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Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 31 • Dezembro/ Janeiro de 2008 Pág. 24 Jornal da UFRJ http://www.jornal.ufrj.br As raízes de Cora Págs. 12 e 13 Págs. 4 e 5 Darfur: tragédia em curso Personalidade Págs. 18 e 19 Geraldo Prado O Brasil não pertence às elites” Professor da Faculdade de Direito da UFRJ e desembargador do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Geraldo Luiz Mascarenhas Prado, perto de completar 20 anos de magistratura, opina, nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, acerca das drogas, dos direitos humanos, do aborto e do Plano de Reestruturação e Expansão (PRE) da UFRJ, polêmicas que, segundo ele, devem ser enfrentadas e decididas. Geraldo Prado afirma que a ampliação do acesso ao Ensino Superior é um desafio histórico que aponta para a transformação da realidade brasileira. Para ele, não será “restringindo o acesso que conseguiremos essa façanha”. Que tal uma segunda vida? A hora e a vez da Ciência e Tecnologia Essa é a proposta do Second Life, uma plataforma 3D (tridimensional) que virou febre em vários países. O slo- gan de um mundo digital totalmente imaginado e criado por cada um de seus moradores, torna o SL, como é chamado pelos cibernéticos, apreciado por muitos e criticado por outros. Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da UFRJ, Angela Uller acredita que um ambiente favorável a investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação começa a se desenhar no Brasil. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, sustenta que o problema do país não é só o baixo investimento – “0,97% do Produto Interno Bruto (PIB)” – em Ciência e Tecnologia, mas a inconstância das ações e programas do governo. A professora aponta que o uso do conhecimento foi res- ponsável por 50% do PIB dos países mais desenvolvidos. Mas, quem deve desenvolver a atividade de inovação tecnológica no Brasil? Para ela, todos os atores são importantes: a universidade, as empresas e as instituições de pesquisa. No Sudão, maior país da África, acontece a pior tragédia de nossos dias, um genocídio que transcorre sem chamar a atenção da opinião pública internacional. Quebrando correntes e preconceitos, o III Encontro de Professores de Literaturas Africanas prova que o país caminha não apenas para vislumbrar parte de suas raízes, mas para conhecê-las com profundidade, principalmente aquelas oriundas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Todos, apesar dos sotaques, unidos pela língua portuguesa. O Brasil quer conhecer a África Págs. 6 a 10 Debate reaceso A presença de economistas desenvolvimentistas na direção do Ipea, órgão de pesquisa que dá suporte às políticas governamentais, causa reação e polêmica sobre a condução da economia brasileira. Págs. 16 a 17 Direitos em xeque Angela Uller Págs. 12 e 13 Uma linha comum norteia os direitos humanos no século XXI: que o anseio por segurança não os relegue a um segundo plano, aliada à urgência em vencer o preconceito que associa a defesa desses inalienáveis valores universais à conivência com o crime. Págs. 14 e 15 Especial

UFRJ Jornal da · O slo-gan de um mundo digital totalmente imaginado e criado por cada um de seus moradores, torna o SL, como é chamado pelos cibernéticos, apreciado por muitos

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Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 31 • Dezembro/ Janeiro de 2008

Pág. 24

Jornal da

UFRJhttp://www.jornal.ufrj.br

Gabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 31 • Dezembro/ Janeiro de 2008

UFRJUFRJGabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 31 • Dezembro/ Janeiro de 2008

UFRJGabinete do Reitor – Coordenadoria de Comunicação da UFRJ • Divisão de Mídias Impressas • Serviço de Jornalismo Impresso • Ano 3 – nº 31 • Dezembro/ Janeiro de 2008

UFRJ As raízes de Cora

Págs. 12 e 13

Págs. 4 e 5

Darfur: tragédia em curso

Personalidade

Págs. 18 e 19

Geraldo Prado

“O Brasil não pertence às

elites”Professor da Faculdade de Direito da UFRJ e desembargador do

Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Geraldo Luiz Mascarenhas Prado, perto de completar 20 anos de magistratura, opina, nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, acerca das drogas, dos direitos humanos, do aborto e do Plano de Reestruturação e Expansão (PRE) da UFRJ, polêmicas que, segundo ele, devem ser enfrentadas e decididas.

Geraldo Prado afirma que a ampliação do acesso ao Ensino Superior é um desafi o histórico que aponta para a transformação da realidade brasileira. Para ele, não será “restringindo o acesso que conseguiremos essa façanha”.

Que tal uma segunda vida?

A hora e a vez da Ciência e

Tecnologia

Essa é a proposta do Second Life, uma plataforma 3D (tridimensional) que virou febre em vários países. O slo-gan de um mundo digital totalmente imaginado e criado por cada um de seus moradores, torna o SL, como é chamado pelos cibernéticos, apreciado por muitos e criticado por outros.

Pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa da UFRJ, Angela Uller acredita que um ambiente favorável a investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação começa a se desenhar no Brasil. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, sustenta que o problema do país não é só o baixo investimento – “0,97% do Produto Interno Bruto (PIB)” – em Ciência e Tecnologia, mas a inconstância das ações e programas do governo. A professora aponta que o uso do conhecimento foi res-ponsável por 50% do PIB dos países mais desenvolvidos. Mas, quem deve desenvolver a atividade de inovação tecnológica no Brasil? Para ela, todos os atores são importantes: a universidade, as empresas e as instituições de pesquisa.

No Sudão, maior país da África, acontece a pior tragédia de nossos dias, um genocídio que transcorre sem chamar a atenção da opinião pública internacional. Quebrando correntes e preconceitos, o III Encontro

de Professores de Literaturas Africanas prova que o país caminha não apenas para vislumbrar parte

de suas raízes, mas para conhecê-las com profundidade, principalmente aquelas

oriundas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Todos, apesar dos sotaques, unidos

pela língua portuguesa.

O Brasil quer conhecer a África

Págs. 6 a 10

Debate reacesoA presença de economistas desenvolvimentistas na direção do Ipea, órgão de

pesquisa que dá suporte às políticas governamentais, causa reação e polêmica sobre a condução da economia brasileira.

Págs. 16 a 17

Direitos em xeque

Angela Uller

Págs. 12 e 13

Uma linha comum norteia os direitos humanos no século XXI: que o anseio por segurança não os relegue a um segundo plano, aliada à urgência em vencer o preconceito que associa a defesa desses inalienáveis valores universais à conivência com o crime.

Págs. 14 e 15

Especial

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2 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Reitor: Aloísio Teixeira – Vice-reitora: Sylvia da Silveira Mello Vargas – Pró-reitoria de Graduação – PR-1: Belkis Valdman – Pró-reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa – PR-2: Ângela Maria Cohen Uller – Pró-reitoria de Planejamento e Desenvolvimento – PR-3: Carlos Antônio Levi da Conceição – Pró-reitoria de Pessoal – PR-4: Luiz Afonso Henriques Mariz – Pró-reitoria de Extensão – PR-5: Laura Tavares Ribeiro Soares – Superintendente de Graduação SG-1: Eduardo Mach Queiroz – Superintendente de Ensino SG-2: Nei Pereira Junior – Superintendente Administrativa SG-2: Regina Dantas – Superintendente SG-3: Célia Alves Soares Loureiro – Superintendente SG-4: Roberto Antônio Gambine Moreira – Superintendente SG-5: Isabel Cristina Azevedo – Superintendência Geral de Administração e Finanças – SG-6: Milton Flores – Chefe de Gabinete: João Eduardo do Nascimento Fonseca – Forum de Ciência e Cultura: Beatriz Resende – Prefeitura Universitária: Hélio de Mattos Alves – Escritório Técnico da Universidade – ETU: Maria Ângela Dias – Sistema de Bibliotecas e Informação/SiBI: Paula Maria Abrantes Cotta de Melo – Coordenadoria de Comunicação: Fortunato Mauro.

Expediente

Fotolito e impressão – Newstec Gráfi ca e Editora – 25 mil exemplares

JORNAL DA UFRJ É UMA PUBLICAÇÃO MENSAL DO SERVIÇO DE JORNALISMO IMPRESSO DA COORDENADORIA DE COMUNICAÇÃO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO – Av. Pedro Calmon, 550 – Prédio da Reitoria – 2º andar – Gabinete do Reitor – Cidade Universitária – Ilha do Fundão – Rio de Janeiro – RJ – CEP 21941-901 – Telefone: (21) 2598 1621 – Fax: (21) 2598 1605 – [email protected] – Supervisão Editorial: João Eduardo Fonseca – Editor Chefe/Jornalista Responsável: Fortunato Mauro (Reg. 20732 MTE) – Co-edição: Rodrigo Ricardo – Pauta: Fortunato Mauro – Reportagem: Bruno Franco, Coryntho Baldez, Rafaela Pereira e Rodrigo Ricardo – Projeto Gráfi co: José Antônio de Oliveira – Edito-ração Eletrônica: Anna Carolina Bayer – Ilustração: Anna Carolina Bayer, Jefferson Nepomuceno e Marco Fernandes – Revisão: Mônica Aggio – Estagiária de Jornalismo ECO/UFRJ: Mônica Reis – Fotografi a: Marco Fernandes.

Instituições interessadas em receber esta publicação, entrar em contato pelo e-mail [email protected]

Cartas

Universidade

Sou estudante da Faculdade de Letras e leitora assídua do Jornal da UFRJ desde suas primeiras edições. Por isso é com pesar que devo reconhecer que nas últimas edições sua qualidade caiu signifi cativamente. E em vários sentidos. O texto, por exemplo, se tornou menos sofi sticado e, em particular, menos elegante que o das edições anteriores. Há um sem número de passagens truncadas que mereciam mais elaboração lingü-ística, afi nal um jornal de uma universidade do peso da nossa não pode abrigar a linguagem “fast food” da grande imprensa. O mais grave, porém, do meu ponto de vista, é o comprometimento da publicação com as posições da Reitoria deixando, assim, de refl etir mais plenamente a riqueza de pontos de vista de nossa comunidade. Nesse es-forço para alinhar-se, a qualquer custo, às posições da administração até os mortos foram conclama-dos, afi nal eles não têm como reclamar do uso

Os membros do Gaati (Grupo de Acompa-nhamento e Análise do Terrorismo Internacio-nal) gostariam de fazer algumas breves consi-derações sobre a questão levantada pelo econo-mista Amauri Pezzuto Jr. (Iceas/UFRJ) em carta publicada na 30ª edição do Jornal da UFRJ, uma vez que nos consideramos co-responsáveis pelo conteúdo do artigo “Faces do Terror” (Edição 29). Antes, contudo, manifestamos nossa gra-tidão às colocações muito pertinentes do leitor que, com suas palavras, evidencia apurado senso crítico e louvável atenção ao tema.

Primeiramente, cabe destacar que o Gaati tem como objeto de estudo e tema prioritário do debate proposto no artigo o que denomi-namos neoterrorismo. Pelo termo entendemos uma nova fase do terrorismo caracterizada pela (1) internacionalização dos grupos políticos de (2) perfi l fundamentalista organizados em (3) formato de células, que realizam (4) ataques em massa, comumente (5) de caráter suicida, contra (6) alvos indiscriminados, inovando com relação aos grupos tradicionais pelo (7) uso extensivo da mídia como instrumento de propaganda de seus atos e agendas políticas. Consideramos os atentados de 1993 contra o World Trade Center como o momento inaugural desta nova etapa e vemos na rede al-Qaeda o exemplo mais fi dedig-no desse fenômeno que tem ganhado, cada vez mais, a atenção dos noticiários internacionais. As Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), como o senhor Pezzuto Jr. lembrou com propriedade, tratam-se de uma “narco-guerri-lha”. Enquanto guerrilha, ao contrário de grupos como a al-Qaeda, as Farc buscam obter domínio sobre um determinado território. Ademais, os terroristas da al-Qaeda não são identifi cáveis por uniformes, podendo se passar por qualquer cidadão comum, diferentemente das Farc, que utilizam fardas e possuem uma bandeira. Por

que fazem de seus textos. É o caso da edição de outubro em que passagens das obras de Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira foram pinçadas, arbitrariamente, retiradas do contexto e servidas numa fantasmagórica entrevista de gosto duvidoso, como sustentação às propostas do PRE da Reitoria. O resultado é que, dessa forma, diferenças importantes entre os autores são apagadas, matizes relevantes suprimidos e nuances substanciais desconsideradas. Para dizer o mínimo, uma escolha editorial enviesada aliada a certa precariedade intelectual.

Por fi m, lamento a supressão da divulgação de livros e publicações da Editora da UFRJ e de do-centes da universidade. Um serviço que merece ser retomado urgentemente.

Mariana PiccinoEstudante da Faculdade de Letras/UFRJ

fi m, as Farc têm projeto político e atuação militar restritos ao âmbito nacional, embora seus atos repercutam fortemente na esfera internacional. Neste particular, vale lembrar a reação norte-americana expressa pelo Plano Colômbia e a Guerra às Drogas, assim como potenciais refl e-xos em países fronteiriços, tais como a fuga de guerrilheiros para o território brasileiro, vene-zuelano e equatoriano. O exemplo mais recente é a polêmica acerca das negociações para a liber-tação de Ingrid Betancourt (franco-colombiana ex-candidata à presidência da Colômbia, que desde 23/2/2002 é mantida sob controle das Farc), até pouco tempo mediadas por Hugo Chávez com amplo apoio do governo francês. Em suma, o caso das Farc representa uma fase anterior do terrorismo à qual o Gaati dispensa atenção, posto que de indiscutível pertinência, mas que não se confi gura como nosso objetivo prioritário de acompanhamento e análise. Nesse sentido, não houve esquecimento e, de forma alguma, viés ideológico, mas sim um recorte in-tencional que nos permitiu detalhar o fenômeno do neoterrorismo — este sim, nosso principal objeto de trabalho. Gostaríamos de agradecer mais uma vez ao senhor Amauri Pezzuto Jr. pelo ensejo que nos permitiu esclarecer melhor este ponto, uma vez que a dúvida provavelmente é compartilhada por outros tantos leitores. Agradecemos também ao Jornal da UFRJ pela admirável disposição em servir de espaço para este e outros profícuos debates.Cordialmente,

César Dutra Inácio,Arthur Bernardes do Amaral, Bárbara Lima, Joanna Vasconce-

los Cordeiro e Élson LimaGrupo de Acompanhamento e Análise do

Terrorismo Internacional (GAATI-TEMPO/IFCS/UFRJ)

Radiografandoo vestibular

Júlia Vieira, do Olhar Virtual

Há 20 anos, a UFRJ organiza seu próprio concurso de acesso aos cursos de graduação e o processo fi gura entre os mais concorridos do país. Em 2008, houve mais de 47 mil candida-tos para 6.825 vagas distribuídas entre os 145 cursos oferecidos. A entrada no mundo uni-versitário torna-se cada vez mais difícil, pois o vestibular afunila a seleção a cada ano.

Porém, qual é o perfil dos alunos que preenchem essas vagas tão disputadas? Luiz Otávio Langlois, coordenador da Comissão do Vestibular da UFRJ, lembra: “Quanto maior a concorrência por determinado curso, mais elitizado será o perfi l dos seus alunos”. Pode parecer uma grande injustiça ou ainda que isso aconteça devido a um perfi l da própria universidade, mas acreditar nisso é querer não enxergar a realidade. “A tendência é os alunos mais bem preparados tornarem-se donos das vagas mais concorridas. Isto é um problema estrutural do país que nega aos mais carentes uma base para que concorram com os alunos de escolas particulares, de onde vêm 64% dos alunos”.

É muito difícil dissociar o perfi l do aluno que tenta do que passa. A maior parte dos vestibulandos se declara branca e o mesmo acontece com os alunos aprovados. Dos que obtém sucesso nas provas 65% são brancos, enquanto em um total de quase 7 mil alunos, apenas 356 se dizem negros.

Alternativas de ingresso Atualmente a instituição discute – no

contexto da proposta de Plano Qüinqüenal de Desenvolvimento (PDI) e do Programa de Reestruturação e Expansão (PRE) – ma-neiras de democratizar o acesso, repensando o vestibular e refl etindo sobre mecanismos de

avaliação continuada dos estudantes do nível básico. A discussão vem se desenvolvendo há alguns anos, mas ainda não houve um deno-minador comum que atenda aos interesses da universidade e dos alunos.

O professor do Colégio de Aplicação (Cap/UFRJ), Maurício Luz, defensor de um sistema de acesso diferenciado, ressalta duas formas distintas possíveis de modifi car a entrada. Uma delas seria através do sistema de cotas para alunos de escolas públicas e a outra seria a entrada de alunos pré-selecionados, elimi-nando a etapa do vestibular. Qualquer que fosse o novo sistema adotado, haveria uma signifi cativa inclusão social, o que seria capaz de modifi car o perfi l do aluno da UFRJ.

Outra possibilidade seria a reserva de 5% das vagas para alunos da rede pública de en-sino, pré-selecionados por seus professores, após serem orientados pelo Programa de Formação Continuada oferecido pela UFRJ. Esses alunos escolhidos passariam por um curso de seis meses, que funcionaria como um processo de adaptação, e após este período es-tariam aptos a ingressar na universidade, sem ter que prestar o exame regular. “O Vestibular da UFRJ é efi caz e muito bom naquilo que se propõe: selecionar poucos dentre os diversos candidatos. O concurso não é um sistema de avaliação, sim de seleção. Através das provas verifica-se a formação do aluno, mas não há como avaliar que tipo de universitário e profi ssional ele será”. Luz ainda destaca que encontrar outras maneiras de acesso é essen-cial, inclusive com outros pontos de vista. “Dar voz a outras classes sociais seria interessante para que fosse gerado um debate acerca de questões que hoje não passam perto do meio acadêmico”.

***

Vestibular 2008: mais de 47 mil candidatos para 6.825 vagas.

Vem aí o Calendário 2008 da UFRJ, que rememora a geração realista capaz de exigir o impossível. Como diz em sua abertura, é “dedicado aos que, generosamente, doaram a imaginação de sua juventude às lutas por liberdade”. O trabalho traz fotografi as e um histórico dos acontecimentos do ano de 1968.

Calendário 2008

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Dezembro/Janeiro •2008 3UFRJJornal da

Universidade

A Universidade mantém, na cidade do litoral fluminense, o Núcleo em Ecologia e Desenvolvimento Sócio-Ambiental de Macaé (NUPEM/UFRJ). A mais avançada iniciativa da instituição para a interiorização de atividades acadêmicas, em graduação, pesquisa e extensão, que democratiza e descentraliza não apenas o compartilhamento de conhecimento, como a produção do mesmo.

A parceria entre UFRJ e Macaé começou, em 1992, com o projeto Ecologia das lagoas costeiras do Norte Fluminense (ECOlagoas), que sistematizava e aprofundava pesquisas do professor Francisco Estevez, do Laboratório de Limnologia, do Instituto de Biologia, da UFRJ. No ano seguinte, em convênio com a prefeitura, foi criado, no Parque de Exposições Latiff Mussi, o NUPEM. Em 2006, o Núcleo passou a sediar o primeiro curso da UFRJ em um campus avançado: Licenciatura em Ciências Biológicas, vinculado ao Instituto de Biologia. Em 2008, também haverá os cursos de Licenciatura em Química e Farmácia, recentemente aprovados pelo CEG (Conselho de Ensino em Graduação).

A educação é uma prioridade da prefeitura macaense, em particular no que tange à cooperação com a UFRJ. Como exemplo da reorganização dos investimentos que a prefeitura vem fazendo no setor, Mussi explica que o município gasta 10 milhões de reais em ônibus para mandar estudantes a outras cidades, para complementarem seus estudos. “Queremos reverter esse investimento à estrutura de ensino municipal”, afirma.

Juntamente com professor Aloísio Teixeira, estiveram presentes ao encontro na prefeitura: Antônio Ledo, diretor da Faculdade de Medicina,

Cidade universitária em Macaé

O reitor Aloísio Teixeira encontra-se com o prefeito de Macaé, Riverton Mussi, e visita o complexo universitário, ainda em construção, que abrigará os futuros cursos da UFRJ.

