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Revista de Humanidades, Tecnologia e Cultura ISSN 2238-3948 Faculdade de Tecnologia de Bauru volume 03 – número 01 – dezembro/2013 Página353 UM DESAFIO À FILOSOFIA SARTREANA NA PAIXÃO DE “OS QUE BEBEM COMO OS CÃES” Maria Cláudia Araujo 1 RESUMO Neste artigo, problematizamos as premissas de Sartre sobre a paixão humana, por intermédio da filosofia sartreana e do Cristianismo, ambos presentes nas entrelinhas de Os que bebem como os cães. Nosso objetivo é evidenciar o arranjo estrutural do romance, em diálogo com a historicidade; apresentar a praxe cristã e o utilitarismo como polaridades que apontam para o nível religioso da obra; além de suas antinomias discursivas, como a violência e a ascese, no plano literário e social. Palavras-chave: Sartre; Assis Brasil; Filosofia; Literatura; Paixão de Cristo. ABSTRACT In this paper, we question the assumptions of Sartre on human passion, through Sartre and Christianity, both present between the lines of “Those who drink like dogs”. Our goal is to highlight the structural arrangement of the novel, in dialogue with the historicity; present the Christian praxis and utilitarianism as polarities pointing to the religious level of the work, in addition to their discursive social antinomies, such as violence and asceticism in the social and literary areas. Keywords: Sartre; Assis Brazil, Philosophy, Literature, Passion of Christ. RESUMEN En este trabajo, nos cuestionamos los hipótesis de Sartre sobre la pasión humana, a través de Sartre y el cristianismo, ambos presentes entre las líneas de “Los que beben como perros. Nuestro objetivo es destacar la disposición estructural de la novela, en diálogo con la historicidad; presentar la praxis cristiana y el utilitarismo como polaridades señalando el nivel religioso de la obra; además de sus antinomias sociales discursivas, como la violencia y el ascetismo en la esfera literaria y social. Palabras clave: Sartre; Assis Brasil, Filosofía, Literatura, Pasión de Cristo. 1 Pesquisadora pela CAPES; doutoranda em Ciências da Religião, mestre em Literatura e Crítica Literária e especialista em Literatura, pela PUC-SP. É membro do grupo de estudos Categorias da Narrativa, no qual foi realizada esta pesquisa. [email protected]

UM DESAFIO À FILOSOFIA SARTREANA NA PAIXÃO DE “OS QUE BEBEM COMO OS CÃES”

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Neste artigo, problematizamos as premissas de Sartre sobre a paixão humana, por intermédio da filosofiasartreana e do Cristianismo, ambos presentes nas entrelinhas de Os que bebem como os cães. Nosso objetivo éevidenciar o arranjo estrutural do romance, em diálogo com a historicidade; apresentar a praxe cristã e outilitarismo como polaridades que apontam para o nível religioso da obra; além de suas antinomiasdiscursivas, como a violência e a ascese, no plano literário e social.

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    UM DESAFIO FILOSOFIA SARTREANA

    NA PAIXO DE OS QUE BEBEM COMO OS CES

    Maria Cludia Araujo1

    RESUMO

    Neste artigo, problematizamos as premissas de Sartre sobre a paixo humana, por intermdio da filosofia

    sartreana e do Cristianismo, ambos presentes nas entrelinhas de Os que bebem como os ces. Nosso objetivo evidenciar o arranjo estrutural do romance, em dilogo com a historicidade; apresentar a praxe crist e o

    utilitarismo como polaridades que apontam para o nvel religioso da obra; alm de suas antinomias

    discursivas, como a violncia e a ascese, no plano literrio e social. Palavras-chave: Sartre; Assis Brasil; Filosofia; Literatura; Paixo de Cristo.

    ABSTRACT

    In this paper, we question the assumptions of Sartre on human passion, through Sartre and Christianity, both

    present between the lines of Those who drink like dogs. Our goal is to highlight the structural arrangement of the novel, in dialogue with the historicity; present the Christian praxis and utilitarianism as polarities

    pointing to the religious level of the work, in addition to their discursive social antinomies, such as violence

    and asceticism in the social and literary areas.

    Keywords: Sartre; Assis Brazil, Philosophy, Literature, Passion of Christ.

    RESUMEN

    En este trabajo, nos cuestionamos los hiptesis de Sartre sobre la pasin humana, a travs de Sartre y el

    cristianismo, ambos presentes entre las lneas de Los que beben como perros. Nuestro objetivo es destacar la disposicin estructural de la novela, en dilogo con la historicidad; presentar la praxis cristiana y el

    utilitarismo como polaridades sealando el nivel religioso de la obra; adems de sus antinomias sociales

    discursivas, como la violencia y el ascetismo en la esfera literaria y social.

    Palabras clave: Sartre; Assis Brasil, Filosofa, Literatura, Pasin de Cristo.

    1 Pesquisadora pela CAPES; doutoranda em Cincias da Religio, mestre em Literatura e Crtica Literria e especialista

    em Literatura, pela PUC-SP. membro do grupo de estudos Categorias da Narrativa, no qual foi realizada esta pesquisa.

    [email protected]

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    INTRODUO

    Toda realidade humana uma paixo.

    Sartre (1997, p. 750)

    Sartre conclui O ser e o nada (1997, p. 750), obra cannica publicada em 1943, com a

    seguinte premissa: a paixo do homem inversa de Cristo, pois o homem se perde enquanto

    homem para que Deus nasa. Mas a idia de Deus contraditria, e nos perdemos em vo; o homem

    uma paixo intil. Existencialista ateu com pendores niilistas, intrigou muitos escritores e crticos

    do sculo XX, visto que foi tambm um renomado romancista. Um deles o jornalista Francisco de

    Assis Almeida Brasil (1975), que bebe da obra do filsofo, mas ao mesmo tempo confronta suas

    teorias comunistas no romance Os que bebem como os ces, publicado em 1975. vlido considerar

    que para Sartre (1967, p. 248-249): Um anti-comunista um co.

    A temtica de superfcie da obra sempre um fragmento do real para um esteta, pois, como

    afirma Barthes (2003, p. 33), o real lhe serve apenas de pretexto para falar de algo mais relevante

    como os dramas interiores do ser humano. Desse modo, o narrador em terceira pessoa, com foco na

    primeira, aparenta descrever o que a ditadura, tema explcito em questo, quando sua verdadeira

    inteno intensificar a ambiguidade da narrativa, como se no houvesse em tais divagaes

    nenhuma resposta predominante para o conflito um recurso evidente para promover a reflexo

    dialgica acerca das demais temticas que vo surgindo no decorrer do discurso.

    O protagonista um homem sem memria, encarcerado em uma cela, tentando

    compreender o que o teria levado quela circunstncia. Nas mediaes do crcere, circulam soldados

    cruis que vigiam sua conduta. Os outros homens que habitam celas paralelas, em condies

    idnticas sua misria, tambm so hostilizados pelos tiranos ao seu redor e representam a

    conscincia sofredora (p. 27) da personagem. Esses homens so ainda uma metfora do amor ao

    prximo como a si mesmo, pregado por Jesus (Mt 22, 39), na medida em que o protagonista

    aprendeu a am-los e a acat-los como se fossem o seu espelho. (p. 11) Finalmente, de um

    buraco (p. 121), surge um casal de ratos que passa a frequentar o espao onde habita o prisioneiro,

    com o propsito de roubar o seu alimento.

    A situao de agonia, o corpo, as vestes e os caracteres psicolgicos que vo sendo

    delineados na personagem e nos seus semelhantes apontam para a Figura e a Paixo de Cristo, o

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    horizonte ali era o muro caiado (p. 33), contexto esse que ser analisado, a seguir, mediante uma

    comparao da estrutura do romance com as quatroze estaes da Via Crucis trajeto seguido por

    Jesus Cristo, do Pretrio de Pilatos at o Calvrio , alm de correspondncias com filosofemas,

    imagens evanglicas, fragmentos bblicos e literrios.

    O romance2 de Assis Brasil dialoga com o conto O muro e o romance A nusea, ambos da

    autoria de Sartre, e a afinidade se d pela via dos existencialismos cristo e ateu, abordados tambm

    pelo filsofo (1987, p. 5), cada qual com a sua caracterstica. O romance apresenta ainda um

    paralelismo com Mathilde, personagem de Stendhal (1998), que um polo oposto da Matilde de

    Assis Brasil.

    As filosofias sartreana e crist no so as nicas abordagens do romance, visto que o autor

    tambm traz para a discusso os valores utilitaristas da sociedade do sculo XIX, ainda presentes na

    ps-modernidade, em contraposio aos valores tradicionais, cristos e idealistas da famlia,

    evidentes nas descries do protagonista. E embora o papel da literatura no seja se submeter ao real,

    mas recri-lo, a arte tambm no deve fugir ao real (p. 164), justifica-se o narrador.

    O nvel metalingustico e semitico do discurso reflete, portanto, a dinmica de criao do

    esteta, de modo que o texto, segundo Barthes (2004, p. 273), quando concebido como um espao

    polissmico, pode entrecruzar vrios sentidos possveis. O sentido para Barthes (2008, p. 68),

    porm, s pode nascer de uma articulao, a qual, na obra de Assis Brasil, uma crtica filosfica

    e social que tem por objetivo enaltecer a ascese crist, discutida nos tpicos finais desse artigo.

    O nvel estrutural da narrativa e a Via Crucis de Cristo

    A atividade estruturalista comporta duas operaes tpicas:

    desmontagem e arranjo. Barthes (2003, p. 52)

    O romance Os que bebem como ces apresenta em sua estrutura arranjos paradigmticos e

    sintagmticos, em eixo estrutural linear e horizontal, bem como vertical, e sua combinao de signos

    forma quatorze ciclos; do mesmo modo como a estrutura da Via Crucis apresenta quatorze estaes.

    O exerccio da Via Sacra, proposto pelo Cristianismo, um convite piedade, atravs da meditao

    sobre a Paixo de Cristo. Nos ciclos do romance, por sua vez, h uma desmontagem e uma

    2 O romance, para Barthes (2004, p. 262-266) , um texto: a mensagem escrita est articulada como signo [...] O texto

    pode coincidir com uma frase tanto quanto com um livro inteiro.

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    reconstruo do evento histrico, com o objetivo de materializar essa Paixo.

    Barthes (2003, p. 51) afirma que o objetivo de toda atividade estruturalista, seja ela

    reflexiva ou potica, reconstruir um objeto, de modo a manifestar nessa reconstituio as regras

    de funcionamento (as funes) desse objeto. (p. 51) Para Barthes (2003, p. 33), no apenas o

    discurso estrutural como tambm a prpria palavra, que ainda uma matria.

    O discurso metalingustico do narrador do romance se funde, portanto, com as aes

    catalticas da personagem e deixa entrever que a escolha do lxico no ocasional: Ia construindo o

    seu vocabulrio e j de posse dessa trilogia sensvel, disps-se a tecer a teia de sua vida ali. (p.

