl uidos em circuitos silenciosos e reduzir a irrigação em outros mais barulhentos. O cérebro oferece mais área cortical a funções que seu dono usa mais freqüentemente, e encolhe o espaço destinado a atividades raramente desempenhadas. Por isso os cérebros dos violinistas dedicam mais espaço à região que controla as falanges dos dedos das mãos. Em resposta às ações e experiências de seu dono, o cérebro aumenta a atividade em algumas regiões e a diminui em outras, forma conexões mais fortes em circuitos que apóiam um comportamento ou pensamento e enfra-quece conexões em outros. A maior parte disso acontece em função do que fazemos e do que experimentamos do mundo externo. Neste sentido, a própria estrutura de nosso cérebro — o tamanho relativo de diferentes regiões, a força das conexões entre uma área e outra, as chances de que a ativação de um neu-rônio aqui desencadeie a ativação de outro neurônio lá — refl ete a vida que levamos. Como a areia de uma praia, o cérebro guarda as pegadas das decisões que tomamos, das capacidades que desenvolvemos, das ações que realizamos.

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Mas também há indícios de que a modifi cação da mente pode acontecer sem qualquer interferência do mundo externo. Ou seja, o cérebro pode mudar de acordo com os pensamentos que nós temos.

Algumas novas descobertas indicam que mudanças no cérebro podem ser geradas por pura atividade mental: simplesmente pensar em piano leva a uma mudança física mensurável no córtex motor do cérebro, e pensar sobre pensamentos de determinadas maneiras pode restaurar a saúde mental. Tra-tando com determinação impulsos invasivos e compulsões como um problema neuroquímico — e não como mensagens confi áveis de que algo está fora da ordem —, pacientes com TOC alteraram a atividade da região do cérebro que gera os pensamentos do TOC, por exemplo. Pensando de maneira diferente sobre pensamentos que ameaçam enviá-los de volta ao abismo do desespero, pacientes com depressão produziram atividade numa região do cérebro e si-lenciaram outra, reduzindo o risco de recaída. Algo tão aparentemente sem substância quanto um pensamento tem a capacidade de agir de volta direta-mente no cérebro, alterando conexões neuroniais de uma maneira que pode levar à recuperação de uma doença mental e, talvez, a uma capacidade maior de empatia e compaixão.

Foi esse aspecto da neuroplasticidade — pesquisas mostrando que a res-posta à pergunta sobre se podemos mudar é um enfático “sim” — que levou cinco cientistas a Dharamsala naquela semana de outono. Desde 1987, o Dalai Lama abria sua casa em Dharamsala uma vez por ano para “diálogos” de uma semana com um grupo selecionado de cientistas, para discutir sonhos, emoções, consciência, genética ou física quântica. O formato é simples. Toda manhã, um dos cinco cientistas convidados se senta numa poltrona ao lado do Dalai Lama, em frente à sala usada para ordenações, e descreve seu trabalho para ele e para os convidados reunidos — em 2004, foram duas dúzias de monges e alunos de mosteiros, bem como cientistas que haviam participado de diálogos anteriores como aquele. Não é nada parecido com as palestras formais que os cientistas estão acostumados a apresentar em conferências sobre pesquisas, nas quais eles rapidamente expõem suas descobertas a um público fascinado (como eles esperam). Em vez disso, o Dalai Lama os interrompe toda vez que precisa de um esclarecimento, seja devido a uma tradução (os cientistas falam em inglês, língua que o Dalai Lama compreende bem, mas às vezes a menção casual de um termo científi co, como hipocampo ou BRDU,* resulta num tête-à-tête apressado com um de seus intérpretes) ou porque uma das descobertas científi cas o faz

* Bromodioxiuridina (5-bromo-2-dioxiuridina), substância comumente usada em verifi cação de proliferação de células em tecidos vivos. (N. do T.)

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se lembrar de algum aspecto da fi losofi a budista. A manhã é dividida por um intervalo para o chá, durante o qual ou o Dalai Lama permanece na sala para uma conversa informal com os cientistas, ou faz um intervalo, e todas as outras pessoas seguem para uma enorme sala adjacente para saborear chá e biscoitos. À tarde, o Dalai Lama e os estudiosos budistas que ele convidou respondem ao que os cientistas apresentaram de manhã, explicando o que o budismo ensina sobre o tema ou sugerindo novas experiências em que os budistas contemplativos possam usar suas mentes e seus cérebros.

Dessa vez, os cientistas eram aqueles que trabalham nas fronteiras da neuroplasticidade. Fred Gage, do Instituto Salk, em La Jolla, Califórnia, realiza pesquisas com animais e fez várias descobertas importantes sobre como o am-biente pode mudar seus cérebros, de maneiras aplicáveis a pessoas. Ele também liderou uma pesquisa utilizando matéria humana, demolindo o dogma de que o cérebro adulto não gera novos neurônios. Michael Meaney, da Universidade McGill, em Montreal, derrubou a idéia do determinismo genético. Também trabalhando com animais de laboratório, ele mostrou que a maneira com que um camundongo mãe trata seus fi lhotes determina os genes do cérebro do fi lhote que serão ativados e os que serão desativados, o que faz com que os genes com os quais ele nasceu se tornem meramente um artifício da natureza: as características do animal — medroso ou tímido, neurótico ou bem ajustado — são moldadas pelo comportamento da mãe, algo que também tem relevância para as pessoas. Helen Neville, da Universidade do Oregon, fez tanto quanto qualquer cientista para mostrar que diagramas do cérebro que mostram a função de cada região deveriam ser impressos em tinta removível. Trabalhando com defi cientes visuais ou auditivos, ela descobriu que mesmo algo tão aparentemen-te fundamental, e estrutural, quanto a função do córtex visual, ou do córtex auditivo, pode ser completamente alterado pela vida que a pessoa leva. Phillip Shaver, da Universidade da Califórnia, em Davis, é um dos líderes no campo da psicologia chamado de teoria do apego. Ele descobriu que o sentimento de segurança emocional das pessoas, baseado em suas experiências na infância, tem um forte efeito não apenas sobre suas relações adultas mas também sobre comportamentos e atitudes aparentemente não relacionados, tais como seus sentimentos sobre pessoas de grupos étnicos diferentes e sua disposição para ajudar um estranho. Para esses quatro cientistas, esta foi a primeira viagem a Dharamsala, e o primeiro encontro com o Dalai Lama.

