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    Civitas Porto Alegre v. 13 n. 2 p. 221-244 maio-ago. 2013

    Concepes de infncia e infncias

    Um estado da arte da antropologia da criana no Brasil

    Conceptions of infancy and childhood

    A state of the art for the anthropology of children in Brazil

    Clarice Cohn*

    Resumo: Este artigo dedica-se a uma leitura da produo em antropologia que focasuas pesquisas nas crianas, sejam pesquisas sobre ou com crianas, sejam elassobre polticas pblicas voltadas infncia ou sobre os direitos das crianas e dosadolescentes. Tratando do campo da antropologia da criana no Brasil, e debatendometodologias e conceitos, este levantamento da produo antropolgica traz a proposta,apresentada e discutida no texto, de que toda pesquisa antropolgica com ou sobrecrianas, instituies, polticas e direitos deve ter em conta as concepes de infncia

    que as perpassam e que informam suas formulaes e aes. Inclusive as das crianas,que agem no mundo de acordo com a concepo de infncia que este lhe apresenta,com a qual interagem e s vezes entram em conito.Palavras-chave:Antropologia da criana. Antropologia da infncia. Crianas indgenas. Direitosdas crianas. Polticas da infncia.

    Abstract: This paper proposes a bibliographical discussion on anthropologicalresearch focused on children and childhood in Brazil, including studies about or withchildren, and those centered on the politics of infancy and the rights of children andyouth. Synthesizing the anthropology of children in Brazil, it debates concepts andmethodologies, and proposes, as is argued throughout the text, that any research withor about children, their institutions, rights, and the policies focused on them , shouldstart from the notions of childhood at play, including those of children who act andreact sometimes in conict with the notions of childhood they are presented with.Keywords: Anthropology of children. Anthropology of childhood. Indigenous children.Childrens rights. Social policies for infants.

    * Doutora em Antropologia Social pela Universidade de So Paulo (USP, So Paulo, Brasil),professora de Cincias Sociais da Universidade Federal de So Carlos, SP, Brasil, coordenadora

    do Laboratrio de Estudos e Pesquisas em Antropologia da Criana (Lepac UFSCar/CNPq) e do Observatrio da Educao Escolar Indgena da UFSCar (UFSCar/Capes/MEC).

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    Gostaria de comear com duas observaes que para mim mostramo amadurecimento do campo de reexo da Antropologia da Criana e da

    pesquisa que seu cenrio. Uma delas, o fato deste texto ter sido produzido nocontexto de um evento sobre infncia efamlia.1Sublinho a conjuno porqueestes temas correlatos, tratados como sub-especialidades, e que como tantosoutros antropologia do estado, do direito, da educao , frequentementeandam juntos; so, com a mesma frequncia, mantidos separados nas nossasatuaes, produes e reexes sobre para onde ir. Os debates ocorridos porocasio do evento demonstraram quo fecundas essas conjunes podem ser,o que nos fez querer continu-las. A segunda observao irm desta: venho

    cada vez mais me tornando consciente de que faz muitos anos que vimosdizendo que o campo da antropologia da criana um campo em criao,crescimento, consolidao. Com satisfao, percebo que hoje se trata deum campo plenamente consolidado, com ampla representao nos debatesnacionais e internacionais, em publicaes e eventos de antropologia. horade o consolidarmos, sim, mas em outro sentido: no mais nos preocupando emlegitim-lo, em nos fazer ouvir, mas avaliando qual contribuio temos dadoe podemos dar antropologia. Assim como qual contribuio a antropologia

    pode dar, e tem dado, ao campo dos estudos das crianas e das infncias.Isso no se faz sem desaos ou obstculos. Se comecei louvando asituao atual, vou dar um segundo passo falando de algumas diculdadesque (ainda) encontramos. Falarei a partir de minha prpria especialidade, aetnologia indgena. Neste campo, os estudos das infncias indgenas e dascrianas indgenas vm orescendo (Tassinari, 2007; Nunes 2002, 2003) erevelando muito do que as crianas tm a dizer de seu mundo. Um mundo ques vezes, como em outros campos de pesquisa, s acessvel por meio delas,

    j que embora conhecido, obliterado pelos adultos.2No entanto, os estudosdas crianas tm tido pouco efeito no debate da etnologia indgena em geral

    poucos etnlogos leem os estudos sobre as crianas dos povos com quem

    1 Este texto foi desenvolvido a partir de minha apresentao na mesa Crianas e infncia:perspectivas antropolgicas, acompanhada de Carla Villalta e Claudia Fonseca, comcoordenao de Fernanda Bittencourt Ribeiro, na II Jornada de Pesquisa sobre Infncia eFamlia, organizada pelo NACi da Ufrgs e pelo PGCS da Pucrs. Agradeo enormemente aFernanda B. Ribeiro, Claudia Fonseca e Patrice Schuch pelo convite para participar do evento epara a publicao, e a todos pelos inspiradores debates. Agradeo ainda aos alunos da UFSCar

    que comigo tm debatido este tema, em conversas onde muitas destas ideias foram maturadas,em especial aos membros do Lepac, e a Antonella Tassinari e Andrea Szulc, com quem tenhocompartilhado espaos para o debate deste campo.

    2 Este obliterado no signica necessariamente negado, ou recusado, mas s vezes apenas noexplicitado; este fenmeno j havia sido marcado para a realidade das ilhas Fiji por Toren(1999).

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    trabalham. Este um problema real, que devemos reconhecer e enfrentar,para que nossos estudos no falem apenas para ns mesmos, reiterando-se

    a si mesmos, mas ganhem um alcance maior e mais efetivo nos debates daantropologia e no debate sobre o mundo.

    Assim, acho que os dois aspectos que enumerei so igualmente ver-dadeiros: temos um campo consolidado e reconhecido, com grande produo,com espao em publicaes na rea e eventos, mas ainda carecemos de umaentrada no debate maior da antropologia, uma entrada que nos permita uma vozampliada na compreenso dos vrios fenmenos sobre os quais antroplogosse debruam como pesquisadores e como cidados.

    este o estado da arte: a antropologia dedicada s crianas e s infnciasse consolidou, e a excelncia, a possibilidade (metodolgica, analtica,epistemolgica) e a legitimidade de nossos estudos so reconhecidas. Porm,ainda necessitamos ganhar maior abrangncia tanto no debate antropolgicocomo um todo quanto na interveno e na atuao pblica. Por isso, meuchamado aqui por maior interlocuo, mais entrecruzamentos. tambm

    por manter o tema no debate atual da antropologia. Um bom comeo para tal reconhecer o que os estudos com e sobre crianas tm podido revelar e que

    nem sempre revelado pelos demais estudos.Para tratar disso, focarei algo que acho de extrema importncia e quepermeia, silenciosamente, todas as pesquisas que sero referidas a seguir. Ouseja, a necessidade de se analisar as concepesdeinfnciae as noesde

    pessoaque esto implicadas em todos os processos que analisamos em umaperspectiva antropolgica. Entendo que isto deva ser sempre considerado paraentendermos os mais variados fenmenos de que se trata quando falamos come de crianas e infncias. E o farei seguindo o que se tem feito em antropologiada criana e da infncia no Brasil. Ou seja, no estou pregando que se comecea reconhecer esta dimenso que no devidamente reconhecida: ao contrrio,quero mostrar como todos estes debates aos quais farei referncia s so

    possveis ao se considerar a concepo de infncia que est em jogo em cadaum destes casos.3

    Assim, proponho-me a fazer um estado da arte em que busco demonstraro papel que as concepes de infncia exercem no s nos fenmenosobservados, mas tambm na anlise antropolgica destes fenmenos. Se

    3 Obviamente, este apenas um apanhado que teve como mote o recorte que dei ao debate, nosendo um levantamento exaustivo. Muitos outros trabalhos poderiam ter sido comentados ereferidos neste texto, e s posso esperar que seus autores compreendam os limites de espaoque levam omisso e possam se reconhecer, e reconhecer seus esforos de pesquisa, nestedebate que aqui proponho.

