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IV CONGRESSO SERGIPANO DE HISTÓRIA & IV ENCONTRO ESTADUAL DE HISTÓRIA DA ANPUH/SE
O CINQUENTENÁRIO DO GOLPE DE 64
UM BREVE DEBATE SOBRE A ESCRAVIDÃO E A ELITE
RELIGIOSA NO BRASIL COLONIAL: A ESCRAVARIA
SETECENTISTA DOS CARMELITAS CALÇADOS NA BAHIA E
EM SERGIPE1
Roberta Bacellar Orazem2
INTRODUÇÃO
Os pesquisadores, em sua maioria historiadores, concordam que os estudos
sobre a escravidão no Brasil tem crescido tanto quantitativamente quanto
qualitativamente nas últimas duas décadas. Atualmente, supera-se o período de críticas
aos estudos anteriores, produzidos no Brasil e no exterior ao longo do século XX, no
entendimento de que todos os trabalhos, apesar de terem cometido anacronismos ou
falhas conceituais, contribuíram para as reflexões e incentivaram novos e múltiplos
olhares sobre diversos aspectos (econômicos, sociais, políticos, culturais, entre outros)
da escravidão e do Brasil colonial. Ao apresentar novas propostas, principalmente
aquelas relacionadas à história cultural e aos estudos da Micro História, os historiadores
da atualidade se debruçam cada vez mais nas pesquisas sobre as minorias sociais. Tenta-
se desvendar, nos documentos da época (geralmente produzidos por uma elite), os
1 Trabalho desenvolvido na disciplina “Leituras dirigidas IV: formação dos espaços coloniais ibéricos”
(Pós-Graduação em História da UFRN), ministrada e orientada pelos professores Doutores Carmen
Margarida Oliveira Alveal e Muirakytan Kennedy de Macedo. 2 Mestre em Artes Visuais pela UFBA, Doutoranda em Arquitetura e Urbanismo na UFRN,
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modos de ser e de viver dos escravos, trabalhadores livres, artesãos, mulheres, índios,
crianças, entre outros atores.
Entretanto, os trabalhos sobre o papel e os comportamentos da elite colonial
não cessaram e também tem sido reformulados ao longo dos anos. Ao deixarmos de
lado as ideias dicotômicas que limitam as relações sociais, é inegável a contribuição de
grandes atores – a Igreja (clero secular e regular), a Coroa portuguesa, os funcionários
públicos, os latifundiários, os comerciantes, entre outros – na construção histórica do
Brasil colonial.
Hoje em dia, sabe-se que, através de diversos estudos, é incontestável
afirmar que a sociedade colonial seguia regras, apesar de algumas vezes contorná-las,
sempre respeitando hierarquias de poder. Entretanto, os pesquisadores descobriram
recentemente que esse universo colonial não foi tão limitado, unilateral e estático, mas
sim que existiram diferentes estratégias, múltiplos personagens, diversos cenários.
Nesse contexto, busca-se, com este trabalho, apreender de que forma a
escravidão esteve inserida no cotidiano das ordens religiosas. Inicialmente, o trabalho
faz um breve levantamento dos principais conceitos que envolvem a escravidão no
Brasil colonial. Em um segundo momento, faz-se uma análise dos pontos de vista dos
pesquisadores em relação ao envolvimento das ordens religiosas, principalmente
aquelas detentoras de bens de raiz, com a escravidão e como os escravos
proporcionavam a manutenção dos religiosos na elite colonial.
Tendo em vista que nossas pesquisas no doutorado investigam a influência
dos carmelitas calçados nas vilas e cidades do Brasil colonial, neste artigo,
realizaremos, em um terceiro momento, um breve levantamento acerca dos escravos dos
Carmelitas Calçados – da Província Carmelitana da Bahia – na Capitania da Bahia de
Todos os Santos e na Comarca de Sergipe D’El Rei, trazendo a atuação daqueles
religiosos principalmente no século XVIII.
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Por se tratar de um breve recorte de nossa pesquisa de tese, utilizaremos o
levantamento realizado principalmente em fontes secundárias, que apontam e
transcrevem fontes primárias do século XVII e XVIII. Serão apresentados diversos
documentos - Livros de Notas, Testamentos, Correspondências, Livro de Tombo,
Escrituras, entre outros – que foram localizados pelos autores no Arquivo Histórico
Ultramarino (Portugal), no Arquivo da Província Carmelitana de Santo Elias (Belo
Horizonte), no Arquivo Público da Bahia e no Arquivo do Judiciário de Sergipe.
A ESCRAVIDÃO NO BRASIL COLONIAL
Ao divulgarmos antigos e novos estudos, propomos destacar, de forma
sucinta, os conceitos-chaves, com base em permanências e releituras dos autores, em
torno da escravidão no Brasil colonial.
Os escravos faziam parte dos bens materiais de uma pessoa no Brasil
colonial. Segundo Russel-Wood, a escravidão, além de colaborar economicamente,
também tinha o seu papel simbólico na sociedade:
Era componente fundamental do ‘ethos’ colonial a percepção da
distinção entre senhor e escravo e dos privilégios, prerrogativas,
obrigações mútuas e restrições impostas aos membros de cada grupo
pela lei e, de forma mais importante, pelos costumes sociais
prevalecentes. De forma ainda mais penetrante, os colonos estavam
conscientes daqueles graus variáveis de pigmentação que existiam
entre as polaridades de branco e negro e que distinguiam um mulato
de um pardo de um preto. (RUSSEL-WOOD, 2005, p.22).
O mesmo autor afirma que encontrou o exemplo da necessidade da
escravidão na sociedade colonial, em um documento baiano do ano de 1781, no qual se
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afirmava: “He prova de mendacidade extrema o não ter um escravo: ter-se-ão todos os
incommodos domésticos, mas um escravo a toda lei” (RUSSEL-WOOD, 2005, p.362).
Independentemente dos falsos julgamentos dos autores sobre preconceitos
ocorridos no período colonial, foi fato que a sociedade colonial, principalmente a elite,
utilizou variáveis através da classificação da pigmentação (pardos, pretos, crioulos,
entre outros) para identificar e controlar diferentes condições sociais e econômicas. Os
significados dos termos utilizados nos documentos eram entendidos por todos, e,
segundo Farias (1998), havia significados específicos para cada designação.
Em relação ao significado de “Preto”:
Sinônimo principalmente de escravo e, mais comum ainda, de
africano escravo, trazia em si um significado claro. Quando alforriado,
havia uma necessidade social de frisar que a pessoa assim qualificada
estava liberta. Filhos de pretos forros já não eram mais pretos; eram
pardos, sempre ‘forros’, apesar de muitas vezes nunca terem sido
escravos. Se casassem com pretos forros, voltavam a ser preto.
