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c4%l UM CAPITULO DE MEDICINA LEGAL I Dl 111 IB DISSERTAÇÃO INAUGURAL APRESENTADA E DEFENDIDA PERANTE A ESCOLA HEDICO-CInURGICl DO P00T0 EM JULHO DE 1880 POR ADELINO ADELIO LEÃO DA COSTA ►ooggoo* PORTO TYP. DE ALEXANDRE DA FONSECA VASCONCELLOS Rua do Moinho de Vento, 29 1880 £*/3 ÏH

UM CAPITUL DOE MEDICINALEGAL I Dl 111 IB€¦ · resume todos os outros, e guia o espirito atra vez de ignotas regiões era busca de verdades desconhecidas ; sem estes predicados,

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UM CAPITULO DE MEDICINA LEGAL

I Dl 111 IB DISSERTAÇÃO INAUGURAL

APRESENTADA E DEFENDIDA

PERANTE A

ESCOLA HEDICO-CInURGICl DO P00T0 EM JULHO DE 1880

POR

ADELINO ADELIO LEÃO DA COSTA

►ooggoo*

PORTO TYP. DE ALEXANDRE DA FONSECA VASCONCELLOS

Rua do Moinho de Vento, 29

1880 £*/3 Ï H

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ESCOLA HEDIC0-CIRUR6ICA 00 POSTO DIRECTOR

CONSELHEIRO MANOEL MARIA DA COSTA LEITE SECRETARIO

VICENTE URBINO DE FREITAS

CORPO CATHEDRATICO LENTES CATHEDRATICOS

l.a Cadeira —Anatomia descriptiva e «* geral João Pereira Dias Lebre.

2.a Cadeira—Pbysiologia Antonio d'Azevedo Maia. 3.a Cadeira—Historia natural dos me­

dicamentos. Materia"medica.,.. Dr. José Carlos Lopes. 4.a Cadeira — Pathologia externa e

therapeutica externa Antonio Joaquim do Moraes Caldas. 5.a Cadeira—Medicina operatória... Pedro Augusto Dias. 6.a Cadeira — Partos, moléstias das

mulheres de parto e dos reeem-nascidos Dr. Agostinho Antonio do Souto.

7.a Cadeira — Pathologia interna — Therapeutica interna Antonio d'Oliveira Monteiro.

8,a Cadeira—Clinica medica Manoel Rodrigues da Silva Pinto. 9.a Cadeira— Clinica cirúrgica Eduardo Pereira Pimenta.

10.a Cadeira—Anatomia pathologica.. Manoel de Jesus Antunes Lemos, 11,a Cadeira—Medicina legal, hygiene

privada e publica e toxicologia geral Dr. Josó F. Ayres de Gouvêa Osório.

12.a Cadeira — Pathologia geral, se-meiologia e historia medica Illidio Ayres Pereira do Valle.

Pharmacia Vaga. LENTES JUBILADOS

S Dr. José Pereira Reis. João Xavier d'Oliveira Barros. Josó d'Andrade Gramaxo.

ÍAntonio Bernardino d'Almeida. Luiz Pereira da Fonseca. Conselheiro Manoel M. da Costa Leite.

LENTES SUBSTITUTOS .„ ) Vicente Urbino de Freitas. Secção medica j M i { ? u e l A r t h u r d a C o s t a Santos. „ J Augusto Henrique d'Ameida Brandão. Secção cirúrgica j R i c a rdo d'ÀImeida Jorge.

LENTE DEMONSTRADOR Secção cirúrgica Cândido Augusto Corrêa de Pinho.

A Escola não responde pelas doutrinas expendidas na dissertação e enun­ciadas nas proposições.

(Regulamento da Escola, de 23 d'abril de 1840, art. 155.)

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M E M O R I A INOLVIDÁVEL

DE

Pinto psc '

lributo de amor, veneração e saudade.

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\\ïn\n jl Û\{Ï

«D'eterna gratidão, votiva offrenda «É tenue mas fiel, vulgar mas pura.»

BOCAGE.

€omo protm îro mats atrjjsolaio antor

FF.

O TEU

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A MEUS SOGROS

j . Jtana íag^ta JJírrára tie |ou3a jjraga

_f JJ r^

r. Míonio José de m m

«Eu, que commette» insano, e temerário « .(Por caminho tão árduo longo e vario «Vosso favor invoco, que manejo «Por alto mar com vento tão contrario, «Que ae não m,e ajudaes hei grande medo, «Que o meu fraco batel alague cedo.»

CAMÕES — Lus.

fêm stfltwl te mpetto e te intelml flratiírão

€>. JD. e C

O VOSSO GENRO

Svc/eéma (ûo-dJa.

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04 />. ♦

m $K am1 trtrar

'Possa este testemunho da minha recom­

pensa provar que o meu coração não é ingra­

to, eis o que deseja o

vosso filhoj neto e irmão

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A EX.ma SNE.

J}, lima áanátáa At Jjagconttllus ç áaroalho

COMO LIMITADA PROVA DA MINHA AMIZADE, MAS SINCERA

EXPRESSÃO DO CORAÇÃO DE AMIGO

®ff.

e€<6na ty^cte-f-to a *~Z,eãa aa tOad-Zce.

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AOS SEUS ANTIGOS E SINCEROS AMIGOS

E

\mt %\m% djrotíw

«Aux vieux amis, qui m'ont vu naître «Mon cœur ne saurait se fermer «Toujours vieil pour les reconnaître, «Toujours jeune pour les aimer.»

LAMARTINE.

EM SIGNAL DE MUITA AMIZADE

©. f>. e 98.

atec/ai:

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AO SEU ILUSTRE AMIGO

DR. ADRIANO DE PAIVA LEITE FARIA BRAND&O DOUTOR EM PHILOSOPHIA E BACHAREL FORMADO EM MATHEMATICA

PELA UNIVERSIDADE DE COIMBRA, PROFESSOR

DE PBYSICA NA ACADEMIA POLYTECHNICA DO PORTO.

«Dai vós favor ao novo atrevimento «Para que estes meus versos vossos sejam.»

CAMÕES — Lus.

. E

<$></c/e<uhw Svc/e>âo Jzeãa (/a &&<)^a-

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AO SEU DIGNÍSSIMO PRESIDEM

O E X . m o SNH.

r. gMpssto Ǥtas PROFESSOR DA S. a CADEIRA NA ESCOLA MEDICO-CIRURGICA

DO PORTO

K m tes temunho de eterno reconhecimento e de profundo respei to

Jzteãb- cea &ad/a.

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AO EX.™ SNE.

jr. José garfos f f l jp

PROFESSOR DA 3 . " CADEIRA NA ESCOLA MEDICO­CIRUROICA

DO PORTO

COMO TRIBUTO DE VIVA ESTIMA E DE INDELÉVEL CONSIDERAÇÃO

©. © . 0 «&

e­í4<ne •y^ae­'■tia Jz^eãa aa lûoddt.

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A O S :M:ETTS -A.3VEIOOS

E NOMEADAMENTE

oaqutm |ngu£to j e ^ a &$ %axmu lodoso

ntmaj^s (ntonto lugn§to de f mias

fjr. Jtatmgto jfe nawjiÍ0 |)oáml|o ãt[ J a ia

«A. g r a t i d ã o q u a n d o sen t ida é o t a l i s m a n c o m q u e s e b e m p ô d e aferir a g r a n d e z a d a s n o s s a s a l m a s . >

!FF.

C7 auc/al.

AOS MEUS CONDISCÍPULOS

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ANTES DE COMEÇAR

Se, era vez de cumprirmos um dever que nos im­põe a lei, aspirássemos á gloria e renome, nunca este humilde trabalho veria a luz da imprensa, porque é certamente o menos próprio para tirar da obscuridade um nome desconhecido.

Desprovido das qualidades que constituera o ver­dadeiro talento, que, em vez de circumscrever-se no horisonte factício d'uma erudição presumpçosa, e re­pousar á sombra da baliza dos conhecimentos amon­toados pelos séculos, alarga o circulo das ideias, crean-do novas cousas e descobrindo novas relações entre as já conhecidas; sem o habito da observação, espé­cie de pedra angular sobre que assenta o magestoso edifício do saber humano, espécie de sentido novo, que resume todos os outros, e guia o espirito atra vez de ignotas regiões era busca de verdades desconhecidas ; sem estes predicados, o que poderá apresentar um es­tudante no fim da sua carreira escolar, que seja novo e accrescente os haveres da sciencia? Absolutamente na­da. «De todos os auctores, diz Marton, que mais tem contribuído para o progresso da medicina, nenhum

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tem enriquecido esta sciencia com conhecimentos mais proveitosos do que os clínicos que tem deixado obser­vações seguras e fieis das suas longas praticas, e des-cripto naturalmente a historia das doenças.»

Felizmente, a lei que nos exigiu a defesa d'uma these como a prova ultima de todo o nosso tirocínio escolar, dispensou-nos todavia a originalidade do tra­balho, no que se houve com summa prudência.

Tendo a liberdade de escolhermos o assumpto para a nossa prova final, o que havíamos de fazer?

Lançar mão d'uma monographia pathologica, repe­tir a historia da chlorose, da pneumonia, ou de qualquer outra doença, que outros observaram e descreveram antes de nós e melhor do que o poderíamos fazer? Se­ria limitar-nos, attenta a nossa insufficient, ao papel de simples compilador, seria expor-nos a desfigurar o original pela incorrecção da copia.

Em medicina quem descreve sem ter observado muito, assemelha-se ao pintor, que, vendo-se na neces­sidade de retratar a quem nunca viu, simplesmente por uma copia que pôde obter, emprega todo o seu talento

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artístico em reproduzir, muitas vezes, as incorrecções do traslado, em tornar mais frisantes e exageradas as feições menos características, ou em exagerar aquelles toques e traços que menos avultam no original e que menos individualisam a physionomia ; em vez de um retrato faz apenas uma caricatura.

Não querendo nem podendo encerrar-nos nos estrei­tos limites de uma monographia d'esté género, decidi-mo-nos então a tratar d'um principio geral, onde o es­pirito podesse folgar mais á vontade, livre d'essa es­pécie de gravitação com que o prende o positivismo.

A utilidade que se acha em discutir «A responsabi­lidade medica» sem nos deixarmos influenciar por ne­nhuma opinião antecipada, tal foi o motivo que deter­minou a escolha que fizemos d'esté assumpto para ob­jecto da nossa these, n'uma epocha, é certo, em que não tínhamos calculado ainda toda a temeridade da em-preza e medido bem a insufíiciencia das nossas forças; e, se não desanimamos no decorrer d'esté trabalho, principiado já tarde, e quando outros deveres escola­res de mais subida importância chamavam a nossa at-

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tenção, foi isso mais devido á necessidade de satisfazer­mos á lei, que animados pelas palavras de La Bruyère. «On peut, diz elle, exiger beaucoup de celui qui de­vient auteur pour acquérir de la gloire ou par un mo­tif d'intérêt; mais ce lui qui n'écrit que pour satisfaire a un devoir dont il ne peut se dispenser, à une obli­gation qui lui est imposée, doit avoir sans doute de grands droits á l'indulgence de ses lecteurs.»

Que as palavras d'esté sábio escriptor apesar do nosso desanimo tenham echo no espirito do illustrado jury a cuja apreciação vamos submetter este ultimo trabalho do nosso curso, é o que mais ambicionamos e pode ambicionar, quem como nós não deseja vincular o seu nome á gloriosa historia d'esta Escola, tantas ve­zes ennobrecida por talentos que ainda estão na memo­ria de todos, por meio de um tão humilde producto.

Tratar, pois, da «Responsabilidade medica,» d'esta delicadíssima questão onde opiniões contrarias e op-postas se debatem e discutem, onde figuram por um lado, a sociedade invocando dos tribunaes uma respon­sabilidade absoluta para todos os actos do medico pra-

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ticados no exercício da profissão, e por outro, os medi­cos protestando contra essas arbitrariedades, que só serviriam para tornar impossível o exercício da medi­cina, e aniquilar uma classe, que tantos benefícios lhe tem prestado, repetimos, tratar d'esta delicadíssi­ma questão tal é o assumpto que escolhemos para a nossa these, e que estudaremos nas duas partes porque vamos consideral-o, consagrando a cada uma d'ellas um capitulo especial.

Deverá admittir-se o principio da responsabilidade medica ?

Deverá admittir-se a responsabilidade medica para casos particulares?

Occupar-nos isoladamente de cada uma d'estas questões, tal é o fim a que visa o nosso trabalho para o qual imploramos a indulgência dos nossos illustrados mestres.

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PRIMEIRA PARTE

O principio da responsabilidade medica

I

A historia da responsabilidade medica remonta aos primeiros tempos da medicina.