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    este papel nem sempre reconhecido e explicitado nos textos, o fao aquiexatamente para mostrar como eles so cruciais para entender o que as crianas

    fazem, dizem e pensam, e o que se faz com elas, se pensa delas, se diz sobreelas.

    Concepes de infncia

    Comecemos, mais uma vez, pela etnologia indgena. Esta comeou aolhar mais diretamente para as crianas nas dcadas de 1980 e 1990 no Brasil.Foi quando estudos especcos sobre as infncias indgenas comearam aser realizados, pela primeira vez observando-as no que elas so, ouvindo-as,

    acompanhando-as em suas atividades e em seus passos. Como se sabe, desdeque os primeiros colonizadores pisaram no Novo Mundo abundam refernciassobre as crianas de seus habitantes primordiais.4 O mesmo acontece naantropologia, que desde sempre se referiu s crianas, lembrando que elassempre acompanhavam os e as antroplogos, falando de ciclos de vida etc. Masfoi s quase no nal do sculo 20 que esforos concentrados e focados foramexpedidos para buscar entender as crianas e suas vidas por elas mesmas.5Adiferena, ento, estava no fato de que estas pesquisas iriam prestar ateno

    nas crianas pelo que elas eram, e no pelo que elas deveriam ser ou viriama ser. Assim tambm, a diferena estava em que se buscava criar contextos,mtodos e tcnicas de pesquisa e interlocuo com as crianas, de modo a queos antroplogos aprendessem a ouvi-las no que elas tm a dizer.

    Mas importante esforo foi tambm despendido em se desvendar o que ser criana nestes lugares. Para isso, h duas respostas, nem sempre igualmenteexploradas ou mesmo conectadas em cada trabalho: o que ser criana paraestas crianas com que se interage na pesquisa, e o que ser criana nestelugar ou, em meus termos, como se dene a infncia (ou as infncias) nesteslugares. Estas perguntas tm boas razes de serem feitas nestes contextosetnogrcos. A primeira: evitar pressupor uma infncia universal e paraisso nos baseamos muito na demonstrao clssica de Aris (1981) de quea ideia de infncia (e o sentimento de infncia) tem uma origem histricamuito localizada, e , portanto, mais propriamente ocidental. A segunda:o fato de que a etnologia j vinha mostrando que a noo de pessoa, e afabricao dos corpos, o idioma da corporalidade, so cruciais para entender

    4 Foi isto que permitiu o impressionante trabalho de Florestan Fernandes (1976) reconstituindoa infncia tupinamb a partir dos relatos dos cronistas, jesutas e viajantes.

    5 Este esforo teve grande impulso no Mari (Grupo de Educao Escolar Indgena), na USP, soba coordenao de Aracy Lopes da Silva, Lux Boelitz Vidal e Mariana Kawall Leal, durantetoda a dcada de 1990 (ver Lopes da Silva et al., 2002).

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    os mundos indgenas e suas socialidades (Cohn, 2000c, 2002b). Assim, se anoo de pessoa, e a fabricao da pessoa e dos seus corpos, so cruciais para

    os amerndios, elas deveriam ser fundamentais tambm para se entender suasnoes de infncia, suas experincias de infncia, as experincias corpreasdestas crianas, e as intervenes sobre estes corpos que se fazem.

    Foi isto o que z quando pesquisei os Xikrin. Buscando entender o quepara eles uma criana sua concepo de infncia , logo aprendi que elaestava ligada a uma concepo tambm de sentidos e percepo e, portantode aprendizagem e de possibilidades de conhecer e apreender o mundo ede corporalidade e fabricao dos corpos.6 minha incessante pergunta,

    a mim mesma como para eles, sobre o que uma criana, s tinha comoresposta, claro, coisas vagas.7At que uma resposta, exatamente por no servaga, mas aparentemente contraditria, me surpreendeu: foi quando o velhoBep-Djoti me explicou que as crianas tudo sabem porque tudo veem e nadasabem porque so crianas. Assim, meus focos de pesquisa passaram a sera corporalidade, o modo como se tratam olhos e ouvidos para aprender aver, ouvir e aprender, a ornamentao corporal, a alimentao, os remdios;a mobilidade, a circulao, o movimento destes pequenos corpos. Foi ento

    que percebi que tudo aquilo que se faz para as crianas faz seus corpos, assimcomo os brinquedos que elas fazem so parte de um todo mais amplo que,constituindo corpos e corporalidades, constitui estas pessoas. As crianasxikrin crescem para ser homens, mulheres, pais e mes e depois avs ,lderes, caadores, pescadores, agricultoras, coletoras, professores, agentesindgenas de sade... E crescer um longo e trabalhoso processo mediado porobjetos que adornam seus corpos e que eles fabricam, ou so fabricados poreles, para brincar e intervir no mundo (Cohn, 2000a; 2000b; 2002a; 2012) e

    por diversas relaes de comensalidade, de nominao, de amizade formal...Alm da corporalidade, importante local de produo da pessoa e da sua

    infncia, as crianas indgenas podem assumir tambm um importante papel:o de mediadoras. Habitualmente, fala-se em mediao cosmolgica apenas no

    6 A importncia dos sentidos e do desenvolvimento dos rgos responsveis por eles, assimcomo a ornamentao corporal que o permite e produz, j estava indicada na bibliograa sobreos povos j, de que fazem parte os Xikrin (ver Seeger, 1980; Turner, 1995; Vidal, 1992).

    7 Incidentalmente: isso vale para qualquer pesquisa que lide com as concepes de infncia, e um dos maiores desaos metodolgicos do pesquisador: qual a pergunta certa a fazer?

    pergunta o que uma criana cada psiclogo, juiz, conselheiro tutelar, xikrin, campons,enm, ter uma resposta. Alm de reunir e analisar todas estas possibilidades de respostas, quediro muito, a questo , ento, qual pergunta fazer e esta s pode ser aprendida em campo,vendo o que relevante para nossos interlocutores, a que eles remetem quando tratam destestemas. Os Xikrin remetem a ver, a ouvir, a aprender... e eram estas as pistas que eu tinha,portanto, que seguir.