(FARIA, 1998, p.137).
Em relação ao significado de “Crioulo”:
O termo ‘crioulo’ refere-se exclusivamente a escravos. Não há
referência, em toda documentação com que trabalho, a ‘crioulo forro’;
nascido no Brasil como escravo (portanto crioulo), quando se libertava
era comumente designado de ‘pardo’, sempre seguido de ‘forro’. No
dicionário de Moraes Silva, o termo ‘crioulo’ tem o seguinte
significado: ‘o escravo, que nasce em casa do senhor’. (FARIA, 1998,
p.161).
Quanto aos nomes dos escravos nos documentos: “[...] as informações
usuais eram nome (João Minas, Maria Crioula, Antônio Mulato, Preto Pardo), idade e
estado civil; raramente havia informações sobre sua qualificação ou atividade
profissional” (LUNA & KLEIN, 2010, p.8). Não havia informações detalhadas sobre o
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escravo, até mesmo sabemos que algumas localidades africanas inseridas junto aos
nomes dos escravos (exemplo: Antônio da Guiné) não querem dizer exatamente que
aquele cativo veio daquela região. Sabemos, através de estudos, que os navios com
escravos, antes de chegarem ao Brasil, passavam em diversos portos africanos e até
mesmo asiáticos, tornando confuso e dificultoso a procedência exata dos escravos.
É certo afirmar que os pesquisadores não conseguem descartar a relação da
escravidão com a violência, apesar de ter ampliado os estudos e de se ter relativizado
algumas afirmações:
[...] em tarefas que requerem maior esforço físico, pouca habilidade e
pouco cuidado, a violência física e a necessidade de rigorosa
supervisão constituem as características essenciais. Nesses casos,
pode-se obter mais produção dos escravos com violência efetiva ou
pelas ameaças. Os custos de usar a violência e supervisionar mais de
perto são compensados por uma produção maior. [...] Em todas as
outras variadas atividades espalhadas pelo Brasil houve uma mistura
de incentivos negativos e positivos. Foram os incentivos positivos que
ensejaram a alforria dos escravos, voluntária ou por auto compra.
Todos - desde os cativos que trabalhavam nas casas, mascates e
mineiros itinerantes, até os jornaleiros – tinham acesso a uma renda ou
a outras formas positivas de incentivo ao trabalho. (LUNA& KLEIN,
2010, p.133).
Uma das vertentes que vem sendo trabalhada pelos historiadores é a alforria.
Segundo Vainfas (2001, p.29): Alforria: palavra que vem do árabe ‘Al-hurruâ’, que
significa liberdade do cativeiro concedida ao escravo. Utilizava-se também, a partir do
século XVII, como sinônimo de dar alforria, ‘manumitir’, do latim ‘manumittere’,
propriamente ‘libertar das mãos’.”. Os pesquisadores descobriram que havia uma
vontade do cativo se tornar liberto ou do senhor em libertar a escravaria por conta de
sua fé religiosa, pois, acreditava-se que, libertando os escravos, os pecados do senhor
seriam redimidos e a alma dele conseguiria subir ao céu. Nesse sentido, surgiram as
manumissões, onde tinha pelo menos três modos legais de um escravo comprovar seu
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estado de forro perante a sociedade: “a carta ou ‘papel de liberdade’, assinada somente
pelo senhor ou por outro, a seu rogo, algumas vezes registrada em cartório em livros de
notas, outras somente como um papel particular; o testamento ou ‘codicilo’; a pia
batismal” (VAINFAS, 2001, p.30). Entretanto, esse autor afirma que nem sempre a
carta de alforria era uma garantia de que o escravo deixaria de fazer favores ao seu
antigo dono.
A maioria dos estudos sobre a escravidão no Brasil colonial revela,
estatisticamente, que o número de escravos que obtiveram a liberdade era
consideravelmente baixo, entre 0,5 a 2% da população escrava no Brasil colonial. É
unânime também se afirmar que as mulheres foram as mais privilegiadas no acesso à
alforria.
Por outro lado, há situações atípicas, que confirmam o aspecto plural e
dinâmico da sociedade colonial, como aquelas abordadas por Vainfas (2001, p.31):
“Pesquisas mais recentes, entretanto, mostram forros bem aquinhoados, pela fortuna,
sobretudo mulheres. Muitos forros se tornaram proprietários de escravos e bens, o que
faz deste grupo um interessante objeto de pesquisa histórica”.
Havia também situações recorrentes, as quais foram apontadas por Luna &
Klein (2010, p.134-135):
[...] o senhor tinha poder absoluto sobre o escravo e podia infligir
castigos físicos sérios. [...] O senhor controlava a liberdade do
escravo, e do filho do escravo caso nascesse de mãe cativa. Alguns
cativos obtinham a própria liberdade, mas não a de sua mulher,
filhos ou pais.
Assim como o qualquer agente social do contexto colonial, o escravo não
era somente uma categoria específica, fechada e estática, havia uma diversidade dos
tipos e usos de escravos:
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Durante quatro séculos, escravos foram usados tanto na produção para
o mercado exportador quanto para o mercado local e em todos os
aspectos da produção agrícola, inclusive a de gêneros alimentícios e
na agricultura de subsistência, além de serem empregados em
numerosas ocupações artesanais. Embora os cativos fizessem parte da
força de trabalho rural, compondo as turmas que trabalhavam nas
fazendas, grande parte da população escrava era usada em serviços
domésticos e na agricultura de subsistência, em manufaturas e em
atividades voltadas ao mercado local. (LUNA & KLEIN, 2010,
p.137).
Outro aspecto que está sendo trabalhado hoje em dia é a ideia da mobilidade
espacial e a dinâmica social, conceitos-chaves que explicam que a sociedade colonial no
Brasil não era estática e muito menos dicotômica. A elite e demais atores sociais
sofriam altos e baixos no quesito econômico, além disso, os cargos públicos e religiosos
provocavam diversos deslocamentos espaciais. Constatou-se que, no Brasil colonial,
não se vivia em um local somente, as famílias se mudavam, vendiam seus bens, tanto
religiosos, quanto funcionários públicos, ou latifundiários, por uma questão econômica
e administrativa, mudavam-se constantemente, existiam muitas vendas de propriedades
e diversas ofertas de alugueis de casas. De acordo com Luna & Klein (2010, p.23):
Essa homogeneidade no mercado nacional também resultou da
mobilidade geográfica dos senhores e seus escravos. Em todas as
sociedades americanas escravistas de fronteira em expansão,
proprietários de escravos puderam mudar-se constantemente com seus
cativos para regiões econômicas recém-abertas.
