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Tudo tem um começo. · conjunto de coisas, e Nelson começou a pensar na ... quando a família Birmann e a família ... romance em que o per-sonagem principal é um homem e a autora

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Tudo tem um começo. Mas esta história começou mesmo de um final.

Depois de 45 anos de dedicação à RBS, Rede Brasil Sul de Comunica-ções, Nelson Pacheco Sirotsky decidiu abrir mão de qualquer papel exe-cutivo dentro da empresa fundada por seu pai. Durante uma vida, ele canalizou toda a sua paixão e energia para a empresa.

No início, quando entrou lá, um jovenzinho de 17 anos, a idolatria pelo pai, Maurício Sirotsky Sobrinho, guiava seus passos. Mesmo sendo filho do fundador da empresa, Nelson batia diariamente o seu cartão de ponto como assistente de contabilidade no prédio da avenida Ipiranga, 1.075, em Porto Alegre. Depois, quando passou a trabalhar na rádio, cada conquista sua era uma conquista de vida. Como se a RBS fosse mesmo a vida de Nel-son, como se tudo o mais em sua existência viesse a reboque da empresa sonhada por seu pai.

Mas chegou um momento em que viu que isso não era verdade. A vida de uma pessoa não é apenas a sua trajetória profissional, a vida é grande demais, ela é um céu: nunca é apenas uma estrela. Cada um de nós é um conjunto de coisas, e Nelson começou a pensar na constelação da sua pró-pria existência.

Nos últimos 45 anos, ele fizera tudo o que uma pessoa poderia fazer dentro de uma empresa de comunicação. Durante todo esse tempo, nunca tinha deixado o trabalho em segundo plano. Mesmo nas viagens, não se

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passara um único dia sem que pensasse na RBS. As notícias vinham por telefone, por telex, ele recebia os jornais por fax, tomava decisões por tele-grama, por e-mail. Nas férias, telefonemas se sucediam e pendências eram resolvidas a milhares de quilômetros de distância da sede da RBS, na ave-nida Erico Verissimo, em Porto Alegre.

Então, após quatro décadas e meia de dedicação a um projeto que ca-pitaneou a comunicação no Sul do Brasil, Nelson descobriu que estava na hora de viver novas experiências profissionais. Um ciclo começava a se fechar na sua vida, uma grande mudança se avizinhava, e ele soube estar aberto ao novo, à transcendência.

Ele queria fazer coisas novas e de forma diferente. Era a hora de deixar o comando da RBS. Não que fosse fácil se desapegar do poder! A maio-ria dos homens passa a vida regulando o seu equilíbrio particular com o poder, as suas relações de poder com a família, com seu mundo profis-sional e com a sociedade. E Nelson tinha estado no comando de uma das maiores estruturas de comunicação do país. Sua vida tinha sido de con-vites sem fim: fora a muitas posses de governadores e presidentes, conhe-cera pensadores e empresários de sucesso mundial, políticos de todas as correntes ideológicas, pessoas interessantes e outras não tão interessantes assim, convivera com atletas de ponta e privara com artistas nacionais e internacionais.

Fora da RBS, seu telefone não tocaria tanto, ele não seria chamado para inúmeros eventos e encontros. Mas o que ele iria perder? Nelson ficou al-gum tempo pensando nisso, e então teve certeza de que não haveria re-ceios nem dúvidas. Ele estava preparado para encerrar essa etapa da sua vida. E deixar algo para trás, num mundo onde todos parecem querer sempre mais, é uma decisão rara e honrosa. Abrir mão não é fácil.

Nelson gosta de lembrar uma frase do sogro: “Quando eu acordei, já ti-nha 60 anos.” O seu próprio pai, Maurício Sirotsky Sobrinho, morrera com essa mesma idade. E quase 30 anos depois, Nelson, na casa dos 60, pensava em se afastar da RBS.

Seu legado relacionado à RBS estava feito. Ele tinha novos empreendi-mentos a tocar, novos sonhos a realizar, que certamente farão parte do seu legado pessoal, mas que acontecerão fora da RBS.

Em dezembro de 2015, Nelson publicou no jornal Zero Hora uma carta

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pública explicando os motivos que o levaram a deixar a empresa de uma vida. Nessa carta, ele abria mão de todas as suas funções executivas na RBS. Em janeiro de 2016, já afastado da empresa, passando férias na sua casa na Barrinha, em Garopaba, Santa Catarina, começou a pensar que deveria es-crever um livro e contar a sua história, a história dos 45 anos que dedica-ra à RBS, a história da empresa que ele também construíra – a trajetória do jovem que começou cedo, ousou, desbravou fronteiras, enfrentou o pai, de-mitiu-se aos 20 anos e assumiu a presidência do grupo aos 38. A história do empresário, mas também do pai, do marido, do homem. Do Nelson que é um poço de energia, uma explosão de vigor, uma risada contagiante.