Coeva da dôr cega causada pela perda d'uma pes­soa extremosa, d'uma morte inopinada, d'um acciden­te imprevisto, d'uma cura incompleta, da hostilidade contra o medico emfim, a responsabilidade medica tem existido em todas as epochas e em todos os paizes, tanto mais severa quanto a arte estava menos adian­tada e era exercida por um pessoal de condição mais inferior. E, se hoje já se não dispõe da vida do medico pela morte d'um seu doente, quaesquer que fossem as circumstancias em que esta se réalisasse, como succe-dia entre os Egypcios, Visigodos, etc., é todavia para lamentar que ainda alguém, desconhecendo a certeza da

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medicina como sciencia applicada, e que a responsabi­lidade não pôde existir onde a certeza falta, e apoian-do-se tão somente nas ideias d'uma outra epocha, im­ponha ao medico uma responsabilidade profissional absoluta, fazendo assim descer a medicina a uma arena continua de processos criminaes ou civis.

Generoso para com todos ninguém o é para com o medico.

No paraizo foi o pomo vedado que attraiu a justiça de Deus; na sociedade actual é o diploma de medico que attrae a ingratidão e a injustiça dos homens.

Se hoje já se não segue o exemplo do próprio Es­culápio, quando recusava os soccorros da sua arte aos incuráveis pelo bárbaro motivo de que a prolongação das suas vidas em nada lhes interessava, nem tão pouco ao Estado; se hoje o medico no exercício da sua profissão já não distingue os inimigos da pátria, recu-sando-lhes os soccorros de que careciam, mas confunde n'uma mesma dedicação os feridos, qiie caem de todas as bandeiras ; se já não ha em face da medicina, como havia no mundo antigo, distincções de raça, de nacio­nalidade, e de sangue, e, se a ars curandi, emfim, já não significa simplesmente um motivo de interesse, recusando-se aos pobres, e sendo o apanágio dos ri­cos, mas o amor da sciencia, o amor da humanida­de, (j) é para sentir que apesar de todas estas genero-

(') Médecins et clients (Dr. Notta.)

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sas revoluções operadas ha tantos annos no espirito da classe medica, e sustentadas sempre com egual ar­dor, a sociedade em favor da qual revertem todos es­tes benefícios, que são outras tantas provas de abne­gação, continue injustamente a exigir dos medicos uma responsabilidade absoluta pelos resultados da sua pratica.

Sem compartilharmos da opinião d'aquelles que, levados mais pelo amor da profissão do que guiados talvez pela ideia do dever, admittem uma irresponsa­bilidade absoluta para todos os actos do medico no exercício da sua profissão, querendo assim isen-tal-a completamente do direito commum, nós não po­demos também ser solidários de outros, que, em sacri­fício da dignidade e liberdade do medico entendem que elle deva ser sempre responsável pelas consequên­cias d'um tratamento o mais racional e o melhor se­guido, como que se a arte não tivesse limites impos­tos pela natureza e podesse prolongar indefinidamente a vida humana.

A verdade e a justiça existem entre estes dous ex­tremos.

É certo, que o titulo de medico não confere a nin­guém o direito de usar e abusar do escalpello e dos ve­nenos, de comprometter impunemente a vida dos seus doentes: mas é também egualmente verdade que esse titulo deve pôr qualquer ao abrigo d'uma responsabili­dade absoluta, por isso mesmo que, tratando-se da pra-

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tica d'uma arte, na qual a falta de certeza, se não ab­soluta, pelo menos relativa é das mais evidentes, é de justiça, sem excluir uma responsabilidade restricta, que se mantenha a dignidade e liberdade da profissão, não a sacrificando com a repetição de exigências exces­sivas com as quaes ella nada lucraria, nem tão pouco a sociedade, como mais adiante veremos, e que a todos os momentos está implorando os seus serviços.

E, se no que fica dito, julgam os detractores da me­dicina ver um motivo para mais descrer d'esta sciencia, a illusão é das mais completas.

Ainda que, a opinião que exaramos seja verdadei­ra, como se nos afigura ser, o grau de certeza da me­dicina, theoricamente considerada, é incontestável e bem pouco inculcam certos espíritos, que ostentando de transcendentes, e concluindo da falta de certeza na pratica para a theoria, julgam elevar-se acima das ideias vulgares, proclamando-se incrédulos em medi­cina e chamando-lhe sciencia bypotbetica.

Se n'este ponto luctam com as trevas é porque não querem a luz.

A guerra, (poisque só assim lhe podemos chamar) è acintoza ; mas ainda bem que os adversários e detra­ctores da sciencia que professamos acabam sempre por representar de Voltaires a abraçar a cruz quando olham para si dos beiraes do tumulo ; e para exemplo do que avançamos, bastará lembrar a homenagem que lhe foi prestada á ultima hora por J. J. Rousseau, que tendo

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sido um eximio litterato e grande pensador, foi em re­lação á medicina um péssimo critico.

Depois de ter imitado Montaigne no seu rancor con­tra a medicina e de a ter vivamente atacado, elle aca­bou por lhe prestar a mais subida homenagem n'uma carta dirigida a Bernardin-de-Saint-Pierre.

«Si je faisais, dizia elle, une nouvelle edition de mes ouvrages, j'adoucirais ce que j'ai dit contre les médecins: il n'y a pas d'etat qui demand plus d'études que le leur, et par tous les pays ce sont les hommes les plus véritablement utiles et sa vans.» (*)

Eloquentes como são estas' palavras quando profes­sadas por um dos maiores detractores da medicina, el-las devem andar no espirito de todos os medicos que, inflammados d'uma fé profunda na sua sciencia, lhe tem consagrado a vida inteira com a gravidade e importân­cia que reclama um interesse tão poderoso, como é'0 da vida humana.

Na verdade quem pôde negar o grau de certeza da medicina, considerada theoricamente?

Quem lhe pôde negar os foros de sciencia positiva? Ninguém. Por mais subtilezas que se façam, a verda­de, forte como é, ha de sahir sempre victoriosa da lu-cta que sem tréguas lhe declararam os exércitos da mentira.

(') Etudes de la nature (J. J. Rousseau).

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II

A medicina theoricamente considerada é uma sciencia tão positiva e certa, como o são a physica, a chimica e as mais sciencias natiiraes, porque estas também tem pontos ainda muitos incompletos, porque as suas theorias também tem variado com as novas descobertas, e porque finalmente, é idêntico o methodo philosophico pelo qual chegam ao conhecimento das suas verdades.

A observação dos factos-para o que cáe immediata-mcnte debaixo dos sentidos e os raciocínios d'elles de­duzidos para o que escapa á observação, tal é a pedra angular sobre que assenta o magéstoso edifício medico.

Ora, sendo assim, se os factos são a sua bússola e o progresso o seu norte, se o methodo philosophico pelo qual a medicina chega ao conhecimento das suas verdades é o mesmo que das outras sciencias, quem será tão insensato que negue á medicina a certeza e exactidão que concede ás demais sciencias naturaes?

Só um propósito obstinado, ou uma notável ce­gueira, poderão usurpar á medicina o nome e foros de sciencia positiva, conferindo-os aliás a outras que não possuem mais garantias.

N'uma e n'outras, a certeza nos é mostrada e garan­tida pelos sentidos e pela razão. Se estes nos illudem, quem por mais verdadeiro ha-de desenganarmos? Se

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duvidamos do que estes nos dizem, quem nos offerece-rá mais solidas garantias?

Acceitemos a sentença de Bacon : «Tudo quanto se pôde saber da realidade se limita ao conhecimento dos phenotneuos, pelos quaes elia se nos manifesta, e ás in-ducções que d'ahi se deduzem.»

Procurar descobrir na divergência das opiniões me­dicas sobre um mesmo facto patliologico uma prova de incerteza absoluta da medicina, é ser verdadeiramente baldo d'esta sciencia e simples echo de vozes alheias.

Além de que muitas vezes estas divergências de opiniões são mais apparentes que reaes, o que não é para todos de uma simples apreciação, por isso mes­mo que muitos sentem-se d'uma natural inclinação a exagerar-lhes a sua importância, será bom lembrar que uma mesma doença pôde ser combatida com egual successo por meios muito variados e différentes. Assim para não citarmos senão um exemplo, a ophthalmia purulenta dos recem-nascidos, que reclama, como cada um sabe, um tratamento muito enérgico, é felizmente modificada pela cauterisação das conjunctivas com uma solução concentrada de azotado de prata, pela cauteri­sação com a mesma substancia no estado solido, ou ainda por meios de outra natureza que dão tão excel­lentes resultados na cura da mesma doença como os primeiros. Referimo-nos ás irrigações d'agua fria ou ás lavagens continuadas com o decocto de folhas de no­gueira.

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É certo, que era certas doenças cujas causas são mysteriosas.ou os symptomas mal determinados, os medicos nem sempre estão no mais perfeito accordo; mas, ainda assim julgamos que isso nunca possa logi­camente constituir uma prova de incerteza da sciencia que professamos, por isso mesmo que, faltando a cla­reza e precisão necessárias nos dados do problema a sua solução deve ser accidentada de difíiculdades e ei­vada de duvidas.

Demais, invocar a divergência de opiniões sobre fa­ctos excepcionaes, sobre as questões litigiosas e as in­cognitas que limitam o domínio scientifico para con­cluir uma incerteza absoluta da sciencia, em cujo do­mínio esses factos são observados, parece-nos que é aventar uma opinião pouco justa e que não tem a glo­ria de ver realisadas as suas aspirações. Na verdade que se julgaria d'aquelle que proclamasse a incerteza da astronomia, que lhe chamasse uma sciencia vã e hy-pothetica, simplesmente pela razão de que os astróno­mos não estão de accordo sobre as causas da scintiUa-ção e da côr das estrellas, sobre as propriedades do annel de Saturno ou sobre a constituição physica do sol?

Julgar-se-hia com razão que ignorava a astronomia, e que não podendo sabel-a, esforçava-se por suppri-mil-a.

Assim entendemos que o desaccordo dos medicos sobre certas questões não pôde nem deve servir de ar­gumento contra a certeza geral da medicina ; pelo con-

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trario, a multidão de noções e de princípios universal­mente adquiridos e reconhecidos, prova até á saciedade que a sciencia medica está reunida em corpo de doutri­na, e que satisfaz o espirito humano como as outras sciencias, offerecendo-lhe uma parte da universal ver­dade.

Pois, quem se lembra de arguir a medicina, na epocha actual, d'uma collecção de preceitos vagos e documentos erróneos que não podem constituir as pro­vas de certeza da sciencia medica e que longe de satis­fazerem o espirito humano, ávido de verdade, pelo con­trario o enganam?

A historia dos progressos da medicina que respon­da por nós.

Que o digam a maior benignidade e a menor fre­quência das diversas doenças cutâneas, que, aterrando a imaginação dos nossos antepassados, eram uma das maiores causas de despovoação e que Voltaire allega-va como um argumento contra a Providencia.

Que o diga a escrofulose, curada outr'ora tão so­mente pelo miraculoso contacto das mãos reaes e que hoje o mais humilde pratico pôde prevenir, recommen-dando os preceitos d'uma boa hygiene, ou curar pela administração dos agentes pharmacologicos convenien­tes.

Que o diga, emfim, e assim respondemos aquelles que, blasfemando da medicina cujos mysterios e belle-zas nunca poderam sondar, dizem que a mortalidade

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tem augmentado com o numero dos medicos, que o diga, repetimos, a estatística que nos mostra que a longevidade humana é consideravelmente augmentada com os progressos da medicina. Assim, emquanto que em França ha meio século a duração media da vida não era superior a vinte e oito annos, agora é de trinta e quatro ; ao mesmo tempo ella mostra-nos que a mor­talidade é tanto menos rápida nas classes da sociedade, quanto ellas estão em melhores condições de requer e aproveitar os serviços da medicina.

Por outra parte se consultarmos as tabeliãs das observações feitas com uma exactidão inexcedivel nas enfermarias de clinica dos hospitaes estrangeiros, é fá­cil verificarmos que o algarismo dos óbitos é fornecido quasi que exclusivamente pelos doentes que mais tem­po se tem demorado em reclamar os soccorros da me­dicina.

Emfim, se nas mais terríveis epidemias, é certo que um certo numero de doentes são atacados d'um modo irremediável e como que fulminados por ata­ques mortaes, perante os quaes a arte é impotente, não é possível todavia desconhecer a influencia preserva­dora d'um tratamento racional, instituído durante o período de invasão por mais curta que seja a sua dura­ção.

Sendo assim, quem poderá admittir que estes pre­ceitos lentamente formulados pela experiência, que es­tes magníficos monumentos devidos ao amor da huma-

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nidade, ao amor da gloria e que são a obra dos nossos predecessores e dos nossos mestres, não sejam mais do que um acervo de palavras sem sentido, uma base ins­tável e phantastica, fundada sobre a miserável creduli­dade do espirito humano?