Sabe-se, também, que o perfil do senhor de escravos era diverso:
Pelo menos de 1700 em diante, em nenhum momento da história da
escravidão brasileira os cativos dos engenhos, minas e cafezais
compuseram a maioria dos escravos residentes no Brasil. Na verdade,
a maior parte da população cativa pertencia a proprietários muito
diferentes dos grandes fazendeiros e mineiros. Podemos classificar
nessa categoria econômica e social o padre que tinha uma velha
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escrava para ajudá-lo no trabalho da igreja? Ou a negra forra que, nas
Minas Gerais do século XVIII, declarou-se pobre apesar de possuir
sete escravos? Ou os milhares de agricultores que se dedicavam ao
cultivo para o mercado interno, além de produzir para subsistência
empregando um ou dois escravos que ajudavam a família no trabalho
em seu pequeno pedaço de terra? Como definir o senhor que
empregava seus cativos no comércio urbano, ou o falsificador que
possuía alguns escravos a quem ele dava total liberdade de movimento
e do qual recebia uma remuneração diária em ouro? [...] Tudo isso
sugere uma estratificação e organização social muito mais complexas
do que aquela apontada pelas análises tradicionais sobre a escravidão
no Brasil. A atual historiografia sobre a escravidão mostra situações
cada vez mais complexas e peculiares, embora igualmente frequentes,
que marcaram a escravidão no Brasil. (LUNA& KLEIN, 2010, p.130-
131).
Diante do exposto, concordamos com os autores que são diversos os
desafios e as possibilidades para a construção da história da escravidão no Brasil
colonial. As releituras da historiografia, diante do passado, abriram um leque de
possibilidades de pesquisas com uma visão multidisciplinar. Adiante, trabalharemos
essas questões aqui abordadas relacionando-as à problemática central de nosso artigo.
AS ORDENS RELIGIOSAS DETENTORAS DE BENS DE RAIZ E A SUA
ESCRAVARIA
O clero, durante o período colonial no Brasil, foi dividido em secular e
regular. O clero secular era composto por bispos e sacerdotes que faziam parte da
hierarquia direta da Igreja Católica e respondiam diretamente ao Papa,
consequentemente, através do sistema de Padroado Régio, deviam obediência à Coroa
portuguesa. Já o clero regular formou o conjunto frades e padres de ordens e
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congregações religiosas, que seguiam regras de vida próprias e tinham autonomia dentro
da Igreja, mesmo tendo que seguir normas da Coroa portuguesa.
Durante quase todo o período colonial, a autonomia das ordens religiosas,
principalmente daquelas que eram detentoras de bens de raiz, foi uma preocupação
dentro do sistema colonial para as autoridades, ocasionando diversos conflitos entre a
Coroa e as ordens religiosas. Entretanto, no Brasil colonial, as ordens religiosas
dependiam de concessões dadas pelo Coroa portuguesa: como a doação de sesmarias,
autorização para pedir esmolas, permissão para erigir templos, entre outros assuntos que
exigiam uma dependência e uma submissão, até certo ponto, das instituições religiosas
diante da Coroa.
A primeira ordem religiosa a se fixar no século XV no Brasil foram os
jesuítas, que permaneceram até a sua expulsão em 1765. A partir de 1580, chegam os
carmelitas, os beneditinos e os franciscanos. Com exceção dos franciscanos, que era
uma ordem totalmente mendicante e, portanto, seguia severamente o voto de pobreza,
dependendo somente de esmolas para se sustentar, as demais ordens citadas formavam
uma elite econômica-religiosa, porque também eram detentora de bens de raiz. Além de
adquirir bens através de doação de esmolas, os jesuítas, carmelitas e os beneditinos
podiam solicitar à Coroa e aos fiéis a ampliação de seus bens e comprar bens para o
sustento e crescimento de sua ordem religiosa. Em meio aos tipos de bens adquiridos
pelas ordens religiosas, estavam os escravos, que auxiliavam no cotidiano dos religiosos
dentro da sociedade colonial.
Como acumulavam bens, os religiosos no Brasil se justificavam,
principalmente à Coroa portuguesa, que precisavam de recursos para conseguir realizar
os serviços prestados à comunidade colonial (trabalho em missões, aplicação de missas
pelas almas dos fiéis, sacramentos, assistência espiritual, organização de festas, entre
outros). Sendo assim:
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[...] as instituições religiosas no Brasil dependiam de ‘plantations’ de
açúcar e de fazendas de gado, e, até certo ponto, de propriedades
urbanas, para gerar a renda necessária ao funcionamento. Jesuítas e
Beneditinos, principalmente, eram grandes proprietários de terras e de
escravos. Os religiosos estavam plenamente integrados à sociedade, e
por isso estavam sujeitos, em certos casos, às mesmas pressões
sofridas por qualquer outro grupo de interesse. (LOCKHART;
SCHWARTZ, 2002, p.282).
Ao longo do século XVI, as ordens religiosas (principalmente carmelitas,
beneditinos e jesuítas) acumularam seus bens através de recebimento de sesmarias, de
esmolas, de compra de bens como terrenos e escravos, do aluguel de casas nas vilas e
cidades. Além disso, eram os próprios administradores de suas propriedades,
trabalhando diretamente no controle da escravaria. Segundo Hernández (2009), não
havia nenhuma lei (interna) que impedisse os religiosos (não mendicantes) de atuar na
administração direta de seus bens:
A participação de monges beneditinos na manufatura açucareira data
do século XVI. Este acontecimento coincide exatamente com a sua
incorporação ao exercício de explorar extensas e longínquas
propriedades, trabalho desenvolvido diretamente até o século XIX e
indiretamente até o início do século XX. Não havia nos estatutos nada
que os proibia de trabalhar na roça (ora et labora). Entre os
franciscanos era trabalho vil, só os seculares podiam. (HERNÁNDEZ,
2009, p.87).
É de conhecimento dos historiadores que as ordens religiosas,
principalmente as detentoras de bens de raiz, considerassem os escravos negros como
parte dos seus bens em meio a outras posses como alfaias, terras, engenhos, templos,
entre outros. O trabalho escravo era necessário, principalmente nas fazendas de gado, de
fumo e de cana:
Para o trabalho da produção agrícola, os religiosos adotavam o braço
escravo. Os negros eram recebidos por doação ou herança, ou
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adquiridos através de compra. Além dos trabalhos no eito, os escravos
eram também utilizados para os serviços domésticos nos mosteiros e
claustros. Seguindo o comportamento da classe senhorial, os
religiosos serviam-se dos escravos para o atendimento de suas
necessidades materiais. Também as religiosas enclausuradas tinham
escravas para o serviço particular. (AZZI, 2008, p.42).