Richard Davidson era o veterano desses diálogos. Mais do que isso, porém, sua pesquisa sobre a ciência das emoções havia evoluído para incluir pesquisas com budistas contemplativos, homens que dedicam seus dias à meditação. O

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Dalai Lama havia ajudado a enviar monges e iogues budistas até o laboratório de Davidson, na Universidade de Wisconsin, em Madison, para que ele pudesse estudar seus cérebros. Seu trabalho estava começando a mostrar o poder da mente para mudar o cérebro. Era ele quem organizava o encontro, apresentando cada um dos cientistas em suas palestras matinais e conduzindo a discussão todas as tardes.

“De todos os conceitos da neurociência moderna, a neuroplasticidade é o que tem o maior potencial de interação signifi cativa com o budismo,” disse David.

Budismo e Ciência

Embora a ciência e a religião sejam freqüentemente retratadas como oponentes crônicas, ou mesmo como inimigas, isto é um equívoco para a ciência e o bu-dismo. Não há qualquer antagonismo histórico entre os dois, assim como tem havido entre a ciência e a Igreja Católica (que incluiu a obra de Copérnico no índex de livros proibidos) e, mais recentemente, entre a ciência e o cristianis-mo fundamentalista (que nos Estados Unidos tem usado a polêmica questão do criacionismo para argumentar que a ciência é “apenas” um outro tipo de saber). Em vez disso, o budismo e a ciência compartilham o objetivo de buscar a verdade, com “v” minúsculo. Para a ciência, a verdade é sempre provisória, sempre sujeita a refutação por uma nova experiência; para o budismo, pelo menos na forma como o Dalai Lama o vê, até mesmo ensinamentos fundamen-tais podem e devem ser modifi cados se a ciência provar que eles estão errados. Talvez mais importante que isso, o treinamento budista enfatiza o valor de investigar a realidade e encontrar a verdade do mundo externo, bem como a do conteúdo da mente de uma pessoa. “Quatro temas são comuns ao budismo em sua melhor forma: racionalidade, empirismo, ceticismo e pragmatismo”, diz Alan Wallace, que viveu muitos anos como monge budista em Dharamsala e outros lugares, antes de devolver sua túnica e se tornar um estudioso budista, e que há muito tempo participa dos diálogos entre cientistas e o Dalai Lama. “Sua Santidade afi rma isso. Freqüentemente, se existe uma prova empírica que contradiga algo no budismo, ele diz com prazer: ‘para o lixo!’. Ele é bastante infl exível ao afi rmar que o budismo tem que se render ao argumento racional e ao empiricismo.”

Consonâncias entre o budismo e a ciência foram reconhecidas ainda em 1889, quando Henry Steele Olcott argumentou, em Catecismo Budista, que

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o budismo está “em reconciliação com a ciência”, que há “um acordo entre o budismo e a ciência sobre a idéia-básica”. Olcott baseou esta argumentação no fato de o budismo, assim como a ciência, ensinar que “todos os seres são igual-mente sujeitos à lei universal”. Por esse raciocínio, afi rma José Ignacio Cabezón, ex-monge budista e agora acadêmico de religião e ciência na Universidade da Califórnia, em Santa Barbara, “o budismo e a ciência estão de acordo porque apóiam a visão de que há leis naturais que governam o desenvolvimento tanto das pessoas quanto do mundo”. Em 1893, no Parlamento Mundial das Religiões, em Chicago, parte da Exposição Mundial Colombiana, o líder budista Anagarika Dharmapala, do Sri Lanka, falou entusiasticamente sobre como o budismo, e não o cristianismo, poderia fazer uma ponte sobre o abismo que durante séculos dividiu a ciência e a religião. Ele baseou sua esperança no status do budismo de tradição não teísta, sem qualquer deus criador e sem “qualquer necessidade de explicações que vão além da ciência, não havendo necessidade alguma de milagres ou fé”, explica Cabezón. Como afi rma Alan Wallace, “o budismo não é uma religião, é uma fi losofi a. Não é uma versão oriental do cristianismo ou do ju daísmo. O budismo não culmina na fé, como nas tradições abraâmicas. Culmina em percepção.”

Alguns estudiosos foram tão longe a ponto de proclamar o budismo como a “Religião da Ciência”. Como o estudioso K. N. Jayatilleke, do Sri Lanka, argumentou em seu ensaio “Budismo e Revolução Científi ca”, no fi m dos anos 1950, “o budismo concorda com as descobertas da ciência” e “enfatiza a importância de uma visão científi ca” em que “seus dogmas específi cos são considerados passíveis de verifi cação”. Como a ciência, o budismo está “com-prometido em estabelecer criticamente (e não dogmaticamente) a existência de leis universais”, afi rma José Cabezón.