Bruno Franco

Francisco Estevão, diretor do Nupem, Carlos Rangel, diretor da Faculdade de Farmácia, Maria Fernanda S. Quintela da C. Nunes, do Instituto de Biologia, Eduardo Mach Queiroz, superintendente da Pró-Reitoria de Graduação (PR-1) e Cássia Turci, diretora do Instituto de Química.

Segundo o reitor, a UFRJ valoriza de forma intensa sua liderança nesse processo (de cooperação entre as universidades sediadas na capital e Macaé). De acordo com Aloísio Teixeira, o governo federal sozinho não dará conta da universalização do ensino superior, portanto deve haver interação entre as diversas esferas de governo, como ocorre em Macaé.

Criando raízesA experiência do Nupem é tida pela Reitoria,

como inovadora e integradora, visando superar a fragmentação histórica do modelo universitário brasileiro. “É o primeiro passo para algo maior. A UFRJ quer propiciar que Macaé e a região que gravita ao seu redor tenham sua universidade. Somos apenas coadjuvantes nesse processo, mas estamos aqui para criar raízes. Para juntos com vocês (autoridades macaenses) gerarmos o único recurso realmente renovável: o conhecimento”, almeja o reitor.

Para Estevez, pioneiro na parceria entre a universidade e o município, é importante estabelecer “massa crítica” em Macaé. “Não apenas ensino, mas pesquisa, pois ela é absolutamente fundamental para o desenvolvimento sustentável. Conhecimento é moeda de troca fundamental no mundo atual”, argumenta o professor, para quem essa tem de ser uma política permanente do município e não apenas da atual gestão (Riverton Mussi). O

reitor antecipou que novas iniciativas vindas da Escola Politécnica e da Faculdade de Medicina, cujo impacto mudaria a história do SUS (Sistema Único de Saúde) na região. Já em 2008, um laboratório de estudos de saúde será instalado e os cursos de Farmácia e Química têm projetos conjuntos para estruturarem uma farmácia popular. O Horto Municipal de Macaé está sendo recuperado, inclusive com a criação de uma ala para fitoterápicos, o que auxiliará nesse objetivo.

Em relação ao laboratório – cujo nome, ainda a ser definido, poderia ser Laboratório de Estudos em Saúde e Sociedade de Macaé

– Antônio Ledo explica que o objetivo é conhecer as prevalências epidemiológicas, as enfermidades mais comuns na região e mapear suas necessidades. O diretor da FM/UFRJ garante que o projeto começará este ano, antes da ida da Faculdade de Medicina a Macaé.

Para o diretor da Faculdade de Medicina, é importante interiorizar pesquisa e extensão, pois há poucos pesquisadores no estado fora da capital. “O resultado disso será transformar Macaé em um pólo regional de cultura”, acredita Ledo, que espera com a experiência na região ajudar a FM/UFRJ em projetos como Saúde da Família e atenção básica.

Embrião de universidade públicaO novíssimo complexo universitário

(as obras ainda estão em conclusão) ocupa um terreno de 95 mil m2. As confortáveis e funcionais instalações contarão com complexo poliesportivo, centro de artes, trinta salas de aula por bloco, praça de alimentação, auditório para 1.200 lugares e capela ecumênica. Os cursos de engenharia – caso a Politécnica confirme sua participação no Nupem – serão instalados nessa estrutura.

No complexo universitário já funcionam três cursos da Universidade Federal Flumi-nense (UFF): Direito, Ciências Contábeis e Administração, além dos cursos de Sistemas da Informação, Administração e Engenharia de Produção da Faculdade Professor Miguel Ângelo da Silva Santos (FeMASS), entidade mantida pela Fundação Educacional de Macaé (Funemac).

Na visão do professor Aloísio Teixeira, o Brasil não conhece experiências tão bem sucedidas – quanto essa – de interação entre governo federal e governo municipal, para tornar o ensino superior um bem a serviço de todos. “Este poderá ser o embrião da universidade pública de Macaé e não apenas de um campus da UFRJ”, frisa o reitor.

O complexo universitário ocupa terreno de 95 mil m2 e contará com trinta salas de aula por bloco.

Reitor e prefeito conversam sobre a parceria. Farmácia e Química têm projetos conjuntos para estruturarem uma farmácia popular.

Vestibular 2008: mais de 47 mil candidatos para 6.825 vagas.

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4 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Bruno Francoilustração Jefferson Nepomuceno

Internacional

A crise teve sua gênese em um atentado perpetrado pelo grupo Exército-movimento de Libertação Sudanês (Sudanese Liberation Army/Movement – SLA/M) contra o aeropor-to de El Fasher, em Darfur, respondido com violência pela forças militares e as milícias. Desde então, informa Nizar Messari, em artigo publicado no site do Laboratório de Estudos do Tempo Presente – Tempo/UFRJ, “as execuções, os estupros e as intimidações contra a população civil apenas pioraram e se generalizaram sem nenhuma resposta inter-nacional significativa e decisiva”.

DarfurTragédia em cursoNo Sudão, maior país da África, acontece a pior tragédia de nossos dias,um genocídio que transcorre sem chamar a atenção da opinião pública internacional.

As estatísticas preliminares da guerra civil são alarmantes: mais de 450 mil pessoas assassinadas; três milhões expulsos de suas casas e quatro milhões dependendo da ajuda humanitária internacional para se alimentar.

O Sudão é um país majoritariamente islâmico (70% de sua população professa esta religião), há 25% de animistas (crenças politeístas africanas) e 5% de cristãos. Desde a independência do país, o governo represen-tante da maioria tem procurado estabelecer a Sharia (lei islâmica) como fonte do Direito no país. A resposta se deu com a organização,

pela minoria cristã, do Sudanese Liberation Army (SLA).

De acordo com Messari, embora o exército não ataque as populações civis, essa tarefa é le-vada a cabo pela milícia Janjaweed (jan – diabo e jaweed – cavalo, em árabe), que tem queima-do plantações e vilarejos, estuprado mulheres e dizimado aldeias, em total impunidade. Os ataques visam sobretudo as tribos Fur, Mas-selit e Zaghawa, vinculadas ao SLA, que hoje integra o NRF (National Redemption Front). Na avaliação de Franklin Trein – professor do programa de pós-graduação em Ciência

Política do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS/UFRJ) – considerando-se as etnias separadamente, “temos que falar de um permanente genocídio, uma vez que vários grupos humanos foram levados à condição de extermínio, da qual dificilmente poderão se recuperar”, avalia.

Após vinte anos de conflito sem vitória absoluta de qualquer um dos lados, o gover-no e o SPLA acordaram a participação dos sulistas no governo central, presidido pelo general Omar Hassan Ahmad al-Bashir, no poder desde 1989, e a autonomia do sul do

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Dezembro/Janeiro •2008 5UFRJJornal da

Internacional

“A Casa Branca combatia o SPLA

há vinte anos, mas hoje apóia

o movimento separatista em

nome da contenção do processo de

islamização das populações da

região.”

“As execuções, os estupros e as intimidações a população civil

apenas pioraram e se generalizaram sem nenhuma resposta

internacional signifi cativa e

decisiva”

Segurança. China e Rússia demonstram desconfiança em relação a intervenções humanitárias. “Tal desconfiança tem a ver com seus ‘telhados de vidros’, ou seja a fragilidade da situação humanitária nos seus próprios territórios”, explica o professor.

Os Estados Unidos têm sido muito participativos na questão – ainda que vistos com desconfiança devido às suas últimas intervenções internacionais. Em 2003, Washington liberou recursos, para auxílio ao governo sudanês e ajuda humanitária, que perfizeram US$2,4 bilhões. Em 2006, cerca de US$450 milhões em ajuda humanitária a campos de refugiados em Darfur e no leste do Chade (país vizinho ao Sudão) foram aprovados pelo Senado norte-americano.

Nairóbi (Quênia) - No 7º Fórum Social Mundial, a Organização de Direitos Humanos do Sudão protesta contra a presença de tropas norte-americanas na região de Darfur.

A primeira organização a tentar intervir, na catástrofe em curso no Sudão, foi a União Africana por meio da AMIS (representação africana no Sudão). Para Messari, os 7 mil soldados da AMIS presentes na região desde 2004 têm sido fundamentais à proteção de diversos vilarejos, que se não estivessem sob sua guarda seriam brutalmente dizimados. Não obstante, “os soldados dispõem de uma reduzida infra-estrutura de comunicação e transporte, de armas leves e de defesa, o que não lhes permite atuar de maneira decisiva no campo”, revela Messari.

Ainda que seu ex-secretário-geral, Kofi Annan, tenha definido a situação sudanesa como a maior tragédia de nossos tempos, a ONU atua de forma limitada, por causa dos interesses políticos representados no seu órgão máximo, o Conselho de

Intervenções sob desconfi ança

país. Em 2005, o acordo de paz fi xado entre as partes e monitorado pela UNMIS (repre-sentantes das Nações Unidas no Sudão, em inglês, United Nations Mission in Sudan) fi xou um prazo de seis anos para a realização de um referendo que pode cul-minar na independência das províncias do sul do Sudão.

Antiga NúbiaO Sudão compreen-

de um território de 2,5 milhões de km2, é o mais extenso país africano. Pouco mais da metade dessas terras é desértica e só o sul tem solos mais férteis, em condições de cultivo agrícola. Assim, mesmo tendo um subsolo rico em petróleo e outros recursos minerais, suas populações foram sempre muito pobres.

A região – antigo rei-no da Núbia – esteve, historicamente, sempre em estado de guerra. “Muitas vezes as agres-sões vinham de fora. Na antiguidade era do Egito, depois dos árabes ao leste e, após o século XVII, os agressores vinham da Europa – principalmente da Inglaterra, França e Itália”, explica Trein.

Após sua independência em 1956, o país se tornou mais uma peça no tabuleiro da Guerra Fria, o que, segundo Trein, “estimulou ainda maiores divisões internas, que resultaram em golpes e contragolpes de estado e na forma-ção de movimentos e milícias, como no caso do Movimento Popular de Libertação do Sudão (SPLM) e seu braço armado, o Exército Po-pular de Libertação do Sudão (SPLA)”.

Atualmente há mais de uma dezena de movimentos armados em luta permanente, muitos deles apoiados por países vizinhos, sejam eles da outra margem do Mar Ver-melho, que apóiam os grupos islâmicos, ou nações contíguas, principalmente Egito, Etiópia e Chade, ou ainda da Europa Ocidental ou os Estados Unidos. No caso dos estadunidenses, Trein destaca que a “Casa Branca combatia o SPLA há vinte anos, mas hoje apóia aquele movimento separatista em nome da contenção do processo de islamização das popula-ções da região”.

No leste um acordo foi feito com as milícias Free Lions e Beja Congress, mas a falta de investimentos na região faz com que a tensão permaneça. Em Darfur, o caso é mais gra-ve, pois são incessantes os confrontos entre exército e as milícias Janjaweed de um lado e o National Redemption Front (NRF) do outro.

De acordo com os pesquisadores Marco Cepnik e Lucas Oliveira, no artigo Petróleo e Sudão, publicado no site do Tempo/UFRJ, o envolvimento de atores não-sudaneses, como grupos guerrilheiros eritreus, ugandeses (Lord Resistance Army, grupo fundamentalista cristão ugandês, ex-aliado do SPLM) centro-africanos e chadianos torna ainda mais difícil a solução do confl ito.

Disputa por ouro negroA repartição das rendas do petróleo é uma

das reivindicações do SPLM, o que traz ame-aças à indústria petrolífera no Sudão, como mostra recentes atentados do NRF ao campo

de Abu Jabra, em Kurdofan, centro-sul do país. A renda proveniente do petróleo é responsável por 80% dos recursos do governo sudanês (99% para a região sulista autônoma). O país produz 520 mil barris de petróleo por dia. Isso

permitiu uma taxa de crescimento econô-mico de 6% ao ano, contrastando com a pobreza do sul.

Atualmente, a C N P C ( e mp r e s a chinesa), a Petronas (Malásia), a ONGC (Índia) a TotalFina Elf (França) são as maio-res empresas petro-líferas operando no Sudão. Juntas ela for-mam a Greater Nile Petroleum Operating Company (GNOC), a maior empresa de exploração, refino e distribuição de óleo no país. Segundo da-

dos da Organização Mundial do Comércio (OMC), 64% das exportações sudanesas de petróleo tiveram como destino a China. De acordo com Cepnik e Oliveira, embora o confl ito entre muçulmanos nortistas e os re-ligiosos sulistas não tenha origem no petróleo, esse é um fator cada vez mais crucial para o entendimento da guerra civil e das possibili-dades de paz.

Para os autores, nem as sanções comerciais impostas pelos Estados Unidos nem o agra-vamento da tragédia humanitária levariam o presidente al-Bashir a promover uma reforma constitucional, que melhore o pacto federativo e a distribuição de recursos entre os 26 estados sudaneses. “Para isso, a China e a Liga Árabe precisariam intervir diplomática e fi nanceira-mente dando garantias aos principais atores sudaneses de que as concessões mútuas não ameaçarão os prospectos de desenvolvimento econômico que se abriram com o crescimento da produção de petróleo no país”.

Na opinião de Franklin Trein, o con-fl ito terá como solu-ção a imposição, pela força, dos interesses dos grupos islâmicos, de hegemonia suni-ta, que se manterão no poder com apoio externo, dos países árabes da região. Os capitais ocidentais, por sua vez, chegarão a um acordo com o governo central para manterem e amplia-rem a exploração do petróleo e de outras riquezas existentes na região. “Complemen-tarmente buscarão ou-

tros ganhos, seja com a venda de armas para um exercito nacional, a ser formado, seja com a construção de uma infra-estrutura mínima para que o país possa continuar a produzir a força de trabalho local, necessária à exploração de suas riquezas”, prevê o professor.

A Missão das Nações Unidas no Sudão (UNMIS) concentra seus trabalhos na porção sul do país, área mais afl igida pelo confl ito.

A UNMIS foi estabelecida pelo Con-selho de Segurança da ONU por meio da Resolução 1590 (24/3/2005). O acordo de paz (Comprehensive Peace Agreement – CPA) foi assinado no dia 9 de janeiro de 2005 por representantes das duas partes: a República do Sudão e o SPLM/A (Sudan People’s Libe-ration Movement/Army). O CPA estabeleceu

a necessidade da realização de um referendo nacional sobre a autonomia da região Sul no ano de 2011, com a participação de obser-vadores internacionais; a redistribuição das respectivas forças, SAF e SPLA, para o norte e para o sul da linha 1-1-56 (marco geográfi co), respectivamente e a formação das (JIU) Joint Integrated Units (unidades militares integra-das). A região de Darfur, no entanto, está sob a responsabilidade da União Africana.

ObservadoresDe acordo com o tenente-coronel Ro-

lemberg Cunha – do Exército brasileiro, ser-vindo na UNMIS, desde maio de 2007, como observador militar, responsável pela parte logística do setor de Abyei – até o presente momento “as partes estão realizando esforços para cumprirem as metas impostas pelo CPA e mais esta etapa para a busca defi nitiva da paz, provavelmente será completada”.

Alguns assuntos ainda estão pendentes, como é o caso da região de Abyei, na qual são encontradas importantes reservas petrolíferas, palco de disputa entre as duas partes para manter o controle dessa área. “No entanto, estão sendo realizados encontros entre o governo sudanês, o SPLA e a UNMIS para encontrarem um caminho que satisfaça ambos os lados”, explica Cunha.

Conforme explica o tenente-coronel, 27 brasileiros servem, atualmente, na UNMIS, sendo 21 observadores militares do Exér-cito, três deles da FAB e outros três da Polícia Militar, que realizam um trabalho específico junto à polícia local. Os oficiais de Estado Maior ficam no quartel-general da UNMIS em Cartum e os observadores são alocados em 7setores nos distritos de Juba; Wau; Malakal; Kadugli; Ed Damazim e Abyei.

A missão do observador militar é, tecni-camente, supervisionar, monitorar e verifi car o cumprimento do acordo de paz e relatar as ações das partes envolvidas, tudo isso é realizado por meio de patrulhas, que podem ser feitas a pé, de carro ou de avião, durando um dia ou até semanas. Estas conhecidas como long range patrol (patrulha de longo alcance).

Além disso, cabe aos observadores rea-lizar o desarmamento, a desmobilização e a reintegração dos grupos armados, o que exige muita calma, tato e fl exibilidade no trato com os soldados. “Nesse ponto os brasileiros têm se saído muito bem, graças às características inerentes do nosso povo, simpatia, alegria e extroversão que tem feito a diferença. Por di-versas vezes, diante de uma situação delicada, ao se identifi car como brasileiro, o tratamento muda completamente, surgem os nomes dos jogadores: Ronaldinho, Roberto Carlos e etc. A partir daí, todos fi cam amigos e a barreira que inicialmente existia desaparece”, enfatiza o tenente-coronel.

Existem diversos estágios na concreti-zação da paz no Sudão, nas regiões onde a pacificação se encontra mais avançada, os observadores se voltam para um trabalho mais social, auxiliando na distribuição de alimentos, campanhas de vacinação, construção de escolas, orientações edu-cacionais, dentre tantas outras ações do mesmo contexto. “Atualmente, contamos com brasileiros desdobrados em todos os Team Sites (células básicas de 20 a 25 obser-vadores responsáveis por uma determinada área), o que permite uma excelente repre-sentação do nosso país em toda UNMIS. Os observadores militares brasileiros têm tido uma participação brilhante nesta missão”, elogia Cunha.

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6 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

O Brasil quer conhecer a África

Professores de literaturas africanas reúnem-se em torno do

continente milenar.

Rodrigo Ricardo

“O Brasil não conhece a África (...)”. A canção do compositor Gonzaguinha, aos poucos, começa a soar como uma crítica de outrora, quando então os brasileiros viravam as costas ao continente. De lá, durante mais de três séculos de escravidão, navios trouxeram, pela força, em seus porões, milhões de pessoas para estas terras.

Quebrando correntes e preconceitos, a realização do III Encontro de Professores de Li-teraturas Africanas prova que o país caminha

não apenas para vislumbrar parte de suas raí-zes, mas para conhecê-las com profundidade, principalmente aquelas oriundas de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe. Todos, apesar dos sotaques, unidos pela língua portuguesa. Os frutos da iniciativa, como em qualquer investimento em Educação, talvez somente apareçam anos à frente, com cidadãos que possam compre-ender o mosaico de cores, ora separadas ora juntas, que compõe a humanidade.

O evento teve início no auditório da Biblio-teca Nacional, em novembro passado, e depois se estendeu por dois dias com inúmeras ativi-dades pela Faculdade de Letras, na Ilha do Fun-dão. A principal meta do encontro: a fundação de uma associação de estudos interdisciplinares sobre a África, que terá a luta de pôr em prática a Lei 10.639, sancionada pelo presidente Lula, em 2003, tornando obrigatório o ensino da História e da Cultura Afro-Brasileira em escolas do ensinos Fundamental e Médio.

“Em grande parte do território nacional, a lei ainda se encontra só no papel. Mas a legislação foi um passo válido que propor-cionou visibilidade ao assunto, inclusive despertando o interesse de muitas editoras”, analisa a professora Carmen Tindó, presi-dente da comissão organizadora do evento e pertencente ao Setor de Literaturas Afri-canas do Departamento de Letras Verná-culas da FL/UFRJ. “O importante é que se abra um espaço físico de tempo com uma grade específica para o tema nas escolas. A África precisa ser estudada com seriedade e se distanciar das imagens folclorizadas, resumidas nos três Ts: tarzan, tambor e tribo. É contra isso que lutamos”.