Todavia, como vimos em capítulo anterior, não existia somente o escravo
que trabalhava na lavoura ou no engenho, também existiam aqueles escravos que
acompanhavam seus amos, que se caracterizavam em escravos de luxo. Os religiosos
também se beneficiavam desses escravos:
A escravidão começou nos canaviais e nas fábricas de fazer açúcar,
mas logo ela se estende pelas residências dos senhores, porque o
senhor de engenho apresenta compulsivamente todo um aparato de
luxo que exige a subserviência. Quem mais senão o escravo poderia
envolver o senhor na ostentação dessas vidas rurais e urbanas [...].
(NASCIMENTO, 1990, p.9).
Existiam também os escravos que trabalhavam no comércio, os chamados
escravos de ganho ou de aluguel, mas não encontramos na literatura a menção de algum
dono desse tipo de escravo que fosse religioso. Ao analisar o contexto geral, não deve
ter sido difícil ter ocorrido essa realidade.
A ordem religiosa fazia parte da elite colonial, como muitos historiadores
apontam, os padres e frades participavam dos serviços burocráticos e acumulavam
cargos públicos. Além disso, ter um filho em uma ordem religiosa garantia a família um
status elevado. Segundo um memorando enviado por um procurador padre fransciscano
em 1799, Azzi (2008, p.41) afirma que:
Na época, acrescentava ele, já não havia verdadeiras vocações para a
vida monástica, mas ela era procurada como meio de ascensão social.
Nesse caso, as vagas dos conventos deviam ser preenchidas pelos
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filhos da terra, pois eram seus pais que sustentavam a vida monástica
tanto na colônia como na metrópole.
Ao entrar nas ordens religiosas, os bens de herança do noviço religioso eram
doados integralmente à ordem, auxiliando no processo de acúmulo de bens:
Estabelecidas na colônia por desejo expresso dos moradores, as ordens
religiosas receberam auxílios valiosos para sustento de seus membros
por parte da nobreza local e da população em geral. Muitos dos filhos
dessa aristocracia ingressavam nas fileiras dessas instituições,
marcadas na época pelo prestígio social. Esses religiosos tornaram-se
progressivamente senhores de grandes latifúndios e inúmeras
fazendas, tanto na região sudeste, como no nordeste e norte do país. O
próprio governo luso e hispânico colaborou com dotações régias.
Muitos conventos sustentavam-se mediante administração de
engenhos e fazendas recebidos como doações, seja em cumprimento
de promessas, sejam transmitidos como herança por testamento.
(AZZI, 2008, p.42).
Portanto, a escravaria desses religiosos, por representar para a sociedade
colonial um símbolo de nobreza, era necessária para sustento do seu status. Nessa
análise, notamos que o uso do escravo na sociedade colonial não estava restrito a
nenhum personagem, sendo sinônimos de status e de necessidade social, os religiosos
os mantinham como bens, acumulando consideravelmente suas posses. Em alguns
casos, esse acúmulo de bens das ordens religiosas não foi muito bem visto nem por
outras elites e muito menos pela Coroa. Principalmente, na segunda metade do século
XVIII, as ordens religiosas foram sendo cada vez mais pressionadas pela Coroa, tendo
que relatar constantemente as suas posses, inclusive seus escravos, sendo pressionados
também a pagar taxas:
As notificações solicitando informações acerca do número de
religiosos, patrimônios e atividades, fizeram-se presentes em diversas
oportunidades. Os relatórios, realizados em decorrência desses
pedidos, constituem uma fonte informativa importantíssima para o
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conhecimento do conjunto das propriedades dos beneditinos e outras
ordens instituições religiosas existentes no território. Assim, tem-se o
documento, de 12 de maio de 1765, solicitando que fosse enviada,
conforme ordens de Portugal, a relação exata dos Mosteiros, casas e
residências, declarando o número de religiosos e mostrando as rendas
que tinham para o sustento. Outro documento a se ressaltar, é o Mapa
sobre as ordens religiosas da Bahia, de 26 de fevereiro de 1797, que
continha bens e rendas de todos os listados. Finalizando o século
XVIII, tem-se a Carta Régia de 9 de maio de 1799, enviada à
Capitania da Bahia, na qual estão relacionados assuntos a serem
cumpridos, referentes ao estabelecimento da Décima nas casas das
Cidades marítimas. Tratava-se da contribuição conhecida como
décima urbana, aplicada aos imóveis da Cidade, cuja tentativa de
cobrança feita na Bahia. Tratava da captação anual de taxas sobre
todos os ‘Escravos de luxo das cidades, e que não servem à
agricultura’. (HERNÁNDEZ, 2009, p.70).
Por fim, existiram também os escândalos relacionados à posse de escravos,
onde frades também eram acusados de maus tratos à escravaria ou, até mesmo, de
envolvimento carnal ou vivendo em concubinato com escravas ou escravos.
OS ESCRAVOS DA PROVÍNCIA CARMELITANA DA BAHIA EM SERGIPE E
BAHIA SETECENTISTA
Neste capítulo pretendemos estudar a relação das ordens religiosas com suas
escravarias, trabalhando um caso específico, os dos escravos da Província Carmelitana
da Bahia. Essa temática relaciona-se diretamente com nosso objeto de estudo de tese de
doutorado, onde investigamos a influência dos carmelitas calçados da Província
Carmelitana da Bahia nas vilas e cidades do atual nordeste do Brasil colonial. Para
compreendermos a influência desses religiosos, é necessário que encontremos indícios
relacionados à sua atuação ao longo do período colonial, mas, principalmente, devemos
inventariar os seus bens (templos, alfaias, propriedades de terra, fazendas, sítios,
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alugueis). Um desses bens, como vimos ao longo do trabalho, que simbolicamente
representava status quo para os carmelitas, certamente eram os escravos.
O Carmo é uma ordem Mariana desde suas origens, pois tem devoção à
Nossa Senhora do Carmo, e que tem como inspiração de suas fundações o Profeta Elias,
mas que surge no século XII como uma ordem de monges e monjas em clausura e
mendicantes. No século XVI, a ordem passa por uma reforma interna, e através de Santa
Teresa D’Ávila e São João da Cruz, e dividem-se em duas vertentes: os carmelitas
calçados, representados simbolicamente pelo uso do sapato fechado, aqueles chamados
da Antiga Observância; os carmelitas descalços, representados pelo uso da sandália, que
são seguidores Teresianos e que se voltam para o extremo recolhimento e dedicação à
vida contemplativa.
No Brasil, os carmelitas que chegam a partir de 1580 são os da Antiga
Observância que vieram de Portugal, esses fundam conventos e adquirem fazendas e
engenhos em diversas localidades do litoral do Brasil. No século XVIII, os carmelitas
calçados no Brasil estavam divididos em três Províncias Carmelitanas: do Pará e
Maranhão, que administrava as casas carmelitas da Diocese do Grão Pará e Maranhão;
do Rio de Janeiro, que administrava casas carmelitas na Diocese do Rio de Janeiro; da
Bahia, que administrava as casas carmelitas nas Dioceses da Bahia e de Pernambuco.