    39) Para Barthes (2004, p. 276), todo texto um tecido novo de citaes passadas. Logo, a cela do

    romance remete ao crcere de Jesus; o ptio, ao patbulo (p. 117); e o grito, sua ao derradeira

    na cruz.

    Os captulos esto interligados e propem linearidade narrativa, por outro lado, h tambm

    uma circularidade que ocorre atravs da rotina do homem que vive entre a cela, onde come, e o ptio,

    onde lava suas roupas, e sempre no final da etapa de cada ciclo h o episdio do grito, que intensifica

    a situao de desamparo e abandono, tanto por parte do protagonista, que a princpio no gritava,

    como por parte dos homens das outras celas que passam a motiv-lo atravs dos gritos. A estrutura

    da narrativa ritualiza, portanto, a Via Sacra, a considerar que todo ritual opera pela lgica da

    repetio ou da reatualizao de um evento primordial.

    A caminhada ou o trajeto de Cristo, representados na Via Sacra crist, so concretizados

    pelo caminhar do protagonista no romance, que aponta tanto para o cansao do Salvador quanto para

    a sincronia e a diacronia da prpria obra: E caminhou, caminhou, em linha reta ou em crculos, at

    sentir que todo o seu corpo palpitava, e um leve suor comeava a aparecer em seu pescoo, em sua

    fronte. (p. 80)

    A pessoa do Cristo e a crucificao, porm, no so dadas no enredo e devem ser captadas

    nas entrelinhas do discurso sincrnico, bem como nos caracteres das personagens, que so bastante

    evidentes. O homem tinha a barba comprida e estava nu, as costelas mostra (p. 17), as cicatrizes

    dos pulsos haviam sarado. (p. 33).

    Segundo o arquelogo Gibson (2009, p. 129), no tempo de Jesus, a pessoa era crucificada

    nua, aumentando a humilhao geral diante de outras pessoas. E, de acordo com exames feitos no

    Sudrio, uma das hipteses aceitas pelos cientistas a de que Jesus possa ter sido pregado nos pulsos

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    e no nas mos; o que justifica os pulsos feridos que aparecem no decorrer do romance inteiro,

    enfatizados ainda mais no final, onde a morte entra em cena com total imponncia.

    Na primeira estao da Via Crucis, Jesus condenado morte. O primeiro ciclo do romance

    marca esse episdio atravs de um paralelismo potico que materializa o luto, com um verso na

    primeira linha do primeiro captulo: A escurido ampla e envolvente. (p. 7), o qual repetido na

    ltima linha do primeiro ciclo: A escurido ampla e envolvente. (p. 14).

    Na segunda estao, Jesus carrega a cruz s costas. No segundo ciclo do romance, o

    narrador vai mostrando os movimentos da personagem: A princpio ficou de p [...] Mas tinha que

    voltar ao cho, de qualquer maneira, ou suas ltimas foras se desvaneceriam. (p. 14) Os

    movimentos da personagem vo mostrando, portanto, a dificuldade do percurso: experimentou ficar

    de joelhos (p. 14). A atmosfera do ambiente do segundo ciclo denota ainda a presena farisaica,

    atravs da parede caiada (p. 20) do cenrio que vai sendo composto pelo narrador.

    Na terceira estao, Jesus cai pela primeira vez. Nesse ciclo, o narrador vai materializando o

    conceito da Paixo ao mostrar o peso da cruz e o esforo que Jesus teve de fazer para tentar ajeit-la

    em seus ombros: Agora j sabia como se sentar primeiro, para depois se debruar lentamente sobre

    um dos ombros. (p. 21). O estado de letargia da personagem marca o cansao de Jesus, o semi-sono

    no o levava ao descanso. (p. 21)

    Na quarta estao, Jesus encontra sua me. No quarto ciclo, pergunta o protagonista: --

    onde ter ficado a mulher que minha me? (p. 30) E ele questiona o fato de no ter podido gritar

    por ela ou por nenhum nome querido: Por qu? (p. 30) Nesse quarto cliclo, a personagem se

    depara com sua me, de fato, e tanto consegue v-la que o narrador lhe d uma voz para expressar

    esse encontro, como se ambos estivessem de frente um ao outro: Me! E ele lana ento o

    seguinte nome prprio, que tambm um adjetivo: Dulce! (p. 34).

    Na quinta estao, Simo Cirineu ajuda a Jesus. No quinto ciclo do romance, Jesus

    delineado no protagonista com esses caracteres: domesticado e cordeiro (p. 38). E o modo que o

    narrador decide mostrar que Jesus no conseguia mais carregar a cruz, atravs da descrena

    materializada nas descries cticas que permeiam o discurso: A abboda azul no passava de uma

    cpula de mentira (p. 41-42) A luz do sol no existia, o cu era artificial (p. 42). Aquele azul

    profundo doa nos olhos, no havia estrelas, no havia nuvens, e a luz no vinha de um determinado

    ponto. (p. 43) Definitivamente, o narrador trata de mostrar que no houve um cu verdadeiro na

    mente de Jesus, no momento em que ele tibubeou ao carregar a cruz.

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    O ceticismo instaurado no discurso tende a promover uma reflexo crist, pois quem no

    cr, no consegue suportar o peso de uma cruz. A descrena enfatiza, portanto, no a fraqueza fsica

    de Jesus, que evidente na personagem desde o primeiro ciclo, mas sim a sua perturbao mental,

    pois na condio de humano Jesus tambm se sentiu abandonado, a ponto de desacreditar que Deus

    estivesse ao seu lado, conforme seu ltimo suspiro na cruz, tambm materializado nesse quinto ciclo

    da narrativa: Deus, meus Deus. (p. 45) Mas ao invs de clamar por que me abandonaste? (Mt 27,

    46), a expresso soa aqui como um blsamo, visto que no romance o grito que representa a

    esperana (p. 45) no teria vindo do homem, mas sim das pessoas que o ajudaram, motivando-o a

    seguir em frente. Aqui, podemos inferir a ajuda que Jesus teria recebido de Simo Cirineu no seu

    percurso.

    Que fique claro, porm, que um esteta no quer apenas materializar conceitos, mas tambm

    abstrai-los. Afinal, j havia explicado o narrador, logo na segunda pgina do romance, em uma

    mensagem subliminarmente metalingustica, que os dados substanciais e concretos tambm podem

    formar uma abstrao, um enigma. (p. 8) Simo Cirineu est, portanto, abstrado nesse quinto

    ciclo, mas ao mesmo tempo seu gesto motivador est presente, com muita fora, nos gritos dos

    homens que tinham esperana. (p. 42) At porqu: S aqueles nomes gritados eram concretos.

    (p. 46)

    Na sexta estao, Vernica limpa o rosto de Jesus. No sexto ciclo, a imagem feminina se

    intensifica na mente do narrador, como numa espcie de devaneio, ento a imagem confortante de

    sua me (p. 47) e a sensao de ternura que envolve o nome Dulce (p. 47) vo formando a

    imagem de uma menina de tranas correndo em sua direo. [...] Sorria para aquela meninazinha de

    tranas, o vestidinho pobre, a voz cristalina. Dulce, olhe o vento derruba as rvores. No faz

    mal, Deus conserta. (p. 47). A menina que surge nessa instncia da narrativa representa a imagem

    de Vernica. Ela era o seu apelo, o seu grito de amor. [...] Ele encontrara algum que era parte da

    unidade que agora o equilibrava. (p. 47) O rosto de Jesus, proposto por essa sexta estao da Via

    Sacra tambm materializado no sexto ciclo, que muito enfatiza a imagem da figura feminina e a

    compreenso da palavra Deus:

    E levantou o rosto, para o alto, no para aquele cu azul e inatingvel do ptio

    aquele cu artificial levantou o rosto para o alto muito mais alm, muito mais distante daquela escurido que o envolvia, e pensou na palavra que h pouco o enlaara e dera certa significao ao grito dos homens, aos seus

    apelos: Deus. (p. 51)

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    Na stima estao, Jesus cai pela segunda vez. No stimo ciclo do romance, a personagem

    est de joelhos (p. 62), no de p, e o narrador salienta a sua condio de animal domstico, feito

    um co. S lhe faltava a coleira e o rabo. (p. 62) A queda marcada, neste stimo ciclo, pelo sono

    plpebras pesadas (p. 66) pela queda da memria, ausncia de lembranas, e o declnio da

    noo de tempo (p. 63). A personagem no consegue compreender, nesse ponto de sua vida, por

    que se encontra em tal condio e sem foras para se levantar: De p, seu cachorro. E outra voz:

    Co leproso. (p. 66) Definitivamente, o rosto da personagem no agora o mesmo do ciclo

    anterior: Recebeu um tapa no rosto (p. 67)

    Na oitava estao da Via Sacra, Jesus encontra as mulheres de Jerusalm. No oitavo ciclo

    do romance, a personagem tenta compreender os hiatos de sua memria (p. 70) para fugir da

    escurido em que se encontra, de modo que o momento de equilbrio que havia sido atingido na

    sexta estao, pela figura concreta da mulher, aparece agora apenas pela tentativa de resgatar a

    prpria memria: tentava encontrar o equilbrio, a harmonia (p. 71) Sua esperana assume ento

    um novo significado. Uma nova palavra e um novo conceito para o ressurgimento, a ressurreio, a

    passividade. (p. 71)

    Na nona estao, ocorre a terceira queda de Jesus. No nono ciclo do romance, os

    movimentos de Cristo vo sendo intensificados na personagem: Ficou de p (p. 77) e depois se

    sentou no cho. (p. 77) Nota-se que o caminho nunca termina, pois a personagem est sempre em

    contnuo movimento: Caminhou lentamente em linha reta (p. 77), aqui, o narrador procura mostrar

    seu estado de esgotamento total: No podia dormir. [...] No posso dormir agora (p. 77). A nona

    estao da Via Crucis enfatizada, sobretudo, pelo movimento da repetio, j que no a primeira

    nem a segunda vez que Jesus cai, mas a terceira: Tudo se repetia, e era a esta repetio que tinha

    que se apegar, para poder melhor arrumar os pensamentos (p. 77) A personagem, exausta, vai

    seguindo ento conforme reza a cartilha do narrador: E assim foi caminhando (p. 78), sem parar.

    E caminhou, caminhou [...] e depois caminharia e caminharia (p. 80) [...] Caminhou e ajoelhou-

    se. (p. 81) Mas poderia esperar sem dormir, sem se abstrair, por tanto tempo? (p. 83) O narrador

    insiste na caminhada: Tentaria mais uma vez caminhar (p. 83). Nesse nono ciclo do romance, a

    personagem j est em estado de completa embriaguez. E explica o narrador: A embriaguez

    tambm uma tortura. (p. 84)

    A embriaguez da personagem tanta que no pode ser descrita em poucas palavras, de

    modo que, em uma perspectiva literria voltada para a esttica da recepo, a prpria narrativa do

    nono ciclo desdobrada em extensas pginas que ampliam as reflexes do captulo referente ao

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    estado de aprisionamento da personagem, para expressar o sacrifcio que ocorre na nona estao da

    Via Crucis. Essa intensidade de descries da misria e da escassez de foras do protagonista, que

    nos impe o narrador, no uma verborragia e sim a materializao da conscincia instaurada na

    obra; no a da personagem, mas a do prprio autor-implcito, preocupado em oferecer ao leitor, por

    intermdio do narrador, a oportunidade de refletir, dialogicamente, sobre as diversas quedas do

    homem em sua prpria condio humana.