Luandino VieiraEntre as presenças, na abertura do en-

contro, o presidente da Fundação Biblio-teca Nacional, Muniz Sodré; o Ministro da Cultura de Angola, o escritor Boaventura Cardoso; além do diplomata Alberto da Costa e Silva, que teme que a África seja vista pelo viés de exotismo. “Exótico é es-quiar na Europa ou comer escargot. Temos de resistir a esse apelo do diferente, a lite-ratura de e sobre pessoas são equivalentes em qualquer lugar do mundo”, pontua Alberto, renomado africanólogo e membro da Academia Brasileira de Letras.

Grandes nomes da literatura internacio-nal vieram ao Brasil para o evento. Entre eles, o escritor Luandino Vieira que recu-sou os 100 mil euros do Prêmio Camões 2006, oferecido pelos governos de Portugal e Brasil para distinguir anualmente um escritor que contribua com sua obra para o patrimônio literário da língua portugue-sa. Na ocasião, o autor angolano alegou motivos “íntimos” para fundamentar sua decisão. Natural da portuguesa Vila Nova de Ourém (1935), Luandino emigrou para

Especial

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Dezembro/Janeiro •2008 7UFRJJornal da

Angola quando era um menino e partici-pou do movimento de libertação nacional da antiga colônia de Portugal. Por sua mi-litância pró-independência de Angola, foi preso em 1959 pela ditadura de Salazar e condenado a 14 anos de prisão. Vieira só foi libertado em 1972, mas os anos no cárcere não impediram a realização de sua vasta obra: “Luanda” (1963), “A vida verdadeira de Domingos Xavier” (1974), “Velhas estó-rias” (1974), “Vidas novas” (1975), etc.

“Tive a felicidade de participar do primeiro encontro (1991), quando vim ao Brasil pela última vez”, afirma Luan-dino, entre um autógrafo e outro aos fãs com quem posou para inúmeras fotos. “É emocionante estar aqui mais uma vez e ver que a idéia vingou e que há cada vez mais interessados em saber sobre um continen-te, que não é apenas miséria, desgraça e guerra, mas produtor de uma profunda espiritualidade”.

Segundo a professora Carmen, o com-parecimento de autoridades e escritores do quilate de Luandino, que esteve afastado e descrente, é um reconhecimento ao en-contro, que irá lutar para se tornar perió-dico e ocorrer a cada triênio. Os anteriores aconteceram nos anos de 1991 e 2003. O escritor angolano, João Mello, que morou muito anos no Brasil como correspondente de imprensa, destaca a vitalidade do evento e a Lei 10.639 como um gesto fundamental frente à pasteurização promovida pela glo-balização. “Diferente dos outros encontros, há um efetivo apoio para a maior circulação das literaturas, mas é preciso consolidar e avançar com novos passos nesta direção. A contribuição do continente africano

ainda não é devidamente valorizada”, avalia Mello, que é mestre pela Escola de Comu-nicação (ECO/UFRJ). Ele lembra que “os angolanos foram os primeiros a chegar ao Brasil, deixando as suas marcas em inúme-

ras áreas da cultura brasileira”.

Sobre minas O professor Ro-

naldo Lima Lins uti-lizou-se da metáfora “caminhamos sobre minas” para definir o trágico continente africano como uma referência ao mundo contemporâneo. “Ela (a África) serve para todos, pois todos nós caminhamos sobre minas. Há um barril de pólvora, mas te-mos a impressão de que está tudo em paz, quando na verdade não está”, enfatiza o diretor da FL/UFRJ, que esteve no evento como representante do reitor Aloísio Tei-xeira. “É uma litera-tura que, mesmo em condições extrema-mente adversas, tem tocado em pontos nevrálgicos para to-dos os povos. Uma presença importante no cenário mundial, inclusive com vá-rios vencedores de Nobel”.

Desde o fim da década de 60, batalhando pelo ensino dos estudos afro, a professora Laura Padilha, da Universidade Federal Fluminense (UFF), verifica que houve uma virada com este último encontro. “Vejo com alegria a criação de uma as-sociação de estudos africanos que junte a todos: História, Ge-ografia, Artes Plásti-cas, Música, Cinema, Sociologia e Antro-p olog ia . Est amos v irando a pág ina do neocolonialismo acadêmico, aquela instituição eurocên-trica que não via a Áfr ica. Isso é um gesto de resistência. Agora, chegando à aposentadoria, vejo que toda esta luta valeu a pena”.

O primeiro dia do encontro terminou em cl ima musical com a presença de Martinho da Vila. “A poesia e a música and am de braços dados e um evento como ess e é uma verdadeira ponte”, disse Martinho, que ao lado do parceiro escritor angolano, Manuel Rui, tam-bém compositor, in-clusive do hino na-cional de seu país, cantou Os meninos

à volta da fogueira: “Vão aprender coisas de sonho e de verdade/ E vão saber o que custou a liberdade (...) Mas os meninos deste continente novo/ Hão de saber fazer história e ensinar”.

Mesa de escritores (dir. para a esq.): João Melo, Manuel Rui, Silviano Santiago, Boaventura Cardoso e Luandino Vieira.

Especial

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8 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Com larga experiência em escolas da rede pública básica, a professora Shirley Campos Victorino – que assistiu às pales-tras da mesa sobre o ensino das literaturas africanas no Brasil – disse que não basta pagar tributo à Lei 10.639 com projetos descontínuos e eventuais. Ela defende a criação de um Núcleo de Estudos de Re-lações Raciais no âmbito das Secretarias Estaduais e Municipais de Educação. “O Núcleo poderia orientar e disponibilizar para o professor acervos bibliográficos audiovisuais”, imagina Shirley, que trabalha em um Centro de Referência em Educação e Formação Continuada (Crefcon), em São Gonçalo.

Ela disse que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) assinalam a necessidade da pluralidade cultural, mas, na prática, isso não acontece. “É preciso dinamitar os estereótipos em relação à cultura africana e afro-brasileira. Isso faz parte de um pro-cesso que não se esgota no fi nal de um ano letivo”, analisa Shirley, que defende a revisão da matriz curricular de todas as Secretarias de Educação. Para isso, aponta como neces-sária a criação de espaços dentro da escola para o debate de ações afi rmativas conti-nuadas. “Apenas com uma política pública consistente formulada pelas Secretarias de Educação seria possível implementar, de fato, a Lei 10.639”.

Professora defende Núcleo de Relações Raciais para

cumprir a lei

Descobertas recentes revelaram: os primeiros ancestrais do homem surgiram na África, há mais de um milhão de anos. Tanto tempo depois, o berço nobre da vida humana – sua história real e livre do ranço do estereótipo – parece ainda impenetrável aos olhos da humanidade. Mesmo no Brasil, onde 47% da população é afro-descendente, o esforço de redução das distâncias históri-cas e culturais se impõe cotidianamente. No campo da literatura, então, é preciso ânimo guerreiro para conhecer a vasta produção de autores de países africanos, especialmente os de língua portuguesa, por mais estranho que pareça.

A mesa Estudos Africanos: Pesquisa e Di-vulgação, realizada no dia 22 de novembro, mostrou que o silêncio perturbador a respei-to da produção literária dos países africanos só foi rompido com a promulgação da Lei 10.639, em 9 de janeiro de 2003. O moti-vo é simples e atende pelo nome de lógica empresarial. A obrigatoriedade do ensino da História da África e da Cultura Afro-Brasileira nas escolas da rede fundamental e média provocou uma correria nas grandes editoras para lançar livros sobre a temática no mercado.

Novos desafi osEm sua exposição, a professora da Facul-

dade de Filosofi a Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP), Tânia Macedo, lembrou que publicações teóricas e de ficção de países africanos de língua portuguesa já freqüentavam a universidade há 30 anos, mas de modo rarefeito. “Agora, temos um mínimo de corpus para pedir aos alunos para estudar”, destacou, lembrando

Silêncio perturbadorMesa sobre Estudos Africanos aponta a necessidade de uma política ofi cial,

via Capes, para fi nanciar a publicação de novos autores no Brasil.

Coryntho Baldez

que, depois de 2003, verifi cou-se um au-mento de publicações teóricas e de fi cção principalmente sobre Angola, Moçambique e Cabo Verde.

O mercado editorial abriu a oportuni-dade de acesso ao livro, mas também criou uma demanda para os estudantes. As Facul-dades de Letras começaram a solicitar que seus alunos co-nhecessem a produção literá-ria africana para que fossem capazes de cumprir a Lei 10.639. “Há uma demanda e começa a haver a formação específi ca obrigatória desses alunos, um fato extremamente po-sitivo para a implementação das disciplinas de literaturas africanas nas universidades”, comentou.

Por outro lado, criaram-se novos desafi os para os professores universi-tários. A Lei 10.639 alterou a LDB e previu a inclusão, no currículo ofi cial da rede pública, da história, da cultura e da literatura afro-brasileira e africana. Segundo Tânia Macedo, isso suscitou uma questão: “como trabalhar e organizar a disciplina, já que ela se ampliou bastante”, indaga. A abordagem interdiscipli-nar é um dos caminhos, afi rma a pesquisa-dora. Mas ela aponta um dado extra-literário que constitui desafi o maior ainda ao ensino na universidade: os movimentos negros e as questões ligadas às africanidades – raízes e marcas da cultura africana que fazem parte do dia-a-dia do brasileiro.

“A própria Lei 10.639 indica que devemos educar para a igualdade racial, pois não se pode esquecer que vivemos em um país em

que o racismo existe”, observou. Criou-se, agora, uma grande confusão para os pro-fessores que trabalhavam dentro da visão tradicional de análise do valor estético da obra, com cânones fi xos. “Com a Lei, se im-põe à necessidade de olhar as africanidades e de lidar com o contexto”, enfatizou. Mas

isso também pode ser uma armadilha para as literaturas africanas, em sua opinião, por reforçar a idéia de que elas só podem ser compreensí-veis em um “contexto de engajamento”. Por outro lado, identifi cou uma cla-ra necessidade de auxiliar os professores das escolas de nível fundamental e médio a desmontar es-tereótipos e educar para

a igualdade racial. “Em suma, estamos com grandes tarefas que ultrapassam as questões literárias”, frisou.

Mercado impositivoTânia Macedo criticou o fato do mercado

editorial estar ditando os caminhos de uma jovem disciplina e construindo um cânone baseado em autores com potencial de venda. “O primeiro a ser publicado pela Companhia das Letras foi Mia Couto. Hoje, ela também edita Rui Duarte e Luandino, todos eles au-tores que vendem”, destacou.

O professor das literaturas africanas não tem acesso, por exemplo, a Vera Duarte, ex-celente autora de Cabo Verde, exemplifi cou. Ela contou que os jovens autores africanos se queixam de que os brasileiros só estudam Luandino e Mia Couto. “O problema é que eles estão ilhados em seu local de produção, seus livros não chegam ao Brasil nem para compra via internet”, lamentou. Para a pro-fessora da USP, é preciso pressionar a Coor-denação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) para que lance editais para a tradução de obras e a elaboração de material didático na área de literaturas afri-canas. “Há necessidade hoje de uma política institucional para consolidar a Lei 10.639”, sustentou.

Compra difícil e caraA professora da Universidade Federal de

Minas Gerais, Eliana Lourenço, em sua ex-posição, também apontou o restrito círculo de autores publicados no Brasil como um obstáculo à difusão da disciplina de litera-turas africanas. “A difi culdade de acesso à bibliografi a africana é óbvia”, disse. Segundo ela, os livros de literatura africana de língua inglesa são mais fáceis de encomendar. Além

disso, a compra de livros africanos também é cara. “Se a Universidade importa, ótimo. Mas como o interesse é mais restrito, o custo recai sobre o professor”, revelou.

Para ela, uma das saídas para driblar essa barreira são os sites sobre culturas afri-canas ou escritores pós-coloniais. “Existem inúmeras revistas eletrônicas nessa área e precisamos divulgá-las e aumentar a sua freqüência”, defendeu Eliana Lourenço. Às vezes, “fi camos muito voltados para o livro e deixamos de aproveitar essas novas ferra-mentas tecnológicas”, ressaltou.

A professora da UFMG alertou, também, para a necessidade de o Estado patrocinar exposições de artes plásticas ou mostras de cinema. Os fi lmes abrem uma possibilidade de se trabalhar com alunos que, muitas vezes, não têm disponibilidade para ler, afi rmou.

Por fi m, a professora da UFMG concordou com a idéia de cobrar do governo brasileiro a defi nição de uma política institucional de acesso amplo à produção literária africana.

Lei 10.639/03 cria novos desafi os para professores universitários. No debate,Tânia Macedo(USP), Eduardo Coutinho (UFRJ) e Eliana Lourenço (UFMG).

O esforço de redução das

distâncias históricas e culturais se impõe

cotidianamente

Especial

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Dezembro/Janeiro •2008 9UFRJJornal da

Amnésia opcional

O negro começa a ser solapado em sua identidade e na sua importância histórica como elemento constituinte e inalienável do povo brasileiro com a tentativa da elite brasileira de se inserir na realidade européia. De acordo com Florentina da Silva Souza, professora de Letras da Uni-versidade Federal da Bahia (UFBA) – que participou de uma das mesas do evento – isso gerou historicamente as idéias de mestiçagem, indesejada, e de embran-quecimento, desejável, e que deveria ser perseguido. Para a professora, o Brasil não rejeita a cor da pele e sim a identidade africana, por isso a “resistência cultural de gestos, costumes e vestuário era vista como incapacidade e bestialidade”, ensina Florentina.

Essa resistência foi uma necessidade imposta pela conjuntura. Na diáspora for-çada, os africanos fizeram da memória um bem supremo, reconstruindo identidades. “Os africanos eram treinados desde cedo a ver, ouvir e gravar as lembranças como em cera virgem”, lembra. “A memória impede o silêncio dos excluídos e a exclusivida-de do discurso hegemônico. Memória é constituição social ativa”, complementa a professora da UFBA.

A tese da amnésia voluntária é corro-borada por Maria Alexandra Aparício, his-toriadora, que leciona na Universidade de Brasília (UnB), para quem, após o fim da escravatura iniciou-se um esforço coletivo “para apagar a nódoa do intenso inter-câmbio que mantivéramos com a África”. Angolana, a professora ressalta que o Brasil afastou-se ainda mais de seu país durante o período da ditadura militar, devido à orientação marxista da nação africana.

Ao não reconhecer sua africanidade e traçar sua genealogia preferencialmente em bases européias, o Brasil esquece a contribuição do continente africano à gênese do país.

Bruno Franco

Segundo Maria Aparício, a Lei 10.639 de 2003 – que torna obrigatória a inclusão da cultura e história africanas nos currículos escolares – trouxe a necessidade de buscar professores africanistas. “Com isso, tem havido, felizmente, um interesse crescente na herança cultural africana”, afirma.

Com a lei, a historiadora acredita que deva haver maior troca de idéias e parcerias entre o Brasil e os países do continente africano, notadamente os de língua portu-guesa. No entanto, isso não significa que a cooperação começou a partir da legislação sancionada pelo presidente Lula. “Nos anos 1960 e 70, já havia estudos iniciais na USP, na UFBA e na Universidade Cândido Men-des (UCAM)”, conta.

A lei é importante, pois – informa a pro-fessora – a própria historiografia africana recusa a seu povo uma história própria, reificando-o. “Atualmente, rejeita-se esse eurocentrismo. Há história precedente à chegada dos europeus. Jean Vanzima mostrou que já no século VI havia socie-dades e história social na África Central”, esclarece.

Estudos pontuaisPara Edna Maria dos Santos, professora

de história da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), doutorada pela UFRJ, “a lei de Lula (10.639) começou a facilitar o ensino e a pesquisa do ponto de vista institucional. Não obstante, o ensino e a pesquisa de África têm longa vigência no Brasil, ainda que sob a forma de ações pontuais”. Como exemplo, cita a Secretaria Extraordinária para Defesa e Promoção das Populações Afro-Brasileira, dirigida por Abdias do Nascimento, no governo de

Os docentes reunidos no III Encontro de Professores de Literaturas Africanas propuseram a criação de uma Associação de Estudos Africanos. Após votação, o nome escolhido com 83 votos foi Associação Internacional de Estudos

Aprovada a criação da Afrolic

Leonel Brizola, no estado do Rio de Janei-ro, em 1990. Nessa época, os Cieps davam conteúdo de história da África e literatura africana em seus currículos.

Edna relembra que os grandes líderes da libertação africana (a descolonização das nações do continente) foram grandes poetas e escritores. Isso se deu, acredita, porque “imaginar é exercer uma sagrada liberdade cívica e política”. Reforça o ar-gumento citando o educador Paulo Freire: “um povo sela sua libertação à medida que reconquista a palavra”. Para a professora, é impossível conhecer a história africana sem conhecer líderes-poetas como Agostinho Neto, herói da independência de Angola e ícone da poesia do seu país. “Não podemos esquecer a história política do continente”, enfatiza a professora.

Memórias póstumas da escravidãoMemórias póstumas da escravidão é

o subtítulo do livro Machado de Assis: afro-descendente (Ed. Crítica Literária, 2007), escrito por Eduardo de Assis Du-arte, professor de literatura pela UFMG, que analisa a obra do mestre da literatura brasileira, como sendo igualmente um autor clássico da literatura negra. Ela falou sobre o tema no Encontro.

De acordo com Duarte, a desconstrução crítica da realidade patriarcal, arcaica e ex-

cludente do seu tempo, feita por Machado de Assis, é escamoteada pela “retórica dis-simulada” que o escritor Luiz Costa Lima chamou de “ginga capoeirista”. O leitor não encontra heróis negros em Machado, mas tampouco os encontra na elite.

Para o professor, o texto machadiano contraria a doxa (opinião, vocábulo gre-go) patriarcal, colocando em questão a liberdade do indivíduo antes da abolição. “Machado tem como alvo a elite de seu tempo, leitora de folhetins. Sua enunciação representa a decadência da classe senhorial no que ela tem de mais fundamental, o pater familias”, explica. A expressão latina não seria, literalmente, um “pai de família”, mas o chefe de uma unidade social básica que tinha capacidade jurídica e econômica plena. Segundo ele, Machado revela a inca-pacidade dos membros da elite superarem o parasitismo de que são herdeiros.

Na opinião do professor, não existe no Brasil a tão celebrada democracia racial, a qual seria, na verdade, uma mistificação que disfarça o rebaixamento do outro como mestiçagem. Para Duarte, a “man-cha negra” (a miscigenação) que toldava a memória colonial precisava, no enten-dimento da elite senhorial pós-abolição da escravatura, ser extirpada nem que se queimassem arquivos do tráfico negreiro, como de fato ocorreu.

Literários Culturais e Africanos, cuja sigla será Afrolic.

O estatuto da Associação será votado no IV Encontro, que será realizado, em 2009, conjuntamente pela PUC-MG e a UFMG, na cidade de Belo Horizonte.

Pesquisadoras debatem resistência cultural de afro-descendentes.

Especial

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10 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Na cerimônia de encerramento do Seminário, que aconteceu no auditó-rio Roxinho, no CCMN, a professora emérita da UFRJ, Cleonice Berardinelli prestou uma singela e emocionante homenagem à amiga e companheira de Faculdade, Laura Padilha, professora do setor de Literaturas Africanas da Universidade e que está prestes a se aposentar. Compondo a mesa, esta-vam presentes o ministro de Cultura da Angola, Boaventura Cardoso, e o professor da UFRJ, José Fernandes da Silveira.

Emocionada, Cleonice começou a sua fala contando sobre o tempo em que conheceu Laura Padilha, nos ban-cos escolares da faculdade. Laura era aluna e Cleonice, professora. “Desde o primeiro minuto foi um caso de amor recíproco. Laura é alguém que merece, ao subir nesse momento da sua carreira, receber essa homenagem da Universi-

Homenagem reúne Cleonice Berardinelli e Laura Padilha

Diálogos afro-brasileiros

Rafaela Pereira

No começo, a África era apenas um con-tinente distante e pouco conhecido pelos brasileiros. Depois, o Brasil descobriu os afri-canos e gostou. A tarefa seguinte era mostrar a produção cultural e literária dos africanos. E essa luta, nos dias atuais, vem sendo paula-tinamente vitoriosa.