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    caso dos xams mas a pesquisa etnogrca revelou que esta atuao podeestar tambm a cargo das crianas. Este o caso fascinante dos Maxakali de

    Minas Gerais, cujas crianas so mediadoras entre os mundos, as famlias, aspessoas. Diz Alvarez (e este s um exemplo, como ela comea a conversa):

    A criana o o que tece as vrias dimenses da sociabilidadeMaxakali. atravs dela que se inaugura a relao com o outro.De acordo com as regras de etiqueta Maxakali deve-se primeirodirigir-se s crianas, particularmente aos bebs, quando em visita aum grupo familiar aliado ou em qualquer outra situao de distnciasocial. S aps agradar as crianas, carregar e acariciar os bebs,

    que o visitante deve dirigir o olhar e a palavra aos seus antriesadultos (Alvarez, 2004, p. 53).

    As crianas maxakali so tambm o motor da vida ritual. As crianas,conta-nos a autora, so o maior bem trocado entre as mulheres e os espritosdurante os rituais. Na iniciao, troca-se o lho a ser iniciado (que passa dacasa domstica, materna, cerimonial, masculina, aos cuidados dos pais) peloslhos mortos, espritos, para que as mes possam continuar cuidando deles.

    So estes espritos que, mais do que cantores, so o prprio canto (Alvarez,2004, p. 57) que do aos viventes as msicas dos rituais. Alm disso, a cadaritual, so apenas as crianas e os jovens o suporte para a manifestao dosespritos. Com seus corpos transformados em ymiy atravs das mscarascerimoniais e as pinturas corporais especicas, se transformam nos prpriosespritos presentes na terra. Cantam e danam para os humanos, atualizamassim a unio entre os viventes e os espritos (Alvarez, 2004, p. 60-61). Semcrianas no h ritual, sem ritual e canto no h formao de pessoas e no hmaturao dos viventes. Espritos, quando crianas, devem tambm maturarno alm cantando todo ano para os viventes, at poderem mandar seus lhosfeitos no alm para cantar. Sem eles, no h ritual, e, novamente, no h

    produo de pessoas maxakali. E, com as crianas, as casas, as famlias, aspessoas se ligam, mensagens chegam, e as crianas levam as palavras paraque a conversa daqueles que no podem se falar diretamente possa acontecer.Os Maxakali e este belo texto so para mim o melhor exemplo de como

    para os indgenas as crianas so importantes, consideradas em sua condioatual, cuidadas, mas parte crucial de seu mundo. So seres em maturao,

    que devem ser cuidados (em vida e na morte, enquanto l tambm maturam),que devem ser instrudos (e o texto nos apresenta uma bela descrio dosmomentos em que o so), que no so confundidos com os adultos mas quetm uma atuao crucial no cotidiano e no ritual tornando possvel e efetiva

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    as relaes entre os vivos e entre os vivos e os mortos. E que torna possvel aprpria maturao e construo de pessoas.8

    As muitas infncias indgenas

    Assim, a experincia da infncia (e seu valor), diversa para cada socie-dade indgena. Por isso no podemos confundir suas concepes de infnciacom as nossas. Nem umas com as outras. Por isso, a cada vez que nos dedicarmosa estudar com e sobre as crianas indgenas, temos que nos debruar primeirosobre como as crianas, e a infncia, so pensadas nestes lugares. No podemos

    pressupor uma criana e uma infncia universais, mas talvez no possamos

    tambm pressupor uma noo de infncia, particular, mas sempre vlida.Assim, temos belssimas descries de como os indgenas veem suas crianas,e como elas atuam, em seus aprendizados (Codonho, 2007), em espaos demediao, nas escolas (Marqui, 2012; Limulja, 2007), nas suas andanas ecirculao pelos espaos (Correia da Silva, 2011). Temos tambm timasdescries sobre como a infncia pensada a partir de passagens e categoriasde idade (Fernandes, 1976; Cohn 2000a; Nunes 2003). Mas nada nos indica,terminantemente, que temos uma noo de infnciapara os indgenas. Como

    para os Maxakali, temos sempre a percepo da sua condio percepoesta respeitosa das condies efetivas dela, e de sua autonomia e capacidade(Tassinari, 2007) , cuidados especiais, prticas para sua maturao e paragarantir seu aprendizado e que estejam prontas para aprender , prticas deensino e aprendizagem. Mas no uma elaborao, como esta que zemos noocidente, sobre esta sua condio especial. As crianas xikrin so os peque-nos, meprire, como para o maxakali so lhos, como o so tambm oslhotes, kitoko. Nestes mundos perspectivos em que a humanidade e o paren-tesco so sempre construdos (ver Viveiros de Castro, 2002a; Souza, 2004;Lima, 1996), crianas so, como todos e continuamente, humanizadas, pessoa-lizadas. Condizente com a importncia da noo de pessoa para os amerndios,

    perguntar-se sobre as infncias indgenas , portanto, perguntar-se sobre comoum processo que mais geral incide sobre as crianas e vivido por elas.9

    8 Este papel de mediadoras exercido tambm pelas crianas Guarani de Mbiguau, como apontaOliveira (2005), em especial com o mundo dos no-indgenas, tomando uma frente (e uma im-portncia para o coletivo) que desaa a noo de infncia como incompletude e incapacidade.

    9 Sugeri que falar de criana, neste sentido, sempre mais seguro que falar em infncia, termocarregado de sentido do qual difcil se despregar e desapegar (Cohn, 2005a). O que armo

    aqui no est em contradio com isso. Ou seja, no signica relativizar a infncia fazendo uminventrio de infncias possveis, um exerccio que no me parece propriamente antropolgico,mas perceber, sempre, que o modo como se pensa a experincia que as crianas podem edevem ter, informa o modo como se age sobre elas e tambm informa (mas no determina) omodo como elas agem sobre o mundo. Ao longo do texto, teremos oportunidade de discutir ogerenciamento que as crianas fazem de suas infncias.

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    Mais que isso, no devemos trocar seis por meia dzia, e acreditarque poderemos isolar infncias indgenas particulares. Ou seja, na recusa da

    infncia ocidental como denidora das indgenas, buscar as infncias indgenascomo se elas pudessem ser denidas como esta, a ocidental. Mais, devemos

    pensar que pode haver muitas infncias nestes mundos indgenas muitasinfncias xikrin, muitas infncias guarani, maxakali...10

    Este risco de se passar a denir infncias indgenas pode ser discutidopor Mantovanelli (2010, 2011).Quando foi estudar a infncia kaingang emIcatu, SP, tendo lido a bibliograa sobre estas crianas em diversos povosindgenas, Mantovanelli se imaginou chegando aldeia e sendo rodeada

    por crianas. No entanto, por muito tempo, seu campo foi marcado por umabusca contnua destas crianas, que sempre pareciam dela fugir. Tudo foise esclarecendo quando ela percebeu a importncia do espao domstico

    para as mulheres e suas crianas, e a permanncia destas nos seus quintais,e que ela e as crianas estavam sendo ensinadas na tica do respeito e darestrio que devem reger as relaes. De fato, as crianas que via eram as queentravam e saam das casas em que a antroploga tinha maior convivncia.Sua pesquisa rendeu uma reexo sobre as concepes de infncia para estes

