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Tzvetan Todorov - A Literatura Em Perigo (OCR)

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TZVETAN

A Literaturaem Perigo

EDIÇÃO

Caio Meira

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Copyright © TzvetanCopyright © Flammarion, 2007

Título original: La en

Capa: Bottino

Editoração: D F L

2 0 0 9Impresso no BrasilPrinted in Brazil

Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros - RJ

Todorov, Tzvetan,T572L A literatura em perigo/Tzvelan Todorov; tradução Caio -

ed. 2a ed. - Rio de Janeiro: 2009.96p.

Tradução de: La littérature en périlISBN 978-85-7432-089-2

Literatura - Filosofia. 2. Literatura - História e I. Título.

08-4976

Todos os direitos reservados pela:D I F E L - selo editorial daE D I T O R A B E R T R A N D B R A S I L LTDA.Rua Argentina, — andar - São Cristóvão

-380 - Rio de Janeiro - RJTel.: 2585-2070 - Fax: 2585-2087

Não é permitida a reprodução total ou parcial desta obra, porquaisquer meios, sem a prévia autorização por escrito da Editora.

Atendemos pelo Reembolso Postal.

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SUMÁRIO

Apresentação à Edição Brasileira

Prólogo 15

A literatura reduzida ao absurdo 25

Além da escola 35

Nascimento da estética moderna 45

A estética das Luzes 53

Do Romantismo às vanguardas 61

que pode a literatura? 73

Uma comunicação inesgotável 83

Notas 95

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APRESENTAÇÃO

À EDIÇÃO BRASILEIRA

Por Caio

nosso meio acadêmico e literário, o nome de TzvetanTodorov é de imediato associado ao que tantafortuna fez no século X X . Como se sabe, o fenômeno for-malista disparado pela lingüística de Ferdinand de Saussurecontaminou não somente a teoria da literatura, mas tambéma imensa maioria das produções teóricas em ciênciashumanas, tendo como apogeu o estruturalismo em suasdiversas formas de aparecimento. Todorov esteve não ape-nas entre os seus principais divulgadores, inserindo-semesmo como um dos emblemáticos praticantes da abor-dagem estruturalista em literatura. Ainda que sua produçãoteórica dos últimos 25 anos se concentre primordialmenteno que ele próprio chama de história da cultura e das idéias(o que, aliás, lhe valeu o Prêmio Príncipe de Astúrias em

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2008) , seus primeiros livros são tão característicos da apli-cação direta do no campo da literatura, quenão é sem considerável surpresa que muitos receberão A Lite-ratura em Perigo. Pois um dos eixos principais de sua argu-mentação crítica tem como alvo privilegiado justamente a imanência estruturalista que, quando se pretende radical e exclusiva, afasta a obra literária de toda relação possível queela possa ter o mundo, o real, a vida. A am-bição de alcançar a maior imanência possível da obra, de cap-tar a verdade intrínseca do texto como um mundo à parte domundo, está certamente entre os fatores que contribuírampara construir a torre de marfim em que se encerraram muitosdos que direta ou indiretamente lidam a obra literária.

Não é difícil perceber que a literatura está sob ameaça. E o pior: não se trata de um velho perigo, aquele decorrenteda disputa agônica oponentes de peso como a filosofiasocrática, que acusava de subversiva a arte poética — temidaprincipalmente por sua potência encantatória. Nesse senti-do, é possível pensar a argumentação socrático-platônicacomo de fato elogiosa à poesia, pois reconheceu nela o poder de intervir na formação do espírito e, por con-seguinte, da realidade como um todo. Para Todorov, o peri-go que hoje ronda a literatura é o oposto: o de não ter poderalgum, o de não mais participar da formação cultural doindivíduo, do cidadão. Tomemos como exemplo os alunosdos cursos de Letras das universidades brasileiras: boa parte,

idades que variam em torno dos 20 anos, pouco ou

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quase nada leu de nossos romancistas ou poetas. Quasenenhum deles ouviu falar de Baudelaire, Edgar AllanGoethe, Fernando Pessoa, e raríssimos os leram. Essesalunos chegam à Faculdade de Letras em busca da especiali-zação numa língua estrangeira ou de se tornarem professoresde Português. Por outro lado, não lhes falta capacidade in-telectual ou espírito crítico. fato é que, até esse momento,

raras exceções, a literatura — pelo menos de maneiradireta, isto é, mediante a leitura de romances, contos, poe-mas — não participou de sua formação intelectual e afe-tiva, deixada, no que diz respeito à arte, bem mais a cargo docinema e da música popular brasileira ou estrangeira (o quenão quer dizer que não haja literatura na música ou no ci-

contato maior que qualquer aluno do ensinomédio o texto literário de fato se dá seja nasabonações e exemplos que auxiliam na compreensão dasregras e formações da língua portuguesa, seja nas própriasaulas de literatura, que se resumem principalmente ao ensinoda história e dos gêneros literários.

Assim, passamos do poeta-educador encarnado porHomero ao diletante autor da inútil poesia — expressão que deveria significar, num primeiro momento, a busca de um vigor para o fenômeno poético, irre-dutível às forças mercantilistas que se apoderam das ativi-dades humanas (está aí talvez o caso de um tiro que pode tersaído pela culatra). E o que se perdeu nesse caminho de 25séculos ou mais foi o poder de referência ao real, foi a

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capacidade do texto literário de falar do e para o mundo realcontemporâneo. perigo mencionado por Todorov nãoestá, portanto, na escassez de bons poetas ou ficcionistas, noesgotamento da produção ou da criação poética, mas naforma como a literatura tem sido oferecida aos jovens, desdea escola primária até a faculdade: o perigo está no fato deque, por uma estranha inversão, o estudante não entra emcontato a literatura mediante a leitura dos textosliterários propriamente ditos, mas alguma forma decrítica, de teoria ou de história literária. Isto é, seu acesso à literatura é mediado pela forma "disciplinar" e institucional.Para esse jovem, literatura passa a ser então muito mais umamatéria escolar a ser aprendida em sua periodização do queum agente de conhecimento sobre o mundo, os homens, aspaixões, enfim, sobre sua vida íntima e pública. As razõesque colaboram para esse estado de coisas, tanto na Françaquanto aqui, são certamente muitas e bastante complexas, e têm a ver as transformações sofridas tanto pela criaçãopoética em si quanto pelo processo de tornar a literaturauma disciplina científica (e ciência é o que pode ser ensinadona forma de uma disciplina, diria Barthes) passível de setornar um curso universitário.

que está em questão neste livro não é invalidar a con-tribuição estruturalista, renegar a imanência em prol de umretorno ao realismo puro — e isso vale ainda mais paraalguém que, como o próprio Todorov, se formou comoleitor e amante do texto literário sob a pesada mão do

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regime totalitário búlgaro (aliás, interessante notar quanto o formalismo nasceu e ganhou força justamente num àsvoltas com processos fortemente totalitários, como a Rússia

onde talvez fosse de se esperar que, para fugir dotemido "realismo socialista", muitos se voltassem para a busca da imanência do texto). Sua proposta é a de restabele-cer o equilíbrio entre as contribuições do

e as conexões do texto literário o mundo reale a vida contemporânea, e que isso tenha reflexo na for-mação de professores e alunos de literatura. Ou seja, o queTodorov reivindica é que o texto literário volte a ocupar o centro e não a periferia do processo educacional (e, por con-seguinte, da nossa formação como cidadãos), em especialnos cursos de literatura.

Se transportarmos sua proposta para o caso brasileiro,que Machado de Assis não seja apresentado em primeirolugar como escritor de transição entre o Romantismo e o Realismo, ou como o iniciador do Realismo no Brasil, masque Póstumas de Brás Cubas ou Domsejam lidos e discutidos antes de serem classificados ouperiodizados. Não que não seja importante ler Memórias Póstumas à luz do Realismo brasileiro (e sobretudo paraalém dele), mas que esse seja um estágio posterior e destinadoaos que desejam se aprofundar na "ciência da literatura".

Usando a bela imagem de Henry James de que a obra li-terária é um organismo vivo, para que a teoria e a crítica lite-rárias formadoras dos professores de literatura não matem

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seu paciente prematuramente no espírito dos futuros lei-tores, ou seja, para que o próprio leitor não morra comoleitor, a arte poética e ficcional deve ser apresentada emprimeiro lugar em seu estranho poder imprevisto, encanta-dor, emocionante, de forma a criar raízes profundas o sufi-ciente para que nenhum corte analítico ou metodológicovenha a podar sua presença criadora, para que nenhuma desuas partes essenciais seja amputada antes que ela aprenda a se mover e nos acompanhe pelos sentidos que damos à vidaà medida que vivemos. Se o texto literário não puder nosmostrar outros mundos e outras vidas, se a ficção ou a poe-sia não tiverem mais o poder de enriquecer a vida e o pensa-mento, então teremos de concordar Todorov e dizerque, de fato, a literatura está em perigo.

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PRÓLOGO

p or mais longe que remontem minhas lembranças, sem-

pre me vejo cercado de livros. Como meus pais eram ambosbibliotecários, havia sempre muitos livros em minha casa.Meu pai e minha mãe viviam às voltas o planejamentode novas estantes para absorver todos os novos volumes;enquanto isso, os livros se acumulavam nos quartos e corre-dores, formando pilhas frágeis em meio às quais eu devia meesgueirar. Logo aprendi a ler e comecei a devorar os textosclássicos adaptados para jovens, As Mil e Uma Noites, oscontos dos irmãos Grimm e de Andersen, Tom Sawyer,Oliver Twist e Os Miseráveis. Um dia, aos oito anos, li umromance inteiro; devo ter ficado muito orgulhoso com o fato, pois escrevi em meu diário: "Hoje, li Sobre osdo Meu Avô, livro de 223 páginas, em uma hora e meia!"

Durante o primário e o ginásio, continuei a venerar a lei-tura. Entrar no universo dos escritores, clássicos ou contem-

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porâneos, búlgaros ou estrangeiros, cujos textos passei a lerem versão integral, causava-me sempre um frêmito de pra-zer: eu podia satisfazer minha curiosidade, viver aventuras,experimentar temores e alegrias, sem me submeter às frus-trações que espreitavam minhas relações os garotos e garotas da minha idade e do meu meio social. Não sabia o que queria fazer da minha vida, mas estava certo de que teriaa ver a literatura. Escrever, eu mesmo? Tentei escrever,compus poemas em versos pueris, uma peça em três atosconsagrada à vida de anões e gigantes, e até mesmo iniciei a escrita de um romance — mas não passei da primeira pági-na. Logo senti que não era esse o meu caminho. Apesar deinseguro acerca das conseqüências, foi ainda assim sem hesi-tação que, ao final do ensino médio, escolhi minha carreirauniversitária: estudaria Letras. Entrei para a Universidade de

em falar de livros seria a minha profissão.

A Bulgária fazia então parte do bloco comunista, e osestudos de ciências humanas estavam sob o domínio da ideo-logia oficial. Nos cursos de literatura, metade era erudição,e a outra metade se compunha de propaganda ideológica:as obras estudadas eram medidas pela escala da conformida-de ao dogma marxista-leninista. Era preciso mostrar de queforma esses escritos ilustravam a boa ideologia — ou, então,como eles falhavam em fazê-lo. Ainda que não partilhasse dafé comunista — sem, porém, me sentir imbuído de um espí-rito de revolta refugiava-me no comportamento adotado

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por muitos de meus compatriotas: em público, concordava os slogans oficiais, silenciosamente ou desprezo;

do lado privado, uma vida de encontros e de leituras, dire-cionadas principalmente aos autores que pressentíamos nãoserem porta-vozes da doutrina comunista: seja por teremtido a sorte de viver antes do advento doleninismo, seja por habitarem países em que eram livres paraescrever os livros que quisessem.

Para ter êxito nos estudos superiores, porém, era precisoredigir, ao final do quinto ano, uma monografia de fim decurso. Como falar de literatura sem ter de me curvar às exi-gências da ideologia dominante? Tomei um dos raros cami-nhos em que era possível escapar da militância geral. Essa viaconsistia em tratar de objetos sem cerne ideológico: ou seja,nas obras literárias, abordar a própria materialidade dotexto, suas formas lingüísticas. Eu não era o único a tentaresta solução: desde a segunda década do século X X , osformalistas russos já haviam desbravado o caminho, segui-dos posteriormente por outros. Na universidade, nosso pro-fessor mais importante era, logicamente, um especialista emversificação. Escolhi, então, escrever minha monografiacomparando duas versões de uma longa novela de um autorbúlgaro, escrita no início do século X X , à aná-lise gramatical das modificações feitas por ele entre as duasversões: os verbos transitivos substituíam os intransitivos, o perfectivo se tornava mais freqüente que o imperfectivo...

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Assim, minhas observações escapavam a toda censura!Procedendo dessa maneira, não me expunha a violar ostabus ideológicos do partido.

Nunca saberei como teria continuado esse jogo de gato e rato — não necessariamente a meu favor. Surgiu a oportuni-dade de partir um ano "para a Europa", como dizíamos naépoca, isto é, passar ao outro lado da "cortina de ferro" (umaimagem que nunca julgávamos excessiva, visto que atravessaressa fronteira era quase impossível). Escolhi Paris, cuja repu-tação — cidade das artes e das — me fascinava. Eis umlugar onde meu amor pela literatura não conheceria limites,onde eu poderia reunir, em plena liberdade, convicções ín-timas e ocupações públicas, eliminando assim a esquizofreniaimposta pelo regime totalitário búlgaro.

As coisas se revelaram um pouco mais difíceis do que euhavia imaginado. Ao longo de meus estudos universitários,eu me habituara a identificar elementos das obras literáriasque escapassem à ideologia: estilo, composição, formas nar-rativas, enfim, a técnica literária. Convencido, num primei-ro momento, de que permaneceria na França por apenas umano, já que era essa a validade do passaporte que me foraconcedido, eu queria aproveitar para aprender tudo quepudesse sobre esses temas: negligenciados e marginalizadosna Bulgária, onde tinham o defeito de servirem mal à causacomunista, eles deviam ser estudados de todas as formasnum onde reinava a liberdade! Ora, tive dificuldades

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para encontrar esse tipo de ensino nas faculdades parisien-ses. Como os cursos de literatura eram ali divididos pornações e por séculos, eu não sabia como encontrar os profes-sores que se dedicavam às questões que me interessavam. É preciso dizer também que o labirinto de instituições escola-res e de seus programas não facilitava o acesso ao estudanteestrangeiro que eu era.