É para lamentar que depois de tantas descobertas, depois de tantos benefícios renovados dia a dia, possa ainda haver quem mais por um propósito obstinado de fazer mal do que pelo desejo de ser justo, usurpe á me­dicina os foros de sciencia positiva, theoricamente con­siderada; e o que lamentamos mais ainda é que sejam os homens das classes mais elevadas e esclarecidas da sociedade, aquelles que mais aproveitam os benefícios da medicina, os primeiros a negar a certeza d'esta sciencia. E porque será isto? Eis aqui o que no mo­mento actual nos resta examinar ; e, posto que este assumpto não entretenha com o objecto principal da nossa these relações mui directas e immediatas, a nossa indignação por esta incredulidade mofadora de que algumas pessoas fazem alardo, quando se trata de descobertas medicas ou a affirmar a certeza da nossa sciencia, é de tal forma superior á vontade de nos cin­girmos exclusivamente ao campo do nosso trabalho, que não podemos proseguir mais longe sem ponderar ao menos algumas das causas d'esta descrença. Muito variadas são ellas. Umas existem na propria classe, e merecem ser estigmatizadas ; outras são devidas á 'im­possibilidade em que está o medico de fazer compre-

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hendef os seus motivos de certeza e a extensão dos seus serviços, e merecem apenas ser sentidas.

O notável empenho com que alguns medicos procu­ram dispersar e arruinar as provas da certeza medica, persuadindo os seus amigos de que exercem uma pro­fissão inutil e chimerica, muito tem contribuído para diminuir a confiança do publico nos soccorros da me­dicina e o respeito pela classe medica.

Sordidamente devorados pela ambição ou pela in­veja, humilhados e ulcerados pelo insuccesso, alguns esforçam-se a todo o custo de contestar a certeza da medicina que cobrem com os sëus desdenhos e descon­sideram por insinuações pérfidas. Negando d'uma ma­neira absoluta a realidade da medicina, o medico além de que tolera e reforça a incredulidade humana, illude ainda d'uma maneira indigna a sociedade. «Quel spe­ctacle, dizia Cabanis, que de voir um médecin trai­tant sa profession de charlatanerie, les connaissances qu'elle exige de frivole étalage, ses devoirs de vaines simagrées! S'imaginerait-il inspirer une grande con­fiance dans la droiture de son esprit, que n'ont pas re­buté les etudes d'um art selon lui tout á fait trom­peur? Croirait-il honrer son caractère en montrant ainsi, avec impudence, que s'il pratique son art, c'est sans y croire, en se joisant avec audace de la créduli­té des hommes?» (*)

(') Du degré de certitude en médecine (Cabanis).

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Estas tristes facécias além de serem um ataque á verdade, prejudicam muitas vezes o pobre doente, por­que lhe aggravam o seu estado, atacando as suas espe­ranças mais caras.

Uma outra causa não menos poderosa da increduli­dade humana, éa impossibilidade do medico fazer com-prehender os seus motivos de certeza, e os limites e a extensão dos seus serviços.

Se algum sceptico se adiantasse a dizer a um ar­chitecte que a geometria, a dynamica e a estática eram sciencias bypotheticas, o architecto para lhe res­ponder não precisava de fazer discursos : bastaria edi­ficar uma casa. Mas os medicos não tem nenhum meio material e palpável de calar a bocca aos seus detra­ctores, e se elles retardam por vezes a marcha d'um inimigo fatalmente victorioso, é forçoso confessar que todos os recursos da sua arte, depois de terem retar­dado a apparição da morte, não podem impedir que ella chegue ao seu fim.

III

Examinando agora o grau de certeza da medicina, considerada pelo seu lado practico «como arte de curar» nós não duvidamos affirmar que ella não pôde partici­par do mesmo grau de certeza das outras sciencias na-turaes, porque enlão os processos physicos e mathema-

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ticos que dão ás outras sciencias uma certeza inabalá­vel, não são de todo o ponto applicaveis á observação dos factos medicos.

Quando um chimico vê uma reacção, um physico observa um movimento, esta reacção, este movimento são factos precisos, dos quaes nada pôde abalar a sua realidade.

O observador tendo debaixo dos olhos o phenome­na com todas as circumstancias em que elle se desen­volve, pode reproduzil-o á vontade com todos os cara­cteres que lhe são próprios para o que bastará provo­car apenas as suas condições de manifestação. E suc­cédera o mesmo para os factos medicos ? Decerto, não.

Quando estudamos os symptomas e a marcha d'uma doença e verificamos as suas modificações pela applicação dos agentes therapeuticos, qualquer que seja a perfeição dos meios de observação, nós nunca poderemos concluir que estamos senhores de todo o phenomeno, de todas as circumstancias em que elle se manifesta, para podermos n'um dado momento provocal-as, e seguir-se fatalmente a apparição do mesmo facto.

Complicados como são todos os problemas de pa-thologia e therapeutica d'uma incognita superior que d'elles é impossível isolar ou eliminar, d'uma força indefinida cuja intensidade e desvios são essencial­mente variáveis e cuja acção não pôde ser medida nem governada por nós, não é para estranhar que falte á

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medicina como sciencia applicada o grau de certeza que se encontra nas demais sciencias, e seja em cer­tos casos verdadeiramente impotente. . Parecia â simples vista, que, se o methodo porque se estuda a medicina, é o mesmo porque se estudam as demais sciencias, se tanto uma como outras se ele­vam ao conhecimento das suas verdades pelo mesmo principio philosophico, ella devia compartilhar do mes­mo grau de certeza d'estas. E assim fora se estudásse­mos doenças; mas nós estudamos doentes, em cada um dos quaes as doenças, segundo a idade, tempera­mento, sexo, ididsyncrasias, constituição, hábitos, cli­mas, estações, etc., soffrem différentes modificações que roubam á medicina, considerada «como arte de curar,» o poder e a certeza physica das sciencias- na-turaes, substituindo-a por uma mais ou menos plausí­vel.

Cada doente é, por assim dizer, uma doença diversa, porque não ha dous doentes tão similhantes que em cada um d'elles não diversifique mais ou menos, a na­tureza do individuo e as condições em que está collo-cado.

De todos os problemas que a historia natural nos apresenta, não ha nenhum mais complexo, do que o de uma doença; nenhum, cujos elementos sejam mais diversos e mais moveis, variando não somente em cada caso, mas até no mesmo caso, de um dia para o outro, de momento a momento, e no entanto todos devem ser

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avaliados e ponderados, por isso mesmo que todos tem uma influencia notável na determinação das indicações. Que força de attenção, que rigorosa inducção, que sa­gacidade de analyse, que penetração não são precisas para apreciar todos os dados e chegar á solução com­pleta do problema, de que elles constituem os elemen­tos?

E com estes invejáveis dotes poderá o medico jul-gar-se sempre em posse de todas as incognitas d'um dado problema pathologico, e affirmar que a certeza da sua solução é evidente, indiscutível e inabalável? farece-nos que não.

Cada organismo é um terreno tão movei, tão variá­vel nos seus phenomenos individuaes, que é impossí­vel ter uma certeza mathematica em todo o diagnostico estabelecido e no resultado dos meios empregados para debellar uma dada doença. Isso é vedado ao medico, porque nem está senhor de todas as condições que po­dem influir n'esse resultado, nem de milhares de cir-cumstancias que não pode prever nem evitar.

Mas, concedendo ainda contra tudo, contra a pro­pria verdade, e admittindo para a medicina, como sciencia applicada, o mesmo grau de certeza que se encontra nas demais sciencias naturaes, ainda assim nós julgamos ter na impotência e na propria fraqueza d'esta sciencia para certos casos, um argumento a mais para justificar a illação que mais adiante se encontra.

Admittindo que todas as doenças que acommettem

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o género humano eram susceptíveis de ser debelladas no seu começo, ainda assim seriamos obrigados a con­ceder que, depois de chegarem a certos períodos, eá* capam a todos os recursos da arte. Se um órgão tão essencial á vida, como o pulmão, estiver arruinado e destruído por vastas ulcerações, ninguém poderá repa­rar tão grande mal. Se é um órgão externo, e não im-mediatamente necessário á vida, um membro gangre­nado, por exemplo, ainda se remedeia a doença, ampu-tando-o : mas ainda ninguém se lembrou de deman­dar o medico pela reproducção do membro perdido.

Algumas vezes o mesmo exercício da vida produz* doenças inevitáveis em indivíduos de organisação pri­mitivamente viciosa. Como parar o desenvolvimento dos aneurismas do coração, quando originariamente o seu volume fôr muito grande?

Este exemplo da impotência da arte de curar e ao qual poderíamos ainda juntar muitos, prova que o po­der da medicina, emquanto ao tratamento de certas doenças e ao seu modo de terminação, não é infallivel.

N'este caso como em quasi todas as circumstancias da vida social, em que uma infinidade de elementos entra em jogo, só se podem obter probabilidades, mais ou menos numerosas, segundo a maior ou menor sagacidade e precisão com que se estabelecem as indi­cações, o que por vezes é bemdifflcil, senão impossível.

Exigir outra cousa da medicina fora desconhecer a organisação humana.

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Além de que a practica da medicina é sempre muito difficil e cheia de incognitas, algumas das quaes ficam sempre por resolver-se, ella não tem o dom da infalli-bilidade e por isso não ha medico por mais profundos que sejam os seus conhecimentos, por mais longa que seja a sua practica e por maior que seja a sua abnega­ção, que não erre ás vezes e bem convencido, de que a sua determinação vae conjurar completamente ou re­mediar ao menos o soffrimento do seu cliente.

Ë, porque entre o symptoma observado e o trata­mento a instituir, ha a variabilidade do organismo hu-*mano que rouba aos problemas de pathologia e tbera-peutica a clareza necessária para a facilidade e certeza da-sua resolução. É, porque a medicina na sua parte pratica, não tem, como as outras sciencias naturaes, a preciosa vantagem d'uma certeza inconcussa, a facul­dade de partir d'um facto incontestável para extrahir depois por meio do calculo, uma longa serie de deduc-ções rigorosas ; ella começa, por assim dizer, no ponto em que os phenomenos não podem ser preci­samente medidos, nem os resultados calculados com exactidão.

Quem pôde por conseguinte exigir dos medicos uma responsabilidade absoluta pelos resultados da sua practica, pelos erros de diagnostico, prognostico e tra­tamento, pelos accidentes-.que sobrevenham no curso d'uma doença e que podem comprometter a vida do doente, matal-o ou expol-o eternamente a uma enfer-

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midade, se a sciencia que elles professam, além de ser impotente em muitos casos,.não tem normas positivas e immutaveis a que devam cingir-se no tratamento de cada doença ?

Se a medicina, practicamente considerada, fosse uma soiencia positiva e invariável, se tivesse attingido uma tal perfeição que a tornasse inaccessivel ao erro e á duvida, o que ainda apenas ella entrevê em remoto horisonte atravez de espessas nuvens, nem a nós nos custaria aceitar uma tal responsabilidade, porque o erro em medicina só figuraria então por negligencia, imprudência ou má fé, casos em que, sobretudo no ul­timo a punição deve ser das mais severas, e nem á so­ciedade conviria que a profissão medica gozasse d'um certo grau de inviolabilidade, que, no estado actual dos nossos conhecimentos, deve gozar, e que a isente em parte das obrigações do direito commum.

A responsabilidade medica deve tão somente ser admittida como uma protecção para a sociedade contra o medico, que, na practica da sua arte, abusa do seu ti­tulo legal, fazendo d'elle uma arma sempre victoriosa contra as perseguições da justiça ; mas não deve ser mais extensa, porque, além de ser injusta, paralysaria a actividade do medico, e as difficuldades e erros de diagnostico e tratamento, nem por isso seriam meno- > res.

É mesmo possível que fossem de mais elevada gravidade e em maior numero; que pelo desejo ex-

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cessivo de conhecer e apurar a verdade, os medicos viessem mais frequentemente a cair no erro.

Pela nossa parte julgamos, á mingua de certeza na medicina como sciencia applicada, que uma tal res­ponsabilidade, além de inadmissível, seria até prejudi­cial á sociedade, que tão injustamente a exige, e que só serviria para aniquilar uma profissão que tantos benefícios lhe tem prestado.

Arbitro, por assim dizer, da vida do homem que lhe confia o cuidado de restabelecer-lhe a saúde, quando se acha compromettida, o medico deve pré­parasse e prepara-se de facto para este melindroso e terrivel encargo com estudos sérios e aturados, com uma elevação de caracter, independência e dedicação de que todos os dias tem necessidade no exercício da sua profissão, porque, quando se trata da vida a igno­rância, a negligencia ou má fé são um crime que ninguém o defende, nem nada o justifica.

Mas se é importante que elle seja versado no co­nhecimento de tudo o que conserva a saúde e cura a doença, se é indispensável que seja homem de cara­cter elevado e honesto em toda a accepção da pala­vra, não é menos indispensável e importante para a sociedade que o medico fique até certo ponto isento .do direito commum, porque a não ser assim, muitos, aterrados com a ideia de que se erram são castigados, abster-se-hão de toda a therapeutica activa cujos re­sultados não sejam evidentemente certos, e cahirão na

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mais completa inacção que perpetuará a humanidade no leito da dôr.