E foi assim que eu entrei nestas páginas...Eu já contei a vida do meu avô polonês, da Manuela, da Anita e do Giu-

seppe Garibaldi e de dezenas de outros personagens inventados. Mas Nel-son está aqui comigo – passamos incontáveis horas juntos no último ano, entre risadas, papéis e memórias. Este misto de convivência e de palavras poderá dar certo ou errado, só vocês saberão dizer, e apenas ao final deste livro. Nelson é o primeiro personagem que virou meu amigo.

Eu gosto de histórias de vida, gosto de coragens e de sagas familiares. Estas páginas são um pouco de tudo isso, e também o lampejo das minhas imaginações. Porque eu sou uma ficcionista, e Nelson tem uma vida que daria um baita romance.

Mas o que temos aqui é uma história real, que começou lá em Erebango, interior do Rio Grande do Sul, e antes ainda, num tempo de viagens sem volta, quando a família Birmann e a família Sirotsky atravessaram meio mundo para fazer uma vida nova na América. Esta é uma narrativa de su-cessos e de coragens, de finais e de recomeços. E também de inaugurações.

Pois, como disse Roberto Irineu Marinho, então presidente das Organi-zações Globo, quando da venda da RBS em Santa Catarina, Nelson é um homem que gosta de inaugurar coisas, não de vendê-las.

Concordo com ele.Como bom pisciano, Nelson Pacheco Sirotsky é mesmo um homem de

amanhãs.

Leticia Wierzchowski

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Este não é um livro de memórias. Não é uma biografia. Não é uma história empresarial. Não é uma obra de ficção. Não é um romance. Não é um livro de revelações. O oitavo dia é um pouco de tudo isso.

Como qualquer pessoa, tenho muitas histórias e lembranças guardadas na memória. E, há algum tempo, tem me batido uma vontade crescente de registrar uma parte delas.

Todos os relatos que figuram neste livro foram feitos por mim, de for-ma absolutamente sincera e honesta, pois só fariam sentido se cumpris-sem com o papel de deixar um legado para meus filhos e netos, principal motivação deste projeto.

Os assuntos aqui abordados têm a minha perspectiva da verdade, que, como qualquer verdade, não é absoluta. Certamente, existem outras ver-dades sobre muitos dos fatos aqui narrados, e eu respeito todas.

Tenho a ventura de viver uma vida vibrante e emocionante sob muitas perspectivas. Quando deixei de exercer funções executivas na RBS, no fi-nal de 2015, decidi dividir com os companheiros da empresa, e com o pú-blico, as razões daquela decisão tomada aos 63 anos de idade, depois de 45 anos de intensa atividade profissional na empresa de comunicação funda-da por meu pai, em 1957.

Por essa razão, escrevi uma carta aos colaboradores da RBS, que acabou sendo publicada no jornal Zero Hora. Nessa carta, expliquei que resolve-ra me afastar para começar uma nova jornada, para fazer coisas diferentes

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nos anos que viriam, sem ter a empresa de comunicação como elemento central de minha vida.

Somente mais tarde me dei conta de que, ao escrever essa mensagem, eu estava, na verdade, fazendo uma profunda reflexão sobre a minha exis-tência, meus aprendizados e emoções, e sobre como eu gostaria de dividir essas histórias com outras pessoas.

Aliás, acho que esse ímpeto de comunicar, esse desejo tão forte de com-partilhamento, está no meu sangue. Talvez venha da minha avó materna, Judith, que não conheci, mas que era professora de música e levava minha mãe para cantar nos palcos do interior do Rio Grande do Sul, compar-tilhando o seu jovem talento com o público gaúcho da década de 1930. Quem sabe venha também do meu avô materno, Pedro, advogado e políti-co em Passo Fundo, conhecido por sua capacidade oratória. Tenho ainda, certamente, influência direta dos meus avós paternos, José e Rita, tam-bém ótimos contadores de histórias. E, evidentemente, carrego o sangue do meu pai, um homem vocacionado e apaixonado por comunicação. Sua vida e obra são provas disso.

Das minhas experiências e da minha vontade genuína de comunicar, nasce este livro. No início, eu não tinha a menor ideia do que faria com estas reflexões. Simplesmente comecei a gravá-las, sem qualquer outra in-tenção que não fosse uma espécie de revisão dos fatos da minha vida. Re-visitei, comigo mesmo, episódios e lembranças dos meus dias e anos, e os guardei em arquivos de voz. Imaginava um dia transformá-los, quem sabe, em uma publicação, mas só tomei essa decisão em fevereiro de 2017, quando a Rádio Gaúcha completou 90 anos e fui solicitado por muitas pessoas a contar histórias, minhas e de meu pai, da nossa família, do início da RBS. Relembrei muitas delas no ar e outras tantas para amigos e cola-boradores da empresa. E, quando percebi que as pessoas tinham interesse em ouvi-las, tomei a decisão: iria levar adiante a ideia do livro.

