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1 UM CAMINHO PARA SARA De Thales Paradela

UM CAMINHO PARA SARA DeThalesParadela! · • SAPO: Brincalhão, voz muito fina, ... Corta pedaços de uma revista e cola em um grande ... Só que ele não sabia dar o nó da gravata

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UM CAMINHO PARA SARA

   

De  Thales  Paradela      

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Personagens:

• SARA: 11 anos, tímida, franja nos olhos, óculos, quando nervosa gagueja; • MÃE: Foi cantora em cruzeiros de turismo, agora está bem gorda; • CORUJA: Sábia, olhos grandes, conhece as indicações do caminho

(masculino ou feminino); • CACHORRO: Fiel, gago, não late quando precisa; • SAPO: Brincalhão, voz muito fina, canta apenas de dia; • GATA: bela gatinha a procura de seus filhotes; • DUAS ANDORINHAS: Bicudo e Asa Negra; • SANTIAGO: cozinheiro de palavras, faz porções com elas; • GALHARUFA: Guardião do caminho, não passa quem não completou a

jornada (masculino ou feminino); • TIAGO: Da mesma série de Sara, desajeitado, toca violão.

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PRÓLOGO – Um convite (Palco escuro. Um pino de luz surge rapidamente, vê-se Sara olhando para os lados, como que aflita. Em seguida, outro pino acende em outro canto do palco, vê-se Tiago olhando para os lados como que procurando. Ele a vê. Vai em sua direção. No movimento dele, apagam-se os pinos de luz e o palco fica escuro. Pequena pausa. Acendem-se simultaneamente dois pinos de luz: Tiago encontra-se no pino de luz que antes Sara ocupava, enquanto ela aparece em um novo pino de luz, outro ponto do palco, como que fugindo. Eles se procuram, se acham. Tiago vai em sua direção. Mesmo movimento de luz que apagam-se no movimento de Tiago e acendem depois, novamente ele no ponto onde ela estava e ela em outro novo ponto, como que fugindo. Se procuram, se acham. Sara, com medo, sai deste pino que se apaga, sai do palco. Ainda sob o pino de luz, Tiago fica sozinho.) TIAGO: Mas Sara, você não topa... (apaga-se o pino de luz).

CENA 1 – Quarto de Sara: Mais um telefonema... (Vê-se Sara deitada na cama ouvindo música, ela usa óculos vermelhos, tem uma franja longa que que lhe encobre parte do rosto, quando muito nervosa ela gagueja. Não serão mostrados todos pontos nos quais ela gagueja, a atriz saberá a hora certa de nervosismo na qual gaguejar. Ela está com muitos livros jogados pelo chão. Corta pedaços de uma revista e cola em um grande caderno, faz anotações em torno desta colagem.)

(Toca o telefone, ela fica inquieta, corre até o aparelho e não atende. Volta para a cama, deita-se de lado, de costas para o público. O telefone para de tocar.) MÃE: (De fora do paco durante esta cena, só se houve sua voz, gritada por conta da música alta) Sara, é pra você, é aquele menino de novo, o Tiago. SARA: Diz que eu não estou! MÃE: Eu já disse que você está! Ele não vai parar de ligar e eu tenho o que fazer. SARA: Mãe, acredita em mim, é sério, eu NÃO posso atender. MÃE: Mas o que eu falo com ele? Já disse que você estava.... SARA: Por favor mãe!!!! MÃE: Tá bem... Eu vou dizer que você está dormindo e um pouco resfriada... mas, escuta, é a última vez que eu faço isso! (Sara vira-se para a plateia, aliviada, ainda deitada de lado)

CENA 2 – Quarto de Sara: A DIFICULDADE DA RESPOSTA

(Entra a mãe, Sara finge dormir) MÃE: Isso não vai adiantar! Até quando você pensa que pode fingir que está dormindo? SARA: (Abrindo os olhos) Não sei, só que agora NÃO dá! Eu não sei o que falar com ele... aí, ele vai achar um monte de coisa: que eu... sei lá... MÃE: Que você está em dúvida? Na tua idade? Qual o problema? SARA: Se eu disser a coisa errada, ele nunca mais vai falar comigo, ninguém nunca mais vai falar comigo!

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MÃE: E sua vida na escola estará acabada. Teremos que mudar para outro estado? SARA: Se fosse possível, eu agradeceria. Mãe, você não entende... MÃE: E porque você acha que eu não entendo? SARA: Você já sabe o que falar, é mais fácil. MÃE: Fácil? Você acha que era fácil quando eu tinha a tua idade? Você acha que fica fácil depois? Você acha, por exemplo, que foi fácil falar alguma coisa quando eu conheci o seu pai? SARA: (Irônica) Por acaso ele era o garoto mais bonito da escola? MÃE: Foi o único homem que me atraiu naquele navio, mas ele nem imaginava isso. Ele usava terno e gravata, no calor, só para parecer mais sério. Só que ele não sabia dar o nó da gravata e ficava todo torto... foi assim que eu cheguei perto dele, fui arrumar a gravata. Ele agradeceu, tremendo, e quando ele foi arrumar o cinto derramou um suco inteiro em mim. Você se parece com ele. SARA: Mas você era uma artista! Lá do palco, todo mundo admirando... Fica fácil assim! MÃE: Nunca é fácil! Pelo contrário, eu sempre me sentia frágil quando estava no palco! Eu morria de medo. SARA: Mas aquelas fotos todas, você estava sempre linda! MÃE: Parece linda, mas eu estava apavorada. Sara, eu sempre fiquei apavorada antes de entrar no palco... e isso era maravilhoso! A banda começava e eu me lançava no palco, sem pensar. Era como pular num abismo, não tinha como voltar... era só voar, ou cair... daí a gente bate a asa com mais força! Quando a música acabava, eu ainda tremia por mais meia hora, depois ia jantar, com fome, como qualquer uma naquele navio. SARA: Mas todo mundo te admirava! Meu pai deve ter ficado de queixo caído. MÃE: Esse foi o grande problema, o queixo caído, (imitando, rindo) ga-ga-ga-guejando.... ele nem conseguia falar nada! Eu não sabia o que fazer pra falar com ele, que sempre fugia. Foi aí que eu soube, por acaso, que ele tocava violão... SARA: Eu sei, (como se tivesse ouvido mil vezes a mesma história) e você pediu para ele tocar uma música que você estava ensaiando, daí... SARA E MÃE EM CORO: cantamos juntos a noite inteira e eu desci do navio pra passear com ele assim que chegamos no porto!!! SARA: É... mas eu não sei se consigo. Mãe, naquela aula de música da escola que o Tiago ficou fazendo improviso com o violão, eu não pensei nele, pensei só na música. Daí, sem perceber, comecei a cantar baixinho. Ele parecia que voltava sempre numa mesma parte da música. Eu só coloquei umas palavrinhas nesta parte, era só uma frase... MÃE: Daí todo mundo gostou... SARA: Não sei,...foi rápido. A professora disse que ele poderia fazer este número no espetáculo de final de ano da escola e as meninas, claro, acharam o máximo...rã, rã, rã.... só que no recreio ele veio falar comigo, dizendo que queria que eu fizesse a letra para música e, não... para tudo!, queria que eu cantasse com ele no espetáculo de final de ano da escola. Ele tá louco?

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MÃE: De certa forma... do contrário não faria música. A questão é saber se você também está louca como ele. SARA: Não, mãe, fala sério! Não posso aceitar! Não sei o que escrever na música, não sei cantar. E se eu gaguejar? E se ninguém gostar? E se o Tiago não gostar? Não sei, não sei, não sei o que dizer...! Me diz, mãe, o que eu respondo para ele? MÃE: Sara, você vai ter que descobrir isso sozinha. Vai ter que encontrar essa resposta num lugar que você procura muito pouco. Parece perto, mas é difícil escutar o que vem dali. Eu não posso ir lá por você, minha filha, mas se você precisar de alguma coisa... SARA: De uma cara nova, de uma cara sem óculos, e de uma voz nova... Ah, e de nenhuma gagueira nova! MÃE: De um encanto novo! Mas isso não posso te explicar, você só vai saber se tiver coragem de subir num palco. Então, as luzes acendem... (luz de show começa a acender.) SARA: E o que acontece? (A mãe começa a se transformar em uma diva e a cantar. Canção da mãe: O DELÍRIO DE CANTAR. As canções são grafadas em azul itálico e, por vezes, são entremeadas por falas em preto sem itálico, guardando o ritmo, mesmo sem serem cantadas.)