O que não quer dizer que não existam algumas tolices nos esforços para encontrar consonâncias entre ciência e budismo. Ao longo de décadas, tem havido alegações de que budismo é ciência, de que Buda foi o fundador da psicologia, de que o budismo descobriu o tamanho das partículas elementares do universo, de que a física moderna simplesmente confi rma o que sábios do budismo sabiam há séculos. Mas enquanto essas afi rmações são de fato exage-ros, um número crescente de neurocientistas está pelo menos aberto à noção de que o budismo tem algo substancial a dizer sobre a mente. Se é o caso, então tanto o budismo quanto a ciência se benefi ciarão dessa interação. “A ciência pode se benefi ciar, sendo pressionada a considerar a mente ou a consciência não mecanicamente, ou tendo que confrontar extraordinários estados mentais internos que normalmente não estão ao alcance de suas investigações”, diz José

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Cabezón. “Os budistas podem se benefi ciar do acesso a novos fatos relativos ao mundo material (corpo e cosmo), fatos que têm se situado fora da tradicional especulação budista, devido a limitações tecnológicas.”

As descobertas da neuroplasticidade, em particular, ressoam nos ensina-mentos budistas e têm o potencial de se benefi ciar das interações com o budismo. O motivo remete ao próprio cerne da crença budista. “O budismo defi ne uma pessoa como um fl uxo dinâmico que muda constantemente”, diz Matthieu Ricard, monge budista nascido na França. Veterano dos diálogos científi cos com o Dalai Lama, ele é o âncora do “lado budista” no encontro de 2004.

Até mesmo estudiosos que não estavam envolvidos no encontro — mas que acompanharam os diálogos de perto — apontam consonâncias entre os ensinamentos budistas e a idéia, e o potencial, da neuroplasticidade. “Há muitos paralelos fortes entre as descobertas neurocientífi cas e a narrativa budista”, diz Francisca Cho, acadêmica budista da Universidade George Washington. “O budismo é uma história sobre como estamos em dor e sofrimento, e sobre como temos o poder de mudar isso. As descobertas científi cas sobre a neuroplasticidade fazem um paralelo com a narrativa budista de iluminação porque mostram que, embo ra tenhamos maneiras profundamente sedimentadas de pensar, e embora o cérebro venha de alguma forma estruturado, também temos a possibilidade de mudar. A idéia de que estamos mudando constantemente signifi ca que não há qualquer natureza intrínseca para a personalidade própria ou para a mente, que é o que o budismo ensina. Em vez disso, tanto a personalidade quanto a mente são extremamente plásticas. Nossas atividades dizem quem somos. Somos da maneira como agimos. Somos produtos do passado, mas, devido à nossa natureza inerentemente vazia, sempre temos a oportunidade de nos remodelarmos.”

A descoberta de que um mero pensamento pode alterar a própria matéria do cérebro é outro ponto natural de conexão entre a ciência da neuroplastici-dade e o budismo. O budismo ensina há 2.500 anos que a mente é uma força independente que pode ser utilizada pela vontade e pela atenção para produzir mudança física. “A descoberta de que pensar em alguma coisa produz efei-tos, exatamente assim como fazer alguma coisa produz, é uma consonância fascinante com o budismo”, diz Francisca Cho. “O budismo desafi a a crença tradicional numa realidade externa e objetiva. Em vez disso, ensina que nossa realidade é criada por nossas próprias projeções. É o pensamento que cria o mundo externo além de nós. As descobertas da neurociência se harmonizam com esses ensinamentos budistas.”

As narrativas budistas têm outra consonância com as descobertas da neu-roplasticidade. Elas ensinam que ao nos desconectarmos de nossos pensamentos,

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observando nossos pensamentos sem envolvimento emocional e com clareza, te-mos a capacidade de ter pensamentos que nos permitem superar afl ições tais como estar cronicamente zangado. “Você pode passar por uma reeducação emocional”, diz Cho. “Com o empenho na meditação e em outros exercícios mentais, você pode mudar ativamente seus sentimentos, suas atitudes, sua mentalidade.”

De fato, o budismo acredita que a mente tem um poder formidável de autotransformação. Quando os pensamentos chegam a uma mente não treina-da, eles podem fi car desordenados, desencadeando emoções destrutivas como desejo e ódio. Mas o treinamento mental, cerne da prática budista, permite-nos “identifi car e controlar emoções e acontecimentos mentais quando eles surgem”, afi rma Matthieu Ricard. A meditação, a forma mais desenvolvida de treina-mento mental, “está relacionada a chegar a uma nova percepção da realidade e da natureza da mente, a ensinar novas qualidades até elas se tornarem partes integrais de nosso ser. Se colocamos todas as nossas esperanças e temores no mundo externo, temos um desafi o considerável, porque nosso controle sobre o mundo externo é fraco, temporário e até mesmo ilusório. Está mais no âmbito de nossa capacidade de mudar o modo como traduzimos o mundo externo para nossa experiência interna. Temos bastante liberdade no modo como transformamos essa experiência, e esta é a base para o treinamento mental e a transformação mental.”

E por que o Dalai Lama espera contribuir para a compreensão científi ca, seja se envolvendo nesses diálogos com pesquisadores ou incentivando monges budistas a emprestar seus cérebros à ciência? “Sua Santidade acredita que a visão de mundo dominante hoje é a científi ca”, diz Thupten Jinpa, estudioso budista tibetano que completou um Ph.D. em estudos religiosos pela Universidade de Cambridge em 1989. Principal tradutor de inglês para o Dalai Lama e colabo-rador em vários de seus livros, Jinpa dirige o Instituto de Clássicos Tibetanos em Montreal, editando e traduzindo textos tibetanos. “Sua Santidade”, diz ele, “espera inspirar uma geração mais nova de estudiosos budistas a se envolver com a ciência. Mas ele também é pessoalmente curioso.”