Para a análise deste artigo, consideraremos o nosso universo de estudo da
Província Carmelitana da Bahia, que atuou nas regiões da Capitania da Bahia de Todos
os Santos, na Comarca de Sergipe D’El Rei, na Comarca das Alagoas, na Capitania de
Pernambuco e Itamaracá. Por fim, sabemos que as fontes, de que dispomos em nossa
pesquisa de Tese de doutoramento, revelam que a maior atuação dos carmelitas
calçados da Província da Bahia, ao longo do século XVIII, foi em terras de Bahia e
Sergipe (esta, diretamente submetida à Capitania da Bahia até o ano de 1822).
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OS BENS DOS CARMELITAS CALÇADOS NO SÉCULO XVII E XVIII
Como já foi relatado anteriormente, sabemos que os carmelitas calçados,
por ser uma ordem religiosa detentora de bem de raiz, acumularam diversos bens ao
longo do século XVII e XVIII. E a Província Carmelitana da Bahia não fugiu da regra,
sendo uma das maiores províncias dos carmelitas calçados no Brasil colonial.
Em relação aos carmelitas calçados da Província Carmelitana da Bahia,
estes adquiriram bem ao longo do século XVII e XVIII. Ao fazer uma leitura e análise
do I Livro do Tombo do convento sede dos carmelitas calçados na cidade de Salvador,
Pedras (2000) relata que: “Estão reproduzidas no I Livro de Tombo dos Carmelitas, na
Bahia, doze Cartas de Sesmaria de terras que, por diferentes meios, vieram a constituir
bens de raiz do Convento. Destas, somente cinco foram cedidas diretamente aos frades.”
(PEDRAS, 2000). Segundo a autora, os argumentos dos pedidos de sesmarias,
solicitados no século XVII pelos carmelitas calçados da Província da Bahia à Coroa, em
sua maioria, alegavam a ocupação de terras para a luta contra os gentios, a falta de
recursos dos conventos e a justificativa de se terminar de construir e ornamentar as
igrejas conventuais, capelas e hospícios.
Ao longo do século XVII, os padres do Carmo da Província da Bahia,
através dos bens do convento de Salvador, por exemplo, fizeram algumas transações de
Escrituras: 14 de Compra e Venda, 1 de troca, 1 de Partido, 1 de Débito, 1 de Dote, 1 de
Transação, 3 de Doação, que se encontram inscritas no I Livro do Tombo do convento
do Carmo da Bahia. Através dessas transações, os religiosos adquiriram diversos bens:
terrenos, fazendas de cana, engenho, fazendas de gados, sítios, terras para plantar
mandioca, principalmente na Capitania de Sergipe D’El Rei (do Rio Real ao Rio São
Francisco), no Recôncavo Baiano e em diversas proximidades da cidade de Salvador.
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A posse de escravos pelos carmelitas calçados do convento sede de Salvador
já é atestada no século XVI, Pedras (2000) menciona o seguinte documento:
Procuração datada de 15.11.1634: os frades do Carmo passaram uma
procuração aos senhores Mathias Lopes mercador, Duarte da Silva e
Francisco Fernandes Furna, moradores em Lisboa, para representá-los
como seus administradores a fim de cuidarem de todos os seus bens,
‘ouro, prata, asucares, escravos, fazendas, cousas outras’, e
especialmente para cobrarem do Frei Sebastião dos Anjos, religioso da
ordem do Carmo, residente em Lisboa, a quantia de cento e vinte mil
réis. (PEDRAS, 2000, p.79).
Além de mencionar os escravos, o documento revela a relação dos
carmelitas com os comerciantes, que deles dependia para vender suas produções,
certamente para comprar seus escravos, e fazer transações além-mar.
Na comarca de Sergipe, os carmelitas calçados do convento da Bahia já
aparecem no início do século XVII, fundando o convento da cidade de são Cristóvão,
comprando terras e fazendas e à frente de missões indígenas, desde o Rio Real até o Rio
São Francisco. Nunes relata os bens setecentistas da Província Carmelitana da Bahia em
Sergipe:
Explica-se, assim, porque chegaram a possuir um patrimônio
considerável de propriedades através do recebimento de sesmarias,
doações ou herança de terras, e também por compra. Em 1716, era
registrada a posse, pelos Carmelitas na Capitania de Sergipe, dos
seguintes bens: Um convento de bastante religiosos, com Prior e
Superior em S. Christóvão; uma capela nas proximidades da cidade,
onde reside um religioso administrador. A Fazenda Gravatá, distante
légua e meia, onde reside um administrador (doação de Manuel
Antunes Pereira com a condição de celebrar missas anuais); um
Engenho, de invocação a São José, onde reside um Religioso
administrador; uma Fazenda na Praia, no momento sem administrador,
distante quatro léguas; um hospício com Vigário-Prior e demais
Religiosos, a Igreja de devoção a Santo Amaro na vila de Sto. Amaro
das Brotas distante doze léguas; uma missão de índios com Superior,
outro religioso e igreja de invocação de Santo Antônio, distante 12
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léguas da Vila de Santo Amaro; uma fazenda dos Bananais, de Capela
de invocação de S. Gonçalo e um religioso administrador; outra
Capela e Fazendas em número de 13, chamada Palmares, distante 12
léguas, na Vila do Lagarto; uma Fazenda, que dizem 12, chamadas
Fazendas de Sta. Izabel, e um religioso administrador, distante 25
léguas na Vila Nova do Rio São Francisco. O patrimônio da Ordem
continuou a crescer, e, em 1760, era registrada a posse dos engenhos
Quindongá, Comandaroba e Vassalo, este na ribeira do Vasa-barris
[...]. Possuíam também o sítio Escurial comprado a Diogo Pimentel,
acrescentado no terreno Pitanga. (NUNES, 1996, p.235).
A partir desses dados, podemos afirmar que a Província Carmelitana da
Bahia, no século XVIII, tinha a posse de grande parte das terras na Comarca de Sergipe
d’El Rei.
No livro de Nunes (2006, p.336-337), há um documento transcrito da
“Relação dos engenhos que fabricavam açucares em toda esta Capitania da Bahia, cuja
averiguação se fez pelo contrato real dos dízimos para conhecimento do que atualmente
rendem os ditos engenhos”, publicado no ano de 1759, dentro das “Notícias Geral de
toda esta Capitania da Bahia desde o seu descobrimento até o presente ano de 1759”.