    Na dcima estao, Jesus despojado de suas vestes. No dcimo ciclo do romance, a

    personagem continua caminhando: Caminhou em linha reta [...] teve uma reao de desnimo. (p.

    89). O autor vai ento semeando ndices no discurso, que representam a caminhada: O caminho

    poderia ser dolorido e mortal. (p. 90) O despojar das vestes da personagem vai acontecendo aos

    poucos: Onde est o meu passado? (p. 93) O caminho rduo e o fardo sobre os seus ombros

    evidente: Arrastava-se de lado, sobre o ombro direito no tivera vontade ou fora para caminhar.

    Ou estaria mais fraco ou mais sem esperana? (p. 94) Os movimentos da personagem explicitam o

    seu incmodo: Ajeitou-se e sentou. E foi engatinhando (p. 94). Mais adiante, o autor materializa,

    nitidamente, a dcima estao: Hoje tero roupa nova. - Ningum pode gritar. Os farrapos

    foram arrancados de seu corpo. (p. 98)

    No satisfeito com a imagem que j expressa com preciso absoluta a dcima estao da

    Via Crucis, o autor se empenha um pouco mais para mostrar que no era apenas do traje que a

    personagem ia sendo despojada, mas tambm do prprio corpo, a caminho da morte. Surge ento a

    imagem do barbeiro. O barbeiro e o carrasco (p. 99), que tratam de lhe desfigurar as feies. Os

    cabelos foram caindo nos ombros (p. 99), na inteno de que a personagem perdesse tambm a sua

    identidade, tal como os carrascos trataram de fazer com Jesus, dando a ele uma aparncia que no

    correspondia sua verdadeira personalidade: uma coroa de espinhos e um manto escarlate, que

    deturpavam a sua imagem real e em nada condiziam com a nobreza e a imagem de um verdadeiro

    rei. O manto, ao contrrio, era um signo de humilhao para as vtimas da poca, um rtulo de

    condenao. Os guardas foram jogando sobre seus ombros a roupa nova [...] um bluso de pano

    mais fino. (p. 99)

    Na dcima primeira estao da Via Crucis, Jesus pregado na cruz. No dcimo primeiro

    ciclo do romance, a personagem podia sentir o corpo em sua unidade frgil (p. 108). A imagem da

    pregao de Cristo na cruz to evidente e torturante, nesse ciclo, que o autor decidiu mant-la de

    olhos fechados para o impacto ser menor (p. 114) possvel, inclusive, ouvir as marteladas dos

    pregos: um, dois, um, dois, um dois (p. 114) Podemos pensar ainda no vinagre oferecido a Jesus,

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    no alto da cruz, nesse dcimo primeiro ciclo que materializa o seu algoz na personagem do romance:

    agora no bebia quando os guardas mandavam. (p. 115) Nesse bloco, surge ainda a imagem de um

    homem sangrando nos pulsos (p. 116). A cena da crucificao vai se tornando ento ainda mais

    ntida, o narrador mostra uma me em sua angstia (p. 113). Haviam feito um crculo em torno do

    homem que se imolava. (p. 116) E, finalmente, o autor trata de materializar o grito de Jesus, na

    personagem, no final desse ciclo: seu grito de sacrifcio ficara sem resposta, perdido no ar, em meio

    aquela luz sem vida. (p. 117) Imagem essa que vai criando a atmosfera da prxima estao.

    Na dcima segunda estao, Jesus morre na cruz. No dcimo ciclo do romance, o autor-

    implcito est preocupado em materializar o temporal que cai aps a morte de Cristo: E ento

    pensou que se no chovesse nas prximas horas ou nos prximos dias, a sua fonte secaria (p. 121).

    O narrador est convicto de que um temporal necessrio: Deve voltar a chover, deve voltar. Uma

    enxurrada boa e sem limite. (p. 121) Os pingos de chuva comeam ento a descer em forma de

    lgrimas, at trovejarem os rudos do pranto pela perda dolorosa: A princpio as lgrimas desceram

    suavemente pelas faces. Mas em seguida se entregou aos soluos. (p. 124) A imagem da morte se

    concretiza: O sangue que redime. O esvair dos pulsos. O fim. (p. 125)

    Na dcima terceira estao, Jesus est morto nos braos de sua me. No dcimo terceiro

    ciclo, o narrador diz que a palavra Deus, assim como a palavra Me ambos expressos em itlico

    j se apresentavam personagem em moldura mais definida, mais ntida. O homem acreditava

    nelas como um apoio maior, um consolo benfazejo para o que no compreendia em sua priso. (p.

    132) Nesse ciclo, a vida de Jesus aparece redimida nas guas, na prpria fonte de inspirao do

    autor-implcito:

    Est chovendo, est chovendo, sinto nos ossos a natureza est alegre e verdejante, os pssaros voltam aos ninhos, o milho ficar maduro, os rios correro com mais fora, a vida estar redimida de seu mistrio. Minha fonte

    dgua. (p. 137)

    Na dcima quarta estao, Jesus enterrado. O ptio est limpo, sem sangue, sem tortura

    (p. 165) e um grande lenol manchado (p.180) alude ao Santo Sudrio. No dcimo ciclo do

    romance, o protagonista se imola, voluntariamente, tal qual o Cristo. E, ao contrrio de todos os

    outros ciclos anteriores, que contam com a cela, o ptio e o grito, essa ltima instncia da obra

    materializa a mudez, sem a etapa do grito, como se o prprio autor-implcito estivesse prestando sua

    ltima homenagem personagem, atravs de seu silncio absoluto. Mas o silncio em literatura

    nunca uma mudez sem voz, e sim a expresso da poesia. Para Barthes (2003, p. 15) escrever

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    implica calar-se, escrever , de certo modo, fazer-se silencioso como um morto.

    Na esfera da metalinguagem, o autor-implcito parece ter compreendido o gesto do prprio

    Cristo, ao fundir sua voz com a do narrador e da personagem: olhe, estou aqui e sou um homem.

    Passei por aqui e esta a minha marca, o meu trao, a minha palavra, a mensagem do meu ser. (p.

    156) E a solidariedade mensagem crist tanta que a trilogia se torna mais explcita: autor,

    narrador e protagonista se fundem no seguinte tributo ao Cristo: estava ali para provar alguma coisa

    que o homem no uma paixo intil, por exemplo. (p. 168)

    Os ratos no prisma da fico e da realidade

    A um rato estruturalista, nada impossvel.

    Jean-Franois Revel

    Jean-Franois Revel, filsofo marxista, ironizou os esforos da semiologia mediante o

    seguinte silogismo, observado por Franois Dosse (2007, p. 290): o rato ri o queijo, ora, rato um

    disslabo, logo, o disslabo ri o queijo. Se a ironia nos faz rir, pior o sarcasmo de Sartre (1999, p.

    24), em sua obra Que a literatura?, publicada em 1947. Pondera o filsofo: preciso lembrar que

    a maioria dos crticos so homens que no tiveram muita sorte na vida, e que quando j estavam

    beira do desespero, encontraram um lugarzinho tranquilo como guardas de cemitrio.

    O humor de Sartre, a princpio, poderia ser um honroso elogio aos imortais que persistiram

    no caminho da literatura, mas quem conhece seus desafetos com a semitica sabe que o rano contra

    o estruturalismo e/ou o formalismo tambm permeiam as entrelinhas de seus discursos e at mesmo

    de sua literatura. Em seu conto O muro, por exemplo - com o qual Assis Brasil estabelece um

    dilogo , Sartre (1987) banaliza no apenas a profisso dos coveiros, como a prpria morte, para

    mostrar o quo intil a vida, fugaz, irnica e sem sentido.

    Sem dvida, Assis Brasil tambm rebaixa a condio existencial em sua obra Os que bebem

    como os ces, porm, no com o intuito de futiliz-la, ao contrrio, pois sua finalidade especfica

    despertar no leitor a conscincia sobre a brevidade da vida, inerente condio de todos os seres

    humanos, indefinidamente. De modo que essa conscincia o leve ao desapego do mundo e

    valorizao da ascese.

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    No conto O muro, tambm h um prisioneiro, Pablo Ibbieta, entretanto, ele est em uma

    sala branca e no na escurido, como est Jeremias, o protagonista do romance Os que bebem como

    os ces. A cela de Ibbieta um poro de hospital, onde os oficiais gritam, s vezes, durante uma

    hora (p. 11). Na cela de Jeremias s existe o silncio total (p. 7) da omisso dos guardas, bem

    como o de sua prpria ascese. Na cela de Ibbieta, a luz do dia entrava por um buraco redondo que

    tinham aberto no teto, esquerda, por onde se via o cu. (p. 12) Nesse buraco, chegava inclusive a

    chover, do mesmo modo como Jeremias tambm se depara com uma fonte (p. 127) artificial,

    esttica, a partir de sua cela. Entretanto, essa imagem criada por Sartre nada ostenta em termos

    metafsicos, apenas sociais esquerda (p. 12) , ou cientficos, pois, de acordo com Cohen

    (2004), o movimento naturalista-cientificista do final do sculo XIX foi refletido at no teatro, uma

    das paixes de Sartre. Este teatro:

    se propunha a observar e interpretar o mundo a partir da viso dos telescpios e microscpios. A idia, para o teatro, que o espectador observe a cena como

    se estivesse acompanhando, por um buraco de fechadura, um instante da vida. a proposio, em ltima anlise, de um teatro voyeur. (COHEN, 2004, p. 124)

    Podemos inferir, portanto, que a especulao que aparece no conto de Sartre ,

    deverasmente, um louvor ao cientificismo. O cu estava lindo. Nenhuma luz se insinuava nesse

    canto sombrio, e bastava levantar a cabea para avistar a Ursa Maior. (p. 18). A luz qual se refere

    Sartre a mesma que foi projetada no teto, por Pedro, que o iluminou com um lampio de luz fraca.

    A ironia do filsofo ao cu cristo remete luz da caverna de Plato, alegoria que retomaremos mais

    adiante. E esse belo cu sem luz, descrito por Ibbieta, rechaado, intertextualmente, pelo narrador

    do romance Os que bebem como os ces: falso ar de liberdade, um cu sem estrelas e sem pssaros

    (p. 63), pequenas estrelas longnquas [...] aquelas estrelas eram mentira, a vida ali no passava de

    uma farsa (p. 75), pois, na ascese de Jeremias, a verdade tem uma conotao epifnica que

    ultrapassa as lentes objetivas de um telescpio.