Entre o desejo e a necessidade de intervir e a in­

certeza do resultado, haveria sempre­a ideia da res­

ponsabilidade, que, como dizia Thiers, o immortal presidente da Republica Franceza, «La responsabilité ébranle les hommes beaucoup plus que le danger du canon» e que o faria temer a cada passo a vingança das leis e fugir sempre ao simples aspecto do pe­

rigo. Se admittir uma irresponsabilidade absoluta para

todos os actos do medico, é desconhecer as primeiras condições de toda a sociedade, e destruir esta intima alliança que une os interesses geraes de todos os membros que a compõe, culpal­o por todos os erros commettidos no exercício consciencioso da profissão, é negar­lhe privilégios inhérentes a outras classes, e que menos razão têm para os gozarem. É excluil­os do seu seio, pagando o bem que recebe com a ingra­

tidão que revolta. ■ Na verdade, só por um propósito obstinado de ser

injusta e de querer desconhecer o bem que recebe, é que pôde explicar­se estas excessivas exigências com que a sociedade inflige os medicos, olvidando assima parte gloriosa, que elles tem tomado no melhora­

mento da saúde publica e no seu restabelecimento, quando ella se acha compromettida. Como hygienista procura abrigal­a, traçando regras n'uma escala com­

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pativel com as suas forças, de todas as causas mor-bigenas que a possam perturbar. Como clinico pro­cura debellar a doença, onde tantas vezes tem dado provas não inferiores d'uma elevada dedicação.

Se é (deixem-nos figurar este caso que não é tal­vez de todos o mais grave da profissão medica) uma epidemia que se desenvolve, o medico precipita-se desde logo sobre o campo da batalha com uma tal abnegação, capaz de fazer hesitar a virtude nos cora­ções mais generosos.

Sobre este novo terreno, onde a doença vem com-batel-o com uma força e intensidade novas, elle lucta com as armas na mão, e para triumphar não receia affrontar a morte. No meio do terror e do desespero das povoações, o medico zomba do contagio, perma­necendo horas inteiras junto dos doentes, no seu lou­vável empenho de surprehender um momento favorá­vel para a administração d'um remédio, que será tal­vez a sua única salvação, e de levantar os ânimos abatidos, de fazer reviver as esperanças perdidas, mostrando que a doença não é terrível sonão para aquelles que a temem.

Se admiramos e respeitamos a coragem do guer­reiro que morre no meio do enlevo dos combates e da gloria, porque é pela pátria que elle morre, a nossa admiração e respeito é maior ainda por aque]le que, arrastando com uma epidemia da qual melhor que ninguém conhece a malignidade, se expõe de

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sangue frio á morte, tão somente pelo sentimento do dever que lhe germina no peito.

Tendo por conseguinte por objecto a conservação da vida humana, o mais precioso mas o mais frágil de todos os bens, e a reparação da saúde quando ella se acha compromettida, o medico subordina a este fim superior todos os interesses de qualquer ordem que sejam, inclusivamente o da propria vida.

Mas não é esta tão somente a nobre missão do medico na sociedade. Inflammado d'uma fé ardente na parte que lhe cabe no desenvolvimento de princípios generosos, elle é ao mesmo tempo dotado d'um espi­rito altamente social e civilisador, como muito bem disse Legrand du Saule. «S'il est possible, dizia este auctor, de perfectionner l'espèce humaine et de la faire entrer dans les voies de la véritable civilisa­tion, c'est dans la médecine qu'il faut chercher les moyens.» (l)

Corn effeilo este espirito debaixo do nome de Hu­manidade tende a prevalecer cada vez mais, até so­bre os próprios sentimentos, aliás muito nobres, mas muitas vezes exclusivos de patriotismo e de naciona­lidade. E se elle nem sempre brilhou com todo o seu esplendor, foi porque a moralidade medica da anti­guidade foi por muito tempo problemática e muito

(') Dis testaments contestés pour cause de folie (Legrand du Saule).

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defeituosa, como se aufere da maneira porque Platão, um dos philosophos mais religiosos e mais moralisa-dores do seu tempo, comprehendia os deveres e as funcções do medico na sociedade.

O medico hoje tem outra norma de conducta, ou­tra ideia do dever moral, que não nos cangaremos de applaudir e que sustentaremos na sua sympathica im­portância. Para elle, um doente aleijado ou não, cu-ravel ou incurável, francez ou inglez, é sempre um homem com direito á vida e a quem não recusa os soccorros da sua arte.

E o que recebe elle em troca de tudo isto ? Exi-gem-lhe injustamente uma responsabilidade verdadei­ramente despótica, negam-lhe uma mais justa remu­neração dos seus serviços e como que se isto não bastasse, sobrecarregam-n'o e ameaçam-n'o com um acervo de deveres que se não exige a outrem 1

IV

O dever! Palavra magica e incomprehensivel que todos os dias repetem aos ouvidos do medico. Filho do erro, que alimentado pelo abuso de muitos annos, tem crescido, medrado e enraizado á custa dos seus interesses, das suas commodidades, dos seus direitos e do seu sangue, é o espectro ameaçador que a toda a hora atormenta a classe medica, a entrega e im-

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mola aos seus caprichos e devaneios. Vampiro d'uma nova espécie, surge-lhe inexorável em toda a parte ; espreita-a a todos os momentos e suga-a á vontade • por mais precavida e cautelosa que seja.

É em nome do dever que á porta do medico ba­tem a todas as horas, que o fazem levantar da sua meza, que o interrompem nos seus estudos, que o arrancam ao seu somno. É em nome do dever que o não deixam socegar nem distrahir; quer o sol seja in­tensíssimo ou o frio actue desapiedadamente, é o de­ver que o faz sahir de casa, que o obriga, o arrasta e ameaça. Emquanto todos descansam, o dever man-da-o velar; emquanto todos folgam, o dever manda-o soffrer. O medico é o peior de todos os escravos por­que tem muitos senhores, e todos dizem que tem o dever de os aturar !

Dever! mas que dever ? Dever de que e porque? Em que se funda, com que.auctoridade se invoca?

O medico estuda á sua custa; paga os seus diplo­mas (e cousa notável) com verbas superiores ás que a lei exige á maior parte das profissões. Tendo con­sumido o seu património (ás vezes pequeno) e se­questrado o seu melhor tempo da vida em favor da sociedade, chega por fim ao termo da sua carreira.

A lei manda-o desde logo inscrever-se no livro dos cidadãos. Obriga-o a pagar o imposto da profis­são, como outra qualquer industria, e concede-lhe to­dos os encargos communs aos membros da sociedade.

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Gomo é então que no fim de tudo se falia em deveres e imposições que se não exigem a outrem ? Que jcon-siderações os justificam?

Dizem que o medico tem um pecúlio de sciencia e que o deve pôr á disposição de todos que o exigi­rem. Pois bem. Obrigae então o rico a assentar á sua meza todos os pobres que lhe batam á porta e disserem que tem fome. Não dispõe elle também dos seus haveres? Obrigae o mercador a vestir os rotos que vagueiam por essas ruas. Não são suas as mer­cadorias que ostentam nos armazéns ?

Desenganemo-nos. A caridade deve ser espontâ­nea. Nem Deus quer a esmola que foi pedida de ba­camarte em punho. Tire-se-lhe o perfume sancto da boa intenção que ella não aproveitará a quem a pede nem a quem a dá.

Nenhum medico, é certo, deve fugir ás funcções do seu sacerdócio, que é a sua melhor coroa de glo­ria. Encargo sancto que abraçou, deve respeital-o e bemdizel-o em todos os momentos. Mas é necessário que se entenda que não é dever, e sim devoção ; que não é obrigação-que lhe deva editar qualquer lei, mas simplesmente espontaneidade que só nasce do cora­ção. • O único tribunal que o pôde absolver ou condem-

nar é a — consciência. Apostolo d'uma religião de paz, amor e caridade,

elle também tem todas as necessidades do homem, e

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não devem por isso ir além da lei do Crucificado que era Deus e que nos manda «amar o proximo como a nós mesmo.»

Mas, admittindo mesmo esses deveres que tanto apregoam, quaes são os direitos que lhes correspon­dem? N'estes é que se não falia nem aconselha. Nem ao menos são lógicos. No livro razão d'alguns d'estes philantropos ha só o — deve — e nem sequer se re­gista o—ha de haver.

Alguns, porém, ostentando de espíritos mais gene­rosos reduzem todos os direitos do medico ao da sim­ples restituição, quasi sempre tardia, e dizem com sórdida avareza : paga-se-lhe.

Paga-se o que? Pois compensam por ventura a ruina possível d'uma saúde e a perda d'uma vida que se arriscou para satisfazer ás vezes um pequeno capricho ou acatar um preconceito?

«Le droit de réquisition, dizia um notável cirur­gião do hospital de Lisieux, emporte avec nui le de­voir de la retribution. (*) «É preciso dizel-o, e em voz alta, porque tal é o principio geral que deve existir

' no espirito de todos e sobre que assenta a nossa indi­gnação pela maneira abjecta, porque são entendidos os direitos do medico. E ainda assim de todos os clientes que os medicos nas suas longas practicas po­dem encontrar são estes os mais generosos, porque

(l) Médecins et clients (Notta.) 4

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outros ha que vão mais longe, dizendo que aos fa­

cultativos não se devem honorários, porque só fa­

zem a sua obrigação, como que se a instrucção reque­

rida pelo seu estado fosse recebida gratuitamente. Estes individues são os primeiros a lembrar os de­

veres dos outros, os primeiros também a esquecer os seus.

Mas pergunta­se: nos próprios casos de retri­

buição será ella sempre feita com dignidade para o medico e em harmonia com os seus serviços ?

Não pretendendo entrar com detalhe na debatida questão dos honorários, não devemos todavia passar em silencio sobre um facto de tamanha importância para os interesses da classe medica, que como toda a classe trabalhadora tem direito á remuneração, sem primeiro protestarmos de viva voz contra a vil explo­

ração que se está fazendo aos direitos do medico, coartados já ao da simples retribuição. Seremos bre­

ve, porque nem tal questão entretém com o assum­

pto propriamente dito da nossa these relações mui directas e immediatas, nem porque poderemos tratal­a á devida altura como outras pennas mais authorisadas do que a nossa o tem feito ; e, se no que vae dizer­se não podemos ser bons para todos, resta­nos todavia a satisfação de sermos agradáveis para a maior parte.

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Como sciencia e como arte, a medicina tem im-mensamente progredido desde Hippocrates até aos nossos dias ; mas, se por um lado nos devemos rego-sijar com um tal resultado, por outro devemos deplo­rar o estado de aviltamento em que cairam a di­gnidade e os interesses profissionaes. Os encargos de hoje, notavelmente superiores aos de hontem, parecia que deviam trazer um maior numero de re­compensas, e não as trazem.

Nem os estudos são melhor retribuídos, nem o trabalho mais bem pago. É sensivelmente superior a fazenda e o mercado offerece-lhe menor preço. Ha ra­zão para mais credito no vendedor, e o comprador parece cada vez mais receioso e desconfiado.

Quando nos devíamos elevar, abatemo-nos. Quan­to mais fortes nos sentimos, mais rastejamos.

E porque será ? D'onde vem a culpa ? Que cau­sas originaram essa depreciação do presente, essa des­confiança do dia de hoje ?

As causas são muito variadas, mas nós vamos esforçar-nos por apontal-as.

Um dos maiores males que fere hoje a classe medica, é sem duvida, coevo com a fundação das so­ciedades de soccorros mútuos. Grande e humanitá­ria instituição, que desorganisada assim mesmo como vae, melhora a sorte de todos pelo facto da solidarie­dade, mas é para a dignidade da classe medica como para os seus interesses profissionaes um perigo amea-

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çador e sempre crescente. Não é intenção nossa ata­car as sociedades de soccorros mútuos. Longe de nós tal ideia, porque ninguém mais do que nós faz vo-to"s para que a classe laboriosa do nosso paiz se eleve cada vez mais pelo trabalho, intelligencia e mo­ralidade.

Nós sabemos que é um dever d'alma soccorrer os pobres, e certamente a classe medica n'este ponto nunca se esquivou á realisação de tão sublime dever ; mas é soberanamente ridículo, que á sombra d'estas santas instituições, nos explorem aquelles que, po­dendo todos os dias remunerar os elevados serviços que lhes prestam os medicos, não só o não fazem, mas até lhe negam o simples agradecimento. Triste verdade de todos os dias que nem a mais longa pra-ctica pôde fazer esquecer 1

N'uma memoria de concurso apresentada á Socie­dade Medica de Bouches-du-Rhone por M. Delfau, este auctor depois de ter longamente agitado a ques­tão dos honorários, conclue por declarar que o traba­lho do medico deve ser pago em harmonia coma realidade da sua importância. Protestando contra os abusos das sociedades de soccorros mútuos, elle ac-crescenta :

«Prêtes à donner gratuitement nos soins á cha­cun des membres de la société qui, individuellement et isolément, se trouvent dans le bessoin, nous ne pouvons leur accorder cette faveur, quand ils feront

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partie d'un corps assez riche et qui permettre une re­compense honrable pour les soins dès médecins.»

Tal é a maneira elevada porque se exprime o no­tável medico na sua memoria intitulada «.Les devoirs el droits des médecins,» acerca dos honorários do me­dico.

Primitivamente, as sociedades de soccorros mútuos foram simplesmente creadas para os pobres, para aquelles com os quaes a fortuna tinha sido menos pródiga; hoje porém, o systema invadiu as camadas mais elevadas da sociedade, as mais afortunadas, e a classe medica vê-se em presença d'um tal estado de cousas, que a não ser remediado, ameaça notavel­mente os seus interesses. Senão vejamos.

