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.-. ~- ttido na arte barroco entista culo XVI @ o I @ B~ do Coexistindo parcialmente com o maneirismo ao longo do século XVII,o barroco afirma-se através de um processo diver- sificado na cronologia das diferentes disciplinas artísticas. A sua constituição num sistema, em que as partes desempenham uma função integradora de profunda originalidade, define-se logo a partir da fase inicial, assim como os apelos visuais na cultura literária. Perante uma conjuntura em que a encomendas continuam a reflectir a importância dos conteúdos religiosos, os artistas, arquitectos e engenheiros militares procuram afirmar, embora em casos limitados, o seu estatuto esiJecífico de criadores. De uma influência espanhola, que a par dos valores vernáculos percorreu o período seiscentista, o gosto da corte começou a sofrer no final do reinado de D. Pedro 11uma orientação italianizante, preparando as realizações da época seguinte. Carlas Maura Na página anterior: a Igreja de Sant'lago, em Camarate, é outro exemplo de um interior do limiar do barroco, situado às portas de Lisboa. A enorme importância assumida pelas telas que revestem o tecto de masseira sobrepõe a narrativa figurada à ordem geométrica e abstracta dos azulejos, segundo um esquema certamente repetido noutros edifícios da capital destruí dos pelo terramoto. Nesta página: Pátio das Comédias em Lisboa (Museu da Cidade). De qualidade modesta, a pintura de autor desconhecido documenta a relevância do teatro no sistema cultural do barroco. 159

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doCoexistindo parcialmente com o maneirismo ao longo do século XVII,o barroco afirma-se através de um processo diver-

sificado na cronologia das diferentes disciplinas artísticas. A sua constituição num sistema, em que as partes desempenhamuma função integradora de profunda originalidade, define-se logo a partir da fase inicial, assim como os apelos visuais nacultura literária. Perante uma conjuntura em que a encomendas continuam a reflectir a importância dos conteúdos religiosos,os artistas, arquitectos e engenheiros militares procuram afirmar, embora em casos limitados, o seu estatuto esiJecífico decriadores. De uma influência espanhola, que a par dos valores vernáculos percorreu o período seiscentista, o gosto da cortecomeçou a sofrer no final do reinado de D. Pedro 11uma orientação italianizante, preparando as realizações da época seguinte.

Carlas Maura

Na página anterior: a Igreja de Sant'lago, em Camarate, é outro exemplo de um interior do limiar do barroco, situado às portas de Lisboa.A enorme importância assumida pelas telas que revestem o tecto de masseira sobrepõe a narrativa figurada à ordem geométrica e abstractados azulejos, segundo um esquema certamente repetido noutros edifícios da capital destruí dos pelo terramoto. Nesta página: Pátio dasComédias em Lisboa (Museu da Cidade). De qualidade modesta, a pintura de autor desconhecido documenta a relevância do teatro nosistema cultural do barroco.

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meiro do Paço, de Dirk Stoop (Mu-la Cidade). O palácio real e a anima-ie uma dasyrincipais praças de Lis-

em meados do século XVII~m-nos fixados na tela do artista ho-ês segundo os processos convencio-das suas composições. O interesse do-~ntal da pintura acaba por derivar do0$0número de imagens representando1biente urbano da época da Restau-0, aqui captado com larga participa-humana, reunindo figurantes de to-os grupos sociais.

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o título deste volume evoca um conceitodeliberadamente difuso: o limiar de qualquercoisa que virá depois, um patamar que já nãose identifica completamente com o que foiantes. Ele não deixa de reflectir um certocoeficiente de indeterminação e envolve,mais genericamente, uma atitude sobre o sé-culo XVIIno nosso país.

A primeira dificuldade deriva da plurali-dade de correntes artísticas no interior do pe-ríodo seiscentista. Os tempos históricos nãocoincidem, forçosamente, com os tempos es-tilísticos, e estes estão longe de ser unívocos.A história da arte faz-se por confronto de ex-periências, por ensaios que suscitam conver-gências e antagonismos, por um debate, emsuma, entre a rotina cristalizada do passadoe a sugestão do novo.