Eu havia sido recomendado pelo decano da faculdade deLetras de a seu homólogo em Paris. Num dia do mês demaio de 1963 , bati à porta de um escritório da Sorbonne(até então, a única universidade parisiense), justamente o dodecano da faculdade de Letras, o historiador AndréApós ter lido a carta de recomendação, ele me perguntousobre que tema eu gostaria de fazer minha pesquisa.Respondi que desejava dar continuidade aos estudos sobreestilo, linguagem e teoria literários — em geral. "Mas não é possível estudar essas matérias em geral! Em que literaturavocê deseja se especializar?" Sentindo o chão fugir sob meuspés, gaguejei um pouco confuso que a literatura francesaseria o meu objeto de estudo. Percebi também que meufrancês, não muito sólido na época, me causava embaraços.

decano me olhou condescendente e sugeriu que eu estu-dasse, em vez disso, a literatura búlgara um de seusespecialistas, que não deviam faltar na França.

Apesar de me sentir um pouco desanimado, prossegui minha pesquisa, interrogando algumas pessoas que eu

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conhecia. E foi assim que, um dia, um professor de psicolo-gia, amigo de um amigo, me disse depois de ter me escutadoexpor minhas dificuldades: "Conheço alguém que se inte-ressa por essas questões um pouco ele é assistentena Sorbonne e se chama Genette." Nós nos encon-tramos num corredor escuro entre as salas de aula locali-zadas na rua Serpente; uma grande simpatia logo nasceuentre nós. Ele me contou, entre outras coisas, que um pro-fessor dava seus seminários na Hautes e que não seria difícil freqüentá-los; o nome desse professor(eu nunca o havia escutado) era Roland Barthes.

início de minha vida profissional na França está ligado a esses encontros. Logo decidi que apenas um ano de estudos nãome bastaria e que eu devia permanecer ali por mais tempo.Inscrevi-me para fazer meu doutorado com Barthes, cujo traba-lho final apresentei em 1966. Pouco depois, entrei para o CNRS, onde se desenvolveu toda a minha carreira. Nesse ínte-rim, por de Genette, verti para o francês os textos dosformalistas russos, mal conhecidos na França, dando ao volu-me, lançado em 1965, o título de Teoria da Maistarde, sempre Genette, dirigimos durante dez anos a revis-ta Poétique, que deu origem a uma coleção de ensaios de mesmonome, e tentamos modificar a orientação do ensino literário na

T. Todorov Teoria da Literatura, Formalistas Russos. RioGrande do Sul: Editora Globo, 1 9 7 1 , tradução coletiva. (N.T.)

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universidade, a fim de libertá-la dos grilhões das nações e dosséculos, e promover sua abertura a tudo que pode aproximar asobras umas das outras.

Os anos que se seguiram foram, para mim, de integraçãoprogressiva à sociedade francesa. Casei-me, tive filhos e logome tornei um cidadão francês. Comecei a votar e a ler osnais, interessando-me pela vida pública um pouco mais doque quando estava na Bulgária, pois descobria então queessa vida não era necessariamente submissa aos dogmasideológicos, como nos países totalitários. Sem cair numaadmiração beata, alegrava-me constatar que a França erauma democracia pluralista, respeitadora das liberdades indi-viduais. Essa constatação influenciava, por sua vez, minhasescolhas de abordagem da literatura: o pensamento e osvalores contidos em cada obra não se viam mais aprisiona-dos numa coleira ideológica preestabelecida; não havia maisrazão para pô-los de lado e ignorá-los. As causas de meuinteresse exclusivo pela matéria verbal dos textos haviamdesaparecido. De meados dos anos 70 em diante, perdi o interesse pelos métodos de análise literária e passei a mededicar à análise em si, isto é, aos encontros os autores.

A partir daí, meu amor pela literatura não se via maislimitado à educação recebida em meu totalitário. Deimediato, tive que procurar dominar novas ferramentas detrabalho; senti necessidade de me familiarizar elemen-tos e conceitos da psicologia, da antropologia e da história.Uma vez que as idéias dos autores recuperavam todas as suas

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forças, quis, para melhor compreendê-las, mergulhar na his-tória do pensamento que concerne ao homem e suas socie-dades, na filosofia moral e política.

Sendo assim, o próprio objeto desse trabalho de conhe-cimento se ampliou. A literatura não nasce no vazio, mas nocentro de um conjunto de discursos vivos, compartilhando

eles numerosas não é por acaso que, aolongo da história, suas fronteiras foram inconstantes. Senti-me atraído por essas formas diversas de expressão, não emdetrimento da literatura, mas ao lado dela. Em A Conquista da para saber como culturas muito diferentes seencontram, li as narrativas dos viajantes e dos conquistado-res espanhóis do século XVI, assim como os relatos dos seuscontemporâneos astecas e Para refletir acerca danossa vida moral, mergulhei nos textos dos antigos deporta-dos dos campos russos e alemães; isso me levou a escreverEm Face do A correspondência de alguns escri-tores me permitiu, em Aventuriers de (Os Aven-tureiros do questionar o projeto existencial

* T. Todorov, A Conquista da América. A Questão do Outro. São Paulo:Martins Fontes, tradução de Beatriz Perrone-Moisés. (N.T.)

Idem, Em Face do Extremo. Campinas: Papirus, 1 9 9 5 , ColeçãoTravessia do Século, tradução de Egon de Oliveira Rangel e EnidAbreu Dobránszky. (N.T.)

Les Aventuriers de 1'absolu. Paris, Robert Laffont, 2 0 0 6 ,sem tradução para o português até o momento. (N.T.)

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que consiste em colocar sua vida a serviço do belo. Os textosque lia — relatos pessoais, memórias, obras históricas, teste-munhos, reflexões, cartas e textos folclóricos anônimos — não partilhavam o status de ficção as obras literárias, e isso porque descreviam diretamente os eventos vividos; noentanto, do mesmo modo que a literatura, esses textos mefaziam descobrir dimensões incógnitas do mundo, me toca-vam e me incitavam a pensar. Em outras palavras, o campoda literatura se expandiu para mim, porque passou a incluir,ao lado dos poemas, romances, novelas e obras dramáticas,o vasto domínio da escrita narrativa destinada ao uso públi-co ou pessoal, além do ensaio e da reflexão.

Hoje, se me pergunto por que amo a literatura, a respos-ta que me vem espontaneamente à cabeça é: porque meajuda a viver. Não é mais o caso de pedir a ela, como ocor-ria na adolescência, que me preservasse das feridas que eupoderia sofrer nos encontros pessoas reais; em lugar deexcluir as experiências vividas, ela me faz descobrir mundosque se colocam em continuidade essas experiências e me permite melhor compreendê-las. Não creio ser o único a vê-la assim. Mais densa e mais eloqüente que a vida cotidia-na, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras deconcebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que osoutros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depoisaqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa

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possibilidade de interação com os outros e, por isso, nosenriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensaçõesinsubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais plenode sentido e mais belo. Longe de ser um simples entreteni-mento, uma distração reservada às pessoas educadas, elapermite que cada um responda melhor à sua vocação de serhumano.

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A LITERATURA REDUZIDA AO ABSURDO

c o passar do tempo, percebi alguma surpresa

que o papel eminente por mim atribuído à literatura não erareconhecido por todos. Foi no ensino escolar que essa dispa-ridade inicialmente me tocou. Não lecionei para o ginásio naFrança, e minha experiência na universidade foi exígua;mas, ao me tornar pai, não podia me manter insensível aospedidos de ajuda feitos por meus filhos em véspera de exa-mes ou de entrega de deveres. Ora, mesmo não tendo postotoda a minha ambição no caso, comecei a me sentir umpouco embaraçado ao ver que meus conselhos ou interven-ções proporcionavam notas sobretudo medíocres! Maistarde, adquiri uma visão de conjunto do ensino literário nasescolas francesas ao me tornar membro, entre 1994 e 2004 ,do Conselho Nacional de Programas, uma comissão con-sultiva pluridisciplinar, ligada ao Ministério da Educaçãofrancês. Ali pude compreender: uma idéia totalmente diversa

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funciona na base não apenas da prática de alguns professoresisolados, mas também na teoria dessa disciplina e nas ins-truções oficiais que a delimitam.

Abro o Boletim Oficial do Ministério da Educação (n° 6,de 31 de agosto de 2 0 0 0 ) , que contém o programa dos

em particular o do ensino de Francês. Na primeirapágina, sob o título "As perspectivas de estudo", o programaanuncia: estudo dos textos contribui para formar a re-flexão a história literária e cultural, os gêneros e regis-tros, a elaboração da significação e a singularidade dostextos, a argumentação e os efeitos de cada discurso sobreseus destinatários." A seqüência do texto comenta essasrubricas e explica notadamente que os gêneros "são estu-dados que "os registros (por exemplo, o trágico, o são aprofundados no segundo ano doensino médio, que "a reflexão sobre a produção e a recepçãodos textos constitui um estudo separado no ou que"os elementos da argumentação" serão doravante "aprecia-dos de maneira mais analítica".

conjunto dessas instruções baseia-se, portanto, numaescolha: os estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem.

* corresponde aos três últimos anos do ensino secundário. NaFrança, o ensino de literatura nos níveis primário, secundário e médioé feito dentro da disciplina de Francês. (N.T.)

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Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a con-dição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções críticas,tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acer-ca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.

Em toda matéria escolar, o ensino é confrontado a umaescolha — tão fundamental que na maior parte do temponem é percebida. Poderíamos formulá-la, simplificando umpouco a discussão, da seguinte maneira: ao ensinar uma dis-ciplina, a ênfase deve recair sobre a disciplina em si ou sobreseu objeto? E, portanto, em nosso caso: devemos estudar,em primeiro lugar, os métodos de análise, ilustrados a ajuda de diversas obras? Ou estudarmos obras consideradascomo essenciais, utilizando os mais variados métodos? Qualé o objetivo, e quais são os meios para alcançá-lo? que é obrigatório, o que se mantém

Em todas as outras matérias, operamos essa escolha demaneira bem mais clara. De um lado, o ensino daca, da física, da biologia, ou seja, das disciplinas (das ciên-cias) deve levar em conta, maior ou menor qualidade,sua evolução. Do outro, ensina-se História, e não um méto-do de investigação histórica entre outros. Por exemplo, noprimeiro ano do ensino médio, considera-se importante rea-vivar, no espírito dos alunos, os grandes momentos de rup-tura da história européia: a democracia grega, o nascimentodos monoteísmos, o humanismo do Renascimento e assim

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por diante. Não se escolhe ensinar a história dasdes, ou a história econômica, ou militar, ou diplomática, oureligiosa, nem os métodos e os conceitos de cada uma dessasabordagens, mesmo se nos servimos deles quando temosnecessidade.

Ora, essa mesma escolha se apresenta para a literatura; e a orientação atual desse ensino, tal como ela se reflete nosprogramas, vai toda no sentido do "estudo da disciplina"(como na física), ao passo que poderíamos ter preferido nosorientar para o "estudo do objeto" (como na história). Issofica demonstrado no texto de apresentação geral que acabode citar, assim como em outras numerosas instruções. Aoentrar no ensino médio, devo em primeiro lugar conseguir"dominar o essencial das noções de gênero e registro", assimcomo as "situações de enunciação"; dito de outro modo,devo me iniciar no estudo da semiótica e da pragmática, daretórica e da poética. Sem pretender denegrir essas discipli-nas, podemos nos perguntar: será necessário fazer dessaabordagem a principal matéria estudada na escola? Todosesses objetos de conhecimento são construções abstratas,conceitos forjados pela análise literária, a fim de abordar asobras; nenhuma diz respeito ao que falam as obras em si, seusentido, o mundo que elas evocam.

Em sua na maior parte do tempo, o professor deliteratura não pode se resumir a ensinar, como lhe pedem asinstruções oficiais, os gêneros e os registros, as modalidades

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de significação e os efeitos da argumentação, a metáfora e a metonímia, a focalização interna e externa Ele estudatambém as obras. Mas descobrimos aqui uma segunda infle-xão do ensino literário. Tomo um exemplo: eis como, em2 0 0 5 , ensina-se a matéria Letras no último ano do da

L (literatura), numa grande escola parisiense. Quatrotemas são estudados, certamente vastos, entre os quais"Grandes modelos literários" ou "Linguagem verbal e ima-gens", aos quais correspondem algumas obras, em particularPerceval, de de Troyes, e Processo, de Kafka (rela-cionado ao filme de Orson Welles). Todavia, as questões queos alunos deverão tratar nos exames, tanto durante o anoquanto durante o são, em sua grande maioria, apenasde um tipo. Elas se referem à função de um dolivro em relação à sua estrutura de conjunto, dispensando o sentido desse elemento e também o sentido do livro inteiroem relação ao seu ou ao nosso tempo. Os alunos serão inter-rogados sobre o papel de tal personagem, de tal episódio,de determinado detalhe na busca pelo mas não sobrea própria significação dessa busca. Serão feitas questões

* Ao contrário do atual modelo brasileiro de ensino, na França o estu-dante secundarista já pode começar a escolher progressivamente o grupo de disciplinas mais afins a seu percurso, as podendo optarpor matérias mais tecnológicas, econômicas, humanas (N.T.)

ou bac, na forma abreviada, exame nacional francêsde acesso ao ensino superior, equivalente ao vestibular. (N.T.)

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sobre se Processo pertence ao registro cômico ou ao doabsurdo, em lugar de procurar o lugar de Kafka no pensa-mento europeu.

Compreendo que alguns professores de ginásio se rego-zijem essa evolução: mais do que hesitar diante de umamassa inapreensível de informações relativas a cada obra,eles sabem que devem ensinar as "seis funções de Jakobson"e os "seis actantes de a analepse e a prolepse, e assim por diante. E também será muito mais fácil, numsegundo momento, verificar se os alunos aprenderam defato sua lição. Mas será que houve um ganho verdadeiroproporcionado por essa mudança? Muitos argumentos meinclinam na direção de uma concepção dos estudos literáriosmais próxima do modelo da história do que do da física, daliteratura como capaz de conduzir ao conhecimento de umobjeto exterior, em vez de buscar os arcanos da disciplina.Em primeiro lugar, porque não existe consenso, entre ospesquisadores no campo da literatura, sobre o que deveriaconstituir o núcleo de sua disciplina. Os estruturalistas têmmaioria hoje na escola, como ontem era o caso dos historia-dores e amanhã poderá ser o dos politicólogos; haveria sem-pre alguma arbitrariedade numa determinada escolha. Oscríticos e teóricos literários atuais não entram em acordosobre os principais "registros" — nem mesmo sobre a neces-sidade de introduzir essa noção em seu campo de estudos.Há aqui, portanto, um abuso de poder.