De Relógios e Telescópios

Essa curiosidade remonta à sua juventude. O menino que se tornaria o 14º Da-lai Lama nasceu em 6 de julho de 1935, sendo o quinto dos nove fi lhos numa família de pequenos agricultores que usavam o gado para arar os campos de cevada do planalto tibetano, na província de Amdo, e para moer grãos de casca

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dura. Aos 2 anos de idade, Tenzin Gyatso foi reconhecido, depois de uma pes-quisa nacional, como a reencarnação do 13º Dalai Lama, Thubten Gyatso, que morrera em 1933. Tomou posse formalmente como chefe de Estado do Tibete em 22 de fevereiro de 1940. A ciência era algo desconhecido em seu mundo, e quando ele recordou sua juventude setenta anos antes, a única tecnologia de que se lembrou foi a dos fuzis carregados por nômades locais.

Entre lições de leitura, redação, memorização rotineira de rituais e escritu-ras budistas e fi losofi a budista, o jovem Dalai Lama se divertia embarcando em esporádicas caças ao tesouro nas mil salas do Palácio Potala, na capital, Lhasa. O palácio tinha o que ele chamava de “esquisitices variadas” que haviam per-tencido a seus predecessores, principalmente o 13º Dalai Lama. Num amargo prenúncio da fuga desesperada do Tibete do próprio Dalai Lama atual, depois da invasão chinesa, o 13º Dalai Lama havia fugido do Tibete em 1900, quan-do se divulgou que os exércitos do último imperador chinês estavam prontos para invadir. Ele passou um breve período na Índia, o sufi ciente para acordar para o modo como o mundo além do Tibete estava correndo para entrar no novo século. Ao voltar para o Tibete, estabeleceu sérias reformas políticas e sociais, incluindo serviço de correios e a educação secular, bem como reformas tecnológicas: um sistema de telégrafo e as primeiras luzes elétricas do Tibete, geradas numa pequena usina. Ele também levou para o palácio o fascínio por objetos mecânicos, incluindo os que recebera de um adido político britânico designado para o vizinho estado de Sikkim, Sir Charles Bell.

Então, quando o 14º Dalai Lama explorava as câmaras do palácio, depa-rou-se com um velho telescópio de latão, um relógio mecânico, dois projetores de fi lme, um relógio de bolso simples, e três automóveis — e tudo isso fora carregado pelas montanhas em peças vindas da Índia no lombo de burros, mulas e no ombro de carregadores, uma vez que não havia estradas adequadas para carros no Himalaia e nem em lugar algum do Tibete além de Lhasa. O relógio o intrigou especialmente. Ficava no topo de uma esfera que fazia uma rotação completa a cada 24 horas e era coberta de desenhos misteriosos. Um dia, folheando seus livros de geografi a, o Dalai Lama percebeu que os desenhos na esfera eram um mapa do mundo, e que a rotação do globo mostrava o aparente movimento do Sol de leste para oeste no céu. Outros indícios de tecnologia chegaram ao Dalai Lama na forma de presentes. Em 1942, um grupo de ame-ricanos o presenteou com um relógio de bolso de ouro. Visitantes britânicos lhe deram um trenzinho elétrico e um carro de pedal.

“Houve um tempo, eu me lembro muito claramente, em que eu preferia brincar com esses objetos do que estudar fi losofi a ou memorizar um texto”,

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escreveu o Dalai Lama em seu livro de 2005, O Universo em um Átomo. “Eles indicavam a existência de um universo inteiro de experiência e conhecimento ao qual eu não tinha acesso algum e cuja existência me atraía incessantemente.”

De fato, ele se divertia mais com esses presentes não os usando da maneira habitual, mas desmontando-os. Desmontou seu relógio de pulso e conseguiu colocar todas as peças de volta na ordem em que funcionavam. Desmontou seus carros e barcos de brinquedo, fuçando os mecanismos que os faziam funcionar. Na adolescência, examinou um projetor de fi lmes movido a manivela, especu-lando sobre como uma bobina de arame giratória poderia gerar eletricidade. Como não havia qualquer pessoa no palácio a quem ele pudesse perguntar, ele o desmontou também e examinou as peças hora após hora, descobrindo fi nalmente que uma bobina de arame rodando em torno de um ímã gerava de fato uma corrente elétrica. Assim começou uma paixão para toda a vida por desmontar e remontar engenhocas, algo em que se tornou competente a ponto de se tornar aquele a quem recorriam os amigos de Lhasa que tinham relógios. (Ele nunca conseguiu, porém, consertar seu relógio de cuco depois que seu gato atacou o pobre passarinho.) Incentivado pelo que tomou como prova de talento para a mecânica, o jovem Dalai Lama se dedicou a aprofundar seu conhecimento sobre o funcionamento dos automóveis de seu predecessor, embora tenha se restringido a aprender a dirigir, em vez de transformar os carros em pilhas de peças. Não lhe faltava, porém, habilidade. Quando sofreu um pequeno acidente e quebrou-se o farol dianteiro esquerdo, fi cou aterrorizado com o que o assistente encarregado da frota do palácio poderia dizer sobre isso e rapidamente conseguiu uma peça substituta. Mas enquanto o farol original era de vidro fosco, o substituto era de vidro claro. Então ele o cobriu de açúcar derretido.