O que é uma sociedade de soccorros mútuos? É uma collecção de indivíduos que por uma somma re­lativamente pequena tem os soccorros da medicina, que como muito bem a definiu Frederic Berard, é uma arte que «guérit quelquefois, soulage souvent, console toujours.» (*)

Cada associado goza por conseguinte em razão d'esta solidariedade o que não podia gozar senão á custa d'uma somma relativamente grande. Paga por um vintém o que só podia comprar por dez tostões.

É o caso da meza redonda dos hotéis, onde o

(') Médecine (article sur la) «Dictionnaire encyclopédi­que des Sciences médicales.»

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individuo se serve por cinco tostões de um jantar que em sua casa lhe custaria quinze tostões ou dous mil réis.

Pois por ventura os encargos do medico d'uma associação serão menores que os da clinica particu­lar ? Haverá duas medicinas différentes, uma para os ricos que custa mais, e outra para os pobres que cus­ta menos? Decerto, não. Sustentar o contrario seria negar a dignidade dos medicos em geral, seria negar a sublime lei da egualdade editada pela primeira vez pelo Christianismo!

«Si les fonctions du médecin, sont belles, dizia Vicq d'Azir, c'est parcequ'elles sont toujours les mê­mes, soit dans les palais e parmis les grandeurs, ou les motifs, soit apparents soit réels de l'intérêt ne laissent aucune prise à ceux de l'humanité, soit dans les demeures étroites et malsaines du pau­vre.» (*)

Sendo assim, porque pagam ellas menos ao me­dico?

Isto é inadmissível porque em quanto que os as­sociados folgam com os sacrifícios do medico, este nem ao menos de maior consideração goza. Negam-lhe uma remuneração condigna do seu trabalho e ridiculari-sam-n'o com os maiores sarcasmos que se traduzem em outras tantas ingratidões.

(') Médecins et clients (Notta). Citação.

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0 reconhecimento moral que era n'estes casos de esperar é ainda uma das bellezas muito problemáti­cas da profissão. Todos os medicos que vêem doentes, sabem o que é o reconhecimento dos que salvaram ou alliviaram. Os que dependeram hontem d'elles são os primeiros que hoje os desacreditam, porque não quize-ram satisfazer-lhes um capricho ou acatar uma incon­veniência.

Ha mesmo exemplos de ingratidão que revoltam. O mais deplorável de tudo isto está em que o de­

feito não é do homem mas da sociedade. A socieda­de, em geral, não é mais reconhecida do que os in­divíduos em particular.

Ser medico é o peccado original para que não ha redempção. Jesus Christo fez-se medico, começou a ser apedrejado. As suas curas, três vezes santas, excitaram o ódio da populaça, e cada cego que ad­quiria a vista era motivo para novas apostrophes e duplicados anathemas.

Emquanto pregava só, achegavam-se e recebiam-n'o. Lembrou-se também de ser medico do corpo, e operar milagres, cruciflcaram-n'o!

A sociedade continua assim. Não appareceu outro Christo e não se fizeram mais curas sobrenaturaes ; mas a prole dos judeus não se extinguiu. Pullulam por ahi os diffamadores, os epigrammaticos e os in­gratos. Ódio velho não cansa. Mudaram de nome mas a raça é a mesma I

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Nós não pretendemos dizer que os medicos devam aproveitar a existência das sociedades de soccorros mútuos para pedir honorários exagerados ou multipli­car o numero das suas visitas ; julgamos apenas que seria de justiça pedir aos sócios o que se lhes pedi­ria se não fizessem parte da sociedade. A associação não deve ser mais a nosso ver que uma garantia para o doente de ser tratado e para o medico de receber a remuneração dos seu« serviços.

Protestando todavia contra esta tendência das so­ciedades de soccorros mútuos a reduzir os honorários dos medicos, não podemos também louvar o procedi­mento de alguns ainda que felizmente poucos, que aceitando o encargo o descuram por forma a concor­rer para o descrédito da classe a que pertencem. Não podemos approvar esta maneira de proceder, tão indi­gna como contraria á dignidade profissional, mas que infelizmente ninguém a poderá contestar.

Submetteu-se ás exigências, deve satisfazel-as. Tocando n'este assumpto que está longe de ser

tratado com o desenvolvimento que merecia e com uma attenção egual á sua importância, visamos ape­nas a apresentar uma das muitas causas que collo-cam o medico nas suas relações com a sociedade actual e debaixo do ponto de vista dos seus interes­ses materiaes, em condições de inferioridade com quasi todas as profissões. E dizemos uma das causas porque ellas são muitas, devendo ainda registar-se

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a da má camaradagem, que, filha de uma sórdida paixão, tem todos os defeitos de sua mãe.

Não é sem pezar que registamos estes factos in­felizmente verdadeiros, e que só servem para o des­crédito e prejuizo da profissão, mas mais particular­mente ainda para o de quem os practíca.

A medicina é um sacerdócio, dizem. De facto o é, debaixo do ponto de vista do sacrifício e da dedi­cação ; mas com a differença de que aquelle que se revestiu da tunica sacerdotal, recebe d'ella uma parte da sua consideração, que o titulo de medico não con­fere a quem o conquistou.

Entre os medicos,.é o individuo que se impõe, que inspira consideração, que exige respeito. Honra muitas vezes a profissão e não é honrado por ella. Mas se esta situação existe, de quem é a culpa ? É dos próprios medicos. Não conhecemos carreira onde haja menos solidariedade, onde sejam menos zelados os interesses e a dignidade profissionaes que na me­dicina. Cada medico que nasce é uma volta de menos na espira da ambição dos que já existiam ! Para po­der concorrer ás vagaturas das associações de soccor-ros mútuos é mais um novo candidato ! E queixar-nos de que taes sociedades exploram indignamente os interesses materiaes da classe I Fazem o que devem. Fundadas sobre o principio da economia é a econo­mia que ellas desejam.

Um em nome d'uma abnegação que não tem of-

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ferece-se a fazer o serviço com dez por cento de aba­timento ; outro, ostentando ser mais philantropo que o primeiro, aceita aquelles pesados encargos por me­nor preço ainda ; um terceiro faz tudo de graça e tal é o estado actual dos interesses e dignidade profis-sionaes.

Não são porém as sociedades de soccorros mú­tuos e a falta de boa camaradagem, as únicas causas da decadência da profissão medica entre nós. Se mais nos adiantarmos na dissecção, mais profundas ulcera­ções encontramos, que era de todo o ponto mister canterisar, e entre as quaes avulta ainda o charlata­nismo.

Portugal é de todos os paizes do mundo o menos propenso ao charlatanismo. Proclame-se bem alto para honra d'esta nesga de terra que nos viu nascer. Mas as relações cada vez mais intimas com a França, onde o mal é velho e incurável, apesar dos valentes esforços para o extinguir da grande associação dos medicos de Pariz, tem-nos dado tentações de imitar as praxes mais immodestas.

Lemos que por lá se tem obtido fortuna com qual­quer remédio secreto; ouvimos dizer que o cartaz farfalhudo d'um soit-disant doutor tem feito acredi­tar em curas miraculosas, que se traduzem por inte­resses mais miraculosos ainda. Os maus exemplos são contagiosos. A imitação e a ambição tentam-nos; a fortuna dos outros sorri-nos. Vamos imital-os, e

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não vemos ao menos que não temos geito para isso. Em geral não fazemos fortuna e expômo-nos ao ri­dículo.

Tem-se dito em todo o tempo que o charlatanis­mo é o cancro da profissão medica.

De facto, nunca este Protheu assentou melhor o campo dos seus arraiaes do que no campo da medi­cina. Debaixo do ponto de vista medico, pôde elle di-vidir-se em duas classes bem distinctas. Na primeira collocaremos todos os charlatães que se fazem medi­cos, isto é, os curandeiros; na segunda todos os me­dicos que se transformam em charlatães. A astúcia gera uns, a necessidade desenvolve os outros e todos concorrem para os prejuízos da profissão.

Ha um enxame mais terrível, uma outra espécie de charlatanismo com o qual poderíamos talvez for­mar uma terceira classe e muito extensa, que o me­dico tem de aceitar, que o clinico é obrigado a sof-frer, e sobre o qual vamos primeiro demorar-nos, por­que alguma cousa concorre elle para os prejuízos da profissão. Se não lhe rouba os interesses, rouba-lhe pelo menos o tempo e gasta-lhe a dignidade e pa­ciência.

Parecia que a sciencia tão complicada, tão subor­dinada ás múltiplas variedades das espécies de doen­ça, tão subjeita ao bom discernimento, á boa inter­pretação, ao bom estudo, á boa practica emfim, deve­ria sempre afugentar os profanos, como faz entibiar

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os que mais a perscrutara. Não é assim. Todos são medicos. Homens e mulheres, ajuizados e idiotas, sá­bios e ignorantes todos sabem o seu bocadinho de medicina, louvores a Deus t A therapeutica então, a parte que os próprios medicos conhecem menos bem, é exactamente o forte dos profanos.

Pergunta-se a um homem qualquer se sabe 1er, e elle responde-nos talvez que não ; mas em compensa­ção d'esté pequeno defeito, analysa no rosto do seu facultativo os conhecimentos medicos que tem, e prescreve o melhor remédio para a doença d'um seu amigo.

Cousa notável ! Em todas as casas que frequenta, em qualquer lugar que se encontra, depara sempre o clinico com collegas, formados talvez como que por encanto, ou por um sopro divino ! Estes não são po­rém os peiores. De suas costellas saiu mais engran­decido fructo : as collegas l

Ha nada mais audaz, menos condescendente e ás vezes mais divertido?

Immensas como Deus, apparecem em toda a parte. Faliam por si, pelo doente e pelo medico. Não enunciam só os seus arrazoados. Fazem mais; discutem.

Mandam chamar muitas vezes o medico simples­mente para lhe dizerem o que tem feito e o que ten­cionam fazer. Chegam ás vezes a formar indicados. Não é uma visita que o medico lhes faz; é uma con-

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sulta que os espera. Não pedem conselho; requerem approvação. Não precisam d'nma receita ; almejam só por um voto. Não exigem um medico ; desejam um cúmplice.

Com estas collegas é preciso fallar muito. Quem não discursar bastante sobre a moléstia, é porque pouco entende d'ella. O bom senso de nossos avós di­zia que acerta pouco quem falia muito ; o bom senso dos clínicos d'hoje lembra-lhes que devem reflectir mais no doente, do que arrazoar sobre a moléstia. Ora adeus ! Bem se importam as collegas do que disseram os avós, e do que pensam os clínicos !

Temos assim esta terceira forma de charlatanismo que, se directamente não prejudica os interesses do medico, gasta-lhe pelo menos o tempo, dignidade e paciência e que é sobretudo muito frequente nas ci­dades.

Mas se nos retirarmos dos grandes centros de po­pulação, e fizermos uma visita até ás aldeias então o desanimo é mais completo. Já não é só a dignidade e a paciência do medico que se esgotam; são os seus interesses que consideravelmente se compromettem. É a voz authorisada do curandeiro que o acredita ou aniquila.

Se o convida para compadre, ainda menos mal. Se lhe faz guerra, é vencido. No intervallo do esca-nhoamento d'uma barba á tosquia d'uma cavalga­dura (esta gente é encyclopedica) fará ver aos seus

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numerosos amigos que o novo medico não pôde ser bom porque é muito novo ou muito velho ; porque tem muito boas theorias ou muito má practica ; por­que é altivo ou muito servil ; porque é muito prom-pto ou muito remisso; emflm, porque empobrece os doentes á força de visitas (e este é o ponto culmi­nante da accusação) ou os deixa morrer á farta de descuido.

E quando o facultativo julga vencer este seu ini­migo pela sciencia, pensa em supplantar a calumnia á força de dedicação, o engano então é dos mais com­pletos. Combate com armas desiguaes e nunca cantará victoria.

O curandeiro em geral, como commerciante que é, exalta a sua fazenda, apregoa o seu bom mercado; o pobre medico, esconde o que vale na modéstia que tem e desdenha-se de descer até á humilhação pelo amor próprio de que se presa.

O verdadeiro medico, aquelle que consagrou a sua vida inteira ao estudo da natureza humana, que fez d'ella a sua felicidade, a sua paixão dominante, sente mais prazer nas descobertas que faz, do que na gloria de as tornar conhecidas. Perscrutando sobre­tudo o juizo e o suffragio dos homens instruídos que, entregues a trabalhos da mesma ordem tem dado pro­vas do seu talento, vê que ha menos quem julgue do que quem admire. Curioso pelas descobertas dos ou­tros examina-as com interesse e justiça, e concede-

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lhes exactamente o grau de certeza e valor que el-las devem ter. Sempre prompto em recolher a ver­dade e repellir o erro, elle conserva o seu espirito n'esta duvida esclarecida e philosophica que consti­tue o principio de toda a verdadeira sciencia.