Esta é uma das conclusões a que chegaram os expositores de uma das mesas-redondas do evento. Eles, alguns dos protagonistas do ensino da literatura africana no Brasil, debateram e relembraram velhas histórias que viraram ensinamentos. Os mestres: Jorge Fernandes da Silveira (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Maria Aparecida San-tilli (Universidade de São Paulo), Fernando Albuquerque Mourão (Universidade de São Paulo) e José Maria Nunes Pereira (Uni-versidade Cândido Mendes).

No passado, nos currículos das uni-versidades brasileiras, poucas eram as disci-plinas destinadas ao estudo das literaturas ou artes africanas. Em geral, estavam embuti-das apenas nas disciplinas dedicadas à literatu-ra e artes portuguesa, inglesa ou francesa.

Os anos de chumbo afastaram ainda mais a relação entre Brasil e a África, voltando o país a subordinar sua política externa aos interesses colonialistas portugueses. Nessa época, falar sobre o continente africano, principalmente das colônias portuguesas, era perigoso e podia ter como conseqüência a prisão. Aos poucos, essa realidade foi de alterando e, em meados dos anos 70, com o surgimento do movimento da Consciência Negra, houve uma crescente curiosidade sobre África. O próprio regime militar chegou a ter interesses em tal conti-nente e nas suas relações com o Brasil – um dos primeiros países ocidentais a reconhecer o governo do Movimento Popular de Liber-tação de Angola. O general Figueiredo foi o primeiro presidente brasileiro a visitar a África.

Sob essa nova ótica, é fundado o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO) junto à Universidade Federal da Bahia (UFBA); o Centro de Estudos e Cultura Africana junto à FFLCH/USP, hoje denominado Centro de Estudos Africanos (CEA); e também o Cen-

tro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA) do Rio de Janeiro. Na UFRJ, em sua Faculdade de Letras, a literatura africana de língua portuguesa se tornou disciplina obrigatória. E a UCAM teve importância histórica com o seu Centro de Estudos Afro-Asiáticos (CEAA).

No CEA da USP, a primeira tarefa foi explicar o que era o grande e rico continen-te, de acordo com Fernando Albuquerque Mourão, professor titular da Universidade. “Tínhamos que desenvolver uma consciên-cia de negritude. O Brasil é um país extre-

mamente conservador. No Centro de Estudos Africanos (CEA/USP) tínhamos um curso de iorubá, mas que acabou por questões burocráticas. Somos barrados, novamente, por uma burocracia que não nos permi-te o crescimento em determinadas áreas”, questiona Mourão. Sua colega de universida-de, a professora Maria Aparecida Santilli, ci-tou Manuel Ferreira, profundo estudioso da

literatura africana de expressão portuguesa, como o grande fundador dos estudos da África que, segundo ela, tem fundamental importância para os paulistas.

José Maria Nunes Pereira, da UCAM, lembrou do processo de construção do Centro de Estudos Afro-Brasileiros. “De início, não tínhamos recursos financeiros e precisávamos montar uma equipe de voluntários. Hoje o Centro dá lugar ao Instituto de Humanidades”, revelou José Maria, acrescentando que, hoje, a principal atividade de produção acadêmica do CEAA é o seu Laboratório de Relações Raciais.

Na UFRJ, Jorge Fernandes da Silveira, hoje professor de literatura portuguesa, foi quem deu o pontapé inicial para o surgimento da disciplina na grade curricular. “Concluí minha faculdade sem nenhuma formação sobre o que fosse a literatura africana. Sabia que nos porões da nossa biblioteca havia uma coleção da biblioteca de Tierre Martins Moreira, à época nosso catedrático de literatura por-tuguesa, e passei muito tempo lendo esses livros. Depois, ofereci à universidade a minha proposta de fazer, durante um ano, os cursos optativos sobre o tema. Essa é a minha identida-

dade. Este é um tributo de profundo carinho, de reconhecimento de um valor e de uma competência sempre crescente”, explica Cleonice. Ela fez ainda um reparo. “Jorge Fernandes da Silveira não foi o primeiro professor de literatura africana da nossa Faculdade de Letras. Em priscas eras, nos tempos em que ele nem pensava em nascer, o professor Tierre Martins Moreira e eu dávamos aulas de literatura africana. Ainda era uma literatura africana mal conhecida, em que alguns autores nem africanos de nascimento eram”, recorda a professora emérita.

Laura Padilha se disse absolutamen-te emocionada com a homenagem. “A Cleonice nos disse que íamos chegar lá: dar aulas e sermos respeitadas. Hoje somos um grupo que se ama profunda-mente, somos irmãos e filhos da tia Cleo”, contou a professora, ovaciona-da pela platéia.

Mesmo mais próximos, dar visibilidade à produção cultural e literária africanas no país ainda é um desafi o contemporâneo.

Os anos de chumbo afastaram

ainda mais a relação entre Brasil e a

África, voltando o país a subordinar

sua política externa aos interesses colonialistas.

de como professor, como fundador, de literaturas africanas na UFRJ”, recorda o professor.

Esses são os novos contornos que os estu-dos africanos ganharam, reafirmando, cada

vez mais, a ligação do Brasil com a África e resgatando essa memória que faz parte da identidade nacional dos brasileiros e, claro, dos africanos também.

No microfone, Laura Padilha: “somos irmãos e fi lhos da tia Cleo”.

Especial

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Dezembro/Janeiro •2008 11UFRJJornal da

Justiça

Força magnaBrasil permite que legislação internacional sobre direitos humanos

transforme-se em norma constitucional.

Rafaela Pereira

Desde 2004, com a Emenda Constitu-cional nº 45, que os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos, aprovados pelo Congresso Nacional, pas-saram a ter status de norma constitucional. Mas quais as mudanças trazidas com essa alteração?

Para discutir essa e tantas outras questões que se reuniram estudantes e profissionais de Direito, no salão nobre da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro (FND/UFRJ), para o I Colóquio Internacional de Direitos Humanos, organi-zado pela FND em parceria com a Faculdade de Direito de Campos.

O evento ocorreu após as duas faculda-des terem concorrido e vencido ao edital lançado pelo Ministério da Justiça, em convênio com o PNUD Brasil (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) que lançou, no início do ano, um edital para que as universidades brasileiras, públicas e particulares, apresentassem projetos em áreas consideradas nevrálgicas para o gover-no. A Faculdade de Direito da UFRJ (FND/UFRJ) concorreu em duas categorias e foi vencedora em ambas – uma sobre a relação da emenda constitucional 45 com os direitos humanos e outra sobre o Observatório da Justiça, que está sendo realizado em parceria com a Universidade de Brasília (UnB).

Pela faculdade carioca, são dez alunos que atuam nas pesquisas e três professores

como coordenadores. De acordo com Va-nessa Oliveira Batista, professora de Direito Constitucional da FND e a coordenadora geral, esse trabalho vai culminar em um produto final que será entregue ao Ministé-rio da Justiça. “Nosso objetivo é apresentar um projeto de lei, de emenda constitucio-nal, a fim de se tornar possível a aplicação, a operacionalização da EC 45 que prevê a constitucionalização dos Tratados Inter-nacionais de Direitos Humanos”, explica a professora.

HistóricoDireitos humanos são os direitos e li-

berdades básicos que devem gozar todos os seres humanos. Para alguns, sua origem vem do conceito filosófico de direitos naturais que seriam atribuídos por Deus; outros acreditam que não haveria nenhu-ma diferença entre os direitos humanos e os naturais. Outra corrente, John Locke foi um dos mais importantes filósofos a desen-volver essa teoria, argumenta ser necessário manter os termos separados para eliminar a associação com características normalmente relacionadas com os direitos naturais.

De acordo com a doutrina internacio-nalista o momento decisivo para o “nasci-mento” dos direitos humanos é o holocausto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Assim, toma força o Sistema Global de Pro-teção dos Direitos Humanos, com a Carta

das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e dos Pac-tos de 1966.

José Carlos Buzzanello, professor da UNIRIO, palestrante convidado ao coló-quio, coloca como questionamento a distin-ção entre direitos humanos e fundamentais. “Hoje, os direitos humanos têm força cogente sobre as demais matérias. Ele não pode mais ser visto de forma nacional, se trata de ma-téria de direito internacional. Então, o corte metodológico é feito falando que direitos humanos é o gênero de toda a construção de defesa, de proteção aos direitos do homem”, analisa o professor.

A professora Caroline Proner, da UNI-BRASIL-PR, também palestrante, acredita ser esse o tema do momento. “Em janeiro deste ano não havia textos escritos com co-ragem sobre a emenda 45. O que aconteceu com o parágrafo terceiro da constituição? Será que melhorou ou piorou as questões dos direitos humanos? A interpretação, segundo uma visão mais progressista, já ga-rantia hierarquia constitucional às normas decorrentes de tratados humanos”, explica Proner. Ela acrescenta ainda ser preciso cobrar do Supremo Tribunal Federal qual a sua posição a respeito dessa matéria. “En-quanto isso a doutrina e nós, estudantes, professores e juristas, vamos construindo uma interpretação que seja favorável não à norma ativa apenas, mas sim aquilo que seja o objetivo final de proteção aos direitos humanos. O que queremos fazer com uma ferramenta tão volúvel como essa? Se pegar-mos essa ferramenta e justifi car a invasão ao Iraque, conseguiremos com base nos direitos humanos. Contudo, com esse mesmo ins-trumento eu condeno a invasão”, compara a professora.

Questionamentos após a EC45Thula Pires, professora da FND/UFRJ,

apontou as questões procedimentais que surgiram com a Emenda Constitucional 45. “Essa não é uma conferencia de resultados

da pesquisa, pelo contrário, ela é feita no meio da realização da pesquisa para que a gente possa ouvir outras pessoas da co-munidade acadêmica para que os nossos resultados sejam os mais verdadeiros pos-síveis. A partir do momento que o Poder Constituinte Reformador resolveu permitir a constitucionalização de tratados sobre direitos humanos ele estabeleceu um proce-dimento diferenciado do que nós tínhamos até então. Agora esses tratados ganham hierarquia de norma constitucional e com isso surge uma série de questionamentos”, aponta Thula.

Para Érika Pessanha, professora da Fa-culdade de Direito de Campos, é preciso refletir sobre o que se tinha antes de pensar na novidade da Emenda Constitucional. “O novo parágrafo terceiro do artigo 5º cum-priu a função de eliminar as controvérsias existentes sobre a incorporação de tratados de direitos humanos no Brasil”, duvida a professora.

O espanhol Joaquín Herrera Flores, professor catedrático em Filosofia do Di-reito da Universidade Pablo de Olavidade e diretor do programa de Master e Doutorado em Direitos Humanos e Desenvolvimento da UPO – Sevilha (Espanha), acredita ser impossível defender os direitos humanos como se fossem algo separado da história; do contexto social, econômico e político; e da crítica. “Quando se fala de direitos hu-manos, fala-se de algo que tem a ver com as circunstâncias materiais, e que, como disse o geógrafo baiano Milton Santos, temos que recuperar nossa capacidade de ação, assu-mir novos hábitos, assumir novas condutas, tomar decisões para intervir nas condutas e ver os Direitos Humanos como algo a ser utilizado, maior que uma justificativa para a apropriação privada dos recursos”, analisa o professor convidado. Ele falou ainda sobre a oportunidade de se fazer uma celebração dos 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos e dos 20 anos da Constituição de 1988 do Brasil, em 2008.

No microfone, Laura Padilha: “somos irmãos e fi lhos da tia Cleo”.

No salão nobre da FND, grupo reúne-se para I Colóquio Internacional de Direitos Humanos.

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12 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Entrevista

Coryntho Baldez

Jornal da UFRJ: O Plano de Ciência, Tec-nologia e Inovação (2007-2010), anunciado pelo governo, prevê investimentos de R$ 41 bilhões no setor até 2010. Que infl uência terá o chamado PAC da C&T no desenvol-vimento científi co-tecnológico do país neste início de século?Angela Uller: Muitos dos recursos que cons-tam do PAC de C&T já estavam no sistema, mas nunca tinham sido contabilizados desta forma. Várias fontes provenientes de outros ministérios foram incorporadas e os recursos provenientes do governo federal deverão dobrar até 2010. Espera-se que as empresas também aumentem seus investimentos,

A hora e a vez da Ciência e Tecnologia

O Programa de Aceleração e Crescimento (PAC) da Ciência e Tecnologia tem um mérito que vai além dos R$ 41 bilhões previstos para o setor até 2010. É uma medida que sinaliza à sociedade, de modo claro, que as áreas entraram no rol das políticas públicas prioritárias. A análise é da pró-reitora de Pós-graduação e Pesquisa, Angela Uller. Ela acredita que um ambiente favorável a investimentos em pesquisa, desenvolvimento e inovação começa a se desenhar no Brasil. Nesta entrevista ao Jornal da UFRJ, sustenta que o problema do país não é só o baixo investimento – “0,97% do Produto Interno Bruto (PIB)” – em Ciência e Tecnologia, mas a inconstância das ações e programas do governo.

No cargo há cinco meses, a ex-diretora da Coppe é categórica ao afi rmar que o Brasil tem competência científico-tecnológica suficiente para não se conformar com um papel periférico. “Temos condição de atrair para o Brasil os centros de pesquisa das empresas multinacionais”, defende. Angela Uller – professora da UFRJ desde 1980 – cita um dado impressionante: o uso do conhecimento foi responsável por 50% do PIB dos países mais desenvolvidos. Mas, quem deve desenvolver a atividade de inovação tecnológica no Brasil? Para ela, todos os atores são importantes: a universidade, as empresas e as instituições de pesquisa.

estimuladas pelos vários instrumentos go-vernamentais, tais como incentivos fi scais, subvenção econômica e uso do poder de compra do estado. O que o programa faz, além de contabilizar todos os esforços em C&T e organizar os investimentos, é sinalizar para a sociedade a importância que o governo está dando para esta área. Além do PAC da C&T, há outras ações que geram uma mudança de cultura em favor da ciência, da tecnologia e da inovação, tais como a Lei de Inovação, a Lei do Bem e o PAC da Educação.

Jornal da UFRJ: Qual o percentual do PIB que o Brasil gasta em pesquisa? Em com-

paração com países também considerados em desenvolvimento, como China e Índia, o índice ainda é baixo?Angela Uller: O Brasil destina 0,97% do seu PIB para C&T, acima, portanto, da Índia com 0,85%, mas abaixo da China que in-veste 1,34%. A Coréia investe 3% e a Suécia 3,9%. O nosso problema não é só o baixo investimento em C&T, mas principalmente a falta de constância nas ações e programas do governo. Quando o governo interrompe suas ações, contigencia os recursos do orçamento de C&T ou diminui o fl uxo de repasse, ele está mandando uma mensagem para a so-ciedade, ou seja, a de que este investimento

é dispensável. Desta forma, as empresas perdem a confi ança e deixam também de investir.

Jornal da UFRJ: Desde a década de 80, a falta de uma política pública voltada para a indústria nacional levou o país a importar equipamentos e tecnologia. Isso afetou a soberania tecnológica do Brasil?Angela Uller: A importação de tecnologia por parte das empresas brasileiras vem de antes da década de 80. Na verdade, isto é uma conseqüência do modelo de indus-trialização adotado pelo Brasil, baseado na substituição de importação, mas com

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Dezembro/Janeiro •2008 13UFRJJornal da

Entrevista

reserva de mercado. Quando foi preciso, como no caso da exploração e produção de petróleo em águas profundas, a Petrobras e as universidades, em especial a UFRJ, de-senvolveram tecnologia de ponta e levaram o país à auto-sufi ciência na produção de pe-tróleo, alcançada em abril de 2006. É claro que ter uma política industrial que sinalize como prioridade áreas portadoras de futuro contribui para o desenvolvimento tecno-lógico do país, mas não basta. Os demais instrumentos são de suma importância.

Jornal da UFRJ: Que tipo de gasto em Pes-quisa e Desenvolvimento (P&D) o Brasil deve priorizar?Angela Uller: Nos dez desafi os para os próximos 50 anos constam energia e meio ambiente. Neste sentido, estamos no ca-minho certo. O petróleo e o gás, de um lado, e os biocombustíveis, de ou-tro, respondem em parte a este desafi o. Mas não po-demos deixar de investir fortemente em pesquisas na área de saúde, na na-notecnologia e na biotec-nologia. O problema é que o governo, quando adota prioridades, tem o hábito simplesmente de acabar com as áreas não prioritárias.

Jornal da UFRJ: O Brasil ainda atua em condições periféricas e sua indústria não tem na tecnologia de ponta uma vantagem competitiva. Seria recomendável que o País investisse mais em tecnologias sociais a fi m de buscar superar os seus desequilíbrios sócio-econômicos?Angela Uller: Temos uma base científi ca competente e competitiva e não podemos nos conformar com um papel periférico. Temos condição de atrair para o Brasil os centros de pesquisa das empresas multina-cionais, estamos investindo em incubação de empresas de base tecnológica, temos as empresas de energia que estão investindo muito em pesquisa e desenvolvimento e o PAC deve propiciar uma mudança de cultu-ra nas demais empresas. Com o crescimen-to da economia, a estabilização fi nanceira e a queda da taxa de juros é possível que os grandes grupos nacionais comecem a acordar para investimentos em produtos de alto valor agregado e intensivos em tecno-logia de ponta. Mas para que isso aconteça é preciso haver um mercado interno em expansão, consumidores exigentes e que demandem estes produtos. Portanto, se não houver distribuição de renda que leve a este equilíbrio sócio-econômico, todo o ciclo fi ca comprometido.

Jornal da UFRJ: Nas últimas décadas, a economia mundial vem passando por um período de intensa dinâmica tecnológica e de forte aumento da concorrência. Que importância efetiva tem hoje a inovação tecnológica para o crescimento sustentado da economia de um país?Angela Uller: Dados apresentados em relatório do Banco Mundial mostram que apenas seis países geraram 62% do PIB mundial e 70% do capital do conhecimen-to. Além disto, o uso do conhecimento foi responsável por 50% do PIB dos pa-íses mais desenvolvidos. Estes números mostram uma enorme concentração de poder derivada da atividade de inovação tecnológica. Países como Irlanda, que eram eminentemente rurais e pouco desenvol-vidos, tiveram um grande crescimento quando optaram por investir fortemente

em inovação, apresentando um dos maiores PIB per capita da Europa.

Jornal da UFRJ: A Lei da Inovação foi aprovada em de 2 dezembro de 2004. Desde então, houve um estreitamento da relação entre universidade e empresa, como preten-dia a legislação?Angela Uller: A lei foi aprovada em 2004, mas só foi regulamentada no fi nal de 2005, portanto, o tempo é curto para que efeitos signifi cativos se façam sentir. Mesmo assim, o Ministério da Ciência e Tecnologia, através do Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, vem discutindo mecanismos e critérios de avaliação da política de C&T. O efeito mais

importante da legislação é trazer a inovação para o debate nacional, nas em-presas, nas universidades e centros de pesquisa e na sociedade civil. Antes, só as grandes empresas se aproximavam das univer-sidades, mas agora outras têm nos procurado seja para trabalhos conjuntos, seja para licenciar nossas patentes.

Jornal da UFRJ: Por que a indústria brasileira não tem a cultura da inovação e o governo, com a lei, reforçou a idéia de que essa função tem mesmo que fi car com a universidade?Angela Uller: O governo sabe que a inova-ção é um processo com vários atores, sendo que um deles é obrigatoriamente o setor empresarial. É importante não confundir inovação com invenção. A Lei de Inovação criou condições para que as Instituições Científi cas e Tecnológicas públicas pudes-sem participar do processo e, por sua lide-rança na geração de conhecimento, exercer um papel educativo.