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De resto, confirma-se a assimetria: se em física é ignoran-te aquele que não conhece a lei da gravitação, em literaturaessa ignorância é atribuída a quem não leu As Flores do Mal. Poderíamos apostar que Rousseau, Stendhal e Proust perma-necerão familiares aos leitores muito tempo depois de teremsido esquecidos os nomes dos teóricos atuais ou suas constru-ções conceituais, e há mesmo evidências de falta de humilda-de no fato de ensinarmos nossas próprias teorias acerca deuma obra em vez de abordar a própria obra em si mesma.Nós — especialistas, críticos literários, professores — nãosomos, na maior parte do tempo, mais do que anões sentadosem ombros de gigantes. Além disso, não tenho dúvida de queconcentrar o ensino de Letras nos textos iria ao encontro dosanseios secretos dos próprios professores, que escolheramsua profissão por amor à literatura, porque os sentidos e a beleza das obras os fascinam; e não há nenhuma razão paraque reprimam essa pulsão. Os professores não são os respon-sáveis por essa maneira ascética de falar da literatura.

É verdade que o sentido da obra não se resume ao juízopuramente subjetivo do aluno, mas diz respeito a um traba-lho de conhecimento. Portanto, para trilhar esse caminho,pode ser útil ao aluno aprender os fatos da história literáriaou alguns princípios resultantes da análise estrutural. Entre-tanto, em nenhum caso o estudo desses meios de acessopode substituir o sentido da obra, que é o seu fim. Paraerguer um prédio é necessária a montagem de andaimes, mas

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não se deve substituir o primeiro pelos segundos: uma vezconstruído o prédio, os andaimes são destinados ao desapa-recimento. As inovações trazidas pela abordagem estruturalnas décadas precedentes são bem-vindas com a condição demanter sua função de instrumentos, em lugar de se tornaremseu objetivo próprio. Não devemos acreditar nos espíritosmaniqueístas: não somos obrigados a escolher entre o retor-no à velha escola interiorana — em que todos os alunos ves-tem uniforme cinza — e o modernismo radical; podemosmanter os belos projetos do passado sem ter de vaiar tudoque encontra sua origem no mundo contemporâneo. Osganhos da análise estrutural, ao lado de outros, podem aju-dar a compreender melhor o sentido de uma obra. Em si,eles não são mais inquietantes do que os da filologia, a velhadisciplina que dominara o estudo de Letras durante 150anos: são instrumentos que ninguém hoje pode contestar,mas nem por isso merecem que nos dediquemos a eles emtempo integral.

É preciso ir além. Não apenas estudamos mal o sentidode um texto se nos atemos a uma abordagem interna estrita,enquanto as obras existem sempre dentro e em diálogoum contexto; não apenas os meios não devem se tornar o fim, nem a técnica nos deve fazer esquecer o objetivo doexercício. É preciso também que nos questionemos sobre a finalidade última das obras que julgamos dignas de seremestudadas. Em regra geral, o leitor não profissional, tanto

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hoje quanto ontem, lê essas obras não para melhor dominarum método de ensino, tampouco para retirar informaçõessobre as sociedades a partir das quais foram criadas, maspara nelas encontrar um sentido que lhe permitader melhor o homem e o mundo, para nelas descobrir umabeleza que enriqueça sua existência; ao fazê-lo, ele com-preende melhor a si mesmo. conhecimento da literaturanão é um fim em si, mas uma das vias que conduzemà realização pessoal de cada um. caminho tomado atual-mente pelo ensino literário, que dá as costas a esse horizon-te ("nesta semana estudamos semana que vempassaremos à personificação"), arrisca-se a nos conduzir a um impasse — sem falar que dificilmente poderá ter comoconseqüência o amor pela literatura.

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ALÉM DA ESCOLA

Corno aconteceu de o ensino de literatura na escola

se tornado o que é atualmente? Pode-se, inicialmente, dar a essa questão uma resposta simples: trata-se do reflexo deuma mutação ocorrida no ensino superior. Se os professoresde literatura, em sua grande maioria, adotaram essa novaótica na escola, é porque os estudos literários evoluíramda mesma maneira na universidade: antes de serem profes-sores, eles foram estudantes. Essa mutação ocorreu umageração mais cedo, nos anos 1960 e 1970 , e sob a ban-deira do Por ter participado desse movi-mento, eu deveria sentir-me responsável pelo estado atualda disciplina?

Quando cheguei à França, no início dos anos 1960, osestudos literários universitários eram dominados, torno a lembrar, por tendências bem diferentes das de hoje. Ao ladode uma explicação do texto (essencialmente uma prática

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empírica), pedia-se principalmente aos estudantes que se a um contexto histórico e nacional; os raros

especialistas a fazer exceção a essa regra ensinavam fora doterritório francês ou fora das cadeiras de estudos literários.Antes de se interrogarem longamente sobre o sentido dasobras, os doutorandos preparavam um inventário exaustivoacerca de tudo que as cercava: biografia do autor, protótipospossíveis das personagens, variantes da obra, além das rea-ções provocadas por ela em seu tempo. Eu sentia a necessi-dade de equilibrar essa abordagem outras, as quaisme familiarizei graças a leituras em línguas estrangeiras, a dos formalistas russos, dos teóricos alemães do estilo e dasformas (Spitzer, Auerbach, Kayser) e dos autores do New Criticism americano. Pretendia também que, em vez de pro-ceder de maneira puramente intuitiva, fossem explicitadas asnoções utilizadas na análise literária; para esse fim, trabalhei,junto Genette, na elaboração de uma "poética", ouestudo das propriedades do discurso literário.

A meu ver, tanto hoje quanto naquela época, a aborda-gem interna (estudo das relações dos elementos da obraentre si) devia completar a abordagem externa (estudo docontexto histórico, ideológico, estético). aumento da pre-cisão dos instrumentos de análise permitia estudos mais agu-dos e rigorosos; o objetivo último, porém, permanecia a compreensão do sentido das obras. Em 1969, organizei, emcolaboração com Serge Doubrovsky, um colóquio de dez dias

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cujo tema era ensino da literatura", emAo reler hoje minha conclusão dos debates, acho-a bastantedesarticulada (é a transcrição de uma intervenção oral), masclara nesse ponto. Eu procurava introduzir ali a idéia de umapoética e acrescentava: desvantagem desse tipo de traba-lho é, digamos, sua modéstia, o fato de não ir longe o sufi-ciente, não passando de um estudo preliminar, que consisteprecisamente em constatar e identificar as categorias em jogono texto literário, e não a nos falar do sentido do

Minha intenção (e a das pessoas que me cercavam naépoca) era a de estabelecer um melhor equilíbrio interno e externo, como entre teoria e prática. Entretanto, não foiassim que as coisas se passaram. espírito de Maio de 68,que não tinha propriamente em si nada a ver a orientaçãodos estudos literários, transformou as estruturas universitáriase modificou profundamente as hierarquias então existentes.

ponteiro da balança não se deteve num ponto de equilí-brio, indo muito além na direção oposta: hoje, prevalecemas abordagens internas e as categorias da teoria literária.

Tal mutação nos estudos universitários de literatura nãopode ser explicada somente pela influência do estruturalis-

ou, se preferirmos, é necessário tentar compreender deonde vem a força dessa influência. Aqui, a concepção subja-cente que fazemos da literatura deve ser avaliada. No decor-rer do período anterior, que durou mais de um século, a história literária dominou o ensino universitário; isto é,

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tratava-se essencialmente de um estudo de causas que con-duzem ao surgimento da obra: as forças sociais, políticas,étnicas e psíquicas, das quais o texto literário supostamentedeveria ser a conseqüência; ou, ainda, os efeitos desse texto,sua difusão, seu impacto no público, sua influência sobreoutros autores. A preferência, assim, era concedida à inser-ção da obra literária numa cadeia estudo do senti-do, em contrapartida, era considerado muita suspeita.Esse estudo era criticado por nunca poder se tornar científi-co o bastante, sendo então abandonado a outrosres, desvalorizados, a escritores ou a críticos de jornais. A tradição universitária não concebia a literatura como, emprimeiro lugar, a encarnação de um pensamento e de umasensibilidade, tampouco como interpretação do mundo.

Essa tendência de longa duração pode ser reencontradade maneira exacerbada na fase mais recente dos estudos lite-rários. Decide-se neste momento (para citar apenas umaentre mil formulações) que "a obra impõe o advento de umaordem em estado de ruptura o existente, a afirmação deum reino que obedece a suas leis e lógicas ex-cluindo uma relação o "mundo empírico" ou a "realida-de" (palavras que só passam a ser usadas entre aspas). Ditode outra forma, a partir de agora, a obra literária é represen-tada como um objeto de linguagem fechado, auto-suficiente,absoluto. Em 2006 , na universidade francesa, essas generali-zações abusivas ainda são apresentadas como postulados

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sagrados. Sem qualquer surpresa, os alunos do ensino médioaprendem o dogma segundo o qual a literatura não tem rela-ção o restante do mundo, estudando apenas as relaçõesdos elementos da obra entre si. que, não se duvida, contri-bui para o desinteresse crescente que esses alunos demons-tram pela filière em poucas décadas, o númeropassou de 3 3 % para dos inscritos no bac geral! Por queestudar literatura se ela não é senão a ilustração dos meiosnecessários à sua análise? Ao término de seu percurso, defato, os estudantes de Letras se vêem diante de uma escolhabrutal: ou se tornam, por sua vez, professores de literatura,ou partem para o desemprego.

De forma diferente do ensino no primeiro e segundograus, a universidade não obedece a programas comuns, o que permite encontrar, no ensino universitário, representan-

* Na França, a estrutura do ensino superior difere da brasileira. Aolado das universidades, existem as Grandes Escolas, destinadas, emprincípio, a receber e a formar a elite intelectual do Após o diplo-ma de conclusão do ensino médio, o aluno que escolhe não entrarnuma universidade pode se candidatar a freqüentar por 2 ou 3 anos oscursos preparatórios para as Grandes Escolas. Esses cursos, patrocina-dos pelo Estado, dividem-se em 3 grupos importantes ou o literário (destinado aos estudos de literatura, história, filosofia, políti-ca o científico e o econômico/comercial . Entre as GrandesEscolas, uma das mais prestigiadas é a Normale Supérieure, quetem sede em Paris. (N.T.)

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tes das mais diversas, e mesmo das mais contraditórias, esco-las de pensamento. Permanece o fato de que a tendência quese recusa a ver na literatura um discurso sobre o mundoocupa uma posição dominante no ambiente universitário,exercendo uma influência notável sobre a orientação dosfuturos professores de literatura. A recente corrente da "des-construção" não levou a uma direção diversa. Seus represen-tantes podem, de fato, se interrogar acerca da relação entrea obra, a verdade e os valores, mas apenas para constatar — ou melhor, para decidir, pois eles o sabem previamente, tãoforte é o dogma — que a obra é fatalmente incoerente e que,por isso, não consegue afirmar nada, subvertendo assim seuspróprios valores; e é a isso que eles chamam de desconstruiro texto. Diversamente do estruturalismo clássico, que afasta-va a questão da verdade dos textos, oquer de fato examinar essa questão, mas seu comentárioinvariável é que ela nunca receberá qualquer resposta.texto só pode dizer uma única verdade, a saber: que a verda-de não existe ou que ela se mantém para sempre inacessível.Essa concepção de linguagem estende-se para além da litera-tura e concerne, sobretudo nas universidades americanas, a disciplinas nas quais, anteriormente, a relação o mundonão era contestada. Assim, a história, o direito e mesmo asciências naturais serão também descritas como gêneros lite-rários, suas regras e convenções; assimilados à literatu-ra que supostamente só deveria obedecer às suas próprias

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exigências, essas disciplinas se tornaram, por sua vez, objetosfechados e auto-suficientes.

Estaria eu sugerindo que o ensino da disciplina deve seapagar inteiramente em prol do ensino das obras? Não, masque cada um deve encontrar o lugar que lhe convém. Noensino superior, é legítimo ensinar (também) as abordagens,os conceitos postos em prática e as técnicas. ensino médio,que não se dirige aos especialistas em literatura, masa todos, não pode ter o mesmo alvo; o que se destina a todosé a literatura, não os estudos literários; é preciso então ensi-nar aquela e não estes últimos. professor do ensino médiofica encarregado de uma das mais árduas tarefas: interiorizaro que aprendeu na universidade, mas, em vez de ensiná-lo,fazer que esses conceitos e técnicas se transformemnuma ferramenta invisível. Isso não seria pedir a esse profes-sor um esforço excessivo, do qual apenas os mestres serãocapazes? Não nos espantemos depois se ele não conseguirrealizá-lo a contento.

A concepção redutora da literatura não se manifestaapenas nas salas de aula ou nos cursos universitários; elatambém está representada de forma abundante entre os jor-nalistas que resenham livros, e mesmo entre os própriosescritores. Devemos nos espantar? Todos esses críticos pas-saram pela escola, muitos deles também pelas faculdades deLetras, onde aprenderam que a literatura fala apenas de simesma e que a única maneira de honrá-la é valorizar o jogo

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de seus elementos constitutivos. Se os escritores aspiram aoelogio da crítica, eles devem se conformar a tal imagem, pormais pálida que esta seja; de resto, muitas vezes os própriosescritores começaram como críticos. Essa evolução é maisvisível na França do que no restante da Europa, e mais in-tensa também na Europa do que no restante do mundo.Podemos nos perguntar ao mesmo tempo se não encontra-mos aí uma das explicações do fraco interesse que a litera-tura francesa suscita hoje fora das fronteiras do

Numerosas obras contemporâneas ilustram essa concep-ção formalista da literatura; elas cultivam a construção enge-nhosa, os processos mecânicos de engendramento do texto,as simetrias, os ecos e os pequenos sinais cúmplices. Todavia,essa concepção não é a única tendência a dominar a literatu-ra e a crítica jornalística na França no início do século X X I .Outra tendência influente encarna uma visão de mundo quepoderíamos qualificar de niilista, segundo a qual os homenssão tolos e perversos, as e as formas de violênciadizem a verdade da condição humana, e a vida é o adventode um desastre. Não se pode mais, nesse caso, afirmar que a literatura não descreve o mundo: mais do que uma negaçãoda representação, ela se torna a representação de uma nega-ção. que não a impede de permanecer como objeto deuma crítica formalista: já que, para essa crítica, o universorepresentado no livro é auto-suficiente, sem relação o mundo exterior, abrem-se as portas para sua análise sem que

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se tenha de interrogar sobre a pertinência das opiniõesexpressas no livro, nem sobre a veracidade do quadro queele pinta. A história da literatura o mostra bem: passa-sefacilmente do formalismo ao ou vice-versa, e podem-se mesmo cultivar os dois simultaneamente.