    Outro fato interessante, no conto O muro, a chacota que o narrador faz com um rato que

    aparece na cela: Um rato correu perto de nossos ps, o que me divertiu. (p. 31) Pergunta: Viu o

    rato? (p. 31) O narrador ento se esbalda: Eu tinha vontade de rir e me controlava porque se

    comeasse no pararia mais. (p. 31) Esse rato no , necessariamente, o mesmo do silogismo de

    Revel, mas se considerarmos o desprezo que Sartre d ao estruturalismo da semitica, o rato poderia

    ser o mesmo, haja visto que at Barthes observou a falta de afinidade de Sartre com a arte, em sua

    obra Que Literatura? Barthes (2003, p. 28) afirma que o filsofo responde questo no plano

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    externo, o que no lhe permite uma exatido acerca do conceito. De fato, nesta obra, o olhar de

    Sartre muito mais historicista do que formalista, com algumas ressalvas, no que diz respeito

    esttica da recepo.

    Assis Brasil, que um notvel discpulo do Concretismo, em contrapartida, trata de

    estruturar o rato de poro de Sartre, fazendo com que no seu romance ele ganhe uma dimenso

    dialgica muito mais ampla do que as articulaes do filsofo. O rato de Os que bebem como os ces

    um disslabo que no ri o queijo, mas , por certo, um rato estruturalista, tanto que at ri uma

    parede de concreto para provar que nada lhe impossvel, inclusive, beber veneno e continuar vivo.

    A praxe da famlia crist em oposio ao utilitarismo dos ratos

    Entrai pela porta estreita.

    Jesus (Mt 7, 13)

    Na estrutura do romance Os que bebem como os ces, existem duas famlias em planos

    opostos: a utpica3 e a utilitarista

    4; a divina e a humana; a libertadora e a opressora; a idealista e a

    materialista; a cooperativista e a capitalista; a verdadeira e a falsa. Pode-se dizer, que a famlia uma

    clula da sociedade, essencial literatura. Barthes (2004b), que recusou o ttulo de marxista e deixou

    de ser o sartreano que havia sido no ps-guerra, para melhor se engajar na estrutura, afirma:

    A literatura est impregnada de socialidade. Seus materiais lhe vm

    essencialmente da sociedade, da histria da sociedade. inconcebvel escrever

    o menor texto sem que, de certo modo, a histria no passe para esse texto e,

    evidentemente, a sociedade com suas divises, seus conflitos, seus problemas.

    Mas sempre se tem a mediao da forma, fazendo com que a obra literria

    nunca seja um reflexo puro e simples da sociedade. [...] o estudo dessa

    espcie de ambiguidade, de presena-ausncia da sociedade na literatura, que

    constitui o campo por excelncia da atividade literria. (2004b, p. 214)

    Podemos afirmar, com Barthes (2004b, p. 214), que no se pode analisar uma obra literria

    em termos puros de reflexo, pois a obra tambm visa criar a sua prpria beleza e no apenas

    espelhar o belo. Nesse sentido, a arte utpica, deseja o impossvel, pois se sabe que o escritor nada

    3 Segundo Berrine (1987, p. 11), a palavra utopia perdeu o seu significado original, pautado em Thomas More, e passou a

    ser um termo comum, de uso corrente, entendido como a denominao dada comunidade ideal, na qual as pessoas vivem em harmonia e em condies perfeitas. 4 O utilitarismo pode ser entendido aqui como uma vertente hedonista.

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    cria e a ele resta somente uma atividade de variao e de combinao: nunca h criadores, apenas

    combinadores (BARTHES, 2003, p. 20). Por outro lado, a literatura sempre um reflexo sobre a

    sociedade. Uma reflexo muitas vezes crtica (BARTHES, 2004b, p. 215), o que abre, portanto,

    uma lacuna para que o esteta expresse sua criao como viso de mundo.

    Para enfatizar duas faces da figura feminina, que podem existir em uma sociedade, Jeremias

    pronuncia o nome Matilde, em dois versos poticos: Matilde! [...] Matilde! (p. 57) A

    figura feminina tem aqui dois desdobramentos, o primeiro expressa a imagem de uma me terna e

    genorosa, criada pelo prprio poeta; a segunda reflete sua anttese: uma personagem feminina de

    Stendhal (1998, p. 266) que se chama Mathilde, com H, e tem um ar rspido, altivo e quase

    masculino. Um me ftil e burguesa da sociedade francesa, equiparada por Julien, protagonista de

    Stendhal, a uma: boneca loira (p. 352), biotipo clssico do romantismo do sculo XIX, a mesma

    que elogiada pela feminista5 Simone de Beauvoir (1987, p. 299) o Castor roedor de Sartre ,

    por desprezar a sociedade que a cerca e querer distinguir-se dela.

    Os valores dessa sociedade aristocrtica de Stenthal (1998) merecem, de fato, ser criticados

    sobretudo, pelos padres de riqueza que favorecem a poucos. Por outro lado, o desprezo

    religiosidade crist, atravs dos caracteres de padres jesutas rebaixados tolice (p. 530), ou de

    personagens femininas crists desvalorizadas como religiosamente hipcritas ou ignorantes - haja

    visto os caracteres vulgares dados Madame Rnal , fazem com que a religiosidade de O

    Vermelho e o Negro se torne, de certo modo, uma reles caricatura que tende a destruir a dignidade do

    signo cristo, desembocando-se, por fim, no cinismo. Crtica essa com a qual Assis Brasil procura

    romper no romance Os que bebem como os ces, pois ainda que esse esteta abra, igualmente, um

    espao para esgarar a inconsistncia das mscaras (p. 140) da sociedade do sculo XX, presa aos

    esteretipos de poder e ostentao social do sculo XIX, a religiosidade crist de Os que bebem

    como ces slida, concreta, e sincronicamente latente, desde as primeiras at a ltima pgina do

    romance.

    Conforme Jeremias vai resgatando sua memria, gradativamente, tem sua me equiparada

    esperana (p. 129). Mas, ao contrrio da Mathilde de Stendhal, a Matilde de Assis Brasil no

    despreza os valores tradicionais da famlia. Tanto no os despreza que o narrador procura resgat-los

    e devolve a identidade do protagonista, justamente, na mesma instncia em que ele consegue gritar

    5 Simone de Beauvoir, de codinome Castor, quem Sartre devotou muitas obras, teve uma viso de mundo que

    contribuiu para melhorar a condio da mulher no sculo XX, em alguns aspectos. Contudo, o fato de ter tolerado a

    prtica poligmico-sexista de Sartre coloca, hoje, o seu feminismo na berlinda.

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    pela me: Mame! [...] e sua me se chamava Matilde, seu nome... seu prprio nome era

    Jeremias (p. 129) um nome proftico que analisaremos mais adiante. O narrador insiste na

    importncia do resgate da memria: Pensou em sua me [...] se lembrara dela com maior nitidez, se

    lembrara de sua mulher. (p. 135) Assim, imediatamente, ao recolher seu passado, ele passa a

    lembrar de si mesmo: Meu nome Jeremias (p. 135).

    O filsofo Bobbio (apud BRANDO, 2008, p. 12), na obra O tempo da memria, afirma

    que: somos aquilo que pensamos, amamos, realizamos, [...] somos aquilo que lembramos. A

    lembrana de Jeremias, portanto, materializada no ba de sua me, contm toda a histria da

    famlia (p. 157), uma histria que ele no descarta e revive pela nostalgia: queria ver l dentro, nos

    guardados as relquias, as coisas velhas e novas, as fotografias, as geraes que se sucediam (p.

    157). Esse ba remonta ao Reino dos Cus do Cristianismo (cf. MT 13, 52), isto : todo escriba

    instrudo nas coisas do Reino dos Cus comparado a um pai de famlia que tira de seu tesouro

    coisas novas e velhas.

    Jeremias se lamenta, estimulado pela memria, pondera o narrador: onde estava a sua

    menina de tranas? [...] Onde estava o rosto bom de sua me? Queria tanto voltar a v-la. (p. 173)

    Mas o seu lamento no um choramingo masculino e sim a mais singela homenagem figura

    feminina: tenho uma mulher e uma filha, minha me ainda est viva (p. 173) A menina de tranas,

    alm de remeter inocncia de Rapunzel, personagem dos contos de fadas dos irmos Grimm,

    representa tambm Santa Cacilda (p. 165), uma princesa Moura que, segundo a tradio, teria

    renegado a luxuosidade dos castelos ao se converter ao Cristianismo, e sua principal caracterstica

    so as visitas s cadeias, para levar alimento aos prisioneiros. Essas imagens femininas vo sendo

    ento equiparadas s flores, e ele vai tecendo, simultaneamente, a beleza que existe na simplicidade e

    na rotina do lar, concretizadas na prpria narrativa, pois Jeremias repete vrias vezes as histrias da

    famlia, agora, mais vivas em sua lembrana: todo dia saio de casa pela manh e vou para a escola

    [...] no tenho carro, pego o nibus [...] a casa em que moramos alugada, tem um jardim onde

    cultivo flores, hortncias, margaridas (p. 173), finalmente surge a imagem da fartura, materializada

    nas rvores: tem um quintal cheio de mangueiras (p. 173).

    As flores de Assis Brasil so tambm uma anttese ao jardim do Palcio de La Mole, de

    Stendhal (1998), e de sua sdica rainha Margarida, que ousou pedir ao carrasco a cabea de seu

    amante (p. 323); tal qual a aristocrtica Mathilde-Marguerite detm a cabea decapitada de Julien, o

    filho de carpinteiro, como vingana.

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    Em uma lgica poundiana de condensao potica, todas as mulheres queridas da lembrana

    de Jeremias se tornam uma s na figura de Tudinha: a criana, a filha que est crescendo e que gosta

    de fazer bolo para mostrar que j uma mocinha; a me Matilde, costureira, Tide, para os amigos,

    para o fillho (p. 107); e tambm a esposa. Tudinha, minha mulher, minha me, estou escrevendo

    um livro (p. 174). Jeremias resgata, por fim, toda a sua memria: sou um professor de literatura

    (p. 173).

    A imagem singela do lar que o narrador cria junto de Jeremias, expressa a tradicionalidade

    de uma famlia de classe mdia da era contempornea. Contudo, essa famlia no perfeita, pois

    dentro do ba da me de Jeremias existem signos que denunciam a imperfeio, mas a famlia, que

    um signo cristo por excelncia, no corrompida, visto que os indcios de imprecauo que h no

    ba cheiro de pequeninos ratos (p. 157) so insignificantes diante da riqueza e da pureza que

    existem na tradicionalidade de um lar repleto de amor e ternura, um lar que rico em sabedoria e que

    no precisa carregar nenhum cifro da burguesia para ostentar a sua fartura. Ao contrrio, pois o

    cenrio que compe as lembranas de Jeremias no conta nem mesmo com a propriedade privada, a

    qual foi to questionada por Simone de Beauvoir (1987, p. 80): A propriedade privada aparece: [...]

    o homem torna-se proprietrio da mulher. Nisso consiste a grande derrota do sexo feminino. O que

    no equivale a dizer que haja aqui um protesto contra a propriedade privada, mas uma outra face da

    vida crist: o desapego, aquele pouco que com Deus muito.