    Kaingang a partir da noo de restrio e atravs das mulheres companhiasfrequentes da antroploga , e que sempre tinham uma histria para contar,ou para disputar, sobre as graas de suas crianas. Mas rendeu tambm umareexo metodolgica que vale aqui retomar: a invisibilidade das crianaskaingang lhe revelou o quanto ela havia ido a campo com uma espcie denoo generalizante da infncia indgena, como se ser criana indgena fosseigual em todo lugar, em todo o mundo indgena. Obviamente, as etnograaslhe mostravam as particularidades destes modos de ser criana mas pareciasempre haver algo em comum, sua mobilidade, sua autonomia, sua circulao

    pelas casas, seu papel de mediadoras, que contrastava fortemente com o quevia em Icatu. Assim, devemos cuidar para no cair em outros essencialismos aonegar essencialismos anteriores. Como nos conta Mantovanelli (2010, p. 10),

    nesse cenrio proltico que coloco as crianas do Icatu. Antdoto.Pois sua invisibilidade foi o antdoto para meu olhar viciado. Seessas crianas foram-me invisveis porque eu tinha de antemo

    pintado suas cores. Ou seja, como no vi aquilo que imaginei queveria, elas desapareceram. E s depois elas reaparecem para dizer,

    10Agradeo a Bruno Henrique Rodrigues de Oliveira pela provocao certeira feita no debatedurante as Jornadas, sobre como eu poderia estar certa de denir uma infncia para os Xikrin,e se no seria mais produtivo supor, como estvamos exercitando em outros campos, apossibilidade de vrias infncias mesmo entre os Xikrin.

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    nas minhas anotaes de caderno de campo, que no se tratava deinvisibilidade factual, mas de uma maneira especca de lidar comas relaes sociais e os espaos no mundo. Se invisveis ou reclusasem seus quintais de um lado, de outro, as crianas so os assuntosfavoritos das rodas vespertinas nas varandas das mulheres. Comum tom de uma quase disputa, mulheres exibem na fala seus lhose netos, destacando-os como protagonistas do que h de melhor emtermos de existncia humana. Assim, as crianas do Icatu (SP) queestavam longe dos meus olhos estavam em meus ouvidos, trazidas

    pelas falas de suas parentas.

    Mas como as crianas indgenas veem os seus mundos? Este um

    investimento analtico menos feito. Neste texto ele importante para mostrara relao entre estas abordagens e o investimento que a meu ver ainda devemosfazer. Correia da Silva (2011) acompanhou os meninos em suas andanas pelaaldeia e seus arredores, e nos descreveu suas atividades e como se relacionamcom o mundo e com as pessoas. Oliveira (2005) mostrou como elas ocupame atuam em diversos espaos a escola, o coral, a casa de reza e atuamcomo mediadoras. Marqui (2012) mostrou como elas vivenciam a escola etambm os momentos no escolares. Mas talvez pouco se tenha feito ainda

    para entender como elas entendem o seu mundo.Fiz alguns esforos a este respeito sobre as crianas xikrin lendo einterpretando seus desenhos, uma atividade que elas adoram fazer, desde quena escola aprenderam a desenhar em papel. Tenho um grande repertrio dedesenhos que ganhei deste seu gosto por desenhar em todos os lugares. Tendolevado uma vez comigo papel sulte e lpis de cor, por sugesto de minha entoorientadora, Lux Vidal, tive o material requisitado a todo o momento e passeidias, semanas, acompanhando diversos grupos de crianas desenhando.11Vrios deles, subsequentemente, me deram o desenho. Depois de feitos, osdesenhos no lhes servem mais e no necessitam ser conservados, mostrados

    para todos ou comentados. Logo esto amassados, rasgados e so jogados fora.Guardados mesmo, s na escola e pelas antroplogas...12 Fiz uma primeiraleitura deste material em minha dissertao (Cohn, 2000a), mostrando comoestas crianas viam seu mundo: neles estava tudo o que lhes interessava, eo modo como elas organizavam as coisas no papel e se organizavam paradesenhar, eram todas muito reveladoras. Depois, reli o material, que foicrescendo com o tempo, e mostrei como estas crianas reagiram a uma tarefa

    escolar que consistia em desenhar sua cultura. Na realizao desta tarefa, cou

    11 Por sugesto de minha orientadora Lux Vidal, a quem agradeo por esta e pelas demaissugestes, e pela orientao que me permitiu entender um pouco mais das crianas xikrin.

    12 Fiz uma reexo sobre o uso de desenhos em estudos com crianas em Cohn (2005b).

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    muito clara suas percepes do valor que a cultura ganhou no mundo atual,e do valor poltico de cultura (Carneiro da Cunha, 2009). Elas desenharam,

    ento, para seus professores no-indgenas, sua cultura, sua tradio. Se, comoeu tinha observado, num mesmo desenho poderiam conviver como convivemem seu mundo avies, pescarias, cubos escolares, motivos de pinturacorporal, futebol, danas e mscaras rituais, para esta tarefa desenharamapenas o que aos olhos dos professores, aos olhos no-indgenas, seria suacultura: os meninos desenharam as danas e seus apetrechos, arcos e echas,canoas, enquanto as meninas dedicaram-se exclusivamente pintura corporal.Este trabalho mostra claramente como estas crianas so conscientes de sua

    condio de crianas (e) indgenas, respondendo neste contexto escolarcom muita clareza sobre como deveriam se apresentar como crianas quedesenham e que so indgenas (Cohn, 2008; 2010). Assim, o modo comoelas atuam como crianas informado pelo modo como se dene o que sercriana nestes lugares. Assim tambm elas respondem a outra necessidadede denio: aquela que remete ao ser indgena, o que igualmente dene suacondio de sujeito neste mundo atual. Como apontarei ao longo do texto, ascrianas atuam em resposta, e cientes, ao modo como se pensa sua infncia.

    Crianas em cenrios institucionais

    A educao uma das reas mais frequente e diretamente relacionadas infncia e tem cada vez mais se voltado a uma conexo com a sociologiada infncia, com resultados muito frutferos. Por ela se tem feito etnograasde escolas, que buscam mostrar o modo como as crianas interagem e agemnas escolas. Estes trabalhos nos permitem ver concepes de infncia e as

    prticas nas escolas por parte dos adultos e das crianas. Este campo vastomerece um tratamento amplo, e torna difcil a seleo de textos exemplares

    para comentrios aqui. Mas antroplogos tambm tm se dedicado a estudosem escolas. Em geral, estes estudos referem-se a experincias escolares quetm as populaes indgenas como pblico. Este campo vastssimo e comgrande produo particularmente interessante por desaar a ideia de escola,ou colocar a escola em seu limite, mesmo quando a expectativa indgena pareceser a de ter uma escola como a dos brancos (Cohn, 2005b; Tassinari e Cohn,2009). Em geral tambm, falta anlise sobre a prtica escolar indgena umareexo sobre as infncias indgenas que deveriam ser respeitadas em cada

    desenho de uma nova escola indgena (Cohn, 2009).Mas esforos tm sido feitos tambm para dar conta de experincias

    escolares no-indgenas. Rero-me excelente etnograa e anlise deMalheiros Moraes para ilustrar como a anlise antropolgica da experincia

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    escolar pode revelar a construo de uma infncia neste caso, a infnciaescolarizada(Malheiros Moraes, 2012, p. 34). A etnograa em uma escola de

    ensino infantil revelou a regnciada fala das crianas. Estes seres denidoscomo sem fala, infante, de modo a dar-se-lhes ordem e sentido, assim comoa constituio de um corpo dcil e ao mesmo tempo participativo. Sobreeles, normalmente, a ateno focada em processos de ensino-aprendizagemregidos pela professora, sobretudo em sala de aula, e em uma constituio dehbitos que frequentemente se busca extrapolar para a famlia, que deve agirde modo coerente com os ritmos e as disciplinas criados pela escola. Nestetrabalho, Malheiros nos permite ver como se aprende a ser aluno (Malheiros

    Moraes, 2012, p. 184), em um drama que deslinda, e sobre o qual lembra: Oproblema que se apresenta instituio escolar como manter este drama eresolv-lo de modo adequado, a despeito de toda resistncia (ibid., p. 173).