Por sua vez, a tendência niilista conhece uma exceçãomaior, que concerne ao fragmento do mundo constituídopelo autor em si. Outra prática literária provém, efeito,de uma atitude complacente e narcísica que leva o autor a descrever detalhadamente suas menores emoções, suas maisinsignificantes experiências sexuais, suas reminiscênciasmais fúteis: quanto mais repugnante, mais fascinante é o mundo! Falar mal de si, aliás, não destrói esse prazer, já queo essencial é falar de si — o que se diz é secundário. A litera-tura (nesse caso, diz-se, preferencialmente, "a escrita")tornou-se apenas um laboratório no qual o autor pode estu-dar a si mesmo a seu bel-prazer e tentar se compreender.possível qualificar essa terceira tendência, após as do forma-lismo e do niilismo, de solipsismo, de acordo essa teo-ria filosófica que postula que o si mesmo é o único ser exis-tente. A falta de verossimilhança dessa teoria, de fato, a con-dena à marginalidade, mas isso não impede que ela se torneum programa de criação literária. Uma de suas variantesrecentes é o que se chama de o autor continuaa se dedicar à evocação de seus humores, mas, além disso, selibera de todo constrangimento referencial, beneficiando-se

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assim tanto da suposta independência da ficção quanto doprazer engendrado pela valorização de si.

e solipsismo são claramente solidários. Ambosrepousam na idéia de que uma ruptura radical separa o eu e o mundo, isto é, de que não existe mundo comum. Só possodeclarar a vida e o universo como totalmente insuportáveisse previamente me excluo deles. Reciprocamente, só decidome dedicar exclusivamente à descrição de minhas própriasexperiências se considero o restante do mundo sem valor e indiferente a mim. Essas duas visões de mundo são, portan-to, igualmente parciais: o niilismo omite a inclusão de umlugar para si mesmo e para os que lhe são semelhantes noquadro de desolação por ele pintado; o solipsismo negligen-cia a representação do contexto humano e material que o torna possível. Niilismo e solipsismo mais completam a escolha formalista do que a refutam: a cada vez, mas a partirde modalidades diferentes, é o mundo exterior, o mundocomum a mim e aos outros, que é negado e depreciado. É devido a isso que, em grande parte, a criação contemporâ-nea francesa é solidária da idéia da literatura que se podeencontrar na base do ensino e da crítica: uma idéia absurda-mente restrita e empobrecida.

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NASCIMENTO DA ESTÉTICA MODERNA

tese segundo a qual a literatura não mantém ligaçãosignificativa o mundo, e que, por conseguinte, sua apre-ciação não deve levar em conta o que ela nos diz do mundo,não é nem uma invenção dos professores de Letras atuaisnem uma contribuição original dos estruturalistas. Essa tesetem uma história longa e complexa, paralela ao advento damodernidade. Para melhor compreendê-la, podendo obser-vá-la a partir de seu exterior, gostaria de evocar brevementeaqui suas principais

Para começar, deve-se dizer que, dentro do que bas-tante acerto chamamos de teoria clássica da poesia, a relação

o mundo exterior é afirmada grande força. Algumasdas fórmulas utilizadas pelos Antigos para ilustrar essa idéiasão mantidas e repetidas fartamente, mesmo já se tendo per-dido o sentido dado por seus autores, a saber: segundoAristóteles, a poesia é uma imitação da natureza, e, segundo

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Horário, sua função é agradar e instruir. A relação com o mundo encontra-se, assim, tanto do lado do autor, que deveconhecer as realidades do mundo para poder "imitá-las",quanto do lado dos leitores e ouvintes, que podem, é claro,encontrar prazer nessas realidades, mas que delas tambémtiram lições aplicáveis ao restante de sua existência. NaEuropa cristã dos primeiros séculos, a poesia serve principal-mente à transmissão e à glorificação de uma doutrina da qualela apresenta uma variante mais acessível e mais impressio-nante, mas ao mesmo tempo menos precisa. Ao se libertardessa pesada tutela, ela é imediatamente relacionada aos cri-térios antigos. A partir do Renascimento, pede-se à poesiaque seja bela, mas a própria beleza se define pela verdade e sua contribuição ao bem. É fácil nos lembrar dos versos deBoileau: "Nada é mais belo do que o verdadeiro, apenas o verdadeiro é amável." Essas fórmulas são indubitavelmentepercebidas como insuficientes, mas, em vez de rejeitá-las, noscontentamos em acomodá-las às circunstâncias.

Os tempos modernos vêm abalar essa concepção de duasmaneiras distintas, ambas ligadas ao novo olhar que incidesobre a progressiva secularização da experiência religiosa e uma concomitante sacralização da arte. A primeira maneiraconsiste em retomar e revalorizar uma antiga imagem: o artista criador, comparável ao Deus criador, engendra con-juntos coerentes e fechados em si mesmos. Deus do

é um ser infinito que produz um universo fini-to; ao imitá-lo, o poeta se assemelha ao deus que fabrica

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objetos finitos (a comparação mais freqüente é feita comPrometeu). Ou ainda, o gênio humano, sublunar, imita o Gênio supremo, origem de nosso mundo. A idéia de imita-ção é mantida, mas seu lugar não está mais entre a obra, pro-duto finito, e o mundo; ela se situa doravante na ação de seproduzir, no primeiro caso, um no segundo,um microcosmo, mas sem qualquer obrigação de semelhan-ça nos resultados. que é exigido de cada um é a coerênciade sua criação, não uma correspondência qualquer da obra

algo que ela não é.

A idéia da obra como um microcosmo ressurge no inícioda Renascença italiana, por exemplo, o cardeal Nicolaude Cusa, teólogo e filósofo, que escreve em meados do sécu-lo XV: homem é um outro Deus enquanto criador depensamento e das obras de arte." Leon Battista Alberti, teó-rico das artes, afirma, por sua vez, que o artista de gênio,"pintando ou esculpindo seres vivos, se distinguia como umoutro deus entre os mortais". Dir-se-á paralelamente queDeus é o primeiro dos artistas: "Deus é o poeta supremo, e o mundo é seu poema", afirma Landino, neoplatônico floren-tino. Essa imagem se impõe progressivamente nos discursosacerca da arte e serve para a glorificação do criador humano.A partir do século XVIII, ela passa igualmente a orientar o discurso crítico descritivo, graças à influência de uma novafilosofia, a de Leibniz, que introduz as noções de e de mundo possível: o poeta ilustra essas categorias, já quecria um mundo paralelo ao mundo físico existente, um uni-verso tão independente quanto coerente.

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A segunda maneira de romper com a visão clássica con-siste em que o objetivo da poesia não é nem imitar a natureza nem instruir e agradar, mas produzir o belo. Ora, o belo se caracteriza pelo fato de não conduzir a nada queesteja para além de si mesmo. Essa interpretação da idéia dobelo, imposta a partir do século XVIII, é em si mesma umalaicização da idéia de divindade. nesses termos que, ao fimdo século IV, Santo Agostinho descreve a diferença entre ossentimentos que dedicamos a Deus e aos homens: ao passoque podemos usar qualquer coisa ou qualquer ser vistasa obter um fim que transcenda essa coisa ou esse ser, a Deusapenas devemos nos contentar em fruir, isto é, temos deamá-lo em si mesmo. Deve-se dizer que, ao trazer a distinçãoagostiniana entre usar e fruir para o campo profano das ati-vidades puramente humanas, os teóricos do século XVIIIpromovem tão-somente a inversão do gesto do próprioAgostinho, que transpunha as categorias platônicas para o domínio religioso. É Platão quem define o bem supremocomo aquilo que basta a si mesmo: aquele que é animadopor esse bem supremo possui, "de maneira plena e inteira, a mais acabada suficiência" e, desse modo, "não necessita demais É também Platão quem convida à contempla-ção desinteressada das idéias, e é igualmente a ele a quem serecorre, 22 séculos mais tarde, para reivindicar tal interpre-tação do belo. Não é mais o criador que, em sua liberdade,se aproxima de Deus; é a obra em sua perfeição.

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Resultado dessas mutações: nos séculos XVII e XVIII, a contemplação estética, o juízo de gosto e o sentido do beloserão instituídos como entidades autônomas. Não que oshomens das épocas anteriores não tivessem sido sensíveistanto à beleza da natureza quanto à das obras de arte; antes,porém — a menos que se situassem na perspectiva platônicana qual o belo se confunde o verdadeiro e o bemessas experiências constituíam apenas uma faceta de uma ati-vidade cuja finalidade principal está em outro lugar. cam-ponês pode admirar a bela forma de seu instrumento agríco-la, mas esse instrumento deve ser antes de tudo eficaz.nobre aprecia a decoração de seus palácios, mas o que elequer em primeiro lugar é que essa decoração ilustre seu nívelsocial a seus visitantes. fiel se encanta a música queescuta na igreja, assim como a visão das imagens deDeus e dos santos, mas essas harmonias e representações sãopostas a serviço da fé. Reconhecer uma dimensão estética emtodos os tipos de atividades e de produção é uma caracterís-tica humana universal. fato novo, surgido na Europa doséculo XVIII , será o de isolar esse aspecto secundário demúltiplas atividades, instituindo-o como encarnação de umaúnica atitude, a contemplação do belo, atitude ainda maisadmirável por tomar seus atributos de empréstimo ao amorde Deus. Como conseqüência, pedir-se-á aos artistas queproduzam objetos que lhe sejam exclusivamente destinados.Essa nova perspectiva será elaborada nos escritos deShaftesbury e Hutcheson, na Inglaterra; ela levará à criação

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do próprio termo "estética" (literalmente, "ciência da per-cepção"), em num tratado de Alexander Baumgartendedicado à nova disciplina.

que há de revolucionário nessa abordagem é que ela con-duz ao abandono da perspectiva do criador para adotar a doreceptor, que, por sua vez, só tem um único interesse: contem-plar belos objetos. Essa mutação tem várias conseqüências.Primeiramente, separa cada "arte" da atividade da qual era ape-nas um grau superlativo; essa atividade se vê a partir de entãodevolvida aos domínios, radicalmente diferentes, do artesanatoe da técnica. Visto a partir da perspectiva da criação ou da fabri-cação, o artista é apenas um artesão de melhor qualidade: osdois praticam o mesmo ofício, um pouco mais ou umpouco menos de talento. Ora, se nos situamos do lado de seusprodutos, o artesão se opõe ao artista, pois, se um cria objetosutilitários, o outro cria objetos a serem contemplados apenaspelo prazer estético proporcionado; um obedece a seu interes-se, e o outro permanece desinteressado; um se situa sob a lógi-ca do usar, e o outro, na do e, por fim, um permanecepuramente humano, e o outro se aproxima do divino. Segundaconseqüência: as artes, que até então se ligavam cada uma à sua prática de origem, passam a ser reunidas em torno deuma mesma categoria. Poesia, pintura e música só podem serunificadas se as situamos na ótica da recepção, correlativa à mesma atitude desinteressada chamada a partir deste mo-mento de estética.

Um termo como ainda mantém essa cone-xão a prática não-artística (existem "letras" que não são

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"belas"). mesmo vale para a lembrança dasartes utilitárias, ou mecânicas, ainda é forte. Uma vez adota-da a nova perspectiva, o adjetivo "belo" não será mais indis-pensável, e a expressão se tornará um pleonasmo, já que a "arte" passa a ser definida como aspiração ao belo. Os anti-gos tratados sobre a arte eram essencialmente manuais decriação, instruções endereçadas ao poeta, ao pintor, ao músi-co. A partir de então, a preocupação passa a ser a descriçãodo processo de percepção, a análise do juízo de gosto, a ava-liação do valor estético. ensino de Letras, na França, ilustraessa passagem cem anos de atraso: ao passo que atémeados do século X I X esse ensino era oriundo da retórica(aprende-se como escrever), a partir desse momento é ado-tada a perspectiva da história literária (aprende-se como ler).

Conseqüência imediata: separadas do contexto de suacriação, as artes exigem o estabelecimento de locais em quepossam ser consumidas. Para os quadros, são instaladossalões, galerias e museus: o Museu Britânico abre suas por-tas em os Uffizi e o Vaticano em e o Louvre em

A concentração num só local de quadros, destinadosoriginalmente a assumir funções as mais diversas nas igrejas,palácios e residências particulares, os reserva para um únicouso: o de serem contemplados e apreciados apenas por seuvalor estético. A hierarquia entre sentido e beleza se inverte:o que era desejável (a qualidade de execução) torna-se ne-cessário; o que era necessário (a referência teológica oumitológica) passa a ser meramente facultativo. A ponto de o

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do museu ou da galeria se tornar o que transformaum objeto qualquer em obra de arte: para que seja disparadaa percepção estética, basta que o objeto seja exposto numdesses lugares. encadeamento automático entre esse gêne-ro de local e essa forma de percepção impôs-se evidên-cia desde que Duchamp colocou seu famosorio num lugar destinado às obras de arte: apenas pelo localem que se encontra, ele se tornou obra de arte, ao passo queseu processo de fabricação de modo algum corresponde aode uma escultura ou de um quadro.

Numa palavra, os dois movimentos que transformam noséculo XVIII a concepção de arte, isto é, a assimilação docriador a um deus fabricante de microcosmo e a assimilaçãoda obra a um objeto de contemplação, ilustram a progressi-va secularização do mundo na Europa ao mesmo tempo emque contribuem para uma nova sacralização da arte. Nessemomento da história, a arte encarna tanto a liberdade docriador quanto a sua soberania, sua auto-suficiência e suatranscendência relação ao mundo. Cada um dos movi-mentos consolida o outro: a beleza se define como aquiloque, no plano funcional, não tem fim prático, e tambémcomo o que, no plano estrutural, é organizado o rigorde um cosmo. A ausência de finalidade externa é, de algummodo, compensada pela densidade das finalidades internas,ou seja, pelas relações entre as partes e os elementos da obra.Graças à arte, o ser humano pode atingir o absoluto.

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A ESTÉTICA DAS

passamos da perspectiva da produção para a darecepção, aumentamos a distância que separa a obra domundo do qual fala e sobre o qual age, já que se quer per-cebê-la a partir de então em si mesma e por si mesma. Essaevolução está por sua vez ligada à profunda mutação pelaqual passa a sociedade européia daquela época. artistadeixa progressivamente de produzir suas obras mediante a encomenda de um mecenas, destinando-as então ao públicoque as é o público quem passa a ter as chaves de seusucesso. que estava reservado a poucos torna-se acessívela todos; o que estava submetido a uma hierarquia rígida, a da Igreja e a do poder civil, põe em pé de igualdade todos osseus consumidores. espírito das Luzes é o da autonomiado indivíduo; a arte que conquista sua autonomia participado mesmo movimento. Se o artista se torna a encarnação doindivíduo livre, sua obra também vai se emancipar.