Um refletor, acende um flash Um sol no olho vai nascer...

Sara: Parece até um filme Trash Mãe: Isso é o que nós vamos ver... Dois compassos até partir Depois no palco se jogar Estar inteira, atenta, ali

Ao mesmo tempo não estar. Sara: Não entendi nada... Mãe: Olhou a coisa errada! O tempo corre e não me cansa Quero gritar e rir a toa

Ali no palco, o corpo dança Ali no palco, a alma voa.

Sara: E se eu cair no chão? Mãe: É só esperar a próxima canção... Muda de tom, põe outro disco Um novo som invade o ar

Pois só quem pode amar o risco Sabe o delírio de cantar.

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Sara: Ai, que eu tô com medo! Mãe: Fica sendo nosso segredo. (Sara canta com a mãe os refrãos)

O tempo corre e não me cansa Quero gritar e rir a toa

Ali no palco, o corpo dança Ali no palco, a alma voa.

Muda de tom, põe outro disco

Um novo som invade o ar Pois só quem pode amar o risco

Sabe o delírio de cantar. (Fim do número. Um toque de telefone interrompe o último acorde que é longo. SARA vai distraidamente até o telefone e atende. Escuta-se um “ALÔ” do Tiago e imediatamente ela passa o telefone para a mãe. A mãe se recusa, elas empurram o telefone uma para a outra com a mão no fone, então a mãe resolve falar.) MÃE: Alô... ah, é você Tiago... não, ela ainda não acordou (olha com cumplicidade para Sara que respira aliviada). Mas já, já ela acorda. Faz o seguinte, dá um pulo aqui em casa hoje de noite, eu estou fazendo um bolo e acho que vou precisar de ajuda pra terminar de comer... (Sara se desespera) ... sim, pode ser as sete horas... tá, eu espero, sem problemas... Claro, ela vai estar acordada sim, já dormiu muito esta menina... outro pra você... tchau. (para Sara) Bem, ele vem às sete horas, se quiser pode dormir até lá, eu te acordo (vai saindo sem ouvir a resposta.) SARA: Dormir?! Eu nunca mais vou dormir na vida... você não podia fazer isso, porque agora...(a porta se bate atrás da mãe)...(para si) agora... e agora?

CENA 3 – Quarto de Sara: A FUGA (Sara começa a andar pelo quarto sem saber o que fazer. Vai se encolhendo na cama, coloca um travesseiro na cabeça e fica um tempo.) SARA: É isso... vou me esconder, se ele chega aqui e não me encontra vai ficar sem graça de ficar conversando só com a minha mãe, ai ele vai embora, tá tudo resolvido... quer dizer, tudo não resolvido: não falo hoje com ele, mas depois... (percebendo uma saída) É isso, ele desiste e eu não preciso decidir! (Buscando um esconderijo dentro do quarto) Não, aqui não... (buscando outro) não pode ser aqui no quarto. Preciso sair daqui. (Olha pela janela e passa uma das pernas, volta.) Preciso levar alguma coisa (pega uma mochila vermelha e coloca uma garrafa de água, alguns biscoitos, seu caderno com recortes e anotações, umas canetas de cores diferentes). Isso aqui pode ser útil se eu demorar... (Sara hesita. Respira fundo, prende o nariz com uma das mãos, fecha os olhos e passa pela janela com um leve salto. A luz se apaga e some o cenário do quarto.)

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CENA 4 – Transição para entrar no caminho: ENTRANDO NO CAMINHO

(Um foco define SARA em outro ambiente sem cenário. Ela ainda está tapando o nariz e com os olhos fechados como finalizando o salto anterior. Quando abre os olhos é que percebe estar em um outro lugar inesperado. Ela ainda tenta reconhecer o local, sem sucesso. Um corredor de luz bem marcado começa a se destacar até definir um trajeto. Ela entra neste corredor e segue até perto de uma das coxias. Quando chega no limite deste lado, um gobo projeta uma seta amarela apontando uma outra direção a continuar. Quando ela pisa nesta direção, um outro corredor de luz bem marcado surge. Assim ela vai andando pelo palco, mostrando uma longa caminhada por um caminho bem marcado pela luz. Vinheta musical de passagem de tempo.)

CENA 5 - Caminho: INDICAÇÕES ESTRANHAS E UM GUIA

(Sara para pra ler uma placa que contém inscrições abaixo da seta amarela.) SARA: (Lendo) “medo de tropeço esconde o arco-íris” (repete, tentando entender) “medo... medo de tropeço...” CORUJA: (Ainda na sombra) Esconde o arco-íris. SARA: Quem disse isso? CORUJA: (Saindo da sombra para a luz) desculpe-me, não queria assustar. É que você me pareceu perdidamente perdida. SARA: Pelo visto estas placas não ajudam muito. O que tem a ver o tropeço com o arco-íris? CORUJA: Às vezes nada, às vezes tudo. Você viu o arco-íris? SARA: Que arco-íris? CORUJA: Só pode ser aquele (aponta e o arco-íris aparece). SARA: Mas como eu iria ver? não estava lá! CORUJA: Claro que estava, mas como você está perdida, deve estar com medo de tropeçar, daí fica só olhando para o chão, então não vê o arco-íris. Por isso que “o medo de tropeço...” SARA: “...esconde o arco-íris”, agora entendi. É preciso olhar em volta durante o caminho. Se ficar só com medo de cair, não é possível ver beleza em nada. É... parece que você conhece das placas. CORUJA: Ah, sim, eu presto muita atenta atenção. Nós, as Corujas, somos conhecidas por nossa inteligência. Eu leio todas as placas. SARA: Então você deve conhecer de cor este caminho todo. CORUJA: Eu fico mais é parado nesta minha árvore. Só saio de noite, mas daí está tudo muito escuro e eu não vou muito longe. SARA: Você nunca teve vontade de saber o que tem depois de todas as placas? CORUJA: Claro que sim. Eu adoraria migrar, viajar por aí, como fazem todas as aves. Mas... deixa pra lá... melhor ficar aqui sombreado na sombra desta árvore. SARA: Por que você nunca partiu?

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CORUJA: É que... estes olhos, muito grandes... Ah, não estou reclamando eu consigo ver bem as coisas, mas... temos que concordar... estes olhos não são lá muito bonitos. As pessoas se assustam, eu fico com vergonha, por isso só saio de noite. Você não se assustou, estava tão perdidamente perdida que não prestou atenção nos meus olhos e... ei, você tem uns olhos muito estranhos também, são quatro? (pega os óculos vermelhos de Sara.) SARA: Não, são os meus óculos, me ajudam a enxergar. E se você quer saber, eu também não gosto muito deles, são feios. CORUJA: (Botando os óculos) são ótimos! eu vejo melhormente melhor com eles. SARA: (Tomando os óculos de volta) mas eu não vejo nada sem eles. Aliás, nem com eles eu consigo entender muito destas placas. Estou perdida e preciso sair daqui, por que você não vem comigo? Você me ajudaria a entender as placas. CORUJA: Eu tenho vergonha... você não se importa de eu ir com você? SARA: O máximo que pode acontecer é pensarem que eu também sou uma coruja (brinca com os óculos, riem). Olhos como esses, tão atentos e sábios, não podem ficar só na sombra. Vem comigo, me ajuda. CORUJA: Bem, se é assim... eu acho que posso sim ajudar com as placas. Há uma que indica grande perigo, um dragão guardião que... SARA: Quieto um pouco agora, a gente está perdendo o arco-íris. Olha! CORUJA: Olhar! Com todos os olhos! SARA: Queria ter mais olhos, maiores, só pra encher eles com este arco-íris... (Canção da coruja. OLHOS TANTOS DE VER. Coruja canta as 3 primeiras estrofes. Sara canta a última estrofe.) Com olhos enormes

e uma boca estreita se vê os conformes

da frase perfeita.