Jornal da UFRJ: Afi nal, quem deve coman-dar o processo de inovação: a universidade ou a empresa?Angela Uller: Um dos maiores problemas para se tratar da Inovação, seja para o esta-belecimento de Políticas Públicas, seja para a gestão em empresas, é o correto entendi-mento sobre sua defi nição. Muitos autores trataram deste tema buscando compreender toda sua dinâmica e algumas conclusões po-dem ser tiradas. Ou seja, a inovação só ocor-re quando se produz a primeira transação comercial. A inovação tecnológica envolve mais do que Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), sendo que os avanços nos processos de marketing, distribuição, vendas e informa-ção são inovações tão importantes quantas aquelas geradas nos laboratórios. Portanto, a inovação não é um evento único e sim um processo. Por essas definições, podemos ver que não há um ator único e todos são importantes.

Jornal da UFRJ: Qual deve ser o papel es-sencial da pesquisa na universidade?Angela Uller: O papel essencial é o de gera-ção do conhecimento. Nem todo o conhe-cimento deve ser patenteado. E mesmo que seja, no minuto seguinte pode ser publicado. Este é um mito que precisa ser derrubado. A patente não impede a publicação.

Jornal da UFRJ: Os pesquisadores brasi-leiros, hoje, estão mais preocupados em patentear seus trabalhos? As patentes são da universidade e seus institutos ou dos pesquisadores?Angela Uller: Muitos pesquisadores já en-tenderam que o conhecimento é um ativo intangível da universidade, ou seja, é um

bem público e que neste contexto precisa ser protegido. Se não fizermos esta prote-ção outros farão, gerando emprego e renda em outro país, sem que a nossa sociedade se beneficie. A universidade tem a titularidade da patente e os pesquisadores constam como inventores. No caso de haver o licenciamento da patente, os royalties são compartilhados entre a universidade, suas unidades e os inventores.

Jornal da UFRJ: Existem dados sobre o número de patentes da UFRJ hoje? É algo signifi cativo ou não?Angela Uller: Temos em torno de 150 pa-tentes, mas nem todas elas têm potencial de comercialização. Estamos fazendo uma previsão de aumento, chegando em 2010 com aproximadamente 300 patentes depo-sitadas.

Jornal da UFRJ: Ao assumir a Pró-reitoria de Pós-graduação e Pesquisa da UFRJ, no fi -nal de julho, quais as metas que você defi niu como prioritárias?Angela Uller: Apresentamos as nossas metas atuais ao Conselho de Ensino para Graduados (CEPG). Posso citar, entre elas, o estímulo ao surgimento de programas de mestrado e doutorado em áreas inter e multidisciplinares, buscando a convergência de determinados campos do conhecimento. Outra meta é aumentar o número de vagas nos cursos de pós-graduação existentes em áreas de maior interesse da sociedade, como as de desenvolvimento regional, social e

“Nos dez desafi os para

os próximos 50 anos constam energia e meio

ambiente.”

econômico. Isso pode ser feito através do aumento das condições laboratoriais, di-dáticas e de infra-estrutura física. Também pretendemos aumentar o número de cursos de mestrado e doutorado, presenciais e a distância, focados nas atividades de ensino de química, biologia, matemática, portu-guês, línguas, geografi a, história, fi losofi a, entre outras. O objetivo é o fortalecimento e a melhoria da qualidade da educação bá-sica. Um exemplo é o mestrado em ensino de física, que recentemente foi aprovado pela Capes. Outra proposta importante, e que pode ajudar a superar a fragmentação acadêmica, são os núcleos de pesquisa in-terunidades. Eles seriam organizados em áreas temáticas e apoiados por projetos estruturantes, com recursos captados jun-to a órgãos governamentais, agências de fomento, organizações internacionais e em-presas. Nesse mesmo sentido, pretendemos organizar Câmaras Temáticas de Integração voltadas para atividades de pesquisa. É uma forma de institucionalizar as competências da UFRJ em áreas de grande demanda da sociedade. Por fi m, também queremos con-solidar a liderança da UFRJ em suas várias áreas de pesquisa por meio da divulgação do conhecimento gerado internamente. Isso pode ser feito nas mídias internas e externas, em publicações institucionais e estudos de conjuntura, em debates setoriais e de políticas governamentais e, ainda, atra-vés da participação em congressos, feiras e exposições para segmentos específi cos da sociedade.

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14 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Setores estudantis se organizam, uns para protestar e outros para apoiar a sessão...

Universidade

Uma linha comum norteia os direitos humanos no século XXI: que o anseio por segurança não os relegue a um segundo plano, aliada à urgência em vencer o precon-ceito que associa a defesa desses inalienáveis valores universais à conivência com o crime. A conclusão resulta dos debates provocados pela passagem do mês em que se comemora o Dia Internacional dos Direitos Humanos (10 de dezembro).

O Departamento de Direito do Estado da Faculdade de Direito (FND/UFRJ) realizou o Seminário Direitos Humanos, Pobreza, Demo-cracia e Violência, no Palácio Universitário da UFRJ. Já o Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos (NEPP-DH/UFRJ), em conjunto com o Núcleo de Direitos Humanos da Pontifícia Universidade Cató-lica (PUC-RJ) e outras entidades da causa, promoveu o evento Direitos Humanos: relei-turas e desafios. O encontro foi realizado, no Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH/UFRJ) e na PUC-RJ.

O primeiro seminário, organizado pela professora Vanessa Oliveira Batista da FND, contou com a presença da canadense Louise Arbour, alta comissária da Organização das Nações Unidas (ONU) para direitos humanos. Doutora Honoris Causa em 27 universidades, Arbour foi juíza da suprema corte de seu país e procuradora do Tribunal Penal Internacional (TPI) para Ruanda e para a ex-Iugoslávia. Atuando pelo TPI, foi responsável pela denúncia do ex-presidente iugoslavo Slobodan Milosevic, por crimes de guerra, em 1999. Foi a primeira vez que um chefe de Estado foi julgado por uma

Direitos em xequeEm celebração ao Dia Internacional dos Direitos Humanos, a UFRJ promoveu dois seminários que

possibilitaram o diálogo e a reflexão conjunta de diversos pesquisadores e autoridades.

Bruno Franco

corte internacional. Além de Milosevic, também foram julgados Milan Milutinovic, então presidente da Sérvia; Nikola Sainovic, à época primeiro-ministro da Iugoslávia; Dragoljub Ojdanic, comandante das Forças Armadas iugoslavas e Vlajko Sojilkovic, mi-nistro de Assuntos Internos da Sérvia.

Assalto à dignidadeDe acordo com Arbour, todos têm di-

reito à expressão e ao voto (dois exemplos, mais difundidos e reconhecidos), mas também à alimenta-ção, vestuário e habi-tação dignos. As opor-tunidades desiguais tornam impossível ao pobre lutar por esses benefícios no merca-do. “Seus direitos à moradia e alimentação são negados, porque eles simplesmente não podem pagar por eles”, afirma a comissária. O primeiro passo para mitigar as desigualda-des é definir pobreza e diagnosticá-la. Na concepção aceita pela ONU, isso significa não apenas rendimentos insuficientes, mas a falta de oportunidade, justiça e poder. “Como falara Kofi Annan, em um de seus últi-mos discursos, como secretário-geral da ONU, a pobreza é sempre acompanhada pelo assalto à dignidade humana”, cita a magistrada.

Para Arbour, os Objetivos do Milênio – oito metas estabelecidas pela ONU, em setembro de 2000, a serem cumpridas até 2015, a saber: a erradicação da extrema po-breza e fome; universalização do ensino básico; promoção da igualdade entre os sexos e autonomia das mulheres; redução da mortalidade infantil; melhoria da saúde materna; combate à Aids, malária e outras doenças; sustentabilidade ambiental e o esta-belecimento de uma parceria mundial para o desenvolvimento - fornecem a estrutura para

que as 191 nações pos-sam contrabalançar as desigualdades existentes entre si e internamente.

No entanto, a ava-liação até o momento é pessimista. “A maior parte dos países em desenvolvimento está ficando pra trás e dis-tante das nações mais desenvolvidas. Direitos humanos fundamentais permanecem negados na maior parte do mun-do. A África subsaaria-na (47 países) não está preparada para atingir nenhuma das metas do

milênio”, lamenta a comissária.No entendimento da magistrada, pobreza

não é apenas causa, mas também conseqüên-cia da falta de direitos humanos. “Discrimina-ção racial, de gênero, tráfico pelas fronteiras, má educação, renda baixa são encontrados em

países tão diferentes quanto Nepal, Guatemala ou Libéria”, explica. Os direitos humanos e o desenvolvimento não podem progredir sem forte esforço internacional, não obstante, a qualidade e a previsibilidade da ajuda inter-nacional permanecem problemáticas, o que reforça a necessidade de planejamento de longo prazo e investimentos para que esses direitos sejam garantidos. “Vontade política é tão importante quanto dispor de recursos econômicos. A sociedade deve pressionar o governo por respostas”, conclama Arbour.

Em países que se recuperam de guerras, os recursos necessários para garantir educação universal e gratuita, assistência médica e pri-sões humanamente justas chamam o Estado à ação, pois dois terços das violações aos direitos humanos – constatadas pela ONU – advêm de países que se recuperam ou estão em conflito. “Em Darfur (no sul do Sudão, onde a guerra civil resulta na maior crise humanitária atual), queima de casas, colheitas, tanto quanto as-

sassinatos e estupros são usados como instru-mentos de guerra”, informa a canadense.

TransnacionaisA maioria das reclamações constatadas

pelas Nações Unidas acerca de financiamen-to a milícias, interferência na política local, desrespeito às leis trabalhistas, envolvem em-presas de mineração, petróleo e gás. O poder político crescente das transnacionais é uma realidade inegável. 51 das maiores economias do mundo são corporações e não países. No entanto, Louise Arbour, acredita que a apro-ximação entre as classes médias dos diversos países tornará as companhias mais atentas às aspirações das mesmas.

Questionada quanto aos direitos huma-nos no Brasil, Arbour considera que seria pretensioso fornecer um pacote de soluções, tendo passado apenas dois dias e meio, em nosso país. Para a comissária, há em nosso país, “uma preocupação desproporcional com segurança, mas não com exclusão e discrimi-nação. A solução passa pela força dos atores locais. As pessoas devem ser arquitetas de seus destinos”, avalia. Essa característica está presente no programa do governo federal, Bolsa-Família, pois o pagamento dos recursos está sendo feito às mulheres.

Segundo a comissária, os países ricos têm mostrado preferência por direitos civis e políticos em detrimento de direitos sociais, econômicos e culturais, que são compreendi-dos como aspirações e seriam providos pelo livre mercado.

Para Arbour, não há nada pior que a es-calada de violência e de medidas repressivas. “Direitos humanos não são contrários à lei

O poder político crescente das

transnacionais é uma realidade inegável. 51 das

maiores economias do mundo são

empresas e não países.

Em 2007, foram 861 mortos em

confronto. O que representa 21% de óbitos a mais do

que em relação ao ano anterior.

Especialistas lembram, vencer preconceito que associa direitos humanos à convivência com o crime é um dos desafios do século XXI.

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Dezembro/Janeiro •2008 15UFRJJornal da

Universidade

Setores estudantis se organizam, uns para protestar e outros para apoiar a sessão...

A canadense Louise Arbour: “a sociedade deve pressionar o governo por respostas”.

e à manutenção da ordem pública. Vê-los como direitos para criminosos é uma visão deturpada. Forças que menosprezem direitos humanos não podem obter sucesso contra a violência e a corrupção em lugar algum, nem mesmo em suas próprias fi leiras”, critica a magistrada.Indivisíveis e interdependentes

O questionamento clássico das sociedades democráticas é “quanto de minha liberdade estou pronto a sacrifi car para aumentar minha segurança?”. De acordo com Arbour, essa per-gunta foi deturpada e tornou-se: “quanto da liberdade dos outros es-tou pronto a sacrificar para aumentar minha segurança? A resposta seria: toda ela.”

No seu artigo 25, a Declaração Universal dos Direitos do Homem evoca o exercício de di-reitos econômicos e so-ciais (direito à alimenta-ção, seguro-desemprego, direito à moradia e ao auxílio médico). Mas, a Guerra Fria, a partir do golpe de Estado de Praga, congelou o debate sobre direitos humanos, justamente no reconhe-cimento dos direitos eco-nômicos e sociais.

Em 1993, a Conferência de Viena, con-vocada pelo então secretário-geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, que teve a sensibilida-de de perceber que o colapso da antiga União

Soviética (URSS) criava uma oportunidade histórica para retomar o diálogo de um mundo ainda polarizado, consagrou a equivalência entre os direitos civis e políticos, de uma parte, e os direitos sociais, econômicos e culturais, de outra. Como afi rmou Jean Ziegler, em seu li-vro L´empire de la honte (ed. Arthème Fayard, 2005, ainda sem tradução para o português), “todos os direitos do homem são, deste mo-

mento (a Conferência) em diante, considerados universais, indivisíveis e interdependentes e não existe hierarquia entre eles”.

À queima roupaA insensibilidade

aos direitos humanos e o emprego da violên-cia, de uso legítimo das forças de Estado, como forma de tentar solucio-nar a violência criminal resultaram em inúme-ras chacinas no Rio de Janeiro. João Tancredo, presidente (exonerado, como defi ne a si mesmo) da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) cita como exem-plos de extermínio, con-duzidos por policiais: as chacinas de Acari, Vigário Geral, Cande-

lária, e Baixada Fluminense .Nesta última,29 pessoas morreram, todas são consideradas clandestinas.

Além dessas, em episódio ocorrido no

Complexo do Alemão, foram feitos, de acordo com Tancredo, relatos bárbaros à Assembléia Legislativa Estadual do Rio de Janeiro (Alerj) e à OAB, que formulou denúncia ao Ministério Público e à OEA (Organização dos Estados Americanos). “O laudo criminalístico apontou uma média de quatro balas – de diferentes cali-bres – por cadáver, todos em regiões letais. Dezesseis foram mortos pelas costas, quatro com tiros na nuca, muitos com ‘balas tatuadas’ (quando o dis-paro é feito à queima-roupa, deixando uma impressão na pele da vítima)”.

Em 2007, foram 861 mor-tos em confronto. O que repre-senta 21% de óbitos a mais que no anterior. A política atual trará apenas um saldo eleva-díssimo de mortos e nenhuma segurança.

Para João Ricardo Dor-nelles, professor de Direitos Humanos da PUC-RJ, nossa história é marcada por epi-sódios de violência: em Palmares, Canudos, Carajás, Vigário... Sempre contra os excluídos e marginalizados. Essa violência persiste, pois “não houve ruptura das bases rurais de nossa cultura. Não fi zemos revolução, nem mesmo burguesa. Não houve ruptura com o fi m da ditadura. O delegado de polícia é o ex-torturador que recicla sua linguagem. E no imaginário da elite há os agentes idealizados que vão resolver a questão da segurança: dos capitães do mato ao capitão Nascimento (personagem do fi lme Tropa de elite)”.

Para Alessandro Molon – presidente da Comissão de Direitos Humanos da Alerj – esse modelo, de atuação das forças policiais, encon-tra respaldo na opinião pública. “É um resíduo da

ditadura essa depreciação a quem advoga direitos humanos, como quem passa a mão pela cabeça de bandido”, lamenta o deputado estadual (PT-RJ). Segundo Molon, o Estado do Rio de Janeiro atingiu, em 2007, a marca de 1.200 mortes em confronto com a polícia. Todas as forças policiais norte-americanas – que são consideradas bru-

tas – juntas não mataram tanto.

A Comissão apresen-tou laudos cadavéricos de 19 pessoas mortas em confrontos e foi hostiliza-da por isso. “Agem como se atuássemos pela im-punidade, quando o que ocorre é o contrário. Essa percepção muda quando o crime afeta um jovem de classe média. Não se pode admitir excessos contra uns, pois logo se admitirá contra outros”, ressalta Molon.

A democracia requer além do sufrágio, represen-

tatividade, direito a julgamento justo e respeito à integridade do cidadão. “Esses dois últimos não têm sido respeitados. O exercício da cidadania é limitado desde o começo de nossa história”, critica o parlamentar.

A estratégia de repressão seria – no enten-dimento de Dornelles – uma política de morte. Conseqüência da perda de consciência crítica do real, da descartabilidade do ser humano, que faz parte da lógica do mundo atual. “Umberto Eco e Norberto Bobbio já diziam que o fascismo está dentro da gente. E ele pode aparecer em épocas de banalização do mal (conceito de Arendt), de banalização da violência. A hu-manidade está se perdendo. Devemos resgatar princípios e direitos”, apregoa o professor.

Primeiro levaram os negros Bertolt Brecht (1898-1956)

Primeiro levaram os negrosMas não me importei com isso

Eu não era negro Em seguida levaram alguns

operários Mas não me importei com isso Eu também não era operário

Depois prenderam os miseráveis Mas não me importei com isso Porque eu não sou miserável

Depois agarraram uns desempregados

Mas como tenho meu emprego Também não me importei

Agora estão me levando Mas já é tarde.

Como eu não me importei com ninguém

Ninguém se importa comigo.

“...no imaginário da elite há os agentes

idealizados que vão resolver

a questão da segurança: dos

capitães do mato ao capitão

Nascimento.”

Especialistas lembram que vencer preconceito que associa direitos humanos à convivência com o crime é um dos desafi os do século XXI.

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16 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Coryntho Baldezilustração Marco Fernandes

O estardalhaço feito pela grande imprensa em torno das mudanças na direção do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) teve resultado imprevisto: transformou medida de rotina administrativa em contenda acalorada acerca da política econômica do governo Lula da Silva. Inicialmente, a troca no comando do órgão foi recebida como surpresa agradável por setores considerados – no jargão do debate econômico – desenvolvimentistas. Afinal, Márcio Pochmann e João Sicsú, economistas de visão crítica a res-peito da política monetária do governo federal, foram nomeados, respectivamente, presidente e diretor de Macroeconomia do Ipea – agora vinculado ao recém-criado Ministério Extraor-dinário de Assuntos Estratégicos. Em sua vasta

Debate reaceso

Presença de economistas desenvolvimentistas, na direção do Ipea,

causa reação e polêmica.

Economia

produção intelectual, em livros ou artigos, tanto Pochmann (professor da Unicamp) como Sicsú (professor da UFRJ) vêm salientando que muitas das mazelas sociais brasileiras derivam dos juros elevados que sustentam os lucros recordes de bancos e instituições financeiras.

Contudo, foi depois de dispensar quatro pesquisadores, utilizando prerrogativa adminis-trativa, que a nova direção passou a ser atacada de modo virulento por medalhões do colunis-mo econômico. Dois desses pesquisadores, por exemplo, estavam cedidos pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BN-DES) por meio de um convênio cuja vigência expirara. Mas, então, por que a imprensa pro-duziu manchetes em espírito de guerra fria, do

tipo “Expurgos no Ipea”? De acordo com alguns especialistas ouvidos pelo Jornal da UFRJ, a grita partiu de porta-vozes do capital especu-lativo, que se sentiu ameaçado e sempre se põe na defensiva quando se trata de blindar os altos rendimentos que auferem na ciranda com títulos da dívida pública. Já para outros, o Ipea, como mero órgão de assessoramento, não tem caci-fe para influir em uma possível reorientação estratégica de cunho desenvolvimentista.

Reorientação estratégica?Após as críticas da imprensa à nova dire-

ção do órgão, o Conselho Regional de Eco-nomia do Rio de Janeiro (Corecon-RJ), em nota pública de ampla repercussão – assinada

também pelo Sindicato dos Economistas do Rio de Janeiro e pelo Centro de Estudos para o Desenvolvimento – decidiu assumir a defesa de Márcio Pochmann e João Sicsú. Ao falar sobre a polêmica, o presidente do órgão, João Paulo de Almeida Magalhães – professor aposentado de Direito Econômico da UFRJ – lembra que o Ipea não é órgão de pesquisa acadêmica, mas de assessoramento do governo. Portanto, a direção e o corpo técnico devem estar ajustados às linhas de política econômica, observa. “Tentar impe-dir a mudança na sua composição constitui maneira mal disfarçada de impedir a adoção de nova estratégia econômica para o país”, frisa o especialista.