Os dinamismos sociais e institucionais, acultura e o gosto, as viabilidades económi-cas e os recursos materiais concretizam noimediato cada conjuntura. Ora, no caso deuma arte nacional, este processo de con-fronto, avaliação e escolha assume perspec-tivas muito diversificadas. As tradições lo-cais seguem uma dinâmica própria, compersistências que são autênticos movimentosde longa duração, colocados em presença depropostas chegadas do exterior. O papel dosartistas estrangeiros, dos mecenas actualiza-dos em matéria de gosto, da importação deobras, dos tratados e manuais teóricos e prá-ticos, traduz-se na criação de instrumentosde renovação. E aqui não basta a vontade

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de alguns promotores para modificar estru-turalmente uma situação.

Em Portugal, a unificação com a Espanha,primeiro, e a abertura diplomática após 1640,depois, estabelecem directrizes a que teríamosde acrescentar as relações com o Oriente. OPaís importa soluções, divulga gostos exóti-cos (nas artes decorativas), inventa e cria umformulário próprio. Maneirismo e barrocosão as categorias estéticas em presença, numasucessão de balizas mal definidas. Mas a his-tória da arte não segue um esquema de de-senvolvimento biológico e determinista. Porisso, no campo de forças extremamente com-plexo que é o da arte seiscentista, a regra queprevalece é o da viragem sectorial para o bar-roco, mais precoce num domínio, retardatá-ria em outro. A conversão súbita e em bloco,mesmo a partir de centros atomizados de me-cenato esclarecido, é uma ideia falsa. O pro-cesso revela-se demorado para do estádiofragmentário atingir a condição de sistema.Pelo meio, como se viu a propósito da ar-quitectura militar, podem até intrometer-sedigressões classicistas, não menos típicasdeste século XVII, mas independentes dosdois ciclos artísticos dominantes.

Os limites cronológicos do limiar do barroco

A etimologia da palavra «barroco» pareceradicar, emblematicamente, na língua portu-guesa. O sentido original que se lhe atribuía

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no século XVIdesignava a irregularidade daforma das pérolas, embora no castelhano seusasse também a e)cpressãoperlas berruecas.Da joalharia ao vocabulário estético foi umpasso, tornando-se o termo sinónimo de «in-sólito» ou «bizarro». Como noutros casos,a designação reveste uma carga pejorativa,que lhe é transmitida no século XVIII.Numdicionário francês de 1757 definia-se o bar-roco como o que não obedece às regras daproporção, o que não está no bom gosto. Asua reabilitação enquanto período históricodá-se com H. Wõlfflin, conforme foi expli-cado no início do volume, afastando-se oconceito de uma fase de decadência da arteocidental.

O modo como a historiografia portuguesae internacional têm considerado este ciclo ar-tístico insinua, desde o início, a existência dedois momentos distintos. Em 1943, numaconferência sobre o espírito e a essência daarte em Portugal, Reinaldo dos Santosresume a questão nos seguintes termos: «écostume e é justo distinguir a arte dos doisséculos XVIIe XVIII,diferenças que se expri-miriam na pintura e na escultura, mas, ecomo sempre, mais profundamente na arqui-tectura, arte colectiva por excelência». Pro-cura então caracterizar aquele século pela«austeridade», mais «nacionalista» que o«cosmopolitismo» subsequente, sentida naarquitectura e na pintura de retratos. Mas éna escultura que o seu conceito de periodi-zação se restringe, ao assinalar, em 1950, aexistência de um ciclo seiscentista no tempode D. Pedro 11(1667-1706), que, não se so-brepondo rigorosamente ao reinado, se dis-tingue no «conceito essencial das formas».

Germain Bazin, tão sensível aos aspectosclassicistas e individualizantes da arte portu-guesa, situa no ano de 1680 o início da acei-tação, ética e estética, dos modelos berninia-nos. Por sua vez, Robert Smith, ao estudarFrei Cipriano da Cruz, torna-o coincidentecom o período de nascimento e evolução domovimento barroco entre nós: toda a gover-nação de D. Pedro 11e a primeira década deD. João V.