Seu status elevado tinha algumas desvantagens, em especial o costume tibetano segundo o qual o Dalai Lama deve permanecer isolado no Palácio Po-tala. Ansioso por dar uma olhada no mundo externo, ele se valeu do telescópio do 13º Dalai Lama. Durante o dia, direcionava-o para o vai-e-vem da cidade que acontecia abaixo do palácio. À noite, porém, voltava-se para as estrelas, perguntando a seus assistentes os nomes das constelações. Numa noite de lua cheia, observava a superfície lunar, onde, segundo o folclore tibetano, reside um coelho (algo parecido com o “homem da lua” para americanos e europeus). Ao ver sombras, chamou animadamente seus dois tutores para que vissem com seus próprios olhos. Olhem, exclamou; as sombras na Lua desmentem a cosmologia budista do século IV, segundo a qual a Lua é um corpo celeste como o Sol e outras estrelas, irradiando luz de uma fonte interna. A Lua é claramente “apenas

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uma pedra árida, cheia de crateras”, disse ele, e as sombras que caem sobre sua superfície irregular provam que a Lua, assim como a Terra, é iluminada pela luz refl etida do Sol. Sua própria observação empírica havia contrariado um antigo ensinamento budista. A descoberta deixou uma impressão duradoura. A obser-vação, percebeu ele, pode desafi ar os tradicionais ensinamentos budistas.

“Revendo meus 70 anos de vida, vejo que meu encontro pessoal com a ciência começou num mundo quase inteiramente pré-científi co, onde o tecno-lógico parecia milagroso”, escreveu ele. “Suponho que minha fascinação pela ciência ainda se baseia numa admiração inocente diante das maravilhas que ela pode alcançar.”

Para o Dalai Lama, cujas aulas incluíam muito pouca matemática, física, química ou biologia — e que, quando criança, não tinha qualquer pista de que esses assuntos existiam, as engenhocas e as tecnologias rudimentares que o fascinavam eram ciência. Mas lentamente, depois de assumir formalmente o trono como líder temporal do Tibete, em 17 de novembro de 1950, e começar a visitar a China e a Índia, ele passou a entender que a ciência não é meramente o fundamento para as engenhocas, mas uma maneira coerente de questionar e compreender o mundo. Foi essa faceta da ciência, diz ele hoje, que o intrigou, e na qual viu profundas semelhanças com o budismo.

Assim como a ciência observa as minúcias do mundo e dos seres e objetos dentro desse mundo, construindo teorias e fazendo previsões, e aprimorando ou derrubando uma teoria quando experiências a contradizem, também o budismo que ele aprendeu em sua prática de meditação e nas lições fi losófi cas está imbuído do mesmo espírito de investigação com a mente aberta. “Estritamente falando”, escreveu o Dalai Lama, “no budismo a autoridade das escrituras não pode ter mais peso do que a compreensão baseada na razão e na experiência.”

Essa tradição teve início com o próprio Buda, que há 2.500 anos alertava seus acólitos a não aceitar a autoridade de suas próprias palavras, conforme estabelecido nas escrituras, nem a verdade de seus ensinamentos simplesmente por respeito a ele. Testem a verdade do que eu digo, disse a eles, por meio da aplicação de sua razão e de suas observações sobre as pessoas e o mundo em torno de vocês. “Portanto, quando se trata de validar a verdade de uma alegação, o budismo concorda que a maior autoridade é a da ciência, sendo a razão a segunda e por último a escritura”, tem dito o Dalai Lama. Se a ciência descobre que uma crença do budismo está errada, que ela viola a inquestionável verdade da ciência, tem dito ele repetidamente, então o budismo precisa abandonar uma visão ou um ensinamento das escrituras, mesmo que este tenha prevalecido por um milênio. “O budismo precisa aceitar os fatos”, diz ele. Por exemplo, a física

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budista, segundo a qual a forma, o gosto, o cheiro e o tato são componentes básicos da matéria, deve ser modifi cada, afi rma.

Em 17 de março de 1959, o Dalai Lama fugiu do Tibete, depois do fra-casso de um levante contra a ocupação chinesa. Cerca de 80 mil tibetanos o seguiram no exílio, muitos deles se estabelecendo em ou perto de Dharamsala, onde ele fez sua casa e estabeleceu um governo tibetano no exílio. Durante as primeiras três décadas de seu exílio, quase tudo o que o Dalai Lama soube sobre ciência veio de notícias que chegavam a Dharamsala — pela BBC, pela Newsweek e pelo ocasional livro de astronomia. Mas no fi m dos anos 1980, sua curiosidade estava se voltando para algo mais premente. “O domínio inevitável da ciência no mundo moderno mudou fundamentalmente minha atitude, que passou da curiosidade para uma espécie de envolvimento urgente”, escreveu ele. “A necessidade de me envolver com essa força poderosa em nosso mundo se tornou uma espécie de imposição espiritual também. A questão central [...] é como podemos tornar os maravilhosos desenvolvimentos da ciência em algo que ofereça um serviço altruísta e compassivo, para as necessidades da humanidade e de outros seres sensíveis com os quais compartilhamos essa Terra.”

Em 1983, o Dalai Lama viajou à Áustria para uma conferência sobre cons-ciência. Ali encontrou Francisco Varela, um neurocientista de 37 anos, nascido no Chile, que começara a praticar o budismo em 1974. O Dalai Lama nunca encontrara um eminente neurocientista que também tivesse conhecimento sobre o budismo, e o jovem pesquisador e o budista mais velho se entenderam imediatamente. Mesmo com sua agenda ocupada, disse o Dalai Lama a Varela, ele gostaria de ter aquelas conversas com mais freqüência.