    A boneca de Sthendal tambm surge no ba da famlia de Jeremias: uma boneca de loua e

    de olhos muito azuis (p. 157), entretanto, ela no representa, exclusivamente, as diversas mulheres

    de suas lembranas, visto que essas so simples, meigas, de certo modo pobrezinhas delineadas

    pelo signo do estudo ou do trabalho e no ostentam o luxo ou a futilidade da Mathilde da

    sociedade francesa. Ao contrrio, elas so ativas e no ficam descansando em uma velha rede (p.

    158), conforme o signo de alienao do sculo XIX, que aparece no ba da famlia. A rede pode

    significar tambm um instrumento de pesca que representa o prprio Cristianismo e o ato de ensinar

    e captar discpulos, a exemplo da atividade de Jeremias, que tem a autonomia de um mestre. Tudinha

    tambm gosta de agir por si mesma e o autor at a retrata brigando na escola, para espelhar a

    personalidade forte do pai, um pensador inteligente que vive a agitar os aprendizes: o homem no

    uma paixo intil (p. 168). Tudinha ostenta ainda um carisma pela tradio de seus antepassados.

    Assim, as mais ternas lembranas vo povoando a narrativa e a memria de Jeremias, com

    objetos, vozes e imagens familiares de pessoas queridas e inocentes, do passado e do presente, como

    se fosse uma tentativa de resgatar os bons valores e a beleza da tradio de todas as geraes

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    anteriores.

    A boneca da vov esta quebrada, minha filha, eu quero mesmo assim, pai. [...]

    Olhou mais fundo no ba: roupas velhas, rendas, o cheiro antigo [...] Traga a

    boneca, pai. [...] Ela est quebrada, filha. [...] bonita como a vov. [...] A boneca da vov, pai. (p. 158-159)

    possvel at que esses valores j tenham sido resgatados, uma vez que os signos que

    poderiam representar a corrupo no aparecem no ba em sua plenitude, mas quebrados,

    desvigorados para romper com as imagens clssicas que a relembram , bem como esto

    fundidos nas imagens de pessoas queridas. Os cabelos da mame (p. 158), cortados pelo pai,

    podem tanto representar um gesto de carinho, de um esposo que at corta os cabelos da amada e os

    guarda como lembrana, num ba; como podem representar ainda um gesto oposto violncia de

    Nero, para com as mulheres de seu tempo, contexto que discutiremos mais adiante.

    Assim, o esteta vai tecendo a beleza da escritura, com a ajuda dos discursos e dos caracteres

    das personagens sem esquecer da mquina de costura (p.107) da querida me Matilde, que

    detm o tecido6, o passado que vinha em retalhos (p. 163), ou a tecitura de uma obra em

    fragmentos. Uma me que tem tambm a face crist de Maria, me de Jesus, conforme analisaremos

    na parte final deste artigo.

    Neste ba, porm, o tradicionalismo no monolgico, pois nele no consta apenas a

    memria da famlia do protagonita, mas a de muitas geraes passadas. H, inclusive, um signo do

    prprio livro de Stendhal - a cor vermelha (p. 158) , um vermelho que pode ser tanto um

    elogio ao escritor, por sua engenhosidade acadmica e socialista em dar cassetadas na

    superficialidade dos valores ditatoriais, como tambm uma crtica ferrenha sua violncia contra o

    signo cristo, rebaixado em O Vermelho e o Negro, pois o ba contava com uma cor vermelha sem

    Vida:

    um cartucho de papel desenrolou o que poderia ser um diploma lembrava-se: eu me formei ou ganhei alguma coisa [...] as palavras embaralhadas desenrolou o cartucho, um canudo comprido como um cassetete as palavras embaralhadas, mas lhes podia sentir a cor vermelha, j um vermelho que perdera o ardor da vida. [...] Um simples diploma, antigo como os guardados do ba, no era o bastante para saciar a procura, o sentido

    da busca. (p. 158)

    A cor negra resplandece ento no ba, em um lbum que espelha a famlia, para contradizer

    6 Tecido, para Barthes (2004, p. 261), quer dizer, etmologicamente texto, logo, ele , na obra, o que suscita a garantia

    da coisa escrita.

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    a escurido do Negro de Stendhal. A imagem potica descrita por Jeremias remete marchinha

    Mscara Negra7: Quanto riso! Oh! quanta alegria! [...] Eu sou aquele Pierr / Que te abraou e te

    beijou, meu amor. / Na mesma mscara negra / Que esconde o teu rosto / Eu quero matar a saudade.

    O protagonista se senta, e nas lembranas do seu caminhar aparece o signo da cruz: cruzou as

    pernas (p. 160). Perplexo em sua nostalgia, como um Arlequim que chora pelo amor da Colombina,

    alegrou-se ao ver as primeiras fotos (p. 160) e at babou sobre elas: Deixou cair um pouco de

    saliva no queixo, para que as pginas do lbum aderissem melhor. (p. 160) Ocorre ento o resgate

    do romantismo, sob a imagem de um casal imaculado:

    Duas crianas, um menino de calas curtas, a menina de tranas que j

    conhecia nos braos a boneca de olhos azuis: as duas como dois anjos de um sonho. O menino estava fantasiado, qualquer coisa parecida com pierr ou

    palhao seu rostinho lhe era familiar, como se fosse o seu prprio rosto. (p. 160)

    O palhao um signo recorrente ao romantismo8, mas lanado tambm para causar

    confuso e intensificar a ambiguidade, pois a nostalgia da personagem no se refere ao palhao como

    tolo ou bobo da corte, e sim a uma beleza pueril que flui para a ternura do lar: a outra pgina, a

    outra pgina: ali estava sua me, sua mulher Dulce, a mulher de voz serena. (p. 160) E, logo em

    seguida, surge a imagem da Mathilde de Stendhal, para complexificar e destruir o belo cenrio, pelo

    vis do erro e do engano: Matilde, o doce corao de me, os olhos aflitos, com um brilho de terror.

    Quem disse que corao de me no se engana? (p. 160)

    Esse contexto confuso e ambguo foi criado, propositalmente, para que nesse espao catico

    a literatura possa afirmar a literariedade e o esteta instaure a a sua crtica contra a lgica do erro, do

    engano ou do utilitarismo, que tendem a corromper as famlias e a sociedade. Eis a importncia do

    cheiro de rato num ba de famlia, a representar a criao metalingustica do autor: o ratinho

    seria a sua cobaia (p. 69).

    Por que o esteta teria escolhido um rato para denunciar a corrupo das famlias? A sua

    inteno poderia ser apenas concretizar o abstrato, o subjetivo (p. 96), mas o autor fez essa e

    muitas outras estranhas (p. 112) escolhas formais, que remetem ao prprio conceito de

    estranhamento dos formalistas russos, sobretudo, porque alm de irracional esse roedor fede e destri

    7 http://www.letras.com.br/ze-keti/mascara-negra 8 Z Kti, compositor da Mscara Negra, tambm autor da marchinha Amor de Carnaval, que remete a uma lua no cu

    smbolo do romantismo , entretanto, ela artificial como o cu artificial lamentado por Jeremias, pois ambos eu-lricos reconhecem a brevidade do romantismo dos sales.

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    quase tudo o que v pela frente, caractersticas essas que materializam a pequenez desse bicho

    escroto, que aparece at entre as pernas (p. 110) de Jeremias paralelisticamente relacionado a

    um bolo de fezes (p. 39) e no para desvalorizar a sexualidade de um casal, mas para mostrar

    como a sensualidade do prazer9 pode ser uma alegria ilusria se comparada ao utilitarismo dos ratos,

    que se cheiravam um ao outro, se catavam (p. 122).

    O cheiro dos ratos tambm aparece no ba da famlia, porque a liberdade um tema

    evidente na obra, questiona o narrador: o que era um pssaro? (p. 70). E ele procura sempre trazer

    luz a discusso sobre o que a capacidade de escolha. Um rato no plano do realismo, por sua vez,

    no escolhe sua prpria natureza, mas dela vtima, como se o mau e a vida imunda fossem o seu

    fado (p. 105). Ao contrrio, porm, de um ser humano racional e autoconsciente que tem a opo de

    lutar por sua dignidade, determinando o que quer, o que ou o que deixar de ser; escolhendo,

    enfim, o seu prprio destino de homem, de pai de famlia, de eremita, de asceta, de professor, de

    pensador celibatrio ou de poeta livre arbtrio esse que seria impossvel a um mamfero do esgoto

    ou da selva.

    A primeira caracterstica que o narrador d ao rato que surge na cela e que vive

    espreitando Jeremias a de um ser vivo (p. 64) pequeno que provavelmente mora em algum

    buraco escuro (p. 65), procurando as migalhas de seu alimento para sobreviver. (p. 65). O

    narrador associa a imagem do rato luta, como uma inferncia prpria luta de classes, de Marx, ou

    da luta pela sobrevivncia, que aparece na Origem das Espcies, de Darwin. vlido ponderar que

    a esperteza que caracteriza os ratos, no a inteligncia, e nesse ponto preciso que so caracterizados

    como sbios. Sua sabedoria vem tambm pelo faro: Pelo olfato, sim os bichos tm a natureza

    mais sbia do que o homem. (p. 95), afirma o narrador, sempre a refletir sobre a natureza de rato

    (p. 74), atrelada a um buraco, dentro de outro buraco. (p. 74)

    A figura da natureza, fortemente associada ao rato, surge nas descries do narrador com

    certo tom de ironia ao cientificismo: a natureza sbia. sbia e cruel. (p. 10) Mas a natureza

    tambm associada figura da me: a me natureza, cruel e sbia. (p. 22) Essa associao se d,

    pelo fato de que num momento de distrao o prisioneiro ficou confuso, tentando nomear o rato:

    Como chamar o ratinho? Me ou Deus? (p. 85) A princpio chamou-o de Deus, e at ficava

    9 O rato observado por Jeremias, que parece at usar pequenas botas (p. 161), um correlato ao rato de Barthes (2004, p. 260): experincias isolaram o centro de prazer do rato; pem-lhe l um eletrodo ligado a um pedal, e o rato pedala, pedala at o esgotamento, at morrer de prazer. A diferena entre os ratos de Assis Brasil e de Barhtes que os do primeiro, por serem utillitaristas ao extremo, nunca sentem arrependimento, o de Barthes, porm, tem no crebro um

    espao para a punio.

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    esperando suas visitas: Deus j ter voltado? (p. 89) De repente, ele se d conta de que o seu

    Deus, ali na cela, tambm era falso, irreal (p. 96), pois esse ratinho tinha uma companheira cuja

    natureza de rato tambm era: sem pretenses, sem ideais, sem apelos (p. 96) Assim, mediante a

    falta de idealismo nas personalidades dos ratos, o narrador resolve renome-los da seguinte maneira:

    Csar e Julieta (p. 96)

    Na concepo de Barhes:

    Ningum pode escrever sem tomar apaixonadamente partido [...] sobre tudo o

    que vai bem ou vai mal no mundo; as infelicidades e as felicidades humanas, o que elas despertam em ns, indignaes, julgamentos, aceitaes, sonhos,

    desejos, angstias, tudo isso a matria nica dos signos, mas esse poder que

    nos parece primeiramente inexprimvel [...] imediatamente apenas o nomeado. [...] a matria-prima da literatura no o inominvel, mas pelo

    contrrio o nomeado [...], toda tarefa da arte [...] retirar da lngua do mundo,

    que a pobre e poderosa lngua das paixes, uma outra fala, uma fala exata.