Se a constituição da talha de estilo nacio-nal tem servido de critério para estabelecero marco inicial, já no extremo oposto se pre-feriu respeitar apenas a cronologia política.Ora, em torno de 1712 verifica-se, de algummodo, um corte com o final da carreira dealguns artistas e o abandono do País porparte de outros. Foi Ayres de Carvalho o pri-meiro a aperceber-se do facto, que se resumena ida de Carlos Gimac para Roma, na subs-tituição de Bento Coelho da Silveira, entãode provecta idade, no cargo de pintor régioe na morte de Félix da Costa e João Antu-

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Dois pormenores do quadro de Filipe Lobo O Mosteiro de Belém. Como vimos anteriOleste discípulo de Dirk Stoop segue de perto a lição do mestre, embora espaçando a di.ção das figuras na área representada. A presença da fonte, como pólo motivador de uvívio espontâneo, permitiu um registo mais dinâmico, com a presença de cavaleiros,res, crianças e animais numa cena do quotidiano.

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Nesta página: desenho de Manuel Pereira(Museu Nacional de Arte Antiga). Trata--se de um documento excepcional, mos-trando a perícia gráfica do escultor abor-dando o tema da Crucifixão, tantas vezestratado na sua obra. Na página seguinte:Adoração dos Pastores (Igreja de São Ro-que). A tela poderá corresponder a umaobra de André Reinoso intitulada por Fé-lix da Costa O Nascimento e situada na«capela do Menino perdido» daquelaigreja, juntamente com uma Adoraçãodos Magos e um Menino entre os Douto-res, esta de A velar Rebelo. Uma certaconfusão se gerou, porém, nas atribui-ções, tendo Reinaldo dos Santos falado naautoria de Rebelo para todo o conjunto.

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nes. No ano anterior, acrescentamos nós,D. João V autorizava a fundação em Mafrade um conventinho para frades arrábidos eem 1717 é lançada a primeira pedra, quetransforma o modesto cenóbio num vastís-simo complexo para trezentos frades...

Das oscilações pendulares, num e noutrosentido, a época do Pacifico parece ter sidosempre o ponto de gravidade, sinónimo dachegada do barroco à arte. As conclusões doque atrás ficou dito permitem dilatar o seuâmbito e englobar neste núcleo a época daRestauração. Por outro lado, os primeirosanos de D. João V, carecidos ainda de um

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autêntico projecto de grandeza, reflectem,em nosso entender, a conjuntura anterior.Franjas ainda mais recuadas de fenómenosisolados mas com futuro, ou adiantadas notempo porque na sequência de aspectos an-teriores, se demarcaram em território estra-nho a este volume. Pretenderam apenas cha-mar a atenção para a progressão não lineardo estilo, apesar da viragem de 1640, da ma-turação de 1680 ou do simbolismo de 1717.

o sistema do barroco em Portugal:diacronia e sincronia

A noção operatória de ~istema tem sidoutilizada em diferentes acepções, por analo-gia com as ciências da linguagem. O filósofofrancês Michel Foucault definiu-a como um«conjunto de relações que se mantêm e trans-formam, independentemente das coisas queligam». Em sentido genérico, consideraremosapenas a ideia de solidariedade do todo comas partes e das relações destas no seio da glo-balidade, o que envolve também uma dimen-são temporal.

A igreja «forrada de ouro», que vimos seruma particularidade do espaço cultural por-tuguês, é um exemplo de uma variante destesistema. Para o seu aparecimento foi neces-sária uma cadeia de experiências anteriores,que, explorando uma das vias possíveis, es-truturou a fórmula, sem com isso esgotar oleque das possibilidades. Temos assim duasabordagens igualmente legítimas: a diacró-nica, que procura acompanhar a trajectóriasequencial dos factos artísticos, medindo asua capacidade de inovação a cada momento,e a sincrónica, que os analisa independente-mente dos vectores de mudança.