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Ao instalarem de forma resoluta as artes sob o regime dobelo, os pensadores do século XVIII não procuram, porém,cortar suas relações o a arte não se tornouestranha à verdade e ao bem. Nesse aspecto, eles seguem a interpretação platônica: o belo material não é senão a maissuperficial manifestação da beleza, que, por sua vez, se refereà beleza das almas e daí à beleza absoluta e eterna, que tantoengloba as práticas humanas cotidianas — ou seja, a moral— quanto a busca pelo conhecimento — ou seja, a verdade.Shaftesbury, primeiro a transpor para a descrição da arte o vocabulário religioso da contemplação e da auto-suficiência,apresenta a arte, entretanto, como um meio para apreendera harmonia do mundo e ascender à sua sabedoria. A partirdaí, ele pode afirmar: que é belo é harmonioso e propor-cional. que é harmonioso e proporcional é verdadeiro, e o que é ao mesmo tempo belo e verdadeiro é, por conseguin-te, agradável e processo de percepção e a ação dossentidos não esgotam a experiência dita estética, e menosainda porque a arte considerada habitualmente como exem-plar, a poesia, não é em sua essência relativa à visão nem à audição, mas exige a mobilização do espírito: a beleza dapoesia sustenta-se em seu sentido e não pode ser separada desua verdade.

Esses pensadores não renunciam, portanto, a ler as obrasliterárias como um discurso sobre o mundo, mas procuram,especialmente, distinguir entre duas vias, a dos poetas e a dos cientistas (ou filósofos), cada uma delas suas vanta-

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gens, sem que uma seja inferior à outra: duas vias que con-duzem ao mesmo objetivo, uma melhor compreensão dohomem e do mundo, uma sabedoria mais ampla. Um dosprimeiros a se dedicar à confrontação desses dois modos deconhecimento é o singular filósofo, historiador e retórico deNápoles, Giambattista que distingue entre linguagemracional e linguagem poética. Ele projeta, é verdade, a lin-guagem poética nas primeiras eras da humanidade, mas con-cebe também que as duas linguagens sejam simultâneas; elasse opõem entre si do mesmo modo que o universal e o par-ticular: "É impossível ao homem ser ao mesmo tempo poetae metafísico sublime; a razão poética se opõe a que isso ocor-ra; de fato, ao passo que a metafísica separa o espírito dossentidos, a faculdade poética quer, ao contrário, mergulhá-lo neles; ao passo que a metafísica se eleva às idéias univer-sais, a faculdade poética se dedica aos casos particulares",escreve ele em Ciência Nova

Situar a atividade artística à atividade dafilosofia é também uma das principais tarefas a que se dedicaBaumgarten nas Meditações Filosóficas sobre a Poesia (1735)e na Estética (1750) . Discípulo de Leibniz, ele concebe o poeta como o criador de um mundo possível entre outros e legitima a perspectiva estética que privilegia a percepção emdetrimento da criação. Assim como a ciência, a estética é relativa ao conhecimento, mas (contrariamente ao que suge-rem algumas fórmulas) não se trata de um conhecimentoinferior: as características de um "análogo da razão" e

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produz o "conhecimento Esse conhecimento é acessível a todos os homens e não apenas aos filósofos, poisele nos revela a individualidade de cada coisa. A verdade à qual conduz é, portanto, de natureza diversa daquela dasciências: não é uma verdade que se estabelece apenas entre aspalavras e o mundo, mas implica a adesão de seus utilizado-res; o nome que lhe convém é o de "verossimilhança", e seuefeito é "produzido pela coerência interna do mundo cria-do". A abstração apreende o geral ao custo, porém, de umempobrecimento do mundo sensível; a poesia capta suariqueza, mesmo que as conclusões às quais chega careçam declareza; o que ela perde em acuidade, ganha em vivacidade.

Lessing, o grande autor do alemão que viriadedicar várias obras à análise das artes, também combinaduas teses. Por um lado, o que faz a especificidade da obra dearte é seu anseio de produzir o belo; ora, o belo se definecomo uma harmonia de seus elementos constitutivos semsubmissão a um objetivo exterior. Por outro, a obra partici-pa de um conjunto mais amplo de práticas que têm comoobjetivo buscar a verdade do mundo e de conduzir oshomens em direção à sabedoria. Assim, Lessing escreve no

(1766): "Gostaria que fosse aplicado o nome deobras de arte apenas àquelas obras em que o artista pode semostrar como artista, nas quais produzir o belo tenha sidoseu primeiro e único anseio. Todas as obras que mostremtraços perceptíveis de convenções religiosas não merecem o nome de obra de arte, porque nesses casos a arte não foi pro-

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por si própria, não passando de um meio auxiliar dareligião, preocupando-se bem mais a significação doque a beleza das representações sensíveis que ela pro-

Nesta passagem, que contém a fórmula "a artepor si mesma", talvez a origem de "a arte pela arte", Lessingidentifica a submissão às exigências do belo como traço dis-tintivo da arte. Nem por isso ele renuncia a inscrever a arteno centro das atividades representativas ("essa imitação queé a essência da arte do poeta", ele escreve), chegando a defi-nir a pintura como a arte que "imita" no espaço, ao passoque a poesia "imita" no tempo.

Do mesmo modo, em a Dramaturgia de Hamburgo (1767), Lessing compara o trabalho do escritor ao doCriador que fabrica um mundo coerente — mas autônomo,"um mundo em que os fenômenos estariam encadeados emordem distinta daquela do nosso mundo, mas ao qual nãoestariam menos estreitamente encadeados"; um mundo emque os incidentes da ação nasçam como necessários em cadapersonagem, e que as paixões de cada um correspondamexatamente a seu caráter. Nesse sentido, a obra escapa a seuautor, que a escreve como que ditado por suas próprias per-sonagens: sua verdade reside em sua coerência. Longe deLessing, no entanto, a tentação de ver na obra de arte umjogo de construção que encontrasse seu fim em si mesmo."Escrever e imitar a partir de um anseio é o que distingue o gênio dos pequenos artistas, que escrevem por escrever e imitam por imitar, que se contentam o pequeno prazer

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ligado ao uso de seus talentos e que fazem de seus talentostodo seu A preocupação em primeiro lugar o belo é o que distingue arte e não-arte; mas se contentaresse objetivo ou ter anseio mais elevado é o que separa a pequena da grande arte, a labuta dos gênios: "Nada de gran-de do que não é

É por essa razão — depois de ter tomado a precaução delembrar que a verdade poética não é igual à dos cientistas,se aproximando mais da "verossimilhança" aristotélica — que Lessing pode fazer o elogio de seus autores preferidosprecisamente pela verdade a que se pode chegar por meiodeles. que faz de Shakespeare um grande dramaturgo é o fato de ele possuir "uma visão profunda sobre a essência doamor": seu é um "manual completo sobre esse tristefrenesi" que é o amor. que Euripides aprendeuSócrates não foi uma doutrina filosófica ou máximasmorais, mas a arte de "conhecer os homens e se conhecer a si mesmo; estar atento às nossas sensações; buscar e amarem tudo os caminhos da natureza que sejam os mais retos e os mais curtos; julgar cada coisa segundo seus E é por essa razão que Euripides, por sua vez, soube escrevertragédias imortais.

conjunto dessas noções será retomado e refundido naCrítica da Faculdade do Juízo, de Kant que influen-ciará toda a reflexão contemporânea sobre a arte, sempremantendo essa dupla perspectiva; o belo é desinteressado,ao mesmo tempo em que é um símbolo da moralidade.

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belo não pode ser estabelecido objetivamente, uma vez queprovém de um juízo de gosto e reside, portanto, na subjeti-vidade dos leitores ou espectadores; mas ele pode ser reco-nhecido pela harmonia dos elementos da obra e tornar-seobjeto de consenso.

Encontramos um testemunho do impacto imediato des-sas idéias no diário íntimo de Benjamin Constant, que,acompanhado por Germaine de passa alguns dias doinício do ano de em Weimar. Em de fevereiro, eleanota: "Jantar com Robinson, aluno de Schelling. Seu traba-lho sobre a estética de Kant. Idéias muito engenhosas. A artepela arte, e sem objetivo; todo objetivo desnatura a arte.Mas a arte atinge o objetivo que não tem." É a primeiraocorrência conhecida em francês da expressão "a arte pelaarte"; mas logo se vê que é necessário distinguir entre váriostipos de "objetivo": aquele que o artista dá previamente a simesmo, a intenção de se tornar ilustre (equivalente aosobjetivos da educação religiosa, recusada por Lessing) e aquele inerente a toda obra de arte, em especial às superio-res (as obras dos gênios, que Lessing opunha aos pequenosartistas). Ao escrever sobre a tragédia, um quarto de séculomais tarde, Constant tornará seu pensamento mais preciso:"A paixão impregnada de doutrina, e servindo a desdobra-mentos filosóficos, é contra-senso do ponto de vistaartístico", mas isso não significa que a obra não venha a agirsobre o espírito de seu leitor: "A instrução não será o objeti-vo, mas o efeito do

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Inimigo do didatismo na literatura, Constam não a con-sidera, no entanto, como separada do mundo: não somosobrigados a escolher entre esses dois extremos. Ele situa a prática literária no cerne dos outros discursos públicos,como deixa claro esta passagem datada de "A litera-tura refere-se a tudo. Não pode ser separada da política, dareligião, da moral. É a expressão das opiniões dos homenssobre cada uma das coisas. Como tudo na natureza, ela é aomesmo tempo efeito e causa. Imaginá-la como fenômenoisolado é não Por conseguinte, "poesia pura"não existe: toda poesia é necessariamente "impura", poisnecessita de idéias e valores; ora, tanto um quanto outronão lhe pertencem propriamente. Nisso, Constant perma-nece fiel às idéias de sua companheira Germaine deque, em publicou uma obra intitulada, significativa-mente, Da Literatura Considerada em Suas Relações asInstituições Sociais. Nesse livro, ele considera a noção deliteratura "na acepção mais ampla, isto é, abrangendo em sios escritos filosóficos e as obras de imaginação, enfim, tudoque concerne ao exercício do pensamento na forma de es-critos, excetuando-se as ciências Literatura deimaginação e escritos científicos ou filosóficos são distintos,mas dentro de um gênero comum; uns e outros dependemdo mundo e agem sobre ele, contribuindo para a criação deuma sociedade imaginária habitada pelos autores do passa-do e os leitores do porvir.

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Do ROMANTISMO ÀS VANGUARDAS

T oda a estética dos iluministas, encarnada em diversos

graus por Shaftesbury, Baumgarten, Lessing, Kant,Germaine de ou Benjamin Constant, teve êxito emmanter esse equilíbrio instável: por um lado, diversamentedas teorias clássicas, ela desloca o centro da gravidade daimitação à beleza, afirmando a autonomia da obra de arte;por outro, essa estética nunca ignora a relação que liga asobras ao real: elas ajudam a conhecê-lo e agem reciproca-mente sobre ele. A arte continua a pertencer ao mundocomum dos homens. A esse respeito, a estética românticaimposta a partir do início do século X I X não introduz qual-quer ruptura notável. Aos olhos dos primeiros românticos— sempre próximos de Germaine de e de Constant: osirmãos Schlegel, Schelling, Novalis a arte continua a serum conhecimento do mundo. Se novidade há, essa está nojuízo de valor que eles atribuem aos diferentes modos de

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conhecimento. Aquele ao qual se ascende através da arteparece-lhes superior ao da ciência: por renunciar aos proce-dimentos comuns da razão e tomar o caminho do êxtase,esse conhecimento dá assim acesso a uma segunda realidade,proibida aos sentidos e ao intelecto, mais essencial ou maisprofunda do que a primeira. Deve ser lembrado, no entanto,que é nesse mesmo momento que o prestígio da ciênciacomeça a crescer vertiginosamente; é sem surpresa que se vêa reivindicação romântica não encontrar nenhum eco favo-rável na sociedade contemporânea.

A própria doutrina da "arte pela arte", que se desenvol-ve então na Europa como resposta às idéias provenientes daAlemanha, não deve ser tomada em sentido literal. Poder-se-ia crer, por exemplo, que Baudelaire — que toma para sio papel de porta-voz dessa tendência na segunda metade doséculo — se recuse a considerar a poesia como caminhopara o conhecimento do mundo, já que declara: "A poesia(...) não tem como objeto a verdade, ela não tem senão a Simesma. Os modos de demonstração de verdade são outrose estão em outro lugar. A Verdade não tem nada a fazeras

No entanto, tal não é o sentido profundo do compro-misso de Baudelaire. que ele quer é ser poeta; mas, paraele, ser poeta é uma missão que implica "altos deveres". Se a poesia não deve se submeter à procura da verdade e do bem,é porque ela é em si mensageira de uma verdade e de um

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bem superiores àqueles que podemos encontrar fora dela.Baudelaire permanece fiel a Kant ao afirmar (numa carta a Toussenel): "A imaginação é a mais científica das faculdades,porque apenas ela pode compreender a analogiaou quando escreve: "A imaginação é a rainha do verdadei-ro". A obra do artista participa do conhecimento do mundo.É por essa razão que Baudelaire aplaude sua capacidade de"conhecer os aspectos da natureza e as situações do ho-mem." também por isso que ele exige que seus contempo-râneos, pintores e poetas, sejam "modernos", que eles nosmostrem poéticos "em nossas gravatas e nossas botas enver-nizadas"; e ele próprio anseia realizar esse programa em suasobras poéticas. Essa procura da verdade não explica tudo deum poema (há também as "exigências de monotonia, desimetria e de mas ela é irredutível e, aos olhosdo próprio Baudelaire, primordial.

Se os poetas têm verdadeiramente como missão revelaraos homens as leis secretas do mundo, não se pode maisdizer que a verdade não tem nada a ver suas canções.Nem por isso Baudelaire se contradiz. A arte e a poesia sereferem à verdade, mas a verdade da arte não a mesmanatureza que aquela aspirada pela ciência. Baudelaire pensanuma de suas verdades quando ele a reivindica, e em outraquando a recusa. A ciência enuncia proposições as quais des-cobrimos serem verdadeiras ou falsas quando confrontadasaos fatos que procuram descrever. enunciado "Baudelaire

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escreveu As Flores do é verdadeiro nesse sentido, damesma forma que "a água entra em ebulição a cem graus",mesmo sabendo que há também as diferenças lógicas entreessas duas proposições. Trata-se aqui de uma verdade de cor-respondência ou de adequação. Quando, ao contrário,Baudelaire diz que "o Poeta é semelhante ao príncipe dasalturas", ou ao albatroz, é impossível proceder a umaverificação. Porém, Baudelaire não diz uma tolice, pois o que ele procura é nos revelar a identidade do poeta; destavez, ele aspira a uma verdade de tentando pôrem evidência a natureza de um ser, de uma situação, de ummundo. Em cada uma dessas situações, uma relação se esta-belece entre as palavras e o mundo, mas as duas verdadesnão se confundem. Em outro momento, Baudelaire indicaum meio para distinguir os dois tipos de conhecimento, des-crevendo o trabalho do artista: "Não se trata para ele decopiar, mas de interpretar numa linguagem mais simples e mais Da mesma maneira, ele dirá que o poetanão é senão "um tradutor, um A diferença sesituaria, portanto, entre copiar (ou descrever) e interpretar.