Outro fator determinante para seguir em frente foi ter me tornado avô. A relação com meus netos, essa nova e indescritível emoção na minha vida, aumentou minha vontade de deixar registradas algumas histórias para o futuro.

Nunca tive a pretensão de me transformar num escritor. Pensei em vá-rios jornalistas que poderiam me ajudar a dar um formato de narrativa

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aos meus relatos, mas acabei acatando a sugestão da amiga e empresária Anik Suzuki de, em vez de chamar um jornalista, convidar um escritor gaúcho para dividir comigo este projeto.

Assim surgiu o nome de Leticia Wierzchowski, que eu só conhecia pela sua obra mais famosa, A casa das sete mulheres. Antes de entrar em conta-to com ela, li dois livros de sua autoria: Neptuno, romance em que o per-sonagem principal é um homem e a autora assume essa voz masculina na narrativa, e Uma ponte para Terebin, no qual ela conta a história de seu avô polonês. Na sequência, já durante a produção deste livro, eu leria Traves-sia, sobre as aventuras de Giuseppe e Anita Garibaldi no Sul do Brasil, no Uruguai e na Itália.

Antes mesmo de terminar as leituras, concluí que Leticia era a profis-sional adequada para esta parceria literária. Por mais de 15 meses, tra-balhamos juntos, repassei a ela todas as histórias que estão neste livro, conversamos muito; e ela, com seu talento de ficcionista, deu um formato diferenciado e inovador aos relatos que eu guardo na memória.

Desde o primeiro contato, combinamos que o resultado deste nosso trabalho conjunto poderia ser entregue apenas a minha família ou mesmo nem ser publicado. Depois de pronto, porém, tive certeza de que deveria compartilhá-lo com quem tivesse interesse na leitura.

Aí está, portanto, O oitavo dia. Leticia organizou os episódios da minha vida em quatro narrativas que se alternam ao longo da obra. A primeira, “A árvore da vida”, resgata os vínculos familiares e afetivos, a minha rela-ção com meu pai, minha mãe, meus irmãos, minha mulher, meus filhos e netos. A segunda, “A chave do cofre”, trata da relação profissional com meu pai e com a RBS. A terceira, “O oitavo dia”, que também dá título ao livro, retrata a transformação que estou vivendo depois dos 60 anos. Já a quarta, “Autorretrato”, é um mergulho em meus próprios sentimentos e emoções, nos meus valores, na minha espiritualidade e nas minhas reflexões mais profundas sobre o processo de tomada de decisões, tanto no âmbito pes-soal quanto no empresarial. Em “Autorretrato”, escrevo em primeira pes-soa, pois não poderia transferir a ninguém a missão de fotografar minha própria alma.

Nelson P. Sirotsky

PARTE 1

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Durante centenas de anos, eles atravessaram oceanos em busca de uma nova vida. Fugiam da fome e da miséria. Abandonavam uma Europa dilacerada por guerras com meia dúzia de pertences e com seus filhos pela mão, cruzando mares e deixando o passado para trás. Iam para a América em busca de seus sonhos, de uma vida digna e de prospe-ridade para seus descendentes. Eram os imigrantes. E, dentre italianos, po-loneses e alemães, vinham também os judeus.

Os judeus talvez tenham sido o grupo humano mais sofrido desses mi-lhares que vieram dar aqui no Brasil. Carregavam no sangue séculos de partidas, de fugas no meio da noite, de violências e proibições, de pogroms, imperadores sanguinários e aldeias arrasadas. Mas os judeus eram corajo-sos, tinham já nas veias o hábito da partida e a coragem do recomeço.

A América do Sul guardava vastidões de terras não povoadas. E milha-res de famílias de imigrantes vieram para o Brasil no fim do século XIX e início do século XX. Dentre essas gentes estavam os Birmann e os Sirotsky – e estava, também, o meu avô polonês, Jan Wierzchowski. Essas hordas humanas chegaram mergulhadas no total desconhecimento da realida-de local, da lida da terra que lhes seria destinada, dos meandros do nosso idioma e dos mistérios da vida tropical.

Mas eles eram determinados. Eram imigrantes num tempo de viagens sem volta, dividindo sua vida em duas existências com um oceano pelo meio. Só havia um caminho: perseverar. Assim, com poucos pertences e

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muita coragem, eles se instalaram nas colônias do Sul do país, desbrava-ram matas e venceram doenças, enterraram filhos, construíram casas, se-mearam as primeiras plantações, abriram ruas e fundaram escolas.

E começaram a prosperar.O passado virou história que se contava em torno do fogão a lenha nas

frias noites do inverno gaúcho de antigamente. Histórias alteradas pela memória daquelas crianças assustadas, varando o mundo na terceira clas-se de navios cheios de gente, carregados de sonhos, medos e incertezas.