    Neste contexto escolar, o pedaggico e o pedirquico conceitos queempresta de Victor Turner complementam-se para fazer o bom e o mau aluno.Um, o que responde bem regncia pedaggica, e ganha a possibilidade de

    brincar no parquinho; o outro, que, ao contrrio, faz baguna e falha portantona relao pedaggica, tendo negado assim o jogo pedirquico. Espaos e

    tempos, o da sala de aula e ans e o do parquinho, se complementam, aoponto da passagem ao ensino fundamental (cuja vivncia foi acompanhadapelo pesquisador) ser sentida exatamente pela perda do parquinho, substitudopela quadra esportiva. Este processo leva as crianas a uma idade da razo e damemria e ao lamento da perda do parquinho e da possibilidade de t-lo vistoreformado (Malheiros Moraes, 2012, p. 188).

    Esta excelente etnograa nos demonstra exatamente que concepes deinfncia informam a atuao sobre as crianas tendo por m constituir certainfncia esta infncia pressuposta e, como lembra o autor, aparecendo comoameaada. Anal, se a escola de educao infantil enfatiza um determinadomodo de ser criana porque essa infncia parece ameaada (MalheirosMoraes, 2012, p. 53). Em diversas ocasies demonstradas pelo autor, ela extra-

    pola seus muros ao armar os modos escolares como os adequados e devendoser seguidos pelas famlias. Ou seja, a escola busca produzir certa infncia, eo faz. Mas demonstra tambm que as crianas a isso resistem constantemente,como por exemplo, no momento da baguna, subverso da condio de aluno. por isso que o problema da escola manter o drama apesar das resistncias

    porque, constituio de certa infncia, a escolarizada, as crianas reagem,tanto quanto aprendem a ser alunos. Mais uma vez, concepes de infncia,que tm seu papel em ambos os lados do jogo, informam as interaes deadultos e crianas e a construo mesmo desta infncia.

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    Malheiros Moraes nos provoca, igualmente, sobre a condio depesquisador de infncias: anal, no somos parte deste mesmo drama?

    Se Tassinari (2009) j problematizava a possibilidade de pesquisadoresescolarizados pesquisarem com eccia infncias no-escolarizadas,Malheiros Moraes problematiza o pressuposto de dar voz s crianas o que,ademais, parte importante da prtica pedaggica nas escolas... Em momentode otimismo, mas que no se apresenta como resoluo dogmtica, sugereque a pesquisa antropolgica se faz possvel por enfatizar a escutada fala dascrianas, ao contrrio da prtica pedaggica, que de regnciadestas falas(Tassinari, 2009, p. 68). Mas algo a mais se coloca: a qualidade intercorprea

    da experincia do pesquisador em campo (Malheiros Moraes, 2012, p. 68),que faz dele, aos olhos das crianas, algo entre um aluno e um bom aluno um corpo dcil, sentado, atento, observante e um adulto.13Lembra-nos,portanto, que a concepo de infncia algo que o antroplogo deve cuidarpara no levar a campo. Lembra-nos tambm que em determinada condio aquela a ele atribuda pelas crianas e pelos lugares com quem e ondedesenvolve sua pesquisa que as crianas lhe falam. Situao que jamais

    podemos deixar de ter em mente em nossas pesquisas.

    Nas polticas pblicas de sade, as concepes de infncia entramfortemente em jogo. Este o caso de um exemplo extremo, o dos diagnsticosda depresso infantil. Eunice Nakamura (2004; 2009) acompanhou casos emque crianas, aps inmeros priplos e passagens por diversos equipamentosde sade e especialidades mdicas, recebem o diagnstico de depresso. Emvisita a estas crianas e suas famlias, ela tambm ouviu sua verso sobrea doena, o diagnstico, o tratamento. A etnograa interessantssima einstigante. Em especial, porque revela que este diagnstico sempre feitotendo por referncia uma imagem de infncia normal, ou seja, uma concepode infncia. H muito se demonstra que a sade dene a normalidade e oanormal, e que isto afeta tambm a denio de famlia, de maternidade, e desua normalidade.14O trabalho de Nakamura demonstra que a medicina atuatambm na denio de uma normalidade da infncia. muito relevante o

    13 Se o pesquisador era visto como aluno e adulto pelas crianas, e tratado de tio, apropriaode termo de parentesco que o autor discute, ele visto pelas professoras como uma espcie deestagirio, algum de quem no se teme a crtica, uma espcie de iniciante a quem se ensina.Sua armao de que apresentar seu trabalho ao seu professor na universidade parece exercer

    um importante papel nisto.14Para o Brasil especicamente, ver Freire da Costa (1979) e Rohden (2009). Em tempo, esteltimo livro nos liga a outra questo, aqui no tratada (ver Cohn, 2005): o prprio debate sobreo aborto e o infanticdio refere-se questo sobre quando inicia a vida. Este debate est muitopresente nas discusses e a enorme polmica sobre o infanticdio indgena. Em todos estescasos, concepes de infncia e de pessoa esto em debate e embate.

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    que dizem os mdicos de seus pacientes diagnosticados com depresso. Naspalavras de Nakamura (2004, p. 119-120):

    A percepo que os prossionais tm de determinados com-portamentos infantis segue, assim, padres de normalidade ede anormalidade, em geral semelhantes queles identicados nodiscurso popular, pois trata-se, em ambos os casos, de adultosfalando de crianas, de seus comportamentos e de sua adaptaoou inadequao a normas. A grande diferena, nesse contexto, estno fato de os mdicos associarem a anormalidade patologia, odesvio doena.Esses comportamentos infantis so considerados adequados quando

    expressam determinados padres esperados e culturalmente aceitos,sendo inadequados todos aqueles que se encontram fora dos padresvigentes, de acordo com as seguintes caractersticas:

    1. Sociabilidade

    Padro normal aceito:crianas devem ter amigos, brincar.Padro anormal observado:crianas no tm amigos, no brincame so quietas.

    2. Obrigaes e deveres na escola ou na famlia

    Padro normal aceito:crianas devem ser organizadas e adaptadas.

    Padro anormal observado: crianas no obedecem a regras,apresentam prejuzo no comportamento adaptativo; no queremir escola, falta-lhes ateno e apresentam queda no rendimentoescolar.

    3. Manifestaes de humor e de temperamento

    Padro normal aceito:crianas devem ser felizes, bem humoradas.Padro anormal observado: crianas so inquietas, agitadas,agressivas, irritadas.