A partir daí, pode-se concluir que não somente a arteconduz ao conhecimento do mundo, mas que ao mesmotempo revela a existência dessa verdade cuja natureza é diversa. Na realidade, essa verdade não lhe pertence exclusi-vamente, já que constitui o horizonte dos outros discursosinterpretativos: história, ciências humanas, filosofia. A pró-

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pria beleza não é uma noção nem objetiva (que possaestabelecida a partir de indícios materiais) nem subjetiva, ouseja, que dependa do juízo arbitrário de cada ela é inter-subjetiva, pertencente, portanto, à comunidade humana.Ora, a beleza de um texto literário não é outra coisa senãosua verdade. Esse já era o sentido do famoso verso de Keats:"Beauty is Truth, Truth is Beauty."

mesmo vale para os outros representantes da doutrinada "arte pela arte". Flaubert, que defende com obstinação aautonomia da literatura, não deixa de lembrar, ao mesmotempo, sua paixão pelo conhecimento do mundo, posto a serviço da criação; nem de dizer que a verdade de uma obraé indissociável de sua perfeição. "É por isso que a arte é a própria Oscar o mais exuberante porta-voz dessa doutrina na literatura em língua inglesa, multiplicafórmulas peremptórias sobre a autonomia da arte; porém,ao afirmar que "a vida imita a arte muito mais do que a arteimita a vida", ele não pretende de modo algum negar a re-lação entre as duas. A arte interpreta o mundo e dá forma aoinforme, de modo que, ao sermos educados pela arte, desco-brimos facetas ignoradas dos objetos e dos seres que noscercam. Turner não inventou o fog londrino, mas foi o pri-meiro a tê-lo percebido em si e a tê-lo mostrado em seusquadros — de algum modo, ele nos abriu os olhos. mesmoacontece na literatura: Balzac "cria" mais suas personagens doque as descobre, mas, uma vez criadas, elas se introduzem na

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sociedade contemporânea e, a partir daí, não cessamos decruzar elas pelas ruas. A vida em si é "terrivelmente des-provida de forma". Dessa ausência, resulta o papel da arte:"A função da literatura é criar, partindo do material bruto daexistência real, um mundo novo que será mais maravilhoso,mais durável e mais verdadeiro do que o mundo visto pelosolhos do Ora, criar um mundo mais verdadeiroimplica que a arte não rompe sua relação o mundo.

É apenas no começo do século XX que se produz a rup-tura decisiva. Ela se deve, por um lado, ao impacto das tesesradicais de Nietzsche, que questionam a própria existênciatanto dos fatos independentes de suas interpretações quantoa da verdade, qualquer que ela seja. A partir desse momento,não apenas a pretensão da literatura ao conhecimento nãodeixa de ser legítima, mas também os discursos da filosofia e da ciência se vêem marcados pela mesma suspeita. Essa novaatitude relativa à arte vai simultaneamente ao encontro doextremismo de alguns autores do século XVII I , que nãotinham sido seguidos por seus contemporâneos. É o caso de

que declarava: objetivo da verdadeira artenão é a imitação da natureza, mas a criação da beleza", o queexcluía assim toda dimensão cognitiva da obra. Do mesmomodo, quando Karl Philipp Moritz escreve: "Na medida emque um corpo é belo, ele não deve significar nada, nem dizernada que lhe seja ele deve falar, ajuda de suassuperfícies exteriores, apenas de si mesmo, de seu ser interior;

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ele deve se tornar significante por e que, ao mesmotempo, ele define a obra de arte por sua submissãoàs exigências do belo, ele elimina toda questão à relação que essa obra mantém o mundo.

esse procedimento, os teóricos recaem no característico da estética clássica, que tudo

explicar a partir de um só princípio, a imitação, salvo que o princípio único novo se chama beleza. A complexidade vis-lumbrada nos séculos XVIII e XIX perde-se mais uma vez, e essa perda se traduz de imediato no campo da própria litera-tura, no qual se produz uma ruptura desconhecida até então.Desse momento em diante, cava-se um abismo entre a litera-tura de massa, produção popular em conexão direta a vida cotidiana de seus leitores, e a literatura de elite, lidapelos profissionais — críticos, professores e escritores — que se interessam somente pelas proezas técnicas de seuscriadores. De um lado, o sucesso comercial; do outro, asqualidades puramente artísticas. Tudo se passa como se a incompatibilidade entre as duas fosse evidente por si só, a ponto de a acolhida favorável reservada a um livro por umgrande número de leitores tornar-se o sinal de seu fracassono plano da arte, o que provoca o desprezo ou o silêncio dacrítica. Parece findar-se assim a época em que a literaturasabia encarnar um equilíbrio sutil entre a representação domundo comum e a perfeição da construção romanesca.

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É nos movimentos ditos "de do início doséculo XX (que representam uma subespécie do que identi-ficamos como "arte moderna") que vem ao mundo a novaconcepção. Esses movimentos se manifestam pela primeiravez na Rússia, por volta de trata-se do início da abstra-ção na pintura e das invenções futuristas na poesia. Pede-se à pintura que ela esqueça o mundo material e que só obedeçaàs suas próprias leis — e ela o faz. pintor MikhailLarionov, criador do escreve num manifesto de

"Os objetos que vemos na vida não têm nenhum papelno quadro raionista. Contrariamente, a atenção é atraídapor aquilo que é a própria essência da pintura: as combina-ções de cores, suas concentrações Assistimos aqui aoinício da verdadeira libertação da pintura, de sua vida quepassa a se referir unicamente às suas próprias leis, da pintu-ra como objeto de si, tendo suas próprias formas, cores e

Em Kasimir Malevitch, fundador do "supre- declara, por sua vez, que é preciso considerar

"a pintura como uma ação que tem o seu objetivo próprio".

Os quadros abstratos de Kandinsky, é verdade, mantêmuma relação com o mundo, já que as formas dentro do qua-dro designam as categorias do espírito; do mesmo modo, osquadrados, os círculos e as cruzes de Malevitch visam, umavez afastadas as aparências "enganosas" que se oferecem aoolhar, revelar a verdadeira ordem cósmica. Como conse-qüência, o mundo fenomenal, o mundo acessível aos olhos

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de todos, deixa de ser levado em consideração. No mesmomomento, os "ready-made" de Duchamp tornam vã todaprocura por sentido e verdade. Na poesia, os futuristas dese-jam emancipar a linguagem de sua ligação o real e, por-tanto, os sentidos, criando uma língua "transmental".Velimir Khlebnikov defende o "verbo autônomo," "a pala-vra como tal", inclusive "a letra como tal". Benedikt Livchitsescreve em seu artigo "A libertação da palavra" (1913 ) :"Nossa poesia (...) não se coloca absolutamente em nenhu-ma relação o A intersubjetividade, querepousa na existência de um mundo comum e de um sentidocomum, dá lugar à pura manifestação do indivíduo.

A carnificina da Primeira Guerra Mundial e suas conse-qüências políticas exerceram dupla influência tanto sobre aspráticas artísticas quanto sobre os discursos teóricos decor-rentes. Nos regimes totalitários instalados no pós-guerra, naRússia, na Itália e mais tarde na Alemanha, mas também,mais marginalmente, em outros países europeus, há a preo-cupação de colocar a arte a serviço de um projeto utópico, o da fabricação de uma sociedade inteiramente nova e de umhomem novo. realismo socialista, a arte do "povo" e a literatura de propaganda ideológica exigem a manutençãode uma relação de força a realidade circundante e,sobretudo, também impõem a submissão aos objetivos polí-ticos do momento, o que se mostra diametralmente oposto a toda proclamação de autonomia artística e a toda procura

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solitária do belo. A arte deve, como exige a estética clássica,agradar (um pouco), mas, sobretudo, instruir. Muitos artis-tas virão responder tanto entusiasmo e tanta ade-são a essa questão, que eles próprios passarão a chamá-la dea revolução dos seus anseios.

Ao mesmo tempo, mas em locais onde reina a liberdadede expressão, inicia-se um combate a essa usurpação daautonomia do indivíduo, afirmando-se que a arte e a litera-tura não mantêm nenhuma ligação significativa o mundo. Tal é o pressuposto comum dos Formalistas russos(combatidos e logo reprimidos pelo regime bolchevique),dos especialistas em estudos estilísticos ouna Alemanha, dos discípulos de Mallarmé na França e dosseguidores do New Criticism nos Estados Unidos. Tudo sepassa como se a recusa em ver a arte e a literaturadas à ideologia acarretasse necessariamente a ruptura defini-tiva entre a literatura e o pensamento; como se a rejeição dasteorias marxistas do "reflexo" exigisse o desaparecimento detoda relação entre a obra e o mundo. Ao utopismo de unscorresponde o formalismo dos outros; além disso, uns e outros amam apresentar seus adversários como única alter-nativa ao seu próprio ponto ae vista. E esse formalismo játraz consigo um niilismo, alimentado pela visão dos desas-tres que marcam a história européia do século passado.

Eis-nos de volta ao presente. As sociedades ocidentais dofim do século XX e início do século X X I se caracterizam

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pela coexistência mais ou menos pacífica de ideologias diferentes, e logo também de concepções concorrentes da arte.Encontram-se sempre aí os partidários do utopismo,como todos os fiéis à estética humana doPermanece o fato de que, ao mesmo tempo em que recla-mam para si a contestação e a subversão, pelo menos naFrança, os representantes da tríadesolipsismo ocupam posições ideologicamente dominantes.Eles são majoritários nas redações dos jornais literários,entre os diretores dos teatros subvencionados pelo Estadoou nos museus. Para eles, a relação aparente das obraso mundo é apenas um engodo. Se for organizada a exposi-ção de um artista figurativo (tal como Bonnard), deve-sealertar o público ingênuo: "A demonstração visa aqui — afir-ma o catálogo de sua exposição, em 2006 — revelar, em pri-meiro lugar, seu tema verdadeiro, a pintura, para além dostemas-pretextos." Admitindo-se que uma obra fala domundo, exige-se dela, em todo caso, que elimine os "bonssentimentos" e nos revele o horror definitivo da vida, sem o qual ela se arrisca a parecer "insuportavelmente ingênua".Ou, ainda pior, que ela se pareça a literatura "popular",aquela cuja reputação é feita muito mais pelos leitores doque pelos críticos. É verdade que alguns autores conseguemse impor à atenção geral mesmo não correspondendo a essemodelo; do mesmo modo, ainda me atendo à França, oslivros provenientes do exterior, e em particular de continentes

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não-europeus, não participam desse espírito. Permanece o fato de que a forte presença dessa concepção à francesa nasinstituições, na mídia e no ensino produz uma imagem sin-gularmente empobrecida da arte e da literatura.

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QUE PODE A LITERATURA?

sua Autobiografia, publicada logo após a sua morte,em John Stuart Mill narra a intensa depressão da qualfoi vítima aos 20 anos. Ele se torna "insensível a toda alegria,assim como a toda sensação agradável, num desses mal-estares em que tudo o que em outras ocasiões proporcionaprazer se torna insípido e indiferente". Todos os remédiosque experimenta se mostram ineficazes, e sua melancolia seinstala de forma contínua. Ele continua a cumprir mecanica-mente os gestos habituais, mas sem nada sentir. Esse estadodoloroso se prolonga por dois anos. Depois, pouco a pouco,se dissipa. Um livro que Mill lê por acaso naquele momentotem papel particular em sua cura: trata-se de uma coletâneade poemas de Wordsworth. Mill encontra no livro a expres-são de seus próprios sentimentos sublimados pela beleza dosversos. "Eles me pareceram ser a fonte na qual eu podia bus-car a alegria interior, os prazeres da simpatia e da imaginação

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que todos os seres humanos podem compartilhar Euprecisava que me fizessem sentir que há na contemplaçãotranqüila das belezas da natureza uma felicidade verdadeirae permanente. Wordsworth me ensinou tudo isso nãosomente sem me desviar da consideração dos sentimentoscotidianos e do destino comum da humanidade, mas tam-bém duplicando o interesse que eu trazia por

Aproximadamente anos mais tarde, uma mulherainda jovem se encontra numa prisão de Paris, presa por terconspirado contra o invasor alemão. Charlotte estásozinha em sua cela; submetida ao regime de "Noites e

ela não tem acesso à leitura. Mas a detenta dacela de baixo pode retirar livros da biblioteca. Então, Delbotece uma corda fios retirados do seu cobertor e faz subirum livro pela janela. A partir desse momento, Fabrice

passa a ser seu companheiro de cela. Apesar de não

* Referência ao documentário de Alain Resnais, Nuit et( 1 9 5 5 ) , primeiro a abordar e mostrar ao mundo os horrores dos cam-pos de concentração nazistas. documentário é escrito e narradopelo poeta e romancista Jean Cayrol, autor do livro de nuit et du A expressão "noite e nevoeiro" é retirada dodecreto alemão und que determinava o encarceramentoem locais secretos dos acusados de conspirar contra o regime nazista.(N.T.)

Fabrice Dongo é o herói do romance A Cartuxa de( 1 8 3 9 ) , de Stendhal. (N.T.)

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falar muito, ele permite que ela interrompa sua solidão.Alguns meses mais tarde, no vagão de animais que aa Auschwitz, Dongo desaparece, mas Charlotte ouve umaoutra voz, a do Alceste, o que lhe explica emque consiste o inferno para o qual ela se dirige e lhe mostrao exemplo da solidariedade. No campo, outros heróis seden-tos do absoluto lhe fazem visita: Electra, Don Juan,Antígona. Uma eternidade mais tarde, de volta à França,

sofre para voltar à vida: a luz cegante de Auschwitzvarreu toda ilusão, proibiu toda imaginação, declarou falsosos rostos e os livros... até o dia em que Alceste retorna e a arrebata sua palavra. Em face do extremo, CharlotteDelbo descobre que as personagens dos livros podem se tor-nar companheiras confiáveis. "As criaturas do poeta", elaescreve, "são mais verdadeiras que as criaturas de carne e osso, porque são inesgotáveis. É por essa razão que elas sãominhas amigas, minhas companheiras, aquelas graças àsquais estamos ligados a outros seres humanos, na cadeia dosseres e na cadeia da

Não vivi nada tão dramático quanto Charlotte Delbo,tampouco conheci as agruras da depressão descritas por JohnStuart Mill; no entanto, não posso dispensar as palavras dospoetas, as narrativas dos romancistas. Elas me permitem dar

Alceste é personagem da peça Misantropo de(N.T.)