O curandeiro pelo contrario, longe de se dirigir a juizes esclarecidos, recusa-os e taxa-os d'uma severi­dade exagerada. Esquece-se do que é, e chama-lhes ignorantes; julga-se bom e chama-lhes maus I A loja do Figaro e os adros das igrejas, são o theatro ephe-mero onde ostenta os seus créditos. Elogia-se a si e aconselha continuamente com toda a confiança as suas pretendidas descobertas !

Taes são os terríveis competidores que os clínicos muitas vezes encontram na sua practica das aldeias e que por vezes mesmo disputam a das cidades.

Em presença d'um tal estado de cousas, urge, como um dever sagrado, que a classe medica se le­vante em pezo contra a vil multidão dos curandeiros, que, explorando a credulidade publica por todas as formas, roubam aos medicos honestos uma mais justa recompensa dos seus serviços. Porque, pela mais sin­gular aberração, o publico das nossas aldeias e por vezes mesmo o das cidades, aceita como palavra evangelisada, tudo o que sahe da bocca d'estes par­vos orgulhosos, emquanto que não recebe senão com grande reserva os conselhos do verdadeiro medico.

Já é tempo para que só elle tenha o direito ex-

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clusivo de exercer a medicina. Nós sabemos que é aventar uma opinião até certo ponto bastante teme­rária ; mas, a sua realisação não seria talvez impos­sível, se toda a corporação medica do paiz cooperasse para o mesmo fim, se levantasse como um só ho­mem a matar a serpente que envenena a dignidade da profissão e lhe morde os seus interesses.

Um tal emprehendimento seria o grande desidera­tum da generalidade dos medicos.

E porque não se ha-de elle realisar? Porque a tarefa é difficil, e a união da classe medica na epocha actual é ainda muito problemática.

Se para um só, ou para um pequeno grupo de medicos a conciliação de tantos interesses différentes e contrários era uma empreza, sem duvida das mais difficeis, das- mais aventurosas, para toda a corpora­ção medica do paiz, grande parte d'essas difficuldades desappareciam e os direitos da classe parallelamente á diminuição dos obstáculos iriam cada vez ganhando mais terreno até que a independência fosse com­pleta.

E se para conseguir tal fim, ainda todos os esfor­ços da geração medica actual não bastassem, isso que importava ?

Será razão para se descurar o assumpto? Decerto, não.

O successo seria tanto maior quanto maiores fos­sem as difficuldades a vencer. E não esqueçamos que

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se a vida do homem é curta, a da humanidade é lon­ga, eterna.

Solidários como somos uns dos outros, trabalhan­do para nós, trabalhamos para os nossos descenden­tes que são os continuadores directos das nossas ideias e dos nossos trabalhos. Elles acabarão o que nós tivermos começado.

A necessidade d'esté emprehendimento faz-se sen­tir cada vez mais imperiosamente, e nós esperamos, que n'uma epocha que talvez não esteja muito longe da nossa, a classe medica se levantará n'uma harmo­nia geral a reclamar contra a vil multidão dos curan­deiros, libertando a nobre classe do jugo d'estes in­trusos, d'estes parasitas da medicina, como muito bem lhes chamou Delfau na sua memoria Intitulada «Les devoirs et droits des médecins.D

É esta a lei dó progresso e ninguém n'este mundo é capaz de lhe deter a marcha. «Le progrés c'est l'hu­manité qui marche.» (*)

• A rehabilitação deve por conseguinte vir, e com certeza virá, porque no dominio dos interesses mate-riaes as ideias marcham e não recuam.

Por ultimo resta-nos encarar o charlatanismo me­dico debaixo d'um outro ponto de vista différente e que já fizemos sentir em seu lugar competente.

(!) Etudes de la nature (J. J. Rousseau). 5

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É extensa a historia d'esta moléstia chamada — charlatanismo.

Não haveria aqui espaço para descrevel-a, nem paciência para estudal-a. Porém, a etiologia e as va­riedades da doença não poderíamos deixar de esbo-çal-a sem falsear o nosso fim.

Tratamos ultimamente dos charlatães que se fa­ziam medicos, roda de profanos que sem dó nem consciência mettiam a mão na urna sagrada; agora occupar-nos-hemos do charlatanismo profissional, dos medicos que se transformam em charlatães, os quaes procuraremos ainda assim beneficiar com todas as omissões possíveis « compatíveis com a realisação do fim a que visamos. Seremos breve porque o interesse é talvez de toda a classe.

O charlatanismo profissional, como o seu nome indica, é aquelle que é exercido pelos medicos.

D'uma ordem mais superior e authorisado pela lei, elle é por conseguinte o mais pérfido, o mais pe­rigoso de todos os inimigos da classe. Está em toda a parte. Vive nas cidades; encontra-se nas aldeias. Acolá mais forte, aqui mais fraco elle lucta sempre e nunca é vencido.

Sem nos sentirmos animados d'uma maior genero­sidade pelo charlatanismo da aldeia, sem pensarmos mesmo em favorecel-o com atténuantes que seduzem, não podemos todavia deixar de confessar que elle é, menos perigoso para os interesses e dignidade do

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corpo medico do que aquelle que se exerce nas capi­tães.

No primeiro caso, exercendo-se nos estreitos limi­tes d'uma aldeia, aquelle que a elle recorre quer por ambição, quer por vaidade, quer por gosto, quer por toleima, classificação que adoptamos á falta de outra melhor, não tarda a ser julgado como merece, e acaba geralmente por ter uma menor clientela do que ante­riormente gozava ou viria ainda a gozar.

Por conseguinte com estes charlatães pouco soffre a humanidade e pouco perdem a dignidade e interesses da profissão.

Mas outro tanto não succède com o charlatanismo profissional, exercido nos grandes centros de popula­ção, que, compartilhando injustamente do prestigio li-gitimo dos mestres da sciencia, e apresentando-se sem­pre diante d'um publico que se renova todos os dias e que por isso o não pôde severamente julgar, attrahe a attenção d'aquelles que não achando lenitivos para os seus males nas localidades onde habitam, vem implo­rar das summidades medicas das capitães a cura que ha tanto tempo procuravam e que ainda não tinham podido encontrar. Deslumbrados por este brilho factí­cio elles vão perder-se na rede habilmente traçada.

Aqui os prejuízos são evidentes. É a humanidade que soffre; é a dignidade da profissão vergonhosa­mente ultrajada; são os seus interesses que notavel­mente diminuem.

*

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Inspirar por qualquer forma, justa ou injusta, uma confiança illimitada do seu supposto talento, eis aqui o estudo constante do medico charlatão, d'aquelle que tem o desejo immoderado de ser celebre e ser rico. A sua paixão suggere-lhe uma multidão de artifícios, que, habilmente combinados segundo o papel que quer gozar e a esphera social em que se acha collocado, são a garantia da sua ambição.

Proclamando as suas curas maravilhosas, debaixo da forma de agradecimentos que faz inserir na terceira pagina dos jornaes, ao lado dos casamentos,, elle faz os reclames mais escandalosos, não receiando arrastar o seu titulo de medico no limo do charlatanismo. Acompanhado d'um cortejo de decorações e títulos scientificos que excedem muito o de qualquer profes­sor das nossas Escolas de medicina, elle consegue as­sim o nome e interesses que os medicos verdadeira­mente sábios nem gozam nem fazem. Estes que conhe­cem o valor d'estes pseudos-titulos, ligam-lhes a im­portância que tem, a qual não pode fazer a gloria nem o orgulho da classe medica ; mas o publico que é inca­paz de apreciar estas differenças, deixa-se ainda mui­tas vezes seduzir por estes reclames, havendo por con­seguinte uma verdadeira usurpação de direitos que não devia ser tolerada por mais tempo.

Não insistiremos mais sobre este triste assumpto, no qual nem sequer 'tocaríamos, se a isso não nos obri­gasse a norma do nosso trabalho : se entrássemos em

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maiores desenvolvimentos, não faríamos mais do que repetir o que está no animo de todos.

Em presença de factos tão escandalosos, tão peri­gosos para a honradez, dignidade e interesses da pro­fissão medica, pergunta-se : não será de urgente ne­cessidade pôr um dique a este charlatanismo que se desenvolve e engrandece cada vez mais debaixo da in­fluencia de necessidades novas e de appetites insa­ciáveis? E' certo que hoje todos os crimes inspiram indulgência ; que todas as fraquezas tem uma des­culpa ! Mas por isso deverá a classe medica seguir esta corrente de ideias que, ennervando as sociedades, produz a sua dissolução? Não deverá punir de qual­quer forma, aquelles que d'entre os seus sócios ao abrigo d'um titulo geralmente honrado e obtido á custa de muito trabalho, compromettem os interesses da| profissão e ultrajam a dignidade d'uma arte que precisa de consideração para resistir aos prejuízos da ignorância e ás pretensões do demi-savoir ?

A resposta é obvia e escusado será repetil-a.

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SEGUNDA PMTE

A restricção da responsabilidade medica

I

Os easos de perseguições dirigidas contra os me­dicos em razão dos actos da sua practica, parecem multiplicar-se desde algum tempo a esta parte e as questões delicadas que levantam similhantes proces­sos, merecem cada vez mais fixar a attenção dos ho­mens, zelozos ao mesmo tempo dos interesses e digni­dade da profissão medica, e mais particularmente ainda d'aquelles que, merecendo a elevada confiança dos magistrados, são convidados a emittir a sua auctori-sada opinião sobre estas delicadas questões.

A lei não é de tal maneira precisa, a jurisprudên­cia não é de tal modo fixa a este propósito, que não

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haja uma importância real em submetter cada um dos casos que se apresentam a um estudo aprofundado, a uma apreciação rigorosa para assim se chegar a formular certos princípios geraes, que, não podendo sempre servirem de regra universal, serão ao menos um ponto de apoio aos medicos collocados em cir-cumstancias difflceis e subjeitos de qualquer forma sem defeza, a todas as consequências, a todos os pe­rigos d'uma responsabilidade mal definida.

Os medicos tendo entre as suas mãos a saúde e a vida dos homens, recebendo dos doentes um mandato quasi illimitado, é justo que sejam responsáveis não por todos os resultados da sua practica, pelos erros de dia­gnostico, prognostico e tratamento, commettidos no exercício consciencioso da sua profissão, mas pelos damnos causados pela sua provada negligencia, im­prudência, má fé ou inobservância d'algum regula­mento.

Os princípios estabelecidos por Dupin, que são os mesmos de Domat mas mais desenvolvidos e mais fortemente motivados, são conformes ao bom senso e á justiça.

Que o homem da arte, segundo estes auctores, seja irresponsável quanto aos erros de diagnostico e tratamento, não ó de mais mas simplesmente o neces­sário para não tornar impossível o exercício d'uma das mais bellas e mais úteis profissões, e não crear estorvos ao progresso d'uma sciencia, que não pôde

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dar um passo sem lançar por terra os erros mais acreditados, os prejuízos mais respeitáveis.

Se, porém, uma desgraça, continuam elles, é pro­duzida por uma falta pesada e evidente, consistindo esta n'uma imprudência, n'uma negligência ou na inobservância d'algum regulamento, não se vê a razão porque o medico deva s_ubtrahir-se á responsabilidade em que incorrem as outras profissões.

Na verdade, proclamar como um principio uma ir­responsabilidade absoluta, além de nos conduzir á in­justiça e ao absurdo, seria eximir das obrigações do direito commum aquelles que pela superioridade de sciencia devem estar subjeitos aos mais imperiosos deveres.

É egualmente n'estes limites que Trébucbet ad-mitte a applicação possível do principio da responsa­bilidade medica..

Protestando contra a opinião d'aquelles que in­tentam em exigir dos medicos uma responsabilida­de absoluta por todos os resultados da sua practica, até nos próprios casos em que elle obra segundo a sua consciência, e prodigalisa aos doentes todos os cuidados que lhes pôde dar, este auctor, prevê cer­tas hypotheses, nas quaes, segundo elle, a existência d'uma falta grave, d'uma imprudência, d'uma negli­gencia culpável poderão tornar o medico responsá­vel.

«Assim por exemplo, diz elle, quando um medico

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ou um cirurgião estiver em estado de embriaguez no momento em que practicar uma operação ; quando com-metter na redacção d'uma formula um erro palpável e prejudicial ao doente ; quando abandonar voluntaria­mente um doente no meio d'uma operação difficil e perigosa, sem se preoccupar com as consequências ; quando sem indicação alguma tirada do estado do doente e sem prevenir a família, substituir ao trata­mento prescripto uma outra medicação em consequên­cia da qual se produzam accidentes graves ; quando, com prevaricação das leis e regulamentos, der aos doentes remédios de sua composição ; em todos estes casos ha uma falta grave, uma imprudência, etc., e desde então os tribunaes poderão applicar o principio de responsabilidade medica.»

«Se um medico, continua Trébuchet, fizer ensaios com remédios violentos e ainda pouco conhecidos, prescrevendo-os ao acaso, com ligeireza, e sem se im­portar com as consequências que d'um tal emprego possam advir, a sua responsabilidade é notavelmente compromettida, porque nenhum medico tem o direito de tentar esses ensaios, senão com muita prudência e reserva, e quando esteja profundamente convencido da sua necessidade e tenha antecipadamente preve­nido a família do doente.» (*)

Foderé, do qual citamos mais adiante uma elo-

(•) Jurisprudence de la médecine.