Este documento descreve o nome de todos os proprietários de engenho de Sergipe,
tendo 31 engenhos no vale do Rio Cotinguiba e 8 engenhos próximos à São Cristóvão.
Dentre todos os proprietários, o único que era de propriedade de religiosos, situado
próximo à região da cidade de São Cristóvão, era dos religiosos do Carmo, e sabemos
que eram aqueles da Província Carmelitana da Bahia.
Nas terras da Capitania da Bahia, os carmelitas calçados ocupavam grande
parte da região norte da cidade do Salvador: nas intermediações de seu convento,
tinham também algumas hortas na parte oeste da cidade, e grandes fazendas nas
intermediações de Itapuã, cidade de Salvador, além disso, possuíam fazendas de
mandioca, fumo e cana no Recôncavo Baiano, além de alguns engenhos.
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Um mapa de 13 de janeiro de 1750 detalha os seguintes bens do convento
sede do dos carmelitas calçados da Província Bahia, revelando que as suas propriedades
situavam-se majoritariamente em Bahia e em Sergipe:
Estão apontadas neste mapa as seguintes propriedades, mencionadas
no Livro de Tombo em questão: Conventos e Hospício -1 - Convento
do Carmo – Salvador; 2 - Convento do Carmo – São Cristovão; 3 -
Hospício do Rio Real – Sergipe; terrenos com capela; 4 - Hospício de
Santo Amaro de Brotas (SE) – terreno com capela; Missões - 1 –
Missão de Japaratuba – (Santo Amaro de Brotas – SE); 2 – Missão do
Rio Real; Engenho - 1 – Engenho do Carmo – Freguesia de São
Sebastião das Cabeceiras de Passé – Bahia; Fazendas: 1 - Fazenda na
Terra dos Palmares (hoje Anápolis, Campos e Riachão - SE), com
capela sob a invocação de Nossa Senhora do Carmo; 2 - Fazenda de
canas, na frequezia de Cotegipe – (BA); 3 - Fazenda Forras, em
Estância (SE); 4 - Fazenda de Santa Izabel do Rio de São Francisco –
(SE); 5 - Fazenda de Santo Antonio do Rio das Pedras, com capela do
mesmo nome (BA); 6 - Fazenda de Jacaracanga, com capela em honra
a Santo Antônio em Nossa Senhora da Encarnação do Passé (BA); 7 -
Fazenda de Itapoan (Salvador- BA); 8 - Fazenda de Pirajá com capela
de São Braz (BA). (PEDRAS, 2000, p.115-116).
Desde o século XVI, atestamos que as autoridades incomodavam-se com o
acúmulo de bens das ordens religiosas, principalmente as que detinham bens de raiz.
Desde então, existem algumas medidas que foram tomadas para que o patrimônio
desses religiosos não crescesse, mas os esforços não foram suficientes para diminuir o
acúmulo de bens dessas instituições. Segundo Pedras (2000), os oficiais da Câmara da
Bahia já se preocupavam e solicitavam à Coroa que tomasse medidas:
[...] através de Carta datada de 06/02/1656, (1º volume - pg. 54/55), na
qual pedem ao Rei que tome providências para que nenhuma ordem
religiosa possa comprar bens de raiz, alegando que os jesuítas,
carmelitas e beneditinos, além de não cederem as propriedades
doadas, continuavam comprando cada vez mais engenhos, canaviais,
terras para criação de gado, bem como escravos para serviço nestas
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propriedades. Sendo muito comum a alegação dos padres, nos pedidos
de terras ao governo português, ‘que as necessitam para seu sustento’,
os oficiais confirmam, na Carta acima citada, que as propriedades já
são mais do que suficientes para este fim e chegam até a fazer ameaças veladas, exigindo do Rei providências imediatas. (PEDRAS,
2000, 113).
No século XVIII, percebemos inquietações por conta das autoridades,
principalmente eclesiásticas, justamente a partir da segunda metade do século. Esses
incômodos são percebidos através de queixas relatadas pelos Arcebispos à Coroa,
reclamavam principalmente dos carmelitas calçados (da Província Carmelitana da
Bahia), mas também dos Beneditinos. Segue a primeira carta datada de 1755:
Carta do Arcebispo da Bahia, D. Joaquim Borges de Figueirôa,
dirigida ao Rei [no período Pombalino, após 1755] [...]. Estes ditos
Regulares [Carmelitas Calçados] administrão há muitos anos neste
Arcebispado (e dizem elles que em todo o Brazil) os sacramentos a
todos os seus escravos dentro e fora da clausura, ou seja, nos
Engenhos ou nas Fazendas de cannas ou de gados, dando-os por
desobrigados do preceito da comunhão pascal, sem o legitimo parocho
ter noticia, nem ser avizado. Fazem os baptismos dos filhos dos ditos
escravos e os matrimônios sem embargo da nullidade imposta pelo
Concílio, não sendo celebrados na presença do parocho de um dos
contraentes. E a tanto se extende esta relaxação que athé alguns frades
Carmelitas calçados tem suas fazendas próprias, que administrão com
consentimento dos seus Prelados e nelas praticão o mesmo abuso, sem
que os parochos, por medo e por não serem inquietados, os demandem
ou ajuízem. Estes Carmelitas calçados são os mais relaxados, porque
vivem dispersos, tem fazendas suas, outros com o titulo de Mães ou
Irmans, o que assistem e não vivem no convento e ainda na Cidade
vivem alguns em cazas separadas com licenças antigas dos Prelados,
renovadas sempre pelos que entrão. [...] Estes e os Carmelitas
calçados esperao há muitos anos huma rigorosa reforma (porque
sabem o quanto merecem) temerao que eu tivesse alguma comissão de
V. M. e no primeiro anno da minha rezidencia nesta Cidade dizião que
estavão por tudo, offerecião largar os Aldeias (como se eu devesse ou
podesse aceitar esta administração sem ordem de V. M.) para tudo
dizião que estavão obedientes; fizeram o Capitulo e como não houve
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inspeção n’este ponto, perderão o receio e mostrarão que aquella
obediência era só de vozes e toda affectada [...]. (CERQUEIRA E
SILVA, 1937, p.207).
Esse documento revela a visão de um Arcebispo que visitou principalmente
as terras dos carmelitas da Província da Bahia no Recôncavo Baiano e se deparou com
uma realidade de uma elite de religiosos dispersos, fora da reclusão dos conventos,
administrando fazendas, dando concessões a escravos e vivendo em casas na cidade.