Com olhos redondos e boca fechada

se evita os estrondos da palavra errada.

Com olhos profundos

e boca restrita se atravessa os mundos

da palavra escrita.

Com os olhos de abrigo Com olhos de perdão

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É que se vê um amigo: olhos do coração!

(Ambos repetem a última estrofe como refrão)

SARA: É... mas está ficando escuro! Eu não consigo ver mais nada. CORUJA: Só os cegos e os poetas é que podem ver na escuridão!... Ah, e as corujas também! (risos) Logo ali tem uma caverna, podemos passar a noite, amanhã seguimos com mais iluminada luz (entram na caverna.)

CENA 6 – Caverna: UM COMPANHEIRO FIEL

(Assim que se aninham, próximos para se protegerem, veem projetada na parede uma sombra enorme, de um animal desforme. O cachorro está de fora do palco, em frente a um refletor, fazendo a sombra projetada. Ficam com medo.)

SARA: Ai meu deus! SI-NIS-TRO! CORUJA: Senhor monstro, queira nos perdoar, não quisemos interromper seu descansado descanso. Aliás, estávamos partindo de partida... (pega Sara pelo braço para saírem sorrateiramente.) CACHORRO: (Latindo gaguejado) A-a-a-a-a-uu.... A-a-a-a-a-uuu (os pontos nos quais o cão gagueja não serão todos explicitados no texto, o ator saberá os momentos de nervosismo que levam o cachorro a gaguejar.) SARA: Que bicho é esse? CORUJA: Nunca ouvi nada parecido, mas não deve ser amigo amistoso (começam a sair). Nem olhe pra trás (Sara olha pra trás.) (Surge o cachorro, fazendo formas com a mão para parecer mais aterrorizante. Tem os olhos bondosos que contrastam com a figura projetada por sua sombra.) SARA: Mas é só um cachorrinho! Que fo-fo! CACHORRO: Eu sou perigoso! Cuidado! A-a-a-a-uuu.... A-a-a-a-uuuu! CORUJA: Claro que sim, por isso mesmo estávamos saindo de saída... SARA: Mas resolvemos ficar! CÃO e CORUJA: Ficar?! SARA: (Corre para frente do refletor escondido que faz a sombra do cachorro, ele se afasta. Ela começa a fazer com a mão outros tantos bichos projetados.) Isso é divertido! E agora, vocês morrem de medo dos meus monstros? Búúúúú.... CACHORRO: É que eu não ponho tanto medo assim! Por isso uso essas sombras, atrás da fogueira. Quem teria medo de uma cachorro gago? CORUJA: Uma coruja vesga, talvez! Por que você quer nos amedrontar? CACHORRO: Pra proteger os filhotes. São três. Era uma noite de chuva, eu entrei aqui, eles estavam abandonados. Fiquei esperando e ninguém apareceu. Desde então eu fico aqui montando guarda. De manhã eu saio, busco alguma coisa para dar de comer a eles e deixo na porta da caverna. De

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noite eu acendo este fogo, para esquentar e fazer as sombras que protegem a entrada da caverna. SARA: Então tem mais cachorrinho fofo aqui dentro? Vamos procurar (Vai se embrenhando e procurando.) CACHORRO: Não vá incomodar os pequenos! SARA: Pequenos, oba! Onde? CORUJA: (Chamando) Pequenos filhotes de canis familiaris! Aproximem-se... SARA: Isto é forma de chamar cachorrinho? (Começa a assoviar. Todos procuram. Não acham). Ué, onde estão os filhotes? CACHORRO: E-e-e-ee-uu não-não-não sei. Será que eles... CORUJA: Cresceram? Quanto tempo tem que você está nesta caverna tomando conta deles? CACHORRO: Uns três anos! SARA: Ai NÃO! FA-LA SÉ-RIO! Cachorro com 3 anos é adulto! Eles devem ter ido embora. Saíram para ver o mundo e devem bem estar passeando por aí... enquanto (para o cão) você... CACHORRO: Fiquei aqui! Pensei que eles ainda precisavam de mim. Parece que ninguém precisa. Eu já tentei ser cão de guarda, mas me dispensaram... na hora que precisava, eu não conseguia latir, eu gaguejava. Disseram que eu não servia. Era uma gente estranha, sempre com medo! Tinham medo até de ....rá-rá-rá-rá (segue engasgando no rá. Os demais se entreolham, acham que ele está rindo. Resolvem aderir à risada. Isso faz o cão ficar mais nervoso e gaguejar mais no rá. Daí todos aumentam a risada. Então o cão, com muito esforço termina a frase) rato, tinham medo de ra-rato. CORUJA: (Coruja e Sara embaraçados) Ah, claro, ra-rato. O senhor ainda estava terminando o terminado caso e... SARA: Desculpa! A gente pensou que você estava rindo. Já aconteceu comigo também. (Faz um carinho no cão que pousa o focinho no chão). Talvez agora que você sabe que os cachorrinhos não estão mais por aqui, você queira vir conosco. Você não precisa mais assustar ninguém na entrada desta caverna. CACHORRO: E onde eu iria assustar alguém? SARA: Você não precisa assustar ninguém. Pode ser apenas nosso amigo, você que é tão fiel! (Para animá-lo) Mas se houver algum perigo, eu sei que você vai nos proteger. CACHORRO: Sem conseguir la-la-latir? Quem precisa de um cachorro assim? CORUJA: Acho que qualquer um que goste mais de carinho do que de medo. Se esses meus olhos estranhos não assustam vocês, a gagueira de vocês dois também não vai nos deixar atrasadamente atrasados. CACHORRO: Se não se incomodam... SARA: Vem com a gente! E se tivermos medo, a gente grita junto! CORUJA: (Ironizando) Eu grito! Você dois... GRI-GRI-GRI-GRI-TAM.... (risos) (Música do cachorro, O DESEJO DE SE EXPRESSAR. O cachorro canta a 1a e 3a estrofes. A sílaba final de cada verso, quando ele “desengasga” é cantada por todos. Sara canta a 2a estrofe e a Coruja canta a 4a estrofe. Cachorro

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canta a 5a estrofe sem gaguejar, uma voz límpida que surpreende a todos, inclusive a ele mesmo. Todos repetem juntos a 5a estrofe)

CACHORRO No forte do la-la-la-TIR

eu não posso engas-gas-gas-GAR preciso transmi-mi-mi-TIR

um medo de arra-rra-rra-SAR SARA

Ou pode ser que então não seja mais cruel

e mostre um coração amigo e tão fiel

CACHORRO Mas eu só sei gru-gru-gru-NHIR mas eu só sei la-la-la-DRAR

queria conse-se-se-GUIR poder me expre-pre-pre-SSAR

CORUJA ou pode até bem ser preciso despertar

a forma de poder melhor então falar

SARA: Cantando! CACHORRO: Cantando? CORUJA: Por que não tentar? CACHORRO (sem gaguejar) Um sonho tão antigo

a voz deixar rolar e perto de um amigo

não latir, só cantar! CACHORRO: Ih, não gaguejei!! (Todos repetem o refrão.) (Cachorro volta para perto do fogo, do refletor, vê-se agora a sombra dele com nitidez. Os demais sentam-se ao lado, de forma que é possível distinguir claramente a sombra deles projetadas ao fundo. Lentamente a sombra vai sumindo. Mudança de luz para o dia seguinte.)