O Instituto Mente e Vida

Um ano depois de seu encontro com Varela, o Dalai Lama ouviu falar de um plano no qual Adam Engle, empresário da Califórnia, estava trabalhando. Engle trabalhava na equipe da Organização Educação Universal, fundada pelo lama Thubten Yeshe. Numa reunião da equipe, alguém comentou que Sua Santi-dade estava presumivelmente bastante interessado em ciência. Que estranho casamento, pensou Engle: o dirigente espiritual do budismo tibetano, líder do governo tibetano no exílio... e a ciência? Será que isso é verdade? Quando a reunião terminou, ele decidiu que, se fosse verdade, gostaria de “pôr um pouco de energia” para tornar o interesse do Dalai Lama por ciência algo mais do que uma vontade passageira.

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Engle, que se tornara praticante de budismo oito anos antes, começou perguntando a conhecidos da comunidade budista da Califórnia sobre o su-posto interesse do Dalai Lama por ciência. Todos asseguraram a Engle que Sua Santidade estava fascinado por ciência. A idéia começou a se desenvolver na mente de Engle. Um ano depois, ele participou de uma apresentação pública do Dalai Lama em Los Angeles com um amigo e colega, Michael Sautman. Enquanto esperava que as portas fossem abertas, Sautman lhe apresentou ao irmão mais novo do Dalai Lama, Tendzin Choegyal (Ngari Rinpoche), que fazia parte da equipe de Sua Santidade. Mais de vinte anos depois, Engle se lembrou do que sentiu quando apertava sua mão: “Parte de mim disse ‘não o incomode com isso agora’, enquanto outra parte disse ‘é agora ou nunca’.” A segunda voz venceu. Continuando a segurar desesperadamente a mão de Rin-poche, Engle criou coragem para dizer subitamente que ouvira falar que Sua Santidade estava interessada em ciência e que gostaria de “organizar alguma coisa”. Rinpoche se ofereceu para encontrá-lo depois da apresentação no saguão do Century Plaza Hotel.

Às seis horas daquela tarde, Rinpoche entrou no saguão, e Engle foi di-reto ao assunto. Disse que ouvira rumores entre budistas de que Sua Santidade estava interessada em ciência. Se isto era verdade, ele adoraria tentar marcar alguma coisa, talvez um encontro em que o Dalai Lama pudesse ouvir cientistas e conversar com eles. Mas, por favor, assegure-se de explicar a ele que isto não seria mais um acontecimento ao qual o Dalai Lama emprestaria seu nome e, talvez, alguns minutos de seu tempo para um discurso inaugural. Faço isso, explicou Engle, apenas se Sua Santidade quiser participar plenamente. Rinpoche concordou em falar com o irmão.

Dois dias depois, na apresentação seguinte do Dalai Lama, Rinpoche disse a Engle que o Dalai Lama estava realmente interessado em participar de algo importante sobre ciência. Engle começou apresentando apenas algumas idéias sobre o que exatamente ele poderia organizar. Pressupôs que o tema deveria ser algo da física: o livro O Tao da Física, de Fritjof Capra, acabara de apresentar a milhões de leitores a noção de consonância entre a sabedoria oriental e as descobertas da física quântica. No começo de 1985, Engle e Sautman fi zeram uma visita a Capra em Berkeley, mas o escritor mostrou-se indiferente à idéia de organizar um encontro entre o Dalai Lama e físicos para explorar algumas idéias de seu livro. Parecia haver uma interminável sucessão de encontros da Nova Era, queixou-se Capra, e ele estava perdendo a paciência com isso: as pessoas se levantam, fazem discursos e nada acontece em seguida. Engle foi embora, ainda longe de saber o que deveria organizar.

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Logo depois, Francisco Varela, o neurocientista que se encontrara com o Dalai Lama na Áustria, telefonou para Engle de Paris. Contou a Engle sobre seu próprio encontro casual com o Dalai Lama, que o convidara para continuar o diálogo. Mas Varela não estava certo sobre como fazer aquilo. Ao ouvir sobre os planos incipientes de Engle, ele entendeu uma coisa. “Adam”, disse ele, “você não quer fazer isto sobre física; a ciência cognitiva faz muito mais sentido.”

Varela sabia que haveria obstáculos. Logo depois de começar a praticar o budismo, ele adotara a meditação como um instrumento de pesquisa cognitiva. Acreditava que a ciência cognitiva — uma fusão de psicologia e neurociência que tenta analisar o funcionamento da mente e do cérebro — poderia se benefi ciar de relatos introspectivos sobre a atividade mental, mas não de relatos aleatórios de observadores não treinados. Assim como observações casuais sobre, por exemplo, como as pernas se movem provavelmente não vão resultar em qualquer compreensão confi ável sobre o metabolismo muscular, também observações casuais sobre o que uma mente está fazendo seriam igualmente suspeitas. Mas um observador treinado, pensou Varela, era uma história diferente: essa pessoa poderia tornar a meditação uma ferramenta de pesquisa cognitiva. Dando aos praticantes mais acesso a conteúdos e processos de suas mentes, pensou ele, a meditação poderia ampliar o estudo tradicional sobre mente e cérebro, forne-cendo um relato confi ável em primeira pessoa so bre a atividade mental.

Sua proposta não foi exatamente bem acolhida pelo mundo da neuro-ciência, onde muitos dos cientistas consideravam a introspecção praticamente igual à divinação pelas vísceras de animais sacrifi cados, quando se tratava de compreender o funcionamento da mente. Quando Varela se encontrou com Engle, ele advertiu-o, portanto, para a importância de convidar cientistas que tivessem a mente aberta para a possível contribuição dos relatos em primeira pessoa de indivíduos que praticam a meditação — e de séculos de aprendizado budista sobre a mente — para a compreensão científi ca. Não se chegaria a lugar algum se os cientistas chegassem querendo antagonizar o budismo.