    4. Maneiras adequadas de agir

    Padro normal aceito:crianas devem saber lidar com o mundo ecom situaes adversas; tm de ter autoestima e segurana.Padro anormal observado:crianas tm diculdade para lidar comsituaes que exigem muito ou que as pressionam.

    Assim, ao basear seus diagnsticos no que Nakamura (2004, p. 120;2009) chama de esteretipos positivos ou negativos, os mdicos estoestabelecendo a normalidade da infncia ou nos meus termos, esto tomando

    por referncia uma concepo de infncia para julgar se cada criana est

    adequada ou no a esta condio mesmo, a da infncia. Trocando em midos,este seria outro modo (e no aquele a que o senso comum sempre se refere)de negar a infncia s crianas julgando seus modos como no-infantis, ouseja, como de uma infncia errada, a ser corrigida.

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    Neste excerto, Nakamura nos chama ateno para a coincidncia entre ojulgar do mdico e da famlia, todos em sua condio de adultos. Se olharmos

    para as famlias, que, como nos conta, passam de atordoadas a aliviadas como diagnstico que lhes permite reorganizar a vida familiar, perceberemos algodiverso mas complementar:

    O discurso das famlias aponta para uma explicao popular dadepresso infantil, que insuciente para abarcar toda a variedadede alteraes de comportamentos infantis; por outro lado, aexplicao mdica parece plausvel, mas no incorporada. Nessaaparente lacuna entre uma noo relacionada doena e a ausncia

    de outra noo convincente, congura-se uma conotao popularsobre depresso infantil que expressa a teia de signicados sobre aqual se sustentam as experincias populares de depresso infantil oudaquilo que se poderia denominar simplesmente estados infantisalterados.

    As famlias, quando falam sobre depresso infantil, expressamuma noo mais ampla e profunda, a qual se ope noo mdico-cientca da patologia. Tratando de um problema que no dominam,mas que passa a fazer parte de suas preocupaes cotidianas, asfamlias revelam, mediante suas experincias, algo mais sobre os

    comportamentos das crianas, ao mesmo tempo em que evidenciamdeterminadas formas de organizao social e de manifestao dacultura, pautadas pela maneira como os adultos se relacionam comas crianas (Nakamura, 2004, p. 149-150).

    Olhando para as famlias, vemos algo mais do que os esteretipos de quefazem uso os mdicos: vemos tambm as relaes que os adultos efetivamenteestabelecem com (su)as crianas. Neste caso, relaes que se apoiam nodiscurso, no diagnstico e na prescrio mdica para se reorganizar mas, e

    isso muito relevante, relaes.15Em outro contexto, embora na cena hospitalar, mas colocando em

    jogo outros atores, Rafael Fioravanti reete sobre a recompensa do trabalhovoluntrio exercido no hospital infantil Pequeno Prncipe, em Curitiba.Lembrando-nos que o voluntariado liga-se ddiva, e, portanto troca, eque esta deve ser vista em sentido amplo e jamais simplista, ele enumera deincio e com facilidade uma srie de trocas que partem dos voluntrios aosdemais: crianas (que so alegradas), famlias (cujas crianas so alegradas),

    prossionais de sade (cujo trabalho pode ser facilitado), o hospital (na

    15O estudo trata das relaes familiares mas seria muito interessante complement-lo com aviso que as crianas tm de sua condio, diagnstico e tratamento e, ento, das relaes queestabelecem, e como as veem.

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    possibilidade, por exemplo, de diminuir o tempo de internao). Mas o autorlevanta uma questo bem menos simples de responder e objeto de sua pesquisa:

    o que os voluntrios recebem, ou esperam receber, em troca? Trago aqui adescrio do pesquisador de dois dos muitos momentos de sua etnograa,em que v se revelar a pista a ser tomada: ou seja, a referncia alegria dascrianas como a retribuio do esforo:

    Uma de minhas entrevistadas disse numa certa ocasio: As crianasesquecem que esto doentes. Este comentrio me fez reetir sobrecomo as crianas eram percebidas pelos voluntrios. Durante a

    pesquisa de campo, eu notava que as crianas estavam conscientes

    sobre a sua condio de doente, ou ento, eram lembradas, sendopelo fato de estarem longe das suas relaes familiares, amigos,colegas de escola e de estarem fora dos espaos que costumavamfrequentar, e at mesmo, pelo uso de recursos mdicos ou peloacesso intravenoso, geralmente em seus braos, presos por uma talade madeira ou plstico, que impossibilitava os movimentos de umade suas mos.

    Uma noite, quando acompanhava Marta, voluntria de 51 anos, edu-cadora, durante uma visita enfermaria da Clnica Geral, pergunteisobre a sua experincia com o trabalho voluntrio. Chorando muito,

    ela falou que se sentia feliz ao conseguir fazer uma criana sorrir pormais fechada que a criana esteja. Era no sorriso das crianas queestava o reconhecimento que ela encontrava no trabalho voluntrio.Conseguir ter feito uma criana parar de chorar e comear a sorrir,era a sua recompensa (Fioravanti, 2006, p. 91-92).

    Estes momentos indicam ao pesquisador o que de fato est em jogo:restituir a estas crianas sua infncia. Porque os voluntrios parecemconsiderar que as crianas internadas no Pequeno Prncipe tiveram a suainfncia interrompida pela doena (Fioravanti, 2006, p. 96). Ou seja,novamente confrontamo-nos com uma concepo de infncia que denea atuao do adulto neste caso, um voluntrio em um hospital paracrianas, das quais se espera respostas que lembrem a condio infantil:sorrisos, alegria, despreocupao, falta de dor. No seria de se espantar queestas crianas lidassem com estas expectativas ao se defrontar com fami-liares, mdicos e voluntrios... O autor no se dedica a estudar as crianas esuas expectativas, embora registre os gritos de euforia com que recebem os

    voluntrios e os materiais que trazem para as atividades, mas no seria dese espantar que elas estivessem absolutamente conscientes no exatamentede sua condio no este o ponto mas das expectativas a elas devo-tadas.

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    A proteo da infncia

    Voltando nossa ateno para a questo da proteo infncia, temos apossibilidade de ver um jogo em que a parte das crianas pode ou no ser vistapelos pesquisadores. Vejamos dois estudos, um em que a voz dos, no caso,adolescentes no ouvida ao longo do processo observado e a pesquisadorano busca ouvi-los e outro em que as aes, as percepes e as relaesestabelecidas pelas crianas sob tutela do estado so o foco mesmo da pesquisa.

    Iniciemos com uma pesquisa etnogrfica nas audincias deconhecimento nas Varas Especiais da Infncia e da Juventude na cidade de

    So Paulo. Neste caso, a anlise tem por foco o prprio processo judicial e suacena, e busca ver como se dene a culpabilidade e a pena dos jovens infratoresacusados. Aqui no se discute a fundo a parte que jogam os adolescentes em

    julgamento. Mesmo porque, como diz a autora, eles so gurantes (assimcomo seus familiares, os promotores e os advogados de defesa) frente ao juiz,que tem o papel principal (Miraglia, 2005, p. 92-93). Se no o papel ativodo adolescente que est em jogo nesta anlise, quetem por foco o processo

    judicirio,exatamente por isso ela nos particularmente interessante para

    mostrar que uma concepodeinfnciaque est em jogo. Analisando as cenasem que o estado, os adolescentes e suas famlias disputam sua culpabilidadee denem as medidas socioeducativas adequadas ao ato infracional, edemonstrando a supremacia do juiz nestas cenas e o papel de gurante defamlia e adolescentes, Miraglia demonstra ser este um espao de poder emque, entre outras coisas, est em disputa a ideia mesmo de menoridade.