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CENA 7 – Caminho: O TROVADOR DO GRUPO (Assim que troca a luz, vê-se os três caminhando, muito cansados, como se há tempos.) SARA: Eu estou cansada, eu estou com sede, eu estou com fome, eu estou... CORUJA: Procurando o certo, certeiro local para descansar. De acordo com a última placa deve haver uma lagoa logo ali (aponta um lado). CACHORRO: Não seria mal molhar as patas, mas se vocês quiserem continuar eu sigo (ouve-se uma voz bem aguda do lado oposto ao apontado, um belo vocalize.) SARA: Essa voz é tão bonita! (começa a seguir para a direção da voz) Ela parece que vem... CORUJA: Do lado erradíssimo ao da lagoa. Menina, você não queria um pouco de água, então devemos seguir na direção (aponta a direção da Lagoa que é oposta à voz)... CACHORRO: Que a menina quiser! (Para Sara) Eu posso ir na frente e ver de onde vem essa voz, assim você não corre perigo. SARA: Vamos ficar aqui, ouvir mais um pouco. CORUJA: É possivelmente possível, mas a menina mesmo disse que estava cansada e com sede. Pensei em chegar logo na lagoa. CACHORRO: Deixa ela, a musica descansa. Se você ficar um pouco quieto, Coruja, talvez quem esteja cantando se aproxime (todos quietos olham na direção de onde vem a voz. A voz se aproxima.) SAPO: (Entra terminando uma nota longa, com olhos fechados. Termina. Todos aplaudem. Abre os olhos assustado. Sua voz sai aguda na resposta) Ah...? Eh...? Desculpem-me, eu não sabia que (percebe o tom agudo e tenta deixar a voz artificialmente mais grave) Quer dizer... eu não sabia que tinha alguém ouvindo. SARA: A-RRA-SOU! (tocam as duas mãos no alto em cumprimento, o Sapo fica sem graça). Que voz linda! CORUJA: Sem dúvida, lindissimamente linda, embora esteja cantando na direção errada, nos atrasando, estamos indo para lá (aponta a lagoa). CACHORRO: La-la-la-goa, talvez você queira ir conosco. SAPO: (Com voz novamente aguda) Lagoa? Nem pensar... (percebe, troca a voz para artificialmente mais grave) Digo, eu não posso chegar perto da Lagoa, podem ir sozinhos. CORUJA: Mas você é um sapo! Sapo vive na lagoa. Por que não pode ir lá? SAPO: (Ainda com voz grave) Não é que eu não possa... é que lá tem... muito... sapo... CORUJA: Logicamente lógico, na lagoa tem sapo! SAPO: Muitos sapos... cantores... SARA: Como você! SAPO: Não, sapos cantores têm... (solta o ar, mostrando o esforço que fazia para falar com voz grave. Daqui em diante, fala com sua voz natural, que é aguda) a voz grossa! A minha voz é fina. Fico com vergonha. Por isso que eu

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só canto longe da lagoa, durante o dia. De noite é um conserto de sapos Baixo Profundos. CACHORRO: Sapos Baixo Profundos? CORUJA: Sapos que possuem um timbre de voz mais grave... digo, mais grossa (demonstra). Nosso amigo sapo parece que é contra tenor (olha ao redor, vê que o cachorro não entendeu), digo, tem um timbre de voz mais agudo, mais fino (demonstra.) SARA: Tão bonito! Tão cristalino! Parecia uma cachoeira suave! SAPO: Nem tanto! (Faz um vocalize) Não parece estranho? CACHORRO: É bonito, só não serve para assustar ninguém, pelo contrário, dá vontade de sentar e escutar, chegar mais perto. A gente até esquece o cansaço. SARA: Sapo, porque você não vem com a gente. Eu estou perdida, preciso chegar ao final deste caminho pra voltar pra casa e a Coruja e o Cachorro estão me ajudando. SAPO: Certo, uma coruja esperta é útil para ler as placas e um cachorro ajuda a proteger, embora um cachorro gago... (o cachorro tenta latir em protesto e não consegue). Bem, de toda forma são úteis. Mas em que EU poso ajudar? SARA: Cantando. A gente até esqueceu do cansaço e da sede ouvindo você cantar. Este caminho parece longo e a gente vai se cansar, por isso, um pouco de música sempre anima. SAPO: Anima? Bem, eu posso contar piadas também. Escuta esta: Sabe qual o nome do peixe que pulou do 10o andar de um prédio e caiu no chão? (todos se olham) AAAAAAAAAAAA----TUM!!! (o Sapo ri sozinho.) CORUJA: Acho melhormente melhor você só cantar. SAPO: Não gostou desta? eu sei muitas outras... CACHORRO: Isto me dá medo! Melhor você só cantar. (Recomeçam a andar. O Sapo fica pra trás, de olhos fechados, tentando contar uma piada.) SAPO: Mas essa é boa: Tinha um burro, um cachorro e um gato. Aí o burro falou...não, não foi o burro que falou, foi (abre os olhos e vê que ninguém está ouvindo. Resolve correr atrás dos outros) Ei, esperem, essa é boa...! SARA: Realmente é melhor você SÓ cantar!! (Música do SAPO. É MELHOR CANTAR. Ao final das 3 primeiras estrofes, cada um dos personagens FALA uma “resposta” ao sapo. Seguindo o ritmo da música. O última estrofe é repetida como refrão e só depois da segunda repetição vem a fala comentário.)

O corpo se cansa O pé fica inchado

A sede me alcança Estou esgotado

SARA: Ah, pobre coitado! Melhor é cantar Já perdi o sentido

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Nem sei para onde ir Me sinto perdido

Melhor desistir CORUJA: para prosseguir, Melhor é cantar A noite me assusta O vento arrepia

Só pouco me custa entrar numa fria

CACHORRO: Ei, calma, alivia! Melhor é cantar. Cantando o meu passo é leve

Cantando eu não sinto medo Canto e minh’ alma descreve

um riso largo em segredo. SARA: Ah, a música pode ser um grande brinquedo!... CACHORRO: (Aproximando-se da coruja) Coruja, você que é tão esperta, me ajuda numa coisa: você acha que eu sou um cachorro branco com manchas pretas, ou um cachorro preto de manchas brancas? SAPO: (Intrometendo-se) Alguém falou em preto e branco? Vocês sabem o que a zebra falou para a mosca?.... “você está na minha lista negra”. (sapo ri muito e os demais riem moderadamente.) SARA: Esta piada não foi tão ruim, mas acho que realmente é melhor você SÓ cantar. CACHORRO: Isso mesmo! E a gente já estava de saída rumo ao... onde mesmo? CORUJA: Oeste, rumo ao oeste. É sempre a mesma mesmíssima direção. SARA: Qual a distância que devemos percorrer no caminho? CORUJA: O caminho é que decide. Cada um vai percorrer a distância que precisa. SARA: Minha mãe deve estar preocupada, eu não avisei nada... eu preciso voltar logo para casa. Falta muito tempo pra chegar no final? CORUJA: O tempo do caminho é próprio do caminho. O tempo não pode ser igual, porque cada um precisa descobrir uma coisa diferente no caminho. SARA: Eu preciso descobrir o que responder para o Tiago... O preciso das palavras certas! CORUJA: O Cozinheiro pode ajudar. O caminho passa pela casa dele.

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CACHORRO: Coruja, podemos almoçar na casa do cozinheiro, mas a menina precisa de PALAVRAS! CORUJA: Mas o Santiago é um cozinheiro de palavras. Ele pode muito bem dar umas receitadas receitas de palavras para a menina SARA. SARA: Então vamos logo, eu passo na casa deste cozinheiro de palavras, pego umas receitas que eu preciso, daí vou logo embora porque minha mãe deve estar preocupada e o Tiago ficou de ir na minha casa e... CORUJA: Não será tão simples, menina SARA. É que logo depois da casa do cozinheiro, bem no final do caminho, tem uma única passagem, uma ponte. Esta ponte é protegida por um guardião: a GALHARUFA! CACHORRO: Amigos, uma coisa de cada vez. Primeiro chegamos na casa do cozinheiro de palavras. Depois vemos como enfrentar a GALHARUFA. Vamos? (começam a andar)

CENA 9 – Caminho: NO CANSAÇO, O BANDO SE TRANSFORMA NUM GRUPO

(Transição como se andando há muito)

SAPO: Coruja, me diz no “real realíssimo”: falta muito? CORUJA: Quase lá! (andam um pouco.)