Histórias que embalavam seus filhos à hora do sono, depois do árduo dia de trabalho, depois do feijão, da polenta e da sopa. Histórias que Re-becca Birmann Sirotsky (a quem todos conheciam por Rita) lembrava bem. Ela viera a bordo do navio Serra Nevada, cruzando os mares desde Bremen, na Alemanha, até o Rio de Janeiro, onde, junto com outras cente-nas de pessoas, precisou vencer a quarentena na Ilha das Flores para de-pois, só depois, seguir para as terras destinadas a sua família.

Rita contava essas histórias aos seus filhos... Contava-lhes, imagino, do espanto de ver uma pessoa de pele negra no

porto do Rio de Janeiro, pois negros não havia na Bessarábia, parte do Im-pério Russo de onde ela viera. Nem aquele calor pegajoso, nem os morros e o verde e a algaravia colorida do trópico – que Rita conheceu apenas de passagem, pois, vencida a quarentena, a família rumou para o Rio Grande do Sul, chegou a Porto Alegre e depois seguiu de trem para a colônia de Erebango.

E foi no interior de Erebango, na colônia agrícola Baronesa Clara, que Rita conheceu José Sirotsky. Eles se casaram cedo, como convinha à época, e Rita deu ao marido quatro filhos em escadinha: Henrique, Isaac, Maurí-cio e Semi. Quando já viviam na cidade de Passo Fundo, e José tinha seu armazém, muito frequentado por toda a gente do lugar, foi que nasceu o caçula, Jayme.

Rita trabalhou pesado ao lado do marido, criando os filhos e ajudando no armazém. Era uma mulher forte, decidida. Tinha boa memória e uma saúde de ferro que a faria sobreviver a três dos seus cinco rebentos.

Mas isso foi bem mais lá na frente... Ela jamais poderia imaginar, enquanto cuidava do garotinho de cabe-

los loiros que foi Maurício, que mais tarde, quando um problema cardíaco

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o vitimasse, aos 60 anos, a sua morte seria uma comoção pública, notícia em todos os jornais daquele Brasil que tanto a assustara da balaustrada do Serra Nevada, no porto do Rio de Janeiro. Maurício viria a ser o cartão de visita da família, o jovem carismático que daria a volta por cima dos anos de dureza e de penúria. No dia da morte de Maurício, olhando o Pa-lácio Piratini, sede do governo do Rio Grande do Sul, repleto de autorida-des que pranteavam a sua súbita partida, José diria à esposa desconsolada: “Olha, Rita, como ele tinha amigos, como todo mundo gostava dele...”

Aquela família de imigrantes, de vida sofrida e memórias difíceis, se-ria alavancada na sociedade brasileira pelas mãos de Maurício, mas isso aconteceria muito depois dos primeiros anos do casamento de Rita. No começo, ainda na colônia de Erebango e em Passo Fundo, o dinheiro era contado, não havia regalias nem presentes, e o trabalho era duro.

Só sobravam histórias.E Rita contava histórias, gostava delas. Tinha boa memória, evocava o

passado com precisão. Talvez tenham vindo daí, dessas passagens narradas pela mãe, das histórias do navio e do Império Russo que ficara para trás, as primeiras possibilidades imaginativas de Maurício, o pai de Nelson.

Maurício era um menino criativo e inquieto, gostava de imitar os pro-fessores e levava jeito para a música. Amava música. De todos os tipos, de todos os gêneros. Embora não fosse um aluno prodígio – tirava apenas notas medianas –, era um jovem cheio de amigos. Dava-se bem com todos os colegas, era muito sociável. Durante os recreios na escola, ele impro-visava programas de calouros e imitava os apresentadores da Rádio Na-cional, a grande emissora brasileira da época. E foi no colégio, o Instituto Educacional Metodista de Passo Fundo, que Maurício organizou seu pri-meiro show de calouros: o diretor cedeu o auditório da escola para o even-to, que já transcendia o espaço dos recreios.

Começava ali, na brincadeira, uma carreira que mudaria muitas vidas.

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A ÁRVORE DA VIDA

Ao longo de todos esses meses, venho pensando em como escrever este livro. Dia e noite, noite e dia, sigo rondando essa questão como se cami-nhasse ao redor de um farol ainda inexistente, tentando adivinhar sua fu-tura presença, a textura das suas paredes, a luminosidade que ele emana, seus claros e escuros. Mesmo quando não encontro Nelson, mesmo quan-do ele corta os céus rumo a suas reuniões e cruza grandes metrópoles em função dos seus negócios, esta história segue dentro de mim como um subtexto da minha própria vida.

Tudo o que ele contou, toda a sua história, os álbuns de fotografia, os papos conexos com a sua esposa, Nara, com seus auxiliares, os objetos, as lembranças, tudo vem se misturando sem controle. É a história de Nelson Pacheco Sirotsky, mas também é a história de muitos outros.

E eu sou uma romancista.Das realidades, eu sempre salto para o precipício do improvável, daqui-

lo que não se vê, mas que eu sinto e que posso ver. Coisas que me instigam, vozes que nascem dos livros que abro, das gavetas cujo conteúdo espiei, das salas e escritórios pelos quais meus olhos vagaram nesses meses todos, ouvindo, aprendendo, secretando informações, costurando possibilidades, destinos e silêncios.