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forma aos sentimentos que experimento, ordenar o fluxo depequenos eventos que constituem minha vida. Elas me fazemsonhar, tremer de inquietude ou me desesperar. Quandoestou mergulhado em desgosto, a única coisa que consigo leré a prosa incandescente de Marina Tsvetaeva; todo o restanteme parece insípido. Outro dia, descubro uma dimensão davida somente pressentida antes e, porém, a reconheço ime-diatamente como verdadeira: vejo Nastassia Philipovna atra-vés dos olhos do príncipe Míchkin, "o idiota" de Dos-

ando ele nas ruas desertas de São Petersburgo,impulsionado pela febre de um iminente ataque de epilepsia.E não posso me impedir de me perguntar: por que Míchkin,o melhor dos homens, aquele que ama aos outros mais doque a si mesmo, deve terminar sua existência reduzido à debilidade, enclausurado em um asilo psiquiátrico?

A literatura pode muito. Ela pode nos estender a mãoquando estamos profundamente deprimidos, nos tornarainda mais próximos dos outros seres humanos que nos cer-cam, nos fazer compreender melhor o mundo e nos ajudar a viver. Não que ela seja, antes de tudo, uma técnica de cuida-dos para a alma; porém, revelação do mundo, ela podetambém, em seu percurso, nos transformar a cada um de nósa partir de dentro. A literatura tem um papel vital a cumprir;mas por isso é preciso tomá-la no sentido amplo e intensoque prevaleceu na Europa até fins do século X I X e que hojeé marginalizado, quando triunfa uma concepção absurda-

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mente reduzida do literário. O leitor comum, que continua a procurar nas obras que lê aquilo que pode dar sentido àvida, tem razão contra professores, críticos e escritores quelhe dizem que a literatura só fala de si mesma ou que apenaspode ensinar o desespero. Se esse leitor não tivesse razão, a leitura estaria condenada a desaparecer num curto prazo.

Como a filosofia e as ciências humanas, a literatura é pensamento e conhecimento do mundo psíquico e social emque vivemos. A realidade que a literatura aspira compreen-der é, simplesmente (mas, ao mesmo tempo, nada é assimtão complexo), a experiência humana. Nesse sentido, pode-se dizer que Dante ou Cervantes nos ensinam tanto sobre a condição humana quanto os maiores sociólogos e psicólogose que não há incompatibilidade entre o primeiro saber e o segundo. Tal é o "gênero comum" da literatura; mas ela temtambém "diferenças específicas". Vimos anteriormente queos pensadores da época do Iluminismo assim como os doperíodo romântico tentaram identificá-las; retomemos suassugestões — outras.

Uma primeira distinção separa o particular e o geral, o individual e o universal. Seja pelo monólogo poético ou pelanarrativa, a literatura faz viver as experiências singulares; jáa filosofia maneja conceitos. Uma preserva a riqueza e a di-versidade do vivido, e a outra favorece a abstração, o que lhepermite formular leis gerais. É o que faz que um textoseja absorvido maior ou menor grau de dificuldade.

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Idiota, de Dostoievski, pode ser lido e compreendido porinúmeros leitores, provenientes de épocas e culturas muitodiferentes; um comentário filosófico sobre o mesmoce ou a mesma temática seria acessível apenas à minoriahabituada a freqüentar esse tipo de texto. Entretanto, paraaqueles que os compreendem, os propósitos dos filósofostêm a vantagem de apresentar proposições inequívocas, aopasso que as metáforas do poeta e as peripécias vividas pelaspersonagens do romance múltiplas interpretações.

Ao dar forma a um objeto, um acontecimento ou umcaráter, o escritor não faz a imposição de uma tese, mas inci-ta o leitor a formulá-la: em vez de impor, ele propõe, dei-xando, portanto, seu leitor livre ao mesmo tempo em que o incita a se tornar mais ativo. Lançando mão do uso evocati-vo das palavras, do recurso às histórias, aos exemplos e aoscasos singulares, a obra literária produz um tremor de senti-dos, abala nosso aparelho de interpretação simbólica, des-perta nossa capacidade de associação e provoca um movi-mento cujas ondas de choque prosseguem por muito tempodepois do contato inicial. A verdade dos poetas ou a deoutros intérpretes do mundo não pode pretender ter o mesmo prestígio que a verdade da ciência, uma vez que, paraser confirmada, precisa da aprovação de numerosos sereshumanos, presentes e futuros; de fato, o consenso público é o único meio de legitimar a passagem entre, digamos, "gostodessa obra" e "essa obra diz a verdade". Ao contrário, o dis-

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curso do cientista — que aspira alcançar umacorrespondência e se apresenta como uma afirmação — pode ser submetido de imediato a uma verificação, pois serárefutado ou (provisoriamente) confirmado. Não precisamosesperar por séculos e interrogar leitores de todos os paísespara saber se o autor diz ou não a verdade. Os argumentosrelacionados logo suscitam contra-argumentos: inicia-se umdebate racional em lugar de se ceder à admiração e ao deva-neio. leitor do texto científico se arrisca menos a confun-dir sedução e exatidão.

A todo momento, um membro de uma sociedade estáimerso num conjunto de discursos que se apresentam a elecomo evidências, dogmas aos quais ele deveria aderir. São oslugares-comuns de uma época, as idéias preconcebidas quecompõem a opinião pública, os hábitos de pensamento, asbanalidades e os estereótipos, aos quais podemos tambémchamar de "ideologia dominante", preconceitos ou clichês.Desde a época do Iluminismo, pensamos que a vocação doser humano exige que ele aprenda a pensar por si mesmo,em lugar de se contentar as visões do mundo previa-mente prontas, encontradas ao seu redor. Mas como chegarlá? No Emílio, Rosseau usa a expressão "educação negativa"para designar esse processo de aprendizagem, sugerindo quese mantenha o adolescente longe de livros, a fim de afastá-lode toda a tentação de imitar a opinião de Pode-se,entretanto, raciocinar de maneira distinta, já que os precon-

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ceitos, sobretudo os atuais, não precisam de livros para seinstalarem de forma permanente no espírito dos jovens: a televisão já passou por lá! Os livros dos quais ele se apropriapoderiam ajudá-lo a deixar as falsas evidências e libertar seuespírito. A literatura tem um papel particular a cumprirnesse caso: diferentemente dos discursos religiosos, moraisou políticos, ela não formula um sistema de preceitos; poressa razão, escapa às censuras que se exercem sobre as tesesformuladas de forma literal. As verdades desagradáveis — tanto para o gênero humano ao qual pertencemos quantopara nós mesmos — têm mais chances de ganhar voz e serouvidas numa obra literária do que numa obra filosófica oucientífica.

Num estudo o filósofo americano RichardRorty propôs caracterizar diversamente a contribuição daliteratura para a nossa compreensão do mundo. Ele recusa o uso de termos como "verdade" ou "conhecimento" paradescrever essa contribuição, afirmando que a literatura fazmenos remediar nossa ignorância do que nos curar de nosso"egotismo", termo entendido como uma ilusão de auto-suficiência. A leitura de romances, segundo ele, tem menos a ver a leitura de obras científicas, filosóficas ou políticasdo que outro tipo bem distinto de experiência: a doencontro outros indivíduos. Conhecer novas persona-gens é como encontrar novas pessoas, a diferença deque podemos descobri-las interiormente de imediato, pois

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cada ação tem o ponto de vista do seu autor. Quantoessas personagens se parecem conosco, mais elas ampliamnosso horizonte, enriquecendo assim nosso universo. Essaamplitude interior (semelhante sob certos aspectos àquelaque nos proporciona a pintura figurativa) não se formula

o auxílio de proposições abstratas, e é por isso quetemos tanta dificuldade em descrevê-la; ela representa,antes, a inclusão na nossa consciência de novas maneiras deser, ao lado daquelas que já possuímos. Essa aprendizagemnão muda o conteúdo do nosso espírito, mas sim o próprioespírito de quem recebe esse conteúdo; muda mais o apare-lho perceptivo do que as coisas percebidas. que o roman-ce nos dá não é um novo saber, mas uma nova capacidade decomunicação seres diferentes de nós; nesse sentido, elesparticipam mais da moral do que da ciência. horizonteúltimo dessa experiência não é a verdade, mas o amor, formasuprema da ligação humana.

Será mesmo necessário descrever a compreensão amplia-da do mundo humano, à qual ascendemos mediante a leitu-ra de um romance, como a correção de nosso egocentrismo,assim como o deseja a descrição sugestiva de Rorty? Ouentão como a descoberta de uma nova verdade de desvela-

verdade necessariamente partilhada por outroshomens? A questão terminológica não me parece ser desuma importância, desde que se aceite a forte relação estabe-lecida entre o mundo e a literatura, assim como a contribui-

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específica do discurso literário relativamente ao discursoabstrato. Aliás, como bem observa Rorty, a fronteira separao texto de argumentação não do texto de imaginação, masde todo discurso narrativo, seja ele fictício ou verídico,desde que descreva um universo humano particular diversodaquele do sujeito: nessa perspectiva, o historiador, o etnó-grafo e o jornalista se vêem ao lado do romancista. Todosparticipam do que Kant, no famoso capítulo da Crítica daFaculdade do Juízo, considerava como um passo obrigatóriono caminho para o "senso comum", ou seja, para nossa pró-pria humanidade: "Pensar colocando-se no lugar de todo e qualquer ser Pensar e sentir adotando o ponto devista dos outros, pessoas reais ou personagens literárias, é o único meio de tender à universalidade e nos permite cumprirnossa vocação. por isso que devemos encorajar a leiturapor todos os meios — inclusive a dos livros que o críticoprofissional considera condescendência, se nãodesprezo, desde Os Mosqueteiros até Harry nãoapenas esses romances populares levaram ao hábito da leitu-ra milhões de adolescentes, mas, sobretudo, lhes possibilita-ram a construção de uma primeira imagem coerente domundo, que, podemos nos assegurar, as leituras posterioresse encarregarão de tornar mais complexas e nuançadas.

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UMA COMUNICAÇÃO INESGOTÁVEL

horizonte no qual se inscreve a obra literária é a verda-de comum do desvelamento ou, se preferirmos, o universoampliado ao qual se chega por ocasião do encontro umtexto narrativo ou poético. Ser verídico, nesse sentido dapalavra, é a única exigência legítima que se pode fazer à lite-ratura; mas, como notou Rorty, essa verdade está fortemen-te associada à nossa educação moral. Gostaria de retornaraqui, pela última vez, a uma página da história literária e reler uma importante correspondência que versou sobre asrelações entre literatura, verdade e moral, as cartas trocadasentre George Sand e Gustave Flaubert. Os dois escritores sãobons amigos e se tratam mutuamente grande afeição e profundo respeito; entretanto, ambos sabem também quenão partilham da mesma concepção da literatura. Ao final de1875 e início de 1876, apenas alguns meses antes da morte

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de Sand, eles trocaram várias cartas notáveis a esse respeito,

nas quais tentam detalhar a natureza do seu desacordo.Uma leitura superficial poderia fazer crer que Sand pede

à literatura que ela se submeta à moral, ao passo queFlaubert reclama para a obra literária somente uma relação

a verdade. E é exato que algumas das fórmulas de Sanda levam a assumir essa inclinação, pois a mostram essencial-mente preocupada o efeito que suas obras produzem noleitor: "Você provoca desolação, e eu diz ela, jáque Flaubert torna as pessoas que o lêem mais tristes,enquanto ela preferia que seus leitores fossem menos infeli-zes. A esse argumento Flaubert responde que seu único obje-tivo é a verdade: "Sempre me esforcei para atingir a alma dascoisas." Se o desacordo entre os dois permanecesse nesseponto, haveria aí pouco interesse, e seríamos tentados a darrazão a Flaubert: o leitor de hoje não crê, e tampouco Flau-bert acreditava, que a função primeira da literatura seja a deenxugar lágrimas. Mas Sand ultrapassa rapidamente esseponto de partida para centrar o debate em dois temas maisessenciais: o lugar do escritor na sua própria obra e a natu-reza da verdade à qual ele ascende.

Sand lamenta que Flaubert não se mostre mais nos seusescritos; ora, este fez de sua não-intervenção no romance umprincípio que não sofre qualquer exceção. Mas Sand retornaao de fato, não é sua ausência da obra que ela censu-ra — aliás," ela acredita que essa ausência é impossível, pois

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não se pode separar a coisa vista da visão subjetiva. "Não sepode ter uma filosofia na alma sem que ela venha à tona.A verdadeira pintura está plena da alma que empurra o pin-cel." Nas suas respostas, Flaubert concorda: ele sabe efetiva-mente que não lhe faltam convicções e que essas impregnama sua obra. Ele sabe também que a sua preocupação a verdade terá necessariamente um efeito moral. "A partir domomento em que uma coisa é Verdadeira, ela é boa. Oslivros obscenos só são imorais porque lhes falta verdade."

que ele pede, em contrapartida, é que essas idéias nãosejam soletradas de forma descritiva, mas que sejam sugeri-das pela narrativa: cabe ao leitor tirar de "um livro a mora-lidade ali presente". Se isso não ocorre, é porque o livro é ruim ou o leitor é um imbecil!

Contudo, a verdadeira crítica de Sand está em outraparte: o que ela deplora não é a ausência de Flaubert de suaobra, mas a natureza dessa presença. Ela gosta de seu amigo,o ora, ela não encontra o homem que conhecenaquele que vive em suas obras. "Nutra-se das idéias e dossentimentos acumulados em sua cabeça e em seu coração

Toda sua vida de afeição, de proteção e de bondadeencantadora e simples prova que você é o tipo singular maisconvincente que existe. Mas, quando se trata de sua relação

sua literatura, você quer, não sei bem por quê, ser outrohomem." que ela censura nele, em suma, é não deixarlugar dentro da sua obra para seres como ele e, por conse-

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não produzir um quadro fiel o bastante do mundo. A exigência primeira de Sand refere-se igualmente à Verdade,não ao objetivo da literatura é representar a existên-cia humana, mas a humanidade inclui também o autor e o seu leitor. "Você não pode se abstrair dessapois o homem é e os homens são o leitor. Por mais quefaça, sua narrativa sempre será uma conversa entre e esse leitor." A narrativa está necessariamente inserida numdiálogo do qual os homens não são apenas o objeto, mastambém os protagonistas.

Sand sabe de todo o esforço que Flaubert faz para, acimade tudo, ser verdadeiro, ainda que o caminho que ele tenhaescolhido passe por esse trabalho obstinado sobre a forma,pois Flaubert acredita numa harmonia secreta, numa relaçãonecessária entre forma e conteúdo. Tal é o seu método:"Quando descubro uma assonância ruim ou uma repetiçãoem uma das minhas frases, tenho certeza de que estou pati-nando no Falso." Não é esse método o que incomoda Sand;para ela, o debate não se centra na maneira de procurar, masna natureza do feliz achado. Escritores como Flaubert "têmmais estudo e talento do que eu. Entretanto, creio que lhesfalta, e a você sobretudo, uma visão mais definitiva e maisampla da vida". quadro vivo que emerge dos livros deFlaubert não é verdadeiro o suficiente, pois é sistemático emdemasia e, por conseguinte, monótono. "Quero ver o homemtal como ele é. Ele não é bom ou mau: é bom e mal. Mas há

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ainda, a nuança, a nuança que é para mim o objetivo daarte." Ela retorna ao tema em sua carta seguinte: "A verdadei-ra realidade é uma mistura de beleza e feiúra, de palidez e

Assim, aqueles que num certo momentoforam chamados de realistas fizeram uma escolha que trai a

eles obedecem a uma convenção arbitrária que lhesexige representar unicamente a face negra do mundo. queos niilistas traem não é o mas o Verdadeiro.