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quente passagem, longe de vêr na irresponsabilidade do medico uma condição necessária ao progresso da sciencia, considera esta prerogativa como um obstá­culo serio á sua marcba.

«Um dos meios, diz elle, de apressar os progres­sos da medicina em França, seria tornar responsáveis pelas suas faltas aquelles que a exercem.»

Mas accrescenta em seguida: É certo, comtudo, que os esforços do génio se paralysariam, se se ten­tasse subordinar a medicina a regras fixas e invariá­veis, como succède com a religião e a jurisprudên­cia. Estas podem subjeitar-se a leis positivas porque o seu objecto varia pouco, emquanto que nada apre­senta um fundo e formas mais variadas do que o corpo humano, objecto da medicina.»

«Assim convém deixar aos medicos a maior liber­dade possivel nas suas vias de tratamento, e ao mes­mo tempo tornal-os responsáveis civilmente de todas as faltas commettidas por uma grande temeridade ou

' por uma presumpçosa negligencia, como nos casos seguintes : l.o _ «QUail(i0 temerariamente ensaiar um remédio

novo ou desconhecido e que seja o resultado de graves inconvenientes para o doente.

2.o — «Quando, sem necessidade urgente, o homem da arte der a uma mulher gravida remé­dios, dos quaes o aborto seja a sua conse­quência.

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3.° — «Quando, n'uma doença grave, elle permanecer n'uma inacção perigosa, emquanto que de­via operar, etc.» (*)

Casper, de Berlim, mostra-se muito mais rebelde em admittir a responsabilidade medica. Assim diz elle : «Os medicos que exercendo a homeopath ia, des­prezam outros tratamentos elementares, indispensá­veis, e cuja privação produz a morte, não podem ser perseguidos pela lei, porque este systema tem a. pro­tecção do Estado.» (2)

Esta razão parece-nos ser bem subtil para provar a irresponsabilidade medica, porque ainda ninguém conheceu no Estado o direito" de patrocinar tal ou tal doutrina scientifica com exclusão das outras.

Gomtudo Casper diz mais longe, «que n'um caso de hemorrhagia abundante, o homoepatha que deixas­se morrer pouco a pouco o seu doente por causa da sua negligencia ou impotência dos seus remédios, se­ria responsável.»

Assim vemos cada auctor citar casos différentes em que, segundo elle, o medico deve ser responsá­vel ; e, postoque seja difflcil emittir uma regra abso­luta, o que é certo é que todos elles accordam n'uma responsabilidade restricta, que apesar de mal defi­nida, em these, nós folgamos em aceital-a.

(') Traité de médecine legale. (Poderé) (2) Traité pratique de médecine legale. (J. L. Casper)

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Somos obrigados a permanecer no vago dos ter­mos geraes, imprudência, negligencia, etc., os quaes o legislador deixa aos juizes o cuidado de os definir em face de cada um dos casos especiaes em que a responsabilidade medica se possa achar envolvida, para vêr se com esses dados poderá mais tarde emittir uma regra absoluta.

Na verdade, se por um lado os medicos não po^ dem nem devem ser sempre responsáveis pelos seus insuccessos, pelo resultado das operações que practi-cam, porque a sua arte como já o fizemos sentir na primeira parte do nosso trabalho, é em muitos casos conjectural, e sobre-os próprios pontos que parecem certos, a observação das regras é muitas vezes impo­tente para assegurar a cura, por outro lado julgamos em razão dos interesses da sociedade, que são os de nós todos, não dever admittir-se uma irresponsabili­dade completa para todos os actos e faltas do medico.

Seria crear uma immunidade que não pertence a ninguém ; seria conferir á sua profissão um privilegio excessivo que não existe para nenhuma outra ; seria emfim, desarmar a justiça contra as faltas mais gra­ves e perigosas de todas, poisque ellas interessam di­rectamente a vida, e a saúde dos homens.

Não ha profissão que deva gozar do. privilegio da irresponsabilidade completa perante a justiça. «Todo o homem que causa a outrem um prejuízo palpável, deve reparal-o.» Esta regra tão justa, tão racional,

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applica-se a todos os homens sem distincção de san­gue nem de estado ; tem o seu principio na moral, a sua sancção na lei.

Se a imprudência d'um individuo que maneja uma 'arma pôde fortuitamente tornal-o culpável d'um homi­cídio involuntário, porque é que o medico, tendo cons­tantemente entre as mãos armas não menos perigosas, e ás quaes pôde dar uma desastrada applicação ; tendo entre as mãos a lanceta que mal dirigida ou intencio­nalmente empregada pôde abrir uma artéria e com-prometter a vida d'aquelles a quem deve a protecção e os soccorros da sua arte, repetimos, porque é que o medico, deve gozar d'uma tal immunidade que o po­nha sempre ao abrigo de toda a acção judiciaria? Não vemos a razão.

Nós julgamos dever admittir-se uma responsabili­dade restricta em harmonia com a difficuldade das funcções do medico; e, se em certos casos, taes como uma doze inexactamente indicada, a negligencia do medico não diffère dos delictos communs e pôde mere­cer certa contemplação, ha outros, cujas causas são mais graves e onde verdadeiramente começa sem ap-pellação a responsabilidade medica.

Mas, se admittimos este principio como incontestá­vel e inteiramente conforme coni a equidade e digni­dade medica, é na esperança de que elle ficará comple­tamente encerrado nos limites perfeitamente traçados, e nunca se prestará a todas as interpretações que pos-

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sam fazer suggerir as circumstancias tão complexas e difficeis de prever, nas quaes se exerce a practica da medicina.

II

Não é raro o ver-se attribuir á ignorância do me­dico, o mais illustrado, o mais consciencioso, a termi­nação funesta d'uma doença ou d'uma operação e exi-gir-se-lhe, ipso facto, uma responsabilidade legal. To­davia protestamos contra uma tal exigência, porque além de nos parecer absurda, invalidaria os títulos do medico.

Quando um medico emprega remédios contrários á doença, ou opera contrariamente ás regras da arte, e o doente morre, não ha acção de responsabilidade legal a intentar-se contra elle, e porque?

Porque, além de na medicina applicada ninguém poder ser responsável pelos seus pensamentos, pela sua opinião, pelo seu systema, o medico subjeito pela lei a provas e a exames tem uma capacidade legal que ninguém lhe pôde contestar.

Eis o motivo porque não julgamos que a supposta ignorância possa servir de base a uma acção de res­ponsabilidade intentada contra um medico.

E demais, quem lhe poderia provar a sua ignorân­cia? Aquelles que passam por mais hábeis, affirmando

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que a arte indicava um outro caminho a seguir, e pros­crevia o remédio empregado, a operação emprehendi-da ? A isto responderia o medico : o erro não foi meu porque o meu remédio ou a minha operação devia cu­rar o doente se uma circumstancia imprevista e irre­mediável não se declarasse; porque estou de tal forma convencido, e a experiência me tem tão sobejamente confirmado o efficaz resultado do meu tratamento, que não duvidarei empregal-o de novo em idênticas cir­cunstancias, porque o julgo, emflm, como um verda­deiro progresso da arte.

Quando n'este século, em que tantos homens illus­tres tem brilhado, o cholera decimava as nações, a arte foi impotente para lhe sobreestar a sua marcha destruidora e sempre crescente. Não houve um só d'esses grandes homens que não tentasse todos os sys-temas, e todos elles diversificavam de opiniões, sobre a natureza, sobre as causas, sobre os preservativos e sobre os remédios da epidemia.

Quem dizia então a verdade? Quem obrava confor­me os preceitos da arte ? Quem deveria ser responsá­vel?

O que dizemos para esta terrível epidemia, pode­mos egualmente dizel-o para as doenças ordinárias e mais frequentes; desde o momento que ellas não se­guem a sua evolução habitual, a sciencia vacilla, hesi­ta, e tudo o que faz, são ensaios. Nos primeiros sécu­los a medicina escrevia em poucas Unhas as doenças

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e o tratamento que lhes convinha ; hoje porém enche livros com ellas, e cada medico tem o seu systema, ajuda a natureza a seu modo, e prejudica-a talvez, quando julga auxilial-a.

Julgamos, pois, não dever admittir-se uma respon­sabilidade legal, baseada sobre a ignorância do faculta­tivo, para os casos de terminação funesta d'uma doen­ça ou d'uma operação; quando muito poderá admit­tir-se uma responsabilidade moral, ainda assim injus­ta ; mas d'esta, á responsabilidade legal, ás persegui­ções civis ou criminaes deve haver e ha felizmente uma grande distancia.

Com effeito, para que estas se realisem é preciso ordinariamente que certas circumstancias apparentes ou reaes venham excitar as paixões ou pôr em jogo os interesses.

A celeridade do acontecimento, a natureza insólita do mal ou do remédio, e mais vezes ainda uma dôr cega excitada por suggestões imprudentes e culpáveis, ou até mesmo os commentarios calculados da perver­sidade e da inveja bastam para invocar a intervenção da justiça e dos tribunaes sobre factos onde somente a consciência e a fatalidade deveriam ser postas em jogo.

D'estas complicações tão vulgares em factos d'esta natureza e dos quaes poderíamos citar numerosos exemplos, senão em Portugal, onde felizmente não temos muita razão para nos lamentarmos, pelo menos

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no estrangeiro, onde o mal é velho, nasce um acervo de difflculdades muitas vezes insuperáveis á justiça e até mesmo á propria sciencia; d'aqui um illimitado numero de sentenças e condemnações que são para de­plorar, mas que não podem attribuir-se exclusivamente ao rigor da lei, o qual seria contrario á liberdade e di­gnidade medicas.

Alguns magistrados compenetrados as mais das ve­zes d'estes princípios, apesar de toda a sua grande erudição, sentem a necessidade de isolar a verdade das densas nuvens que a envolvem, de se illucidarem com os conhecimentos especiaes que só a sciencia e a ex­periência da arte lhes podem fornecer, e julgarem se­gundo as afflrmações dos peritos.

E, se os que assim procedem são dignos de todos os elogios, o mesmo não podemos dizer d'aquelles que com a lei na mão, tão elástica como o requerem as pai­xões humanas, ou dispensam esses conhecimentos ou os sophismam por forma a imputar ao medico uma responsabilidade que- de dever não lhe cabe e que o faz incorrer n'uma punição tão injusta, como aviltante para quem a soffre.

Nós julgamos de necessidade que os medicos sejam sempre chamados em questões d'esta ordem, não para julgar mas para esclarecer a justiça sobre as delicadas e litigiosas questões da practica medica em que se

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possa achar envolvida a responsabilidade dos medi­cos.

O tribunal mais competente para avaliar as faltas dos practicos será sem duvida aquelle que fôr consti­tuído por medicos. Que não lhe pertença a elle o di­reito exclusivo de absolver ou condemnar o réu, isso é de justiça; mas que se despreze o seu deliberatum na apreciação de factos que outro tribunal é menos competente para julgar, isso é injusto, é invadir as attribuições e direitos do medico.

«Se o fazem assentar ao lado dos juizes, dizia Royer-Collard, e compartilhar do terrível privilegio de lançar na balança da justiça os interesses mais caros dos cidadãos» ; se o obrigam depois de ter pres­tado juramento diante de Deus, a pronunciar em nome da sciencia, palavras que serão logo a sentença dos juizes, terrível encargo que só é bem compensado pela alegria que se sente de contar na vida a felici­dade de haver poupado á justiça um innocente que ia perder a vida, a honra e a liberdade, porque será que o medico, assentado também ao lado da justiça não deve ser o advogado dos interesses dos seus collegas?

Será, porque sendo parte interessada, as suas re­soluções devam ser apaixonadas?

Repellimos como aviltante uma tal suspeita que iria de encontro á honradez da classe medica, e lhe roubaria a consideração que ella deve gozar.

O medico no desempenho da sua nobre e sancta *

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missão de perito em questões d'esta natureza, como em todas as outras em que é chamado para esclarecer a justiça, não vê o collega que estima, nem o amigo que adora ; inflammado do sentimento da justiça, vê apenas o homem que arrastado diante dos tribunaes, precisa que se lhe proclame a sua innocencia ou jus­tifique a sua culpa.

E, como prova do que avançamos, bastará compul-sar-se os annaes judiciários de todos os paizes e de todos os tempos. Não é só um caso que nos asse­gura a verdade do que dissemos e nos anima n'esta occasião a fazer um grande elogio á classe medica ; tendo muitos a escolher, preferiremos um que pelas notáveis discussões a que deu logar, merece a nossa especial attenção.

Referimo-nos a um caso de obstetrícia practicado pelo douctor Helie.

Este medico assistindo a um parto cuja apresen­tação era das extremidades superiores, em vez de prac-ticar a versão e julgando que os braços estavam es-phacelados, amputou-os, depois de ter feito sentir ao marido da parturiente a necessidade de mutilar o filho para salvar a mãe.