O que acontece no barroco português é amaturação extremamente lenta da associaçãodos elementos, mais tarde reunidos em sis-tema. Fortuita ou deliberadamente, estabele-cem-se articulações entre modalidades quenada tinham de comum, isto numa épocabem anterior. A justaposição na Sé Velha deCoimbra do monumental retábulo flamengode madeira dourada, da autoria de Olivierde Gand e Jean d'Ypres, ao ambiente reves-tido de azulejos hispano-mouriscos, em plenocomeço do século XVI, é outro exemplo su-ficientemente esclarecedor das raízes do pro-blema.

Temos, assim, que, na perspectiva diacró-nica, o sistema barroco português tende aorganizar-se, com o apoio das artes decora-tivas, por camadas sedimentares que se de-positam sobre orgnismos arquitectónicos delinearidade sóbria. Tirando partido do con-traste visual entre o despojamento exterior

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...As diferentes combinatórias das artes di-

tas maiores e das decorativas (nesta épocabem longe de um estatuto de menoridade)dão, pois, conteúdo e originalidade ao sis-tema, por sua vez somatório integrado desubsistemas, consoante a presença/ausênciados factores e a sua proporcionalidade. Econtribuem para a elevação do barrocO àcategoria de arte total, dirigida aos cinco sen-tidos, já que a doçaria poderá participar tam-bém no sistema, como referente de uma li-turgia em que a audição musical e o cheirodos incensos são complementosindispensá-.

velS.

Adoração dos Magos (Igreja de São Ro-que). Colocada na parede lateral da ca-pela, representa um bom exemplo da pin-tura religiosa de melhor nível produzidano limiar do barroco. VlÍor Serrão, umdos historiadores que mais recentementese lhe referiu, inclui-a, na sequência dotestemunho de Félix da Costa, no catálogodas obras de André Reinoso, datando-ade cerca de 1635. Numa primeira aproxi-mação, estes dois quadros parecem demão diferente da que executou o Meninoentre os Doutores, revelando, por outrolado, afinidades entre si. Um foco de luzdiflfsa, ao centro, irradia em ambos umailuminação suave, porventura de maiorefeito no fundo paisagístico donde pro-vêm os Magos. Os vermelhos, os rosas,os amarelos e os dourados equilibram-sesem insistir num dramatismo excessivo,criando uma atmosfera de religiosidadetranquila e envolvente.

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e a rutilância dos interiores (aspecto Cl-UeJ:.e-=-.leva da perspectiva sincrónica), o barroco di-lata enormemente o seu terreno de acção,porque se instala também em construções an-teriores.

Este ponto é fundamental na época quetratamos. Não basta dizer que muitas igre-jas e capelas se limitam a um traçado sim-ples, contando já com os retábulos dourados,as pinturas e os azulejos. É preciso sublinhartambém o alcance das intervenções em edi-fícios maneiristas e anteriores, actuação que,aliás, terá continuidade. Neste sentido, o bar-roco não só vem introduzir uma outra dinâ-mica em espaços estáticos, como até destruira decoração existente para ocupar o seu lu-gar. As duas atitudes seguem a par, condi-cionadas, evidentemente, pelos programas

ideológicos e a capacidad!din.anc_e.ir.a_de_oconcretizar, acrescentando um novo capítul4artístico a muitos monumentos medievais

Mas o ritmo imprimido em épocas d,maior desafogo económico conduzirá até a4supremo paradoxo de o barroco se devoraa si próprio, tal como havia feito com a an.românica e gótica. É o que chamaríamos:autofagia do barroco. O sector mais visad4será o da talha dourada, porventura aquel.onde a desactualização estética se tornav:mais gritante aos olhos dos homens d;época. E muitos altares de estilo nacional serão substituídos por retábulos joaninos, d;mesma maneira que os maneiristas haviansido em alguns casos sacrificados. Fatalidadlda história, por certo, mas fenómeno qu,mereceria um estudo aprofundado.