SAPO: (Para Sara) E agora, Falta muito? SARA: Quase lá! (andam um pouco.) SAPO: (Para coruja) E agora, falta muito? CORUJA: Quase lá! (andam um pouco.) SAPO: (Para cachorro) E agora... CACHORRO: Falta muito? SAPO: Pra quê? CACHORRO: Pra você parar de perguntar se falta muito! SAPO: Depende. CACHORRO: Depende de quê. SAPO: Depende se falta muito. Porque se falta muito, então falta muito para eu parar de perguntar se falta muito. Agora, se não falta muito, eu não preciso perguntar se falta muito.... CORUJA: Mas se você sabe que falta muito, por que fica perguntando toda hora se falta muito? SAPO: Pra ver se você erra a resposta e passa a faltar pouco. CORUJA: Tá bem, Sapo, falta pouco! SAPO: Assim não vale, eu sei que você errou de propósito e que de verdade falta muito! (coruja e cachorro se desesperam) Então vou contar piadas daqui até lá (coruja e cachorro se desesperam ainda mais). SARA: Canta alguma coisa alegre. SAPO: Alegre? Com este cansaço?

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(O sapo começa, um tanto irônico, meio falando meio sugerindo a melodia. Depois cada um completa o verso)

SAPO: Caminho tão risonho CORUJA: Por essa estrada minha SARA: Guardando nosso sonho CACHORRO: (apontando SARA) Guardando a Rainha SARA: (Comentando sem cantar) Rainha, eu?...não, não, não, não, não... CACHORRO: (Comentando sem cantar) Às ordens, Vossa Alteza...(riem) (Todos cantam a partir de agora.)

Caminho tão risonho

Por essa estrada minha Guardando nosso sonho

Guardando a Rainha Coragem é só o que trago e tanto amor profundo, Que chego a Santiago, Que chego ao fim do mundo Cantando fica perto Contar com alguém por perto Cantar com alguém por perto Cantando fica perto SAPO: Mas, agora, de verdade, falta muito? TODOS: AHHHHHH! Canta de novo...

CENA 10 – Caminho: UM PRIMEIRO ATAQUE E O CAMINHO TERMINA

PARA O CACHORRO (Enquanto caminham, ainda no ritmo do hino, abraçados, urubus fazem um ataque rasante. Eles se protegem, sem entender bem o que aconteceu. Tentam reagrupar, então, novo ataque vindo de trás, agora eles se espalham mais, uns caem no chão.)

CACHORRO: (Gaguejando sempre!) Guardem formação de de-de-de-defesa! Deixem que eu fico na linha de fre-fre-frente.

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SAPO: Se você for dar ordens em situação de ataque, até você conseguir completar a frase estamos trucidados. (Cachorro rosna para o alto, ouve-se o barulho dos urubus voltando e sapo se esconde atrás do cachorro com medo). (Entra uma bela gatinha, muito nervosa, procurando seus filhotes.)

GATA: Filhotes! Filhotes! Alguém viu meus filhotes? CORUJA: Não, dona gata, não vimos quaisquer gatinhos. GATA: Ai meu Deus, eles estavam junto de mim, eu desci para buscar água para eles, daí os urubus vieram, fizeram um voo rasante só pra assustar. Eles devem ter ficado com medo e fugiram... e agora? CACHORRO: (Muito interessado, tenta falar um monte de coisas, mas engasga, nada sai.) SARA: O que o cachorro quer dizer é que você pode ficar conosco, se quiser. Os urubus também passaram por aqui e fizeram o mesmo com a gente. GATA: Muito obrigado, mas não posso. Preciso encontrar meus filhotes. Eles sozinhos, como vão se virar? Se ao menos eu tivesse mais alguém para me ajudar... CACHORRO: (Faz menção de se candidatar, tenta falar, engasga. Depois pensa que não deve abandonar o grupo. Indeciso.) SAPO: Parece que você tem um fã meio tímido. (Cachorro morre de vergonha e ameaça sapo.) GATA: Bem, não posso mais perder tempo. Preciso ir atrás deles. Bom caminho...(começa a sair devagar, procurando). CORUJA: Boníssimo bom caminho. SARA: (Para cachorro) Nunca vi você engasgar tanto! SAPO: Ele tá vermelho de vergonha! Vermelho de manchas roxas... SARA: (Para cachorro, que tenta responder as coisas, mas engasga, desiste e passa a responder só balançando a cabeça) Coitada da gatinha! Ela é simpática, não é? ... Você gostou muito dela?... vai, pode ir... (ele tenta dizer não)... Eu sei que você continua preocupado conosco, mas a gente vai ficar bem. Olha, ela está indo embora, você precisa se decidir... (ele tenta falar na direção da gata mas a voz engasga, a gata sai)... SAPO: Você vai deixar essa gatinha ir embora assim? Você é um cachorro ou um rato? CORUJA: Grita pra ela! Vai grita! CACHORRO: (se concentra, hesita, depois grita com uma voz límpida, perfeita e forte) Ei, gatinha! (ela volta a cabeça para dentro do palco, ele se surpreende com a voz que saiu límpida) Me espera, eu vou ajudar você a encontrar os filhotes. (Sai atrás dela, para e diz para o grupo) Ah, bom caminho para vocês...(sai). CORUJA: Bem, acho que este caminho terminou para o cachorro. SAPO: Ele deixou foi a gente na mão. SARA: Acho que não, se eu entendi bem, era isso que o Caminho tinha pra mostrar para ele. CORUJA: Corretissimamente correto, menina SARA. Ele precisava conseguir gritar numa situação de grande emoção. Ele já achou o que precisava.

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CENA 11 – Caminho: DUAS ANDORINHAS E OUTRO RUMO

(Entram duas andorinhas em tempo de ouvir a última frase da coruja. As andorinhas sempre complementam as frases uma da outra, como se fosse uma única frase partida, espécie de jogral.) BICUDO: Uau! Essa... ASA NEGRA: Foi incrível! (Apontando a coruja) esse cara enxerga longe! (Coruja fica com vergonha dos olhos grandes.) Não, nada a ver com o tamanho... BICUDO: Dos olhos, ele quis elogiar seu olhar sobre a situação. CORUJA: Prezadas Andorinhas, quem tem os olhos grandes e a boca pequena observa mais do que fala, daí não fala besteira, igual uns e outros de boca enorme (insinua para o sapo). SAPO: Ôh... binóculo de afogado! Você está falando de mim...? (rindo) você sabe que eu estou só brincando, sem você a gente já teria se perdido há muito tempo. Nunca vi ninguém para entender tão bem as palavras como você. ASA NEGRA: Sério? É disso que a gente precisa! Você poderia dar... BICUDO: Uma olhada no que a gente escreveu? Dar umas dicas? CORUJA: Vocês escrevem... BICUDO: Versos... ASA NEGRA: Pra cantar, somos uma dupla: Bicudo (aponta para Bicudo)... BICUDO: E Asa Negra (aponta para Asa Negra). SAPO: Claro que são uma dupla: “uma andorinha só não faz verão” assim as andorinhas precisam estar sempre em dupla...(ri sozinho.) BICUDO: Este cara é.... ASA NEGRA: Sempre assim? SARA: Não repara, é a forma dele dizer que gostou de vocês. Nós estamos indo para aquela direção, se quiserem ir conosco, podem vir. ASA NEGRA: Na verdade estamos indo para outro lado. Tem um grande... BICUDO: Encontro de aves cantoras e preparamos alguns números... ASA NEGRA: Mas eu ainda acho que a gente precisa melhorar. BICUDO: As letras, tem uns versos que estão engasgados. CORUJA: Talvez se vocês me mostrassem rapidamente, antes de eu seguir com meus amigos eu poderia dar alguma sugestão. SARA: Ou você poderia ir com eles. Parece que vai ser bem interessante este encontro de aves cantoras. CORUJA: Nós corujas não somos muito conhecidas pelos dotes musicais... mas eu bem que gosto de música. SARA: Você poderia ajudar com as palavras. CORUJA: Mas ficar ali, no meio de tantas aves bonitas, de vozes bonitas... olhos bonitos....! SAPO: Ei bonitão, duvido que alguma delas possa fazer versos melhor do que você. Vai, segue com eles, a gente vai ficar bem.