Terminada a operação o feto é immediatamente expulso, e os seus gritos e movimentos revelam que está vivo e por conseguinte a grave falta em que in­correu o medico pela operação que fez. O pae chama o parteiro aos tribunaes, formando desde logo pro-

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cesso contra elle, pedindo-lhe uma remuneração dos damnos e prejuízos causados pela mutilação feita ao filho e sem indicação alguma scientifica.

Sendo consultada sobre o caso a Academia de me­dicina de Pariz, esta nomeou uma commissão com­posta dos distinctos parteiros, Desormeaux, Deneux, Gardien e Moreau á qual.se aggregou ainda Adelon, como professor cathedratico da cadeira de medicina legal, a qual depois de ter estudado a questão resu­miu a sua opinião do modo seguinte :

1.° — Dos factos estabelecidos nada prova que os dous braços da creança estivessem esphacelados ;

2.° — Nada prova que fosse impossível operar a ver­são, porque os obstáculos que para isso ha­via eram muito pequenos ou pelo menos de pouca duração;

3.° — Que o estado da mãe não exigia a necessidade de abreviar e terminar o parto ;

4.° — Que não tinha sido preciso amputar o braço di­reito e muito menos o esquerdo por isso mesmo que só os dedos da mão correspon­dente é que tinham já penetrado na vagina;

5.° e conclusão—A commissão contendo-se nos limi­tes da sua competência, e, julgando que a sua missão era limitar-se a decidir se a ope­ração devia ser considerada como um simples erro devido ás difQculdades da profissão, ou

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se pelo contrario deveria ser reputada como uma verdadeira falta, conclue por dizer que a operação deve ser, qualificada na espécie como uma falta contra as regras da arte.

Ë certo que estas conclusões não foram adoptadas pela Academia, que, tendo nomeado uma nova com-missão composta de medicos perfeitamente estranhos á especialidade de obstetrícia para estudar o assump­to, esta informou em sentido contrario á primeira.

Todavia esta diversidade de opiniões, não nos pa­rece invalidar a razão porque appellamos para o caso do douctor Helie, com o fim de provar a rectidão e jus­tiça com que na generalidade os medicos julgam as questões que contribuem a estabelecer a jurisprudên­cia, em materia de responsabilidade medica.

Além de que o desaccordo das duas commissões nomeadas é mais apparente que real, porque a segun­da commissão também conclue «qu'il y a sans doute une faute qu'il ne faut pas plus que déplorer», esta estudou a questão mais particularmente debaixo da ideia predominante, que os medicos, no exercício da sua profissão devem ser absolutamente irresponsáveis por todas as faltas graves que commetterem, sob a condição de não serem practicadas com premeditação e pérfidos desígnios ou intenções criminaes. Assim ella conclue o seu relatório pelos seguintes períodos :

«A commissão não quer concluir o seu dictamen

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sem exprimir claramente a sua opinião acerca da res­ponsabilidade medica, e protestar contra a decisão de alguns tribunaes que se inclinam a admittir como um principio funesto esta responsabilidade. Isto não quer dizer, que a Commissão entenda, que os medicos que tenham meditado e commettido delictus d'um modo criminal no exercício da sua profissão, sejam irrespon­sáveis por esses delictos : com isto, ella quer apenas significar o seu sentimento e assentar que a medicina exercida com probidade e consciência é um poder il-limitado, e que em tão nobre carreira não deve haver responsabilidade.

«Estabelecido o principio da responsabilidade me­dica tudo se tornaria duvidoso e arriscado para o me­dico. Deveria temer a cada passo a vingança das leis e fugiria sempre ao simples aspecto do perigo.

«Não deve haver mais que a responsabilidade mo­ral ; e esta é soberanamente grave, para que os tri­bunaes tenham necessidade de invocar ainda, o inutil e prejudicial principio da responsabilidade legal.» (*)

Mas admittida mesmo uma tal desharmonia nos resultados, parece-nos ainda assim que não pôde inva­lidar os foros de nobreza e rectidão que distinguem os medicos na sua elevada importância de peritos em questões d'estas; pelo contrario, sem lesar a nossa asserção, quando muito ella vem corroborar o que

(!) Meâecina y cirurgia legal. (Pedro Mata) 2.° vol.

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n'outra parte dissemos das difficuldades insuperáveis que por vezes levanta a doutrina da responsabilidade dos medicos.

Entendemos, por conseguinte, que o tribunal me­dico é o mais competente e o único para com toda a imparcialidade e com mais perfeito conhecimento de causa, julgar d'estas difficeis questões, por vezes tão accentuadamente embaraçadas, que a mais decidida vontade de isolar a verdade nem sempre o conse­gue.

E não se estranhe que insistamos tantas vezes n'estas difficuldades inhérentes á apreciação de casos d'esta natureza, porque ellas na verdade são grandes não só para os próprios medicos, mas muito mais ainda para os magistrados. Além do que offerece de delicado o formar-se um juízo acerca do procedimen­to do medico n'um dado caso, os elementos segundo os quaes se poderia estabelecer uma convicção, são as mais das vezes de tal forma incompletos, insuffi-cientes e heterogéneos, que é impossível fazer-se, e justificar-se uma apreciação e mais ainda uma critica dos seus actos.

E, dizendo que estas difficuldades são maiores para os magistrados, não queremos com isto signifi­car que duvidamos da sua grande erudição. Não ; co­nhecemos a de alguns e respeitamol-a. Mas pergun-ta-se : não poderão elles encontrar numerosas ques­tões medicas nas quaes lhes é difficil senão impossi-

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vel, decidir se houve ou não imprudência, negligen­cia, etc., da parte do medico? Ninguém o duvida.

Se por conseguinte lhes fosse permittido o julgar próprio sensu dos casos de que nos occupamos, não haveria -a temer que por acaso, depositando uma de­masiada confiança nos seus conhecimentos, se decidis­sem por vezes com grave detrimento do accusado, e fizessem pesar sobre elle uma iniqua responsabilidade?

Para exprimirmos todo o nosso pensamento, jul­gamos que se deveria interdizer aos tribunaes toda a supposta competência em assumptos d'esta ordem e restringil-a exclusivamente a uma commissão especial de medicos instruídos e imparciaes, não para julgar, como já dissemos, mas para esclarecer a justiça.

Esta opinião que não tem a gloria de ser nova, já foi emittida pela primeira vez por Foderé, que depois de ter enumerado os casos que, segundo elle, haveria responsabilidade medica, conclue da maneira seguin­te : «Ces cas seraient jugés par les Facultés et par les Sociétés de médecine. Le jugement servirait de piece probante aux tribunaux pour prononcer sur la partie civile, correctionelle ou criminelle.»

«Une legislation semblable manque encore ma-lheurement á la sûreté des citoyens, trop souvent d'un effronté qui n'a du médecin que le non usurpé ; elle ferait le triomphe des gens de l'art instruits, que l'ignorance et l'envie accusent toujours des non suecés qu'ils ne pouvaient point pas avoir; elle tiendrait

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dans les justes bornes les amateurs des innovations, et par lá contribuerait singulièrement au progrés de la médecine.» (*)

Os desejos de Foderé tem sido em parte realisados. Com effeito o artigo 236.° do código penal (2) e o

artigo 64.° do Decreto sanitário de 3 de Dezembro de 1868 (3) que punem o exercício illegal da medicina, tem remediado muitos abusos que outr'ora se deplo­ravam.

E, postoque, nem todos os magistrados se auxi­liem das luzes especiaes que os possam esclarecer em similhantes questões, o maior numero d'elles, como já o dissemos, soccorrem-se sempre d'ellas, no que procedem com summa prudência, e diminuem nota­velmente os perigos que acima assignalamos.

Mas admittindo-se que o tribunal deva ser cons­tituído por medicos, pergunta-se: poderão todos com a mesma dignidade desempenhar as funcções d'esté importante e delicado encargo? Não.

(') Traité de médecine legale. (Poderá) (?) Código penal — Art. 236, § 2.° O que exercer acto

próprio d'uma profissão, que exige titulo, arrogando-se, sem titulo ou causa legitima, a qualidade de professor, ou perito, será condemnado na pena de seis mezes a dous annos e multa correspondente.

(3) Decreto sanitário de 3 de dezembro de Í868 — Art. 64.° A mesma pena, é imposta ao que exercer acto próprio de profissão, de qualquer ramo de medicina ou de pharmacia que exija titulo, arrogando-se sem titulo, ou causa legitima a qualidade de professor ou perito.

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III

Ha uma verdade que não temos duvida em apre­sentar como theorema, e sobre que aceitamos a res­ponsabilidade da demonstração : é que em medicina a sciencia tanto se tem enriquecido, quanto a profis­são depreciado.

Cremos no progresso da medicina ; saudamos com enthusiasmo a parte que ella tem tomado na lei uni­versal, que ha melhorado, refundido e engrandecido tudo o que se subjeita á vontade do homem estudioso e do operário activo.

Acatamos os progressos da nossa sciencia, que, desenvolvida e alargada nos seus variados ramos, abre novos horisontes ás suas humanitárias aspirações. Nem nós os da geração moderna, conhecemos outras senão por tradição.

Mas no que não cremos e que lamentamos, é na hypothetica união da classe medica, que parallelamente aos progressos da sciencia, vae-se cada vez depre­ciando mais.

Desgraçadamente reina entre a generalidade dos medicos uma tal desharmonia, um antagonismo tão prejudicial e uma lucta tão desgarrada, que é impos-sivel julgal-os a todos á devida altura de apreciar, sem se deixarem influenciar por nenhuma opinião antecipada, os actos dos seus collegas. Por um lado

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o desejo immoderado de ser rico, por outro a neces­sidade, produclo do desvalimento e abandono em que se encontram muitos dos facultativos, dão lugar a essa guerra sem tréguas nem limites que fazem uns aos outros em descrédito da sua profissão e com gra­ves prejuízos para os seus interesses.

Omnis invidia mala,, medicorum autem péssima, é um adagio vulgarissimo, que pôde tomar-se como o cheiro d'essa gangrena moral que invade o corpo me­dico.

Compenetrem-se todos os facultativos de que a sua consideração, a sua dignidade, e o seu grande interesse reside essencialmente na mutua deferência d'uns para com os outros, na sua intima fraternidade, no seu respeito reciproco emflm, e o nivel da classe ha-de subir á sua verdadeira altura. Que seja sempre a sua consciência que os guie na qualificação dos actos dos seus collegas; que nenhuma pérfida inten­ção acompanhe os seus juizos e todos poderão ser juizes uns dos outros.

«Conbien de fois, dizia Montaigne, nous advient-il de voir les médecins imputant les uns aux autres la mort de leurs patients.» Isto é uma triste verdade, mas que é forçoso confessal-a.

O que não queres para ti não desejes para os ou­tros: este preceito mais que evangélico, está consi­gnado em todos os códigos moraes, assim como devia existir no espirito de todos os medicos, porque em-.

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quanto elle fôr repudiado por alguns, nem todos são competentes para apreciar e qualificar os actos dos seus collegas.

Mas infelizmente, ser medico probo, digno, severo para comsigo mesmo, indulgente e justo para com os collegas, não é cousa fácil n'estes tempos em que as tergiversações com a propria consciência são tão fá­ceis e amiudadas.

Ora é por esta falta de lealdade da classe medica, por esta guerra sem tréguas que ha muito jurou a si mesma, que nem todos os medicos são competentes para pertencer a esse tribunal, a que nós julgamos de­ver submetter-se exclusivamente a apreciação dos ca­sos em que se possa achar envolvida a responsabili­dade dos medicos.

Em conclusão : admittimos pois uma responsa­bilidade restricta, para os casos de imprudência, ne­gligencia, má fé, e inobservância d'algum regulamen­to, os quaes devem ser apreciados por um tribu­nal medico constituído por homens d'uma probidade extrema e de elevada importância scientiflca, não es­quecendo nunca, que na maior parte das vezes os doentes são os únicos auctores dos accidentes de que se queixam, e que seria uma grande iniquidade attri-buir ao medico a responsabilidade das imprudências por elles commettidas.

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PROPOSIÇÕES

Anatomia. — Existe uma certa relação entre a synostose do craneo e a conservação e desenvolvi­mento das faculdades intellectuaes.

Physiologia. — O tecido muscular é o que pos-sue maior actividade respiratória.

Materia medica. — A metallotherapia é um po­deroso meio therapeutico.

Patnologia externa. — Não admittimos a exis­tência d'um virus blennorrhagico.

Medicina operatória. — Nas hernias ingui-naes recentes e estranguladas preferimos a kelotomia externa á interna.

Partos.—No tratamento das hemorrhagias da placenta previa preferimos em todos os casos o pro­cesso de Depaul ao processo de Pajot.

Patnologia interna.—Não ha phtysis ab hce-moptoe.

Medicina legal. — A nossa legislação sobre a responsabilidade medica é em parte absurda.

Pathologia geral. —O temperamento é distin-cto da constituição individual.

Anatomia pathologica. — No estado actual da sciencia não se pôde collocar o cancro no grupo dos epitheliomas.

Approvada. Pode imprimir-se. O CONSELHEIRO DIRECTOR,

P. A. Dias. Costa Leite.