Sim, pois toda história também é feita de silêncios. Das vozes que fica-ram no passado, mas que, juntas, me contam coisas que eu não sei. Uma história de fatos reais – não há sequer uma única invenção aqui –, mas uma história urdida por uma romancista.

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Eu embaralhei as cartas que Nelson pacientemente me deu no último ano. Eu orquestrei as vozes, e foi neste balé de engendrar silêncios e discur-sos que me surgiu uma ideia, uma ideia que foi tomando corpo a cada dia.

E se eles falassem?Eles.Todos eles que já não estão mais aqui, mas que dão sustentação a esta

narrativa, que são o passado do presente que estas páginas contêm e que são, também, substrato do futuro que vem com os filhos e netos da Nara e do Nelson.

E se eles falassem?Maurício, Ione, dona Rita, seu José... Eles falaram comigo ao longo desses meses. Nada mais justo – se me

perdoarem este deslize de romancista – que eles também falem com vocês.

José Sirotsky:

Então eu vim da Bessarábia, hoje Moldávia, um shtetl – um vilarejo – cha-mado de Dobrevein. Vim de lá ainda bem pequeno, e conheci a Rita na ju-ventude. A gente se casou logo, a vida começava cedo naquele tempo, e foi no ano de 1920 que eu coloquei uma aliança no dedo dela.

Tivemos cinco filhos, Henrique, Isaac, Maurício, Semi e Jayme – o Jayme nasceu por último, quando a gente já vivia em Passo Fundo. Ah, mas, antes disso, teve muita colônia pela frente...

Vida dura, difícil e suada. Eu fui agricultor, obrei na ferrovia, no assentamento de trilhos do ramal

Erebango – hoje Quatro Irmãos. Era um trabalho pesado, cansativo, mas o dinheiro ainda assim não chegava para alimentar quatro crianças. Então, para melhorar o orçamento, comecei a vender cavalos e mulas.

Com o tempo, passei à doma. Cavalo domado se vendia por um preço muito melhor. Assim, de pouco em pouco, de cavalo em cavalo, fui melho-rando a nossa vida financeira. E então, seguindo os velhos instintos, migrei para o comércio e abri uma venda de secos e molhados lá em Erebango.

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Chamava-se Ao Mais Barato. A Rita me ajudava muito, trabalhando atrás do balcão, atendendo os clientes, enquanto as crianças brincavam no pátio ou estudavam na escola.

E, quando um dos guris crescia, vinha ajudar também. Mas isso já foi no tempo de Passo Fundo, porque chegou uma hora em que a Rita e eu decidi-mos ir para um lugar maior, onde nossos filhos pudessem seguir seus estudos.

Em Passo Fundo, eu abri o Armazém Econômico. E, de sol a sol, a gen-te foi progredindo miudinho, o estabelecimento crescia, os filhos cresciam e ajudavam um pouco mais. Começamos a ter algum conforto, colocamos os guris num colégio melhor e até aula de violino pudemos pagar para eles.

E logo o Maurício passou a se sobressair. Ele era danado. Era vivo, esper-to. Teimoso feito uma mula também – eu domei muito bicho turrão nesta vida, mas o Maurício eu nunca consegui domar. Ele nasceu com a ebulição da América no sangue, queria fazer e fazer e fazer sempre. Era filho do Novo Mundo, ansiava por transformar tudo. Era um vendaval.

Rita e eu tivemos cinco filhos homens, trabalhadores e inteligentes. O Maurício foi o terceiro deles. Apertado no meio dos outros quatro irmãos, desde cedo soube se fazer ver. Fazia tudo do jeito dele, levava o colégio no mais ou menos, gostava mesmo era de jogar futebol, cantar e namorar, de lidar com as pessoas. Nem sei como seguiu no colégio, que era rígido, duro mesmo. Fazia uns concursos de calouros lá e os amigos estavam sempre no portão da nossa casa, chamando por ele. Trabalhar no armazém era um su-plício para aquele guri, ele queria a rua.

E foi assim que, com 14 anos, ele arranjou um emprego de locutor do Ser-viço de Alto-Falantes Sonora Guarany, que ficava a uma quadra do nosso armazém, lá em Passo Fundo. Ele fazia reclames na praça, dizia anúncios, ofertava coisas, arranjava até namoros pelo tal do alto-falante. E começou a ganhar o seu dinheiro, aquele guri danado.

Em um ano, economizou tanto que comprou seu primeiro carro, e olha que ele nem tinha idade para dirigir! Rodava por aí escondido, todo gabão naquele Ford modelo 29. E não quis mais saber de trabalhar no armazém.

No fundo, Maurício era mesmo um filho de imigrante: abridor de cami-nhos, desbravador. Mas ele tinha uma coisa com o novo, com o moderno. E como falava bem! Conquistava qualquer um, amolecia o coração da Rita com três, quatro palavras e aquele sorriso que ele tinha.