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CORUJA: Será? ... (A Coruja se mostra bastante interessada em seguir, porém se sente dividida em relação a deixar os amigos. Reflete um pouco e decide). Bem, parece que meu trajeto aponta para outra direção...! Mas o corretíssimo correto caminho de vocês é só continuar para... SAPO: O oeste, já saquei... CORUJA: A casa do Santiago, o cozinheiro de palavras, é logo mais na frente, vocês estão quase lá. SARA: Não se preocupe. O caminho vai levar a gente até onde o caminho quiser que a gente chegue. CORUJA: Então... eu acho que... SARA e SAPO: BOM CAMINHO!!! VAMOS FICAR COM SAUDADES!!! (Coruja sai com as andorinhas. Elas lhe entregam papeis com os versos. Ele olha, começa a sugerir coisas. Vão saindo.) SAPO: Ei coruja, vê se arruma um nome melhor pra essa dupla: Bicudo e Asa Negra é meio caído. Que tal “Bonde do Verão”? Eh... duas andorinhas já podem fazer o verão....(ri sozinho, ninguém acha graça, depois acham graça da própria falta de graça. Saem rindo.)

CENA 12 – Caminho: CHEGANDO NA CASA DO COZINHEIRO DE PALAVRAS

SARA: Gostei, Sapo, da maneira que você incentivou a coruja. SAPO: Aquilo que você falou de caminhar o tempo que precisa pra se achar o que precisa, eu pensei... talvez fosse isso que a coruja precisasse: ficar no meio das aves todas, partilhar sua diferença, incluindo seu talento com as palavras. SARA: Eu é que preciso das palavras agora. Precisamos achar a casa do Santiago, o cozinheiro de palavras. SAPO: Pelo que a coruja falou, deve ser logo ali. Faz o seguinte: você vai sozinha, consegue as receitas de palavras que precisa e algumas dicas para enfrentar a tal GALHARUFA. Não se preocupe, eu espero. Esse Santiago cozinha palavras, mas vai que ele resolve fazer caldo de sapo... tô fora! (SARA, consente, se prepara e entra na casa do cozinheiro).

CENA 13: Casa de Santiago - A PROCURA PELAS PALAVRAS PERFEITAS

(Quando Sara começa a entrar, uma luz começa a revelar a casa/laboratório do cozinheiro. Pouca luz para destacar o elemento central, o caldeirão onde ele mistura palavras. Há ainda uma estante com vários cadernos feitos a mão, colagens, semelhantes ao feito por Sara. Há ainda frascos, potes e papeis enrolados e presos com tiras coloridas.) (O cozinheiro está procurando alguma coisa na prateleira, sem nem perceber Sara.) COZINHEIRO: Ah, essa aqui deve servir para começar. (Pega dentro de um pote um papel e joga no caldeirão. Imediatamente, o caldeirão se acende, com uma luz dentro dele, de baixo para cima, vê-se os feixes de luz que saem do caldeirão. Dentro deste caldeirão tem, por sobre a fonte luminosa, uma lente e sobre ela, vazada a palavra “Borboleta”. Quando a luz se acende, ela

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projeta a palavra para o alto, como um retroprojetor. O cozinheiro usa uma luva sobre a qual vai um espelho. Assim, quando ele põe a mão sobre o caldeirão, no ponto certo, ele rebate a projeção da palavra e a lança onde ele quiser no palco, como se a palavra tivesse virado fumaça... O cozinheiro trabalha absorto e nem olha pra menina). SARA: Senhor Santiago, o que o senhor jogou aí dentro? COZINHEIRO: Uma palavra. Estou esperando ela chegar na temperatura correta... (olham, esperando.) SARA: Ela derrete? (olha pra dentro do caldeirão.) COZINHEIRO: Não, ela se ilumina! (O Caldeirão pisca mais, Sara se Afasta. Santiago usa sua luva com espelho e projeta no palco a palavra “borboleta”). Tinha tempo que eu não usava essa palavra numa receita: BOR-BO-LE-TA... Eu gosto do som: BOR-BO, BOR-bo-leta... ela vem borboleteando pela boca. SARA: Borboleta! Palavra bonita! Mas, não me serve. Eu tenho é que conseguir chegar ao final deste caminho, passar pelo guardião, a tal GALHARUFA. Estou com MEDO! COZINHEIRO: “MEDO”, você disse? (finalmente olha para Sara e pega a palavra “Medo” no ar.) Me dá essa palavra que você me trouxe, vou jogar nessa receita (pega a palavra no ar, joga no caldeirão, ele pisca e acende de novo). SARA: Que receita doida! “MEDO” não combina com “BORBOLETA”. COZINHEIRO: Calma, você precisa cozinhar as palavras, deixar que elas se iluminem. Quando a palavra aquece, ela ganha outros usos. É como... o milho. Ele é duro de comer, não é? Mas com a dose certa de calor, vira...PIPOCA. (O caldeirão pisca muito). Por falar nisso, parece que as palavrinhas esquentaram, vamos misturar um pouco mais... colocar um pouco de delírio, um molho que eu adoro (joga gotas de um frasco) e... (pega um pouco do que há dentro do caldeirão e prova na ponta da língua, dá mais uma mexida. Pega uma concha, como se enchesse do conteúdo do caldeirão. Derrama num pedaço de papel, enrola e dá pra SARA): prova pra ver se está bom! SARA: (Desenrolando o papel e lendo) “uma borboleta pousou no meu medo”... Gostei! já vi borboleta pousar no dedo, mas no medo é a primeira vez. Pra borboleta pousar, deve de ter algo legal neste medo! COZINHEIRO: Esse seu Medo que você me trouxe é de enfrentar a GALHARUFA? SARA: Não só! Tem também um menino, que... COZINHEIRO: Que... SARA: Que me fez um convite e eu não sei o que responder. Estou com medo de criar uma grande confusão se eu não disser as palavras perfeitas! COZINHEIRO: Perfeitas? SARA: O senhor pode cozinhar para mim as palavras perfeitas? COZINHEIRO: Taí, eu adoraria cozinhar a palavra perfeita, mas nunca consegui. Quem mexe com palavras passa a vida toda procurando as palavras perfeitas. SARA: E acha?

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COZINHEIRO: Claro que não, por isso viram escritores, poetas, ou doidos, o que é quase a mesma coisa. Por isso eu virei cozinheiro de palavras. Senhorita... SARA: Sara! COZINHEIRO: Sara, o que mais me encanta na palavra é essa capacidade de se transformar em outra coisa quando se põe os ingredientes certos, uns temperos de encantos... SARA: Como a borboleta que pousa no medo? COZINHEIRO: Exato! Se houvesse a palavra perfeita, não haveria nenhuma possibilidade de brincar com as palavras, a gente seria sempre obrigado a usar esta palavra perfeita. SARA: Então por que o senhor se esforça tanto pra melhorar suas receitas de palavras? COZINHEIRO: Pra descobrir novos sabores. Me divertir! O medo não virou outra coisa quando a borboleta pousou nele? SARA: É verdade, é divertido! Mas não sei como isso vai me ajudar com a tal GALHARUFA, nem com o Tiago. Acho que o senhor não tem como me ajudar. COZINHEIRO: Auto lá, Senhorita! Eu posso bem fazer umas receitas para você levar. Elas te ajudarão, até a hora que a Senhorita conseguir fazer suas próprias receitas de palavras. SARA: Ah, Seu Santiago, por favor, me dá umas receitas bem fortes! COZINHEIRO: Bem, vejamos... (começando seu trabalho, trilha sonora de trabalho, buscando coisas nos livros, nas prateleiras, vai jogando várias palavras no caldeirão que pisca. Ele meche, mistura). (Sara vai observando as coisas e buscando no armário as receitas já prontas, enroladas em papeis com fitas). (Música do COZINHEIRO: ATÉ A PALAVRA VOAR. Entre algumas das estrofes, Sara abre uma das receitas prontas que pega na prateleira e lê. Ela também saca seu caderno da mochila e escreve coisas durante, “cola” palavras que escorrem do caldeirão...) Quero a palavra quebrada

a qual jamais ousaria, não existe palavra errada

existe é pouca ousadia. SARA: (Lendo receitas já prontas) “O rato roeu a roda do tempo”. Quero a palavra até suja a mais fraca e desvalida!

talvez dali mesmo surja a beleza não percebida.