    (BARTHES, 2003, p. 22)

    O narrador explica porque os nomeou assim: O pequeno Csar talvez fosse um pequeno

    poderoso, um diminuto guerreiro em seu mundo, lder e senhor da guerra. (p. 97) Evidentemente

    que o guerreiro Csar da descrio tambm pode ser uma aluso ao imperador dos tempos de Jesus.

    Csar aparece ento como uma anttese de Cristo, pois ele apenas um mortal que carrega um cetro

    e uma coroa (p. 97), e no um homem utpico ou idealista. Julieta, por sua vez, uma anttese da

    menina que analisamos no sexto ciclo do romance, a considerar que a ratinha caracterizada como

    o suave equilbrio para os mpetos de Csar, tal como Vernica teria equilibrado Cristo em uma

    breve instncia de seu caminhar.

    Finalmente, o narrador acaba por repudiar a prpria comparao, pois tem conscincia de

    que no vale a pena correlacionar Deus com Csar ou Julieta, visto que no possvel equiparar

    coisas to nobres com coisas to mesquinhas (p. 97) Coisas, porque para um concretista tudo

    coisa, at mesmo a beleza e ou o mais sublime amor. Definitivamente, o termo Deus to sagrado

    para o narrador que no poderia ser aplicado qualquer coisa, sem que ele sasse diminudo. (p.

    106) Eis a insistente utopia da poesia, presente no discurso metalingustico do autor, que tem

    tambm o seu sacro papel de demiurgo.

    Csar e Julieta, em sua concepo histrica e literria, so personagens que podem

    representar uma anttese ao prprio amor de Cristo que doou sua vida humanidade em nome de

    uma causa salvacionista. O primeiro porque matava em nome do poder; a segunda, porque matou a si

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    mesma em nome de uma paixo mundana, egocntrica, sem nenhum propsito idealista ou altrusta

    como o apelo de Cristo.

    O modo de agir do casal de ratos tambm uma anttese s exortaes de Jesus: Entrai

    pela porta estreita (Mt 7, 13) visto que esses ratos seguiam na direo da porta grande (p. 97),

    sempre no mesmo rumo da porta grande (p. 112), de seu pequeno buraco redondo, bem-feito (p.

    121). A moradia dos ratos apresenta uma polaridade de Jeremias, cuja cela est atrelada a uma

    portinhola (p. 73). A vida utilitarista dos ratos evidente, visto que apesar de terem sua

    propriedade (p. 122) privada, eles roem tambm a parede (p. 122) alheia.

    Alm dessas caractersticas avarentas, aos ratos no interessava quem havia colocado o

    prato na cela ou se ele continha algum elemento venenoso que pudesse ser prejudicial integridade

    de suas vidas, at porque, a poro txica era para um homem e no para um rato (p. 81)

    irracional. Talvez o ratinho fosse imune (p. 82). Jeremias, ao contrrio, angustiava-se at por ver o

    prato dentro da cela: mentira, mentira, eu no estou vendo o prato. [...] mentira, mentira (p.

    123). Angustiava-se tanto, a ponto de acreditar at que o alimento estivesse envenenado.

    Aps ter projetado nos ratos a irracionalidade, em oposio ao homem, o narrador cai por si

    e reconhece que os ratos no eram simples autmatos irracionais, programados para a

    sobrevivncia, para a procriao (p. 162), pois voltariam cela de Jeremias, sempre e sempre, no

    apenas pela comida como pensara antes, mas voltariam pelo sentimento de liberdade. (p. 162).

    Afinal, os ratos tambm eram equiparados aos guardas Os pequenos soldados de chumbo (p.

    173) que escolheram impor sua presena, como um smbolo de poder, independentemente da

    opinio do prisioneiro, haja vista que at pulavam em sua sopa, e a presena deles era sempre

    marcada com a presena do prato (p. 133). O narrador questiona a postura utilitarista dos ratos e a

    falta de idealismo de suas famlias:

    Estavam dormindo em seu lar de ratos, assim como ele dormia na cela de um homem. Estariam sonhando? Como seria o sonho de um rato? (p. 173) os ratinhos davam pequenos pulos de alegria, integrados em seu universo.

    Sentiriam mesmo alegria? Talvez algo parecido com a alegria dos homens quando conseguem mais dinheiro, mais posio social, um nome maior

    pregado num letreiro. E todos numa cela gigante (p. 155) Quantos anos vive um rato? [...] Quantos anos vive um rato que se alimenta? (p. 179) Quais os

    seus problemas? Os problemas de um rato na cela? Comida, gua, ar, para sustentar sua pequenina natureza (p. 152) Estavam fartos e no pensavam em

    seu tmulo (p. 167)

    Jeremias atravessa o romance tentando compreender a natureza dos ratos:

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    olhou o cho de terra suja e se lembrou dos ratinhos [...]: agora eram dois os

    pequeninos animais. Um casal, que iria procriar e repetir a sua faina de ratos. Os filhotes nasceriam ali naquela cela ou em algum buraco mais escondido.

    (p.105) Os ratinhos haviam sumido. Eles tambm descansavam, dormiam, e

    deviam estar agora bem aconchegados sua famlia. Por que temos que ficar juntos, pai? Porque assim seremos mais fortes, seremos menos atingidos. (p. 169)

    As vozes das personagens se misturam com a autoconscincia do narrador, formando um

    discurso indireto livre. A polifonia transmite ento a idia de que os ratos so uma famlia unida.

    Entretanto, o que denuncia a falsidade dessa hiptese o esconderijo dos ratos, pois ali no h

    espao para a comunho, a unio em comunidade requisito bsico de toda famlia crist e o

    lugar no acessvel, mas uma caverna (p. 161) privada.

    Na alegoria de Plato, um grupo de prisioneiros tambm vive na escurido de uma caverna,

    em torno de uma fogueira imaginria (p. 112), no entanto, essa fogueira no uma iluso, pois

    projeta na parede uma luz com sombras que transmitem uma falsa idia de realidade. E como esses

    prisioneiros no tm conscincia para discernir, acabam procedendo como os ratos, pois no

    pensavam no sol nem nas flores que estavam l fora (p. 167). A fogueira um smbolo ambguo,

    mas se associa diretamente ao Inferno, no contexto do romance, pois os soldados equiparado aos

    ratos (p. 173) so equiparados tambm aos homens que de l vieram.

    As vozes soltas, no identificadas, junto das descries dos ratos, transmitem a idia de que

    eles so abertos ao dilogo, mas essa no a realidade de um roedor, pois seu habitat natural a

    selva e no a convivncia harmnica com seres humanos. Jeremias at se esforou para tentar um

    dilogo: De onde voc vem? [...] Como sabia que o prato estava aqui? (p. 95) Mas os ratos nada

    responderam, afinal, eram ratos. E ratos que podiam dar rasteira: Acordou e sentiu os ratinhos lhe

    puxando a parte da cala perto de seu p esquerdo. (p. 132) Os ratos no pensavam, apesar disso, ou

    precisamente por essa razo, viam Jeremias como um monstro (p.82) ou um concorrente desleal

    na refeio que recebiam (p. 132). Diria Darwin (2009, p.49): Por monstruosidade suponho que se

    entende alguma considervel anomalia de conformao, geralmente prejudicial ou intil para a

    espcie.

    Jeremias, alm de tentar compreend-los, via-os como companheiros de cela: uma prova de

    que o homem no vive sozinho, no pensa apenas em funo de si mesmo. (p. 84) A coletividade ,

    portanto, um signo de fraternidade crist que se ope ao individualismo. Um eco da voz

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    metalingustica do autor, tentando mostrar que a recluso do poeta, no silncio, no um ato

    utilitrio, individualista ou egosta, mas um gesto concreto de doao humanidade: O meu

    compromisso com o homem o canudo desdobrado e em exposio, assim como aquele mural

    talhado em sangue. O mural, tinha que termin-lo, ou avanar o trabalho coletivo. Estava ali para

    isso (p. 161), junto dos demais prisioneiros , como se estivessem todos de mos dadas

    trabalhando pela mesma causa: um imenso desenho (p. 182) no muro. Ou tentavam desenhar em

    sangue o rosto da prpria me, ou da mulher amada. (p. 153). O sangue , sobretudo, nesse contexto

    do romance, um signo do martrio cristo.

    Violncia e ascese como antinomias discursivas

    Aos cristos [...] inflingiram-se suplcios.

    (SUETNIO, 2009, p. 82)

    Claro est que o muro o objetivo do esteta que compe o livro, como um tributo s

    mulheres que tambm sangram para dar luz um filho. Sangue de um universo feminino que nem

    mesmo o narrador consegue compreender. Sangue de um ciclo: Uma vez por ms (p. 123). Um

    ms para a volta. Trinta dias. (p. 56). E muito sangue derramado nesse muro polissmico, que

    representa as cercanias de uma gruta onde nasce um Rei; a morte de um Filho em Jerusalm; a

    lamentao dos aflitos; a fronteira entre a vida e a morte; a ditadura e o fuzilamento; o mural de um

    artista ou a parede de isolamento que delimita o espao do poeta.

    E de sua cela metalingustica, povoada de signos, o narrador tambm vai desenhando com

    sangue a meta do protagonista, um mensageiro na cela, que resolve escolher o prprio destino (p.

    183) e segue em marcha feito um soldado rumo ao muro branco, onde gravaria, como os outros

    homens, a sua mensagem na pedra (p. 156), como um sinal de glria, atravs de sua tarefa

    inglria (p. 171) que na perspectiva dos cticos morrer para o mundo. A pedra representa a

    Igreja de Cristo, na pessoa de Cefas, nome advindo do aramaico, traduzido para o grego como

    Petros. [...] Pedro (que quer dizer rocha, pedra). (SABBAG, 2008, p. 339)

    Essa cela de Jeremias tampouco monolgica e apresenta trs vertentes: a da opresso do

    prisioneiro; a da libertao do filsofo ou do esteta; e a da santidade do asceta cristo a considerar

    que todos eles esto encerrados em seu reduto. O que os diferencia o livre-arbtrio, visto que os

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    ltimos esto encarcerados no mundo das idias, da racionalidade e/ou da religiosidade, ao contrrio

    do primeiro, que nem sabe o motivo de sua priso. E a sua ausncia de conscincia , justamente, a

    causa de sua opresso, pois pela recolha da memria acerca de si e de seu passado que o prisioneiro

    vai resgatando a prpria identidade como homem.