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Ah, Maurício... Eu mudei a minha vida quando entrei naquele barco no rumo do Brasil.

E aqui, em terras brasileiras, o Maurício mudou a vida de todos nós. Não só a vida da nossa família, mas a de muitas outras, de muita gente. Se eu pu-desse imaginar! Porque, no fundo, eu tinha medo das coisas que iam na ca-beça daquele guri, dos sonhos dele! Eu queria que ele estudasse, mas ele só pensava em trabalhar. Seguiu nos reclames, mas também passou a ser ven-dedor de balas de figurinha. Ele não deixava ninguém quieto, não deixava mesmo. Sempre fazendo graça, sempre cantando uma música, logo se meteu com o dono da Sonora Guarany, e convenceu o homem de que ele tinha que ter uma programação mais organizada. Em dois tempos, lançou seu pro-grama de calouros na Sonora: com microfone na janela e a multidão se api-nhando na Praça Marechal Floriano em Passo Fundo, era bonito de se ver!

Ele tinha o dom... O dom da comunicação. O Maurício não tinha nasci-do para lavrar a terra, para domar cavalos, nem para trabalhar no meu ar-mazém. Tinha nascido para as pessoas. E foi para elas, pensando nelas, em comunicar, divertir e informar, que ele construiu um império. Minha alma nem tinha secado direito da longa travessia da Europa até aqui, dias e se-manas sem fim naquele navio cortando o Atlântico, eu ainda sonhava com o shtetl e guardava moedas para uma emergência – essas manias de velho –, e o Maurício já estava privando com artistas e governadores e presidentes. Ele tinha nascido com uma estrela. Tinha mesmo.

E quem tem estrela não para quieto. Aos 17 anos, o Maurício deixou a Sonora Guarany, me desobedeceu e resolveu tentar a sorte em Porto Alegre. Fugiu de casa uma noite, aquele guri terrível!

Ah, eu já disse pra vocês: o Maurício eu nunca domei.

As raízes de uma família.

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A CHAVE DO COFRE

Maurício tinha um cofre onde guardava todos os seus documentos pes-soais. Quando ele morreu, por conta de um aneurisma da aorta, em março de 1986, Nelson começou a usar esse cofre para guardar os próprios docu-mentos e passou a carregar a chave consigo, como uma espécie de amule-to, de vínculo que o ligava à memória do pai.

Essa chave está sempre na mochila de Nelson, junto com seu chaveiro pessoal, viajando com ele ao redor do mundo. Um dia, em meio às con-versas sobre este livro, ele abre a mochila, remexe num bolso e me mostra a chave, dizendo:

– Meu pai sempre me protegeu. E então Nelson conta que o cofre, com todos os seus documentos, ain-

da está lá na sua sala da RBS, na avenida Erico Verissimo, embora ele não use aquele espaço há praticamente dois anos, desde que se afastou das suas funções executivas na empresa. O prédio estava sendo finalizado no co-meço daquele ano de 1986, quando Maurício morreu subitamente, e uma parte da sala que seria ocupada pelo pai acabou sendo usada por Nelson durante as décadas seguintes. Pedro, irmão de Nelson, usaria a outra parte do espaço pouco tempo depois.

Como estamos costurando este livro em longas conversas pontuadas de histórias e rememorações, combinamos de ir até lá.

– O cofre não é aberto há anos – diz ele. Dentro do cofre, entre antigos documentos e papeladas sem fim, há um

envelope especial, que guarda fotografias muito difíceis. São imagens de

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Maurício já sem vida, registradas por um dos fotógrafos de Zero Hora que estava no Instituto de Cardiologia e, depois, também se faria presente no velório realizado no Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, cumprindo o seu doloroso papel profissional.

Essas fotografias foram entregues ao Nelson na semana seguinte ao en-terro. Ele estava na sua sala, tomando pé da situação da empresa após o súbito falecimento do seu fundador, quando Graça, secretária do Nelson por mais de 30 anos, entrou com um envelope na mão, abatidíssima. O fo-tógrafo, que não sabia o que fazer com aqueles registros, achou por bem entregá-los ao filho mais velho do falecido.

Nelson passou os olhos pelo triste conteúdo do envelope. Depois, guar-dou-o num nicho do cofre que herdara do pai, fechou-o a chave (e talvez tenha sido ali que começou sua afeição por aquela chave elegante, compri-da e prateada) e, naquele envelope, nas entranhas do velho e pesado cofre, as fotos de Maurício ficariam guardadas por décadas.

Guardadas, mas não esquecidas.Quando começamos nossas conversas para este livro, Nelson me disse:– Precisamos abrir o cofre e tirar de lá as fotos do pai.Eram conversas, mas também era o apanhado de uma vida, de várias

vidas, da história de uma empresa e das pessoas que a fizeram. E Nelson dizia que muitas coisas esperavam para ser finalmente resolvidas. Como aquelas fotos, que ele guardou sem nunca mostrar a Suzana, Sônia ou Pe-dro, seus irmãos.