Em março de 1986, depois de mais de um ano se correspondendo com o gabi-nete do Dalai Lama, Engle voou até Nova Délhi e, depois de passar uma noite viajando de trem e mais três horas de carro numa estrada onde o trânsito de gado era maior do que o de veículos, chegou a Dharamsala. Caminhou até o portão do conjunto de prédios do Dalai Lama, um pouco acima do cruzamento central da cidade, e pediu para ver o secretário do Dalai Lama, Tenzin Geyche Tethong. O guarda telefonou para o gabinete e logo um jovem assistente desceu

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correndo a sinuosa calçada de asfalto. Engle mostrou a ele seu maço de corres-pondência com o gabinete do Dalai Lama, em que haviam sido trocadas cartas sobre a organização de algum tipo de encontro com cientistas, na esperança de que isto o diferenciasse de qualquer outro acólito que aparecesse querendo fazer contato com Sua Santidade. O pobre garoto fi cou tão confuso em relação a quem exatamente era Engle e em relação ao que ele queria que desistiu, e o levou para ver Tenzin Geyche.

No prédio de estuque onde o Dalai Lama mantém seu gabinete particu-lar, Engle se apresentou a Tenzin Geyche e lhe contou sobre a correspondência trocada durante meses com o gabinete. Foi a primeira vez que Tenzin Geyche, que acabava de assumir o cargo de secretário, ouvira falar sobre a proposta de um encontro entre o Dalai Lama e cientistas. Engle pediu uma audiência com o Dalai Lama. Eu lhe darei um retorno, disse Tenzin Geyche, onde você está hospedado? Ainda não fui lá, respondeu Engle, mas estarei no Kashmir Cottage. Depois de descer pelo caminho de volta e passar pela cabine de segurança na base do morro, Engle caminhou pelas ruas sinuosas de Dharamsala até chegar ao Kashmir Cottage, que pertencia a Tendzin Choegyal, era administrado por ele e havia sido a casa da mãe do Dalai Lama até sua morte.

Tendzin Choegyal se lembrou de Engle do saguão do Century Plaza, em Los Angeles, 18 meses antes. Você falaria com Tenzin Geyche sobre o interesse do Dalai Lama em ter esse encontro com cientistas?, perguntou Engle. Dois dias depois, Engle teve uma audiência com o Dalai Lama. Explicou o que ele e Francisco Varela tinham em mente e, depois de ouvi-lo atentamente, o Dalai Lama disse que aquilo era algo que queria muito fazer. Mas Engle tinha uma pergunta: “O que isto representa para você?” O Dalai Lama disse que estava pessoalmente interessado em ciência e queria continuar aprendendo sobre isso. Ele também queria introduzir a ciência no currículo monástico. Estava inteira-mente consciente de que no mundo moderno e principalmente no Ocidente, a ciência é a maneira dominante de descobrir a realidade; os alunos do mosteiro precisavam aprender sobre isso, para entender que a ciência era crucial para a contínua vitalidade do budismo.

As coisas aconteceram rapidamente. Varela se encontrou com o Dalai Lama em Paris, em junho, confi rmando seu interesse pelo encontro proposto, e Engle recebeu uma resposta positiva formal de Tenzin Geyche, o secretário do Dalai Lama. Ele voltou a Dharamsala para resolver as datas. Quanto tempo você quer?, perguntou Tenzin Geyche. Uma semana em outubro, respondeu Engle. Tenzin Geyche riu. Isto é impossível, disse ele, fi camos aqui em outubro apenas duas semanas, e a única coisa que Sua Santidade já fez durante uma semana

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inteira foi ensinar budismo. Desanimado, Engle voltou para o Kashmir Cottage. Mas dois dias depois chegou uma carta do gabinete particular. Ele conseguiu exatamente as datas que propusera — e a semana inteira do Dalai Lama.

Em outubro de 1987, o Dalai Lama foi o anfi trião da primeira conferên-cia do que Engle batizou de Instituto Mente e Vida, em Dharamsala. Cinco cientistas e um fi lósofo o envolveram em sete dias de conversa informal sobre ciência cognitiva e budismo. O formato se tornou modelo para cada diálogo posterior entre o Dalai Lama e cientistas: cada cientista apresentava seu trabalho ao Dalai Lama, o que era seguido de um debate entre os cientistas, o Dalai Lama e outros estudiosos budistas convidados.

Apenas alguns anos antes de os encontros do Mente e Vida começarem, lembrou o Dalai Lama, ele tivera uma conversa com uma americana casada com um tibetano. Ela o preveniu de que a ciência tem uma longa história de “matar religião” e, portanto, poderia ameaçar a sobrevivência do budismo. Ele não deveria ser amigo dessas pessoas, advertiu. Ele pensava de outra forma. Lembrando aquele primeiro encontro do Mente e Vida anos depois, ele diz que “se agarrou a essa idéia”. Viu os diálogos com cientistas importantes como uma oportunidade de aprender sobre os mais recentes pensamentos científi cos, é claro, mas também como parte de sua missão de abrir a sociedade e a cultura tibetanas para o mundo moderno. Portanto, deu ordens para que a ciência fosse parte do currículo das crianças nas escolas, e até mesmo nos seminários monásticos, onde o foco é o pensamento budista clássico e cujos estudantes são todos monges em treinamento. “Se, como praticantes espirituais, ignoramos as descobertas da ciência, nossa prática também empobrece”, escreveu ele mais tarde.