SARA: (lendo outra receita já pronta) “silêncio é o grito visto de dentro” SANTIAGO: Joga a palavra fresquinha

Lança um tempero de encanto

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E você nem adivinha Chega a gritar de espanto

SARA: (cantando enquanto trabalha em seu caderno) Como a palavra ilumina! Como com tudo combina!

Como brincando eu consigo Me proteger do perigo.

SANTIAGO: Sigo então cozinhando Receitas mil sem parar

Num caldeirão, esperando Até a palavra voar.

SARA: (Lança a Santiago o papel amassado com a “receita” que ela mesma preparou em seu caderno). Voou!!! SANTIAGO: Peguei no ar! (Lendo a “receita” de Sara) “Equilibrei uma palavra no nariz, mas ela caiu. Escorreu poesia!”...uhm... que delícia de receita, menina! Deveria cozinhar mais! (Santiago recolhe de dentro do caldeirão o conteúdo de 3 porções, cada uma de cor diferente e entrega a Sara) SARA: Agora que sei como pode ser divertido.... (Mostrando as receitas que recebeu) Essas aqui são as receitas que o senhor fez pra eu usar agora? COZINHEIRO: Exatamente! (explicando cada cor dos laços que amarram as receitas) o roxo é para momento de raiva, o amarelo é para momento de perigo e o vermelho é para momento de carinho. Eles te ajudarão a passar pela GALHARUFA e, depois, enfrentar outro grande medo: o quê dizer ao Tiago. SARA: Mas como eu vou saber a hora de usar cada uma? COZINHEIRO: Escuta o teu coração! (pausa e sussurra) O coração fala baixo e o mundo é muito barulhento. SARA: Vou tentar. COZINHEIRO: Tem mais umas coisas que eu preciso te dizer. A GALHARUFA é o guardião do caminho. Ela não quer te destruir, mas ela está ali para impedir que alguém consiga sair do caminho se ainda não encontrou o que precisava. Atenção: os seus medos podem te impedir de encontrar o que você precisa no caminho, daí, cada medo torna a GALHARUFA ainda mais forte. Quanto mais forte ela ficar, menos força você vai precisar fazer para vencê-lo. SAPO: (de fora, gritando) SARA! Tá tudo bem aí? Vamos logo embora, está escurecendo.... COZINHEIRO: Ele tem razão. A ponte, logo depois da saída da minha casa só existe na última noite de lua cheia, que é exatamente hoje. Nos outros dias ela some e não tem como passar pelo grande precipício.

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SAPO: Vamos logo SARA!!!! SARA: Preciso me apressar, não posso perder esta ponte hoje, porque minha mãe deve estar preocupada e... ainda tem o Tiago que ia lá em casa hoje, quer dizer ontem... ai nem sei mais... SANTIAGO: Você teria mais umas receitas das tuas? Gostaria de provar esses novos temperos! SARA: (Pega seu caderno, escolhe umas folhas, destaca e entrega a Santiago. Ele pega, busca alguns cadernos seus na prateleira, cola as receitas que ganhou e retoma seu trabalho amalucado.) Obrigado pela ajuda Seu Santiago, mas o que eu faço se... (Percebe que ele nem está mais prestando atenção a ela, apenas se divertindo com as receitas que ganhou, jogando parte delas no caldeirão. Fala para si e sai de fininho para não atrapalhar o trabalho do cozinheiro)... deixa pra lá, o caminho vai me dizer.

CENA 14 - Caminho: CHEGANDO NA PONTE FINAL (Sara e o Sapo andando.)

SAPO: Tá, entendi que a GALHARUFA não pode deixar passar ninguém que não tenha conseguido completar sua jornada. Agora, isso de “usar menos força” para vencer quando ela estiver mais forte, isso me parece maluquice daquele cozinheiro. Fica cozinhando palavra, acaba derretendo as ideias. SARA: Foi o que ele me disse. A ponte só existe essa noite e deve ser por... (aparece a ponte, feita com luz, um corredor marcado e colorido com tiras de LED) aqui...!!!! (Sara avança e o Sapo hesita)

SARA: Talvez você devesse vir para me ajudar. Se ao menos você fosse um príncipe, ao invés de um sapo... é isso: você pode muito bem ser um príncipe! Só que tem algum encanto que te transformou em sapo e assim que eu te der um beijo, você volta a ser príncipe. SAPO: Menina, você está lendo histórias demais. Eu SOU um sapo. SARA: Isso é o que vamos ver! (Sara beija o sapo, fade para pouca luz para o suspense) ... E agora,... você é... (volta a luz)... SAPO: (Olhando para si) Um sapo, beijado por uma menina que procura um príncipe. Foi boa tentativa, menina. Eu nunca serei um príncipe alto e forte, não consigo te ajudar a enfrentar a GALHARUFA. Eu só sei cantar. (Dueto: EU SÓ SEI CANTAR.)

SAPO

Talvez, se eu fosse mais forte

tivesse mais porte eu dava mais sorte...

Mas eu

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Só sei Cantar.

SARA

Talvez, Se eu fosse mais bela

atriz de novela virava uma estrela...

Mas eu

Só sei Cantar.

SARA E SAPO JUNTOS Vem, canta comigo!

Assim te proponho: Serei teu amigo

por todo esse sonho.

SAPO Talvez,

se a voz fosse grossa tivesse mais bossa

não fosse uma troça...

Só assim eu sei

Cantar.

SARA Talvez,

Se eu não fosse gaga voz que não engasga

livre dessa praga...

Mesmo assim irei

Cantar. SAPO E SARA ALTERNANDO, SARA COMEÇA

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Talvez, se eu não fosse verde,

se eu visse mais longe, se eu pulasse no alto,

se eu não gaguejasse, se eu fosse um príncipe,

Se eu fosse a rainha... Talvez,

talvez, talvez...

SARA E SAPO JUNTOS

Mas prefiro assim...

Pois eu Já sei

Cantar

Vem, canta comigo Assim te proponho

Serei teu amigo Por todo esse sonho

SAPO: Eu só sei cantar. SARA: E contar piadas. SAPO: E você gosta? SARA: Adoro (sapo feliz)... quando você SÓ canta... (riem.) SAPO: Já é alguma coisa... Vamos, é melhor nos apressarmos. (Sara recomeça o caminho na ponte e o sapo para outro lado.) SARA: Mas você... SAPO: Preciso terminar meu caminho. Vou voltar para a lagoa, agora que sei que posso cantar na frente de alguém. Vou cantar com os outros sapos, de noite. SARA: Eles vão adorar! SAPO: Bom Caminho, mocinha. Essa GALHARUFA não será páreo para você. Algo me diz que você já pode deixar o caminho (o sapo sai).

CENA 15 – Ponte sobre o penhasco: ENFRENTAR O GALHARUFA

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(Sara, sozinha no palco, mede cada passo dentro da ponte. Cada vez que coloca o pé no chão acha que algo vai acontecer. Dá uns 3 passos e nada acontece. Então relaxa um pouco e dá mais um passo, quase distraída. Ouve–se então um rugido, luzes piscam, muita fumaça se lança sobre o palco, como uma baforada de fogo.) GALHARUFA: (Atrás da fumaça, ainda sem ser visto) Relaxou cedo demais, menina! Não será tão fácil! Você está pronta para o combate? (mais rugidos, mais luzes, muito mais fumaça, intimidação.)