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Dezembro/Janeiro •2008 17UFRJJornal da

Economia

No entanto, Magalhães não deixa de classifi -car a política econômica atual, até agora, como “estritamente neoliberal, visão sacramentada no Consenso de Washington, de 1990”. Depois do que chamou de estrondoso fracasso da fórmula neoliberal e do malogro do “espetáculo do crescimento”, repetidamente anunciado pelo presidente Lula, ele diz sentir ventos favoráveis à mudança.

Aponta como sintoma mais claro dessa mudança o Programa de Aceleração do Cres-cimento (PAC), embora advirta que ele está aquém da estratégia de longo prazo de que o país necessita. Mas se o governo admite que precisa de um programa comandado pelo Estado para acelerar o desenvolvimento, contrariamente ao que prega o neoliberalismo, passa a reconhe-cer que mecanismos de mercado não bastam para alcançar tal meta – analisa o presidente do Corecon-RJ. “Nesse contexto, a nomeação de Márcio Pochmann e João Sicsú para o Ipea sinalizam claramente a aceitação da necessidade de mudança”, realça João Paulo Magalhães.

Reinaldo Gonçalves, professor do Instituto de Economia (IE) da UFRJ, é incisivo ao afi rmar que não acredita em alteração na condução da economia.“Em primeiro lugar, o Ipea tem peso zero ou próximo de zero na formulação e imple-mentação de políticas econômicas. Em segundo lugar, não podemos deixar de lado a estrutura de poder no governo federal” sentencia o eco-nomista. Quem está no governo – prossegue – é obrigado a se submeter às conveniências e idios-sincrasias do presidente. Cita como exemplo o atual ministro da Fazenda, Guido Mantega, a quem atribui uma posição pendular em função das determinações de Lula.

Sobre o fato de outros economistas de visão também desenvolvimentista estarem no governo (Luciano Coutinho no BNDES, por exemplo), aponta como ingênua a idéia de que um terceiro escalão de técnicos tenha grande infl uência no processo decisório, “altamente centralizado e de corte imperial”.

Por isso, de acordo com Reinaldo Gonçal-ves, não há chance de o governo Lula emplacar uma agenda de desenvolvimento. O próprio

Programa de Aceleração do Crescimento, se-gundo ele, tem diversas fragilidades. Em livro lançado em dezembro (A economia política do governo Lula, em co-autoria com Luiz Filguei-ras, Ed. Contraponto) Gonçalves afi rma que o PAC é uma coleção invertebrada de projetos, “que inclui desde hidrelétricas de bilhões de dólares até obras de maquiagem na comunidade do Pavão-Pavãozinho”. E acrescenta: “o PAC mantém as linhas gerais da política macroeco-nômica”.

IncógnitaPara outro professor

do IE/UFRJ, Fernando Cardim, houve uma mudança – “ainda que moderada” – na polí-tica macroeconômica no segundo mandato de Lula, imprimida pelo ministro da Fa-zenda, Guido Man-tega. Mas salienta que ainda há uma infl uência muito forte do Banco Central para a manu-tenção da política liberal dos primeiros três anos de governo. “É difícil saber até onde vai o desejo de mudança, contudo”, questiona. O professor lembra, o ministro Palloci não caiu porque o presidente discordou das políticas liberais, mas por ter se envolvido em escândalos, culminando na violação do sigilo bancário do caseiro que o denunciou. “O que teria acontecido se, ao invés de Pallocci, o Ministério fosse confi ado a um titular com seu perfi l, mas menos vulnerável a escândalos?” interroga.

Segundo Cardim, agora há mais ênfase em investimentos públicos e crescimento econô-mico do que no primeiro mandato, voltado inteiramente para aplacar as exigências de bancos”. Até onde é uma virada estratégica? “É difícil responder porque hoje, como on-

tem, é muito difícil decifrar as intenções do presidente”, observa.

Os sinais confusos emitidos pelo Palácio do Planalto também não passam em branco na análise de João Paulo de Almeida Magalhães. Ele evita falar, por exemplo, em supremacia da visão econômica heterodoxa neste segundo mandato. A palavra que emprega é tolerância. O proble-

ma, segundo ele, é que o presidente Lula ainda he-sita em transferir para os desenvolvimentistas o efe-tivo comando da política econômica nacional. “Es-tamos, assim, na situação paradoxal em que, na área econômica, convivem no Governo duas equipes técnicas com visões ra-dicalmente diferentes no que concerne a políticas de desenvolvimento”, opi-na. Mas, até o momento, avalia que o “comando ainda está com os mone-taristas”. Para confi rmar a tese, lembra que Henrique Meirelles, o presidente do Banco Central, continua à frente da política econô-mica do país, “apesar de

Lula, ao lançar o PAC, ter implicitamente aceito o erro da visão neoliberal”. Isso acontece, explica, porque o presidente brasileiro ainda crê na tese vendida pelo pensamento conservador de que qualquer infl ação é, potencialmente, explosiva. Ele afi rma: “para Lula, a presença de Henrique Meirelles à frente do Banco Central constitui a única garantia confi ável de que os preços não escaparão de controle”, afi rma. E a atual estra-tégia para conter a infl ação – esclarece Almeida Magalhães – é a manutenção no país de juros que são, em média, os maiores do mundo. “Isto signifi ca que os banqueiros e rentistas recebem anualmente do Governo cerca de 160 bilhões de reais, o que representa de 6% a 7% do PIB e é um valor oito vezes superior ao gasto com o Bolsa Família”, compara o presidente do Corecon-RJ.

Quem comandaIndagado sobre o papel de Henrique

Meirelles na defi nição da política econômica, Reinaldo Gonçalves ressalta que “fulanizar” o debate é ingenuidade e prejudica o enten-dimento da realidade. “É erro combater espan-talhos como Palloci, Levy, Meirelles et caterva”, critica, lembrando que confl itos entre visões sempre há em qualquer governo. A questão central, para Gonçalves, é compreender que o setor dominante, hoje, é o dos bancos. “Eles fi -nanciaram largamente a campanha presidencial de Lula em 2002 e 2006”, frisa.

Ao falar sobre o real comando da economia, Fernando Cardim lembra que vivemos em um regime presidencialista. E se há confl itos entre visões distintas, continua, quem os alimenta é o próprio presidente, que não sinaliza claramente as suas intenções e estratégia. “Como se diz em outros países, o presidente tenta comer o bolo e guardá-lo ao mesmo tempo” ironiza. É o cenário favorável dos últimos anos, segundo Cardim, que permite a Lula adiar escolhas, quem sabe até o fi nal do seu mandato, se tiver sorte. “Mas é a ambigüidade do presidente que alimenta confl itos”, destaca.

Embora também não veja hegemonia da ótica desenvolvimentista no governo, Fernando Cardim aponta equilíbrio maior entre os setores liberais – “que ainda subsistem até mesmo no ministério da Fazenda, mas principalmente no Banco Central” – e grupos heterodoxos, na Fazenda, na Casa Civil e, agora, em ministérios como o de Assuntos Estratégicos, ocupado por Mangabeira Unger. Mas recomenda que se es-pere para avaliar como essa situação evolui. Até porque, diz, é preciso ter cuidado nas conclusões

com as mudanças na direção do Ipea, “que não é uma instituição executiva, mas de refl exão”. Ele lembra que a pressão dos interessados na manutenção da política econômica, como ins-tituições fi nanceiras e áreas acadêmicas que lhes são próximos, continua muito forte. Além disso, a mídia – frisa – atua como lobbie desses setores: “veja só o carnaval que ela fez com a devolução de funcionários do BNDES à sua instituição de origem”.

Em relação à possível substituição do arro-cho fi scal por uma agenda de desenvolvimento, Cardim é cauteloso. No entanto, acredita que o aperto orçamentário deve diminuir natural-mente como resultado de dois fatores. Primeiro, o crescimento econômico por si melhora as contas públicas porque aumenta a arrecadação de impostos. Com isso, o défi cit cai e se emite menos títulos da dívida pública para cobri-lo. “Isso diminui um pouco a infl uência dos bancos na exigência de juros altos”, observa. Por outro lado, afi rma que apesar da cautela doentia do Banco Central em reduzir juros, eles têm caí-do, o que alivia a conta a ser paga aos agentes fi nanceiros pelo governo. “Naturalmente, uma complicação importante foi adicionada com a atitude carnavalesca do PSDB e do PFL na re-jeição à prorrogação da CPMF. Até que se criem novas fontes de receitas, isto vai desequilibrar a ação do Estado” prevê.

“...uma complicação importante foi

adicionada com a atitude carnavalesca

do PSDB e do PFL na rejeição à prorrogação da CPMF. Até que se

criem novas fontes de receitas, isto vai

desequilibrar a ação do Estado.”

Para Reinaldo Gonçalves, o debate econô-mico no Brasil é tecnicamente medíocre. O governo mostra indicadores – por exemplo, o spread* dos títulos brasileiros no mercado internacional – e passa-se a considerar como um fato a redução da vulnerabilidade exter-na do país, analisa o professor da IE/UFRJ. “Nada mais distante da realidade” frisa. Na atual fase ascendente do ciclo internacional – realça – tem havido melhora generalizada dos indicadores em praticamente todo os países.

No entanto, afi rma que quando se traba-lha com o índice de vulnerabilidade externa comparada “verifi ca-se que o do governo Lula é maior do que o índice médio do governo FHC”. Não é por outra razão, acrescenta, que o Brasil continua com o quarto mais elevado spread no conjunto dos mercados emergentes. “Ou seja, a economia brasileira é percebida em alto risco”, sustenta.

Outro problema do país, segundo Rei-naldo Gonçalves, é o que chama de vulne-rabilidade externa estrutural, um fenômeno de longo prazo. Afi rma que as medidas de política econômica e de política externa, orientadas para a exportação de produtos primários, ampliam esta vulnerabilidade de longo prazo. E cita dois exemplos: o foco do PAC em projetos orientados para o escoa-mento externo da produção de bens primá-rios e a insistência das negociações comerciais internacionais na abertura dos mercados para produtos agrícolas.

“Qualquer crise ou fator desestabilizador externo pegará o país de calça curta, pois as reservas internacionais desaparecerão em poucas semanas devido à liberalização cambial”, conclui.

* Spread é a diferença entre quanto os bancos pagam e o quanto recebem quando emprestam dinheiro, ou seja, o seu lucro.

As vulnerabilidades da economia

e o quanto recebem quando emprestam dinheiro, ou seja, o seu lucro.

Na direção do Ipea, o economista João Sicsú. O professor da UFRJ é um dos críticos à política econômica em vigor.

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18 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Rafaela Pereirailustração Anna Carolina Bayer

Comportamento

Que tal uma segunda vida?

Essa é a proposta do Second Life, uma plataforma 3D (tridimensional) que virou febre em vários países. O slogan de um mundo digital totalmente imaginado e criado por cada um de seus moradores, torna o SL, como é chamado pelos cibernéticos, apreciado por muitos e criticado por outros.

Com um nome que inicialmente pode ser relacionado com assuntos sobre vida após a morte, o Second Life (SL) foi aberto ao público em 2003 pela Linden Lab, companhia dos EUA que desenvolve e hospeda o site. Como no jogo The Sims On-line, também conhecido pelos aficionados por jogos eletrônicos, o SL é uma espécie de RPG (Role Playing Game) on-line para um número massivo de jogadores, mas com o diferencial de haver troca de moeda, compra e venda de imóveis e terras virtuais, além da possibilidade real de empresas e corporações entrarem nesse universo. Os usuários são cha-mados de residentes, que denominam a vida virtual como “metaverso” (trabalho de imersão em espaços 3D).

Pelo mundo, a adesão ao programa aumenta vertiginosamente. Entre janeiro e março de 2007, a população on-line do Second Life cresceu 46%. Dentre os cerca de 1,3 milhão de residentes que entraram no programa em março de 2007, 61% vieram da Europa, 19% da América do Norte, 13% da Ásia, 6% da América Latina e 2% da África e do Oriente Médio. “Tudo o que nós criamos foi uma plataforma, um mundo quase vazio. Fomos bem sucedidos no fato de vocês terem vindo injetar vida nele. Se Second Life se tornou um mundo é porque vocês o criaram. Ele é e sempre será uma representação do mundo como nós o conhecemos. E, embora sejamos imensamente diferentes uns dos outros na aparência, por dentro nós somos iguais: sangue, vísceras e um monte de sonhos. Até os

sonhos são os mesmos: todo mundo quer amor, sucesso, felicidade”, diz o autor do software, Philip Rosedale, no prefácio do guia oficial do Second Life (2007).

De acordo com a jornalista Risoletta Miran-da, especialista em Marketing pela Coppead/UFRJ (Instituto de Pós-graduação e Pesquisa em Administração), o sucesso do jogo se deve a sua interface tridimensional. “Você está em primeira pessoa e pode visualizar o metaverso. Além disso, acho que a gente sempre quer ‘vi-venciar’ situações que não se poderia no mundo real. É como brincar com sonhos, mas de olhos bem abertos”, explica Risoletta.

Para Abel Reis, mestre em Engenharia de Sistemas pela Coppe/UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-graduação e Pesquisa de Engenharia) esse é um mundo que oferece aos seus habitantes experiências e oportunidades de relacionamento, trabalho e de educação. “O objetivo é relacionamento e negócios. Não há metas, níveis de energia ou coisas parecidas”, afirma Reis.

Segundo Ieda Tucherman, professora da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ) essa é mais uma plataforma comercial do que qualquer outra coisa. “O que você tem na verdade é uma troca de informações maior e tudo o que é necessário tem que ser com-prado. Essa é uma mentalidade americana de uma espécie de utopia que realiza uma excelente sociedade de alto nível capitalista”, analisa a professora.

Contrário às opiniões favoráveis ao progra-ma, Marcos Cavalcanti, professor e coordena-dor do Centro de Referencia em Inteligência Empresarial do Coppe/UFRJ, considera o SL como um simples jogo. “Uma balela”, avalia Cavalcanti, lembrando que, de acordo com o filósofo Pierre Lévy, o advento da internet quebra um dos paradigmas da comunicação – um emissor para muitos – passando a ser de muitos para muitos, impondo alterações profundas na maneira como o ser humano se relaciona. “Essa é a essência do que está acontecendo na internet. Cito como exemplo a Wikipédia e o Google. Contudo, o Second Life não tem nada disso. Acho que não tem nada de novo para contribuir. Não captura o principal das comunidades, das trocas entre as pessoas e continua sendo um paradigma de um para muitos. Posso estar redondamente enganado, assim como Pierre Lévy”.

Versão brasileira Com o sucesso lá fora, o Brasil foi o primeiro

país a conquistar, em abril de 2007, uma versão oficial em língua nativa para o jogo: a Mainland Brasil, desenvolvida pela Kaizen Games em parceria com o iG. De acordo com dados da Linden Lab, até o lançamento os brasileiros estavam na oitava posição. Contudo, após os mais de 480 mil novos cadastros em apenas quatro meses na versão nacional, os brasileiros já são considerados uma das maiores comu-nidades da plataforma, ficando atrás apenas

dos EUA e da Alemanha. Chega-se a estimar até que a população brasileira no Second Life deverá chegar a dois milhões de habitantes até abril de 2008.

Risoleta Miranda aposta na personalidade do brasileiro. “O brasileiro, notadamente, gosta de novidades e a internet é um ambiente de inovação constante. Acho que a rápida adoção é parte da personalidade do brasileiro, que gosta de experimentar”, conta.

Marcos Cavalcanti também analisa positi-vamente essa inserção em massa dos brasileiros. “É positivo, pois mostra que ele está insatisfeito e aberto ao novo. Contudo, ainda está faltando o espírito crítico e a capacidade de examinar o que se vê. Para se ter esse estímulo crítico é preciso uma educação questionadora. O que deve ser mais trabalhado na universidade”, sinaliza o professor.

Negócios virtuaisAssim como na vida real, no metaverso

também há muita movimentação financeira. Com uma moeda especifica – o Linden Dollar (L$), os residentes podem virar empresários e trabalhar nesse mundo de baites.

Como o Second Life é dividido por ilhas e muitas delas ainda estão desocupadas, mui-to há para se explorar, aumentando assim a procura por “engenheiros” virtuais. Até um curso foi criado no mundo real para ensinar a empreendedores e companhias a linguagem de programação do SL para que eles possam criar

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Dezembro/Janeiro •2008 19UFRJJornal da

Comportamento

seus ambientes virtuais, suprir essa demanda criada pelos residentes e, claro, lucrar.

Na plataforma nacional, há a promessa do primeiro leilão de terrenos nas ilhas brasileiras. Como chamariz, para atrair ao público alvo, colocaram imagens das cidades de São Paulo, com seus arranha-céus, e o Rio de Janeiro, com a famosa calçada de Copacabana. Aliás, os residentes já podem alugar seus terrenos na princesinha do mar.

Cada moeda de Linden Dollar pode ser comprada e vendida – por moedas do mundo real – em diversas operações de câmbio on-line. Assim, é possível pagar por seus bens e serviços dentro do SL e também converter o que se ganha dentro do game em dólares ou reais (a taxa de câmbio gira em torno de L$ 300 para 1 dólar). No Brasil, essa troca de Linden por reais ainda não é possível, mas de acordo com a plataforma nacional, esse recurso esta-rá disponível em breve. “Louco e ao mesmo tempo curioso esse movimento de dinheiro. Os administradores do site, inclusive, fazem leilão da moeda quando ela começa a valorizar ou desvalorizar muito em relação ao dólar. Se há entrada muito alta, eles retêm. Se diminui a entrada, eles liberam as moedas. É a Linden Lab atuando como um Banco Central. Contudo, isso está deixando muitos países preocupados, pois essa pode ser uma possibilidade de lava-gem de dinheiro”, questiona Ieda Tucherman, professora da ECO/UFRJ.

Quem já faz parte desse mundo?A lista de adesões é grande e aparecem desde

empresas que desejam marcar seu espaço, mesmo sem saber ao certo o que irá lucrar, a artistas e universidades. De acordo com Ieda Tucherman, o ministro da cultura e cantor, Gilberto Gil, lançou seu últi-mo CD nas redes virtuais e até a banda The Police fez um show. “No Second Life você tem lançamentos de produtos da IBM e seis universidades já instalaram seu campus. Ainda há bancos, a agências de notícias Reuters e uma filial do Diário de São Paulo”, enumera a professora.

O professor Marcos Ca-valcanti afirma não conhecer nenhuma empresa que tenha entrado no metaverso e que tenha ganhado dinheiro. Para ele, o SL faz parte das coisas que ninguém en-tende o que vai ser, mas precisa estar presente, e compara com os efeitos das “bolhas” da Inter-net. “Na história da evolução humana sempre tiveram essas histórias de apostas que não vão dar em nada. Alguns anos atrás, bastava um projeto com três palavras-chave sobre internet para que os investidores colocassem dinheiro. Eu não apostaria no SL, uma vez que se trata de reprodução de paradigmas anteriores. É um joguinho de computador coletivo, na melhor das hipóteses”, analisa Marcos Cavalcanti.

De acordo com informações do site oficial do programa, a Estônia abriu sua embaixada com o objetivo de promover o país e servir como canal de informação para os países em que a Estônia tem qualquer representação.Até debates sobre as alterações climáticas acon-teceram, recentemente, no metaverso. Outro assunto do momento é o caso da menina desa-parecida Madeleine McCann, onde se pede que os cidadãos “secondlifeanos” espalhem cartazes produzidos com as imagens da menina. E no Brasil, a Petrobras transmitiu uma palestra simultaneamente num auditório de verdade e no Second Life.