    No primeiro nvel, a opresso materializada entre quatro paredes, em uma aluso ao

    universo sem sentido de Sartre , isto , sem um objetivo concreto. Sentia as paredes, mesmo sem

    v-las na escurido. (p. 7) E de sua cela suportava a opresso cometida pelos homens srdidos ao

    seu redor vindos do inferno (p. 177) e que o encarceraram em uma cela, a fim de que ele se

    rebaixasse ao nvel de um animal rastejante. Haviam lhe dado uma natureza de rato e ele

    sobrevivia. (p. 69) As sujeiras, fezes, urinas e excrementos de seu corpo intensificam o estado de

    escravido.

    A libertao do filsofo e/ou esteta materializada pela conscincia que o diferencia dos

    ratinhos: homens pequeninos, correndo entre os quatro cantos de seu mundo, sem mais nada a

    esperar (p. 142). E materializa-se ainda num banho de guas lmpidas em aluso ao batismo em

    Cristo, para si e sua famlia. E alm de prisioneiro, Jeremias tambm um poeta, condio que

    implica renncias e desprendimento do conforto para alcanar os fatos concretos (p. 138); no

    como uma pessoa irresponsvel que abandona os entes queridos, mas como algum que comete um

    suicdio social voluntrio e morre para o mundo profano10

    , a fim de tornar substancialmente potica a

    sacralidade que h em seu idealismo: E se lembrou de um suicida, onde quer que fosse, que

    arrumou a casa, deu de comer aos filhos, banhou-os, tomou tambm o seu banho, e saltou no

    abismo. (p. 177) O abismo ao qual o narrador se refere o da escurido ampla e envolvente (p.

    7), de um poeta que comea a escrever suas primeiras letras, tal qual o primeiro verso do romance.

    vlido considerar que o filsofo tambm pode ser comparado ao asceta; pois ambos

    renunciam a ostentao dos ricos: cada propriedade, cada riqueza, por maiores que sejam, parecem

    pequenas para quem est acostumado a olhar para toda a terra. (LIMA, 2004, p. 39) E eles se

    recolhem no para pensar na justia ou nas injustias da esfera judiciria da sociedade; mas para

    refletir sobre a justia ou a injustia em si, o que so e no que se diferenciam de todo o resto.

    (LIMA, 2004, p. 40) O asceta, entretanto, ultrapassa os ideais do filsofo, pois impe a si mesmo a

    moral e a tica que h em sua racionalidade. E o asceta supera ainda as intenes do mestre, do pai

    de famlia e at mesmo do esteta, no apenas pela renncia ao mundo profano, mas por sua

    10 Para Mircea Eliade, a categoria profana se refere, entre outras coisas, ao utilitarismo dos atos fisiolgicos; desprovidos

    de sua intrnseca sacralidade e/ou religiosidade. (ELIADE, 2008, p. 20)

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    inclinao transcendncia o que legitima a sua condio de mstico, conferindo-lhe a santidade

    em seu estado de potncia.

    A santidade, porm, do ponto de vista cristo, no est somente na dignidade dos que se

    redimem do mundo em busca de redeno filosfica, espiritual ou religiosa, mas tambm no

    sofrimento das pessoas martirizadas, abandonadas e excludas socialmente, por motivos de doenas,

    drogas, opresso, pobreza ou condenaes injustas uma vez que essas representam o Cristo e seu

    rebanho (Mt 25, 35-37). E quem nos d os signos para tal inferncia humanitria o prprio

    narrador, que projeta nas personagens e no cenrio essa condio social e humana. Homens que

    urinavam e defecavam na prpria cala (p. 113). Homens sujos (p. 16), que gritam e sentem

    dores fsicas ou emocionais. Seres de roupa encardida (p. 32) que:

    bebem como bebem os ces (p. 94) nos hospitais de campanha, nas casernas

    [...] nas prises (p. 59) filas de homens amordaados (p. 11) homens que

    sofriam em qualquer parte. Homens sem liberdade (p. 27) os guardas tapavam

    as bocas (p. 20), mordaas, para que nenhum dos homens dissesse coisa alguma (p. 26), migalhas para sobreviver (p. 65), carreiras de homens

    esfarrapados (p. 67) As algemas eram a cadeia menor do confinamento elas ditavam a imobilidade (p. 78) drogas nas magras refeies (p. 81) sobreviventes da selva e do deserto (p. 95) mantidos ali como um rebanho (p.

    71)

    A princpio, Jeremias no gritava, apenas escutava os berros das pessoas amordaadas. Os

    gritos despertavam para a unidade, a harmonia e a coeso (p. 72). Gritos de liberdade, esperana e

    amor. Os homens gritavam pela me. Mame. Minha me. (p. 15) Diziam nomes divinos ou de

    santas: Um deles chamou por Maria, minha Maria. (p. 19). Outro por Joana, Conceio. (p. 15)

    Minha me. Mezinha. Minha me. (p. 16) Um nome de flor: Margarida. (p. 19), e tambm

    nomes de musas: Ldia, Inez, Beatriz. (p. 153) Nomes que haviam libertado no ar. (p. 15)

    Jeremias pensou no grito de esperana e gritou: Me! (p. 34), e deu um segundo grito,

    antes de ser amordaado: Dulce! (p. 34) Gritou simplesmente porque os homens no gritaram, e

    porque o autor implcito achou necessrio completar o tempo no ptio (p. 35). Posteriormente,

    gritou: Deus. Meus Deus. [...] Oh, Deus (p. 45), at que sentiu por si mesmo, o grito de esperana,

    o ptio da liberdade fugidia, o nome do amor e a paz, a grande paz interior. (p. 45) E atravs dos

    apelos em seus gritos, que eram representaes familiares, religiosas ou de mulheres queridas: Os

    homens reconstruam, aos poucos, o seu passado. (p. 46)

    Os gritos, entretanto, eram coibidos pelos guardas, os vermes fardados que tinham o

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    poder (p. 54) e eram representados por borres amarelos (p. 87), como uma intertextualidade

    farda amarela (p. 44) do soldado de Vidas Secas, de Graciliano Ramos. Esses guardas tinham o

    andar frreo (p. 87), passos de ferro (p. 177) e a voz metlica (p. 24). Aqui, possvel fazer

    ainda uma recorrncia genealogia de Nero, em oposio ao Cristianismo, visto que Licnio Crasso

    (apud SUETNIO, 2009, p. 70) a associou ao ferro ou ao metal, para expressar a crueldade antiga,

    presente j no bisavo do imperador: No espanta que tenha uma barba de cobre, pois tem uma boca

    de ferro e um corao de chumbo.

    Assim, a fogueira primordial (p. 155), mencionada pelo narrador de Os que bebem como

    os ces, pode ser explicada por uma correspondncia com o incndio que Nero teria provocado em

    Roma. Ele tinha atitudes similares s dos soldados do romance e, segundo Suetnio (2009, p. 92),

    tambm surrava pessoas, se resistiam, as feria e as afogava nos esgotos. Ele mandava envenen-las

    assim como Jeremias inferiu que os guardas estivessem envenenando seu alimento , provocou o

    suicdio do filsofo Sneca (p. 104) e no gostava de mulheres, no, necessariamente, porque ele

    prprio mantinha relaes sexuais com homens (p. 93), mas pelo fato de sua psicopatia apresentar

    tambm indcios de misoginia. Nero no respeitava nem mesmo a prpria me, privou-a de todo

    tipo de honras (p. 100) e era cruel com as figuras femininas, a ponto de mandar cortar os cabelos

    das concumbinas, que levava em sua companhia, moda dos homens (p. 114) , uma anttese

    feminilidade que existe no romantismo, bem como ao carisma de Jesus pela me e pelas mulheres de

    sua poca. Esse corte de cabelos tambm relembrado no ba de Jeremias, como um gesto oposto

    atitude do imperador, haja visto que um corte de cabelos pode modificar uma pessoa, tanto

    enaltecendo sua beleza quanto privando-a de sua identidade, dependendo do contexto em que se

    analisa. Os soldados torturadores do romance, portanto, personificam o mal no apenas pelas

    correlaes que o narrador faz com o inferno, mas, sobretudo, nas imagens recorrentes a Nero.

    O sofrimento fsico e a tortura mental que sofriam os homens hostilizados pelos soldados

    intensificou-se tanto, ao ponto de comearem a desistir dos gritos de amor e de esperana,

    concretizados pelos nomes de Maria e das mulheres que amavam e respeitavam. Quando Jeremias

    percebeu que eles estavam desistindo das prprias vidas, tomou partido, na tentativa de salv-los:

    Vivam, homens. (p. 75) E ele estava convicto em sua misso, pois salvando-os salvaria tambm

    os gritos de esperana e de amor, to necessrios na escurido daquelas celas. Mas eles eram punidos

    pelos guardas e o castigo era a morte. Jeremias no desistia e mesmo diante de cada maca

    ensanguentada (p. 76), insistia em seu clamor, abenoando-os: Vivam, homens, pelo amor de

    Deus! (p. 88), e motivando-os:

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    De posse de sua esperana, de seu amor, da paz que deveria renascer no ntimo

    de cada um, eles tinham que viver, que lutar pela vida, sem medo. (p. 76) Vivam, homens. (p. 78) Vivam, homens! (p. 87) Antes que lhe tapassem a boca e o virassem de costas, sentiu o alvoroo ou a esperana nos outros

    seres silenciosos, preocupados em sua tarefa de pequenos cordeiros. (p. 88)

    Vivam, homens. (p. 91)

    Jeremias no se conformava com o esmorecimento da esperana: por que no falavam

    entre si, naqueles instantes sem a mordaa? (p. 92) Mas os homens no apenas desistiam de suas

    vidas como alguns se matavam: Era a desistncia maior: o suicdio. Talvez a nica maneira de sair

    dali, mas no a maneira de salvar a sua prpria dignidade. (p. 91) O narrador no concebe o suicdio

    como uma soluo, do mesmo modo como repudia a atitude de Julieta. Jeremias, por sua vez, no

    desiste:

    Vivam, homens, no se matem. Lutem pela vida, o seu maior bem, mesmo que tenham que suportar a incompreenso e a injustia. [...] O amor, a esperana, a

    paz, as mulheres amadas, o nome de Deus o que teria significado para eles no comeo, agora que se matavam? Por que haviam desistido da luta? (p. 92)

    Entretanto, a morte dos homens poderia significar tambm uma reao, uma revolta mais

    firme, com a cor do sangue e do sacrifcio (p. 92), que passaram a deixar no muro, prximo s filas

    de espera. Eles corriam e esfregavam os pulsos ainda no algemados na parede spera: haviam

    acordado de sua letargia os pulsos sangrando no muro de pedra, o vivo vermelho passado ali

    como um pincel de carne. (p. 129). Uma revolta pacfica, para representar a cor vermelha.

    Segundo Scouarnec (2004, p. 40), na simbologia crist, o vermelho lembra o sangue de

    Cristo e dos mrtires, assim como o fogo do Esprito; e a cor branca do muro os tempos

    felizes da Pscoa e do Natal (p. 40), a redeno em Cristo.