O Dalai Lama se tornou muito mais do que líder do povo tibetano, líder espiri-tual do budismo tibetano e chefe do governo tibetano no exílio. Ele é também um ícone internacional, símbolo de perdão, iluminação, paz e sabedoria, capaz de atrair multidões às sessões de ensino que oferece em locais que vão desde o Central Park, em Nova York, até os lugares mais sagrados do budismo na Índia. Para um pequeno mas crescente grupo de cientistas, ele também é uma ponte entre o mundo da espiritualidade e o mundo da ciência, alguém cuja expertise em treinamento mental pode oferecer à ciência ocidental uma perspectiva que falta a suas investigações sobre mente e cérebro.

Daquilo resultou um convite para discursar num encontro anual da Sociedade para a Neurociência, em 2005 — e em mais controvérsia do que ele esperava. Cerca de quinhentos participantes assinaram uma petição protestando

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contra sua presença, argumentando que não há lugar para religião numa con-ferência científi ca. (Muitos dos líderes dos protestos eram cientistas nascidos na China, o que alimentou rumores de que o protesto era mais político do que científi co.) Até mesmo o Dalai Lama reconheceu a aparente incompatibilidade de sua associação com a neurociência. “Então o que está fazendo um monge budista ao se interessar profundamente por neurociência?”, perguntou ele retori-camente. Ele ofereceu uma resposta em seu mais recente livro. “A espiritualidade e a ciência são diferentes, mas são abordagens investigativas complementares com o mesmo grande objetivo de buscar a verdade”, escreveu. Especifi camente, disse ele aos neurocientistas, embora as práticas de meditação orientais e a ciência ocidental tenham surgido por motivos diferentes e com objetivos diferentes, elas compartilham um objetivo prioritário. Tanto os budistas quanto os cientistas investigam a realidade: “Ao obtermos uma visão mais profunda sobre a psique humana, podemos encontrar caminhos para transformar nossos pensamentos, emoções e as propriedades que os fundamentam, de modo que um caminho mais sadio e gratifi cante possa ser encontrado.”

Não é de se estranhar que a neuroplasticidade — tema do encontro de 2004 organizado pelo Instituto Mente e Vida — tenha impressionado o Dalai Lama. Ele é intrigado com o fato de a compreensão budista sobre a possibili-dade de transformação mental ter paralelos com a plasticidade do cérebro. “Os termos budistas nos quais esse conceito se apóia são radicalmente diferentes daqueles usados pela ciência cognitiva, mas o que é signifi cativo é que ambos percebem a consciência como algo altamente receptivo a mudanças”, escreveu ele. “O conceito de neuroplasticidade sugere que o cérebro é altamente maleável e está sujeito a mudanças contínuas decorrentes de experiências, de modo que novas conexões entre neurônios possam ser formadas ou que até mesmo novos neurônios sejam gerados.” E como ele escreveu em seu best-seller de 1998 A Arte da Felicidade: “O cérebro não é estático, nem irrevogavelmente fi xo. Nossos cérebros também são adaptáveis.”

Não estático. Não fi xo. Sujeito a mudanças contínuas. Adaptável. Sim, o cérebro pode mudar, e isto signifi ca que podemos mudar. Não é fácil. Como veremos, a neuroplasticidade é impossível sem atenção e esforço mental. Para mudar, você tem que querer mudar. Mas se a vontade está lá, o potencial parece imenso. Depressão e outras doenças mentais podem ser tratadas usando a mente para mudar o cérebro, e não se enchendo de problemáticas substâncias químicas. Um cérebro que sofre de dislexia pode mudar e passar a ler com fl uência simples-mente mudando vezes seguidas os estímulos sensoriais que recebe. Um cérebro sem qualquer habilidade para esportes, música ou dança pode ser induzido a

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passar por uma nova e radical reorganização de suas regiões, dedicando mais sua atividade cortical aos circuitos que apóiam essas habilidades.

O Dalai Lama tem destinado seus recursos pessoais e ofi ciais para apoiar a pesquisa sobre neuroplasticidade porque esta se ajusta muito bem com o desejo do budismo de que todos os seres sensíveis sejam livres de sofrimento. Não é um objetivo tão absurdo: um cérebro cujo circuito leva à suspeita e à xenofobia pode, por meio de esforço disciplinado e comprometimento com o auto-aper-feiçoamento, ter suas conexões modifi cadas para responder com compaixão e altruísmo. Como a ciência é muito nova, os limites da neuroplasticidade em grande parte não foram mapeados. Mas não há dúvida de que a emergente ciên-cia da neuroplasticidade tem o potencial para realizar mudanças radicais, tanto em indivíduos quanto no mundo, levantando a possibilidade de podermos nos treinar para ser mais amáveis, mais compassivos, menos defensivos, menos auto-centrados, menos agressivos, menos belicosos. Esse mundo de possibilidades aberto pelas descobertas da neuroplasticidade é o motivo pelo qual cientistas e estudiosos budistas se encontraram naquele outono em Dharamsala.

Apenas uma palavra sobre a organização dessa história. Os cinco pes-quisadores que se encontraram com o Dalai Lama têm feito contribuições importantes para a revolucionária ciência da neuroplasticidade. Suas histórias são contadas nos capítulos 3, 4, 7, 8 e 9. Mas é impossível entender a extensão do poder da neuroplasticidade do cérebro sem conhecer outras descobertas; estas estão descritas nos capítulos 2, 5 e 6.

Eu comecei citando a opinião de Ramón y Cajal de que “os caminhos dos nervos são algo fi xo, concluído e imutável”. A maioria dos cientistas que citaram Cajal parou aí. Mas na verdade Cajal continuou: “Será a tarefa da ci-ência do futuro mudar, se possível, esta cruel sentença.” Como veremos agora, ela mudou.

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