    Diferente a abordagem de Ribeiro (2011), focada no modo como ascrianas atuam em uma situao literal de insulamento, quando so mandadoscom suas famlias tidas como de risco ilha dYeu (Frana), para um perodode residncia provisria na associao Caval e que visa a reestruturaofamiliar. Claramente, aqui esto em jogo tudo o que temos arrolado acima:uma concepo de infncia, de famlia, de normalidade. E trata-se de um casode interveno estatal em famlias consideradas incapazes de criar seus lhossozinhas. Vivendo em uma ilha cercados de famlias igualmente consideradasdesestruturadas, de pais incapazes de criar seus lhos, alm dos educadores eda populao local com quem tambm convivem, estas crianas estabelecemuma srie de relaes e de estratgias que tm por pano de fundo o estigma.

    Fazendo a ligao entre os adultos que delas se ocupam, mas tambm entresuas famlias e a populao local (Ribeiro, 2011, p. 48), elas vivenciamrelaes com colegas de escolas, os pais (muitas vezes apenas o pai ou ame nestas famlias majoritariamente monoparentais), as assistentes maternais

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    (cujas casas frequentam), e conhecem mais a ilha que os seus pais que tambmforam designados a morar l, como disse uma me pesquisadora. O mais

    rico e mesmo desconcertante do artigo a demonstrao de como, nestateia de relaes, as crianas os grandes, acima de seis anos, de quemse espera capacidade de raciocnio e discernimento (Ribeiro, 2011, p. 43) atuam de modo a passar da cumplicidade e cooperao aos pais recusa emse ver identicados a eles. Assim, quando defendem seus pais, atuam paracontribuir com a melhora da situao da famlia; porm, quando silenciam(e aqui a autora chama a ateno para a diferena entre silncio e palavra) aoterem presenciado as transgresses da me ou do pai s regras da instituio

    (e que so tambm do conhecimento dos educadores), eles esto fazendobem mais do que cooperar ou defender os pais: esto se diferenciando destes(Ribeiro, 2011, p. 53). Em especial, com as assistentes maternais, chamadastata, podem estabelecer ligaes que extrapolam seu tempo de permannciana ilha, criando relaes que podero ser ativadas em outros momentos davida. Assim, entre cooperar com os pais e diferenciar-se deles, convivendoem famlia e nas famlias das crianas de Caval e com a populao local,com educadores e assistentes maternais, estas crianas colocam em atuao

    no s seu discernimento e raciocnio em reconhecer as situaes, lindamentedemonstrados no artigo, mas tambm em reconhecer as concepes de infnciae de famlia que lhes levaram a esta situao insular e que lhes pode retirardelas ou permitir-lhes retornar em outra condio.

    Esta capacidade dos meninos e das meninas de se ver com sua condiosempre me impressionou tambm na rica etnograa feita por Gregori (2000a),que, dentre outras coisas, demonstra como elas respondem aos diversos atoresinstitucionais de acordo com as expectativas destes. Esta parte importantede sua virao, e permite a circulao que elas fazem entre famlias, abrigos egrupos nas ruas. Criando e mantendo diversas relaes entre estes ambientes,eles permitem que se vivencie a infncia de modos diversos, e, para sehabilitar a cada um deles, capacidades e incapacidades diversas, propriedadesou misrias, riquezas ou lacunas tm que ser ressaltadas. Longe de viverem desorganizao e abandono, organizam-se em grupos com relaesmuito estabelecidas, relacionam-se cooperativa ou conitantemente com avizinhana, permanecem, mudam-se, retornam famlia, vo aos abrigos...Enm, no s vivem sua infncia, como reagem com destreza a todos os

    esteretipos que lhes so voltados, fazendo uso deles em sua circulao evirao.

    Esta capacidade mais aparente e impactante na etnograa realizadapor Calaf (2008) entre os meninos de rua em Braslia. Ambas as situaes so

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    semelhantes em um ponto que sempre acho importante ressaltar: estas crianasde rua o so no por falta de casa ou famlia, mas por valorizarem sua

    liberdade. Em ambos os casos, transitam entre casa e rua. Mas, para a Galeraem Braslia, um aspecto se incorpora a este cenrio: o discurso, a prtica e adisposio para a sexualidade. So crianas que transitam tambm (como j seapontava na etnograa de Gregori, como j se viu com os grandes de Caval)entre a infncia e sua recusa. Eles marcam esta sua infncia exatamente nadiferena que estabelecem com outra infncia, a de apartamento, daqueles aque se referem como lhinhos de papai ou bodinho. A diferena no estna condio de ser criana, que eles no recusam, mas na tutela:

    Neste sentido, os meninos e meninas da Galera no aceitam suaposio de crianas: no querem ser tutelados, e no aceitam estaremsituados em uma posio relacional de subjugao frente aos adultos.Armam, ento, serem crianas, sim, mas crianas diferentes: sodonas de si, pensando-se e repensando-se continuamente, e tentandofugir aos mecanismos de controle e submisso (Calaf, 2008, p. 44).

    Estes meninos e meninas desaam a noo de infncia naquilo que ela

    tem de mais central porque eles armam e praticam sua sexualidade, e suamaternidade e paternidade. E o fazem como modo de denirsuainfncia:

    na Galera, a disposio ativa perene para o sexo fator fundamental naconstruo das identidades masculinas e femininas, constituindo-seo status de saber mais sobre o sexo (o ser quente) condio e provade no ser mais criana. Se a sexualidade das mulheres, tal comoas identidades sexuais masculinas na Galera, atrelada ao desejo eao prestgio, tambm, tal como aparece em um segundo momentode conversas, orientada em direo construo de si por meio de

    categorias como o respeitoe a vergonha(Calaf, 2008, p. 88).

    A etnograa na nos mostra que esta prtica e este discurso sobrea sexualidade, que faz gente grande, ou muleques, so marcados peloaprendizado e, tambm, pelo segredo. necessrio dominar a tcnica, e necessrio para isso aprender, o que demanda esperteza: trade valorizada edenidora (Calaf, 2008, p. 101). E, para as meninas, o controle da vontadede sexo de seus parceiros, que denidora de sua prpria sexualidade e

    tambm de seu controle contraceptivo: na Galera, as meninas se colocamem posio de iniciativa sexual, de assumir o desejo sexual, mas tambmde deverem controlar o desejo, a sua reputao, e a reproduo (Calaf, 2008,

    p. 126).