Em novembro de 2007 foi a vez da CNN, maior rede mundial de notícias, lançar suas ações no Second Life. Nessa empreitada virtual,

a CNN irá se apoiar no trabalho dos residentes, aspirantes a repórteres, que podem contribuir com material informativo para veiculação no canal.

As comunidades religiosas também entra-ram na onda. A Canção Nova, administrada pela Fundação João Paulo II, desenvolveu no metaverso uma ilha de onde foram transmiti-das informações sobre a visita do pontífice ao país, no ano passado.

A UFRJ também tem seu representante. O pintor Ricardo Newton, professor da Escola de Belas Artes, junto com Marcos Pereira, inaugurou duas exposições no mundo virtual. “Fizemos a coletânea Eternos Totens Urbanos, no dia 26 de agosto na Galeria Pérola Negra da Universidade do Brasil Virtual – o primeiro espaço educacional superior independente feito por brasileiros, do qual eu sou chanceler – e a exposição Arquétipos Urbanos aconteceu simul-taneamente no Centro Cultural dos Correios, e na mesma galeria virtual, ambas em setembro do ano passado. O Second Life não é algo para ser visto como item do futuro. O que fizemos foi abrir as portas para as artes plásticas poderem participar desta revolução”, relata Marcos, que se formou pela EBA/UFRJ.

Ricardo Newton aprovou a idéia de seu ex-aluno e se diz empolgado com as chances do SL. “Achei sensacional e penso que quando mais pessoas tiverem implantado o programa, a presença de público nas inaugurações poderá ser até maior do que em um evento real”, con-cluí o professor.

Os crimes e o direito no SLSe o slogan do Second Life

é que os próprios residentes montem seu mundo, é mais do que natural que roubos, assassinatos e outros delitos aconteçam nesse universo paralelo. Até uma popular série dos EUA aderiu à moda fazendo com que os detetives do seriado investiguem um homicídio dentro do universo virtual.

Para José Car-los de Araújo Almeida Filho,

professor de Direito Processual Civil da Escola de Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ), a proposta de uma forma de vida paralela que o jogo traz não parece salutar, sob o aspecto sociológico e filosófico. “Sen-do o universo jurídico formado por todas as relações, certamente ele passa a integrar este novo fenômeno, mas admito que as atenções do Second Life devam chamar mais a atenção de outras áreas, especial-mente da antropologia. Relativamente à legisla-ção, nada temos”, explica o professor.

Ele aponta ainda para a questão de que sem o Direito a sociedade se perde por completo e que não existe Direito sem sociedade e vice-e-versa. “Por isto, admito que es-tudos interdisciplinares são de grande importância. As pessoas que vivem nes-tes mundos paralelos modificam seus referenciais e seus modos de comportamento, interferindo, diretamente, na sociedade, seja na real, seja na ficcional. Parece algo do tipo Matrix. Quem passa a ser real ou ficcional? É preciso que as pessoas sejam humanas”, analisa José Carlos.

Assim, mal o mundo do metaverso começou a aumentar, leis foram surgindo para dar conta da demanda da nova “sociedade”. Para Luciana Boi-teux, professora de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFRJ, a aplicação do direito penal especificamente ao Second Life se trata de uma situação sobre a qual os doutrinadores ainda não se pronunciaram. “A razão pela qual enten-do que deve ser analisado caso a caso a eventual ocorrência de crime. Mas nada impede, no meu entender, por exemplo, se houver uma fraude praticada que se aplique o artigo 171 do Código Penal. Porém o problema maior seria determinar qual o local do crime para se determinar o juiz competente para julgar a causa”, explica a profes-sora. Ela acrescenta ainda que o fato da ameaça ser virtual não leva a irresponsabilidade penal de autores de crimes. “Embora haja ainda al-gumas questões pontuais que o direito penal e o direito processual penal precisem lidar, de

forma a se adaptarem a ordem jurídica vigente às novas realidades sociais”, pondera.

“...embora sejamos

imensamente diferentes uns dos outros na aparência, por

dentro nós somos iguais:

sangue, vísceras e um monte de

sonhos.”

A professora da ECO, Ieda Tucherman, lembra como caso emblemático o banimento de residentes que protagonizaram cenas de pedofilia no SL. “Após a imprensa alemã ter dado publicidade ao assunto e a polícia ter se mobilizado, Linden Lab cassou sumariamente as permissões de acesso dos usuários identi-ficados, embora eles não tenham infringido nenhum item do código de conduta do SL”,

recorda a professora.

Comunidade chinesaHipihi é o nome da comu-

nidade chinesa que entrará no ar este ano e que, mesmo antes do lançamento, já tinha mais de 30 mil usuários. O sucesso do Second Life na China pode ter como respos-ta o fato de que a primeira pessoa a ficar milionária no mundo virtual foi a chinesa

Anshe Chung. Seu maior mérito foi abrir uma imobiliária, dentro do SL, para vender terrenos e casas em locais batizados de Ásia dos Sonhos. “Agora a China está disponível para tudo. Essa adesão não me surpreende. Acho que o SL é uma excelente plataforma de negócio. Para um país, que está começando a viver o capitalismo, é um grande barato esse exercício de simula-ção”, aposta a professora Ieda Tucherman.

Criando seu avatarO primeiro passo quando se decide conhe-

cer o SL é baixar o software, que pode ser feito pelo site internacional (www.secondlife.com) ou pelo brasileiro (www.mainlandbrasil.com.br). Depois, cria-se o avatar com características femininas ou masculinas, de acordo com o gos-to do usuário. É possível escolher cor de pele, dos olhos, tipo de cabelo, formato do corpo e quais as roupas que ele vai usar.

Após essa iniciação básica todo o mundo virtual do SL estará nas mãos do usuário, ou melhor, no do seu avatar. É possível ir a boates, shoppings, estações espaciais, cinemas.

Uma outra curiosidade é que, apesar da pos-sibilidade de poder se experimentar voar pelas ilhas ou até mesmo de se teletransportar para qualquer outro lugar, muitos residentes optam por comprar carros pelo sinal de status que eles representam, ao menos no mundo real.

“É um joguinho de computador

coletivo, na melhor das hipóteses.”

Que tal uma segunda vida?

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20 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Cultura

Após um período de nove anos fechado, em março de 2006, o auditório Roxinho, palco de numerosos eventos e berço de lutas histó-ricas dos movimentos sindical e docente nas décadas anteriores, reabriu suas portas. Com a reinauguração do Roxinho, iniciava-se a concretização do audacioso projeto de criação de um centro cultural para a Ilha da Cidade Universitária.

Quatro meses depois, o Centro Cultural Professor Horácio Macedo foi inaugurado, compreendendo não só o auditório, mas também a Biblioteca Central, o anfiteatro e o salão nobre do Centro de Ciências Matemá-ticas e da Natureza (CCMN). Desde então, a comunidade acadêmica passou a contar com atrativas opções de lazer promovidas pelo complexo cultural que prima, acima de tudo, pela qualidade. “A intenção era não só resgatar alguma coisa que já existiu no passado, mas também promover um Cen-tro, com novas atrações. Esse é o primeiro passo na direção da promoção de uma vida cultural no Fundão, para uma comunidade ainda carente de espetáculos dessa natureza”, afirma Ângela Rocha dos Santos, decana do CCMN e principal articuladora da idéia de um Centro Cultural.

Ao longo de 16 meses, foram cerca de 300 eventos organizados, entre acadêmicos, shows de música, apresentações teatrais, sessões cinematográficas e espetáculos de dança. Clássicos do cinema nacional, como Carlota Joaquina e Terra em transe, e reno-mados artistas da música popular brasileira, entre eles Martinália, Casuarina, Vander Lee e Moraes Moreira, já tiveram vez nos palcos do Centro Cultural.

Ao contrário das casas de espetáculos tra-dicionais, o Centro não pretende levar apenas música ao público: “A preocupação do centro cultural deve ser a formação da platéia; ele precisa proporcionar mais do que música aos presentes, tem que fornecer informação e conhecimento acerca da história da nossa música. O show do Moraes Moreira, por

Onde a culturafaz morada

Engana-se quem pensa que os eventos da universidade

se limitam aos de caráter acadêmico. Desde agosto de 2006, o Centro Cultural Professor Horácio Macedo

proporciona aos alunos, professores e funcionários da

UFRJ peças de teatro, espetáculos de dança, sessões de cinema e apresentações musicais de

qualidade. Ali, conhecimento e lazer se encontram, levando ao público universitário a fina flor

da cultura brasileira.

exemplo, foi produtivo nesse sentido. Muitos jovens que desconheciam a sua trajetória puderam conhecê-la a partir da apresentação que o baiano fez aqui, pois ele não se limitou a cantar. Ele intercalou música e história, com partes de um livro dele que estava para ser lançado”, avalia Keila Chimite, coordenadora de eventos culturais do espaço.

Pedro Rougemont, estudante do 6º perío-do de Ciências da Computação, assegura que os eventos do Centro Cultural, em especial os filmes, possibilitaram uma familiaridade com as produções nacionais. De acordo com o alu-no, presente a mais de vinte apresentações, o dia fica melhor depois de assistir aos eventos. “Gosto dos curtas-metragens e dos filmes experimentais. Vi até um filmado por índios que registravam as tradições de sua tribo. Muito bacana. O prazer e a realização de as-sistir a uma boa produção, filme ou peça, me completam e me extasiam para o resto do dia. Então, recomendo a quem estuda na Ilha do Fundão que fique por dentro da programação do Centro. É um prato cheio para quem quer cultura”, convida Rougemont.

Outro fator que diferencia o Centro Cul-tural Professor Horácio Macedo das casas de show comerciais é a entrada franca. Todos os eventos promovidos no espaço são gratuitos, e os estudantes não precisam de senha para assistir aos shows. “O Centro é aberto. Basta entrar e participar”, diz Keila. A produtora garante também que os artistas se surpre-endem após as apresentações no Roxinho: “Mart’nália, por exemplo, ficou muito surpre-sa. Ela chegou aqui como gente comum e não como artista. Isso foi muito diferente para ela. Em entrevista, a cantora afirmou imaginar que as pessoas, principalmente os estudantes, não fossem ficar mais do que 20 minutos no show. Mas elas ficaram e o evento aconteceu em um clima muito legal”, lembra.

Apesar de se localizar no CCMN, o Cen-tro Cultural atrai visitantes de várias unida-des e Centros da UFRJ. Filipetas, banners e flyers virtuais são ferramentas de divulgação

distribuídas por toda a universidade, mas, segundo Keila, a principal razão do sucesso dos eventos é a propaganda boca-a-boca. A produtora acredita que, depois de irem pela primeira vez ao espaço, os estudantes divul-gam aos amigos suas impressões do lugar e levam novos freqüentadores aos eventos seguintes. Bastidores

O Centro Cultural Professor Horácio Macedo se mantém com o patrocínio da Decania do CCMN e de editais lançados pela Fundação Universitária José Bonifá-cio (FUJB) e pelo Banco do Brasil. As verbas, no entan-to, são restritas. Os artistas recebem apenas uma ajuda de custo equivalente a 20% do cachê cobrado em sho-ws convencionais.

Recentemente, o Centro obteve o apoio da empresa Porção Mágica, que dispo-nibiliza doces e salgados para os artistas no cama-rim. Ainda assim fica difícil atender a todos os pedidos inusitados: “Eles pedem coisas excêntricas, mas eu aviso que não temos condições de cumprir todas as solicitações. Não podemos, por exemplo, providenciar uma quantidade muito grande de toalhas brancas ou garrafas de uísque. Mesmo assim, tenta-mos fazer o possível”, expõe Keila Chimite,

O auditório Roxinho, coração do centro cultural, recebeu

este nome em função da cor das suas poltronas.

O interessante é que elas não deveriam ser roxas. O

responsável pela concepção do espaço, o arquiteto e

professor Jerônimo de Paula, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU/UFRJ), é daltônico e visualizava a cor

azul em lugar do roxo quando aprovou o projeto inicial.

Por que Roxinho?

completando que a cordialidade da recepção é o diferencial oferecido pelo Centro Cultural aos artistas. Programação 2008

Os eventos de 2007 se encerraram oficial-mente em novembro, mas a programação de 2008 já está pronta. Essa programação, reali-zada em parceria com o Centro de Tecnologia (CT), foi aprovada pelo Ministério da Cul-tura (MinC) e poderá captar recursos com

base na Lei Rouanet, que permite deduzir do imposto de renda da empresa patrocina-dora os gastos com o patrocínio.

A produção não di-vulgou a programação, mas garante que even-tos e artistas renoma-dos estão previstos para o próximo ano. Para o futuro, a decania do CCMN pretende am-pliar o Centro Cultural, através da construção de um teatro de arena e de salas de multimídia e da edificação de um museu.

Keila finaliza lembrando ainda que os alu-nos interessados em apresentar suas bandas de música na sessão “Prata da casa”, destina-da especificamente aos músicos estudantes, poderão se inscrever, ao longo de todo o ano, junto à Coordenação do espaço.

Aline Durães

Mart’nália, Dado Villa-lobos e Leila Pinheiro estão entre os artistas que já se apresentaram no palco do Roxinho.

reprodução Web TV/UFRJ

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Dezembro/Janeiro •2008 21UFRJJornal da

Vanessa Sol

Cultura

EBA mostra seu ecletismo

em BienalA produção artística do corpo discente da Escola

de Belas Artes da UFRJ fica em exposição no Castelinho do Flamengo durante os meses de

dezembro e janeiro. Os trabalhos apresentados foram selecionados por curadorias compostas

por professores e ex-professores da unidade.

Para tornar conhecida a produção artística de seus alunos, a Escola de Belas Artes (EBA) e a Decania do Centro de Letras e Artes (CLA) promovem a I Coletiva Bienal EBA – UFRJ 2007, entre os dias 14 de dezembro e 31 de janeiro de 2008, no Centro Cultural Oduval-do Vianna Filho, o conhecido Castelinho do Flamengo.

De acordo com a professora da EBA e coor-denadora da bienal, Ísis Braga, esta é também uma oportunidade de desfazer o mito de que a escola é conservadora e mostrar que, na verdade, é eclética, pós-moderna e tem uma produção contemporânea de altíssima qua-lidade. “É importante mostrar o que a escola tem produzido nos últimos anos. A EBA tem uma multiplicidade de cursos, idéias e pensa-mentos, que a torna pós-moderna”, enfatiza a professora.

Na mostra, estarão representados todos os cursos de Graduação com a exposição de tra-balhos de Pintura, Escultura, Gravura, Vídeos Experimentais, Fotografia, Desenho Industrial, Artes Cênicas, Composição de Interiores, Pai-sagismo e Licenciatura em Educação Artística, além da Pós-Graduação.

Para tanto, foram criadas diferentes curado-rias destinadas à seleção dos projetos de cada uma das áreas integrantes da mostra. Na de Escultura, por exemplo, os curadores Nivaldo

Carneiro, Ronald Duarte e Cláudio Cambra, professores da EBA, selecionaram quatro tra-balhos de baixo relevo, que ficarão expostos nas paredes, e cinco esculturas pequenas com linguagem contemporânea de viés perfor-mático. Nestes trabalhos, os artistas utilizam uma modalidade de artes visuais que interage com espaço físico e, em alguns casos, com a platéia, diferentemente do que acontece com a tradicional escultura monolítica. Segundo o professor de escultura da EBA e curador da mostra, Ronald Duarte, este tipo de escultura, com linguagem performática, é mais contem-porâneo e vem sendo muito utilizado pelos alunos da escola.

Neste estilo artístico, alguns alunos do curso de escultura apresentam performances sobre violência, efemeridade e morte, relações de consumo, desenvolvimento tecnológico e re-lação entre personagens históricos como São Francisco de Assis e Gandhi.

Os critérios de seleção foram a qualidade dos trabalhos, a produção dos estudantes que tentam criar uma nova linguagem e a adequa-ção ao espaço físico reduzido.

Os curadores são unânimes ao afirmarem a necessidade das obras de arte dialogarem com o espaço escolhido para a exposição, uma vez que as instalações são do início do século em estilo rebuscado e com decoração exuberante.

“Será um grande desafio preencher aquele espaço sem que os trabalhos conflitem com a decoração”, explica Cambra.

Pedro Decot, aluno de escultura da EBA, foi selecionado e vai expor o trabalho intitulado “América”, um baixo relevo em fibra de vidro. Decot reproduziu três vezes a figura clássica de Che Guevara, sugerindo uma produção em massa. Segundo o estudante, o conceito artístico utilizado no projeto foi inspirado em Andy Warhol, do movimento Pop Art. “O meu trabalho é um trabalho em massa, porém único, pois cada uma das três peças é singular. Uma não é igual à outra”, explica. Além disso, o artista afirma ter escolhido a figura de Che por ser um símbolo que une culturalmente a América Latina.

Já Andréa Cebukin, aluna de Desenho Industrial, com habilitação em Programação Visual, em seu projeto de pesquisa, trabalha com processos alternativos de fotografia, mis-turando antigas tecnologias com novas. Re-centemente, a estudante começou a pesquisar como fazer papel fotográfico a partir de extratos vegetais. “Arte contemporânea é isso, fazer arte através de novas linguagens”, explica, referindo às suas pesquisas na iniciação científica.

Ainda na opinião da estudante, expor um trabalho na bienal é importante porque desta maneira o aluno pode tornar conhecido o que está produzindo para o público externo e também para os estudantes da EBA, que muitas vezes não conhecem a produção dos colegas.

Do Salão à Bienal Transformar as exposições, realizadas atra-

vés do Salão de Artes da EBA, em Bienal foi um passo importante para modificar a falsa concepção de que a EBA é retrógrada. Segundo a coordenadora do evento, o primeiro termo

denota a idéia de Antigüidade, por isso era preciso trocá-lo, e a exposição bienal é a forma de mostrar a produção através do pensamento contemporâneo.

Ísis Braga afirma que, no passado, a forma que os artistas tinham para se dar a conhecer era através dos salões de arte. Agora a idéia de bienal é a mais utilizada por ser contemporâ-nea. Para a coordenadora, através de uma mos-tra como essa será possível evidenciar todo o decurso da EBA durante os últimos anos. “Nós queremos com esta exposição, e outras que virão, mudar o que se pensa a respeito da nossa escola, já que ela não tem nada de retrógrada, mas acaba levando essa pecha entre críticos de arte e o público em geral”, ressalta.

LançamentosConcordando com a coordenadora, Ronald

Duarte afirma que é preciso acabar com esse resquício de que a EBA é estritamente acadêmi-ca ou conservadora. Ele ressalta que antigamen-te os artistas ficavam anos dentro de seus ateliês produzindo e só eram reconhecidos no final da vida, como aconteceu com vários professores da escola. “O artista precisa ser reconhecido e visto antes que morra”, declara.

A professora afirma também que a EBA não trabalha só arte pela arte, nos cursos de pintura, gravura e escultura. Ela tem também a arte com uma finalidade como, por exemplo, a dos cursos de artes cênicas, composição de interiores e desenho industrial.

Na inauguração da Bienal, houve o lança-mento dos livros Uma breve história dos Salões de Artes, de Angela Âncora da Luz; Canudos, de Adir Botelho, e Gravura – a bela arte, de Diego Guadelupe; da revista Arte & Ensaios, da Pós-Graduação da EBA. Além disso, ocorreu a palestra da escultora Iole de Freitas.

Obras dos artistas da EBA dialogaram com o espaço do Castelinho do Flamengo.

Detalhe de Solitário na/da rede, obra de Roosivelt Pinheiro.

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22 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Mônica Reisilustração Anna Carolina Bayer

Cultura

Memória musicalEntre altos e baixos, os musicais brasileiros fazem sucesso entre o grande público. Desde o teatro de revista, a popularidade desse

gênero é bastante visível. Porém, menos freqüente no cenário carioca das décadas de 1960 a 1980, o teatro musical teve que se

reinventar para conquistar seu espaço. Retomando temas e ídolos do passado, ele vê surgir em seus palcos um modelo biográfi co, que

utiliza música para contar histórias de vida.