Assim, marcamos um dia para abrir o cofre. Dia 15 de setembro de 2017, uma sexta-feira. Com a sua costumeira agilidade, Nelson organizou tudo com alguns telefonemas – ele tinha a combinação do cofre entre seus pertences pessoais, bastava localizá-la.

Anotamos na agenda, afinamos horários. A data marcada seria um dia cheio para Nelson e Nara, sua esposa. Antes do nosso encontro na RBS, eles participariam da cerimônia de brit milá do seu mais novo neto, o pe-queno Rafael – segundo filho de Marina, primogênita dos Sirotsky, e de seu esposo, Patrick.

Rafael tinha nascido no dia 7 de setembro e, segundo a tradição judai-ca, o brit milá, cerimônia de circuncisão, deve acontecer sempre no oitavo dia de vida da criança.

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• • •

No dia 14 de setembro, Nelson estava no Rio de Janeiro, almoçando com Roberto Irineu Marinho na sede da Globo e falando sobre negócios. To-mou um voo para Porto Alegre à noite. E no dia seguinte, uma sexta-feira, acordou junto com a Nara para a cerimônia de brit milá do Rafael.

Chovia muito na cidade, um daqueles dias em que o trânsito não flui, as nuvens escuras pesando no céu como se fossem se abrir em dilúvio. Eu rumei lentamente pela avenida Ipiranga até a sede da RBS, na Erico Ve-rissimo, e, às 13h30, conforme o combinado, estava lá. Nelson e Nara não se atrasaram: chegaram, bonitos e felizes, vindos diretamente da casa da filha, onde Rafael acabava de entrar para o povo judeu, e decerto dormia bem quietinho no berço, sem entender o significado de nada do que ha-via acontecido.

Confesso que eu estava nervosa, as histórias de família sempre mexe-ram comigo, e abrir um cofre com tamanho segredo me deixava tensa. Nelson entrou falando alto e rindo, como sempre faz, é um homem cheio de energia, e creio que seu avô José diria dele que é indomável como o pai.

Sentamos um pouco na grande sala que ele ocupou por mais de 30 anos e ficamos conversando. Nelson está emocionado, acabou de privar com os filhos e netos – além de Rafael, Marina é mãe de Felipe, um garotinho es-pertíssimo de 2 anos de idade; e Roberto, filho mais moço de Nelson e Nara, junto com a esposa, Catarina, tem um belo menino de 1 ano e meio chama-do José Roberto, que Nelson costuma chamar de Zé. Com a chegada do pequeno Rafael, Nelson e Nara contabilizam três netos homens.

Foi pensando também na família em crescimento que Nelson decidiu deixar o comando da RBS. Quando Maurício morreu, aos 60 anos, a vida de todos os seus familiares sofreu um baque terrível. Esse marco dos 60 anos gravou-se na alma de Nelson como um divisor de águas.

Em 1991, quando assumiu a presidência da RBS, aos 38 anos, Nelson implementou uma série de ações e projetos. Um deles foi a criação de um fundo de previdência privada para os funcionários da empresa. Ele tinha pressa em rejuvenescer os quadros da RBS, pois todos aqueles que ali esta-vam tinham trabalhado com seu pai e com seu tio Jayme Sirotsky (que se associara a Maurício em 1962 e fora presidente durante cinco anos após

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a morte do irmão mais velho). Nelson sentia a necessidade de ter os pró-prios colaboradores, de formar a própria equipe, e todos ali pareciam ser mais velhos do que ele – Nelson começou a trabalhar muito cedo, aos 17 anos, nos estratos mais baixos da RBS.

A inspiração de fundo foi facilitar a aposentadoria dos funcionários antigos para que eles pudessem se desligar da RBS sem traumas, abrindo espaço para os mais jovens. E assim surgiu a RBSPrev. À época, Afonso Motta, responsável pela área jurídica e de RH, procurou-o para fixar uma data de aposentadoria – a ideia era que as pessoas pudessem sair, se não com a remuneração que recebiam, com algo muito próximo desse valor. A conversa com Afonso fez Nelson lembrar-se da morte do pai – as fotogra-fias lá no cofre dentro do envelope – e ele achou que 60 anos era a idade correta para provocar esse processo de renovação, de oxigenação dos qua-dros da empresa. Nelson tinha então 38 anos, parecia faltar um mundo in-teiro até que ele chegasse aos 60...

O tempo passou voando. Nelson afastou-se da RBS em 2015. Este recomeçar que agora aconte-

ce em sua vida está profundamente relacionado com aquela conversa que teve com Afonso Motta, e com os 60 anos fatídicos do seu pai.

Em 2012, ele passou a presidência executiva da RBS para o sobrinho Eduardo Sirotsky Melzer, o Duda, filho da sua irmã Suzana e de Carlos Melzer, que desde 1971 também atua junto à RBS. Nelson e Carlos sempre foram amigos e profissionais que se respeitaram mutuamente.