    Jeremias, que outrora no se conformara com a morte de todos esses homens, encontrou

    ento a soluo em um gesto mimtico de irmandade: Eles no sabem que somos irmos, somos

    iguais. (p. 118). E passou a ser mais compreensivo:

    O homem que sangra a sua lucidez, o seu bem-estar na dor. O equilbrio das emoes, um alvo a atingir, uma fuga honrosa, digna no a desistncia, a renncia eles deixavam a sua marca com sangue, eles atingiam o muro de pedra. (p. 134)

    O narrador comea ento a apoiar o suicdio dos homens, mas esse apoio apenas revolta

    velada (p. 149) que representada pelo prprio discurso artstico, no plano literrio, em seus limites

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    entre a fico e a realidade. Caso contrrio, a literatura perderia a sua proposta humanitria em

    defesa da vida. Assim, Jeremias converte o seu grito de vida para um grito em homenagem morte:

    Viva o muro. [...] Companheiros, viva o muro. (p. 149) Agora eles lhe apontavam o

    caminho para desistir e morrer (p. 151) Tinha certeza agora, rasgaria os pulsos na pedra e

    continuaria o sacrifcio dos companheiros, embora ainda no soubesse, claramente, o que eles

    faziam (p. 153). Surge ento a voz do autor-implcito, honrando os escritores imortais: talvez

    alguma coisa perptua, um nome ou uma idia. (p. 153)

    Um desafio a Sartre: A imolao no muro, por uma idia de liberdade era isso. E daria a

    contribuio de seu sangue. [...] Por que no viver num claustro, numa cela ou num sto? (p. 160)

    Virou-se para o guarda mais prximo: seu queixo quadrado tinha um vinco ptreo (p. 182),

    como uma clara oposio pedra angular que o prprio Cristo, para os catlicos. Ele ento

    pergunta: O homem uma paixo intil? (p. 182) Encosta os pulsos nas salincias mais

    cortantes: lembra-se de casa, do sorriso de sua me [...] Esfrega com certo fervor os pulsos no

    muro (p. 182), a cor vemelha aparece no cenrio e o narrador a codifica: a cor rubra est ali (p.

    183), para os leitores que sabero v-la e senti-la. [...] Tragam a maca. (p. 183)

    A epifania nos planos denotativo e sincrnico do discurso

    Vi que o meu corpo estava sem vida,

    numa maca da Universidade.

    Glria Polo (2008, p. 18)

    Se mencionamos com Barthes, anteriormente, que a literatura indissocivel da sociedade;

    e com Assis Brasil, que a arte no se submete ao real e tampouco dele pode fugir; afirmamos

    tambm que o movimento retrico e ordenado da escrita denotativa, no que diz respeito converso

    do ser humano a uma ideologia, sempre inverso ao movimento ambguo da literatura, em direo

    ao leitor.

    evidente que o papel da literatura no pregar utopias, e sim edificar o seu prprio

    idealismo, por outro lado, no existem fronteiras a um esteta. A diferena entre um pregador e um

    escritor, porm, que esse ltimo no visa converter o leitor a um partido, nem mesmo tem a

    inteno de lhe impor uma religiosidade. E se o misticismo existir no discurso, o modo de revel-lo

    ser sempre pela via do ocultamento.

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    O narrador de Os que bebem como os ces expressa uma verdade literria, pelo vis da

    ambiguidade e da condensao potica, mas vale observar que seu propsito prioritrio atingir a

    verdade histrica, conforme a epgrafe do romance: A verdade histrica est muito mais na

    novelstica do que o prprio relato dos fatos que constituem a histria reconhecvel como tal.

    (Ernesto Sbato).

    A odontloga colombiana, Glria Polo (2008), que foi atingida por um raio e ficou entre a

    vida e a morte, em 1995, deu seu depoimento em um livro, a fim de relatar como esteve entre as

    portas do cu e do inferno; do mesmo modo como Jeremias trata de expressar sua experincia. O

    testemunho da narradora, no entanto, apenas uma tentativa de prosa potica, pois sua linguagem

    objetiva, direta e referencial:

    o raio entrou no meu brao, queimou-me espantosamente todo o corpo por fora

    e por dentro (p. 15) nesse instante, encontrava-me dentro de um formosssimo tnel branco, uma luz lindssima, [...] paz, felicidade [...] Foi um enorme

    xtase. [...] Sem sentir o meu corpo, nem a dimenso de tempo [...] vi todas as

    pessoas da minha vida num mesmo instante [...] os vivos e os mortos (p. 16) sentia que ia desfrutando de uma viso bela [...] rvores [...] flores belssimas

    [...] naquele jardim (p. 22)

    Posteriormente, ela apresenta a polaridade do bem, ao narrar os gritos de Deus para alert-la

    sobre o mal e a perdio dos homens, e descreve Sua imagem na cruz: Vi tambm Jesus na cruz a

    gritar, a sofrer [...] O senhor grita na cruz, com tanta dor (p. 60). Segundo Glria, sua prpria viso

    inexprimvel:

    sim, h demnios [...] Dirigi-me para dentro de uma quantidade de tneis [...]

    como um favo de abelha onde havia muitssima gente [...] escurido espantosa

    [...] cheira horrivelmente mal [...] debaixo de mim um abismo [...] no se sentia nem um pouco do Amor de DEUS (p. 23) nem uma gotinha de esperana [...]

    aqueles seres horrveis eram como larvas, como sanguessugas para tapar a luz.

    [...] Irmos, so trevas vivas, um dio que queima [...] No h palavras para

    descrever aquele horror. (p. 24) NOSSO SENHOR dizia-me, quase gritando: [...] os meus ungidos?! So de carne, e a santidade -lhes dada pela comunidade onde Eu coloquei esse Dom [...] O demnio detesta-nos, a ns catlicos, porque temos a Eucaristia (p. 37) odeia terrivelmente a Igreja Catlica e os sacerdotes (p. 39) O demnio acostuma-nos dor dos outros, a

    ver o sofrimento dos outros e a pensar que no nosso. (p. 86)

    Nota-se que a experincia mstica da mulher tem muitos dos elementos da descrio e os

    mesmos propsitos da narrativa de Os que bebem como os ces, exceto pelo fato de que o Deus da

    primeira apenas O Logos que odiado pelos demnios, contra os quais Ele Cristo, o Logos

    est em luta. (BOEHNER; GILSON, 2007, p. 30). O narrador de Os que bebem como os ces,

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    porm, expressa o sangue de Cristo, materialmente, em todo o romance, bem como um Logos

    semelhante ao Verbo divino, o qual, segundo So Joo (1, 1-4), fez-se carne e habitou entre ns, em

    matria concreta ou corpo substancial materializado tanto no protagonista quanto nos demais

    cordeiros imolados do discurso proftico.

    E a narrativa proftica porque o protagonista se chama Jeremias e dialoga com o profeta

    (p. 135) da Bblia, que faz reflexes sobre a Palestina: Olho para a terra: tudo catico e deserto;

    para o cu: dele desapareceu toda a luz (Jer 4, 23) Farei de Jerusalm um amontoado de pedras

    (Jer 9, 10), perversos [...] caadores de pssaros, armando laos para apanhar os homens.

    semelhana de uma gaiola cheia de pssaros. (Jer 5 26, 27). E ele antev acontecimentos que o

    autor-implcito traz para o romance: destruamos a rvore em seu vigor (Jer 11, 19). Mas o profeta

    bblico tambm lana premissas que o autor-implcito complexifica: Bem sei, Senhor, que no o

    homem dono de seu destino (Jer 10, 23); concretiza: a terra cobriu-se de luto. (Jer 4 28); bem

    como contradiz tal como o prprio Cristo rompeu com muitas ideologias do povo hebraico ,

    pois se o profeta amaldioa o dia de seu nascimento (Jer 20, 14), o poeta Jeremias ir enaltec-lo em

    dia de festa, com bolo (p. 174), para celebrar, metodicamente, sua fatia de vida (p. 24), ao lado

    das pessoas que ama.

    Alm da contradio, o romance tambm traz signos falsos que tendem a tornar as

    informaes aparentemente ilgicas e sem unicidade, a fim de promover a literariedade, pois h uma

    linha imaginria na narrativa que oferece um encadeamento de idias concisas. Um exemplo de

    signo falso, em Os que bebem com ces, so as imagens que remetem a ascese da obra ao budismo:

    Voltou a sentar-se sobre as pernas, assim como um indiano ou budista (p. 164). Mas o prprio

    autor sinaliza que essa religio est atrelada a uma letargia que no corresponde ao despertar em

    Cristo, proposto pelo autor-implcito: Sentiu que as pernas estavam dormentes pela posio

    prolongada. Endireitou-se. (p. 167) E o budismo proferido s claras pelo narrador, que no toca

    nem mesmo uma s vez no nome de Jesus. No entanto, o que ele faz, subliminarmente, concretizar

    a invisibilidade do Cristo na narrativa, e no para escond-Lo, mas para oferec-Lo pela via da

    poeticidade e dos sentidos. Ao contrrio do budismo, que tende a abstrai-los:

    Toda a ascese do zen precisamente dirigida para uma espcie de esvaziamento, de vacuidade de sentido; e os tericos do zen entenderam muito

    bem que a tarefa mais difcil do mundo no dar sentido (fazemos isso

    naturalmente), mas, ao contrrio, retirar sentido. (BARTHES, 2004, p. 118-119)

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    A crtica ao esvaziamento zen, no romance, tem por objetivo mostrar que Jeremias quer o

    sentido para da prpria vida, desafiando no apenas o existencialismo ateu de Sartre, que inspirou

    Camus e que, segundo Barthes (2004, p. 33) tende a rarefaz-lo, atravs da significao , como

    acaba por desembocar na temtica do livre-arbtrio, inerente ao autor-implcito. Esse, escolhe um

    enredo e o oferece s personagens, as quais tero a opo de escolh-lo ou neg-lo, tal qual o Cristo

    fez sua escolha, dando sentido ao seu sacrifcio. O sentido da vida e da liberdade, para o cristo, no

    entanto, no uma fico como possivelmente podem ser as lendas budistas11 e sim um

    reflexo do prprio real na pessoa do Jesus Histrico, implcito logo na epgrafe do romance.

    Jeremias aceitou o destino que o autor lhe ofereceu, mas antes de aceit-lo, teve de viver a

    ambiguidade de suas incertezas, concretizadas no alimento que sustenta tanto o seu corpo material

    quanto a sua psiqu, na medida em que esse alimento que consome no apenas uma metfora do

    veneno oferecido pelos homens vindos do inferno, mas tambm do alimento descido do cu,

    epifanicamente, por intermdio da figura de Maria, que espelha a me de Jeremias. Desse modo, o

    prato pode representar ainda a palavra, como alimento, e apontar para o discernimento que Jesus

    requer dos cristos: Sabeis distinguir os aspectos (Lc 12,56).

    A epifania que acontece, portanto, atravs do prato, cujo alimento tanto pode vivificar o

    corpo quanto o jejum vivifica a alma, visto que a personagem tambm se absteve do alimento,

    algumas vezes. Entretanto, o que a plenifica no a sua dieta (p