Memória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musicalMemória musical

As cortinas se abrem e, desde o primeiro instante, percebe-se que não é uma peça teatral comum: há um quê de teatralidade a mais no ator sob a luz do holofote. A voz é mais forte que o habitual, a entonação mais alta integra o canto à fala com habilidade e destreza. O ambiente, permeado por música, tem nela uma personagem, não apenas mera coadjuvante. De repente, o público, conquistado e absorvido por um mundo de notas, começa a cantar junto com os atores, lembrando das canções de uma época que não volta mais.

Essa sensação é nova para a platéia dos palcos cariocas. Longe desse cenário há cerca de quarenta anos, o Rio de Janeiro tem assis-tido ao ressurgimento do gênero musical com base principalmente nos modelos biográfi cos. Possibilitada, de forma especial, pelo aprimo-ramento técnico, o sucesso de peças como “Rádio Nacional – As ondas que conquista-ram o Brasil” e “Ô, abre alas” não confi gura, necessariamente, uma volta dos musicais, uma vez que não houve interrupção do gênero no país. Mesmo em momentos de crise, o musical brasileiro nunca morreu.

Trajetória dos musicaisAs origens do teatro musical ainda são um

tanto obscuras. Todavia, crê-se que elas remon-tem ao Renascimento, enquanto tentativa de retorno ao teatro grego. Surgida a partir dessa experiência, a ópera ganhou espaço na Euro-pa durante os séculos XVI e XVII. Porém, de acordo com Carmem Gadelha, professora do Departamento de Fundamentos da Comunica-ção da Escola de Comunicação (ECO/UFRJ) e especialista em História do Espetáculo, foi no século XVIII que aconteceu um movimento fundamental na história não apenas do teatro, mas das artes em geral. “É nesse período que se inventa uma distinção entre o que é erudito e o que é popular. Toda a arte assume essa pretensão ao erudito e o teatro fecha as portas ao grande público. Camadas inteiras da socie-dade acabam, de certa maneira, despojadas de um horizonte simbólico mais amplo”, explica a professora.

É nesse espaço deixado pela ópera que surgem versões voltadas para um público mais vasto, sob a forma de ópera bufa e operetas. Enquanto o primeiro tipo valoriza a temática cômica, o segundo é caracterizado por uma maior leveza com relação à ópera, incluindo partes recitadas – não cantadas – no espetáculo, mantendo ainda assim a forte presença musical. Variante desses gêneros, o teatro de revista sur-ge como um gênero de espetáculo característico do Rio de Janeiro – então capital do Império – a partir da necessidade urbana de comentar os fatos da atualidade. O objetivo era funcionar

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Dezembro/Janeiro •2008 23UFRJJornal da

Cultura

como um jornal, utilizando-se da música e de uma forte veia satírica para a realização de paródias e comentários maliciosos sobre a vida dos poderosos da época.

No Brasil, o teatro de revista assumiu ca-racterísticas específicas, surgindo por volta de 1859, quando foi fundado o Alcazar Lírico, no Teatro Ginásio do Rio de Janeiro. De inspiração sobretudo francesa, esse primeiro momento do teatro de revista brasileiro contou com nomes bastante conhecidos, como Chiquinha Gon-zaga (que compôs e regeu inúmeras peças), Carlos Gomes e Arthur Azevedo. Este último foi o grande responsável por preencher o mo-delo essencialmente francês com elementos da cultura brasileira, como o lundu (gênero musical que agrega ritmos bantos e melodias portuguesas), adicionando a seus espetáculos uma veia crítica. Isso fez com que os musicais brasileiros se transformassem em veículos de difusão de modos e costumes, uma espécie de retrato sociológico da época, com peças alegres, falas irônicas e de duplo sentido e uma crítica de costumes bastante “apimentada”.

Esse modelo atingiu uma popularidade ex-traordinária. As casas de espetáculos, de 2.500 lugares em média, ficavam constantemente lo-tadas. Isso, aliado à grande rotatividade – uma peça ficava somente uma a duas semanas em cartaz – fazia com que houvesse mais público para o teatro no século XIX do que atualmente, em termos relativos.

Surgem, já no século XX, as primeiras com-panhias de teatro musical, como a Companhia Nacional de Revistas e Burletas, em 1923 e o Teatro Recreio, em 1924. Os atores-cantores começam a se profissionalizar e, de 1920 a 1950, a revista também passa a ser movida por gran-des nomes que levam o público ao teatro, como Aracy Cortes e, mais tarde, Emilinha Borba.

O enfraquecimento do teatro musical brasileiro coincide com o fortalecimento da televisão enquanto meio de comunicação de massa. No entanto, segundo Carmem Gade-lha, a tevê e o cinema se apoderam do formato do espetáculo da revista para criar uma outra linguagem. “As chanchadas da Atlântida e os programas humorísticos atuais são transpo-sições bastante nítidas das características do teatro de revista, considerando-se que é uma adaptação a um novo ambiente”, afirma.

O teatro musical, a partir de então, ganha uma roupagem mais política, especialmente a partir da ditadura militar, com peças como Roda Viva, Calabar – censurada dias antes de estrear – e Ópera do Malandro, todas de Chico Buarque. Ao mesmo tempo, adaptações da Broadway também começam a ganhar espaço nos teatros brasileiros, com montagens em por-tuguês das peças My Fair Lady e Hello, Dolly, na década de 1960. O modelo da revista, cômico e crítico, abandonou os palcos, dando abertura para o nascimento de outras linguagens.

Os musicais biográficosNo final da década de 1980, mais preci-

samente em 1989, Antônio de Bonis, diretor teatral, inaugura o gênero do musical biográfico

com a peça Lamartine para inglês ver. O mode-lo é simples: destaca-se um ídolo do passado, conta-se a sua história e usam-se músicas do seu repertório. Esse gênero começa a ser ex-plorado, com espetáculos como Pixinguinha, de Fátima Valença, Crioula, de Stella Miranda (sobre a vida de Elza Soares), Orlando Silva, o cantor das multidões, de Antonio de Bonis e Fátima Valença e Cauby! Cauby!, de Flávio Marinho.

Esse modelo biográfico cria um estilo ti-picamente carioca de musicais, onde o Rio de Janeiro aparece como cenário. De acordo com Joana Lebreiro, professora do curso de Direção Teatral e diretora de peças como Ai, que sau-dades do Lago – sobre o ator Mário Lago – e Aquarelas do Ary – sobre Ary Barroso – , o Rio de Janeiro aparece como personagem principal dessas histórias. “Esses personagens dos quais se fala hoje no teatro habitaram a cidade, fazem parte de sua memória e marcam até hoje a história e a lembrança das pessoas. Quando se fala do Rio de Janeiro, fala-se também de todos os moradores da cidade”, explica.

E esse é o segredo do sucesso desse tipo de musical, que não atrai somente um público que reconhece, naquele espetáculo, suas lem-branças e as músicas de sua época. Além desse espectador, geralmente com mais de 50 anos, os jovens também reconhecem nesses musicais a história de sua cidade. Não à toa, o espetáculo Cauby! Cauby! saiu de cartaz tendo alcançado 56 mil espectadores. Nesse sentido, para Joana Lebreiro, o modo de contar a história também colabora com esse sucesso. “A estrutura drama-túrgica permite contar a história de uma forma bastante informal, diretamente para a platéia, como se fosse uma conversa. Esse formato gera identificação, porque a memória age na coletividade. O teatro se aproxima do público, lembra junto com ele, canta e compartilha as músicas com ele”, diz a professora.

Apesar de sua ligação com ícones da Rádio Nacional, com a boemia do bairro da Lapa, o samba e o chorinho, o modelo biográfico de te-atro musical não pode ser considerado simples nostalgia de marchinhas e ídolos do passado. Carmem Gadelha faz questão de ressaltar que não se trata de saudosismo, mas sim de reinven-ção: “quando se retoma a biografia do Cauby Paixoto, o que se inventa é um personagem Cauby. Ao revisitar o que foi a Rádio Nacional, o que se inventa, na verdade, é o próprio Rio de Janeiro. Por mais que se dialogue, que se retome o passado, a resultante é um olhar para frente e para certas projeções que a sociedade faz de si mesma.”

O papel da músicaTodos os elementos que compõem uma

peça teatral – luz, cenário, figurino – são de extrema importância. Porém, no caso do teatro musical, como é de se esperar, a música ganha um papel de destaque, assume várias funções durante o espetáculo. Ela pode entrar em um momento de grande emoção dramática, para dar um caráter lúdico aos comentários sobre o cotidiano – e facilitar a compreensão da

mensagem transmitida, como foi o caso do teatro de revista – ou para simplesmente abrir e encerrar uma peça.

Ainda no teatro de revista, além de sua in-serção no espetáculo, a música também estava presente nos chamados números de cortina. Esses números aconteciam nos intervalos en-tre um bloco narrativo e outro, e serviam para distrair a platéia enquanto os cenários eram mudados. Muitos deles não eram teatrais, e contavam somente com a presença de um can-tor. A música recebia tamanha importância que muitas vezes o próprio nome do cantor já servia de atrativo para o público. Segundo Carmem Gadelha, é perfeitamente possível que o teatro, com fio narrativo relativamente tênue, servisse somente como pretexto para dar sustentação à música. “A música às vezes tinha importância muito maior do que a narrativa, tanto que hoje o público conhece algumas músicas que ele não sabe, mas vieram de peças teatrais”, afirma a professora.

Exemplos disso não faltam. “Canta Brasil”, de Ary Barroso, foi compos-ta para uma peça homô-nima, de 1945, feita em homenagem à tomada de Monte Castelo pelos pra-cinhas brasileiros (solda-dos da Força Expedicio-nária Brasileira – FEB) na Itália. Dirigida por Geysa Bóscoli e Paulo Orlando, Canta Brasil teve músi-ca de Sá Pereira e Alcyr Pires Vermelho, além do próprio Ary Barroso. Antes, em 1928, o samba canção “Ai Ioiô”, interpretado por Aracy Cortes na peça Miss Brasil foi imortalizado, mais tarde, nas vozes de Ângela Maria e Maria Bethânia, tornando-se grande sucesso e clássico da MPB.

A presença do samba teve um convívio muito estreito com a revista. Foi também nos palcos do teatro que surgiram músicas que, mais tarde, se transformariam em su-cessos de rua e que posteriormente seriam gravadas. O papel da Rádio Nacional, nesse sentido, foi primordial, ela trabalhou como difusora. Do teatro para as ruas, das ruas para as gravadoras: esse era o caminho percorrido pelas marchinhas e canções do teatro de revista.

No caso do modelo biográfico, a música ganha ainda mais espaço, uma vez que é através dela que se lembra de uma determinada época.

Para Joana Lebreiro, ela assume uma função primordial: “a música ajuda a contar a história, a agir na memória do público. Ela não tem um papel secundário, é um dos personagens principais”, diz a professora.

Essa importância da música pode ser percebida no modo de se produzir e diri-gir uma peça teatral. Os ensaios são mais longos e divididos em voz, movimentação, sonorização. O diretor musical – que fica em pé de igualdade com o diretor da peça – é responsável pelos arranjos e pela integração da música com o texto. Instrumentos e mi-crofones podem limitar a movimentação dos atores em cena e, por isso, a negociação faz toda a diferença na hora de conciliar técnica e arte: “há uma série de questões técnicas que devem ser levadas em conta. Mas, na parte artística, pode-se brincar livremente com a linguagem e com o estereótipo. Afinal, não estamos seguindo um modelo Broadway”, brinca a professora Joana Lebreiro.

O modelo BroadwayCaracterizado por cená-

rios e figurinos luxuosos e pela predominância da dança e de coreografias elaboradas, os musicais da Broadway constituem um outro modelo de musical. Geralmente são peças que ficam muito tempo em cartaz, batem recordes de público. Les Misérables, Chicago e O fantasma da ópera fazem grandes bilheterias e apresentam intérpretes virtu-

osos. O modelo americano já ganhou algumas adaptações de sucesso no Brasil, mais especial-mente em São Paulo, como as recentes My Fair Lady e Sweet Charity.

De acordo com Carmem Gadelha, ainda em uma adaptação, é difícil um musical da Broadway seguir inteiramente seu original americano. “Sempre há uma contribuição di-ferenciada de quem realiza aquele espetáculo: há o sotaque, por exemplo, um outro modo de fazer que aparece de forma mais sutil, mas que faz diferença em relação ao modelo inicial”, afirma. No entanto, esses musicais não têm uma vinculação direta com o público brasileiro. Para Joana Lebreiro, os musicais da Broadway são uma outra forma de utilizar a música para contar histórias, mas são menos intimistas. “Não há tanta identificação com o espectador. É uma linguagem diferente, mas bastante for-mal”, afirma.

“Não houve interrupção do gênero no país.

Mesmo em momentos de

crise, o musical brasileiro nunca

morreu.”

Os musicais da Broadway constituem um outro modelo e permanecem quase que eternamente em cartaz.

Modelo de musicais biográficos é tipicamente carioca, com a maioria das histórias tendo a cidade como cenário.

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24 Dezembro/ Janeiro •2008UFRJJornal da

Personalidade

Simples como seu primeiro nome, Ana, a poesia de Cora Coralina pulsa vitalidade.“Sou mulher como qualquer/ Venho do século passado/ e trago comigo todas as idades (...)”, define-se a própria poeta, que só publica o primeiro livro, Poemas dos becos de Goiás (1965), aos 76 anos.

Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas nasce, em 1889, na antiga capital do Estado de Goiás, agora chamada de Goiás Velho. Nesses tempos, o uso de pseudônimos literários era comum, mas também servia para resguardar a identidade, em especial, das autoras. “Além do modismo, há o lado lúdico da linguagem que brinca com a sonoridade – Cora Coralina – e, de certa forma, esconde a Aninha. Entretanto, não se pode afirmar que Cora seja um heterônimo, apesar de a poeta batizar um de seus livros como Vintém de cobre – meias confissões de Aninha (1984)”, pontua Te-resa Cristina Meireles de Oliveira, do Departamento de Ciência da Literatura da FL/UFRJ.

Esse livro lhe valeria uma carta do maior poeta brasileiro. Vin-tém de cobre é, para mim, moeda de ouro, e de um ouro que não sofre as oscilações do mercado. É poesia das mais diretas e comu-nicativas que já tenho lido e amado (...)”, elogia Carlos Drummond de Andrade, que, através de sua coluna do Jornal do Brasil, no início dos anos 1980, propaga nacionalmente a obra da goiana, a quem se referia como “diamante cintilando na solidão”.

Segundo Teresa, o bom poeta é descoberto em algum mo-mento, vivo ou morto, “mesmo que decorram mil anos”. Mas a atenção do público para a existência de Cora ter sido chamada pela visão rigorosa de Drummond revela que o próprio gauche curva-se diante da poetisa. “Uma poesia diferente”, este é o primeiro impacto ao ler Cora, recorda-se a professora. “Havia o paradigma drummondiano, que tinha um lado rural, mas de um alguém que se distancia e se torna um homem da urbanidade. Cora Coralina é alguém que estava lá e ficou no campo. É uma poesia com sabor e cheiro da sua terra, mas conceituá-la como regionalista é limitador”.

Força telúricaDe acordo com o Dicionário crítico de escritoras brasileiras

(Escrituras, 2002), de Nelly Novaes Coelho, assinando como Cora Coralina, em 1910, Ana publica o primeiro conto: “Tragédia na roça”. No ano seguinte, ela conhece o advogado divorciado Cantídio Tolentino Bretas com que foge para viver em Jaboti-cabal, interior paulista. Em 1922, chega a ser convidada para participar da Semana de Arte Moderna por Monteiro Lobato, mas é impedida pelo marido. Depois de seis filhos e já viúva, ela retorna 45 anos depois à cidade natal, assume-se poeta e produz como nunca.

“(...) Que pretendes, mulher? Independência, igualdade de condições, empregos fora do lar? És superior àqueles que procuras imitar. Tens o dom divino de ser mãe. Em ti está presente a hu-manidade (...)”, provoca, no poema Mãe, o radicalismo feminista, mesmo ela tendo sido uma defensora dos direitos das mulheres. “A obra de Cora tem uma visão mais ampla, humanista, e nela a questão do feminino se insere de maneira diferente daquela luta aguerrida do primeiro momento do feminismo, caracterizado por um vigoroso discurso de emancipação”, analisa Teresa. “Ela vai além, com uma poesia que tem a ver com o viés do movimento feminista deste milênio, em que os excessos, após as lutas por igualdade de condições e conquistas, já foram podados”.

Ligada à natureza como elemento de todas as espécies, a força telúrica da palavra de Cora capta o presente em sua plenitude, vislumbrando o porvir. Não à toa, antes mesmo de a Ecologia tornar-se referência, sua poesia apontava a necessidade de o ser humano harmonizar-se com o meio ambiente. “Podemos dizer que Cora Coralina possui um discurso profético, não por ser alguém que desvenda o futuro, mas por estar em sintonia com as forças do mundo, do cosmo. Alguém que observa ao redor e revela uma fotografia, porém sem o elemento estático, com o movimento pulsante da vida”, enfatiza Teresa, esclarecendo que, ao longo da história da criação poética, encontra-se, em diferentes tempos e locais, a noção do ato mágico da criação poética. “Xamã, vate, demiurgo, porta-voz. De várias maneiras, teve o poeta seu sentido traduzido como forma de desvendamento do humano e, nas sociedades primitivas, esteve vinculado aos deuses”.

As raízes de Cora Não te deixes destruir... Ajuntando novas pedras e construindo novos poemas.

Recria tua vida, sempre, sempre. Remove pedras e planta roseiras e faz doces.

Recomeça. Faz de tua vida mesquinha um poema.

E viverás no coração dos jovens e na memória das gerações que hão de vir.

(Aninha e suas pedras, 1981)

MemóriaPela lente da literatura de Cora

compõe-se um documentário, registro sócio-histórico do cerrado no Centro-oeste. Hoje, a antiga cidade de poetisa tornou-se patrimônio da humanidade, pela Unesco. O local onde nasceu, inspiração para Estórias da casa velha da ponte (1985), virou um museu batizado com o nome de sua mais ilustre moradora. “Ela celebra o instante, a vida, e recria os mitos e os ‘causos’ de Goiás, debruçando-se sobre o que chamamos de temática da circunstância, capaz de perceber, nos atos cotidianos, a presença do sublime”, afirma Teresa, que vê a obra de Cora ligada às heranças brasileiras mais densas, vindas dos momentos de formação do Brasil enquanto nação. “A poesia de Cora, justa-mente por ser local, é universal no sentido da busca do que une cada indivíduo a todos os seus pares. A globalização paradoxal e necessariamente nos leva à busca da identidade, porque não se

suporta tanta pasteurização e o que temos de mais profundo são

as nossas raízes”.Em Todas as vidas, Cora Coralina se

resume como “cabocla velha de mau-olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando para o fogo. (...)/ Vive dentro de mim a lavadeira do Rio Vermelho”. Mulher simples que cursou apenas o primário e sobreviveu como doceira na viuvez, Cora buscava em perso-nagens populares a matéria-prima de sua poética, que retorna à ancestralidade, à comunidade e à visão da terra como elemento de sobrevivência. “(...) Cada nascer de um filho será marcado com o plantio de uma árvore simbólica. A árvore de Paulo, a árvore de Manoel, a árvore de Ruth, (...)”, escreve em Eu voltaria.

Lamentos, dúvidas e tristeza são raras em sua lavra e mesmo quando ela descreve a miséria é no sentido de torná-la bela. Cora ou Aninha deixa, além da fortuna crítica de sua obra, as sementes de uma confiança não só no ser humano, mas na raiz da humanidade.

Rodrigo Ricardoilustração Jefferson Nepomuceno