Depois de deixar o comando, Nelson resolveu partir para um projeto efetivo de mudança de vida, que, como tudo na sua história, acontece a pleno vapor.

Ele termina este preâmbulo e sorri. Tira do bolso uma chave, a chave do cofre. Eu sou romancista e penso que essa chave é uma chave literária, lon-ga e bonita, com seu acabamento em aros que se entrecruzam. Do bolso do seu blazer, sai também um papel velho, meio amassado, que contém o segredo do cofre.

É um panfleto de recomendações, original e amarelado. “O equipa-mento é garantido pela BERTA S.A., SISTEMAS DE SEGURANÇA”, diz

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o papel. E depois é listada uma série de itens e subitens explicando o fun-cionamento do cofre e as regras para a sua garantia. No alto do papel, no canto esquerdo, está anotada à caneta a combinação:

AH, 90 4ª vezH, 20 3ª vezH, 40 2ª vezH...

Não consigo decifrar a última volta, mas Nelson a sabe de cor. Tantas vezes na vida abriu e fechou aquele cofre!

Seguimos para a sala ao lado. O cofre fica numa espécie de saleta entre a sala de reuniões e o banheiro. Nelson avança, Nara, Graça e eu estamos atrás, meras espectadoras deste encontro entre memória e momento presente.

Nelson se aproxima do cofre e se ajoelha para abri-lo. O cofre está ins-talado num armário de madeira escura, cheio de nichos. O pó nas prate-leiras ao seu redor mostra que ninguém mexeu ali nos últimos tempos.

Há um silêncio no ar só cortado pela chuva lá fora, que cai em panca-das grossas, ribombando nos prédios, nos carros, no asfalto. Nelson expe-rimenta a combinação, clec, clec, clec pra cá, clec, clec pra lá. Estamos todos em suspensão. Eu me lembro de um outro cofre na minha infância, o cofre do meu avô polonês. Cofres são receptáculos de segredos.

Clec, clec, clec.Nelson acabou de dar a última volta.E o cofre não abre. Nara ri, divertida. Gosto profundamente da Nara,

essa mulher serena, atenta, delicada. Conferimos o papel, será que está tudo certo? Mas está, e Nelson tenta mais uma, duas, três vezes. A chuva não está nem aí para o nosso cofre cerrado e segue cantando lá fora.

Por fim, depois de quase uma hora, desistimos.O segredo deve ter sido trocado. Nelson e Graça conversam a respei-

to, e Graça acha que sim, que em algum momento o segredo foi mudado, ela vai buscar nos seus papéis, vasculhará as coisas que tem guardadas em seus arquivos.

O cofre não abriu, está lá no meio da poeira, de boca bem fechada, mas-tigando seus segredos. Saímos todos rindo da sala, tomamos o elevador e,

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num dos corredores da RBS, cruzamos com o busto de Maurício Sirotsky Sobrinho em bronze.

Paro um instante para olhá-lo. Sob uma plaquinha, as datas de nasci-mento e morte e a inscrição: Fundador da Rede Brasil Sul. Ele parece olhar para mim, um olhar inteligente e divertido, de quem também está achan-do graça da situação. O cofre não abriu decerto porque ele não queria.

Na rua, chove forte. Há um clima bem-humorado no ar, a teimosia do cofre nos pegou de surpresa, mas somos teimosos também e remarcamos a aber-tura para o dia 2 de outubro, pois Nelson tem algumas viagens pela frente.

Antes que a gente se disperse, Nelson diz:– Peraí, peraí.E, sem aviso, corre para o carro, pega alguma coisa. Quando vejo, ele está

com uma pá de jardinagem na mão, uma dessas pás pequenas e bonitinhas.Com seu jeito de menino – porque ele ainda parece um menino desses

que fazem estripulias por aí –, agacha-se perto do canteiro da frente do prédio da RBS e abre um sulco na terra, entre as plantas.

Ele tira um minúsculo embrulho do bolso do casaco e o enterra ali. Na cerimônia de brit milá, o mais velho e mais sábio homem presente, geral-mente o avô ou o pai da criança, é encarregado de enterrar o pequeno pre-púcio retirado pelo mohel (médico ou rabino que faz a circuncisão).

Nelson enterrou o prepúcio de Rafael no jardim em frente à RBS, e o fez como se fosse mesmo uma grande brincadeira; mas, de fato, tal gesto tem para ele um significado muito profundo: é a certeza de que seus descenden-tes darão continuidade às tradições judaicas que ele aprendeu com os pais.

Como recebeu a incumbência de devolver à terra o prepúcio do neto – “do pó ao pó”, disse o rabino –, Nelson foi considerado o mais sábio ho-mem judeu presente no brit milá de Rafael. Despedimo-nos sob a chuva forte que insiste em cair em Porto Alegre.

E o cofre, lá em cima, segue lacrado.

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