O segundo documento é novamente uma carta do Arcebispo da Bahia
reclamando das ordens religiosas e enfatizando os carmelitas calçados da Bahia como os
mais desregrados:
“He muito conforme ás regras, disciplinas e cânones da Egreja, que os
Regulares vivão nos seus conventos e não fora d’elles, como fazem os
da Bahia, desamparando-os ao ponto de não haver côro nos ditos
conventos, por falta de religiosos, ao mesmo tempo que o recôncavo
daquela Capital abunda em frades, vivendo em casas próprias ou
alugadas, sem diferença alguma dos seculares, tudo na forma que o
Arcebispo da Bahia e o antecessor V. Ex. representão nas suas
redisciplinas e cânones da Egreja que o Prelado diocesano não tolere
este escândalo de tão perniciosas consequências e obrigue aos ditos
regulares a se recolherem aos seus claustros. [...] informou o
Arcebispo da Bahia em carta de 23 de julho de 1778, nos termos
seguintes: ‘Tem esta Capitania frades que innundão o Reconcavo,
principalmente Carmelitas calsados, admoestados os Prelados para
que os fação recolher aos conventos; dizem que não tem com que os
sustentar, talvez porque, os que administrão os engenhos e fazendas
são os do governo a quem se não pede conta. E pedem a V. M. licença
para admitir outros, dizem eles que para desempenhar os conventos
com estes dotes; dias ha em que não há côro pelos não haver no
Convento, estando na Cidade em casas suas ou alugadas, cousa
escandalosa mas de que esta gente já não se escandaliza’.
(CERQUEIRA E SILVA, 1937, p.207).
Novamente, o perfil do religioso/administrador é revelado nessa carta, onde
os carmelitas justificam suas atividades porque não tem como se sustentar. A última
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carta Setecentista relatada, a qual demonstra o descontentamento das autoridades com
os carmelitas da Província Carmelitana da Bahia:
Em 1800, o Ouvidor Antônio Pereira de Magalhães Paços, em
Correspondência ao Capitão General e Governador da Bahia [...]: ‘Nas
correições que esta Vara faz em Vila Nova do São Francisco, os
Juízes ordinários, os oficiais da Câmara se queixam que a Religião dos
P.P. do Carmo Calçados possuem no termo daquela vila desessete
fazendas de Gado, muita escravatura, e não contribuem para Fintas, ou
outro ônus da República, nem fornecem a vila de Carnes, inda rogados
durante a época da correição. A mesma Religião no Rio Real possui
dezoito fazendas grandes de gado vacum e cavalar, as quais chamam
Palmar, e igualmente no termo desta cidade de Sergipe um engenho de
fazer açúcar, e vários sítios de terras, o que participo a V. Excia. Que,
dignando-se propor a S. A. Real, providenciará o que do seu Real
Agrado’. (NUNES, 1996, p.234-235).
Nessa carta, referente à Comarca de Sergipe d’El Rei, atesta-se que o
descontentamento por parte das autoridades é o de que os religiosos não pagam os
devidos impostos, apesar de terem muitos bens como escravos e fazendas, e nem
fornecem carne, apesar de terem um patrimônio considerável de fazendas de gado.
AS RELAÇÕES DE ESCRAVOS DOS CARMELITAS CALÇADOS EM BAHIA E
SERGIPE (SÉCULO XVIII)
Nesse momento, tentaremos fazer um breve levantamento das fontes
primárias (com base em fontes secundárias), principalmente em relação às cartas de
alforria, que atestam a escravaria da Província Carmelitana da Bahia.
Antes de discutirmos as cartas de alforria, gostaríamos de apresentar pelo
menos dois fatos escandalosos, envolvendo a relação escravo e carmelita calçado,
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encontrados no trabalho de Nunes (1996), duas cartas que foram localizadas no Arquivo
Histórico Ultramarino. Em meados do século XVIII:
‘A correspondência de Frei José do Egito, Religioso do Convento do
Carmo de São Cristóvão, relatando o comportamento de Frei
Domingos de São Felipe Nery, administrador do engenho Camaçari
[...]’. ‘Saindo Padre Frei Domingos e San Felipe Nery da
administração do Engenho Camaçari, pertencente ao convento de
Pernambuco, deixou a uma negra dele com um cadeado de ferro nas
partes pudentas a fim de não desonestar [...] AHU – Sergipe, Caixa 6,
doc. Nº 12. [...] relata-se que o Ouvidor Amaro Luiz de Mesquita
Pinto Pena, em 1748 na cidade de São Cristóvão, denunciou o Prior Frei Antônio de São Agostinho: ‘de estar publicamente concubinado
com uma mulata que forrou com o dinheiro do convento, bem como
demais frades que eram coniventes’. (NUNES, 1996, p.237).
Nesses dois documentos, podemos perceber algumas questões curiosas do
cotidiano colonial, no primeiro, o ato de deixar usar cintos de castidade em seus
escravos, e o outro, a infração do voto de castidade pelo religioso carmelita em Sergipe
d’El Rei, que se envolvia sexualmente com uma escrava e que ainda cedeu a alforria
com o dinheiro do convento com o consentimento dos demais religiosos daquele local.
Ambos os casos precisam ser melhor estudados para que tiremos melhores conclusões a
respeito, mas, com base na literatura estudada, existem muitos casos de religiosos que
se envolviam com seus escravos e poucos foram os casos que o próprio senhor pagava a
alforria de seu escravo.
Ao fazer um levantamento da escravaria da Província Carmelitana da Bahia,
encontramos uma pequena relação de escravos no I Livro do Tombo da Província
Carmelitana da Bahia, Pedras (2000) identificou a menção, nesse Primeiro Livro, de
pelo menos quatorze escravos de posse dos religiosos ao longo do século XVIII:
João e Maria Arsequa (da Guiné); Simeão (moleque); Paulo (negro
curraleiro – Sergipe); Catherina, Mulher de Paulo (Sergipe), Pedro
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Mallemba (Curraleiro - Sergipe); Luzia, Mulher de Pedro (Sergipe);
Antônio, Matheus, Domingos, Izabel e Gonçalo - Filhos Pedro e
Luzia; Miguel de Freitas (Fazenda dos Palmares – SE); Maria May
(alforriada em 1796). (PEDRAS, 2000, p.189-190).
Nota-se que os escravos que foram mencionados com suas funções e
localidades onde trabalhavam, em sua maioria, procediam das propriedades dos
carmelitas calçados em Sergipe.