SARA: Se o caminho me deixou chegar até aqui, é porque o caminho deve saber que eu posso continuar... GALHARUFA: (Aparece) Começou bem, menina, mas isso não é o suficiente. O caminho só te traz até aqui, mas é você que precisa cruzar a ponte! E eu estou aqui exatamente para te impedir de chegar ao outro lado se você não merecer. (A galharufa aparece em um plano baixo. A cada medo da menina, a cada “ponto” que ela marca, ela passa para um plano mais alto e sua voz fica mais forte.)

SARA: Mas isso não é justo, com tanta fumaça eu não consigo ver! GALHARUFA: Você precisa ver para confiar no teu passo? (Risada intimidadora) Pobre menina, de olhos de vidro! (Sara mexe nos óculos, envergonhada, mais risada intimidadora). Você vai precisar de mais do que quatro olhos, vai precisar ser capaz de ver na escuridão. SARA: Mas eu não sou cega, nem poeta, nem coruja que pode ver na escuridão! Eu não consigo. GALHARUFA: (Mais risada intimidadora, acaba de marcar um “ponto” ganha o plano médio) Você não me parece preparada para cruzar esta ponte! Ainda não sabe enxergar com o coração! Melhor você voltar de onde veio, menina, caminhar um pouco mais, até ser capaz de ver melhor as coisas. SARA: (Busca as receitas ganhas do cozinheiro, olha para elas em dúvida) Roxa, para momento de raiva; amarela, para o perigo; vermelho, para o carinho... E agora? Ah!!!!...(escolhe o roxo) raiva... ele merece! (vai tentar falar, mas engasga no meio, quase não se entende, mas ela chega no final) “Sol nasce cinza pra quem tem olho vermelho”! GALHARUFA: (Repetindo com ironia, mas de forma clara) “Sol nasce cinza pra quem tem olho vermelho?” Isso era para demonstrar raiva? Gaguejando assim, dá vontade de rir!!! ((Risada intimidadora, marcou mais um “ponto”, fala mais alto, agora galharufa está no plano alto. Vai se aproximando ameaçadoramente. Sara caída rola para trás quase saindo da ponte, fica no limite, quase caindo do palco) Vamos! Fora desta ponte! Você não está pronta! (risada intimidadora.) SARA: (Quase caindo do palco, consulta as duas receitas que ainda tem) E agora? Amarelo para perigo... Vermelho para carinho... queria usar este de carinho quando eu chegar em casa, SE eu chegar em casa!... mas (lembrando), é isso: quanto mais força ele tiver, menos força eu preciso usar... então (escolhendo o vermelho)...vermelho de carinho e seja o que o caminho quiser! (respira e diz, sem gaguejar) “quando a pele ama o ferrão, ele só dói na abelha!”. GALHARUFA: (Risada ameaçadora vai desmontando, até virar uma risada de prazer. Ela vai diminuindo, volta a ganhar o plano médio/baixo) Muito bem! Eu sabia que você iria conseguir. Como eu torci por você, menina!

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SARA: Isso lá é jeito de torcer por mim? Querendo me destruir? GALHARUFA: Só os teus medos poderiam te destruir. Eu precisava testar o quanto você era dependente deles. Mas você não deixou seus medos escolherem por você, você escolheu usar o carinho... Eu achava que você conseguiria, mas era preciso você descobrir isso! Neste momento, o caminho não tem mais nada para te ensinar, você pode ir, menina! SARA: Posso? Já aprendi tudo que eu precisava saber? GALHARUFA: Claro que não, menina! O caminho acha que você entendeu o que precisava saber agora. Ainda há muito a caminhar, você ainda vai ouvir o chamado do caminho quando precisar aprender mais algumas coisas. Vai, vai rápido...! A ponte está quase se apagando! SARA: Acho que dá até uma vontade de ficar. GALHARUFA: Vai, menina, o caminho segue com você. Bom caminho! (a ponte se apaga, some o galharufa, transição rápida, como mágica, um único foco em Sara, sozinha, no deserto do palco).

CENA 16 – Espaço indefinido entre o caminho e o quarto: SARA VOLTA PARA O QUARTO

SARA: (Ainda no foco olha para a receita amarela que tem nas mãos. Joga-a fora) Se eu precisar de alguma receita, eu mesma posso fazer agora. Minha mãe deve estar me procurando. Como eu saio daqui? (Novamente tapa o nariz com uma das mãos, fecha os olhos e dá um leve salto, como havia feito para entrar no caminho...Volta a luz e o cenário da casa, como se ela reaparecesse no quarto). (Ela olha em volta sem entender bem o que aconteceu, jaga a mochila num canto. Está cansada. Deita na cama, na posição em que pretendia se esconder na cena 3.)

CENA 17 – Quarto: A VISITA DE TIAGO

MÃE: (De fora, só a voz) Sara!! Sara!! Já são 7:15h... tá tudo bem? SARA: (um pouco tonta) Tudo bem, mãe. (Tenta se arrumar um pouco) Só preciso de um tempo para... MÃE: Ótimo! Porque o Tiago já chegou, nós já conversamos, comemos bolo e ele quer falar com você (Sara desiste de se arrumar). Vamos entrando, Tiago, é esta porta aqui. TIAGO: (Entrando, muito tímido, fala baixo e com voz um pouco fina) Oi... SARA: Oi... TIAGO: Tua mãe disse que eu podia entrar, mas eu posso voltar outro dia, na boa, quando o teu resfriado melhorar. Então, tipo..., se você preferir, bem... (quase saindo.) SARA: Pode ficar, eu estou melhor. TIAGO: Então... SARA: Então... TIAGO: É... sobre a música, o espetáculo de final de ano. Eu dei uma trabalhada na melodia. Tipo, se rolasse de você colocar a letra e cantar... Eu meio que fico sem graça de cantar... minha voz...

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SARA: (Pegando seu caderno) Acho que tem umas receitas de palavras aqui que podem servir, mas só rola de eu cantar se você cantar junto. MÃE: (Entrando) Eu ouvi cantar junto? Interessante! Neste caso, tenho um presente para você minha filha. (Entrega um amuleto, um sapinho de brinquedo, SARA olha sem entender): Uma galharufa! SARA: GALHARUFA?! TIAGO: O que é isso? MÃE: Galharufa é um amuleto, pra dar sorte quando se entra no palco pela primeira vez. Pode ser qualquer coisa que possa servir de amuleto, mas tem que ser dado por um outro artista já experiente! Mesmo que não pareça, mocinha, sua mãe aqui já passou muito tempo nos palcos! (Sai.) TIAGO: Que maneiro! Você já conhecia GALHARUFA? SARA: Era meu maior medo! Acho que agora entendi porque o guardião do meu caminho era uma galharufa... TIAGO: Como assim? SARA: Esquece! É uma longa história, qualquer dia eu te conto... vamos no concentrar na música. Acho que dá pra cozinhar umas palavrinhas legais (Começa a cantar baixinho a primeira passagem lenta da música, ele acompanha no refrão. Fade para BO e falso final.)

CENA 18 – Fim deste caminho: O NÚMERO FINAL (Na virada da música, volta uma luz de show e entram todos os personagens, cada qual cantando o verso síntese de seu personagem. Coreografia final.)

O sonho parece distante daqui, nem consigo enxergar! Por isso, que ninguém se espante quando eu decidir caminhar. Olhos cheios de contemplar... Voz que engasga antes de sair... Palavras então cozinhar pra voz verdadeira fluir! E amar o risco da canção, cruzar cantando meu deserto. Alinhar o meu coração ao amigo que anda por perto. Vem, caminha ao lado comigo Vem, partilha é o que te proponho Vem, eu quero ser teu amigo Vem, pra construir nosso sonho FIM