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    A contracepo e a concepo so controversas: se se evita, se podetambm tirar, se pode tambm assumir o projeto da maternidade e da

    paternidade. Mas esta leva a um novo equilbrio entre a casa e a rua, e auma nova negociao sobre a autonomia desta criana que fez criana. Ese esta autonomia no respeitada, se a jovem me tratada em casa comocriana, o retorno s ruas levando o lho a soluo (Calaf, 2008, p. 142).Anal, ser pai e ser me deve ser coerente com os valores de liberdade, destavez associados responsabilidade por outrem, que s refora o primeiro: terlho no mais ter que obedecer como lho ou lha (Calaf, 2008, p. 149).Tudo isso, aqui to esquematizado, acontece em meio violncia sofrida,

    s disputas, ao abandono dos companheiros, a arrependimentos, a perdas deamigos. Nada aqui diz que essa uma infncia mais feliz, ou mesmo maisinfeliz. Mas o que importa reter e deve sempre ser dito que tudo aqui diz queessa uma infncia. E , como todas, uma infncia gerenciada tambm pelascrianas, que em suas prticas denem sua prpria condio infantil. Casosextremos como este crianas que fazem crianas, como Calaf intitula suadissertao mostram com clareza o gerenciamento que as crianas fazemde suas infncias. Uma clareza que elas nos cospem na cara, e que em outros

    lugares no reconhecemos como na tirania cotidiana exercida pelas crianasem suas famlias burguesas, denindo o que a famlia vai fazer, onde vai passaras frias, o que vai comer, o que vai ver na TV...

    A diculdade em conceber outras infncias

    Termino este artigo lembrando mais uma vez da diculdade que ns,antroplogos, temos de reconhecer estas outrasinfncias. J havamos vistoesta diculdade (re)aparecendo na etnologia indgena, nos estudos sobre ascrianas indgenas, e nas pesquisas feitas em contextos escolares. Agora,levanto outra provocao. Durante todo o texto, tenho chamado a ateno

    para o modo como a antropologia nos permite entender outros modos de sercriana que nem sempre so reconhecidos nas polticas pblicas de sade,educao, e no direito, mesmo naquelas polticas mais bem-intencionadas emais afeitas aos direitos da criana e do adolescente. Porm, algumas situaesnos revelam que no so s os nossos pr-conceitos antropolgicos (como foio caso da expectativa que Mantovanelli levou a campo) que limitam o bomexerccio da antropologia: so tambm nossos pressupostos, como cidados

    que somos, como humanos que somos, e que tambm arriscamos carregar acampo.

    Estes preconceitos agora assim mesmo, preconceitos j impediramque vssemos as crianas como sujeitos plenos e capazes; j impediram que

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    vssemos as crianas indgenas em suas especicidades, e no como parte deuma suposta universalidade da infncia (ou, pior, como os infantes da infncia

    da humanidade que eram os indgenas at poucas dezenas de anos atrs e aindao so no senso comum); j impediram que escutssemos(e no regssemos)suas vozes; j impediram que vssemos, em geral, as crianas e as infncias emsuas multiplicidades e em seus modos de gerenciar suas infncias. Agora, nosregozijamos com a nossa recm-adquirida capacidade de trazer antropologiaas vozes e as experincias das crianas, e reconhecer suas aes, relaese capacidades. Mas nem sempre isso feito sem que barreiras reapaream.Parece que at para antroplogos os limites se impem.

    Isso foi discutido por Begnami (2010) ao reetir sobre o modo comooutros antroplogos e antroplogas reagiram sua etnograa. Assim comoCalaf, ela ouviu das crianas, durante a pesquisa de campo num bairro perifricode So Carlos, SP, relatos sobre suas prticas sexuais e suas sexualidades. Foiquestionada mais de uma vez se no deveria denunciar o abuso sexual sofrido

    por estas crianas, ou se deveria realmente ter acreditado no que elas diziam.Obviamente, dizia-se a ela, essas histrias eram mentira, dado que crianasno tem vida sexual... questo de tica cam as dvidas: e quando, como

    no caso que acabamos de comentar da Galera de Braslia e era tambm ocaso no Gonzaga, a sexualidade no vivida como violncia, no imposta, entre pares e dene uma infncia particular, trata-se a tambm de um casode denncia? No caso da agrante mentira ca a questo: estamos realmente

    prontos para ouvir das crianas o que quer que seja que elas venham noscontar?

    Outros antroplogos j viveram esta situao e alguns reetiram sobreisso. Viveiros de Castro (2002b) j disse que a pergunta se devemos acreditarnos nativos, , em si mesma, um erro conceitual. Goldman (2003), que se

    pegou acreditando no que no imaginava crvel, acabou por concluir que nofaz a mnima diferena ele achar que ou no verdade. Toren (2006) propsum exerccio sobre as condies de avaliao de veracidade dos (ou seja,

    pelos) nativos. Assim, quando questionada sobre a veracidade das falas dosmeus interlocutores, as crianas, a prpria antropologia foi questionada, poisa questo da verdade prpria da antropologia. As crianas do Gonzagamantm relaes sexuais, no devemos duvidar disso, apenas pensar sobreo tratamento antropolgico que daremos a isto: elas fazem sexo, temos que

    acreditar nisso (Begnami, 2010, p. 45).Assim, acrescento logo ao nal, este novo desao: como ouvirrealmente

    as crianas? Como efetivamente escutar suas falas, como pergunta MalheirosMoraes? Esta questo se coloca como uma extenso do estado da arte que

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    apresentei, de uma antropologia da criana consolidada, mas que tem que sever ainda com o dilogo e com a capacidade de debater e intervir no campo

    mais amplo da antropologia e no campo, mais amplo ainda, da atuao nomundo. Uma atuao que seja efetivamente condizente com o que as crianasfazem e querem fazer de suas infncias, neste mundo em que as possibilidadesde infncias e de ser criana so inmeras.

    Para faz-lo, devemos sempre levar em conta que, de um lado, aconcepo de infncia informa (sempre) as aes voltadas s crianas e,de outro, que as crianas atuam desde este lugar seja para ocup-lo, seja paraexpandi-lo, ou neg-lo... a partir dele que agem ou contra ele que agem.

    Por isso, a concepo de infncia deve ser sempre considerada nas duaspontas das pesquisas em antropologia que fala de e com crianas aquela queavalia o lugar da criana e trata de seus direitos, das polticas pblicas a elasvoltadas, de aes educacionais etc. e aquela que atenta para o ponto de vistadas crianas. Se nem todos podemos ver ambos os lados ao mesmo tempo, outodos os lados destas realidades multifacetadas, ao menos devemos ter issoem mente: que as aes voltadas s crianas e o lugar que lhes destinado sodenidos por concepes de infncia na mesma medida em que o modo como

    as crianas atuam e o que elas pensam do mundo acontece a partir (mesmo quecontra) desta posio que lhes oferecida e que elas conhecem e reconhecem.Assim, podemos inclusive deixar de debater qual a melhor abordagem adas crianas ou das polticas, por exemplo na condio de admitir que serosempre incompletas se desconsiderarem o outro lado, mesmo quando no oabordem diretamente.

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    Autora correspondente:

    Clarice CohnPrograma de Ps-Graduao em Antropologia Social PPG-ASRod. Washington Lus, km. 23513565-905 So Carlos, SP, Brasil

    Recebido em: 12 set 2012Aprovado em: 9 out. 2013