Em relação às alforrias, Pedras (2000) identificou três no I Livro de Tombo
do Convento do Carmo da Bahia, sendo que duas delas a autora descreveu a seguir:
Especificamente com relação aos carmelitas, existe um ‘Escrito de
Liberdade’, datado de 16/04/1792, assinado por Frei Antônio de Santa
Eufrásia Barboza, Mestre de Púlpito e Justiça, Ex-Provincial e Vigário
Prior do Convento do Carmo da Bahia e demais frades, no qual eles
declaram: que são senhores de um escravo pardo, já velho, por nome
Miguel de Freitas, oriundo de uma Fazenda dos Palmares; que o dito
escravo pede a sua liberdade, dando em troca aos padres ‘cem mil réis
em dinheiro, mais um mulato vaqueiro moço e duas escravas’; há uma
condição: ‘que por sua morte e de sua mulher, a religião será herdeira
de todos os seus bens’; que eles, ‘inclinados à Piedade’ lançaram esta
Carta de Alforria. Está copiada a seguir uma Declaração, onde se lê
que foi expedida pela Ouvidoria Geral do Crime uma Carta precatória,
ordenando a prisão dos seis escravos do dito Miguel de Freitas, que
‘andam fugidos nos sertões’, como também que haviam passado uma
outra “carta de liberdade” para a crioula Maria May em 1796. Esta
carta é mencionada também no Livro de Memórias Históricas da
Bahia (Arquivo do Carmo) à fl. 213. (PEDRAS, 2000, p.106).
A carta de liberdade demonstra o que percebemos na literatura, que
claramente o escravo comprou sua alforria dando em troca não somente 100 mil réis,
como também mais três escravos. Mesmo assim, isso não o desvinculou aos religiosos
carmelitas, que fizeram a exigência de receber, com sua morte e o de sua mulher, todos
os seus bens.
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Na Comarca de Sergipe D’El Rei, encontramos, no livro de Notas do
Cartório do 1º Ofício (localizado no Arquivo do Judiciário de Sergipe), algumas
manumissões dos carmelitas calçados da Província da Bahia a algumas escravas. Segue
relação:
- Documento nº 357 – 28-8-1758: Carta de alforria que passou o
Reverendo Padre do Convento do Carmo, Ângelo Theicheira Joseph a
escrava Luisa. (Original complete). Ref. Arq.: SCR/C.1º OF. Livro de
Notas Cx 01-62-52-Lv. 05 – Fls. 200-202; - Documento nº 366 – 11-
11-1758: Carta de Alforria que passou o Reverendo Padro Prior do
Convento do Carmo a crioulinha Anna. (Original completo). Ref.
Arq.: SCR/ C. 1º OF. Livro de Notas Cx 01-62-52-Lv.05 – Fls. 225-
227; - Documento nº 370 – 07-12-1758: Carta de alforria que passou o
Reverendo Prior do Convento do Carmo desta cidade [São Cristóvão]
Frei Joze de Angelo Theicheira a escrava Joanna do Gentio de
Angola. (Original Completo) Ref. Arq.: SCR/ C.1º OF. Livro de Notas
Cx 01-62-52-Lv. 05 – Fls. 236-238; - Documento nº384 – [1759]:
Carta de Alforria que passou o Reverendo Prior do Convento do
Carmo da Capitania de Sergipe Del’Rey José Ângelo Theicheira a
escrava Izabel do Gentio da Angola. (Original completo) Ref. Arq.:
SCR/C.1º OF. Livro de Notas Cx 01-62-52-Lv. 05 – Fls. 268-269; -
Documento nº 629 – [1782]: Carta de Liberdade da Preta Maria
escrava que foi dos religiosos da Nossa Senhora do Carmo. (Original
completo) Ref. Arq.: SCR/C. 1º OF. Livro de Notas Cx.02-53- Lv. 02
– Fls. 67-68. (SANTOS, 2008, s./p.].
Nota-se uma concentração de cartas de liberdade no ano de 1758 e 1759,
sendo uma somente no ano de 1782. Das 5 cartas de liberdade, duas mencionaram a
região, da Angola, não sabemos se a procedência dessas escravas era mesmo de Angola
ou se também tinham laços de parentesco. A menção a crioulinha Anna faz-nos crer que
esta era uma criança nascida no Brasil, e que as demais escravas adultas.
As cartas de alforria de que aqui dispomos são poucas, se pensarmos no
grande patrimônio dos carmelitas calçados da Bahia e, consequentemente, na
quantidade de escravos que eles tiveram para a manutenção de todo seu patrimônio.
Mesmo assim, cumpre-se o que diz na literatura, uma vez que era realmente um número
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reduzido de manumissões cedidas pelos senhores, e com os carmelitas calçados da
Província da Bahia a regra não foi diferente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante do exposto, entendemos que a historiografia está buscando, para os
estudos da escravidão e da história do Brasil colonial, ampliar suas pesquisas para que
também os olhares se ampliem diante das diversidades de fontes e de pesquisas
regionais e pontuais que hoje em dia utilizamos. A tendência da historiografia é ver a
realidade da escravidão no período colonial como um estudo ainda a ser bastante
aprofundado, principalmente no tocante aos estudos comparativos, com muito mais
perguntas do que respostas. Certamente, os olhares diante dos novos trabalhos
proporcionaram a quebra ou a confirmação de antigos paradigmas, ampliando o campo
de visão para um universo mais diversificado e plural.
Os estudos sobre escravidão apontam que, ao se respeitar as hierarquias, os
atores sociais seguiam regras. Todavia, as regras também não eram seguidas, em alguns
casos que ainda são isolados, mas significativos para repensarmos novos olhares diante
da sociedade colonial. Existiram diversos perfis de senhores e de escravos, e, em meio a
esses atores, surgiram outros personagens como comerciantes, latifundiários, entre
outros.
Pretendemos, em nossos estudos, trabalhar com dois agentes sociais: a
Igreja, em nome da ordem carmelita calçada, e o escravo, em nome de seus escravos. Os
bens dos carmelitas calçados foram essenciais para se detectar tanto a sua influência,
principalmente na capitania da Bahia e Sergipe d’El Rei, quanto para se ter uma ideia de
uma parte de seu vasto patrimônio, incluindo então os escravos. Como no período
estudado não encontramos listas que descrevessem os escravos dos carmelitas,
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procuramos localizar, através de fontes secundárias, alguns documentos que
mencionassem indiretamente a escravaria dos religiosos.
Diretamente, optamos por procurar as cartas de alforria, pois relatam mais
detalhes acerca do escravo como agente social. Sabe-se que a maioria das cartas aqui
trabalhadas estão relacionadas ao patrimônio de somente um dos conventos da
Província da Bahia, que é o da cidade de Salvador, que era sede de toda a Província
Carmelitana da Bahia. A maioria dos escravos aqui relacionados serviu nas terras de
Sergipe, porque é naquele local que aquele convento tinha mais propriedade, tais como:
fazendas de gado, missões e engenhos.
Como esse trabalho é apenas um recorte do nosso estudo de tese, muito
ainda se tem para pesquisar a respeito do patrimônio da Província Carmelitana da Bahia
e, consequentemente, da sua escravaria, que era em proporções bem maiores do que
vimos aqui, pois a Província atuou nas Capitanias Gerais da Bahia e Pernambuco.
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