A fonte dessa diferença entre Sand e Flaubert está naprópria filosofia de cada um. Flaubert — que declarava à suaamante Louise Collet "tenho ódio à vida" ou, ainda, "a vidasó é tolerável sob a condição de não se estar — pare-ce ser aos olhos de George Sand, um "católico que anseiapelo ressarcimento", dado que odeia e maldiz a vida como sehouvesse uma alternativa a ela, como se a "vida verdadeira"estivesse em outro lugar. Flaubert age como se esperasseuma existência melhor no além. Ele adotou sem o proclamara doutrina agostiniana segundo a qual o mundo visíveldecaiu e os homens são desprezíveis, enquanto a salvação osaguarda na cidade de Já Sand gosta a cada dia maisda vida presente. "Quanto a mim, quero gravitar até meuúltimo suspiro, não a certeza ou a exigência de encon-trar alhures um bom mas porque o meu único gozo é

* Referência à de Deus, livro escrito por Santo Agostinho entre4 1 2 e 4 2 7 . (N.T.)

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manter-me junto aos meus no caminho da ascese." Essa sabe-doria traz "a ou seja, a aceitação da vida tal comoela é". É o que Sand chama também "o inocente prazer deviver por

desacordo não está, por conseguinte, entre dois ideaisdiferentes: tanto Flaubert quanto Sand reconhecem que a literatura anseia, sobretudo, por uma forma de verdade. Essedesacordo se situa, de fato, no juízo que incide sobre a vera-cidade da narrativa. Nesse aspecto, Flaubert pode apenasconstatar a sua impotência em ir mais adiante. "Não possomudar meus olhos!" "São inúteis as suas pregações; nãoposso ter um temperamento diferente do que tenho." Sand,por sua vez, deve admiti-lo: não é possível escolher total e livremente ser o que se é, e mesmo pessoas tão benevolentesumas as outras como o são Flaubert e Sand não podemseguir tão facilmente os conselhos recebidos. As recomenda-ções que ela faz a Flaubert parecem-nos, por essa razão,ligeiramente inúteis. No entanto, ao iniciar a redação de UmCoração Simples, o escritor anuncia à sua correspondente:"Você vai reconhecer sua influência direta."

Ao evocar essa antiga troca de cartas, podemos ver que,apesar das divergências de interpretação, uma mesma con-cepção da literatura continua a afirmar-se nos dois corres-pondentes: essa concepção permite uma melhor compreen-são da condição humana e transforma o ser de cada um dosseus leitores a partir de seu interior. Não temos todos gran-

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de interesse em aderir a esse ponto de vista? Libertar a lite-ratura do espartilho asfixiante em que está presa, feito dejogos formais, queixas niilistas e solipsista?Isso poderia, por sua vez, levar a crítica a percorrer horizon-tes mais amplos, retirando-a do gueto formalista que interes-sa apenas a outras críticas, proporcionando a ela a aberturapara o grande debate de idéias do qual participa todo conhe-cimento do homem.

efeito mais importante dessa mutação diz respeito aoensino escolar de literatura (do "francês"), porque esse ensi-no se destina a todas as crianças e, através delas, à maioriados é por essa razão que, à guisa de conclusão, gos-taria de retornar a esse tema. A análise das obras feita naescola não deveria mais ter por objetivo ilustrar os conceitosrecém-introduzidos por este ou aquele lingüista, este ouaquele teórico da literatura, quando, então, os textos sãoapresentados como uma aplicação da língua e do discurso;sua tarefa deveria ser a de nos fazer ter acesso ao sentido des-sas obras — pois postulamos que esse sentido, por sua vez,nos conduz a um conhecimento do humano, o qual importaa todos. Como já o disse, essa idéia não é estranha a uma boaparte do próprio mundo do ensino; mas é necessário passardas idéias à ação. Num relatório estabelecido pela Associa-ção dos Professores de Letras, podemos ler: estudo deLetras implica o estudo do homem, sua relação consigomesmo e o mundo, e sua relação com os outros." Mais

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exatamente, o estudo da obra remete a círculos concêntricoscada vez mais amplos: o dos outros escritos do mesmo autor,o da literatura nacional, o da literatura mundial; mas seucontexto final, o mais de todos, nos é efetiva-mente dado pela própria existência humana. Todas as gran-des obras, qualquer que seja sua origem, demandam umareflexão dessa dimensão.

que devemos fazer para desdobrar o sentido de umaobra e revelar o pensamento do artista? Todos os "métodos"são bons, desde que continuem a ser meios, em vez de se tor-narem fins em si mesmos. Mais do que uma receita, gostariade dar aqui um exemplo, o do estudo que o crítico norte-americano Joseph Frank consagrou a Dostoievski; um dosvolumes dessa monografia (que conta um total de cinco) foitraduzido para o francês o título de Dostoievski.

Esse livro é antes de tudo uma biogra-fia, pois certos acontecimentos da vida de Dostoievski têmpapel essencial na compreensão não apenas da gênese, mastambém do sentido de suas obras: por exemplo, sua quaseexecução em praça pública e os quatro anos de prisão que seseguiram, assim como as condições materiais difíceis por quepassa ou as violências físicas que testemunha. Trata-se, igual-mente, de uma história social detalhada da Rússia e daEuropa de meados do século X I X . A tudo isso se acrescentaum debate filosófico: Dostoievski vive num meio em que asidéias de Hegel e Feuerbach, de Bentham e John Stuart Mill

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são consideradas como palavras do Evangelho; e ele asabsorve antes de Outro esclarecimento provémdos abundantes rascunhos e cadernos de notas deixados porDostoievski, o que permite, a partir de uma abordagemgenética, apreender a constituição progressiva do sentidodas obras. Por último, apesar de nada ignorar das diversasinvestigações formalistas ou estruturalistas em análisetextual, Frank sabe utilizá-las de modo a nos fazer ter acessoao pensamento do seu autor.

Aquilo de que nos damos conta, gradualmente, é quetodas essas perspectivas ou abordagens de um texto, longede serem rivais, são complementares — desde que se admitade início que o escritor é aquele que observa e compreendeo mundo em que vive antes de encarnar esse conhecimentoem histórias, personagens, encenações, imagens, sons. Emoutros termos, as obras produzem o sentido, e o escritorpensa; o papel do crítico é o de converter esse sentido e essepensamento na linguagem comum do seu tempo — e pouconos importa saber quais os meios utilizados para atingir seuobjetivo. "homem" e a "obra", a "história" e a "estrutura"também são bem-vindos! E o resultado é este: ao possibilitara inclusão do pensamento do autor no debate infinito de queé objeto a condição humana, o estudo literário de J. Franktorna-se uma lição de vida.

Devemos entender aqui a literatura no seu sentidoamplo, recordando os limites historicamente instáveis dessa

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noção. Portanto, não tomaremos como um dogma inabalávelos axiomas já batidos dos últimos românticos, segundo osquais a estrela da poesia não teria nada em comum a cantilena da "reportagem universal" produzida pela lingua-gem comum. Reconhecer as virtudes da literatura não nosobriga a crer que "a verdadeira vida é a literatura" ou que"tudo no mundo existe para se conduzir a um livro", dogmaque excluiria três quartos da humanidade da "verdadeiravida". Os textos hoje tidos como têm muitoa nos ensinar; e, quanto a mim, eu teria de bom grado torna-do obrigatório, em aulas de literatura, o estudo da carta,infelizmente nada fictícia, que Germaine Tillion escreveu naprisão de Fresnes, endereçada ao tribunal militar alemão, em3 de janeiro de Trata-se de uma obra-prima de huma-nidade, na qual forma e conteúdo são inseparáveis; os alunosteriam muito a aprender esse Não "assassinamosa literatura" (retomando o título de um panfleto recente)quando também estudamos na escola textos "não-literários",mas quando fazemos das obras simples ilustrações de umavisão formalista, ou niilista, ou solipsista da literatura.

Vemos que se trata aqui de uma ambição bem maisampla do que aquela hoje proposta aos alunos. Além disso,as mudanças implicadas teriam de resto conseqüências ime-diatas no espectro profissional. Sendo o objeto da literaturaa própria condição humana, aquele que a lê e a compreendese tornará não um especialista em análise literária, mas um

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conhecedor do ser humano. Que melhor introdução à com-preensão das paixões e dos comportamentos humanos doque uma imersão na obra dos grandes escritores que se dedi-cam a essa tarefa há milênios? E, de imediato: que melhorpreparação pode haver para todas as profissões baseadas nasrelações humanas? Se entendermos assim a literatura e orientarmos dessa maneira o seu ensino, que ajuda mais pre-ciosa poderia encontrar o futuro estudante de direito ou deciências políticas, o futuro assistente social ou psicoterapeu-ta, o historiador ou o sociólogo? Ter como professoresShakespeare e Sófocles, Dostoievski e Proust não é tirar pro-veito de um ensino E não se vê que mesmo umfuturo médico, para exercer o seu ofício, teria mais a apren-der esses mesmos professores do que os manuaispreparatórios para concurso que hoje determinam o seu des-tino? Assim, os estudos literários encontrariam o seu lugarno coração das humanidades, ao lado da história dos even-tos e das idéias, todas essas disciplinas fazendo progredir o pensamento e se alimentando tanto de obras quanto de dou-trinas, tanto de ações políticas quanto de mutações sociais,tanto da vida dos povos quanto da de seus indivíduos.

Se aceitarmos essa finalidade para o ensino literário, o qual não serviria mais unicamente à reprodução dos profes-sores de Letras, podemos facilmente chegar a um acordosobre o espírito que o deve conduzir: é necessário incluir asobras no grande diálogo entre os homens, iniciado desde a

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noite dos tempos e do cada um de nós, por mais ínfimoque seja, ainda participa. nessa comunicação inesgotável,vitoriosa do espaço e do tempo, que se afirma o alcance uni-versal da literatura", escrevia Paul A nós, adul-tos, nos cabe transmitir às novas gerações essa herança frágil,essas palavras que ajudam a viver melhor.

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N O T A S

1. S. Doubrovsky, T. Todorov dere, Paris, 1971, p. 6 3 0 .

2. J. Rousset, Forme et Paris, José Corti, p. II.3. Cf. T. Todorov, du symbole. Paris, 1 9 7 7 ; M. H.

Doing Things with Texts, Nova York, Norton, 1 9 8 9 ;L. Ferry, Homo Paris, Grasset, 1990 .

4. Platão, Filebo, 60c .5. A. Shaftesbury, Characteristics of Matters, Opinions, Times,

ed. de 1 7 9 0 , t. 3, pp. 1 5 0 - 1 5 1 .6. G. Vico, Science nouvelle, Paris, 1 9 5 3 , 8 2 1 .7. L. Ferry, op. p. 96 .8. G.E. Lessing, Laokoon, Bd. 5 / 2 , Frankfurt, Deutscher

Klassiker Verlag, cap. p. 85 .9. Idem, Hamburgische Dramaturgie, Werke, Bd. 6, Frankfurt,

Deutscher Klassiker Verlag, 1 9 5 8 , § 3 4 , p. 3 4 8 , p. 3 5 0 ; 3 0 ,p. 3 3 2 .

§ 15 , p. 2 5 7 ; 4 9 , p. 4 2 6 .11. B. Constant, Paris, intime,

p. 2 3 2 ; sur la pp. 9 0 8 , 9 2 0 .12. Idem, "Esquisse d'un essai sur la du

(Euvres M. Niemeyer, 1 9 9 5 , t. vol. 1,p. 5 2 7 .

G. de De la littérature considérée dans ses rapports avecinstitutions sociales, Paris, 1991 , p. 66 .

14. Baudelaire, 2 vol., Paris, Gallimard, 1 9 7 5 -1 9 7 6 , t. II, 3 3 3 .

15 . p. 127; 2. vol., Gallimard, 1 9 7 3 . t. I,pp. 3 3 6 - 3 3 7 ; (Euvres t. II, p. 4 2 1 , p. 4 0 7 ; p. 182.

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TODOROV

16. t. II, p. 4 5 7 , p. 1 5 3 .17. Carta a Louise Collet de 1 5 - 1 6 / 5 / 1 8 5 2 , Correspondance, Paris,

Gallimard, t. II, p. 91.18 . O. Wilde, "Le déclin du mensonge", Paris, Gallimard,

1 9 9 6 , p. "Le Critique", p. 8 6 5 , p. 853 .19 . K. Ph. Moritz , Schriften zur Aesthetik und Poetik,

M. 1 9 6 2 , p.2 0 . M. Larionov, Une avant-garde explosive, Lausanne,

d'homme, 1 9 7 8 , pp. 7 2 - 7 3 ; K. Malevitch, Écrits, t. I, Lausanne, d'homme, 1993 , p. 102; Livchits, apud

L'Avant-Garde russe 1907-1927, Paris, Flammarion, 1 9 9 5 , p. 6.2 1 . J. S. Mill, Autobiography, Boston, Houghton-Mifflin Company,

1 9 6 9 , cap. 5, pp. 8 1 , 8 9 ; 1 8 7 4 ,pp. 127 , 141 , 142 .

2 2 . Ch. Delbo, Spectres, mes compagnons, Paris, Berg International,1 9 9 5 , p. 5.

R. Rorty, "Redemption from Egotism. James and Proust as spiritualexercices", 3 :3 , 2 0 0 1 .

2 4 . E. Kant, t. II, Paris, Gallimard, 1 9 8 5 , p . 1 .073.

2 5 . G. Sand, Correspondance, Paris, Flammarion, 1 9 8 1 ,pp. 5 1 0 - 5 3 0 .

2 6 . Car ta de 2 1 / 1 0 / 1 8 5 1 , p . carta de 0 5 / 0 3 / 1 8 5 3 , p . 2 5 5 ,Correspondance, op. cit.

27. Carta de 1 2 / 0 1 / 1 8 7 6 , p. 5 1 6 ; carta de 0 8 / 1 2 / 1 8 7 4 , p. 4 8 6 ; cartade p. 4 8 3 , G. Flaubert, G. Sand, Correspondance,

cit. 2 8 . J. Frank, Les années miraculeuses, Aries, Actes Sud,

1 9 9 8 .2 9 . G. Tillion, Paris, 1988 , pp. 3 5 - 4 0 .3 0 . "Une communication sur de Paul

Paris, Gallimard, 1 9 9 5 , p. 2 2 8 .

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